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    Exu no n ovo mundo: o processo de hibridaocultural da umbanda na dispora africana

    Lo Carrer NogueiraDa Universidade Estadual de Gois, Porangatu, Gois [email protected]

    _____________________________________________________________________________________

    Resumo: A noo de situao colonial permeia as identidades culturais na Amrica. O processo deformao destas identidades tem sido estudado por diferentes autores, que se dedicaram a elaborarconceitos chaves para compreender a formao destas novas identidades. Um destes processos pode serobservado na formao da religio umbandista, mais especificamente de uma de suas entidades de culto.

    Trata-se da figura de Exu, que sofreu ao longo dos ltimos sculos um processo de ressignificao, frutodas experincias hbridasno Novo Mundo, a partir das presenas europeia e africana. Como resultado,Exu passou de Orix cultuado na frica a uma entidade ancestral no culto da Umbanda. Neste artigopretendemos analisar esta transformao sofrida pela entidade Exu sob a luz das teorias ps-coloniais,utilizando como chave explicativa as noes de dispora e hibridismo, recorrendo principalmente aautores como Stuart Hall (1996), Homi Bhabha (1998) e Nestor Canclini (2006).

    Palavras-chave: Exu, Umbanda, Dispora, Hibridismo, Situao colonial. _____________________________________________________________________________________

    INTRODUO

    A experincia colonial deixou profundas marcas nas sociedades americanas. Osresultados desta experincia podemos notar cotidianamente nossa volta. Nos ltimosanos, cada vez mais autores tem buscado compreender esta experincia colonial e asmarcas profundas que ela deixou, especialmente no mbito cultural. Para isto, diversos

    conceitos e chaves explicativas foram elaborados no intuito de traduzir estesfenmenos em algo cientfico.

    E a alguns destes diversos conceitos que nos debruaremos ao longo destetexto para buscar explicar um dos elementos culturais que entendemos ser fruto do queBalandier (1993, p. 114) chama de Situao Colonial:

    Seja qual for a doutrina adotada, as relaes de dominao e de submissoexistentes entre a sociedade colonial e a sociedade colonizada caracterizam asituao colonial. E os autores que concentraram sua ateno sobre esteaspecto mostram que a dominao poltica acompanhada de uma dominaocultural. Um deles pensa que o problema cultural est intimamente ligado aoproblema geral da evoluo poltica e econmica, que a influncia das

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    117| Exu no Novo Mundo: o processo de hibridao ... NOGUEIRA, L. C.culturas europeias teve como resultado a opresso do fundo culturalautctone.

    No bojo das experincias coloniais, um novo personagem surge no mbitocultural, mais especificamente no religioso. Trata-se de Exu, divindade de origemIorub que, a partir do contato com os europeus, se transfigura em um novo Exu,entidade cultuada nos terreiros de Umbanda, agora no mais como divindade, mas simcomo esprito ancestral (Egum).

    Tal transfigurao resultado de um longo processo de ressignificao ocorridono Novo Mundo, em que os cultos africanos, quando em contato com o elementoeuropeu, acabam por sofrerem sua influncia, dando origem a um quadro inteiramentenovo, impensado e original. A este processo de modificaes e trocas culturais o que

    alguns autores chamam dehibridismo . Tal hibridismo tem como pano de fundo adispora dos africanos, escravizados e trazidos para as Amricas. Estes so os doisconceitos chaves para compreender os processos de mudanas culturais que tem lugarno Novo Mundo.

    Portanto, nosso objetivo mostrar como o surgimento deste novo Exucultuado na Umbanda est inserido no mbito das relaes coloniais, e s pode serexplicado dentro deste contexto, a partir dos conceitos elaborados por historiadores,

    socilogos e antroplogos da chamada corrente ps-colonial, como Homi Bhabha(1998), Stuart Hall (1996), Nestor Canclini (2006), entre outros, que buscam atravs deseus conceitos formas de compreender os processos culturais que se desenrolaram nasAmricas induzidos pela situao colonial.

    O NOVO MUNDO E AS IDENTIDADES DIASPRICAS

    O processo colonial d origem a inmeras identidades culturais novas,resultantes dos processos de encontro dos elementos que foram trazidos para aAmrica. Longe de serem fixas, estas identidades esto sujeitas a inmeras variveisque as moldam a partir dos contatos entre as diferentes presenas culturais em terrasamericanas. Como define Stuart Hall (1996, p. 69),

    as identidades culturais provem de alguma parte, tem histrias. Mas, comotudo o que histrico, sofrem transformao constante. Longe de fixaseternamente em algum passado essencializado, esto sujeitas ao contnuojogo da histria, da cultura e do poder.

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    lise, Rev. Geo. UEG Anaplis, v.3, n.1, p.116-134, Jan./jun. 2014 Artigo| 118A noo de dispora uma das chaves para se compreender os processos de

    mudanas culturais ocorridos nas Amricas, sob a luz da situao colonial a que estecontinente foi colocado. Atravs dela passamos a vislumbrar o longo processo quelevou formao de uma nova cultura em terras americanas. No mais africana, nemeuropeia, mas fruto do encontro destas duas presenas em um espao totalmente novo.Assim, retornar a esta frica se torna essencial para compreender estes diversosespaos culturais que surgem.

    Estas viagens simblicas so necessrias a todos ns e necessariamentecirculares. Esta a frica a que devemos retornar mas por outra estrada:oque a frica se tornou no novo mundo, o que ns fizemos da frica:frica como a recontamos atravs da poltica, da memria e do desejo(HALL, 1996, p. 73, grifos nossos ).

    O que a frica se tornou no Novo Mundo? Esta a pergunta que norteiaStuart Hall, e que devem fazer todos aqueles que pretendem compreender as diversasculturas americanas e a formao de suas identidades culturais. Este precisamente ocaso de Exu, que ao deixar o continente africano, trazido pelos africanos escravizadosque para aqui vieram, acaba se tornando outra coisa diferente, reelaborado eressignificado pela experincia colonial que aqui toma forma.

    Segundo Hall, esta seria a primeira presena colonial, aquela que fornece amatriz cultural que ser retrabalhada e transformada no processo diasprico: apresena africana. A segunda presena a europeia, aquela que ir submeter estacultura, mediante uma relao de poder, e obrig-la a se transmutar e se reinventar,estando ela prpria entranhada em nossa identidade.

    Porque a prsence europennediz respeito excluso, imposio e expropriao,somos muitas vezes tentados a localizar esse poder como completamenteexterno a ns (...). O que Frantz Fanon nos lembra, emBlack Skin, White

    Masks , como esse poder se tornou um elemento constitutivo de nossasprprias identidades (HALL, 1996, p. 73).

    O poder colonial europeu constitutivo de nossas identidades. Sem ele noseramos o que somos hoje, e provavelmente no faramos muitas das coisas quefazemos hoje. No cultuaramos o Exu da Umbanda, uma vez que s faz sentido falarem Umbanda devido ao processo colonial que permitiu aos diferentes elementosculturais aqui presentes hibridizarem-se, dando origem a novos quadros religiosos. Adialtica da ao (poder) e da reao (resistncia) o que move as prticas culturais

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    119| Exu no Novo Mundo: o processo de hibridao ... NOGUEIRA, L. C.encontradas neste Novo Mundo, resultando em novas prticas culturais fundidas,como define Hall (1996, p. 74):

    O dilogo de poder e resistncia, de recusa e reconhecimento, pr e contra a prsence europenne , quase to complexo quanto o dilogo com a frica. Emtermos de vida cultural popular, em parte alguma se encontra prstino, puro.Est sempre j-fundido, sincretizado, com outros elementos culturais. Estsempre j crioulizado (...).

    Para que tais processos culturais ocorram, necessrio que haja um espaoprivilegiado, no qual estes elementos possam ser reunidos e, assim, servir de local paraque as trocas, fuses e fisses culturais ocorram. Esta exatamente a terceira presenadefinida por Hall (1996, p. 74):

    A terceira presena, a do Novo Mundo, no tanto poder quanto cho,lugar, territrio. o ponto de juno em que os muitos tributrios culturais seencontram, a terra vazia (esvaziada pelos colonizadores europeus) ondeestranhos vindos das partes mais distintas do globo colidiram. (...) Nesteespao que as crioulizaes e assimilaes e sincretismos foram negociados.

    no Novo Mundo que as novas identidades culturais so processadas. aquique o orix Exu, cultuado em frica como divindade, sofre um processo de hibridizaoque d origem a novas prticas culturais. A Amrica o espao privilegiado dadiversidade e da transformao culturais. A presena doNovo Mundo Amrica,terra incgnita , portanto, em si mesma o comeo da dispora, da diversidade, dahibridao e da diferena, de tudo isso que j faz do povo afro-caribenho o povo de umadispora (HALL, 1996, p. 74).

    A dispora, portanto, o elemento que permitiu Amrica enquanto espao aformao de novas identidades culturais, frutos dos processos coloniais que tiveramcomo personagens africanos e europeus. Estas novas identidades, diaspricas, tem

    como caracterstica principal a diversidade e a dinamicidade. Carecem de uma noodinmica de cultura, como elementos que esto sempre em processo de transformao,a partir dos contatos com outras matrizes culturais.

    A experincia da dispora, como aqui a pretendo, no definida por pureza ouessncia, mas pelo reconhecimento de uma diversidade e heterogeneidadenecessrias; por uma concepo de identidade que vive com e atravs, no adespeito, da diferena; por hibridao.Identidades de dispora so as queesto constantemente produzindo-se e reproduzindo-se novas, atravs datransformao e da diferena (HALL, 1996, p. 75, grifos nossos ).

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    lise, Rev. Geo. UEG Anaplis, v.3, n.1, p.116-134, Jan./jun. 2014 Artigo| 120Assim, o surgimento do Exu da Umbanda um processo de formao cultural

    que teve lugar na Amrica e como origem o processo colonial. Pode ser compreendidopela formao de novas identidades, frutos da dispora africana e dos processos dehibridao que aqui ocorreram, conceitos chaves para uma nova corrente de pensadoresque buscam compreender os fenmenos ps-coloniais.

    A NOO DE CULTURA PS-COLONIAL: AS CULTURAS HBRIDAS

    Um dos principais tericos da corrente ps-colonial o indiano Homi Bhabha(1998), que prope uma renovao nos estudos culturais a partir das teorias ps-

    coloniais. A chave de sua proposta est, primeiramente, em um deslocamento naprpria compreenso do conceito de cultura. Bhabha (1998, p. 67) tenta umaressignificao do conceito de cultura, percebido por ele como algo dinmico e aberto:

    apenas quando compreendemos que todas as afirmaes e sistemas culturaisso construdos nesse espao contraditrio e ambivalente da enunciao quecomeamos a compreender porqueas reivindicaes hierrquicas deoriginalidade ou pureza inerentes s culturas so insustentveis,mesmo antes de recorrermos a instncias histricas empricas quedemonstram seu hibridismo (grifos nossos).

    Portanto, para Bhabha, atribuir a diferentes culturas ou elementos culturais ocarter esttico de originalidade ou pureza algo totalmente inconcebvel. ParaBhabha, todas as culturas so hbridas porque a prpria cultura dinmica, est semprese modificando. Lyyn Mario de Souza (2004, p. 125) nos esclarece melhor opensamento de Bhabha e dos ps-coloniais a respeito:

    O projeto [ps-colonial] prev a releitura da diferena cultural numaressignificao do conceito de cultura. (...) Dessa forma, para Bhabha, noprojeto ps-colonial,em oposio ao conceito dominante de cultura comoalgo esttico, substantivo e essencialista, a cultura passa a ser vistacomo algo hbrido, produtivo, dinmico, aberto, em constantetransformao (grifos nossos).

    Partindo deste princpio, podemos notar que a proposta do autor prev umacompleta reformulao no modo como entendemos a cultura, para da podermoscompreender os fenmenos culturais includos os fenmenos religiosos ocorridosno bojo do processo colonial. Ao invs de vermos a cultura como algo esttico, eleprope que enxerguemos a dinamicidade das culturas, como algo que est sempre em

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    121| Exu no Novo Mundo: o processo de hibridao ... NOGUEIRA, L. C.movimento, e que, ao serem colocadas umas diante das outras, so capazes deinteragirem, dando origem a inmeras formas culturais novas.

    Assim, ao invs de pensarmos em duas matrizes culturais estanques, como porexemplo, uma europeia (A) e uma africana (B), que ao se encontrarem, entrariam emum processo de fuso (A + B) e produziriam uma terceira cultura tambm estanque (C),mas com elementos de ambas, o autor prope que pensemos em duas matrizes culturaistotalmente abertas e que, ao se encontrarem, do origem a um complexo processodinmico que pode resultar em infinitas possibilidades de combinao, assimilao,fuso, repulso, excluso etc. Este encontro, segundo Bhabha (1998, p. 51), abre umespao de traduo: um lugar de hibridismo, (...) onde [vemos] a construo de umobjeto poltico que novo, nem um e nem outro.

    A traduo tambm uma maneira de imitar, porm de uma forma deslocadora,brincalhona, imitar um original de tal forma que a prioridade do original no sejareforada. (...) O originrio est sempre aberto traduo (...) nunca tem ummomento anterior totalizado de ser ou de significao uma essncia. (...) atravsdesse deslocamento ou limiaridade que surge a possibilidade de articular prticas eprioridades culturais diferentes e at mesmo incomensurveis (SOUZA, 2004, p. 125).

    Esta limiaridade citada por Lyyn Mario de Souza um dos conceitos chaves

    na teoria ps-colonial de Bhabha. Segundo ele, a dominao colonial provoca osurgimento destes espaos limiares, que so espaos de fronteiras, ou o que eledenomina de terceiro espao ou entre lugar, ou seja, espaos que no pertencemnem cultura regional, nem imposio colonial, mas sim espaos hbridos, nointerstcio destes dois lugares em que se encontram.

    Estes entre-lugares fornecem o terreno para a elaborao de estratgias desubjetivao singular ou coletiva que do incio a novos signos deidentidade e postos inovadores de colaborao e contestao, no ato de definir

    a prpria ideia de sociedade. (...)Essa passagem intersticial entreidentificaes fixas abre a possibilidade de um hibridismo cultural queacolhe a diferena sem uma hierarquia suposta ou imposta (BHABHA,1998, p. 20 e 22, grifos nossos).

    Este o caso, por exemplo, das trocas religiosas entre africanos, europeus enativos em terras brasileiras. Como j afirmamos, a Amrica se torna o palco destapassagem intersticial, este entre lugar, onde diversas culturas se encontram e doincio a um processo de interao constante. O resultado deste processo no uma

    cultura nica, monoltica, resultado da fuso equivalente dos elementos culturais aquidispostos, mas sim uma rede cultural, um rizoma, em que temos vrias ramificaes

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    lise, Rev. Geo. UEG Anaplis, v.3, n.1, p.116-134, Jan./jun. 2014 Artigo| 122diferentes, resultados dos diversos nveis de interao a que estiveram sujeitos oselementos que aqui se encontraram. Assim, o contato entre estas culturas d origem aum quadro dinmico, composto por infinitos elementos culturais provenientes deambas, e que so apropriados, negociados, reelaborados e utilizados de maneirasdiferentes por cada indivduo que est imerso nesta dinmica cultural:

    Mais do que culturas distintas o que possvel perceber que a sociedade viveessa dinmica cultural e atravs do uso da sua utensilagem mentalressiginificam e se apropriam desse universo cultural disponvel de acordocom as suas percepes e interesses (S JNIOR, 2004, p. 51).

    Este quadro fornece os subsdios necessrios para o processo de hibridao,como descrito por Bhabha. Outro autor a trabalhar com o conceito, o argentino NestorGarcia Canclini define a hibridao, de forma bastante genrica, como os processossocioculturais nos quais estruturas ou prticas discretas, que existiam de formaseparada, se combinam para gerar novas estruturas, ob jetos e prticas (CANCLINI,2006, p. XIX). Assim, para Canclini, a Hibridao se d sempre que estruturas deorigens culturais diferentes se encontram em um mesmo espao, se combinando dediferentes formas para gerar novas estruturas.

    Outros autores recorrem a conceitos semelhantes, como as noes de

    crioulizao, transculturao, e mestiagem abordada do ponto de vista cultural e nobiolgico que, apesar de terem trajetrias e aplicaes diferentes, de certa formacoincidem com o conceito de hibridismo que tentamos descrever at agora. Sobre isto,o autor Nestor Garcia Canclini considera que todos eles devem ser traduzidos esubstitudos por um nico conceito: o conceito de hibridao. O autor analisaespecificamente os conceitos de mestiagem, sincretismo e crioulizao, cada um delesse referindo a um aspecto cultural especfico. A mestiagem serviria para trabalharmoscom as interaes entre povos diferentes no s do ponto de vista biolgico, comoproduo de fentipos a partir de cruzamentos genticos, mas tambm do ponto devista cultural, como mistura de hbitos, crenas e formas de pensamentos(CANCLINI, 2006, p. XXVII).

    O sincretismo se refere combinao de prticas religiosas tradicionais, ou,num sentido mais amplo, a adeso simultnea a vrios sistemas de crenas, no sreligiosas. E a palavra crioulizao, em sentido estrito, se refere lngua e a culturacriadas por variaes a partir da lngua bsica e de outros idiomas no contexto do

    trfico de escravos (CANCLINI, 2006, p. XXVIII).

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    lise, Rev. Geo. UEG Anaplis, v.3, n.1, p.116-134, Jan./jun. 2014 Artigo| 124Para os sacerdotes e pessoas comuns entre os iorubs a funo principal deExu de representar a oposio criao, sendo o infrator das regras e daordem. (...) Incumbido por Olodumar1 da tarefa de mudar o que est parado,Exu recebe o Ad, uma cabaa na qual se encontra a fora da transformao.(...) Exu destri para recriar. o principio da desordem, inseparvel daestrutura da ordem; um depende do outro. (...) Uma outra caracterstica de

    Exu, que se alia ideia da modificao e da recriao da ordem, seu aspectoflico: (...) ele o senhor dos cruzamentos e dos caminhos, o que abre, penetrae liga os mundos que formam o universo religioso iorub (OLIVA, 2005, p.19).

    Sua importncia era tanta que seu culto se estendia a praticamente todas asregies da Iorubalndia, marcada por uma grande diversidade de cultos e orixsdistintos. Alm disto, Exu se ligava tambm ao comrcio e as atividades econmicas,sendo representado sempre com cauris e bzios, consideradas importantes moedas de

    troca na frica Ocidental.Em grande medida, essas caractersticas de Exu o tornaram para os ocidentais,um orix contraditrio e de dif cil definio (OLIVA, 2005, p. 20). Por isto mesmo eleser interpretado, por muitos viajantes, como sendo a personificao do mal,assumindo, assim, toda a carga simblica construda em torno da figura do diabocristo. Observamos nos relatos de vrios viajantes esta associao, de forma direta ouindireta. o caso, por exemplo, dos irmos Lander, que pesquisaram o rio Nger noincio do sc. XIX, e l encontraram um sacerdote de Exu, deixando anotado suas

    impresses sobre o mesmo, onde percebemos a maneira pejorativa como encaravam asreligies dos africanos (OLIVA, 2005). Nestes relatos podemos perceber tambm que

    o cristianismo no era a nica religio monotesta a interpretar de formanegativa as prticas religiosas dos orixs. Unia-se a ele, nesse mister, oIslamismo. (...) Em alguns estudos realizados sobre Exu na frica Ocidental,de fato transparece a ideia de que tambm os muulmanos relacionavam oorix com o princpio da maldade e da ao demonaca (DOPAMU, 1990, p.342 apudOLIVA, 2005, p. 22).

    Outros estudiosos que voltaram sua ateno para a figura do orix Exu-Elegba3 demonstram fortes traos do pensamento cristo, aliados s teorias racialistas eevolucionistas do sculo XIX. Podemos citar como exemplo dois padres catlicos, umeuropeu e um africano, que demonstram este tipo de pensamento. Referimos-nos ao

    1 Deus supremo e criador dos Orixs. No venerado entre os iorubs (OLIVA, 2005, Nota 9, p. 32).2 DOPAMU, Ade. Exu: o inimigo invisvel do homem. So Paulo: Oduduwa, 1990.3 Lgba vodum cultuado no Benin e no Togo, que guarda grande similitude funcional e iconogrfica

    com Exu (ver OLIVA, 2005, Nota 15, p. 33).

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    125| Exu no Novo Mundo: o processo de hibridao ...NOGUEIRA, L. C.reverendo Noel Baudin (1884)4 e o prof. da Universidade de Ilorin, na Nigria, AdeDopamu (1990). Ambos escreveram trabalhos sobre as religies dos orixs, ondedeixam transparecer a forte influncia do pensamento cristo na anlise dos orixs,especialmente de Exu.

    De uma forma geral, o que eles fazem interpretar a religiosidade africana dosorixs sob a tica crist, e assim aplicar conceitos e julgamentos que no lhe cabem.Baudin, por exemplo, interpreta que a necessidade ritualstica de os iorubs ofertaremos primeiros sacrifcios sempre a Exu decorre do medo gerado pelo carter perverso eameaador do orix, em uma bvia aproximao com a figura do Diabo na tradio judaico-crist (BAUDIN, 1884apudOLIVA, 2005, p. 24).

    J Dopamu reala apenas alguns aspectos desta entidade, como o fato de ele ser

    o agente do desequilbrio e da desordem, e sua personalidade libidinosa, contraventorae perversa, que, para ele, so sintomas de sua maldade. Exu, inserido num mundomaniquesta, onde temos dois polos distintos o bem e o mal passa a ocupar ento olado maligno, e passa a representar a personificao da maldade (DOPAMU, 1990apud OLIVA, 2005, p. 25).

    Podemos concluir ento que

    nos trabalhos dos sacerdotes, de forma geral, houve uma transposio dasmentalidades e concepes religiosas ocidentais para o entendimento dascosmologias africanas. Como no imaginrio cristo todas as formas de mal ede influncias negativas na vida das pessoas e na ordem do mundo soassociadas ao Diabo, suas anlises sobre a cosmologia dos orixs passaram aestabelecer a mesma relao. Percebe-se, portanto, que a relao entre Exu e oDiabo foi uma criao de sacerdotes cristos ou muulmanos, seguida edefendida por seus fiis (OLIVA, 2005, p. 26).

    Este imaginrio diablico foi sendo reelaborado em terras brasileiras. As ideiascriadas por europeus sobre os cultos africanos deram origem a um novo personagem,

    um novo Exu que passa a ser cultuado nos terreiros de Umbanda.Ao visitarmos um terreiro de Umbanda hoje, quase certo que encontraremosali uma sala dedicada exclusivamente a Exu, com esttuas que recebem denominaescomo Exu Caveira, Sete Encruzilhadas, Giramundo, entre outros. Mas de se notar,tambm, que este Exu presente na Umbanda j no mais o mesmo Orix que veio dafrica e se assentou nos terreiros de Candombl. O Exu que encontramos na Umbanda fruto de um longo processo de ressignificao, que faz com que Exu aos poucos perca

    4 BAUDIN, R. P. Noel. Ftichisme et fticheurs. Lyon, Sminaire des Missions Africaines et Bureaux desMissions Catholiques, 1884.

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    lise, Rev. Geo. UEG Anaplis, v.3, n.1, p.116-134, Jan./jun. 2014 Artigo| 126seu carter de Orix para assumir a posio de esprito ancestral, conhecidos comoEguns.

    J na frica existiam o culto aos Eguns, que poderia ser definido como um cultoaos mortos. O poder dos ancestrais na frica era grande, e os espritos dos quemorreram tinham grande prestgio, sendo recorridos sempre que houvessenecessidade, atravs de oferendas e sacrifcios. Pierucci (2000, p. 93) esclarece quefazer um sacrifcio a um ancestral pode ser algo bastante simples. Um membro datribo vai at o tmulo de seu pai, por exemplo, oferece uma pequena quantidade decomida e bebida, e pede ajuda para resolver uma situao difcil.

    Este culto aos Ancestrais, no Brasil, ir se estabelecer juntamente com o cultoaos Orixs, nas casas de Calundus e Candombls que se formam. Mas como as relaes

    clnicas no Brasil estavam fragmentadas devido a grande diversidade de grupos tnicospresentes, j no existiam mais ancestrais comuns entre os participantes do culto, o queacaba substituindo a figura do ancestral tradicional por um ancestral genrico,arquetpico, comum a todos os cidados. Os primeiros a serem assentados nos terreirossero os Caboclos, representando os indgenas brasileiros, os donos da terra. Estasentidades se apresentam em vrios terreiros de Candombl, e tambm fora deles, juntamente com uma outra figura que toma forma nestes cultos. Trata-se do pai-velho,

    ou preto-velho, que representa os primeiros escravos a virem para o Brasil, quegeralmente eram antigos sacerdotes na frica, conhecedores dos segredos da magia edos feitios.

    Assim, estas duas figuras, Caboclos e Pretos-Velhos, iro cada vez maisaparecer nas tendas e terreiros dos feiticeiros dando origem a um conjunto de prticasreligiosas diversas, desfragmentadas, que Bastide denomina de Macumba. O termoMacumba aqui empregado academicamente para designar toda esta gama de prticasreligiosas difusas e sem um corpo doutrinrio definido, que misturam elementosafricanos, indgenas e catlicos, e se espalham por praticamente todo o Brasil. Magnani(1986, p. 22) define a macumba como sendo

    menos do que um culto organizado, era um agregado fluido de elementos doCandombl, Cabula, tradies indgenas, Catolicismo Popular, Espiritismo,prticas mgicas, sem o suporte de uma mitologia ou doutrina capaz deintegrar seus vrios pedaos.

    Mas no eram s caboclos e pretos-velhos que baixavam nestas casas de

    Macumba. A figura do Diabo tambm era lembrada, mas na Macumba recebia o nome

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    127| Exu no Novo Mundo: o processo de hibridao ... NOGUEIRA, L. C.de Exu. As duas figuras, j bastante assimiladas no imaginrio popular devido sassociaes dos europeus, passam a figurar entre as entidades cultuadas nos terreirosde Macumba, mas agora no mais como Orixs, e sim como espritos ancestrais,tambm chamados de Eguns, representando pessoas que, em vida, tiveram umcomportamento abaixo dos padres morais impostos pela Igreja Catlica.

    A passagem de Exu-Orix para Exu-Egum permear toda a histria daMacumba brasileira, desde os primeiros Calundus, at culminar na organizao daUmbanda carioca. Vrios autores identificaram este processo ao estudar as religiesafricanas no Brasil, como Arthur Ramos (2001), Nina Rodrigues (1935) e RogerBastide (1945). Em suas obras, todos eles atestam o carter malfico de Exu, mas oidentificam como sendo fruto do ensino catlico (COSTA, 1980, p. 88).

    Bastide (1945) o primeiro a notar que, no incio do sculo XX, j havia emandamento um processo de transformao do Orix Exu em um esprito Ancestral, umEgum. Na anlise de Valdeli da Costa (1980, p. 92), Bastide teria percebido como, aospoucos,Exu vai deixando de ser considerado como um orix, descendo categoria deintermedirio, de mensageiro (COSTA, 1980, p. 92). A qualidade de mensageiro doOrix Exu, ento, faz com que ele esteja mais prximo do homem, e aos poucos deixede ser considerado uma divindade, para ento se transformar num esprito, uma alma

    de uma pessoa falecida. Para Bastide, essa nova caracterstica que assume opersonagem Exu fruto da difuso das ideias espritas:Durante minha viagem ouvicontar, por uma me pequena, a histria de um indivduo, mau filho, mau irmo, mauesposo e mau pai, que depois da morte, descera como Exu (BASTIDE, 1945, p. 113).

    Percebe-se claramente, portanto, que Exu aqui j no tem mais a caractersticade Orix, ou seja, de uma divindade superior, acima dos homens. Nos terreiros deMacumba ele associado a espritos de mortos, de pessoas que, em vida, foram ms, eaps a morte se tornam Exus e baixam nos terreiros para fazer trabalhos. Isto podeexplicar a diferena existente entre o Exu-Orix, presente nos Candombls, e o Exu-Egum presente na Umbanda. Enquanto o primeiro conserva, em grande parte, ascaractersticas do primitivo Orix Nag Exu, baixando nos terreiros como divindade,acima dos homens, na Umbanda ele baixa como um Egum, um esprito ancestral quefaz trabalhos a quem o procura.

    Esta diferenciao pode ser notada na prpria fala dos pais de santo, como nosdemonstra Valdeli da Costa (1980, p. 96):

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    lise, Rev. Geo. UEG Anaplis, v.3, n.1, p.116-134, Jan./jun. 2014 Artigo| 128H o Exu-coroado e o Exu-batizado . O primeiro Orix, pois no teve corpofsico, enquanto que o segundo possuiu corpo, encontrando-se, todavia, comum alto grau de esclarecimento e de luz.

    E complementa que

    o Exu-orix denominado Exu-coroado. O Exu-alma ou Egum chamadoExu-batizado. (...) Os dois tem uma distino ontolgica. Um Orix, ooutro, um Egum. (...) Nesta aglutinao do Egum ao Exu, a caractersticaladina de Exu se acentuou para malfica,passando do Exu para o Egum: AoEgum compete a perversidade, no ao Exu (COSTA, 1980, p. 97).

    A influncia do Espiritismo Kardecista, que chega ao Brasil no final do sculoXIX, acabar fazendo com que sejam separados os cultos de Caboclos e Pretos-Velhosdos cultos de Exu. Conforme j explicamos, todos so entidades arquetpicas, querepresentam personagens ancestrais da cultura brasileira, espritos de pessoas que jmorreram. Mas, devido carga negativa presente em torno de Exu, este continuarsendo identificado com o demnio, e seu culto ser separado dos demais.

    A partir da a Umbanda se dividir em duas linhas. A linha da direita serdedicada ao trabalho com os Caboclos, Pretos-Velhos, crianas, e outras entidades cujacaracterstica principal serem considerados espritos de luz, iluminados, o que denotasua condio de avano espiritual, dentro da lgica evolucionista do kardecismo, e de

    terem um cdigo moral bem definido. Na outra linha, da esquerda, ficam os espritos demoral duvidosa, representados pelos Exus e pelas Pombagiras5.

    Esta linha de esquerda, tambm conhecida como Quimbanda, durante muitotempo foi sendo associada prtica da Magia Negra. Os prprios praticantesumbandistas por vezes fazem esta identificao, atribuindo sempre ao outro estaprtica, nunca a si mesmos. Eneida Gaspar (2002, p. 184) coloca que

    criou-se o hbito, entre pessoas pouco escrupulosas, de utilizar a Quimbandapara fazer o mal, vingar-se de desafetos e obter vantagens por meios poucohonestos. Entretanto, as pessoas que trabalham a srio com estas entidadessabem que elas podem ser boas protetoras de seus fiis, como o exu queguarda a porteira da casa.

    5 As Pombagiras so espritos femininos, correspondentes de Exu, mas que apresentam caractersticasdiferentes, mais ligadas sexualidade. Apresentam o esteretipo da prostituta, de mulher vulgar. Nos

    cultos elas riem alto e bebem champanhe. A origem do termo est ligada a um Inquice, divindade dos povos Bantus, correspondente de Exu, o Bombojira ou Pambu Njila, que tem como correspondentefeminino a Vangira.

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    129| Exu no Novo Mundo: o processo de hibridao ...NOGUEIRA, L. C.

    Inserido na teoria da evoluo dos espritos kardecista, Exu considerado comoum esprito ainda em evoluo, que deve prestar trabalhos de caridade para evoluir edeixar sua condio de esprito inferior. Sua condio de esprito inferior vem de suaprpria encarnao, marcada sempre pela falta de uma conduta moral rgida, e peloserros e pecados cometidos. Esta ausncia de uma moral definida em vida, permaneceaps a morte, e responsvel pela neutralidade com que este esprito se apresenta nosterreiros, aceitando fazer tanto trabalhos de caridade, de ajuda espiritual, quantotrabalhos considerados a-morais, que visam influenciar na vida de outras pessoasatravs da magia.

    Nas palavras dos prprios praticantes da Umbanda percebemos esteselementos:

    Exu um esprito elementar, no tem origem. A gente pensa por ele, por issoele aceita tanto fazer o bem como o mal. (...) Exus so espritos de pessoassofredoras. (...) So pessoas que em vida fizeram alguma coisa errada. Exutodo mundo recebe, porque ele uma segurana para ns. (...) So espritossem doutrina, vieram para cumprir misso. Eram espritos rebeldes na outraencarnao (MAGNANI, 1986, p. 46-47).

    As noes de evoluo, misso, caridade e doutrina esto fortemente presentesno imaginrio umbandista. Sua misso aqui na Terra seria a de trabalhar atravs daprtica da caridade, para assim se doutrinarem e conseguirem evoluir. Neste sentido,sua identificao com o diabo cristo substitudo pela identificao a um espritoatrasado, sem luz, que ainda no tem um conhecimento moral definido. Nas palavras dalder de um centro Umbandista, Exu no deve ser identificado com o diabo:

    uma ideia muito errada que as pessoas fazem do Exu. Claro que tem algunsque ainda no t bem esclarecido, (...) no tem conhecimento de nada, (a) aspessoas usam ele pra fazer essas coisas; ele faz aquilo pra ganhar o que elesprometeram, ele no sabe se t fazendo o bem, se t fazendo o mal, no temdistino.(...), mas depois que ele comea um esclarecimento, ele quer crescer,ele tem compreenso que ele precisa crescer, ele no faz isso mais(NOGUEIRA, 2005, p. 55).

    Percebemos que dentro dos prprios terreiros feita uma distino entre os quese utilizam de Exu para fazer trabalhos srios, para conseguir proteo e atender a

    pedidos relacionados problemas diversos, sejam de sade, trabalho, amorosos, entreoutros; daqueles que se utilizam dos Exus para fazerem trabalhos malficos, conhecidos

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    lise, Rev. Geo. UEG Anaplis, v.3, n.1, p.116-134, Jan./jun. 2014 Artigo| 130como magia-negra, que visam prejudicar ou influenciar de alguma forma na vida deoutras pessoas.

    Assim atestada a neutralidade da entidade Exu, podendo ele fazer tanto o bem

    quanto o mal, dependendo apenas do pedido que lhe feito. Neste caso, aresponsabilidade no est na entidade ou esprito que realiza o ato mgico, mas simnaquela pessoa que fez o pedido. A entidade apenas um instrumento, um agenteutilizado, e no se responsabiliza pelo teor do pedido feito. Este carter atestado pelaprpria literatura umbandista. Rubens Saraceni (2006, p. 87) coloca que:

    Quem conhece a entidade Exu sabe tambm que uma entidade neutra. Paraeles no existe a diviso entre bem e mal, apenas objetivos a serem atingidos.Se direcionados para o bem, fazem-no sua maneira, e se para o mal, tambm.

    Outra caracterstica que encontramos relacionada ao Exu na Umbanda que,alm de realizar trabalhos, ele visto tambm como guardio das casas de Umbanda.Saraceni (2006, p. 89), por exemplo, coloca que, quando so utilizados como guardieso poder de ao dos Exus limitado. No evoluem no trabalho de desmanchardemandas ou magias negras. Sua funo apenas guardar os locais de trabalhos de

    ordem espiritual, e aps o trmino destes, proceder limpeza astral (...).Alm disto, agem tambm como soldados, responsveis por lidar com espritos

    malignos, realizando um trabalho que as entidades consideradas superiores no seenvolvem:

    So (tambm) os carcereiros responsveis pela priso dos espritos queafrontaram as Leis Divinas. Uma entidade de Luz no teria coragem decastigar um esprito que s conhece a linguagem do Mal, mas um ExuGuardio tem sua falange para executar esse trabalho, e o faz com muitadisposio. No vamos pedir a um mdico que v prender assassinosperigosos. Os policiais so treinados e pagos para isto (SARACENI, 2006, p.90).

    Percebe-se claramente por esta fala qual o papel a que esto associados cadauma das entidades presentes na Umbanda. Enquanto os espritos de Luz caboclos epretos-velhos so comparados a mdicos, os Exus so colocados como soldados,policiais do astral, cada um deles, portanto, possuindo seu prprio campo de atuao ecaractersticas definidas. Bairro em seu texto vai ainda mais longe, alegando que o

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    131| Exu no Novo Mundo: o processo de hibridao ... NOGUEIRA, L. C.fato de serem considerados soldados do astral tem ligao com o tipo de profisso quetiveram em vida, quase sempre lidando com armas:

    Vrios (Exus) Tranca-Ruas foram soldados. Outros reportam-se ao Egito dotempo dos Faras (...). Alguns advogaram e lutaram por causas injustas. Assuas histrias imaginais correspondem a este modelo: lidaram com armas.Podem ter sido generais sanguinrios, advogados de criminosos ou meroslarpios (BAIRRO, 2002, p. 64).

    Percebemos assim que a definio de Exu na Umbanda nem sempre simples.Isto porque a imagem do Orix Nag sofreu um longo processo de ressignificao, quefoi lhe atribuindo caractersticas diversas ao longo dos vrios anos em que se foram

    constituindo os Calundus e a Macumba, e que resultaram na organizao dosCandombls e da Umbanda.

    CONCLUSO

    Pudemos notar como a ressignificao sofrida por Exu, de Orix na frica e noCandombl, para entidade ancestral na Umbanda foi fruto de um longo processo dehibridao promovido pela dispora africana em terras brasileiras. A experinciacolonial, a partir da opresso europeia aos valores africanos, fez com que um novoimaginrio sobre Exu tomasse forma. A associao ao diabo cristo feita pelosprimeiros viajantes europeus ainda em terras africanas tem como consequncias a re-elaborao das prticas culturais e religiosas dos africanos que so trazidos para o

    Novo Mundo. Exu aos poucos se transforma em dois personagens diferentes, um quemantm suas caractersticas originais, e outro inteiramente novo que mesclacaractersticas dos imaginrios africano e europeu.

    Esta transformao pode ser percebida nas duas principais religies afro-brasileiras existentes hoje. No Candombl, Exu conserva ainda suas caractersticas deOrix, e considerado como o intermedirio entre os homens e os Orixs. As primeirasoferendas so sempre dedicadas a ele, e quando baixa no terreiro, assim como os outrosOrixs, no conversa, apenas dana e segue o ritual. J na Umbanda, ele passou arepresentar a alma de algum que j morreu e, aps a morte, foi condenado a prestar

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    lise, Rev. Geo. UEG Anaplis, v.3, n.1, p.116-134, Jan./jun. 2014 Artigo| 132servios de caridade na terra para evoluir. Assim, ao baixar nos terreiros de Umbanda,os Exus conversam, falam palavres, bebem pinga e fumam charuto, aes quecaracterizam seu carter de esprito inferior.

    Na Umbanda eles so procurados para realizar trabalhos e atender pedidosdiversos, independente de sua procedncia moral. So espritos neutros, que agemconforme lhe pedem, e cobram por isto, se eximindo assim de qualquer culpa que opedido venha lhes causar. Esta relao de neutralidade faz com que sejam procuradostambm para realizarem trabalhos que visam prejudicar outras pessoas em benefcioprprio, como os conhecidos trabalhos de amarrao, de derrubar algum no trabalho,e diversos outros servios que so divulgados como realizados nos terreiros.

    O conceito de hibridao nos permite compreender a origem do culto a estenovo Exu que surge na Umbanda, como foi descrito ao longo deste texto, a partir dapresena africana e europeia em terras americanas. Este mais um exemplo dosfenmenos culturais ocorridos no bojo da experincia colonial e que, portanto, devemser estudados como tal.

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    Eshu en el "nuevo mundo": el proceso de hibridacin cultural de Umbanda en la disporaafricana

    Resumen:La nocin de situacin colonial permea las identidades culturales en Amrica. Los procesos deformacin de estas identidades han sido estudiadas por diferentes autores, que se han dedicado adesarrollar conceptos clave para la comprensin de la formacin de estas nuevas identidades. Uno deestos procesos se puede observar en la formacin de la religin Umbanda, ms especficamente una desus entidades de culto. Hablamos sobre el personaje Eshu, que sufri durante los ltimos siglos unproceso de redefinicin, el resultado de las experiencias hbridas en el "Nuevo Mundo", por la presenciaeuropea y africana. Como resultado, el Orisha Eshu pas venerado en frica a una autoridad ancestral enel culto de Umbanda. Este artculo tiene como objetivo analizar esta transformacin sufrida por laentidad Eshu, a la luz de las teoras poscoloniales, utilizando nociones clave como explicativos de la"dispora" y "hibridez", utilizando principalmente autores como Stuart Hall (1996), Homi Bhabha (1998) y Nstor Canclini (2006).

    Palabras clave:Eshu, Umbanda, la dispora, la hibridez, la situacin colonial. _____________________________________________________________________________________

    REFERNCIAS

    BAHBHA, Homi K.O local da cultura . Belo Horizonte: Ed. UFMG, 1998.

    BALANDIER, Georges. A noo de situao colonial. In:Cadernos de Campo , ano 3, n.3. So Paulo: USP, 1993.

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    lise, Rev. Geo. UEG Anaplis, v.3, n.1, p.116-134, Jan./jun. 2014 Artigo| 134RODRIGUES, Raimundo Nina.O animismo fetichista dos negros bahianos.Rio deJaneiro: Civilizao Brasileira, 1935.

    ______________________.Os Africanos no Brasil . 7 ED. So Paulo: Nacional /Braslia: UnB, 1988.

    S JNIOR, Mario Teixeira de.A Inveno da Alva Nao Umbandista a relao entrea produo historiogrfica brasileira e a sua influncia na produo dos intelectuais daUmbanda (1840-1960). (Dissertao). Mestrado em Histria, Universidade Federal doMato Grosso do Sul. Dourados, 2004.

    SARACENI, Rubens.Livro de Exu O Mistrio Revelado. So Paulo: Madras, 2006.

    SILVA, Vagner Gonalves da.Candombl e Umbanda Caminhos da devoo brasileira.2 Ed., So Paulo: Selo Negro, 2005.

    SILVEIRA, Renato da. Do Calundu ao Candombl. InRevista de Histria da Biblioteca

    Nacional. Ano 1, n 6, dezembro/2005. (p. 18-23).SOUZA, Lynn Mario T. Menezes de. Hibridismo e traduo cultural em Bhabha. In:ABDALA JNIOR, Benjamin.Margens da Cultura Mestiagem, hibridismo e outrasmisturas. So Paulo: Boitempo, 2004. (p.113-133).

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    SOBRE O AUTOR

    LO CARRER NOGUEIRA. Doutorando em Histria pela UniversidadeFederal de Gois. Docente da Universidade Estadual de Gois. ____________________________________________________________________________

    Recebido para avaliao em Marco de 2014Aceito para publicao em Junho de 2014