(extra)comunicação, linguagem e expressão corporal na educação física infantil

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  • COMUNICAO, LINGUAGEM E EXPRESSO CORPORAL NA EDUCAO

    FSICA INFANTIL: UMA CONSIDERAO EPISTEMOLGICA

    *

    Eliane Gomes-da-Silva

    Mestranda em Educao Fsica, Universidade Federal de Santa Catarina

    Lcia Helena Ferraz SantAgostino

    Doutora em Estruturas Ambientais Urbanas, Universidade de So Paulo

    Professora do Departamento de Cincias Sociais, Instituio Toledo de Ensino, Bauru-SP

    Este trabalho busca fundamentar a compreenso da expresso corporal como linguagem

    que permitiria criana produzir informao/conhecimento no mbito da Educao

    Fsica. Para tal, conceitua infncia, linguagem e comunicao, e considera que a

    Educao Fsica infantil exige o estabelecimento de relaes comunicativas, nas quais a

    expresso corporal aparece como manifestao privilegiada. Com base na Semitica de

    Peirce, a expresso corporal entendida como linguagem em si mesma, quando

    constituda por gestos espontneos, deflagrados por estmulos diversos, que possibilita s

    crianas construir relaes interpretantes/interpretativas no fluxo dos signos assim

    desencadeado e, portanto, produzir conhecimentos.

    COMUNICATION, LANGUAGE AND CORPORAL EXPRESSION IN PHYSICAL

    EDUCATION FOR YOUNG KIDS AT SCHOOL: AN EPISTEMOLOGICAL

    CONSIDERATION

    This paper intends to give basis for understanding corporal expression as a language,

    which would enable the child to produce information/knowledge within the physical

    education. Based on the concepts of childhood, language and comunication, we

    understand that the phsysical education must promove the establishment of comunicative

    relationships, in which corporal expresion apears as a special manifestation. Based on

    Peirce Semiotics, the corporal expression is conceive as a language in itself, constitude by

    spontan gests, which ar produced by diversous stimuli. This enable the children to

    construct interpretating/interpretative relations in this signs fluxe, and, because of it, to

    produce knowledge.

    COMUNICACIN, LENGUAJE Y EXPRESIN CORPORAL EN LA EDUCACIN

    FSICA INFANTIL: UNA CONSIDERACIN EPISTEMOLGICA

    Se busca fundamentar la comprensin de la expresin corporal como lenguaje que

    permitira al nio produzir informacin/conocimiento en el mbito de la Educacin Fsica.

    A partir de los conceptos de infancia, lenguaje y comunicacin, considera que la

    Eucacin Fsica exige el establecimiento de relaciones comunicativas, en las cuales la

    expresin corporal aparece como manifestacin privilegiada. Con base en la Semitica de

    Peirce, la expresin corporal es entendida como lenguaje en si misma, constituda por

    gestos expontneos, producidos por diversos estmulos, que posibilita a los nios construir

    relaciones interpretantes/interpretativas en el flujo de signos desencadenado y, por lo

    tanto, producir conocimientos.

    *

    Parte da Dissertao em desenvolvimento no Curso de Mestrado em Educao Fsica da UFSC, sob

    orientao do Prof. Dr. Elenor Kunz, e co-orientao da Profa. Dra. Lcia H.F. SantAgostino.

  • 2

    INTRODUO

    Sob o domnio da psicologia do desenvolvimento, das cincias mdicas e da

    pedagogia, os conhecimentos relativos infncia, em geral, focalizam mais as crianas

    como pretexto ou destinatrias de processos, do que a infncia como categoria social a

    partir da qual se estabelecem conexes com os diferentes contextos e campos de ao, e as

    crianas como atores sociais de pleno direito.

    Nesse sentido, no campo da Educao, estudos de cunho antropolgico, sociolgico

    e histrico, tm se debruado sobre a possibilidade do que se chama epistemologia da

    infncia, a partir de investigaes em torno das culturas das infncias (ITURRA, apud

    SARMENTO; PINTO, 1997), Para esses autores, a reside a interessante questo de saber

    se as culturas da infncia radicam num sistema de construo de conhecimento e de

    apreenso do mundo especfico das crianas e alternativo ao dos adultos. A base dessa

    questo est em saber se a produo das culturas da infncia est calcada nas condies

    especficas da ao social das crianas no quadro das estruturas sociais em que se

    integram, ou se, mais amplamente, essa produo cultural se sustenta numa episteme

    radicada na sociedade e na histria.

    O tema da socializao da infncia tem sido abordado em dois modos distintos (i) a

    partir da sociedade - como ela transmite/inculca valores, crenas, normas e estilos de vida;

    (ii) a partir dos indivduos em processo de socializao e respectivos mundos sociais - a

    atividade dos indivduos, os processos de apropriao, de aprendizagem e de interiorizao

    (PINTO, 1997). Para o autor, a maior parte das teorias da socializao privilegia a vertente

    da sociedade e do mundo dos adultos, insinuando seu carter constrangedor e programador,

    e o papel meramente adaptativo do indivduo.

    Em contrapartida, Qvortrup (apud SARMENTO; PINTO, 1997, p.25) aponta para

    a necessidade de uma autonomia conceitual que permita examinar as atividades da

    infncia em si prprias e o tempo prprio das crianas como fenmeno de pleno direito,

    ao mesmo tempo, Giddens (apud PINTO, 1997) chama a ateno para o fato de que a

    socializao no uma programao cultural; a criana , desde o seu nascimento um ser

    ativo no processo de socializao.

    Entretanto, para Sarmento e Pinto (1997), j que as culturas infantis se fundam nos

    mundos de vida das crianas, os quais so heterogneos, a hiptese da existncia de uma

    epistemologia infantil no pode ignorar as diferentes realizaes do processo de produo

    de sentido e a pluralidade dos sistemas de valores, de crenas e de representaes sociais

    das crianas,assim como suas diferentes posies na estrutura social.

    No contexto desse embate terico-epistemolgico, a questo que nos colocamos a

    possibilidade de entender a expresso corporal como linguagem que permite criana

    produzir informao/conhecimento. Isto implica reconhecer o carter especfico da

    expresso corporal como linguagem espontnea da criana, que no se subordina aos

    cdigos pr-determinados da cultura adulta, mas que com eles interage. No mbito da

    Educao Fsica tal fato implica considerar a possibilidade de perceber como a criana

    estrutura o movimento e lhe atribui sentido, antes de enform-lo em um esporte, dana

    ou ginsticas especficas. Portanto, nesse processo est implicado tambm o fenmeno da

    comunicao, pois preciso ver a criana como plo ativo no par adulto-criana,

    professor-aluno, capaz de expressar corporalmente significaes/sentidos que precisam

    ser adequadamente lidos/compreendidos.

    Em face disso, necessrio, para avanar nessa perspectiva, fundamentar

    conceitualmente trs eixos bsicos que conduziro nossa perquirio: a infncia, a

    linguagem e a comunicao.

  • 3

    QUADRO CONCEITUAL

    A infncia

    Qual a nossa imagem de criana? Esse o ponto de partida, na sugesto de Moss

    (2002), para refletirmos sobre o conceito de infncia, a respeito do qual o autor alerta para

    a necessidade de superar as vises da criana presentes no discurso dominante; como

    reprodutora de cultura e conhecimento; como ser inocente nos anos dourados da vida;

    como natureza ou criana cientfica, biologicamente determinada por estgios de

    desenvolvimentos universais; ou ainda a criana como ser humano imaturo que est se

    tornando adulto.

    Para Moss (2002, p. 242), a infncia uma etapa que deve ser vivida em si mesma,

    como parte da vida e no como preparao para a vida; a criana deve ser vista como:

    co-construtora, cidad, agente, membro do grupo [...] a criana como

    forte, competente, inteligente, um pedagogo poderoso, capaz de produzir

    teorias interessantes e desafiadoras, compreenso, perguntas [...] uma

    criana com uma voz para ser ouvida, mas compreendendo que ouvir

    um processo interpretativo e que a criana pode se fazer ouvir de muitas

    formas (p.242).

    A expresso corporal uma dessas possveis formas de se ouvir a criana, e

    preciso que os professores de Educao Fsica atentem mais para essa capacidade de

    comunicao do corpo.

    Para Bujes (2001, p.l7) a infncia o momento em que predominam o sonho, a

    fantasia, a afetividade, a brincadeira e as manifestaes de carter subjetivo (p. 17). Ser

    criana, nesse sentido, a possibilidade de estabelecer relao entre realidade e fantasia.

    A dimenso educativa da Educao Fsica infantil tem desconhecido o modo atual

    de ver as crianas. Parece-nos que, na prtica pedaggica da Educao Fsica, bem como

    em toda instituio escolar predominam discursos dominantes da nossa sociedade. Para

    Moss (2002), o projeto da modernidade leva-nos a termos um ponto de vista da infncia

    como ordenada, certa, controlvel e previsvel, construda sob fundamentos de leis. Este

    ponto de vista universal e isento de valores. Kunz (2004, 27), alerta para o fato de que as

    crianas recebem precocemente, muito antes de ela poder se questionar Quem sou?, as

    referncias de mundo dos adultos e treinada para assimilao e elaborao de

    informaes na velocidade eletrnica, ou seja, sem refletir; tambm, nas aulas de

    Educao Fsica as crianas so submetidas aos conhecimentos oriundos do mundo dos

    adultos. Para o autor, os professores de Educao Fsica, neste mundo de

    superespecializao, no escapam de se valerem apenas de conhecimentos provindos dos

    saberes oficiais e cientficos, logo, produzidos por especialistas. Desse modo, as crianas

    recebem e reproduzem esses conhecimentos como verdade absoluta e como referncia para

    a vida, perdendo, assim, a possibilidade de contato com as dimenses polissmicas e

    polifnicas no dilogo com o mundo. Relacionar-se com a criana, percebendo-a

    simplesmente como submissa e receptora dos saberes provenientes do mundo dos adultos,

    deixar de entrever as suas potencialidades enquanto sujeito ativo e criativo, como

    produtor de cultura, de linguagem e, portanto, de conhecimento.

    Linguagem

  • 4

    Por Linguagem, entendemos, com base na Teoria Geral dos Signos ou Lgica da

    Linguagem de Charles Sanders Peirce

    1

    (PEIRCE, 1972, 1974, 1977, 1978), a capacidade

    humana de produzir informao/conhecimento: como no h produo de

    informao/conhecimento a no ser por intermdio de signos, pode-se compreender a

    Linguagem como a capacidade humana de produzir signos de qualquer tipo, tais como

    sonoros, visuais, tteis, gestuais etc. Assim sendo, a Linguagem no um produto

    acabado, mas um permanente processo de produes sgnicas; entendendo, aqui, por

    Signo, qualquer coisa - um sentimento, uma emoo, uma sensao sonora, tctil etc, um

    gesto, um trao, uma palavra, um ritmo... - que represente outra coisa, para algum, sob

    certos aspectos e de alguma maneira. O signo implica uma relao de re-(a)presentao,

    quer dizer, de substituio de uma coisa por outra.

    Peirce (1977, p. 61) conceitua representar no como reproduo idntica e fiel, ou

    imitao, cpia, mas como estar em lugar de, isto , estar numa tal relao com um outro

    que, para certos propsitos, considerado por alguma mente como se fosse o outro.

    Assim, prossegue o autor:

    [...] um porta-voz, um deputado, um advogado, um agente, um vigrio,

    um diagrama, um sintoma, uma descrio, um conceito, uma premissa,

    um testemunho, todos representam alguma coisa, de diferentes modos,

    para mentes que o consideram sob esse aspecto. (PEIRCE, 1977, p. 61)

    Qualquer coisa pode vir a ser um signo, desde que se estabelea a relao entre trs

    elementos: o Representamen (um sentimento, uma sensao, um certo som, um certo gesto

    etc.), o Objeto (aquilo que o signo re-presenta) e o Interpretante (a relao de

    equivalncia criada entre os dois elementos anteriores por uma mente interpretadora).

    Para Peirce (1977, p. 46):

    Um signo, ou representamen, algo que, sob certo aspecto ou de algum

    modo, representa alguma coisa para algum. Dirige-se a algum, isto ,

    cria na mente dessa pessoa um signo equivalente ou talvez um signo

    melhor desenvolvido. Ao signo, assim criado, denomino interpretante do

    primeiro signo. O signo representa alguma coisa, seu objeto.

    Para que algo possa ser Signo, deve representar alguma outra coisa, denominada

    seu Objeto, que pode ser, segundo o autor (1977, p. 46) um objeto perceptvel, ou apenas

    imaginvel, ou mesmo inimaginvel, num certo sentido. Assim o autor o exemplifica:

    [...] a palavra cabo, que um Signo, no imaginvel, pois no essa

    palavra mesma que pode ser inscrita no papel ou pronunciada, mas

    apenas um dos aspectos que pode revestir; trata-se da mesmssima

    palavra quando escrita e quando pronunciada, mas uma palavra quando

    significa posto da hierarquia militar, outra quando significa ponta de

    terra que entra pelo mar e terceira, quando se refere parte por onde se

    segura objeto ou instrumento. (PEIRCE, 1972, p. 95)

    A relao entre o Signo e seu Objeto, no entanto, s se efetiva por um processo

    mental que Peirce denomina Interpretante: a relao que o intrprete faz quando constri a

    1

    Lgico, matemtico, cientista norte-americano (l839-l914): um dos mais profcuos pensadores do sculo

    XX, tardiamente reconhecido.

  • 5

    relao de equivalncia entre o Signo e seu Objeto. Toda representao do signo em

    relao ao seu objeto, porm, sempre parcial, pois no esgota todos os aspectos dele.

    Ainda, o signo um processo de representao/substituio possvel do objeto (e no

    necessria), e se coloca, para alguma mente, em lugar dele, de tal modo que o objeto s

    pode ser conhecido a partir de sua forma de representao.

    O estabelecimento dessa relao de representao entre o signo e seu objeto, por

    intermdio do interpretante caracteriza a semiose, o processo de produo do signo

    propriamente dito, conforme a Figura 1.

    Da mesma forma, um mero gesto como estalar os dedos (ou abrir os braos, ou unir

    a ponta do indicador ponta do polegar, formando um crculo e estendendo os outros

    dedos) pode gerar diferentes significaes para diferentes intrpretes. Quer dizer,

    diferentes intrpretes vo estabelecer diferentes relaes interpretativas entre o signo e seu

    objeto.

    Vale observar que no se pode, de maneira alguma, confundir interpretante com

    intrprete: este, refere-se ao ser capaz de produzir aquele: o interpretante no se refere

    pessoa, mas ao signo/pensamento interpretante. Segundo Ferrara (1981, p.57), "O

    interpretante no certamente o intrprete, uma operao ativa na medida em que faz um

    objeto tornar-se signo e atuando nesta operao se torna ele mesmo interpretante.

    O pensamento signo

    Para Peirce, a produo do conhecimento sempre uma produo de signos o

    pensamento signo - e o significado de um signo sempre um outro signo, pois o

    interpretante, ele mesmo, um novo signo, de tal forma que o fluxo de pensamento d-se

    em um fluxo incessante de signos, desde que a mente humana trabalha com associaes

    ininterruptas, ad infinitum (Figura 2).

    Ou seja, a categoria da relao interpretante possibilita a mediao entre o real e a

    conscincia:

    A representao a operao semitica, o processo cognoscente pelo

    qual o sujeito possui e produz signos, sua nica possibilidade de

    mediao com a realidade, a nica maneira que possui de conhecer os

    fatos concretos, a realidade material e de conviver com ela. (FERRARA,

    1981, p. 57)

    Representamen/Signo

    Objeto Interpretante

    Figura 1 . O processo da Semiose/Representao

  • 6

    Comunicao

    O sincretismo de informaes e conhecimentos de diversos tipos, provenientes das

    mais diversas fontes, resulta da globalizao e dos avanos cientficos e tecnolgicos, e

    define o atual mundo como predominantemente tecnicizado, como povoado de imagens

    tcnicas. Tal fato se caracteriza, conforme Flusser (2002), como biombo entre o indivduo

    e o mundo, suprimindo progressivamente o verdadeiro vnculo comunicativo, no qual

    realmente existe a presentidade humana: o corpo. Isso faz com que o observador confie

    nas imagens tcnicas tanto quanto confia em seus prprios olhos, e as olhe como se fossem

    janelas, e no imagens. Para Ferrara (2004), tais imagens levam naturalizao das

    representaes que estruturam os vnculos comunicativos, de tal forma que perdem a sua

    dimenso e definio sgnicas e no se deixam ler, causando uma espcie de anestesia

    perceptiva no observador/receptor.

    Esses fenmenos levam, inevitavelmente, no entender de Kamper (2004), a uma

    abstrao do corpo, o qual, ao invs de buscar espaos para relacionar-se, encontra-se, cada

    vez mais, conectado tecnologia. Pross (apud BAIETELLO JNIOR, 2004), em estudo

    clssico sobre comunicao e mdias

    2

    , afirmou que o corpo o meio mais elementar nas

    relaes humanas; ele portanto a mdia primria, indispensvel na interao de

    indivduos. No entanto, por influncia do vasto desenvolvimento das outras mdias,

    classificadas por Pross como secundrias e tercirias

    3

    , o uso da mdia primria esvaeceu-se

    no cotidiano das pessoas. Desse modo, tambm esvaecem as potencialidades do corpo

    humano como produtor de linguagens e de conhecimento.

    Em face disso, necessrio, para aprofundar a abordagem do tema, situar os

    processos comunicacionais em um quadro conceitual mais amplo, que, como acredita

    Ferrara (2004), seja capaz de romper e superar aquela anestesia miditica e romper ou

    desmistificar a opacidade que as tecnologias projetaram sobre os vnculos comunicativos e,

    principalmente, sobre as suas representaes. Assim sendo, o que est subjacente s

    relaes comunicativas, sejam elas miditicas ou no, s poder ser desvelado pelas lentes

    2

    Trata-se da obra: PROSS, Harry. Medienforschung. Darmstadt: Carl Habel, 1971.

    3

    Segundo Harry Pross as mdias secundrias so aqueles meios de comunicao nos quais somente o

    emissor da mensagem necessita de aparato tcnico para envi-la; j as mdias tercirias so aquelas nas

    quais tanto o emissor quanto o receptor necessitam de aparato tcnico para enviar e receber mensagens.

    Figura 2. A semiose e o fluxo do pensamento

    O

    I

    S

    OO

    II

    SS

    S

    O I

  • 7

    de um olhar atento e disponvel a perceber as prprias formas, aparncias e qualidades

    atravs das suas manifestaes sgnicas.

    O oposto disto o modo como procede o modelo tradicional de comunicao, que a

    caracteriza por uma suposta transparncia e obviedade, capaz de esgotar-se no prprio

    reflexo comunicativo. Segundo Ferrara (2004), tal entendimento banaliza a prpria

    comunicao e, sobretudo, nos impede de entrever e enfrentar a desordem, complexidade e

    as diversidades que residem em seu mago. Desconsidera-se neste entendimento uma

    comunicao dinmica e indefinida, que espao de diferena, ou seja, [que] no se

    estabelece com clareza por que no h cdigo

    4

    que a sustente; ao contrrio, nutre-se de

    misturas e interfaces entre linguagens que se traduzem em dilogos (...) trata-se da relao

    dialgica entre emissor e receptor, entre signos e significados (FERRARA, 2002, p. 15).

    A comunicao, pois, deixa sua simplicidade nominal e passa a ser a complexidade de

    relaes comunicativas, estabelecidas como territrio adequado para possibilitar o resgate

    das relaes sociais de um novo mapa do mundo.

    oportuno neste momento lembrar Paulo Freire (apud LIMA, 2001, p. 63), para

    quem a comunicao a co-participao de Sujeitos no ato de conhecer [...]. A Educao

    comunicao, dilogo, na medida em que no transferncia de saber, mas encontro de

    sujeitos, interlocutores que buscam a significao dos significados.

    Parece-nos fundamental enfrentar essas questes para que a Educao Fsica

    infantil realmente avance como prtica que lida com o corpo e suas potencialidades

    expressivas/comunicativas - corpo este que no apenas reproduz, mas que tambm produz

    linguagens e conhecimentos.

    No momento em que o universo das tcnicas vai se estabelecendo como plenitude

    dos tempos (FLUSSER, 2002), a Educao Fsica, privilegiada pela sua especificidade,

    deve assumir o compromisso, sobretudo tico, de no deixar morrer o que de fato o

    homem enquanto ser-no-mundo: Corpo - singular, autocriador, produtor de linguagem e

    de conhecimentos e, por isso, inteiramente partcipe nas relaes comunicativas.

    EXPRESSO CORPORAL E RELAES COMUNICATIVAS NAS AULAS DE

    EDUCAO FSICA

    Tal entendimento nos leva a valorizar a possibilidade de a Educao Fsica infantil

    resgatar, mediante a expresso corporal, o carter primordial das relaes comunicativas;

    em especial nas crianas at sete anos, fase em que ainda no incorporou totalmente os

    significados consensuais determinantes da sua cultura. Ela pode ser relativamente livre,

    nesta fase, para expressar-se corporalmente na especificidade de sua linguagem. a esse

    ponto de vista comunicado na expresso corporal da criana que o professor deve estar

    atento, para poder tomar parte no dilogo que deve caracterizar a Educao Fsica infantil.

    Um exemplo disso quando uma criana equilibra-se com as mos no cho, em

    posio invertida - planta bananeira; tal gesto constitui manifestao expressiva dos seus

    sentimentos e percepo, forma de relacionar-se com o seu meio-ambiente e com os

    outros, que possibilita criana recortar e reconstruir o mundo para si mesma. Enfim,

    expresso corporal prpria criana e sua cultura, uma forma de linguagem que permite

    a interao com outras pessoas e com o mundo cultural que a cerca. Todavia, para a

    Educao Fsica, trata-se de gesto errado, que precisa ser corrigido em direo dos cdigos

    4

    Segundo SantAgostino (2001), todo cdigo uma linguagem, mas nem toda linguagem um

    cdigo. Isto significa que para garantir a eficcia/economia da troca de informaes entre emissores

    e receptores para que ocorra comunicao rpida e eficaz certas relaes entre os signos e seus

    significados, antes em aberto, so convencionadas, congeladas em um dado mbito sociocultural,

    sob a forma de um cdigo institucionalizado. A seleo das mltiplas alternativas possveis passa a

    ser, assim, controlada pelo cdigo.

  • 8

    da ginstica olmpica, e transformar-se em parada de mos. Para Kunz (2001) o trabalho

    com o movimentar-se humano nas aulas de Educao Fsica, deve ir alm do trabalho

    produtivo de treinar habilidades tcnicas, passando a levar em conta, sobretudo, os

    aspectos da interao social e o da linguagem. Ainda para esse autor, a sensibilidade as

    percepes e a intuio humana desenvolvem-se de forma mais aberta e intensa quanto

    maior for o grau e as oportunidades com a vida, vivncias e experincia com atividades

    construdas por um se-movimentar espontneo, autnomo e livre (KUNZ, 2004, p. 20).

    Tais consideraes nos levam s seguintes indagaes: possvel, no mbito da

    Educao Fsica infantil, a Expresso Corporal ser entendida como pura mensagem

    gestual

    5

    ? possvel ela ser compreendida como linguagem primeira, ou seja, linguagem

    em si mesma, ou ela sempre uma linguagem segunda, a servio de outras linguagens

    corporais j codificadas culturalmente? Em que medida possvel desatrel-la dos cdigos

    j estabelecidos culturalmente? Como possvel, atravs dela, resgatar movimentos de

    carter espontneo

    6

    das crianas? Como possvel a construo e a compreenso de novas

    linguagens na Expresso Corporal? Como possvel travar uma verdadeira relao

    comunicativa utilizando-se dela?

    Na esteira das reflexes suscitadas pela semitica peirciana, podemos inferir, com

    base em SantAgostino (2001), que o trabalho de Expresso Corporal possui seus

    prprios signos, que a caracterizam como linguagem: a Expresso Corporal no uma

    linguagem segunda, a servio de uma linguagem primeira- dana, esporte,

    brincadeiras cantadas, etc. mas ela uma linguagem em si mesma.

    Buscar compreender a expresso corporal em sua singularidade de linguagem,

    implica assumir que ela pode ser constituda por gestos no pr-codificados,

    espontneos/originais, deflagrados por estmulos diversos (imagticos, sonoros, tteis,

    verbais etc.). Por no-codificados, queremos dizer no subordinados a cdigos j

    institucionalizados, como os da cultura erudita - as artes clssicas, por exemplo - ou da

    cultura de massas - os clichs musicais coreografados, divulgados pela televiso - ou ainda

    os cdigos da cultura esportiva.

    Os gestos espontneos no se opem aos gestos culturais; espontaneidade, para

    ns, tem a ver com naturalidade, facilidade, o que se faz voluntariamente, de modo

    prprio; de modo prprio porque inerente ao ser humano, quer dizer, cada um possui a

    sua singularidade, um estilo prprio que o faz nico e parte de um todo. Porm, os

    gestos/signos espontneos no nascem de uma tbula rasa: na produo de signos,

    efetiva-se sempre uma renascena de conhecimentos antigos restabelecidos sob/sobre

    a experincia nova, que vai se acrescentando de outras informaes. Dessa forma, o

    aluno, que vem de outras vivncias, projeta, sobre a experincia nova, toda a sua

    memria informacional, pois opera com a informao j estabelecida/sedimentada e

    acrescenta sobre ela (SANTAGOSTINO, 2001, p. 24). Isto implica, portanto,

    aprendizado baseado efetivamente num processo comunicativo.

    CONCLUSO

    Sarmento e Pinto (1997) acreditam que, no estudo das culturas da infncia, mesmo

    que se sustente a hiptese de uma epistemologia prpria, no se pode ignorar que o(s)

    sentido(s) que as crianas atribuem s suas prprias aes : (i) produto dos processos de

    colonizao dos respectivos mundos de vida pelos adultos; (ii) decorre do processo

    crescente de institucionalizao da infncia e do controle dos seus cotidianos feito pela

    5

    Por mensagem gestual, entendemos a capacidade de produo de significados/sentidos atravs de gestos.

    6

    Para Abbagnano (2000), na linguagem filosfica moderna, uma ao definida como espontnea quando o

    princpio est no agente.

    ElaineHighlight

    ElaineHighlight

  • 9

    escola, pelos tempos livres estruturados e pelas prticas familiares; e (iii) resulta da

    assimilao de informao e modos de apreenso do real veiculados pelas mdias.

    Portanto, as culturas infantis no nascem no universo simblico exclusivo da

    infncia, este universo no fechado, pelo contrrio, mais do que qualquer outro,

    extremamente permevel - nem lhes alheia a reflexividade social global (SARMENTO,

    PINTO, 1997, p. 22).

    Com relao expresso corporal, a hiptese que consideramos - e para a sua

    verificao entendemos que a Semitica perceiana nos fornece adequado instrumental

    terico-metodolgico -, de que qualquer gesto corporal um quase-signo, quer dizer,

    possui potencial para ser signo, para um dado indivduo, para um dado grupo social ou

    para uma dada cultura. Este campo/conjunto de signos potenciais - movedio,

    imprevisvel e ilimitado - forma a base do que se tem denominado expresso corporal,

    termo este pouco compreendido e fundamentado, e no qual, na verdade, toda as formas

    institucionalizadas/codificadas da Educao Fsica foram buscar sua matria prima.

    Isso implica que a Expresso Corporal para a educao infantil, conforme a

    entendemos, pode ser constituda por gestos espontneos, deflagrados por estmulos

    diversos (imagticos, sonoros, tteis, verbais etc.) e no pr-codificados, que

    desencadeiam a semiose de que nos fala Peirce.

    O fluxo de signos a semiose - pode se dar hibridamente, quer dizer,

    associando/encadeando signos verbais, gestuais, tteis, musicais etc. Um estmulo inicial,

    que pode ser um som, uma cor, uma imagem etc., permite ao criana/aluno, a partir de seu

    repertrio

    7

    , construir inmeras relaes interpretantes/interpretativas, geradoras de um

    novo signo, traduzido, em um gesto, por exemplo, conforme a Figura 3.

    7

    Repertrio, aqui, refere-se a toda a experincia/memria informacional de um indivduo, desde sua

    concepo (DNA) at os dias da vida cotidiana de hoje. Lembramos que, para Peirce (1978, v.1 426), "A

    interpretao em si mesma experincia...Em filosofia, a experincia o inteiro resultado cognitivo do

    viver...".

    O

    I

    S

    O

    I

    S

    Figura 3. O processo de semiose entre linguagens

    S

    O I

    alegria / melancolia ?

    tristeza / paz ?

    poema ?

    melodia / palavras?

    dana?

    o sentimento

    um gesto

    um azul

    gesto

  • 10

    Ao estender o conceito de signo para qualquer fenmeno dotado de

    sentido/significao, e, por entender o processo de produo de signos (Linguagem) como

    a raiz da produo de informao - do conhecimento -, a Semitica de Peirce qualifica-se

    como instrumento privilegiado para nossos propsitos com respeito expresso corporal:

    "ler"/interpretar os signos inusitados, novos e imprevistos produzidos pelas crianas, e

    assim reconhec-las como produtoras de conhecimentos.

    Entendemos, pois, que na medida em que a expresso corporal tomada como

    linguagem em si mesma, o foco da relao adulto-criana, professor-aluno, no estudo das

    culturas da infncia, poder de fato dirigir-se s crianas, possibilitando incluir no dilogo

    os seus prprios pontos de vista, como almejam os emergentes estudos de cunho

    antropolgico e sociolgico; ou seja, partir das prprias crianas para o estudo das

    realidades da infncia. A esse respeito, Sarmento e Pinto (l997, p. 25) assim se

    pronunciam:

    o estudo das crianas a partir de si mesma permite descortinar uma outra

    realidade social, que aquela que emerge das interpretaes infantis dos

    respectivos mundos de vida. O olhar das crianas permite revelar

    fenmenos sociais que o olhar dos adultos deixa na penumbra ou

    obscurece totalmente. Assim, interpretar as representaes sociais das

    crianas pode ser no apenas um meio de acesso infncia como

    categoria social, mas s prprias estruturas e dinmicas sociais que so

    desocultadas no discurso das crianas.

    Em concluso, entendemos que os processos descritos pela semitica peirceana

    permitem superar a oposio entre o mundos adultos e os mundos infantis. Isso porque as

    crianas, no processo de semiose, atritam seus repertrios com os repertrios dos adultos

    e com o meio ambiente, produzindo informao/conhecimento novo, que no mera

    reproduo do conhecimento j estabelecido, e que possui valor em si prprio como

    expresso de suas singularidades.

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