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1 EXPERIÊNCIAS COM OS ESTUDOS DE BOURDIEU NA INVESTIÇAÇÃO SOCIOLÓGICA. Maria do Socorro Ferreira Osterne 1 Paula Fabrícia Brandão Aguiar Mesquita 2 Lauriene Rodrigues Marreiro Mendonça 3 RESUMO: Expõe algumas experiências de pesquisas vivenciadas pelas autoras, referenciadas na produção socio antropológica de Pierre Bourdieu. Propõe breve revisão conceitual e dos paradigmas teóricos postulada pelo autor, no sentido de defender a atualidade de suas produções para pensar o momento atual. Embora sugira diálogos com outros autores, a centralidade dos argumentos recai sobre o pensamento de Bourdieu. Converge para retratar a conjuntura social e política contemporânea, em suas controvertidas manifestações, a fim de refletir sobre o papel do conhecimento científico e das universidades no resguardo dos direitos democráticos. Neste sentido, foca na movimentação política brasileira no período pós eleição presidencial de 2018. I Memórias da introdução de uma sociologia reflexiva para o estabelecimento do objeto de uma pesquisa Em um seminário realizado na Ecole des Hautes Etudes em Sciences Sociales, de Paris, em outubro de 1987, Bourdieu pedia para que seus alunos apresentassem o tema de seus trabalhos, sem preparação especial, ou seja, de um modo muito natural. Dizia para eles não usarem discursos defensivos e fechados em si mesmo, mas numa linguagem que procurasse afastar o medo da crítica. Uma apresentação simples, das dificuldades, dos problemas, enfim. Sugeria que eles deveriam apreender a pesquisa como atividade racional e não feito uma busca mística. Previa que esta somente 1 Maria do Socorro Ferreira Osterne é doutora em Serviço Social (UFPE); docente-livre em Serviço Social (UECE); mestra em Sociologia (UFC); professora associada do Curso de Graduação em Serviço Social; do Programa de Pós-Graduação em Sociologia; do Mestrado em Serviço Social, Trabalho e Questão Social e do Programa de Pós-Graduação em Planejamento e Políticas Públicas da Universidade Estadual do Ceará. 2 Paula Fabrícia Brandão Aguiar Mesquita é doutora em Sociologia (UFC); pós-doutorada em Serviço Social (UECE), Mestra em Sociologia (UFC); professora adjunta do curso de Serviço Social da Universidade Estadual do Ceará. 3 Lauriene Rodrigues Marreiro Mendonça. Mestra em Serviço Social, Trabalho e Questão Social (Uece 2014), graduada em Serviço Social (Uece); Professora da Faculdade Terra Nordeste e Faculdade Ratio.

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EXPERIÊNCIAS COM OS ESTUDOS DE BOURDIEU NA INVESTIÇAÇÃO

SOCIOLÓGICA.

Maria do Socorro Ferreira Osterne1

Paula Fabrícia Brandão Aguiar Mesquita2

Lauriene Rodrigues Marreiro Mendonça3

RESUMO: Expõe algumas experiências de pesquisas vivenciadas pelas autoras,

referenciadas na produção socio antropológica de Pierre Bourdieu. Propõe breve revisão

conceitual e dos paradigmas teóricos postulada pelo autor, no sentido de defender a

atualidade de suas produções para pensar o momento atual. Embora sugira diálogos com

outros autores, a centralidade dos argumentos recai sobre o pensamento de Bourdieu.

Converge para retratar a conjuntura social e política contemporânea, em suas

controvertidas manifestações, a fim de refletir sobre o papel do conhecimento científico

e das universidades no resguardo dos direitos democráticos. Neste sentido, foca na

movimentação política brasileira no período pós eleição presidencial de 2018.

I Memórias da introdução de uma sociologia reflexiva para o estabelecimento do

objeto de uma pesquisa

Em um seminário realizado na Ecole des Hautes Etudes em Sciences Sociales, de

Paris, em outubro de 1987, Bourdieu pedia para que seus alunos apresentassem o tema

de seus trabalhos, sem preparação especial, ou seja, de um modo muito natural. Dizia

para eles não usarem discursos defensivos e fechados em si mesmo, mas numa

linguagem que procurasse afastar o medo da crítica. Uma apresentação simples, das

dificuldades, dos problemas, enfim. Sugeria que eles deveriam apreender a pesquisa

como atividade racional e não feito uma busca mística. Previa que esta somente

1Maria do Socorro Ferreira Osterne é doutora em Serviço Social (UFPE); docente-livre em Serviço

Social (UECE); mestra em Sociologia (UFC); professora associada do Curso de Graduação em Serviço

Social; do Programa de Pós-Graduação em Sociologia; do Mestrado em Serviço Social, Trabalho e

Questão Social e do Programa de Pós-Graduação em Planejamento e Políticas Públicas da Universidade

Estadual do Ceará. 2 Paula Fabrícia Brandão Aguiar Mesquita é doutora em Sociologia (UFC); pós-doutorada em Serviço

Social (UECE), Mestra em Sociologia (UFC); professora adjunta do curso de Serviço Social da

Universidade Estadual do Ceará.

3 Lauriene Rodrigues Marreiro Mendonça. Mestra em Serviço Social, Trabalho e Questão Social (Uece

2014), graduada em Serviço Social (Uece); Professora da Faculdade Terra Nordeste e Faculdade Ratio.

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aumentaria o temor ou a angústia. Categoricamente, asseverou: “[...] uma exposição

sobre uma pesquisa é, o contrário de um show”. É um discurso em que a gente se expõe,

no qual se corre riscos”. (BOURDIEU,1989 p.21). Manifestava a intenção de poder

apanhar seus alunos de surpresa, dando-lhes a palavra, sem que eles estivessem

prevenidos nem preparados. Aconselhava que eles não deveriam ter receio, pois

garantia saber respeitar suas hesitações. Acrescentava: quanto mais vocês se expõem,

mais terão possibilidade de tirar proveito da discussão e mais benevolentes serão as

críticas. Reforçava, dizendo: “a melhor maneira de „liquidar‟ os erros seria rirmos deles,

todos a um só tempo. Tentarei contribuir com a experiência que retirei dos ensaios e

erros do passado”.

Com estas reflexões introdutórias, retiradas da obra o Poder Simbólico, de Pierre

Bourdieu (1989), iniciaremos a exposição sobre algumas de nossas experiências

docentes, na condução da disciplina Metodologia da Pesquisa na Ciências Sociais, junto

a alunos da graduação e da pós-graduação stricto sensu, em universidades públicas e

particulares, na cidade de Fortaleza.

Antes, porém, vamos nos reportar brevemente, sobre nosso autor paradigmático.

Morto aos 72 anos, ainda plenamente produtivo, Pierre Bourdieu, considerado um dos

autores mais lidos no mundo nas áreas de Sociologia e Antropologia, não obstante tenha

trabalhado com temas como Educação, Cultura, Literatura, Linguística, Política, Arte,

Mídia, Fotografia, Esporte e Pintura, tinha uma dedicação especial, dizendo melhor,

intensa vocação pela metodologia da investigação nas Ciências Sociais. “De fato,

Bourdieu foi o mais importante sociólogo público de sua geração, não apenas na França,

como também no resto do mundo”. (BURAWOY,2010, p.9). No Brasil, tem uma legião

de seguidores.

Em virtude de seus escritos etnográficos e investigações empiricamente

fundamentadas pela reflexão teórica, suas produções abrangem temas variados:

[...] das artes às ciências, da política aos esportes, da família à educação, da

economia à literatura. Aos não iniciados (e mesmo aos bem iniciados) seus

textos são impenetráveis e inacessíveis; suas frases entrecortadas e auto

adjetivadas são enigmas difíceis de decifrar; e seus livros estão parcialmente

inacabados e repletos de digressões. Apenas no final da vida, quando

ingressou mais francamente na arena pública, é que seus escritos se tornaram

mais abertamente politizados e transparentes. (IDEM, p.12).

A ideia de dominação perpassa quase toda sua obra, principalmente na dimensão

da violência simbólica. Sobre esta relataremos experiência no quarto item deste escrito.

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Sua marca registrada, contudo, foram as categorias de habitus, campo e capital. No

segundo item desta reflexão, voltaremos a estas noções.

Bourdieu, a propósito da construção do objeto de uma pesquisa, nos brinda com

infinitas reflexões. Em uma delas, diz que na realidade o que conta é a feitura do objeto.

Exprime ser preciso saber converter problemas muito abstratos em operações científicas

inteiramente práticas (BOURDIEU,1989 p.20) e que a elaboração do objeto não é uma

coisa que se produza de uma assentada, por uma espécie de ato inaugural (IDEM, p.26).

Nossa experiência, permite concordar com a noção de que, numa investigação o que

conta é a constituição do objeto. Em qual sentido estamos falando? No sentido de que,

se o objeto da investigação de um pesquisador não estiver claramente expresso, na

consciência e na narrativa de seu pesquisador, todo os outros itens de seu planejamento

perderão o sentido.

O que seria fundamental para esta constituição? Inicialmente, compreender que

todo problema científico é, antes, questão da vida prática. É exatamente neste ponto que

se iniciam as dificuldades dos alunos, independentemente do nível de sua produção,

graduada ou pós-graduada, resguardadas as devidas especificidades. Só um atenuante

para os discentes da graduação: eles chegam ao momento do planejamento da pesquisa

menos “intoxicados” de teorias; estas, muitas vezes, mal selecionadas e mal digeridas.

A delimitação de objeto não é sinônimo de revisão de literatura. Portanto, precisa

começar com o reconhecimento do problema com o qual se pretende estabelecer uma

relação de conhecimento. Isso parece simples, no entanto, não é bem compreendido na

prática discente. O simples ato de narrar o problema que está por trás de uma pesquisa

se transforma, muitas vezes, em um grande entrave. Os alunos até conseguem falar

sobre ele, mas não logram descrevê-lo. Além do mais, recorrem ao argumento teórico

emprestado dos livros para tentar fazer a narrativa dos problemas de seus estudos,

mascarando a essência do que precisaria ser dito.

Ocorre o que Da Matta (1978) considera como o divórcio entre o pesquisador e a

realidade. Este, na concepção do autor, não diz respeito somente à “ignorância” do

estudante. Ao contrário, pode até estar relacionado ao excesso de conhecimento; um

conhecimento, porém, teórico, universal e mediatizado, não pelo concreto e,

principalmente, pelo específico, mas pelo abstrato e não pelo vivenciado; mediatizado

pelos livros, ensaios e artigos, enfim pelos outros. Os alunos sentem enormes

dificuldades de estabelecer análises originais dos seus dados (OSTERNE,2013p.77).

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Nesse sentido, voltando a Bourdieu, a busca deve ser por uma apresentação

simples, das dificuldades, dos problemas, enfim, daquilo que, de fato, motiva a busca do

conhecimento. Isso não significa que não seja um trabalho de grande fôlego, realizado a

pouco e pouco, por via de retoques sucessivos e muitas correções.

II Narrativa de experiências com a Metodologia da Pesquisa Social na

atividade docente

A delimitação de um objeto de pesquisa comportará, sobretudo, a focagem do

problema que motiva a curiosidade. Ele precisa ser individualizado, específico,

inconfundível. Necessita ser contextualizado historicamente e indicar informações

antecedentes que lhe consubstanciem visibilidade. Apreender a história do que se estuda

é pré-requisito para uma intelectualidade competente. Um objeto bem delimitado poderá

dispensar justificativas. Insistir no acréscimo deste item soará como ação pleonástica.

Nossa experiência, entretanto, registra que, como o objeto, muitas vezes, não fica bem

delimitado, os alunos insistem na justificativa a qual, em vez de exprimir sobre a

importância da empreitada científica, subtrai argumentos da própria delimitação.

Com foco no problema e devidamente contextualizado, o objeto agora poderá

receber as perguntas orientadoras da pesquisa. Os procedimentos são os mesmos, seja

no plano da graduação ou da pós-graduação. A originalidade dos pontos, no sentido de

mergulho mais fundo na origem do problema, é que demarcará a diferença entre os

níveis. Nesse âmbito, a pergunta de partida dará o tom e funcionará como a bússola de

todo o processo. Os alunos recorrem ao uso de sub perguntas para dissecar o aspecto

central. Quando o objeto está bem delimitado, a tarefa de formular indagações parece

um pouco menos difícil. De qualquer maneira, esse momento comporta muitas

hesitações: “Construir um objeto científico é, romper com o senso comum, quer dizer,

com representações partilhadas por todos. O pré-construído está em toda parte”.

(BOURDIEU,1989 p.34)

A inexperiência dos alunos na prática da investigação social, decorrente, via de

regra, de lacunas peculiares ao Ensino Médio, tanto no tocante ao uso da escrita como

no manejo de tarefas investigativas, traz a circunstância de que um momento que

poderia ser mais tranquilo, criativo e prazeroso se transforme em ocasião de sofrimento

psíquico.

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Sim, porque as perguntas são quase arrancadas e precisam passar por muitas

reformulações. Claro que não estamos querendo generalizar. Até para sermos fieis a

Bourdieu que pedia para nos livrarmos dos demônios das generalizações. A rigor,

entretanto, este é um momento de muitas apreensões, sobretudo pela dificuldade com a

escrita, com a lógica do que se pretende comunicar; em outras palavras, com a correta

formulação do conteúdo escrito. A este respeito, convém recorrer a Levine (2013):

Escreva com clareza. Deixe a mensagem clara e saia do caminho do leitor.

Use frases curtas, e use palavras difíceis com moderação. A Ciência é em

parte uma estratégia retórica. A boa escrita vem da reescrita. Reescrita

significa releitura. Olhe novamente para as palavras, frases e sentenças

desnecessárias e inadequadas. Para Marx Twain a diferença entre a palavra

certa e a palavra quase certa é a mesma diferença entre um raio e um vaga-

lume. (P.3-5).

No caso específico da formulação das perguntas de partida, lembra ainda Levine

(2013), que as mesmas perguntas de um pesquisador podem ser aplicadas ao trabalho de

qualquer outro investigador. Importante, porém é saber: qual é o ponto de vista

defendido? Qual é o argumento? Qual é a história? Somente depois é possível começar

a redigi-las.

Em nossas experiências cotidianas, na busca de deixar estas perguntas mais bem

constituídas e essencialmente relacionadas com os objetivos da investigação, além de

casadas indissoluvelmente com as hipóteses/pressupostos do trabalho monográfico, seja

de graduação, dissertação ou tese, criamos o recurso didático de solicitar aos alunos a

elaboração de um quadro que, por falta de uma denominação mais apropriada,

chamamos de “Quadro de Refinamento das Intenções”. Neste exercício, solicitamos que

ao lado de cada pergunta, os alunos situem o objetivo correspondente e a

hipótese/pressuposto/tese equivalente.

Esta prática permite que as formulações do projeto consigam se constituir num

patamar de melhor qualidade, além de garantir o alicerce das etapas posteriores. Sim

porque, desde então o restante dos itens equivalentes ao planejamento da pesquisa,

referidos à definição das categorias analíticas, ao estado da arte e aos procedimentos

metodológicos, vão se estabelecendo com maior facilidade, clareza e sentido de

articulação entre as partes. No quarto momento deste artigo retrataremos alguns

resultados desta experiência em instituições de ensino privado, no plano da graduação,

em três disciplinas de pesquisa em uma faculdade de Fortaleza e em outra situada na

região metropolitana, mais especificamente no Município de Caucaia.

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As maiores dificuldades, portanto, recaem exatamente neste sentido da articulação

óbvia que deve existir entre as perguntas, objetivos e hipóteses. Passa despercebido para

muitos alunos, no primeiro momento, aquilo que nossa experiência docente nota de

imediato: as perguntas seguem em um rumo, os objetivos vão por outras estradas e as

hipóteses não se encontram nem com o primeiro rumo nem com as outras estradas.

Metáforas à parte, a dificuldade é fazer o refinamento entre estes três momentos e isso

demora um pouco a cair no entendimento da maioria.

Definidas as primeiras formulações, é chegada a hora de encontrar, na narrativa da

delimitação do objeto, as categorias analíticas da investigação. Estas vão apontar a

revisão de literatura que precisa ser percorrida rumo ao referencial teórico do estudo.

Para Bourdieu (1989, p24), “[...] é somente em função de um corpo de hipótese

derivado de um conjunto de pressuposições teóricas que um dado empírico qualquer

pode funcionar como prova ou, como evidência”.

Sabemos que o campo de problemas que constituem objeto de estudo das Ciências

Sociais, é bastante vasto para ser acolhido ou reduzido por uma disciplina sozinha. De

fato, lidamos com um terreno pluridisciplinar, onde cada teoria toma para si a

competência de estabelecer com a realidade uma relação de conhecimento. Aos alunos

compete a tarefa de determinar o estado da arte do seu tema. Momento profícuo. Não só

para conseguir melhor compreensão para o seu problema, mas para sua própria

formação teórica como pesquisador.

Nessa demanda por entendimento, reconhecemos a dificuldade de um

investigador fechar-se apenas em uma referência explicativa. A complexidade do

mundo contemporâneo exige interlocução dos paradigmas com perspectivas teórico-

metodológicas diferentes, para que muitos objetos possam ser compreendidos. Nas

análises, essa interlocução poderá aparecer em formatos os mais diversos: “[...] na

síntese entre a micro e a macro abordagens teóricas; na relação entre estrutura e sujeito;

na demanda de interligação estruturais e práticas sociais e, ainda, no enfoque de

estrutura e nos enfoques culturalistas” (OSTERNE,2013, 75)

Isso só se faz plausível por meio da abertura teórica e da flexibilidade de análise

para nos tornarmos o mais fieis possível ao dado da realidade. Tal significa estar aberto

às dimensões criativas da realidade social e acolhê-la em suas manifestações essenciais,

pré-requisito indispensável para nos livrar dos riscos de vestirmos a camisa de força do

dogmatismo. Além do mais, estar atento e bem atualizado aos processos de

conhecimento e dos seus resultados é condição importante para que o pesquisador possa

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saber os reais limites entre a necessária abertura teórica e o ecletismo (IDEM, p.75).

Neste sentido, Bourdieu (1989) ensina que é necessário desconfiar dos recuos sectários

que se escondem nas profissões de fé e tentar, em cada caso, mobilizar todos os saberes

que, em virtude da definição do objeto, possam parecer pertinentes e utilizáveis.

Para qualquer iniciativa de pesquisa, o movimento da realidade social em suas

demandas e as perspectivas teórico-metodológicas adotadas para penetrar a essência da

realidade constituem dimensões fundamentais à sua finalidade.

Temos percebido que, no primeiro quartel do século XXI, os desafios se fazem

cada vez maiores para os pesquisadores que se propõem buscar explicações para a

dinâmica social contemporânea, decididamente, mais complexa, múltipla, dinâmica e

conflitiva.

As mudanças sociais aceleradas e as consequentes diversificações das esferas da

vida determinam novos contextos e horizontes sociais.

O mais importante, nessa ordem de lógica, é compreender com precisão de que

maneira uma pesquisa pode ser criadora, como pode fazer aparecer não somente novos

resultados e também novos métodos para que a ideia de cientificidade possa assumir,

progressivamente, contornos mais precisos.

Nesse sentido, não há como desconhecer a necessidade de novas exigências

metodológicas para dar conta da variação social dos comportamentos individuais e

sociais. Em muitos casos, as metodologias dedutivas tradicionais fracassam em

decorrência da diferenciação dos objetos. Nesse sentido, o recurso das estratégias

indutivas situa a pesquisa de natureza qualitativa como um procedimento cada vez mais

acionado, principalmente, na área das Ciências Sociais.

A respeito dos novos procedimentos metodológicos, com enfoque qualitativo ou

qualiquantitativo, ultimamente, trazemos à discussão, dentre outras, três tendências de

análise. Estas são a Metodologia do Discurso Coletivo a Metodologia da Construção da

Teoria Fundamentada e a Metodologia do Ator Plural.

A Metodologia do Discurso do Sujeito Coletivo tem como expoentes Fernando

Lefevre e Ana Maria Lefevre (2012). Para eles, o Discurso do Sujeito Coletivo (DSC),

constitui um método que está sendo desenvolvido na USP, desde o final dos anos de

1990. Tem como finalidade pôr em prática pesquisas de opinião, representação social e

atribuição social de sentido.

Configura um método essencialmente qualiquantitativo pois procura preservar a

natureza discursiva e qualitativa da opinião ou representação, sem separar sua dimensão

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quantitativa, associada a representatividade e generalização dos resultados. A matéria-

prima do trabalho com DSC são os depoimentos, obtidos por meio de questões abertas,

provenientes de entrevistas sobre o tema pesquisado, nas quais os respondentes são

convidados a expor livremente o pensamento.

A Metodologia da Construção da Teoria Fundamentada tem à frente Kathy

Chamaz (2009), que pressupõe a necessidade de realizar o adiamento de escolhas

teóricas e de suspender a revisão bibliográfica prévia, ao iniciar uma empreitada

investigativa.

De acordo com Chamaz (2009), este adiamento é expresso como fundamental

para exercitar a capacidade analítica dos pesquisadores, pois, se fundamenta na

produção de elaborações teóricas mediante a criação de categorias analíticas. Tais

categorias são elaboradas com amparo na coleta de dados extraídos da interação com os

participantes durante a pesquisa de campo, ocorridas deste a fase inicial da constituição

do projeto.

Por sua vez, a Teoria do Ator Plural tem Bernard Lahire (2004) como seu maior

pensador. O método tem como intenção traçar novas pistas de investigação na área das

Ciências Sociais, e nunca universalizar as conquistas científicas nas quais se baseia.

Tentando romper com a "[...] preguiça empírica e com o demônio da generalização

abusiva" como ele próprio afirma, Lahire (2004, p.10) sugere enfrentar pesquisas com

um alto grau de exigência empírica e por anseios de contextualização e comparação

entre comportamentos.

A noção de complexidade disposional é central no pensamento de Lahire e no

emprego dessa noção, identificamos o fato de que o autor se referencia no conceito de

habitus em Bourdieu. O convívio com estas experiências nos remete, constantemente, a

pensar em três conceitos fundamentais nas obras de Pierre Bourdieu.

III- As Noções de Campo, Habitus e Capital: conceitos bourdieusianos

Conceitos são meios de que nos valemos para tentar compreender o mundo social.

Eles servem para propor analogias entre fenômenos similares que possam facilitar a

compreensão. Na intelecção de Giddens (2014), há conceitos que se originam na

sociedade e adentram a Sociologia, e, por outro lado, há aqueles que nascem na

Sociologia para “[...] ajudar a desvelar os fenômenos sociais, e escorregam para o

cotidiano, passando a influenciar as percepções das pessoas em relação ao mundo em

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que vivem.” (p.2) Se existem três conceitos fundamentais para compreender a obra

bourdieusiana, e que caíram no uso corrente, estes foram os de habitus, campo e capital.

Para Bourdieu, a noção de habitus já havia sido usada, de modo até certo ponto

metódico, por outros pensadores. No caso, Hegel, Husserl, Weber, Durkheim e Mauss.

A rigor, conforme uma noção aristotélico-tomista que Bourdieu passou a usar de

maneira completamente inovadora. Como recurso de reação às interpretações

mecanicistas da realidade, com vistas a indicar que as condutas podem ser orientadas

para um determinado fim, sem, contudo, serem conscientemente direcionadas a esses

fins ou por esses fins.

O habitus, no pensamento de Bourdieu, reflete a capacidade dos sentimentos,

pensamentos e ações de as pessoas incorporarem determinada estrutura social. Para

Bourdieu (1990),

O habitus mantém, com o mundo social que o produz, uma verdadeira

cumplicidade ontológica, origem de um conhecimento sem consciência, de

uma intencionalidade sem intenção e de um domínio prático das

regularidades a questão nesses termos do mundo que permite antecipar seu

futuro, sem nem mesmo precisar colocar a questão nesses termos”. (P,24).

O habitus funciona como um sistema de disposições para a prática, além de

fundamento objetivo de condutas regulares; uma espécie de Sociologia da prática, na

óptica do autor. Constitui um sistema de esquemas duradouros e transponíveis de

percepção, apreensão e ação caracterizadores do grupo ou da fração de classe que os

absorve em virtude de sua disposição no espaço social (OSTERNE,2001, P.153).

O habitus refere-se, objetivamente a uma condição social exatamente por meio

dos condicionamentos sociais que o produziram. Exprimindo de maneira diferente, os

agentes sociais se classificam no momento em que realizam escolhas. Estas tomam por

base os gostos, preferências e o lugar que esses agentes ocupam no espaço social. A

escolha de amigos, esportes, roupas e alimentos, por exemplo, anuncia que os agentes

fazem classificações em consonância com o que convém à sua posição e,

consequentemente, são classificados. Enfim, as pessoas são classificadas por suas

classificações. (IDEM, p.154)

É ainda por meio do habitus que as pessoas se habilitam a perceber a relação entre

as práticas ou representação e as posições no espaço social. Na perspectiva de Bourdieu,

por intermédio do habitus, se tem o mundo social que parece evidente, ou seja, o mundo

do senso comum.

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Mesmo que Bourdieu seja enfático ao indicar a posição no espaço social como

elemento definidor das variações das percepções, isso não significa que esta posição

social seja capaz de impor, a todo sujeito perceptivo, os princípios de sua elaboração.

Isso porque os agentes poderão se organizar diferentemente, segundo a diferenciação de

modo de ver e da divisão que o mundo comporta. Poderão se organizar, por exemplo,

segundo outros princípios de conteúdo étnico, religioso ou nacional.

O habitus funciona, ainda, para Bourdieu, como um princípio provocador de

respostas sensivelmente adaptadas às determinações de um campo e procede de toda

uma história coletiva da família e da classe. Poderia, ainda, ser compreendido como

uma lei “imanente”, localizada, primeiramente, em cada um dos agentes sociais, com

gênese em sua primeira infância, e, posteriormente, em seu lugar na estrutura social-

uma espécie de marca das disposições e situações de classe.

Uma advertência de Bourdieu, contudo, é pertinente: “É preciso tomar cuidado

para não procurar nas produções do habitus mais lógica do que existe nelas: a lógica da

prática é ser lógico até o ponto em que ser lógico deixaria de ser prático”. (BOURDIEU,

1990, P.100).

Levando para a senda científica com vistas a melhor compreender a

transversalidade desta categoria na produção de Bourdieu,(1989) é ele a acrescentar:

“[...] o habitus científico é uma regra feito homem, ou melhor um modus operandi

científico que funciona em estado prático segundo as normas da ciência sem ter estar

normas na origem”. (P.23). Passemos agora à noção de campo.

O conceito de campo foi útil para pensar as sociedades altamente diferenciadas.

Lahire (2017) verifica que as sociedades foram qualificadas como modernas ou

industriais, refletindo clara diferenciação social das atividades e funções. Nesses

espaços ocupacionais, há uma lógica específica e própria de cada campo. Um campo é

um microcosmo dentro de um macrocosmo definido pelo espaço social. Cada campo

possui as próprias regras e interesses bem definidos. O campo social é compreendido

como,

“[...] um espaço de concorrência estruturada em torno de desafios e de

interesses específicos no âmago do qual os agentes se distribuem em função

do volume e da estrutura de capitais detidos por eles e que constituem os

recursos da ação. A forma de interesse específico no campo científico

consiste na imposição de uma concepção particular de ciência graças à

mobilização de recursos aos quais Bourdieu atribui a denominação de

“capital científico”. (P.69).

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Há uma lógica nas ações dos agentes sociais, em qualquer campo. Dizer isso

pressupõe, acentua Bourdieu (1996 ), que é preciso aceitar o princípio da razão

suficiente, ou seja, que as ações não são feitas de modo desinteressado, disparatado, que

os atos não são feitos gratuitamente, mas que há uma razão para os agentes “fazerem o

que fazem”, razão que pode transformar ações aparentemente arbitrárias em coerentes.

O conceito de campo surgiu nos anos de 1980, e teve várias inflexões no decurso

das obras do autor. Campo reside, no entanto, na ideia de um espaço relativamente

autônomo, com as próprias leis, imposições, solicitações, relativamente independente do

mundo global que o envolve. Todo campo é um campo de forças e de lutas para

conservar ou transformar esse campo de forças, e o que um agente faz deve ser

relacionado à posição que ele ocupa nesse campo. Portanto, a depender da posição que

esse agente ocupa na distribuição do capital, ele pode, mais ou menos, submeter as

regras desse jogo aos seus desejos (BOURDIEU, 2004).

A relevância em pensar a noção de campo e sua diversidade consiste em

desmistificar atos humanos supostamente desinteressados. Bourdieu se vale da difícil

missão de mostrar que seu campo de atuação, ou seja, o campo intelectual, não produz

atos desinteressados. Os agentes sociais se movem por interesses, motivados e com

sentido da ação. Daí vem a noção de illusio, investimento, interesse, que significa “[...]

estar preso ao jogo, preso pelo jogo, acreditar que o jogo vale a pena ou, para dizê-lo de

outra maneira mais simples, que vale a pena jogar.” (1996: p.139). Estar no jogo,

portanto, requer participar do jogo, conhecer e aceitar suas regras. O sentido do jogo é o

que se incorpora nas próprias mentes, sem sequer lembrar que aquilo é um jogo. Estar

interessado é, sobretudo, compreender o sentido desse jogo, nunca ser indiferente a ele,

tampouco aos seus alvos, e por ele morrer.

Na obra A Distinção, ao tratar dos gostos como marcadores de privilégios de

classe, o autor insiste na ideia de que o lugar que ocupa a obra de arte só tem sentido e

interesse para quem possui o código em que ela é codificada. A noção de capital advém

desse contexto, como um recurso, um patrimônio, espécie de estoque de elementos que

as pessoas possuem. Também, no entanto, as comunidades, os países e as coletividades.

Para pensar em termos de futuro, capital é a segurança, pode-se investir e acumular

quase que infinitamente. (CATANI, 2016).

O capital simbólico é a maneira pela qual a pessoa é percebida pelos demais

agentes sociais, ou seja, o modo como é reconhecida socialmente. E, assim, como um

crédito, Bourdieu o define:

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Uma espécie de adiantamento, de desconto, de credibilidade, que somente a

crença do grupo pode outorgar àqueles que lhe dão um maior número de

garantais materiais e simbólicas, pode se observar que a exibição do capital

simbólico (sempre demasiado custoso do ponto de vista econômico) é um dos

mecanismos que fazem (sem dúvida universalmente) com que o capital atrai

o capital”.(2009: p. 199).

Mediante essa ideia, é possível para o autor fechar um negócio sem desembolsar

um centavo, apenas por conta de seu nome, da sua honra e do capital de confiança que

cada um retém. Outro meio de as pessoas se distinguirem umas das outras é pelo acesso

que têm ou não ao capital cultural. Esse capital é, por vezes, herdado de família, e se

distribui entre as classes sociais pela apropriação de bens simbólicos, o que determina o

que a formação social seleciona como dignos de serem possuídos.

Bourdieu (2004), ao tratar do capital científico, revela que há dois tipos de

poderes correspondentes: o poder temporal ou político- institucional e institucionalizado

e diretamente vinculado às posições relevantes e cargos nas instituições científicas,

sejam laboratórios, chefias de departamento etc; e o prestígio – repousa exclusivamente

sobre o reconhecimento. E assim, correlatamente, analisa dois tipos de capital científico,

o puro e o institucional.

O capital científico puro é aquele que se adquire pelas contribuições ao progresso

científico, seja por via de publicações em revistas reconhecidas por seus pares; está

ligado aos dons pessoais, carismáticos e nunca aos decretos ou portarias. O capital

científico institucionalizado advém das estratégias políticas, que necessitam de tempo,

como participação em eventos, bancas de concursos, ou seja, são os agentes que

organizam as regras e os procedimentos de acordo com a lógica burocrática. Pode-se

classificar os pesquisadores pelo peso do capital que possuem em relação a esses dois

tipos.

Bourdieu adverte para a noção de que o progresso da cientificidade deve ser

buscado na autonomia, fomentando maneiras reguladas de competição na lógica de cada

campo. Essa autonomia decorre do fato de que os campos científicos, em grande parte,

são financiados pelo Estado, não devendo se submeter às lógicas de mercado- embora

possa comportar aí um paradoxo que seria o constrangimento que o financiamento

estatal também pode promover.

IV Disposições falonarcísicas na comunidade do Sossego: hipóteses

orientadas pela experiência de Bourdieu na comunidade Cabília

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Partindo da ideia de que uma hipótese científica tanto poderá derivar de um

sistema argumentativo teórico, como de uma observação e de uma experimentação, no

ano de 2001, com o encargo de constituir nossa tese de Docência Livre, em concurso

promovido pela Universidade Estadual do Ceará, tomamos como objeto de curiosidade

compreender a dinâmica, a estrutura, a composição e os valores que identificavam as

famílias pobres, em situação de risco, da periferia urbana da cidade de Fortaleza. O

intuito era desvendar os padrões de hierarquia e as relações de autoridade que os

homens e as mulheres estabeleciam entre si. Esta referência diz respeito à primeira

autora do artigo sob relato.

Decidimos tomar como espelho os estudos de Bourdieu (1998), sobre a

dominação masculina, realizado na sociedade Cabília, haja vista o reconhecimento da

consistência de suas análises antropológicas, junto às famílias daquele lugar e suas

preocupações com o que considerava especulações vazias sobre gênero e poder em sua

época. Para si, as produções, até então, sobre o fenômeno da dominação masculina não

passavam de teóricos discursos que mais confundiam do que esclareciam sobre o

assunto.

Cabília é uma comunidade camponesa das montanhas Atlas, na Argélia,

considerada por Bourdieu como um verdadeiro santuário antropológico, ou seja, um

espaço singular para “um exercício experimental de auto-socioanálise”, para pensar a

prevalência do masculino encravada daquele tempo (1998).

Propôs então um experimento que lhe proporcionasse reproduzir uma vivência do

masculino e do feminino, sem muitos rodeios e especulações, realizando, no mundo dos

Cabílias da Argélia, um trabalho de campo nos anos de 1950 e 1960.

Os resultados desse experimento nos pareceram fecundos e estimulantes para

nossa busca de significados no âmbito da temática da dominação masculina. Alguns

resultados desse estudo foram apresentados pelo autor na universidade da Califórnia,

Berkeley, em quatro de abril de 1996, por ocasião da primeira Conferência do Prêmio

Goffman, do qual Bourdieu foi seu primeiro ganhador (OSTERNE, 2001, p.233).

Obtivemos estes resultados, pôr meio da Revista Educação e Realidade em 1995, antes

do lançamento de seu livro, no Brasil em 1998.

O tema de nossa pesquisa era “Dinâmica, estrutura e valores familiares: oposições

e complementaridade entre o masculino e o feminino”, cujo resultado, como tese de

Docência-Livre, foi publicado como livro sob o título:” Família Pobreza e Gênero: o

lugar da dominação masculina”. (OSTERNE, 2001).

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Estamos retomando essa experiência no interior deste artigo por dois motivos.

Primeiro, pela notória pertinência e atualidade dos resultados do estudo Cabília para

compreender os achados naquela ocasião. Em segundo lugar, por constituir-se caso

exemplar de uma pesquisa espelhada na metodologia bourdieusiana, como único

paradigma de análise.

Para melhor compreensão sobre os caminhos iniciais seguidos por Bourdieu,

destacamos, preliminarmente, dois pontos:

“[...] A advertência de Bourdieu no sentido da busca de uma

„objetivação metódica” para tratar as questões de gênero, uma vez que todos

os estudiosos dessas questões, sendo homens ou mulheres, compõem o

cenário daquilo que estão buscando desvendar e compreender; e o

reconhecimento de que a ideologia da superioridade masculina não é

exclusiva dos homens: encontra-se incorporada no habitus de homens e

mulheres, além de perpassar uma trama política que vai além dos indivíduos.

(OSTERNE, IDEM, 232).

A noção de habitus perpassa quase todas as explicações de Bourdieu (1995) sobre

o que encontrou na sociedade Cabília, por via das manifestações de antigas tradições e

modos de pensar preservados em alto grau de coerência e integridade- como aliás em

uma boa parte de toda sua vasta produção.

Para si, a Cabília poderia ser considerada um caso paradigmático, de uma

“cosmogonia em ação masculina”, a um só tempo, exótica e familiar. Por isso tratou

essa comunidade como um retrato ampliado que lhe possibilitou a reconstituição de um

modelo histórico e amplo das estruturas fundamentais da visão e da divisão masculina

do mundo; um modelo que poderia ser exemplo para fazer entender de que modo as

“disposições falonarcísicas” haviam sido encravadas nos corpos dos homens e das

mulheres das sociedades ocidentais até aquela época, porém, de maneira “inapropriada,

distorcida e parcial”. O experimento, na concepção do autor, poderia servir para

localizar os traços infinitos e os fragmentos dispersos mais onipresentes da visão

androcêntrica do mundo. (BOURDIEU, 1995).

Em nosso estudo, da primeira autora deste escrito, constituímos quatro hipóteses

para pensar o gênero e as relações de gênero, em uma área da periferia de Fortaleza,

identificada como Comunidade do Sossego. Um coletivo de casas/barracos, produto da

invasão de um terreno de mata densa, usados por muitas famílias como solução única de

moradia. Essa área é registrada por pesquisas anteriores como de alta vulnerabilidade e

risco, situações de baixa renda, desemprego, privações materiais, inexistência de

recursos sociais nas áreas de saúde, educação, transporte, moradia, aposentadoria e

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pensões; enfim, pobreza de direitos, de possibilidades e esperança. Além disso, havia

um significativo número de mulheres chefiando domicílio e notícias de alta incidência

de práticas de violência contra as mulheres.

Neste campo, partimos resumidamente das seguintes hipóteses: a) “As famílias

dos pobres urbanos de Fortaleza estruturam-se como grupos hierárquicos, cujo princípio

fundamental é a primazia do gênero masculino sobre o gênero feminino”; b)“O

crescente número de mulheres chefe de família, não é suficiente para superar, nestas

famílias, a oposição binária entre homem e mulher”; c)” A acentuada valorização do

masculino não se justifica apenas pela presença do homem provedor. Mesmo quando a

mulher é a provedora, ocorre uma certa „desmoralização‟ decorrente da perda de

autoridade naturalmente atribuída ao homem; d) “Acionar simbolicamente os homens

nessas situações desvenda, em parte, o porquê de, mesmo quando tratada com violência,

essas mulheres não romperem a relação. Elas procuram se reapropiar de um padrão de

autoridade masculino para se proteger, serem respeitadas, reconhecidas e valorizadas”

(OSTERNE, 2001, p:36).

Como recurso metodológico, nos valemos da pesquisa participante, da entrevista

semiestruturada e dos relatos de vida. Como instrumentos auxiliares, recorremos ao

diário de campo, ao gravador e à máquina fotográfica, meios indispensáveis para a

análise dos depoimentos.

A entrevista, contudo, em sua versão não diretiva, foi o recurso mais importante.

A propósito da entrevista, comenta Bourdieu (2008):

“Mesmo sob o risco de chocar os metodólogos rigoristas quanto os

hermeneutas inspirados, digo que a entrevista pode ser considerada como

uma forma de exercício espiritual, que visa obter, pelo esquecimento de si,

uma verdadeira conversão do olhar que se lança sobre os outros nas

circunstâncias comuns da vida” (p,701)

Foram seis os relatos coletados. Mesmo que antes tenhamos manifestado,

[...] a intenção de conversar com o grupo familiar, em todos os casos, foram

as mulheres, as maiores interlocutoras. Mesmo nas famílias onde o núcleo

familiar comportava a presença do homem, foram as mulheres, as principais

respondentes. No máximo, o diálogo foi ampliado pela intervenção das

filhas, sempre mulheres. (OSTERNE,2001, p.196).

Os homens, mesmo quando no domicílio, não se dispunham a conversar. Obter a

condição de escuta pareceu tarefa gratificante para aquelas mulheres. A reação foi

contrária ao que temíamos, ou seja, incomodar, constranger ou atrapalhar as

interlocutoras com nosso labor investigativo. A coleta dos relatos, terminou se tornando

arte gratificante, tanto para a pesquisadora como para as pesquisadas. É novamente

Bourdieu quem observa: “A disposição acolhedora que inclina a fazer seus os

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problemas do pesquisado, a aptidão a aceitá-lo e a compreendê-lo tal como ele é, na sua

necessidade singular, é uma espécie de amor intelectual.” (2008, p.701).

Inicialmente, foram nossos os temores e a inibição do colóquio que antes

imaginávamos seriam das pessoas interlocutoras. Apenas uma fita para gravação não foi

mais suficiente para os próximos encontros, haja vista a abundância dos diálogos e a

disposição das respondentes. Foram seis interlocutoras, visitadas em dois momentos,

sem duração de conversa estipulada. Na prática, concretizou-se o que havíamos

recebido de orientação por parte de Bourdieu:

Oferecendo uma situação de comunicação, excepcional, livre de

constrangimentos, abrindo alternativas que o incite ou o autorize a exprimir

mal-estares, faltas ou necessidades, o pesquisador contribui para criar as

condições de aparecimento de um discurso extraordinário que já está lá.

(IBIDEM)

Bourdieu optou por buscar uma objetivação metódica a fim de investigar as

questões de gênero, reconhecendo que todos os estudiosos desse tema- homens e

mulheres- fazem parte da realidade daquilo que estão buscando desvendar e

compreender. Também a ideologia da superioridade masculina não é exclusiva dos

homens, uma vez incorporada no habitus de todos os homens e de todas as mulheres,

além de ser transversal à trama política que vai além das pessoas.

Neste sentido, iniciou sua análise antropológica, deste caso particular, convicto de

detectar infinitos traços e fragmentos aleatórios mais onipresentes da visão

androcêntrica do mundo, compondo a regra masculina heterossexual como questão

natural. Sugeriu que esta análise fosse usada como tipo ideal. Recuperou, além do mais,

a noção de violência simbólica, tanto para anunciar a possibilidade de uma efetiva

revolução de gênero, ou seja, uma revolução simbólica habilitada a subverter as

estruturas materias da ordem das coisas, como também e, principalmente, uma

transformação das categorias da percepção da própria ordem real.

Sua indicação foi de que os resultados deste experimento pudessem ser

aproveitados para compreender outras sociedades no tocante a esta dimensão do gênero

manifestada pelo ângulo da dominação masculina. Por estas razões, tomamos a decisão

de adotar suas conclusões como parâmetro para verificar a consistência das hipóteses

basilares do mencionado estudo na comunidade do Sossego.

De fato, a crença na visão androcêntrica do mundo foi algo muito ocorrente no

habitus das famílias daquele lugar. Conforme previsto na primeira hipótese, faz parte do

próprio senso comum, povoando o sistema de categorias de seus moradores, inclusive

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também das mulheres. A diferença de gênero, sempre entendida pelo ângulo da

prevalência do masculino, apareceram em todos os atos e pensamentos daqueles

moradores. A força das mulheres percebida em seus comportamentos de resistência,

contudo, jamais chegava a ameaçar essa primazia nas instituições, coisas e corpos

daquele lugar.

Configura, portanto um caso típico de “necessitação por sistematicidade”,

conforme pensado por Bourdieu (1995), para explicar as diferenças sexuais como

mergulhadas numa cosmologia sexualizada encravada nos corpos socializados,

reforçada de confirmação natural (OSTERNE,2001, p.236).

A segunda hipótese, asseverava que o aumento do número de mulheres chefiando

domicílio, o que, em parte, deslocava os padrões de hierarquia nas relações de gênero,

não era suficiente para fazer superar, naquelas famílias, as clássicas oposições entre o

masculino e o feminino; ou seja, não conseguia reduzir os efeitos da dependência

feminina.

Esta dimensão também encontrou explicação no que Bourdieu (1995), chamou

“divisão social e disposições corporais”, a saber, a ideia de que todas as divisões

objetivas de gênero embutidas na ordem das coisas se tornam princípios subjetivos de

visão, levando as pessoas a percebam e a constituírem o mundo como realidade

significativa. É essa concordância espontânea entre as estruturas sociais e as estruturas

cognitivas que constitui a base da aceitação da normalidade e da auto-evidência da

dominação masculina.

A terceira hipótese indaga se a acentuada valorização do masculino poderia

justificar-se somente pelo homem como provedor, e supõe a ocorrência de uma certa

“desmoralização” na família advinda da perda da autoridade que o papel de provedor

atribui ao masculino. Este pressuposto também se explica pela “necessitação através da

sistematicidade”, descrita por Bourdieu (1995). A concordância quase perfeita entre as

estruturas sociais e cognitivas inscrita nos corpos e nas mentes das pessoas, bem como a

socialização a somatização do domínio masculino, explicaram também esta hipótese,

confirmada no interior da experiência com a comunidade do Sossego.

A quarta e última hipótese, supõe que o apelo à atuação emblemática do homem e

o aceite da universalização da dominação masculina poderiam esclarecer, em parte, por

que, mesmo quando tratadas com violência, as mulheres não romperem a relação. A

noção de violência simbólica que, no pensamento de Bourdieu (1995), constitui o

essencial da dominação masculina, foi acionada para entender a suposição contida nesta

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hipótese. A teoria da violência simbólica proposta por Bourdieu referenda-se numa

“análise materialista da ordem simbólica”. Para o autor, “[...] grande parte das teorias de

gênero procede de uma análise materialista da ordem material ou de uma análise

simbólica do campo simbólico”. (1998 p.23).

A rigor, os casos que acompanhamos de maus tratos e violência naquelas famílias

não eram casos novos, tampouco prenunciavam possibilidade de ruptura. A decisão das

mulheres de permanecerem na companhia de seus agressores, mesmo reconhecendo a

importância do homem provedor, não tinha este fator como preponderante.

A busca do padrão masculino, simbolicamente constituído, mesmo que em

condições adversas, incorpora a socialização da evidência universal da ordem

masculina, como motivo preponderante para as mulheres se sentirem protegidas,

valorizadas e respeitadas em seu grupo de convivência. “Além do mais, assevera

Bourdieu, o processo de virilidade para o qual toda a ordem social parece conspirar só

se realiza totalmente com a cumplicidade das mulheres”. (OSTERNE,2001, p.246). Isso

significa a ideia de que, na e pela submissão, percebida pela oferta do próprio corpo,

existe uma forma relevante do reconhecimento concedido à dominação masculina,

naquilo que lhe é específico.

Em sua teoria sobre a violência simbólica Bourdieu, (1998) chega a concluir que a

libertação das mulheres, só acontecerá no interior de uma ação coletiva que pretenda

uma revolução simbólica habilitada a subverter as próprias fundações da produção e

reprodução do capital simbólico. Esta é uma possibilidade remota de acontecer entre

mulheres submetidas a um processo de socialização com tendência a diminuí-las, negá-

las e a submetê-las a modalidades de aprendizagem de “virtudes” negativas de

abnegação, resignação e silêncio.

Com esta iniciativa de tentar compreender melhor a experiência “dóxica” da

dominação masculina, tomando como espelho a vivência da sociedade Cabília,

aprendemos com Bourdieu que a dominação masculina, de cujo peso padecem homens

e mulheres, continua a exigir sublevação mental. Em outras palavras, uma essencial

transformação das categorias de percepção humana capaz de ensejar uma conspiração

contra a perpetuação desta ordem social vigente, ainda fortemente atuante nos dias

atuais por meio das várias versões do patriarcado.

Como muito bem afirma Burawoy (2010), “Cada um de nós tem seu Bourdieu

predileto” (p.15). O nosso parece ser muitos, embora destaquemos o tema do

desmascaramento da dominação, principalmente suas reflexões sobre a dominação

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simbólica e quando situa a dominação masculina como maneira extrema da dominação-

uma dominação que não reconhecida, pelo menos em sua profundidade.

É claro que as análises de Bourdieu sobre esta temática não passam sem

polêmicas, como, aliás, em quase toda a extensão de suas obras. A mais contundente,

em nossa percepção, foi aquela que denunciou seu silenciamento sobre a valorosa

produção de Simone de Beauvoir, quando trata da dominação masculina, ou, pior ainda,

quando o acusam de ter reprisado as ideias de Beauvoir já contidas em o Segundo Sexo

(1949). A este respeito, não é raro encontrar estudos tentando restituir a originalidade e

a profundidade das categorias e argumentos de Beauvoir, de fato, não prestigiada pelo

autor.

O certo é que tanto Bourdieu como Beauvoir sempre se empenharam em dizer que

a dominação masculina só poderia ser superada quando se conferisse aos dominados o

acesso ao universal. E nisso, curiosamente Burawoy (2010) lembra que a busca do

universal tenha colocado Beauvoir em rota de colisão com as próprias feministas que

afirmavam ser „masculinista‟ o universalismo pregado por Beauvoir. Portanto, é uma

área do conhecimento carregada de paradoxos e controvérsias, sem dúvida.

No próximo tópico, nos reportaremos às habilidades com a Pesquisa no Ensino

Superior em instituições privadas, adotando referências teórico-metodológicas

embutidos nas obras de Bourdieu.

V sobre a experiência com o ensino da pesquisa em instituições privadas de

ensino superior

A metodologia descrita a seguir consiste num esforço preliminar de

sistematização da experiência de aplicação do método de ensino de Metodologia de

Pesquisa Social desenvolvido por Osterne na Universidade Estadual do Ceará – UECE.

O relato é de uma das autoras deste artigo, à época mestranda desta universidade.

O contato e aprendizado desta metodologia ocorreu em seu percurso formativo

como orientanda da professora Osterne no Mestrado acadêmico em Serviço Social,

Trabalho e Questão Social – UECE (2012-2014). Nesta ocasião, tivemos a

oportunidade de apreender o método tanto durante as seções de orientação individual

como no decurso da disciplina o Estágio em Docência.

Ao ingressar no mercado de trabalho como docente de instituições de ensino

privadas, em duas faculdades de Fortaleza e em outra situada na Região Metropolitana,

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no Município de Caucaia, priorizamos, em nossa prática profissional, o exercício da

docência em disciplina de pesquisa nos cursos de graduação em Serviço Social nos anos

de 2015 a 2018. Assim, tivemos a oportunidade de aplicar referida metodologia em oito

disciplinas, nas quais estavam matriculadas(os) cerca de 450 estudantes durante o

período.

Os dados descritos a seguir, contudo, são relativos ao ensino da disciplina

Metodologia da Pesquisa, considerando 132 estudantes inscritos em três turmas, sendo

uma disciplina no curso de Fortaleza e duas em Caucaia. Deste universo, a amostra

considerada recaiu em 42 avaliações de primeira etapa, em 2018. A tomada foi

aleatória, considerando a disposição dos alunos em permitir que suas formulações

fossem usadas para análise.

Quanto aos aspectos a serem considerados para a análise dos dados,

privilegiamos, sobretudo: a) observação e descrição da realidade e da problemática a ser

investigada, b) escolha do tema, elaboração do problema e pergunta de partida, c)

criatividade e originalidade na proposição do objeto de pesquisa, d) hábito de leitura e

pesquisa. e) a elaboração do capital cultural para estudantes trabalhadores com

expressivas dificuldades de apreciar bens e produtos culturais produzidos pela sociedade

brasileira e advindos de educação precária no ensino médio. Este último aspecto não

será retratado neste artigo.

Passo 1: Produção textual livre de regras: convite aos estudantes para

descreverem o que incomoda da realidade

Propomos aos estudantes que realizassem produção textual livre e que contenha

de uma a duas laudas. O texto começa com um título inicial: O que me incomoda na

realidade? Orientamos que relessem aspectos da realidade que revelassem seus

incômodos relacionados ao seu contado com o mundo. Para isto, realçamos que, nesta

etapa, não haverá obrigatoriedade na adoção das normas da ABNT ou referência a

outros autores. Recomendamos que os estudantes se esforçassem para descrever a

realidade e evitassem recorrências analíticas ou julgamentos sobre os aspectos

observados. A ideia- chave é: relatem o problema, e não falem sobre o problema.

Focado o problema, este precisaria ser contextualizado historicamente. Neste exato

momento, dados e informações advindos de estudos anteriores, poderiam ser agregados

para fortalecer e justificar a importância do novo estudo. Concluída esta narrativa, o

texto haveria de ser finalizado com indagações sobre a realidade descrita. Este exercício

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intenta dar impulso aos procedimentos típicos da fase exploratórias, essenciais à

formulação do objeto.

Outro momento importante é observar o olhar dos estudantes e sua habilidade em

descrever a problemática ou cena de onde emana o problema da pesquisa. Durante a

disciplina Estágio Docência, este aspecto foi bastante enfatizado por Osterne (2013). A

professora enfatizava que cada estudante deveria ensejar esforços para descrever e não

analisar o problema. Tal esforço é considerado essencial para o processo de

aproximação e reconstituição da realidade no nível do pensamento do pesquisador. Já

naquela época, no entanto, observávamos dois aspectos: primeiro, a grande dificuldade

dos alunos em descreverem a cena ou a problemática tal como ocorrida no cotidiano;

outra dimensão dessa dificuldade ocorria mediante uma “fuga organizada” escudada por

análises teóricas e citações de outros autores, criando obstáculos ao aparecimento do

problema em suas dimensões essenciais.

Passo 2: Perguntas indutoras- elaboração textual e reelaboração das

perguntas de partida

Após produção textual, sugerimos que os estudantes organizassem uma síntese

baseada em sentenças ou frase indutoras propostas em a Arte da Pesquisa (2005). As

sentenças constituídas em instrumental são as seguintes: a) Eu estou estudando.... b)

Por que quero descobrir... c) A fim de que.... d) Relevância...A finalidade do exercício é

colaborar para que o estudante identifique a essência de suas perguntas de partida.

Passo 3: Definição das primeiras concepções da pesquisa- Exercício do

quadro analítico de refinamento das intenções.

A fase de refinamento proposta por Osterne (2013) consiste em desenvolver

exercício organizado em instrumental-padrão, que convencionamos chamar de quadro

analítico de refinamento das intenções da pesquisa. A meta é colaborar para que o

estudante exercite um aprofundamento de seu interesse temático e um aprimoramento

de suas habilidades para elaborar perguntas de partida. Outro objetivo deste exercício é

colaborar para que os estudantes percebam a “sintonia fina” entre os elementos

essenciais do projeto, tais como: pergunta de partida, objetivos gerais e específicos,

pressupostos e categorias de análise.

Para isto o quadro é organizado em quatro colunas articuladas entre si. Na

Coluna 1) O Problema – Pergunta de partida e sub perguntas. Coluna 2): Objetivos

Gerais e Específicos, Coluna 3) Pressupostos de análise; e Coluna 4): Categorias

analíticas. Dentre as vantagens no uso deste instrumental, destacamos: a) diminui ou

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evita o erro de produzir mais de um problema na definição do projeto; b) deixa

transparente o alcance do objeto e a coerência de seu detalhamento por meio das sub

perguntas. c) possibilita visualizar a necessária interpenetração das perguntas e

objetivos gerais e específicos; d) oferece a professores e estudantes a oportunidade de

perceber a síntese do projeto, antecipando seu esquema teórico-conceitual. Após esta

fase, percebemos que os estudantes ficam mais preparados para a escrita acadêmica

correndo menos ricos de suplantar o processo criativo em detrimento das regras típicas

desta escrita acadêmica. E, tal como diz Charmaz (2009), evita a produção de objetos e

pressupostos “requentados”.

Passo 4: Escuta e orientação individual em subgrupos

De posse do quadro de refinamento, os alunos são convidados para sessões de

orientação individual em subgrupos. Nesta fase, o quadro de refinamento assume

importância fundamental, uma vez que, no diálogo com o professor e sob

acompanhamento de outros alunos, o discente tem a oportunidade de retomar o diálogo

com os elementos essenciais de seu projeto, para observar a coerência de suas

formulações. É uma espécie de primeiro momento de qualificação. O colóquio poderá

transformar-se em roda de conversa, uma vez permitida a intervenção de colega quando

for oportuno.

Passo 5: Redação do projeto de pesquisa:

Uma vez encontrada a intenção da pesquisa, ou o objeto propriamente dito, cabe

agora convidar o estudante a organizar a redação de seu projeto de pesquisa, adequando-

se às regras da comunicação científica. Neste momento, apresentamos um roteiro ou

manual com elementos pre-textuais, textuais e pós-textuais que compõem o projeto.

Explicamos a finalidade de cada elemento que integra o projeto de pesquisa, tais como:

delimitação do tema, objetivos, referencial teórico e procedimentos metodológicos.

Apresentamos também, as principais normas da ABNT relativas a: citações,

referências, chamadas. Para isto, utilizamos vídeo, e guias de normalização

disponibilizados pela IES e por outras instituições. Outro aspecto importante diz

respeito a estimular os estudantes ao exercício da pesquisa bibliográfica, selecionar e

filtrar fontes de pesquisa e, sobretudo, o exercício da leitura.

Enfatizamos que o empenho de leitura e escrita é essencial para a produção

científica; e, que sem o esforço e a disciplina de ler, fichar, traduzir, sistematizar e

organizar informações é impossível escrever um projeto de pesquisa.

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Outro aspecto relevante na redação do projeto diz respeito aos cuidados

necessários para se evitar o plágio. E, por fim, esclarecemos resoluções brasileiras

relativas aos aspectos éticos da pesquisa com seres humanos.

Antecipação de alguns resultado- Das 42 avaliações disponíveis para análise, mais

especificamente sobre a competência do ato de pesquisar, em linhas gerais, no primeiro

momento, chegamos aos seguintes resultados quantitativos, expressos desde as etapas

especificadas: quanto à competência em descrever a problemática, no primeiro passo,

encontramos que 57,14% conseguem descrever a problemática conforme orientação,

enquanto 42,08% não logram, mesmo tendo passado peles mesmas orientações. No

segundo passo, referente à capacidade de elaborar pergunta de partida, somente 33,33%

conseguem manifestar esta capacidade no decurso da aprendizagem, ao passo que a

maioria, ou seja, 59,22% não faz isso, permanecendo um certo tempo em estado de

revisão. Quanto à competência de exercitar a interconexão das perguntas, objetivos e

hipóteses, apenas 35,71% finalizam favoravelmente esta etapa uma vez que 64,28%

precisam de ajuda para continuar praticando esta lógica. A dificuldade em encontrar e

compreender o “núcleo duro da pergunta” para associá-lo à constituição do objetivo e à

formulação da hipótese na modalidade de ensaio vem como reflexo do pouco uso do

pensamento lógico nas atividades discentes, além das dificuldades com a escrita, como

antes nos referimos. Esta é uma pesquisa que ainda se encontra em andamento.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Não restam dúvidas de que Bourdieu foi um dos mais importantes sociólogos de

sua geração, na França e também no resto do Mundo. Sempre nos sentimos atraídas

pelas suas sinuosas produções. Sim, porque ler e trabalhar com a produção de Bourdieu

não é tarefa das mais fáceis. Como se não bastassem os variados caminhos temáticos

que ele percorreu como- educação, cultura, literatura, arte, mídia, linguística, política,

fotografia, pintura e esporte- seus escritos, diz Burawoy ( 2010), são, muitas vezes, “[...]

impenetráveis e inacessíveis; suas frases entrecortadas e auto adjetivadas são enigmas

difíceis de decifrar; e seus livros estão parcialmente inacabados e repletos de

digressões”(P,12). Mesmo assim, fez e continua a fazer milhares de seguidores.

O mais importante legado de Bourdieu, decerto, é aquele que nos leva a pensar

na maneira como os agentes incorporam a estrutura social, ao mesmo tempo em que a

produzem. Reflexão consubstanciada, principalmente, em sua noção de habitus. Dizia

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que no mundo social haviam estruturas objetivas que podiam coagir a ação das pessoas.

Estes enfoques ficavam particularmente claros, quando Bourdieu dissertava sobre o

Estado e a família. Em suas notas, as estruturas sociais se reproduzem, ao mesmo

tempo, por meio da manipulação das normas sociais, bem assim por intermédio de sua

inculcação nas pessoas e da sua atualização por parte delas.

Além do mais, embora já tenhamos enfatizado, não nos custa repetir que o tema

do desmascaramento da dominação, principalmente a análise da dominação simbólica

de Bourdieu, continua fecundo para pensarmos as sociedades contemporâneas.

Por ter sempre rejeitado a dicotomia entre subjetivismo e objetivismo nas

Ciências Humanas, não se pode acusar Bourdieu de ter desconsiderado a dialeticidade

das relações sociais. Para si, contudo, o senso comum era sempre o mau senso. Dizia

que os dominados nunca entenderiam as origens e a condição de sua dominação. Seu

elitismo intelectual era bastante acentuado. Achava que a verdade era alicerçada no bom

senso dos intelectuais na qualidade de acadêmicos, na maioria das vezes, enclausurados

nos muros das universidades.

Por outro lado, reconhecia uma conformidade psicológica ou uma espécie de

subordinação das pessoas ao capitalismo. Posicionava-se, claramente, contra o

liberalismo e a ideia de globalização. Descrevia o mundo social contemporâneo

invadido e sufocado pelas forças do mercado e que o conluio do Estado com os

mercados era justificado pelas disciplinas da Economia e da Ciência Política.

Mesmo defendendo a autonomia enclausurada do campo científico, mais à

frente, conclamava os intelectuais a saírem de trás das barricadas das universidades e a

lançarem suas ofensivas contra a ideologia e as panaceias do mercado. Exortava a

comunidade científica, de sua época, a levar suas conquistas da ciência e das

universidades para o interior do debate público, do qual reconhecia estarem

tragicamente ausentes e afastados.

Segundo Burawoy (2010), as críticas de Bourdieu ao neoliberalismo

conseguiram atingir amplas audiências extra acadêmicas, levando-o a penetrar a arena

política, mesmo que tardiamente, como um intelectual afinado com as antinomias do

tempo corrente. Percebermos, portanto, plenas possibilidades de as ideias de Bourdieu

continuarem vivas, ajudando-nos a desvendar a lógica neoliberal contemporânea em sua

versão ultrarradical.

Defendendo o ponto de vista de que Bourdieu havia fornecido farta munição

para a Sociologia Crítica, Burawoy (2010), comenta:

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A ciência social precisa ser criatura com duas cabeças: de um lado, dirigida

contra as ideologias dominantes, desmistificando a naturalização do arbitrário

social; de outro destinada a inventar a elaborar alternativas sociais enraizadas

nas experiências vividas e nos experimentos vividos das classes subalternas.

(P.73)

Neste sentido, lembramos Mbembe (2016), pensador pós-colonial e cientista

político, quando, se referindo ao principal choque da primeira metade do século XXI,

disse não ser este choque “[...] entre religiões ou civilização mas entre a democracia

liberal e o capitalismo neoliberal, entre o governo das finanças e o governo do povo,

entre o humanismo e o niilismo”. Prenuncia, então, que a crescente bifurcação entre a

democracia e o capital será a nova ameaça para a civilização.

Se observarmos o que vem acontecendo em várias partes do mundo neste

momento como as evidências da xenofobia, do racismo institucional, da misoginia, dos

estupros individuais e coletivos, da fome, das discriminações, das intolerâncias, dos

sexismos, enfim, pessoas sendo tratadas como sub-humanas, perceberemos que

Mbembe não está fazendo nenhum favor ao pessimismo.

Trata-se daquilo que Boaventura de Sousa Santos (2018), denominou de

“degradação ontológica” em recente conferência sobre temas contemporâneos em

Fortaleza no dia 05/12/2018. Naquele momento, sugeria termos que desaprender o que

até agora havíamos aprendido para aprendermos a pensar o impensável.

Focava nas ameaças sofridas pelas universidades públicas, sobre o papel do

conhecimento científico e do pensamento crítico nessa conjuntura de retrocessos e

conservadorismos. Nas entrelinhas, sugeriu autocrítica quanto ao papel das

universidades, sobre as metodologias inerentes à produção do conhecimento e acerca

das contradições embutidas nos próprios movimentos emancipatórios; desaprender para

pensar o impensável. Esta foi a tônica da reflexão-olhar para o conhecimento que se

constrói nas lutas cotidianas; ensinar o conhecimento dos vencidos, não só dos

vencedores; que as universidades precisam ser relevantes para todos: que precisam

encaminhar o conhecimento popular, as lutas populares, descolonizar o conhecimento e

apostar nas utopias.

Para finalizar, e tomando como parâmetro a conjuntura brasileira atual, neste

período pós-eleição de 2018 para Presidência da República, somos tentados a imaginar

os desafios postos às universidades e ao ensino superior, enfim, à atividade científica

em tempos de profundas transformações em nosso modelo de sociabilidade.

O ambiente é de crise de representação política; de criminalização da política, de

abundantes escândalos de corrupção, politização do Judiciário e judicialização da

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política, anunciando a própria crise da nossa democracia. Tudo isso é fomentado pela

grande mídia conservadora, pelos representantes das elites econômicas e pelo amplo

protagonismo das igrejas evangélicas, onde ocorrem modificações no próprio sentido do

que é público e privado e em contexto de enorme espaço ocupado pelas redes sociais.

Fala-se em confrontos ideológicos e que o fortalecimento da extrema direita é tendência

mundial.

Qual sua especificidade na experiência brasileira da atualidade? Que momento é esse?

Que estranhos fenômenos são esses? Quem representa exatamente o que nesta dinâmica

social? Por que forças violentas e reacionárias estão conseguindo se estabelecer? Por

que tanto ódio disseminado?

Será bem-vindo o reconhecimento de que a contrainformação ganhou

notoriedade e tenha se constituído uma nova metodologia a serviço das tendências

ideológicas. As mentiras, totalmente desatreladas da dinâmica da verdade, estão

ganhando eficácia e se fortalecendo.

A estratégia de desmentir as inverdades está se tornando inócua. Questiona-se,

inclusive, aquilo que antes parecia óbvio para a Ciência. O fenômeno da “pós-verdade”

tem modificado os consensos já estabelecidos. “Crenças e valores estão impregnando os

debates. No embate contra a banalização de democracia, mais vale fortalecer crenças e

valores mais favoráveis à vida coletiva do que contra-atacar com a lupa da

objetividade”. (OLIVEIRA,2018, p.7). Neste sentido não podemos minimizar o papel

das religiões. Parece estar na moda uma espécie de anti-intelectualismo assustador,”

alimentado por uma falsa noção de que democracia significa que a minha ignorância é

tão boa quanto o seu conhecimento”. (LICHTERBECK 2018, p.1)

Como isso tudo vai rebater na própria efetividade da argumentação científica e

sobre a pertinência social dos seus resultados? Estão querendo reprimir o debate e o

conhecimento? Será o fim das mediações dos especialistas? Precisaremos contar a

verdade de outro modo? De fato, o novo se apoderou de nossas experiências, mas o que

vem a ser esse novo? E como tratá-lo? Esse nos parece ser o grande desafio. Para o qual

reconhecemos como ainda fecundos os ensinamentos de Pierre Bourdieu.

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