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96 EXPERIÊNCIAS ASSOCIATIVAS NA AGRICULTURA FAMILIAR DA REGIÃO SUL DO BRASIL COMO FORMA DE PROMOÇÃO DO DESENVOLVIMENTO RURAL SUSTENTÁVEL 1 FAMILY FARM'S ASSOCIATIVE EXPERIENCES IN SOUTHERN BRAZIL AS STRATEGIES FOR SUSTAINABLE RURAL DEVELOPMENT Pedro Ivan Christoffoli * Paulo Alexandre Nunes ** Anelise Graciele Rambo *** Tiago da Costa **** RESUMO O desenvolvimento do agronegócio brasileiro promove um modelo econômico excludente e predatório. Sua ascensão se dá mediante a destruição das comunidades tradicionais e a apropriação do trabalho e da natureza pelo capital. Este artigo propõe uma leitura acerca da importância de experiências associativas como formas de resistência no âmbito da agricultura camponesa na região Sul do Brasil. São apresentadas experiências de economia solidária que retratam essa diversidade de ações coletivas. Pretende-se evidenciar a importância emergente da economia solidária para a agricultura familiar e camponesa bem como sua contribuição aos processos de desenvolvimento rural alternativo ao crescimento destrutivo promovido pelo capital. Palavras-chave: Desenvolvimento rural sustentável. Agricultura Familiar. Reforma agrária. Cooperativas rurais. ABSTRACT The development of Brazilian agribusiness promotes social exclusion and predatory economic model. His ascension promotes the destruction of traditional communities and the appropriation of nature by capital. This article proposes a reading of the importance of associative experiences as forms of resistance in the context of peasant agriculture in southern Brazil. Are presented experiences of solidarity economy that portray this diversity of collective experiences. It is intended to highlight the emerging importance of the social economy to family and peasant agriculture and its contribution to rural development processes alternative to destructive growth promoted by capital. Keywords: Sustainable rural development. Family farm. Agrarian reform. Rural cooperatives. 1. INTRODUÇÃO Este artigo tem como objetivo discutir a importância de experiências associativas e autogestionárias no âmbito das estratégias de resistência da agricultura camponesa na região Sul do Brasil. Partindo da discussão do espaço rural, busca-se refletir sobre os desafios atuais de se construir no meio rural brasileiro, estratégias para o desenvolvimento sustentável, tendo como referência o campesinato empobrecido e cada vez mais ameaçado pelo desenvolvimento do capital. O artigo busca no Censo 1 Este texto é uma versão revisada e ampliada do artigo Experiências coletivas e autogestionárias na agricultura familiar da região Sul do Brasil apresentado ao IV Encontro Internacional “A economia dos trabalhadores” realizado em João Pessoa, PB em Julho de 2013. * Mestre em Administração (UFPR) e Doutor em Desenvolvimento Sustentável (UNB). Professor da Universidade Federal da Fronteira Sul (UFFS). E-mail: [email protected] ** Economista, Mestre em Economia (UEM). Professor da Universidade Federal da Fronteira Sul (UFFS). E- mail: [email protected] *** Mestre em Geografia e Doutora em Desenvolvimento Rural (UFRGS). E-mail: [email protected] **** Mestre em Administração (UDESC). Professor da Universidade Federal da Fronteira Sul (UFFS). E-mail: [email protected]

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    EXPERINCIAS ASSOCIATIVAS NA AGRICULTURA FAMILIAR DA REGIO SUL DO BRASIL COMO FORMA DE PROMOO

    DO DESENVOLVIMENTO RURAL SUSTENTVEL1

    FAMILY FARM'S ASSOCIATIVE EXPERIENCES IN SOUTHERN BRAZIL AS STRATEGIES FOR SUSTAINABLE RURAL DEVELOPMENT

    Pedro Ivan Christoffoli* Paulo Alexandre Nunes**

    Anelise Graciele Rambo*** Tiago da Costa****

    RESUMO

    O desenvolvimento do agronegcio brasileiro promove um modelo econmico excludente e predatrio. Sua ascenso se d mediante a destruio das comunidades tradicionais e a apropriao do trabalho e da natureza pelo capital. Este artigo prope uma leitura acerca da importncia de experincias associativas como formas de resistncia no mbito da agricultura camponesa na regio Sul do Brasil. So apresentadas experincias de economia solidria que retratam essa diversidade de aes coletivas. Pretende-se evidenciar a importncia emergente da economia solidria para a agricultura familiar e camponesa bem como sua contribuio aos processos de desenvolvimento rural alternativo ao crescimento destrutivo promovido pelo capital.

    Palavras-chave: Desenvolvimento rural sustentvel. Agricultura Familiar. Reforma agrria. Cooperativas rurais. ABSTRACT

    The development of Brazilian agribusiness promotes social exclusion and predatory economic model. His ascension promotes the destruction of traditional communities and the appropriation of nature by capital. This article proposes a reading of the importance of associative experiences as forms of resistance in the context of peasant agriculture in southern Brazil. Are presented experiences of solidarity economy that portray this diversity of collective experiences. It is intended to highlight the emerging importance of the social economy to family and peasant agriculture and its contribution to rural development processes alternative to destructive growth promoted by capital.

    Keywords: Sustainable rural development. Family farm. Agrarian reform. Rural cooperatives. 1. INTRODUO

    Este artigo tem como objetivo discutir a importncia de experincias associativas e autogestionrias no mbito das estratgias de resistncia da agricultura camponesa na regio Sul do Brasil. Partindo da discusso do espao rural, busca-se refletir sobre os desafios atuais de se construir no meio rural brasileiro, estratgias para o desenvolvimento sustentvel, tendo como referncia o campesinato empobrecido e cada vez mais ameaado pelo desenvolvimento do capital. O artigo busca no Censo 1 Este texto uma verso revisada e ampliada do artigo Experincias coletivas e autogestionrias na agricultura familiar da regio Sul do Brasil apresentado ao IV Encontro Internacional A economia dos trabalhadores realizado em Joo Pessoa, PB em Julho de 2013.* Mestre em Administrao (UFPR) e Doutor em Desenvolvimento Sustentvel (UNB). Professor da Universidade Federal da Fronteira Sul (UFFS). E-mail: [email protected] ** Economista, Mestre em Economia (UEM). Professor da Universidade Federal da Fronteira Sul (UFFS). E-mail: [email protected] *** Mestre em Geografia e Doutora em Desenvolvimento Rural (UFRGS). E-mail: [email protected] **** Mestre em Administrao (UDESC). Professor da Universidade Federal da Fronteira Sul (UFFS). E-mail: [email protected]

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    Agropecurio de 2006 (IBGE, 2006) e no Atlas da Economia Solidria da Secretaria Nacional de Economia Solidria (SENAES, 2006) dados referentes regio Sul do Brasil, com foco em experincias coletivas e agroindustriais no espao rural e, sobretudo na agricultura familiar e camponesa2.

    Na sequncia, so apresentados quatro estudos de caso que retratam a diversidade de experincias coletivas que emergem no mbito da agricultura familiar dos trs estados. No Estado do Paran, retratou-se a experincia da Cooperjunho, que mostra como uma organizao de pequeno porte, formada a partir de um grupo de mes agricultoras, se converteu em uma experincia associativa capaz de organizar dezenas de famlias e fornecer produtos agroecolgicos e industrializados para os programas pblicos institucionais (Programa de Aquisio de Alimentos PAA e Programa Nacional de Alimentao Escolar PNAE) e feiras ecolgicas. J em Santa Catarina foi apresentado o caso da Cooperunio, em que mais de duas centenas de trabalhadores se uniram para constituir uma das maiores experincias coletivas integrais na agricultura no pas. Finalmente, o Rio Grande do Sul, so apresentadas a cooperativa autogestionria produtora de etanol (Coopercana), que estimulou o surgimento de pequenas associaes tambm produtoras de etanol, e um programa municipal de desenvolvimento agroindustrial denominado Pacto Fonte Nova, estruturado sob a forma de uma cooperativa.

    Ao abordar essas experincias, pretende-se evidenciar a importncia da economia solidria para a agricultura familiar e camponesa, bem como sua contribuio aos processos de desenvolvimento do meio rural. 2. A INSUSTENTABILIDADE DO MODELO ATUAL DE DESENVOLVIMENTO RURAL BRASILEIRO E OS DESAFIOS PARA A MANUTENO DE UMA RURALIDADE CAMPONESA

    O espao rural, segundo Wanderley (2009), socialmente construdo pelos seus habitantes em funo das relaes fundadas nos laos de parentesco e vizinhana. Essas coletividades so depositrias de uma cultura, cuja reproduo necessria dinamizao tcnico-econmica, ambiental e social do meio. Tais grupos no so isolados, esto integrados em espaos sociais mais amplos, por meio de complexas relaes associadas ao mercado e vida urbana, em que penetram relaes e valores capitalistas de produo que, ora potencializam, ora limitam a existncia de um setor campons no Brasil e no mundo. nesse espao que tm emergido inmeras experincias associativas, cooperativas e autogestionrias no mbito da agricultura familiar e camponesa.

    A dinmica socioeconmica vivida no Brasil e no mundo nas ltimas dcadas viu o surgimento de um modelo neoliberal que promoveu um amplo desmonte da figura do Estado provedor (como no caso da Europa) ou desenvolvimentista (Brasil) em prol de um novo padro de desenvolvimento capitalista. No que diz respeito ao desenvolvimento agrcola brasileiro, esse modelo se fortalece na defesa do agronegcio, que est baseado na aliana entre o latifndio e capital financeiro e que tem no controle da legislao, das polticas e dos fundos pblicos seus instrumentos vitais de ao. E vem avanando com uma voracidade insacivel sobre terras (camponesas, indgenas, pblicas), recursos naturais (florestas, recursos genticos, gua) e sobre o trabalho rural (cobrana de royalties sobre sementes, alteraes no padro produtivo, apropriao do sobretrabalho campons via controle de agroindstrias e canais de comercializao). 2 Para efeito deste trabalho consideramos os termos agricultura camponesa e familiar como sinnimos. Entretanto, uma discusso mais aprofundada e precisa acerca do uso destes dois conceitos e explicitando suas diferenas pode ser encontrada em Caldart et al. (2012, p. 26 e seguintes)

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    O movimento de resistncia da luta camponesa, originado nos conflitos pela terra dos anos 1970 a 1990, foi sendo gradativamente contido e restringido a zonas especficas do meio rural. Perdeu-se ao longo dos ltimos anos a batalha nas cidades em que a mdia partidria (conforme Gramsci3) e o judicirio venal contriburam para a criminalizao de movimentos sociais que ainda ousavam lutar contra os limites impostos pela governabilidade capitalista. A negao da reforma agrria como alternativa estruturante para o campesinato brasileiro e para o enfrentamento ao poder do agronegcio junto ao Estado reflexo dessas mudanas que recolocam o espao rural e a espoliao da natureza como eixos de acumulao do capitalismo brasileiro.

    A economia nacional sobrevive hoje em grande medida graas aos excedentes gerados pelas exportaes de commodities4, sejam elas minerais, florestais ou agrcolas. Esse movimento, diga-se de passagem, no apenas nacional, visto o forte afluxo de capital estrangeiro alocado na compra de terras e recursos naturais brasileiros (desde a privatizao das hidreltricas, siderrgicas, mineradoras, etc.) at o processo recente de acaparamento de terras registrado nos pases pobres do sul do mundo.

    Se, por um lado, visualiza-se um aumento no nmero de estabelecimentos da agricultura familiar, entre 1996 e 2006, passando de 4.139 a 4.551 milhes, por outro, h uma diminuio de sua rea, de 107.8 a 106.8 milhes de hectares no mesmo perodo, conforme dados dos Censos Agropecurios dos respectivos anos (IBGE, 2014). Ademais, o fenmeno de reduo da populao rural tambm se expressa na regio Sul do Brasil, mostrando reflexos tambm no nmero de estabelecimentos agropecurios. Conforme os dados do Censo, a regio Sul possua em 2006, 1.006.203 estabelecimentos agropecurios, 849.693 estabelecimentos com agricultura familiar (AF) e 156.510 estabelecimentos com agricultura no familiar. Tabela 1: Distribuio dos estabelecimentos agropecurios entre os estados da regio do Sul/Brasil, 2006.

    Estados Estabelecimentos da Agricultura Familiar Estabelecimentos da

    Agricultura no familiar Paran 302.828 68.235 Santa Catarina 168.512 25.156 Rio Grande do Sul 378.353 63.119 Total 849.693 156.510 Fonte: Censo Agropecurio (IBGE, 2006)

    Ainda que o nmero de estabelecimentos agropecurios vinculados AF supere significativamente o nmero de estabelecimentos patronais, sua rea total representava apenas 31,25% da rea total dos estabelecimentos agropecurios na regio. Depois do grande xodo provocado pela implantao da revoluo verde nos anos 1950-60, o nmero de estabelecimentos da AF se estabilizou e vem em um lento declnio desde o ano de 1970, demonstrando que, na condio atual, as unidades camponesas

    3 A imprensa seria uma organizao material voltada para manter, defender e desenvolver a frente terica e ideolgica. Nesse sentido, no exerccio normal da hegemonia, a imprensa torna-se um centro de formao e reproduo de uma classe intelectual dirigente, educada a partir de uma concepo de mundo que nortearia as suas aes no campo cultural e poltico (GRAMSCI, 2006; BRAVO, 2011).4 A balana de pagamentos brasileira em 2012 reflete essa dependncia: O saldo da balana comercial do agronegcio gerou 79 bilhes de dlares de supervit. A balana dos demais setores resultou em dficit de 60 bilhes de dlares (SECEX/MDIC, 2013; RYDLEWSKI e CAMPOS, 2013).

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    estagnaram e tendem a uma reduo gradual5 com perda de suas relevncias econmica e social. Esse conjunto de questes relacionadas ao campesinato pobre do Brasil e da regio Sul, em particular, o coloca em uma encruzilhada, na qual, como no enigma da esfinge, o dilema decifrar formas de organizao e estratgias que levem a um novo padro de desenvolvimento para o meio rural ou, caso contrrio, veremos surgir uma nova e definitiva leva de reduo6 da populao rural na linha do horizonte.

    Para essa discusso essencial apontar os limites do conceito de desenvolvimento rural sustentvel. Um conceito que emerge nas discusses internacionais para tentar impor condies ao crescimento desenfreado do capitalismo sem limites, mas que logo apropriado pelo capital e domesticado como ferramenta de marketing. O espao rural brasileiro se viu tomado por uma viso de desenvolvimento que nega a possibilidade de formas alternativas de organizao e produo, e que se utiliza da natureza como plataforma de explorao no sentido mais predatrio imaginvel Importa ressaltar que esse redimensionamento do que se entende por rural vai no sentido de apreender a diversidade da agricultura e do meio rural, a qual se mostrava invisvel diante da rigidez e do engessamento de perspectivas analticas pautadas nos ditames da revoluo verde. Nesse sentido, Ploeg (2006) trata do squeeze na agricultura, consequncia, em certa medida, de resultados produtivos bem-sucedidos da modernizao da agricultura, mas, dramticos resultados sociais, representando, frequentemente, um decrscimo das condies de vida dos agricultores.

    Em resposta a essa realidade, constituiu-se uma heterogeneidade dos processos de mercantilizao da agricultura familiar resultando numa pluralidade de estilos de agricultura (PLOEG, 1993, 2004) e de estratgias de reproduo perante a generalizao das relaes mercantis. Para Ploeg (2003), os estilos de agricultura podem ser considerados como algumas das muitas respostas para o projeto da modernizao. Alguns deles representam e reproduzem a internalizao do projeto de modernizao e so materialmente dependentes de sua continuao. Outros, por sua vez, representam um distanciamento e uma desconstruo de toda limitao e todo controle impostos pelo projeto modernizador.

    Portanto, os estilos de agricultura no necessariamente so opostos ao projeto modernizador dominante, derivando e resultando em situaes diversas, tanto de maior autonomia como gerando maior dependncia e, portanto, em situaes de maiores ou menores diversidade e diversificao.

    Nesse sentido, Ellis (2000) trata da capacidade de reao e da capacidade de adaptao. A primeira resultaria de uma incapacidade de buscar alternativas, impondo a reproduo de estilos de agricultura marcados pela verticalidade das relaes entre agricultores e mercados. A segunda estaria pautada na possibilidade de buscar certo distanciamento visando a construo de alternativas. Neste caso, importante considerar que as motivaes que levam os agricultores a constiturem determinados estilos de agricultura esto vinculadas ao padro de desenvolvimento rural predominante em determinado recorte espacial e temporal. 5 O nmero total de estabelecimentos na regio Sul do Brasil caiu de 1,274 milho, em 1970, para 1,010 milho em 2006. Ou seja, houve uma leve reduo no nmero absoluto de estabelecimentos. O pessoal ocupado na agricultura, no entanto, passa por fenmeno muito mais acentuado, caindo de 4,191 milhes de pessoas, em 1970, para 2,884 milhes em 2006 (IBGE, 2014). Essa perda se deu basicamente nos pequenos estabelecimentos agropecurios.6 Enquanto no Brasil ainda h em torno de 16% da populao vivendo no meio rural, nos EUA e na Europa essa proporo cai para menos de 5% na maioria dos pases. Ou seja, no Brasil, sob hiptese alguma, essa populao pode ser considerada um segmento marginal.

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    Diante disso, considera-se que os estilos de agricultura pautados na capacidade de adaptao, ou ento, na construo de alternativas, de modo geral, pautam-se na constituio de experincias coletivas e autogestionrias que possibilitam o desencadeamento de processos de desenvolvimento rural mais sustentveis. Sendo assim, considera-se que a agricultura familiar/camponesa no apenas reage ou se adapta aos condicionantes externos, mas tambm capaz de agir de forma propositiva (SCHNEIDER, 2007). 3. A ECONOMIA SOLIDRIA COMO ESPAO DE RESSOCIALIZAO E RECONSTITUIO DE ESTRATGIAS NO MEIO RURAL BRASILEIRO

    As formas de socializao no meio rural do Brasil, historicamente, empregaram estruturas e prticas associativas de organizao da produo e do trabalho como um de seus componentes (como por exemplo, os mutires). Ainda que no seja o principal deles, visto a configurao familiar da pequena agricultura por um lado, e a empresarial, do latifndio, por outro, as formas associativas crescem de importncia na medida em que o avano de relaes capitalistas no campo desestrutura parte significativa do campesinato. A partir dos anos 1950, quando o projeto de desenvolvimento capitalista moderno implantado no Brasil via Extenso Rural (FONSECA, 1985), diversos autores identificaram a emergncia de formas associativas de trabalho campons que representaram tentativas de fortalecimento da sociabilidade camponesa via estruturas socioeconmicas de resistncia (CHACON, 1959; MARTINS, 1984; ESTERCI, 1984; CONCRAB, 1997; MELLONI, 1999; CHRISTOFFOLI, 2000). nesse contexto que emergem, tambm no meio rural, as organizaes de tipo coletivista, conforme caracterizadas no Quadro 1.

    Quadro 1. Caractersticas das organizaes coletivistas Dimenses Caracterizao

    Autoridade Reside na coletividade como um todo: s chega a ser delegada temporariamente e est sujeita a ser cassada. Presta-se obedincia ao consenso da coletividade, que sempre fluido e aberto s negociaes.

    Normas Normas estipuladas mnimas. Primazia das decises ad hoc, individualizadas; alguma previsibilidade possvel com base no conhecimento da tica substantiva envolvida na situao.

    Controle social Os controles sociais baseiam-se primariamente em atrativos personalsticos ou moralsticos e na seleo de pessoal homogneo.

    Rel. sociais Ideal da comunidade. As relaes devem ser holistas, pessoais e valiosas em si mesmas.Recrutamento e Seleo

    Emprego baseado em amigos, valores sociopolticos, atributos de personalidade e conhecimento e aptides informalmente avaliados. O conceito de promoo na carreira no significativo; no h hierarquia de posies.

    Estrutura de incentivos

    Os incentivos normativos e de solidariedade so primordiais; os incentivos materiais so secundrios.

    Estratificao social

    Igualitria; os diferenciais de recompensa, quando existem, so estritamente limitados pela coletividade.

    Diferenciao Diviso mnima do trabalho; a administrao se combina com as tarefas de execuo; a diviso entre trabalho intelectual e trabalho manual reduzida. Generalizao dos cargos e funes; papis holistas. Desmistificao da especializao.

    Fonte: Christoffoli, 2000 (Adaptado de HALL, 1984; ROTHSCHILD-WHITT,1979).

    A partir dos anos 1980, com o ocaso da ditadura militar e a emergncia dos movimentos sociais e sindicais no campo, h certa efervescncia no surgimento de iniciativas associativas visando constituir um novo sujeito social vinculado a um projeto poltico transformador, colocando o campesinato como elemento central de organizao do rural. Fazem parte dessa etapa recente das lutas sociais rurais o Movimento dos

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    Trabalhadores Sem Terra (MST), o Movimento dos Pequenos Agricultores (MPA), o Movimento dos Atingidos por Barragens (MAB), a Federao dos Trabalhadores na Agricultura Familiar (FETRAF), o Movimento de Mulheres Agricultoras (MMA). H tambm o ressurgimento da Confederao Nacional dos Trabalhadores na Agricultura (CONTAG), a partir de sua vinculao com a Central nica dos Trabalhadores (CUT). Aspectos como a desmotivao e a inviabilizao crescentes de grande parcela do campesinato, o consequente esvaziamento das comunidades rurais e o crescimento de relaes mercantis, nas quais antes predominava a solidariedade e o compadrio, levaram a que os laos sociais rurais se esgarassem numa perda gradual de fora, ao ponto de sobreviver apenas na memria dos idosos. Entretanto, a contraposio dos atores sociais rurais tem sido a colocao de estratgias associativas e cooperativas de novo tipo como elementos para a necessria resistncia socioeconmica e, em menor medida, cultural do campesinato. Para dimensionar tal esforo, buscou-se neste estudo verificar se essas estratgias se expressam nos dados do Censo Agropecurio do IBGE e no Censo da Economia Solidria elaborado pela Secretaria Nacional da Economia Solidria (SENAES/MTE). 4. A PRESENA DO COOPERATIVISMO E DO ASSOCIATIVISMO NO MEIO RURAL DA REGIO SUL DO BRASIL

    Ainda que evidncias empricas demonstrem um crescimento no processo de cooperao no meio rural do Sul do pas, os dados do Censo Agropecurio do Brasil realizado pelo IBGE, em 2006, aparentemente no conseguiram captar claramente essa dinamicidade da economia solidria existente no rural brasileiro, como apresentado a seguir: 4.1 Agroindstrias rurais como empreendimentos da Ecosol no Censo Agropecurio

    Apesar de o Censo Agropecurio (IBGE, 2006) no dispor de questes especficas para captar a dinmica da economia solidria no meio rural, buscou-se por meio de algumas inferncias e anlises estatsticas identificar aspectos relacionados com atividades econmicas exercidas de forma associativa, o que configura ao menos uma apreenso parcial da diversidade e da realidade da cooperao na agricultura camponesa. Um aspecto interessante da tabela 2 que na agricultura familiar apenas 3% dos estabelecimentos mostram-se estruturados na forma coletiva, ao passo que na agricultura no familiar, esse percentual chega a 15%, sendo 5,7% de condomnios, 1,8% sob a forma de cooperativas, 5,8% como sociedades annimas ou por cotas e 1,6% sob outras formas no tipicamente capitalistas. Ou seja, o capital tem assumido formas coletivas de propriedade, em escala 5 vezes maior do que os agricultores familiares. Tabela 2 - Distribuio da condio legal dos produtores na regio sul do Brasil, 2006.

    Condio legal do Produtor Estabelecimentos

    da Agricultura Familiar

    % Estabelecimentos

    da Agricultura no Familiar

    %

    Proprietrio individual 820.241 86,04 133.104 13,9Cond., consrcio ou socied. de pessoas 25.086 73,65 8.976 26,3Cooperativa 0 0,00 2.845 100,0Sociedade annima ou por cotas de responsabilidade limitada 0 0,00 9.024 100,0Instituio de utilidade pblica 0 0,00 430 100,0Governo (federal, estadual ou municipal) 0 0,00 637 100,0

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    Outra condio 4.366 74,51 1.494 25,4Fonte: Censo Agropecurio (IBGE, 2006). Sobre o processo de transformao dos produtos in natura, pode-se observar na Tabela 3 o nmero de agroindstrias nos estabelecimentos agropecurios na agricultura familiar. marcante o fato de que as agroindstrias comunitrias representem um percentual muito pequeno do total.

    Tabela 3 - Nmero de estabelecimentos agropecurios com instalao de beneficiamento de agricultura familiar nos estados da regio Sul do Brasil, 2006.

    PR SC RS Tipo de beneficiamento Fr. Abs % Fr. Abs % Fr. Abs % Total

    Beneficiamento prprio 19.990 14,42 18.745 13,52 99.890 72,06 138.625Benef. comunitrio 235 37,66 56 8,97 333 53,37 624Benef. de terceiros 1.037 28,39 576 15,77 2.040 55,84 3.653Fonte: Censo Agropecurio (IBGE, 2006).

    Paralelamente a essas informaes, importante visualizar o valor gerado pelas

    agroindstrias, conforme a tabela 04.

    Tabela 4 - Valor gerado pelas agroindstrias nos estabelecimentos agropecurios com agricultura familiar e no familiar, em milhes de reais, e sua participao ao total por estado da regio Sul do Brasil, 2006. (em milhes de R$)

    Agricultura Familiar Agricultura no Familiar Estados Fr. Abs % Fr. Abs %

    Total

    Paran 50,7 61,10 32,3 38,90 83,0 Santa Catarina 66,9 76,89 20,1 23,11 87,0 Rio Grande do Sul 216,3 76,64 65,9 23,36 282,2 Fonte: Censo Agropecurio (IBGE, 2006).

    Conforme pode ser observado na tabela 04, o valor gerado pelas agroindstrias vinculadas agricultura familiar superior ao daquelas vinculadas agricultura no familiar em todos os estados da regio Sul do Brasil no ano de 2006. Isso evidencia a importncia econmica do processamento de produtos para a manuteno dos agricultores familiares no campo. Tambm os dados chamam ateno para o dinamismo agroindustrial do Rio Grande do Sul, muito superior aos do Paran e de Santa Catarina.

    Os principais produtos das agroindstrias familiares da regio Sul do Brasil esto relacionados na Tabela 5. Entre eles, destacam-se os derivados do leite (queijo e requeijo), carnes bovina e suna, produtos de confeitaria, vinhos, aguardente e outros. Tabela 5 - Relao dos principais produtos das agroindstrias familiares na regio Sul do Brasil, 2006 (em mil reais).

    Produtos VALOR % Queijo e requeijo 62.755,00 21,19Carne de bovinos (verde) 60.660,00 20,48Carne de sunos (verde) 40.750,00 13,76Pes, bolos e biscoitos 21.866,00 7,38Vinho de uva 20.522,00 6,93Aguardente de cana 18.208,00 6,15Carne de outros animais (verde) 14.208,00 4,80

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    Embutidos (linguias, salsichas, etc.) 12.147,00 4,10Carvo vegetal 10.608,00 3,58Melado 8.503,00 2,87Doces e geleias 7.130,00 2,41Farinha de mandioca 3.450,00 1,16Fumo em rolo ou corda 2.600,00 0,88Fonte: Censo Agropecurio (IBGE, 2006). A questo da distribuio geogrfica dos estabelecimentos rurais com agricultura familiar nos municpios da regio Sul do Brasil, no ano de 2006, pode ser verificada na Figura 1.7

    i

    Figura 1. Distribuio espacial dos estabelecimentos agropecurios de agricultura familiar na regio Sul do Brasil. 2006. Fonte IBGE. Elaborao dos autores Com base na Figura 1, pode-se visualizar que h concentraes de estabelecimentos agropecurios com agricultura familiar, sobretudo no sudoeste paranaense, oeste catarinense e o noroeste rio-grandense. Nessas regies, pode-se observar que boa parte dos municpios possui densidade superior a 0,085 estabelecimentos agropecurios com agricultura familiar por hectare (a cada 100 hectares, temos 8,5 estabelecimentos da AF). Semelhante concentrao se observa na distribuio das agroindstrias no mbito da agricultura familiar.

    Visualiza-se pela Figura 2 que as regies Sudoeste Paranaense, Oeste Catarinense e o Noroeste Rio-Grandense se sobressaem em termos de concentrao de agroindstrias familiares. H ainda outras regies do RS que apresentam alta concentrao agroindustrial familiar, como o caso da Serra Nordeste e Regio Colonial dos vales prximos a Porto Alegre. O cruzamento de dados de concentrao de agroindstrias e de unidades de produo agrcola de tipo familiar permite identificar aglomeraes (clusters positivos) dos estabelecimentos de agricultura familiar com as instalaes de beneficiamento, como observados no sudoeste paranaense, oeste e centro catarinense, noroeste, centro e sul rio-grandense. 7 Foi utilizada a anlise da distribuio dos estabelecimentos rurais com Agricultura Familiar nos municpios que fazem parte da regio, no ano de 2006, varivel essa intensificada pela rea rural total municipal. A esse respeito ver Florax e Nijkamp (2003); Lesage (2009); Haddad e Pimentel (2004); e Anselin (1995).

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    Figura 2 - Distribuio espacial dos estabelecimentos agropecurios com agricultura familiar com instalaes de beneficiamento na regio Sul do Brasil 2006. Fonte: Elaborao dos autores com base no Censo do IBGE. Essas regies, no casualmente, so regies tradicionais de colonizao e de luta camponesa, aliadas a condies de topografia que serviram para, num certo sentido, proteger a agricultura familiar da expanso voraz do latifndio e do agronegcio. Mais recentemente, outras regies se somaram a essas, via criao e consolidao de reas reformadas pela concentrao de assentamentos da reforma agrria. 4.2 Atlas da Economia Solidria do Brasil

    Outro levantamento, mais limitado, mas importante pelos aspectos qualitativos e por seu ineditismo e sua abrangncia, foi o Atlas da Economia Solidria, uma espcie de censo parcial da Ecosol no pas, levado a cabo pela Senaes, em 2005 (com atualizao em 2007). Ainda que haja muitas lacunas nesse levantamento8, o Atlas se constitui hoje na principal referncia em termos de mapeamento dos dados da economia solidria no pas. Buscou-se neste trabalho ento, dados referentes regio Sul do Brasil, em particular aos empreendimentos localizados e atuantes no meio rural.

    Foram identificados 3.583 empreendimentos envolvendo mais de meio milho de pessoas associadas ou beneficirias, tanto no meio urbano como no rural, sendo 46% deles organizados como grupos informais, 32% como associaes e 18,7% na forma de cooperativas. Do total, a maioria tinha atuao exclusivamente urbana (40%), enquanto 8 Uma lacuna identificada a da sub-representao dos empreendimentos, tanto rurais como urbanos, dos municpios do interior dos estados, principalmente em regies onde no havia abrangncia de organizaes fortes da Ecosol ou universidades ligadas ao levantamento.

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    outros 1.294 empreendimentos (36,4%) tinham atuao exclusivamente rural e 819 (23%) tinham atuao mista (rural e urbana). Os empreendimentos envolviam uma mdia de 154 trabalhadores beneficirios diretos de sua atuao. Em relao aos aspectos econmico-financeiros, a maioria dos grupos no alcanou faturamento significativo, sendo que 55% deles faturaram menos de R$ 5.000 mensais no perodo das entrevistas. J em torno de 15% faturaram acima dos cinquenta mil reais mensais, ao passo que 1.254 (35%) no apresentaram nenhum faturamento (possivelmente se tratando de empreendimentos iniciantes ou que atuavam mais como ferramentas de representao poltica). Analisando esses dados, verificamos que as formas cooperadas no se desenvolveram significativamente no meio rural, ao menos estatstica e quantitativamente. Por sua vez, considerando, sobretudo, diferentes estudos de caso, possvel afirmar que essa situao demanda polticas pblicas capazes de fomentar tais iniciativas, de modo a viabilizar a agricultura familiar e camponesa mais empobrecida, contribuindo consequentemente, para as soberanias alimentar e energtica no pas e um desenvolvimento rural mais sustentvel. 5. ESTUDOS DE CASO SOBRE EXPERINCIAS ASSOCIATIVAS RURAIS DO

    SUL DO BRASIL Visando estabelecer um paralelo aos dados secundrios e exemplificar qualitativamente esses processos de cooperao atravs de casos concretos, buscou-se analisar quatro experincias associativas desenvolvidas no meio rural da regio Sul do Brasil. Os casos escolhidos so tpicos da diversidade de situaes geradas em estratgias desenvolvidas pelo campesinato liderado por movimentos sociais rurais nas ltimas dcadas. 5.1. A experincia da cooperativa Coperjunho, Laranjeiras do Sul (PR)

    O Assentamento 08 de Junho se localiza a 7 km da cidade de Laranjeiras do Sul (PR), local onde se constituiu o grupo de mulheres cooperadas da agroindstria de panificao e a Cooperativa Agroindustrial Cooperjunho. Ambos fazem parte de um processo de organizao e de luta pela terra que resultou na conquista do assentamento por 71 famlias, atravs do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST). O grupo de mulheres cooperadas foi criado inicialmente a partir de um Clube de Mes organizado pelas pastorais sociais da Igreja Catlica, para atender as necessidades bsicas de sobrevivncia das famlias ainda no perodo de acampamento. O grupo comeou a funcionar efetivamente com quatro mulheres em 2005/2006, e hoje se encontra com dezessete mulheres e mais sete filhas das cooperadas, em um total de 24 trabalhadoras que se alternam na execuo dos trabalhos. Aos poucos, o trabalho organizado pelo grupo, voltado melhoria das condies de vida das mulheres assentadas, foi direcionado para uma pequena agroindstria de panificao. A experincia se desenvolveu inicialmente por um grupo informal, que, posteriormente, se incorporou ao processo de constituio da cooperativa Cooperjunho que reuniu dezessete famlias. A organizao do trabalho da cozinha (o grupo fornece refeies e marmitas para eventos), do panifcio (venda direta ou fornecimento para programas pblicos como PAA e PNAE) e a diviso dos resultados obtidos se do principalmente entre as mulheres trabalhadoras do grupo, com base nos dias de trabalho de cada uma. Alm da atividade ligada ao fornecimento de alimentos processados, o grupo de famlias ligadas Cooperjunho desenvolve atividades como a feira agroecolgica semanal, na cidade de Laranjeiras do Sul, opera uma cantina no campus da Universidade Federal da Fronteira Sul, e desenvolve outras atividades (culturais, esportivas e gastronmicas) envolvendo

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    eventos de integrao social e cultural, com a explorao de oportunidades econmicas para melhoria de renda. O trabalho conta com um grupo de cinco integrantes mais experientes que coordenam as atividades, sendo dividida a responsabilidade entre as coordenadoras do dia e de higiene e limpeza, as quais do amparo a todo o processo de produo. Essa dinmica de trabalho e coordenao busca propor que todas tenham a mesma responsabilidade em relao ao desempenho do trabalho, com base nas metas estipuladas para cada dia, pois uma dinmica rotativa, buscando que todas passem a ocupar todos os cargos (BERTELA et al., 2012). Em termos de resultado econmico, o grupo vem acumulando saldos positivos e investimentos que possibilitaram a ampliao e a modernizao da cozinha e do panifcio e a aquisio de veculo prprio para comercializao. A participao no grupo resultou em melhoria da situao financeira das mulheres, sendo que elas mesmas administram o dinheiro que recebem, utilizando-o para comprar coisas para casa e para si prprias. A renda proporcionada pelo trabalho na panificadora passou a se somar renda da famlia, o que possibilitou melhores condies para o grupo familiar como um todo. Isso reforado pelo depoimento de uma das participantes: Antes s tinha o dinheiro do leite, hoje tem um dinheiro a mais pra compra as coisas pros filhos e pra gente mesmo (BERTELA et al., 2012). A participao das mulheres no grupo proporcionou portanto, aspectos positivos, tais como: (1) o surgimento de uma cultura de participao no assentamento ampliando o nmero de mulheres envolvidas; (2) melhoria na renda familiar da maioria das integrantes, resultando em valorizao dessas mulheres perante o grupo familiar e a comunidade; (3) aumento da participao das mulheres no grupo, inclusive as jovens, alterando a dinmica das relaes familiares, j que as integrantes do grupo por terem melhorada a realidade financeira, comeam a se sentir no direito e na obrigao de ajudar ou tomar conta da administrao dos recursos financeiros da famlia (Bertela et al., 2012); (4) com a mudana da realidade financeira, as mulheres passaram a participar mais da vida pblica do assentamento, espao antes predominantemente masculino; (5) os resultados positivos obtidos pelo grupo e pela Cooperjunho tm provocado o surgimento de dinmicas similares em outros grupos de agricultores(as) em outros assentamentos da regio; (6) por fim, como ressalta uma das entrevistadas, h uma mudana na sociabilidade dessas trabalhadoras: A gente aprende viver, a conviver com as outras ideias e respeita as ideias dos outros. Mudou tudo, eu consigo ser mais compreensiva, mais companheira, saber o meu limite. 5.2 O caso Cooperunio, Dionsio Cerqueira (SC)

    Localizada no municpio de Dionsio Cerqueira (SC), a Cooperativa de Produo Agropecuria Unio do Oeste (Cooperunio) foi iniciada como um grupo de trabalho coletivo, em junho de 1988. A constituio legal da cooperativa se deu em 1990 envolvendo 41 agricultores assentados. A partir da anlise das condies de declividade e fertilidade das terras do assentamento, Incra e MST verificaram que a melhor opo dos pontos de vista tcnico e econmico seria a constituio de um nico grupo de trabalho coletivo envolvendo todas as famlias assentadas. Entretanto, devido a diferenas culturais e de experincia organizativa, o assentamento foi dividido em duas partes, sendo numa delas assentado um grupo de famlias ligado ao MST, e na outra um grupo formado por 25 famlias oriundas do prprio municpio de Dionsio Cerqueira. As famlias foram selecionadas nas diversas comunidades do municpio sendo a condio coletiva do trabalho imposta como caracterstica inegocivel pelo Incra e pelo

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    MST, tendo em vista as caractersticas da rea. Apesar disso e de algumas das pessoas terem vindo conscientemente para a experincia associativa, muitos desconheciam completamente o que seria o trabalho coletivo. Cerca de 60% das famlias acabaram desistindo e foram sendo gradualmente substitudas por pessoas que estavam em acampamentos ligados ao MST. A Cooperunio, no momento em que foi fundada, envolveu apenas as famlias oriundas do MST. Com o passar do tempo, iniciou-se uma discusso no sentido de unificar os dois grupos sob uma mesma organizao coletiva amparada pela cooperativa. Esse processo levou em torno de trs anos. Houve uma preocupao em evitar medidas apressadas que colocassem em risco as duas experincias at ento exitosas. Em 1992, foi concluda a unificao do trabalho produtivo do setor de apicultura. Depois de intensas reunies e reflexes, no ano de 1994, consolidou-se a unificao do processo produtivo, da terra e dos bens dos grupos. Assim, o assentamento dava origem a uma nica cooperativa (CPA). As dificuldades perduraram algum tempo, mas aos poucos se desenvolveram a produo, a organizao das famlias, a estrutura orgnica, a convivncia coletiva. O nmero de associados da cooperativa em janeiro de 2000 chegou a 109 scios, sendo 135 o nmero de trabalhadores, e a populao total residente no assentamento, de 221 pessoas. Em 2011, a cooperativa contava j com 113 associados alcanando uma relativa estabilizao do quadro social. A Cooperunio se organiza atravs de setores de trabalho e de ncleos de famlias. Os setores envolvem as atividades produtivas: horta, gado leiteiro, avicultura, abatedouro, lavoura, construo, reflorestamento e culturas permanentes. A principal fonte de renda do coletivo originada do abate de frangos, seguido pela lavoura e pela venda de leite. Os ncleos se constituem na esfera poltico-organizativa da cooperativa. O funcionamento da democracia interna bastante vigoroso, havendo grande preocupao no envolvimento das pessoas nas decises.

    Em relao s polticas sociais internas, os associados da cooperativa tm direito a: (1) 15 dias de frias por ano, recebendo nesse perodo o equivalente alimentao; (2) 3 meses de apoio maternidade para as gestantes (correspondente alimentao). Caso no consigam o auxlio maternidade do Instituto Nacional do Seguro Social (INSS), as mes recebem o valor monetrio equivalente mdia do seu adiantamento de sobras no ano anterior; (3) desconto, pelo preo de custo, dos produtos produzidos internamente e consumidos pelos scios, efetuado semestralmente (com exceo do frango, cujo desconto mensal), por ocasio das distribuies de sobras oriundas do acerto das lavouras ou da erva-mate, efetuadas normalmente nos meses de janeiro e julho; (4) em caso de doena prolongada, cada pessoa recebe a mdia de todos os scios durante o tempo que for necessrio. A cooperativa assume tambm os gastos com despesas mdicas, mas no caso da pessoa receber auxlio-doena do INSS, deve repass-lo para o caixa geral da entidade; (5) a partir da idade legal de aposentadoria, o associado passa a receber a subsistncia (alimentao) e 15% da renda. Caso a pessoa repasse o valor recebido do INSS para o caixa da cooperativa, passa a receber 100% da subsistncia e da renda pela cooperativa9; (6) programa interno de educao de adultos (CHRISTOFFOLI, 2000). O avano econmico do coletivo refletiu no bem estar das famlias, que passaram a dispor de geladeira (100% das famlias), mquinas de lavar roupa (praticamente 100%), televiso (80%), antena parablica (40%) e freezer (10%). No 9 Numa primeira anlise, pode parecer desvantajoso para o associado repassar o valor da aposentadoria para a CPA. Mas com a gradual melhoria nos valores monetrios gerados pela CPA, os valores distribudos s famlias tendem a ser maiores que o da aposentadoria.

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    mbito da cooperativa, cada equipe de trabalho tem uma coordenao feita por dois cooperados, no sentido de impulsionar a organizao e a execuo das atividades. As linhas de produo que esto sendo desenvolvidas pela cooperativa tm trs dimenses: (1) linhas estratgicas de produo, que so atividades em que se consegue agregao maior de valor, com produtos destinados ao mercado consumidor; (2) linhas de produo que suprem ou atendem as demandas das linhas de produo estratgicas; (3) linhas de produo ligadas ao funcionamento legal da cooperativa, s funes administrativas, e s funes sociais que atendem uma demanda necessria para a qualidade de vida das famlias que compem a CPA. As atividades consideradas estratgicas so: produo e industrializao de frango de corte, produo de leite in natura, produo de erva-mate em folhas, produo de gros e a piscicultura (Ansolin, 2011). A Cooperunio utiliza duas formas de diviso das sobras, sendo a primeira a de adiantamento mensal para os scios e, a outra, uma diviso anual das sobras. Os valores utilizados para essas divises so aprovados em assembleia geral anual. Em setembro de 2011, o adiantamento mensal das sobras foi estabelecido no valor de R$ 30.000,00, distribudo pelo nmero de horas que os scios aplicaram no trabalho produtivo do respectivo ms. O recurso financeiro para a distribuio das sobras oriundo das atividades desenvolvidas pela cooperativa, principalmente do frigorfico de aves e da produo de leite in natura. As demais produes tambm compem esse valor, mas em menor escala. Tanto no acerto (retirada) mensal como no anual, so descontados os valores que as famlias consumiram ao longo do ano e eventuais despesas pagas pela cooperativa. Para o rateio mensal de sobras, o saldo mdio lquido monetrio das famlias, em 2011, foi de R$ 450,00. Com relao ao acerto anual, a mdia/famlia foi de R$ 950,00 adicionais, no mesmo perodo. Com esses valores, as famlias podem investir em vesturio, mveis, etc. visto que as demais questes de subsistncia j esto contempladas pelo coletivo (ANSOLIN, 2011). As cooperativas de produo coletiva, exemplificadas pela Cooperunio, alm de representarem uma mudana radical na forma de organizao e do trabalho das famlias assentadas, acabam resultando em novas dinmicas socioeconmicas e polticas no entorno onde so implantadas, sendo consideradas as experincias mais avanadas e complexas entre as existentes no meio rural. 5.3 As experincias das redes de microdestilarias no noroeste do RS

    O noroeste do Rio Grande do Sul, onde se localizam os municpios de Porto Xavier e Dezesseis de Novembro, uma regio reconhecida enquanto produtora tradicional de soja. No entanto, os agricultores familiares tm tradio no cultivo da cana-de-acar, em grande parte destinado ao autoconsumo ou comercializao de produtos como melado, acar mascavo, cachaa, por meio de pequenas agroindstrias (RAMBO, 2006; 2011).

    Para compreender a trajetria das microdestilarias, importa ressaltar que a produo de etanol no noroeste gacho tem sua gnese na organizao social da regio, consequncia dos problemas gerados pela Revoluo Verde: movimentos de mobilizao contra o confisco da soja, pela queda da correo monetria, bem como contra a construo de barragens no rio Uruguai. So esses movimentos que do origem Associao dos Sindicatos de Trabalhadores Rurais Fronteirios (ASTRF), um importante ator na mobilizao pela constituio da Cooperativa dos Produtores de Cana de Porto Xavier (Coopercana), outro marco da organizao regional.

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    A trajetria da Coopercana tem incio em 1984, quando constituda a Alpox S/A (Usina de lcool de Porto Xavier), que se valeu dos incentivos do Prolcool. Desde sua fundao, houve divergncias entre scios majoritrios (empresrios) e minoritrios (agricultores familiares), o que levou constituio da Coopercana, formada por agricultores familiares e funcionrios da Alpox. Para que fosse possvel a criao da Coopercana, foi fundamental a atuao das Igrejas (Catlica e Evanglica), do Sindicato de Trabalhadores Rurais (STR), da ASTRF e da Cooperativa de Pequenos Agricultores de Porto Xavier (Coopax), na motivao e na organizao dos agricultores e dos funcionrios da usina em prol da criao da Cooperativa.

    A Coopercana, que hoje possui cerca de 300 associados que cultivam cana em propriedades de 5 a 20 ha, a nica usina de etanol do estado, responsvel pelo atendimento de 4% da demanda de etanol do RS. Ambas, ASTRF e Coopercana, so marcos da organizao local/regional e, junto a outros atores, so parceiras e incentivam os projetos das microdestilarias de Dezesseis de Novembro e Porto Xavier.

    Concomitantemente, a partir da atuao da ASTRF e de entidades parceiras, surgiram discusses em outros municpios da regio acerca da produo do agrocombustvel em pequenas unidades de processamento. Na regio, h atualmente 11 projetos de microdestilarias, dos quais, trs j produzem etanol, envolvendo cerca de 400 famlias entre agricultores e assentados (BERNARDI, 2010).

    Esse conjunto de projetos deu origem ao Frum de Energias Renovveis Misses e Fronteira Noroeste, que rene, alm das microdestilarias, diversas organizaes sindicais, cooperativas e governos municipais. O Frum apoia a elaborao dos projetos tcnicos das microdestilarias, alm de discutir a implementao de modelos e polticas energticas apropriadas regio. Outra organizao ligada s microdestilarias a Unicooper, formada por cooperativas da agricultura familiar, que incentivam a produo, o processamento e a comercializao de produtos diversificados e alternativos ao plantio da soja. Para incentivar a diversificao produtiva, a Unicooper apoia a produo de etanol, sendo que alguns projetos esto ligados diretamente s cooperativas que a integram.

    No caso de Dezesseis de Novembro, foram cinco famlias que se reuniram em torno da produo de etanol. A microdestilaria foi inaugurada em 2007 e passou a produzir em 2008, tendo alcanado a produo de 30.000 litros de etanol. Para a implementao da microdestilaria, porm, tiveram que enfrentar pelo menos trs problemas. O primeiro referia-se disponibilidade de equipamentos de pequeno porte para a agricultura familiar. O segundo dizia respeito aos recursos necessrios para a instalao da microdestilaria. O terceiro relaciona-se comercializao do etanol, que no pode se dar de forma direta com o consumidor, mas deve ser realizada por uma empresa distribuidora, de acordo com normativas da Agncia Nacional do Petrleo (ANP). Este ltimo ainda demanda uma soluo. O primeiro problema comeou a ser solucionado quando, em 2003, uma empresa familiar do municpio de Jaguari/RS se disps a criar os equipamentos e se mantm parceira da microdestilaria. E os recursos financeiros foram obtidos atravs do Programa Nacional de Desenvolvimento Sustentvel dos Territrios Rurais (Pronat) e do Pronaf Agroindstria, acessados por intermdio da Cresol Porto Xavier, cooperativa de crdito, qual os agricultores se associaram.

    J a iniciativa para a constituio da Associao Agrcola So Carlos (Aasca), no municpio de Porto Xavier, est ligada Coopercana. Lideranas dessa cooperativa, que tambm atuavam na Coopax e no STR, iniciaram as discusses em prol da constituio de uma nova associao, devido escassez de oportunidades para os jovens do campo, em especial, para os filhos de associados da Coopercana. Os interessados do

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    incio, em 2003, construo da infraestrutura via recursos do Pronaf Agroindstria. A agroindstria inicia a produo dos derivados de cana (melado, melao, acar mascavo, cachaa), orgnica e sem utilizao de fogo nos canaviais.

    Para ampliar as alternativas de renda e diversificao da produo, a Aasca comea a produzir panifcios (pes, bolachas, massa caseira) e picles, incentivada pelo Programa de Aquisio de Alimentos (PAA) e Programa Nacional de Alimentao Escolar (PNAE). Para diversificar, em 2007, a Associao acessa recursos do Pronat e instala uma torre de destilao de etanol, ainda sem produo, alm da aquisio de outros equipamentos para fomentar a produo de panifcios, schmier e cachaa.

    Em 2009, atravs do Pronaf Mais Alimentos, adquirido um micro trator, destinado inicialmente ao manejo da horta para o fomento da produo de picles, mas que tambm interessou aos associados, com a inteno de adapt-lo ao corte da cana, uma vez que h dificuldades na obteno de mo de obra. Em 2010, foi inaugurado um quiosque projeto liderado pela Coopax junto Aasca. O objetivo era criar mais um ponto de venda para os produtos oriundos da agricultura familiar do municpio. 5.4 O Pacto Fonte Nova, Crissiumal (RS)

    O Pacto Fonte Nova surge como um programa municipal de desenvolvimento agroindustrial, em 1998, no municpio de Crissiumal, a partir de um processo de discusso envolvendo lideranas e instituies/organizaes locais, proposto e coordenado pelo poder pblico municipal (RAMBO, 2011).

    O Pacto Fonte Nova representou uma proposta de concertao entre atores locais reunindo: (a) agricultores que produzem novos produtos; (b) comerciantes que disponibilizam os produtos em seus estabelecimentos; (c) consumidores, que se comprometem a dar preferncia ao consumo dos produtos fabricados pelos agricultores do municpio; e (d) poder pblico municipal.

    Inicialmente props-se desencadear atividades que viabilizassem a agricultura familiar. A iniciativa teve por preocupao gerar melhorias para o pequeno agricultor por meio da agregao de renda, para evitar xodo rural e migraes para outras regies e, para o apoio na constituio de agroindstrias familiares.

    As primeiras aes no Pacto consistiram em fortalecer os laos entre as organizaes e as instituies. Alm do Poder Executivo, as principais organizaes e instituies que participaram desse processo foram Emater, Sindicato dos Trabalhadores Rurais (STR), Sindicato Rural, Cooperativa de Tcnicos da Regio Noroeste do Estado do Rio Grande do Sul (Unitec), Cooperativa Mista Tritcola de Campo Novo Ltda. (Cotricampo), Cooperativa Tritcola Mista Alto Uruguai Ltda. (Cotrimaio), Sindicato dos Empregadores Rurais, Associao de Desenvolvimento Comunitrio de Crissiumal (Adesco), Conselho Municipal de Desenvolvimento Econmico e Social.

    A partir da construo dos primeiros consensos, uma pesquisa de mercado foi realizada por alunos da uma escola estadual em parceria com a Emater. A pesquisa apontou que muitos produtos consumidos localmente eram provenientes de outras regies. Isso indicava potencialidades no exploradas para circuitos curtos de comercializao. Assim, realizou-se um seminrio, em 1998, no qual se discutiu a organizao das produes agropecuria e agroindustrial. No II Seminrio realizado em 1999, os comerciantes comprometeram-se a dar espao em seus estabelecimentos aos produtos locais.

    Aps a concertao entre produtores e comerciantes, era necessria a articulao com os consumidores. Para isso, alm de divulgar a ideia de pacto entre produtores, comerciantes e consumidores, criou-se o Sistema de Inspeo Municipal (SIM) e a Central de Apoio. O SIM responsvel por liberar o Alvar de Inspeo

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    Municipal e o Selo de Qualidade Fonte Nova. J a Central de Apoio tm a funo de coordenar e integrar as reas do programa, alm de apoiar os produtores, desenvolvendo servios de melhorias da imagem dos produtos, marketing, auxlio na participao em feiras, na busca de novos mercados.

    Em 1998 e 1999, aderiram ao Pacto catorze agroindstrias e atualmente o Pacto Fonte Nova envolve 31 empreendimentos. Em 2011, registrou-se mais de 210 empregos diretos e industrializao de cerca de cem produtos. O faturamento bruto anual do ano de 2002 foi de mais de R$1,5 milho de reais (PACTO FONTE NOVA, 2011).

    Compem o programa agroindstrias produtoras de derivados de mel, leite, carne, cana-de-acar, mandioca, frutas, alm de conservas, bolachas, pes, cucas e tortas, erva-mate, hortigranjeiros e fruticultura, vassouras, sabo, artesanato, tijolos. Um dos ramos da agroindstria que mais se destaca o voltado ao processamento da cana-de-acar, podendo-se citar o caso da cachaa orgnica exportada para a Alemanha e Estados Unidos.

    Em 2002, a partir do Fonte Nova, cria-se a Cooperativa das Atividades Agroindustriais e Artesanais do Pacto Fonte Nova (Cooper Fonte Nova). A Cooperativa rene em seu quadro social, tanto pessoas fsicas quanto jurdicas: 26 agroindstrias e cerca de 160 pessoas. Outro resultado do Pacto a criao do Circuito Turstico Mundo Colonial, iniciado em 2005, para organizar as excurses (tursticas, acadmicas, de negcios) que visitam o municpio. Hoje, Crissiumal conhecida como Terra das Agroindstrias, tendo o Fonte Nova recebido cerca de 450 visitas de diferentes estados brasileiros (PACTO FONTE NOVA, 2011).

    Em funo da rota turstica, foi criado ainda o Comit de Turismo Rural que atua como um conselho acerca das decises sobre essa atividade. Dentro do Comit surgiu a discusso que culminou na construo, em 2008, da Casa do Arteso, ponto de vendas do artesanato para quinze artesos associados a Cooper Fonte Nova.

    Passa pela Cooperativa ainda a gesto da Incubadora Empresarial de Crissiumal, criada dentro do Programa do Governo do Estado Desenvolver RS. Atualmente, as agroindstrias atuam de forma mais independente, em geral, buscando acessar polticas pblicas individualmente, de acordo com suas demandas. H uma mobilizao maior em torno do PAA e do PNAE, com aes que renem cerca de quarenta famlias associadas.

    Assim sendo, a partir do que menciona Wilkinson (2008), observa-se que em Crissiumal, ocorreu a reduo da atuao no mercado de commodities em especial a soja em prol a um conjunto de novos mercados especialidades (derivados de cana, embutidos, panifcios), orgnicos (derivados de cana orgnicos), artesanais (produtos da Casa do Arteso, vassouras, erva-mate), institucionais (produtos destinados ao PAA e ao PNAE), sendo que a experincia como um todo tem a perspectiva de um mercado solidrio. Evidencia-se nesses mercados o papel das polticas pblicas no sentido de incentivar a diversificao de atividades. 6. CONSIDERAES FINAIS

    O processo de desagregao social e destruio das comunidades camponesas no meio rural brasileiro desencadeado pela expanso do modo capitalista de produo no campo, especialmente atravs da adoo do modelo da Revoluo Verde e mais recentemente do agronegcio, tem trazido desafios importantes para a sobrevivncia e a evoluo das condies de vida sob a forma de produo familiar. Confrontadas pelo crescente estreitamento de suas margens econmicas e pelas mudanas na expectativa de vida (abandono do meio rural pela juventude, especialmente as mulheres) as

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    unidades de produo e de vida camponesas buscam alternativas de sobrevivncia, sendo uma delas a constituio de empreendimentos da economia solidria.

    Este trabalho buscou traar uma viso panormica dessa situao, ao passo que demonstrou, por meio de relatos de casos, a possibilidade de emergncia de novos padres de sociabilidade que congreguem o campesinato sobrante, numa perspectiva de revitalizao de projetos de vida e trabalho no meio rural, em condies dignas de vida, compatveis com os desafios da produo de alimentos, fibras e energia para as populaes brasileira e mundial, ao mesmo tempo em que promove a preservao cultural e ambiental.

    Considera-se que as experincias apresentadas, apesar de inmeras dificuldades e desafios, evidenciam estilos de agricultura nos quais predomina a capacidade de adaptao (ELLIS, 2000) da agricultura familiar e camponesa frente ao squeeze da agricultura (PLOEG, 2008). Essas experincias pretendem um distanciamento e uma desconstruo de toda limitao e controle impostos pelo projeto modernizador. No entanto, polticas pblicas fortalecidas e de novo tipo mostram-se necessrias para fomentar e dar conta da diversidade que marca a agricultura familiar e camponesa no Brasil.

    Apesar de os estudos de caso expressarem a contribuio das iniciativas coletivas para a melhoria da qualidade de vida dos atores envolvidos, no isso que expressam os dados secundrios, fruto talvez de um vis individualista nos levantamentos realizados at o presente pelo poder pblico. Analisando as informaes do Censo Agropecurio, observarmos que dos 849.693 estabelecimentos de agricultura familiar na regio Sul, apenas 17% contam com algum tipo de beneficiamento da produo, obtendo valor agregado adicional. Dentre os 142.902 estabelecimentos de agricultura familiar com instalao de beneficiamento, visualiza-se que menos de um por cento correspondem a beneficiamento comunitrio (624 estabelecimentos). Por outro lado, os dados da Senaes, mais direcionados a captar a dinmica da economia solidria, demonstram haver na regio Sul 3.583 empreendimentos de economia solidria, envolvendo mais de meio milho de pessoas associadas ou beneficirias, abrangendo tanto o espao urbano quanto rural.

    Considerando os resultados positivos apontados pelos empreendimentos agroindustriais coletivos, evidenciados, sobretudo, pelos estudos de caso, alm da magnitude dos empreendimentos de economia solidria na regio Sul, tal como expressa o Atlas da Senaes e, por outro lado, a dificuldade em apreender essa realidade por meio dos dados do Censo Agropecurio, refora-se a necessidade de mais pesquisas sobre essa temtica, seja para apreender a diversidade de experincias especficas, apontando potencialidades e limitaes, seja metodologias capazes de captar essas realidades e express-las em dados secundrios que possam subsidiar a formulao de polticas pblicas e estratgias organizativas adequadas a essa realidade emergente. REFERNCIAS ANSOLIN, Tatiane. Ampliao da produo da piscicultura na cooperativa de Produo Unio do Oeste, Dionsio Cerqueira, SC. 2011. TCC, IFPR, Rio Bonito do Iguau/Curitiba. ANSELIN, Luc. Local indicators of spatial association-LISA. Geographical Analysis, v. 27, n. 2, p. 93-115, 1995. BERNARDI, Cecilia. Relatrio final de consultoria. 2010. Manuscrito.

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    Submisso:Julhode2013

    Aprovao:Novembrode2013