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EXPERIÊNCIAS INOVADORAS NA AGRICULTURA FAMILIAR BRASILEIRA: ATORES, PRÁTICAS E PROCESSOS PARA O DESENVOLVIMENTO RURAL COLECCIÓN Buenas Prácticas en Agricultura Familiar

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EXPERIÊNCIAS INOVADORASNA AGRICULTURA FAMILIAR BRASILEIRA:

ATORES, PRÁTICAS E PROCESSOSPARA O DESENVOLVIMENTO RURAL

COLECCIÓNBuenas Prácticas

en Agricultura Familiar

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EXPERIÊNCIAS INOVADORASNA AGRICULTURA FAMILIAR BRASILEIRA:

ATORES, PRÁTICAS E PROCESSOSPARA O DESENVOLVIMENTO RURAL

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© Universidad CLAEH, Programa Fidamercosur CLAEH

© 2017 Grupo de Estudos e Pesquisas Agricultura Familiar e Desenvolvimento Rural,

Universidade Federal do Rio Grande do Sul (GEPAD-UFRGS)

Programa Fidamercosur CLAEH

Edificio MercosurLuis Piera 1992, piso 2Montevideo, UruguayTel./Fax: (598) 2413 6411 / 2413 [email protected]

www.fidamercosur.org

Grupo de Estudos e Pesquisas Agricultura Familiar e Desenvolvimento Rural, Universidade Federal do Rio Grande do Sul (GEPAD-UFRGS)

Av. João Pessoa, 31CEP 90040-000Porto Alegre - RS, BrasilTelefone: (51) 3308-3281Fax: (51) 3308-3458http://www.ufrgs.br/agriculturafamiliar/home.php

Organización y revisión de contenidosGEPAD-UFRGS

Edición editorialDepartamento de Publicaciones del CLAEH

Diseño de portada, maquetación

Eliana Gonnet

ISBN colección 978-9974-614-73-4ISBN volumen 978-9974-614-74-1

Edición digital

Colección Buenas Prácticas en Agricultura Familiar, n.º 2

Las organizaciones editoras no asumen responsabilidad ni comparten necesariamente las opiniones expresadas por los autores de los artículos firmados.

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Prefácio ........................................................................................................................... 8

Introdução ..................................................................................................................... 10

Parte I Construção social de mercados ................................................................. 14

CAPÍTULO 1 A construção de mercados pela pecuária familiar no sul do Brasil: o caso do território Alto Camaquã ................................................................................. 15

Da criação de ovelhas para lã à produção de cordeiros de alto padrão ............................ 16

A distinção social ........................................................................................................... 16

O papel das políticas públicas ......................................................................................... 17

Lições e ensinamentos ................................................................................................... 18

CAPÍTULO 2Agregação de valor e criação de mercados para a pecuária familiar da região centro sul do Rio Grande do Sul ..................................................................... 19

Aspectos ambientais: o papel da pecuária familiar na conservação do Pampa ................. 20

Fluxos e conexões a partir do foco de trabalho em pecuária familiar ............................... 20

A Associação, a Marca e o Remate ................................................................................. 21

Unidades de experimentação participativa (UEP) ............................................................. 21

A Feira de Ovinos, o Concurso de Cordeiros, o Jantar e o Repasse de Carneiros ............. 22

Considerações sobre um trabalho em evolução .............................................................. 23

CAPÍTULO 3 Mercados na pecuária familiar no sul do Brasil: O Programa Nacional de AlimentaçãoEscolar como dispositivo para a construção de novas formas de comercialização ............ 24

Pecuária familiar no sul do Brasil .................................................................................... 25

O cordeiro Cacimbinhas ................................................................................................. 26

A construção de autonomia com a emergência de novas formas de mercado ................ 28

Parte II Diversificação produtiva e agregação de valor .................................... 29

CAPÍTULO 4 Diversificação da produção e políticas públicas ............................................................... 30

A Família Sperandio e as estratégias de diversificação ..................................................... 31

O primeiro passo para a diversificação produtiva: consciência da necessidade de maior autonomia e renda ............................................... 31

Segundo passo da diversificação: apoio institucional no acesso a canais de comercialização .............................................. 32

Experiência transformada em lição ................................................................................. 32

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SUMARIO

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CAPÍTULO 5 Caminhos da diversificação produtiva – o exemplo que vem da fumicultura no sul do Brasil .............................................................................................................. 34

Cadeia produtiva do tabaco ........................................................................................... 35

Pressões externas: Convenção-Quadro e o papel das políticas públicas ........................... 35

Experiência 1: Produção agroecológica e sementes crioulas ............................................ 35

Experiência 2: Escolas agrícolas e juventude no campo ................................................... 36

Experiência 3: Mercados institucionais e autonomia produtiva ........................................ 37

O que podemos aprender? ............................................................................................ 37

CAPÍTULO 6Substituindo a produção de tabaco por cultivos alimentares: a exitosa experiência de uma cooperativa de agricultores familiares com os mercados institucionais no sul do Brasil ....38

As pesquisas sobre produção e consumo do tabaco ....................................................... 39

A experiência em Porto Vera Cruz .................................................................................. 39

A grande mudança: o acesso aos mercados institucionais .............................................. 40

Os frutos colhidos pela COOPOVEC ............................................................................... 40

Parte III Agroecologia e desenvolvimento rural sustentável ........................... 42

CAPÍTULO 7Frutas nativas do Rio Grande do Sul: possibilidade de geração de renda conciliada à conservação da biodiversidade ............... 43

Possibilidade de geração de renda conciliada à conservação da biodiversidade ............... 43

O começo ...................................................................................................................... 44

O nascimento do empreendimento “Encontro de Sabores” ............................................ 45

Marca criada para o empreendimento “Encontro de Sabores”, em 2001 ....................... 45

Um avanço .................................................................................................................... 45

Papel das políticas públicas ............................................................................................ 46

A avaliação dos agricultores ........................................................................................... 46

A prática e o aprendizado .............................................................................................. 47

CAPÍTULO 8 Sistemas agroflorestais como estratégia de reprodução da agricultura familiar ............... 48

O bioma floresta atlântica e a legislação ambiental ............................................................ 49

A produção de banana no litoral norte ............................................................................... 49

Os sistemas agroflorestais (SAF) .......................................................................................... 50

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CAPÍTULO 9 Projeto Sustentare: trabalhando para e com os agricultores do município de Sobral, Ceará, em busca do desenvolvimento sustentável .......................................................... 52

Projeto Sustentare: resultados da primeira fase ............................................................... 53

Uma nova agenda para o projeto ................................................................................... 54

Promoção da autonomia: o caso do Chiquinho .............................................................. 55

Comunicação e fortalecimento da autonomia como diferenciais .................................... 56

CAPÍTULO 10 A agroindustrialização familiar ecológica como estratégia de melhoria da qualidade de vida e da renda nos espaços rurais ........................................................ 57

A tradição repassada de mão em mão... ........................................................................ 58

Transformando alimentos, transformando vidas... .......................................................... 59

O que estes dois casos de sucesso nos ensinam para o desenvolvimento rural? .............. 60

Parte IV Multifuncionalidade do espaço rural e desenvolvimento territorial .. 61

CAPÍTULO 11 Agroturismo como estratégia de fortalecimento da agricultura familiar: o caso do roteio agroturístico “Acolhida na Colônia” em Santa Rosa de Lima, Santa Catarina ...... 62

As primeiras iniciativas: a agricultura orgânica como principal atrativo turístico .............. 63

Os esforços iniciais para o agroturismo: do passado ao futuro ........................................ 64

Organização local e as políticas públicas ......................................................................... 64

Aprendizados e perspectivas para as futuras gerações .................................................... 64

CAPÍTULO 12 Estratégias de inovação na Cooperativa dos Produtores Ecologistas de Garibaldi (COOPEG) .................................................................................................. 66

O contexto institucional para agroindústrias familiares no Rio Grande do Sul .................. 67

História de inovações, desafios e resultados ................................................................... 68

CAPÍTULO 13 Vales da Uva Goethe: do vinho comum ao território singular .......................................... 71

O Brasil vitivinícola ......................................................................................................... 71

Políticas de reconversão produtiva .................................................................................. 72

O que fazer com as uvas comuns? ................................................................................. 72

Os Vales da Uva Goethe ................................................................................................. 73

Qualidade e território ..................................................................................................... 74

Indicação de procedência ............................................................................................... 74

Desenvolvimento territorial ............................................................................................ 75

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Parte V Reconectando produtores e consumidores .......................................... 76

CAPÍTULO 14 Parcerias saudáveis entre agricultores e consumidores: o caso dos grupos de consumo responsável ................................................................................................ 77

Os grupos de consumo responsável no Brasil ................................................................. 78

MICC, Associação de Integração Campo-Cidade ............................................................ 79

Grupo de Integração Agroecológica (GIA) ...................................................................... 80

Benefícios gerados ......................................................................................................... 80

CAPÍTULO 15 Muito além de ingredientes: A contribuição da gastronomia para o fortalecimento da agricultura familiar – o caso da relação entre chefs, agricultores e consumidores do Instituto Maniva, no Rio de Janeiro ..................................................... 81

A experiência: o caso do Instituto Maniva ...................................................................... 82

Uma receita de sucesso: a parceria entre Instituto Maniva e os agricultores familiares ..... 83

O olhar dos agricultores frente ao circuito gastronômico ................................................ 84

A gastronomia como estratégia de valorização para a agricultura familiar ...................... 84

CAPÍTULO 16 A emergência da diferenciação agroalimentar no Pampa Gaúcho: reconectando agricultores e consumidores ..................................................................... 86

De “chacareiros” a “hortaleiros” ................................................................................... 87

Dispositivos de construção de novos mercados ............................................................... 88

A construção social de um sistema participativo de certificação de produtos .................. 88

Ensinamentos e desafios ................................................................................................ 89

Sobre os autores ............................................................................................................ 90

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É com grande prazer que o Programa Fidamer-cosul CLAEH participa, com a Universidade Fede-ral do Rio Grande do Sul e o GEPAD, da produção e edição do presente livro.

Nesta obra, reúne-se uma série de experiências de sucesso realizadas por mulheres e homens do meio rural, produtores familiares arraigados nos lugares em que vivem, no Sul profundo do Brasil.

Com suas conquistas, eles ajudam a construir o tecido social e econômico que constitui a agricultu-ra familiar em sua dimensão socioeconômica, que dá coerência e consistência aos equilíbrios territo-riais de um país. Do ponto de vista antropológico, a agricultura familiar reafirma a vocação da popu-lação rural de viver em equilíbrio virtuoso com seu entorno, com a natureza, ao mesmo tempo em que contribui para a segurança alimentar e nutri-cional dos países, e melhora as condições de vida e as oportunidades de emprego no meio rural.

Os sistemas produtivos familiares oferecem a potencialidade de uma administração apropriada dos recursos naturais e de resistir e se adaptar aos efeitos derivados da mudança climática.

A agricultura familiar não é tudo em matéria de desenvolvimento de territórios e comunidades rurais, mas é uma parte muito importante disso.

Se há algo que aprendemos nos últimos 15 anos na América Latina – e, especialmente, na sub-região do Mercosul ampliado – é que se com-prova, com evidência empírica concreta e visível, que a mudança de paradigma que se gestou nesta década e meia é real. A agricultura familiar não é a causa da pobreza rural, senão que, pelo contrá-rio, é uma parte muito poderosa da sua solução.

Essa certeza se baseia em realidades tangíveis como as apresentadas neste livro, que são uma amostra muito pequena de todas as que, diaria-mente, acontecem no Brasil e nos demais países da região.

A agricultura familiar precisa de políticas públi-cas bem desenvolvidas, e ainda melhor executa-das, para poder expressar todas as suas potencia-lidades no plano produtivo, comercial, econômico e social. Mas não depende delas, porque essa categoria socioeconômica de uma parte da popu-lação rural tem capacidades construídas, investi-mentos realizados e um apego cultural e histórico ao seu território.

Oferece pontos fortes e padece pontos fracos. Os pontos fortes permitem o desempenho nos mercados de alimentos e nas estratégias de se-gurança alimentar e nutricional. Os pontos fracos geram riscos e incertezas em relação ao acesso a fatores de produção chaves, como a terra e a água. No acesso a mercados como o financeiro, o tecnológico, o de insumos etc., é onde as políti-cas públicas devem atuar, nivelando capacidades e dando acesso a novas oportunidades.

O Programa Fidamercosul CLAEH ‹www.fida-mercosur.org› tem como principal objetivo facilitar e potencializar um diálogo político de qualidade entre as organizações da sociedade civil, repre-sentativas da agricultura familiar, e as instituições de governo responsáveis pela política pública nes-se setor. Isso vem implicando promover espaços e plataformas para o diálogo e dar-lhes consistência e continuidade, construir capacidades nos líderes rurais e visibilidade pública e política para a agri-cultura familiar. A visibilidade não pode acontecer de forma abstrata, e é muito importante retirar do

PREFÁCIO

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anonimato centenas ou milhares de agricultores familiares que têm empreendimentos de sucesso, como os que são apresentados nesta publicação.

Reunimos e difundimos de forma sistemática, ao longo de cinco anos, mais de uma centena de experiências como as que podem ser vistas neste livro. São uma amostra insignificante, em compa-ração com os quase seis milhões de agricultores familiares registrados pela Reaf na sub-região do Mercosul ampliado. Mas indicam uma realidade que pretende chamar a atenção de líderes políti-cos, sociais e econômicos nesses países e mostrar, com rigor, que há pessoas – mulheres e homens –

que conseguem encontrar a maneira de aproveitar, da melhor forma possível, oportunidades de mer-cado e políticas públicas para gerar renda, me-lhorar diariamente sua qualidade de vida e ajudar seus semelhantes no meio rural.

Nossa expectativa é que a leitura deste material e o conhecimento das experiências aqui mostra-das despertem o interesse acadêmico e também político. Interesse que leve ao aprofundamento em temas relacionados à agricultura familiar e à sua contribuição para o desenvolvimento com equidade em territórios rurais, em particular, e na economia dos países, em termos gerais.

Álvaro Ramos Unidade de Coordenação Regional

Programa Fidamercosul CLAEH

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Experiências de sucesso na agricultura familiar estão sendo construídas e realizadas neste mo-mento em todo o território brasileiro. Malgrado seu enorme impacto positivo no local ou na re-gião em que transcorrem, tais experiências muitas vezes ficam confinadas a essa escala, recebendo menos reconhecimento e valorização do que de-veriam. Mas o mais grave e até lamentável é que essa relativa invisibilidade acaba não permitindo que se possa aprender com esses casos e usar sua expertise e trajetória para entender como proces-sos de desenvolvimento rural foram criados.

Este livro tem o propósito de dar visibilidade e colocar em destaque essas experiências. Mas nem de longe temos a intenção de que elas sir-vam como modelos que possam ser replicáveis e/ou usados como padrões a serem seguidos ou simplesmente imitados. Estamos convencidos de que essas experiências podem servir como lições e oferecer aprendizagens sobre as ações e o pro-tagonismo de atores sociais que lograram inovar na busca por alternativas em meio ao contexto de confluências de crises globais de ordem eco-nômica, ambiental, energética e alimentar. Consi-deramos que a multiplicidade de vivências alcan-çadas por meio da coesão entre diferentes atores, imersos em processos e em práticas que visam ao desenvolvimento rural confluem em experiências singulares, refletindo trajetórias que promovem transformações sobre a realidade e resultam na constituição de novos conhecimentos.

Assim, As experiências aqui descritas evi-denciam a capacidade dos atores sociais em cons-truir respostas a condições nas quais os meios para a promoção do desenvolvimento rural são, por vezes, restritos ou inexistentes. A partir de novos olhares da sociologia do desenvolvimento, procuramos explorar o modo como os agriculto-

res e suas organizações sociais reagem a situações adversas e encontram espaços para construir no-vas estratégias de reprodução social, inovando no uso de recursos materiais (tecnologias, paisagem, sementes etc) e simbólicos (saber-fazer, tradições, costumes etc). Ao mesmo tempo, essas experiên-cias revelam a teia de relações sociais que susten-tam os processos de inovação. Para além dos agri-cultores e suas organizações (grupos, associações, cooperativas), as novas estratégias se amparam no suporte de extensionistas rurais, pesquisado-res, gestores públicos, técnicos, e vários outros mediadores e atores.

É crescente a demanda por identificar e com-preender a participação desses diferentes atores nas ações de desenvolvimento rural. Este interesse reflete o novo momento e a nova forma com que diferentes organizações estão atuando, buscando valorizar o conhecimento dos agricultores e de-mais agentes que trabalham e produzem saberes cotidianamente. Trata-se de um exercício que tem sido chamado de “encontro de saberes”, que faz com que pesquisadores, formuladores de políti-cas, extensionistas e agricultores partilhem seus conhecimentos e busquem novos aprendizados a partir da troca de experiências. Muitos dos casos descritos neste livro mostram como esse processo ocorreu e quem foram os seus promotores.

O objetivo central deste livro é, portanto, divul-gar experiências bem sucedidas de inovação para o desenvolvimento rural. Apesar de uma miríade de casos e atores, o que há em comum entre os capítulos é o fato de que todos focalizam o uni-verso social da agricultura familiar. Não quer dizer que não haja interfaces das formas familiares de trabalho e organização da produção com outras, tais como a forma assalariada, a empresarial ou a cooperativa. Mas o enfoque do livro recai so-

INTRODUÇÃO

Alessandra MattePaulo André Niederle

Sergio Schneider

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bre as práticas dos agricultores familiares, pesca-dores, extrativistas, pecuaristas e pequenos em-preendedores rurais que realizam suas atividades econômico-produtivas sob a égide do trabalho e da gestão familiar.

Apesar de escrito por pesquisadores, este livro não tem uma pretensão eminentemente acadê-mica. A rigor, ele foi escrito para dialogar com o público em geral, mas focalizando gestores pú-blicos, extensionistas rurais e agentes de desen-volvimento rural. Esperamos que esses leitores possam identificar nessas experiências algumas chaves para desencadear os processos e as prá-ticas que levam à melhoria das condições de vida dos inúmeros grupos sociais que habitam o meio rural brasileiro e quiçá latinoamericano.

A elaboração desse livro é fruto de uma par-ceria entre o Programa Fidamercosul CLAEH) e o Grupo de Estudos em Agricultura Familiar e De-senvolvimento Rural (GEPAD), da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), no Brasil. O GEPAD é um grupo que vem desenvolvendo pesquisas interdisciplinares sobre os processos de desenvolvimento rural em âmbito nacional e in-ternacional. Essas pesquisas focalizam as dinâmi-cas sociais, econômicas, culturais e políticas das formas familiares de produção, em especial da agricultura familiar.

Em decorrência dessa parceria, nos dois úl-timos anos foram produzidos relatos de expe-riências de sucesso entre formas familiares de produção para difusão on line na Plataforma Fi-damercosul. Foi a partir da ampla repercussão e do propósito de reunir em um único documento o conjunto de experiências que este livro tomou forma. Portanto, Experiências inovadoras na agricultura familiar brasileira: atores, práticas e processos para o desenvolvimento rural é uma obra que reúne relatos de experiências que ti-veram resultados positivos para os envolvidos e que repercutiram no contexto em que estão in-seridas, sendo possível conhecer parte das práti-cas e dos processos que envolveram cada caso. Ao todo são apresentados dezesseis relatos de experiências, distribuídos em cinco partes.

Na primeira parte, intitulada Construção so-cial dos mercados, são apresentados três capítu-los que versam sobre experiências de construção de mercados na pecuária familiar. Assinado por Alessandra Matte, o primeiro capítulo apresenta a experiência da construção de mercado para a carne ovina no Território Alto Camaquã, no es-tado do Rio Grande do Sul, Brasil. Essa carne de-riva da produção de pecuaristas familiares, mas a viabilização da comercialização conta com a ação coletiva entre produtores e instituições de ensino e pesquisa. A experiência ilustra a impor-tância da ação coletiva, da constituição de atri-butos diferenciais de qualidade e da valorização da produção local.

O segundo capítulo, de autoria de Marcelo Porto Nicola e Flávia Charão Marques, aborda a constituição de uma rede de atores entre pecua-ristas familiares, prefeituras municipais e exten-sionistas rurais. A atuação conjunta desses atores possibilitou a criação da Associação Regional de Ovinocultores, da Marca Coletiva, e do Remate Regional da Pecuária Familiar, no estado do Rio Grande do Sul. Entre os principais resultados al-cançados estão a agregação de valor ao produto e a criação de novos mercados.

O terceiro capítulo, também de autoria de Alessandra Matte, apresenta a experiência em que um grupo de produtores familiares constitui um núcleo e, por meio desse, obtém a conces-são e administração do frigorífico municipal. Essa organização inicial, aliada à criação do Programa Nacional de Alimentação Escolar (PNAE), oportu-niza a comercialização de carne ovina e bovina para o abastecimento da alimentação escolar. O caso sistematiza o percurso para a criação de um mercado em que o controle de toda a cadeia é realizado pelos próprios pecuaristas familiares.

A segunda parte do livro reúne três capítulos vinculados à temática da Diversificação produ-tiva e agregação de valor. Assim, tomando por base a realidade do estado brasileiro do Espírito Santo, Celia Jaqueline Sanz Rodriguez e Carlos Alberto Sangali de Matos apresentam a expe-riência de uma família de agricultores familiares

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que optou pela diversificação produtiva, adicio-nando o cultivo de orquídeas à produção de café e uva. Os autores debatem a importância do en-volvimento de uma rede de instituições para a viabilidade dessa estratégia.

Para o quinto capítulo, Tanise Dias Freitas e Sergio Schneider nos trazem a experiência da diversificação produtiva em meio à realidade de agricultores familiares que cultivam tabaco. Entre as estratégias ilustradas estão a inserção da pro-dução ecológica e de sementes crioulas, ações em escolas agrícolas com viés para a juventude rural, assim como a entrada em mercados institucionais. O caso apresenta um panorama da realidade dos fumicultores e as estratégias de diversificação em curso no estado do Rio Grande do Sul.

Encerrando a segunda parte, Vanderlei Franck Thies e Marcelo Antonio Conterato apresentam a experiência de agricultores familiares que substi-tuem o cultivo de tabaco por cultivos alimentares. O principal fator de mudança está relacionado à criação dos programas institucionais de com-pra de alimentos, que conduziu a Cooperativa dos Agricultores Porto Vera Cruz (COOPOVEC) a orientar suas ações para esse novo mercado. O relato apresenta importantes elementos sobre cooperação e mudanças produtivas.

A terceira parte do livro compila quatro capí-tulos imersos nos debates em torno da Agroeco-logia e desenvolvimento rural sustentável. Dan-do início a esse bloco, Ana Lúcia Oliveira da Silva e Leonardo Xavier da Silva relatam a experiência do mercado de produtos derivados de frutas na-tivas e a consequente criação do empreendimen-to Encontro de Sabores. Entre os benefícios des-sa atividade está a geração de renda conciliada à conservação da biodiversidade. A iniciativa se consolida ao realizar a conexão entre os diferen-tes agentes da cadeia.

O oitavo capítulo, redigido por Carolina Braz de Castilho e Silva e Daniela Garcez Wives, tem como cerne a implantação de sistemas agroflorestais para agricultores familiares e sua ação enquanto estra-

tégia de reprodução social. A experiência mostra como a produção ecológica de banana tornou-se estratégia de autonomia e melhoria na qualidade de vida dos agricultores familiares. O texto contri-bui com informações sobre os processos associati-vos e organizativos para a viabilidade de um mer-cado para produtos agroecológicos.

Adriana Brandão Nascimento Machado e Jor-ge Luis de Sales Farias assinam o nono capítulo, no qual apresentam a realidade da agricultura familiar do estado do Ceará. A experiência des-taca resultados do Projeto Sustentare, que bus-ca promover o desenvolvimento sustentável em comunidades rurais. O projeto é desenvolvido pela Embrapa e contou com ações de capacita-ção sobre manejo dos recursos naturais e ações de promoção de autonomia dos agricultores. En-tre as contribuições da experiência estão o uso de ferramentas participativas como instrumento de promoção de autonomia.

Com enfoque na agroindustrialização fami-liar ecológica, Marcio Gazolla e Carolina Brignoni apresentam resultados de duas experiências de agroindústrias familiares no sul do Brasil. Entre os potenciais desse processo para agricultores fami-liares está o acesso a novos mercados, a agrega-ção de valor e o consequente aumento de renda. O capítulo contribui ao apresentar os benefícios diretos e indiretos que o processo de agroindu-trialização pode alcançar na agricultura familiar.

A quarta parte desse livro, intitulada Multifun-cionalidade do espaço rural e desenvolvimento terri-torial, compreende a apresentação de três experiên-cias. Abrindo esse bloco, com o capítulo 11, Mayara Roberta Martins e Carlise Schneider Rudnicki tra-zem a experiência de agroturismo no estado de Santa Catarina. O texto apresenta etapas estrutu-rantes para o sucesso desses empreendimentos, sobretudo no que se refere ao levantamento de atrativos turísticos disponíveis no contexto de im-plementação. A associação de práticas socioam-bientais, de aspectos culturais e do saber-fazer da agricultura familiar estão entre as contribuições da experiência.

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No capítulo seguinte, Ana Paula Matei e Ana Lúcia Oliveira da Silva oferecem informações so-bre as estratégias de inovação em ação coope-rativa de produtores familiares. Os desafios e as conquistas no processo de inclusão de inovações estão entre os elementos que ilustram o caminho percorrido pela Cooperativa dos Produtores Eco-logistas de Garibaldi (COOPEG). Políticas públicas de incentivo à inovação, aliadas à promoção do envolvimento cooperativo, estão entre os resulta-dos de sucesso dessa experiência.

Fechando esse bloco, Paulo Niederle relata o processo de mudança nas interpretações de quali-dade atribuídas à produção de uvas e a seu princi-pal produto final, o vinho. A partir da ação coletiva de produtores, foi estabelecida a demarcação de um território com atributos singulares na produção de vinhos, criando os Vales da Uva Goethe em San-ta Catarina. Em particular, essa experiência apre-senta resultados de um processo de valorização da produção local que tem representado um impor-tante combustível ao desenvolvimento territorial.

Por fim, o último bloco desse livro, Reconec-tanto produtores e consumidores, compreende três experiências. No capítulo 14, de autoria de Potira Viegas Preiss e Flávia Charão Marques, é apresentada a constituição e o funcionamento de grupos de consumo responsável no Brasil. Nessas iniciativas produtores e consumidores estabele-

cem arranjos específicos para comercialização di-reta de alimentos e de outros produtos. O caso contribui ao ilustrar um mecanismo em expan-são no território brasileiro e que tem viabilizado a aproximação entre consumidores e produtores enquanto nova oportunidade de mercado, de qualificação da produção e de geração de renda.

Em seguida, Tainá Zaneti e Sérgio Schneider apresentam uma estratégia em que a gastrono-mia tem atuado no fortalecimento da agricultura familiar, expondo o caso do Instituto Maniva, no Rio de Janeiro. Constata-se que há uma amplia-ção dos espaços de comercialização resultante da relação entre chefs e agricultores familiares. A ex-periência mostra que essa relação tem resultado na valorização de produtos tradicionais, artesa-nais e locais, conferindo-lhes traços de singulari-zação e distintividade.

Fechando o livro, o capítulo assinado por Márcio Zamboni Neske e Cláudio Becker retrata a emergência da produção e da comercialização por horticultores familiares que vêm diversifican-do a produção. Em busca de valorização, a apro-ximação desses produtores a outras entidades lo-cais tem fomentado ações de construção de um mecanismo coletivo para formalização de novos circuitos de comercialização. O principal fruto dis-so é a criação de um espaço de comercialização direta entre produtores e consumidores.

PARTE I CONSTRUÇÃO SOCIAL

DE MERCADOS

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PARTE ICONSTRUÇÃO SOCIAL

DE MERCADOS

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A questão dos mercados e do acesso aos ca-nais de comercialização tornou-se um tema de grande interesse dos agricultores familiares, de suas organizações e dos formuladores de políticas públicas. No Brasil, tem-se falado cada vez mais em construção social de mercados, o que significa dizer que os mercados são espaços de interação e troca entre produtores e consumidores e, portan-to, configuram uma relação social.

Neste trabalho pretendemos descrever um caso bem sucedido de construção de mercados que se refere a experiências dos pecuaristas fami-liares da região sul do Rio Grande do Sul. Nesse estado encontram-se algo em torno de 60.000 famílias de pecuaristas familiares, categoria que apenas recentemente vem sendo estudada. Os pecuaristas familiares podem ser definidos como pequenos criadores de bovinos de corte e de ou-tros animais em sistemas de criação de menor es-cala (ovinos, suínos, aves) e de pequenos sistemas de cultivos voltados basicamente para a subsis-tência (feijão, milho, batata-doce, mandioca etc.), tudo isso fazendo uso de mão de obra familiar associada com a troca de serviços.

Esse texto apresenta a descrição de uma expe-riência envolvendo a construção social de merca-dos da pecuária familiar no território do Alto Ca-maquã, localizado no extremo sul do estado do Rio Grande do Sul, Brasil. Nesse território, a pecuária de corte, há mais de três séculos, desde o período de colonização, é a atividade produtiva predomi-nante, sendo desenvolvida majoritariamente por pequenos produtores denominados como pe-cuaristas familiares. Do ponto de vista produtivo, a criação de animais (bovinos e ovinos, principal-mente) criados sobre pastagens naturais do bioma Pampa representa a principal atividade produtiva.

Como forma de criar novos espaços e abor-dagens de entendimento e representação da pecuária familiar e do desenvolvimento para o Alto Camaquã, em 2008, a Embrapa (Empresa Brasileira de Pesquisa Agropecuária) desenvolve um projeto denominado de Projeto Alto Cama-quã. Trata-se de um projeto concebido desde uma abordagem territorial para pensar e promo-ver estratégias de desenvolvimento na região. O Projeto Alto Camaquã interliga uma rede de multiatores e são parceiros, além da Embrapa, a

CAPÍTULO 1

A construção de mercados pela pecuária familiar no sul do Brasil: o caso do território Alto Camaquã

Alessandra Matte

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Emater (Empresa de Assistência Técnica e Exten-são Rural), associações de pecuaristas familiares, representações sindicais (Fetag, Sindicatos dos Trabalhadores Rurais), governo municipal e es-tadual e algumas universidades. Os processos de ação do Projeto têm criado estratégias de desen-volvimento que visam a vincular seus produtos e serviços à imagem e atributos (sociais, econômi-cos, culturais, ecológicos) locais.

Da criação de ovelhas para lã à produção de cordeiros de alto padrão

As ações do Projeto Alto Camaquã ocorrem em forma de rede, onde, em diferentes momen-tos, sua ampliação tem visado o seu fortalecimen-to. No ano de 2009, foi criada a Associação para o Desenvolvimento Sustentável do Alto Camaquã (ADAC), a qual representa juridicamente o con-junto das associações de pecuaristas familiares do território. Em 2011 é criada a Rede de Produtores do Alto Camaquã (REAC), que passou a congre-gar o conjunto das associações filiadas à ADAC. Atualmente, a REAC é constituída por 20 associa-ções comunitárias de pecuaristas familiares, o que representa em torno de 420 famílias.

As primeiras iniciativas para acessar mercados com os produtos do Alto Camaquã iniciaram em 2011. Através de diferentes encontros da REAC, foram sendo coletivamente definidos os produtos para iniciar a comercialização por meio do uso da marca territorial coletiva.

A carne de cordeiro foi o produto que obte-ve um processo mais acelerado e fortalecido de comercialização, isso porque a produção ovina é

praticada em 100 % das propriedades familiares que participam do Projeto Alto Camaquã, o que amplia a possibilidade de inserção nos mercados por boa parte dos pecuaristas. Cabe destacar que a definição de cada produto, enquanto potencial para comercialização, envolve uma decisão parti-lhada entre pecuaristas das distintas associações e demais atores de agências já mencionadas. En-tre algumas das características definidas na esco-lha dos produtos estão aspectos relacionados ao saber-fazer, produtos ecológicos (sem uso de in-sumos externos) e adaptados ao local, paisagem e recursos naturais preservados. A carne de cor-deiro vem sendo comercializada por um pequeno frigorífico local, com sede no município de Encru-zilhada do Sul, o qual passou a ser responsável pelo abate e comercialização dos cordeiros.

A distinção social

O diferencial desse mercado é a coletividade de seu funcionamento, em que os diferentes atores definiram estratégias de industrialização e comer-cialização da carne de cordeiro com a marca co-letiva do território Alto Camaquã. Esse mercado funciona da seguinte maneira: a cada semana uma associação é responsável pela comercialização dos animais, os quais são reunidos, pesados e levados diretamente para o frigorífico. O transporte dos animais até o frigorífico é realizado por caminhão próprio da associação, e o preço praticado foi es-tipulado de maneira que o produtor possa receber um valor maior que o do mercado convencional. Cabe destacar que a aquisição do caminhão pela associação só foi possível mediante apoio de políti-cas públicas que permitiram aos pecuaristas fami-liares comprarem o caminhão em nome da associa-ção. A imagem a seguir é de um pecuarista familiar acompanhando carregamento de seus animais, em que o transporte é realizado por caminhão adquiri-do pela Rede de Produtores do Alto Camaquã, em registro divulgado pelo Alto Camaquã.1

A carne de cordeiro do Alto Camaquã pos-sui aspectos que a tornam diferente das demais

1 O projeto e as ações dos pecuaristas familiares são divulgados por meio das instituições envolvidas no projeto e em uma rede social, a qual pode ser acessada no link a seguir: ‹https://www.facebook.com/territorioaltocamaqua/timeline›.

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carnes de ovinos comercializadas no Brasil. A qualidade da carne está relacionada às qualida-des presentes em ativos culturais, sociais, eco-nômicos, produtivos, institucionais e ambientais presentes no local, os quais estão sendo mobi-lizados para a diferenciação dos produtos e dos processos de comercialização. O campo nativo e o modo de criação dos animais (saber-fazer dos pecuaristas) representam importantes ele-mentos de qualidade da carne de cordeiro. Nes-se sentido, os cordeiros produzidos sobre essas áreas de campo nativo possuem diferenciais em seu sabor se comparados a animais que têm em seu sistema de criação uma alimentação pré--elaborada pela indústria.

Os atores sociais passaram a definir uma ima-gem dos produtos do território como naturalmen-te único, pois são produtos integrados a processos produtivos em que a cultura pecuária desenvol-veu formas específicas de relação com a natureza, mantendo preservados ao longo do tempo a pai-sagem e os recursos naturais. Essa característica representa um dos atributos da carne de cordeiro do território do Alto Camaquã como uma estraté-gia de valorização dos recursos locais e naturais, portanto, um elemento de valorização da origem do alimento. Assim, com base nesses aspectos, a rede de atores e processos que compõem o Proje-to Alto Camaquã vem trabalhando em uma pro-posta de localismo do desenvolvimento, pautado pela valorização dos ativos do território.

O papel das políticas públicas

Assim, a construção social desse mercado tem permitido a edificação de processos coletivos de comercialização por meio dos quais pecuaristas e demais atores sociais locais apoiam-se mutua-mente na logística, no transporte, na produção e na comercialização, promovendo, assim, a or-ganização social do mercado. Recentemente tem se visualizado a possibilidade de acesso a novos mercados para a pecuária familiar, estando em curso um processo de organização para o aces-so aos mercados institucionais do PAA (Programa de Aquisição de Alimentos) e PNAE (Programa Nacional de Alimentação Escolar). Entretanto,

essa experiência ainda não foi viabilizada, sendo a conquista de novos canais de comercialização um desafio para esse mercado. Além disso, ou-tros produtos vêm sendo comercializados com o uso da marca coletiva, entre eles estão produtos artesanais confeccionados com lã e couro, doces e pães, turismo rural, entre outros, conforme ima-gens divulgadas pelo projeto.

A partir dessa organização de atores sociais de distintos âmbitos, têm sido ampliadas as atenções para a própria categoria de pecuaristas familiares. A maneira como estes se relacionam com os recursos naturais e a forma como ma-nejam os animais em conformidade com o am-biente são aspectos que permitem que seja atri-buído um valor intrínseco ao produto, riqueza gerada em nível local, fruto dos conhecimentos tácitos dos produtores, bem como das caracte-rísticas do alimento.

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Lições e ensinamentos

Os resultados observáveis dessa experiência envolvendo a construção social de mercados não dizem respeito apenas à possibilidade de acessar novos mercados para a pecuária familiar. Essa, certamente, é uma questão importante a ser considerada, já que a venda de cordeiro tem redundado em uma melhor valorização e remu-neração aos pecuaristas familiares. No entanto, os resultados que estão colocados a partir dessa experiência para os atores envolvidos dizem res-peito a representatividade de uma categoria so-cial que ocupa um território que por muito tem-po foi estigmatizado por instituições de ensino e desenvolvimento e pelo poder público como pobre e atrasado. A principal vantagem estraté-gica desse mercado é que o produto gerado está associado a um conjunto de valores premiados pelo mercado, como tradição, natureza, modo de produção artesanal e local. O sucesso dessa experiência permite afirmar que é possível sua reprodução em outros espaços, desde que siga os princípios da construção coletiva na presença de distintos atores e instituições envolvidos com o grupo social, podendo ser reelaborada para outros produtos.

Além disso, desconstruir a noção de pobreza foi e continua sendo uma premissa que tem orienta-do a base das ações de desenvolvimento do Projeto Alto Camaquã, o que evidencia que o desenvolvi-mento rural não é uma mera aplicação de ações e políticas modernizantes na tentativa de corrigir pro-blemas. Os desafios colocados ao Alto Camaquã estão em expandir e enriquecer essa experiência de desenvolvimento, conservando o conjunto de ativos locais para convertê-los em potencial para o dese-nho de alternativas à lógica homogeneizadora do desenvolvimento. Nesse sentido, o caso do mercado de cordeiro evidencia a relocalização da produção e abastecimento de alimentos, demonstrando que a construção social de mercados é uma estratégia im-portante de práticas enriquecidas de alteridade. Por isso, o slogan de divulgação da carne de cordeiro do Alto Camaquã é “Carnes únicas de lugares únicos”.

Aos interessados em conhecer mais detalhes sobre a experiência aqui relatada, informações po-dem ser encontradas no artigo “Mercado de ca-deias curtas na pecuária familiar: um processo de relocalização no território Alto Camaquã no Sul do Rio Grande do Sul/Brasil”, redigido por Ales-sandra Matte e colaboradores, publicado na Re-vista do Desenvolvimento Regional (REDES), fruto da discussão inicial apresentada nesse relato.

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CAPÍTULO 2

Agregação de valor e criação de mercados para a pecuária familiar da região centro sul do Rio Grande do Sul

Marcelo Porto Nicola Flávia Charão Marques

O caso descrito aqui apresenta três atores cen-trais que atuam em sinergia, embora estejam in-seridos em uma rede mais ampla: os pecuaristas familiares, as prefeituras e os extensionistas rurais da Emater do Rio Grande do Sul.

O pecuarista familiar é um tipo de agricultor familiar que obtêm sua renda principal da pecuá-ria (i. e. criação de bovinos, ovinos, caprinos, bu-balinos) em pequenas áreas de terra (i. e. até 300 hectares), com uso predominante de mão de obra familiar, tendo como local de moradia a unidade de produção ou a comunidade próxima.

O trabalho com os pecuaristas familiares, re-conhecidos como um segmento específico dentro do contexto heterogêneo da agricultura familiar se deu a partir de diagnósticos da realidade da pecuária familiar na segunda metade dos anos 1990, e pela concepção de políticas públicas lo-cais nos municípios em que esse público era, quantitativamente, mais expressivo. Essas ações têm impactado fundamentalmente no melhora-mento genético dos animais (ovinos e bovinos), e na criação de canais de comercialização mais adaptados às especificidades da pecuária familiar.

As atividades locais são reforçadas por políticas públicas estaduais e federais, que foram efetiva-mente operacionalizadas nos anos 2000. O que chamamos de atividades locais são as interven-ções planejadas para a pecuária familiar que in-cidem em local definido, tal como o trabalho na região centro sul. Neste caso, a tomada de cons-ciência a respeito da virtude do escopo regional para as ações é um ponto de inflexão importante no revigoramento do trabalho de viabilização so-cioeconômica da pecuária familiar.

O vigor deste trabalho é resultado do dina-mismo das associações comunitárias rurais e dos pecuaristas familiares, da inserção qualificada de agentes de desenvolvimento locais, e da sinergia entre atores e políticas nas instâncias local, regio-nal e nacional.

Entre as iniciativas regionais vamos apresentar a Associação Regional dos Ovinocultores, a Mar-ca Coletiva, e o Remate Regional da Pecuária Fa-miliar. No âmbito local, destacam-se também as Unidades de Experimentação Participativa, a Feira de Ovinos, o Concurso de Cordeiros, o Jantar do Cordeiro e do Vinho, e o Repasse de Carneiros,

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bem como suas repercussões extralocais. Salien-tamos que a priorização deste segmento, no que tange às políticas públicas, tem, ainda, um des-dobramento importante na dimensão ambiental de preservação das regiões campestres do Estado. Hoje, se estima um contingente superior a 1.200 famílias de pecuaristas na região centro sul, das quais 800 estão diretamente envolvidas na pre-sente experiência.

As interações entre os múltiplos atores se in-tensificam em um espaço geográfico caracte-rizado pelo adensamento de comunidades de pecuária familiar, majoritariamente, situado nos municípios de Butiá e São Jerônimo, no estado do Rio Grande do Sul/Brasil. A partir deste espaço se irradiam ações e experiências que repercutem e se articulam com outras práticas estabelecidas nos municípios da região.

Aspectos ambientais: o papel da pecuária familiar na conservação do Pampa

Os ecossistemas campestres da região sul do Brasil estão sendo ameaçados pelo avanço dos cul-tivos anuais de grãos e da silvicultura em regime de monocultura, além da degradação relacionada ao uso inadequado dos recursos e invasão de espécies vegetais exóticas. A pecuária fortemente assenta-da no recurso forrageiro nativo (e. g. 70 % da su-perfície em pecuária familiar na região está sobre áreas de campo nativo) tem sido reconvertida para outras explorações econômicas aparentemente mais rentáveis no curto prazo, fato que ocasionou, em décadas recentes, a supressão de metade da superfície original dos campos do estado.

Por outro lado, pesquisas científicas ressal-tam a ligação potencialmente promissora entre a exploração pecuária, entendida como uma atividade multifuncional, e a conservação e uso sustentável dos Campos Sulinos. Na realidade local, verifica-se que onde há concentração de pecuaristas familiares a paisagem rural ainda en-contra-se livre da predominância quase exclusiva das plantações de soja e de florestas exóticas, di-

ferentemente do que acontece nas regiões cuja estratificação fundiária pende para as fazendas de médio e grande porte.

Fluxos e conexões a partir do foco de trabalho em pecuária familiar

A partir do foco do trabalho em pecuária fa-miliar, preponderantemente, nos municípios de Butiá e São Jerônimo, emanam fluxos e conexões para a região. Os resultados do conjunto de ações para têm impactado duas dimensões importantes e interdependentes do desenvolvimento rural: a agregação de valor aos produtos da pecuária, em especial os ovinos, mas também bovinos, e a cria-ção de canais de comercialização.

A interação entre Associações Rurais das Lo-calidades, Entidades Representativas de Produ-tores, Prefeituras, Conselhos Municipais, Emater, Instituições de Ensino e Pesquisa, e Secretarias e Setores dos Governos Estadual e Federal têm proporcionado a construção de políticas públi-cas, práticas e trajetórias em instâncias distintas, que, no entanto, convergem para o atendimento de algumas das necessidades dos pecuaristas fa-miliares. Em seguida, são trazidos exemplos re-levantes a nível regional (a Associação, a marca própria e o remate), além de outros mais locali-zados e suas repercussões.

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A Associação, a Marca e o Remate

A Associação Regional de Ovinocultores foi fundada em 2011, fruto dos desdobramentos do Projeto de Desenvolvimento da Ovinocultura. Trata-se de uma associação civil sem fins lucrati-vos, tendo como sede a localidade da Quitéria, em São Jerônimo.

A associação percebe a ovinocultura além da estrita dimensão econômica, na medida em que é uma atividade que faz parte do modo de vida de centenas de famílias de pecuaristas familiares e sua abrangência congrega 16 municípios na re-gião centro sul e um em General Câmara, região do Vale do Rio Pardo. Normativamente, o escopo regional pode ser verificado no seu conselho con-sultivo, composto pelas Secretarias Municipais de Agricultura, Sindicatos de Trabalhadores Rurais e Escritórios da Emater dos dezessete municípios. Entre seus objetivos estão: valorizar a produção sustentável; abastecer o mercado regional, e a merenda escolar com uma marca coletiva.

A marca coletiva constitui-se em um dos prin-cipais propósitos, tendo em conta que se percebe grande potencial na exploração comercial das ca-racterísticas singulares de sabor na carne do cor-deiro criado em campo nativo na região. Apesar de alguns técnicos e produtores avaliarem que serão necessárias algumas melhorias em organiza-ção social e na produção primária. De modo geral, a expectativa é boa, devido a alguns acertos já en-caminhados, como a instalação do frigorífico para abate. A alteração do comércio de animais vivos

para carne processada e embalada será um salto importante no que se refere à agregação de valor.

O Remate Regional da Pecuária Familiar é um evento anual, que teve sua quarta edição em 2016. O crucial motivo para a sua organização foi o fato de que a comercialização de animais vem de longa data se apresentando como problemáti-ca. Problemas como calote, intermediação e discri-minação são especialmente sentidos por aqueles produtores com baixa escala de produção e menor conhecimento sobre os meandros do mercado.

Para adaptar esta modalidade tradicional de venda de animais às especificidades dos pecuaris-tas familiares, os organizadores promoveram uma série de negociações e rearranjo de recursos para isentar os custos de frete dos animais até a pista; diminuir a porcentagem de corretagem do leiloei-ro e do aluguel do parque.

A média de participantes que ofertaram animais nas duas primeiras edições ultrapassou 40 pecua-ristas, oriundos de diversos municípios, expressan-do a abrangência regional da ação. No somatório das duas primeiras edições foram comercializa-dos 1.000 animais (bovinos, ovinos), arrecadados R$ 830.000 e o afluxo ultrapassou mil pessoas.

Unidades de experimentação participativa (UEP)

As UEP, três em operação e duas em instala-ção, são estabelecidas em propriedades rurais, sendo potencialmente capazes de incrementar trocas de conhecimentos, aprendizagens coletivas e incremento de informação sobre conservação e manejo adequado de sistemas pastoris nativos com ovinos e bovinos.

Nas unidades, além da ênfase no manejo do campo nativo, são desenvolvidos, de forma dife-renciada, o melhoramento genético e o aprimo-ramento do manejo do rebanho ovino e bovino. Para evidenciar as pressões ambientais sobre o ‘Pampa’ (campo nativo), duas UEP foram sele-cionadas por se apresentarem como um contra-ponto a uma paisagem circundante fortemente

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dominada pelos maciços florestais exóticos, com muitos de seus lindeiros explorando com exclusi-vidade está alternativa econômica.

Cabe realçar, contudo, que as potencialidades das UEP ainda não foram completamente desen-volvidas, uma vez que têm funcionado apenas como unidades de demonstração. Para ir além, será importante ampliar as formas de participa-ção de grupos de pecuaristas no planejamento, implantação e no acompanhamento de ações de experimentação propriamente ditas.

A Feira de Ovinos, o Concurso de Cordeiros, o Jantar e o Repasse de Carneiros

A Feira Assistida de Ovinos caminha para a 7ª edição, envolvendo produtores de São Jerô-

nimo, vendedores de genética (os chamados ca-banheiros) e compradores de vários municípios, tem tido repercussão importante na qualidade do rebanho, e serviu de modelo para uma nova feira em Barão do Triunfo. Ela tem a denominação de ‘assistida’, porque é também realizado assessora-mento técnico-social às famílias que estão inscri-tas no evento.

Na edição de 2015, quinze produtores expuse-ram animais. A presença de público que visitou o evento ficou acima de 600 pessoas, e aproxima-damente 400 ovinos (cordeiros, ovelhas, borregos) foram expostos, com taxa de comercialização ao redor de 80 %.

O Concurso de Cordeiros, hoje na 11ª edição, envolve análise morfológica (animais vivos) e de carcaças. Foi criado com a intenção de estimular o melhoramento genético e a introdução de prá-ticas adequadas de manejo. Uma consequência desse concurso é o Jantar do Cordeiro, Uva e Vi-nho, também na 11º edição, que foi planejado, inicialmente, como a festa de premiação dos ven-cedores, transformando-se depois em uma das tradicionais e prestigiadas festas de Butiá. Essa ação, conforme a percepção dos atores locais, elevou a visibilidade e a cidadania de um segmen-to social até pouco tempo atrás, sem voz, invisí-vel, e pouco atendido, o pecuarista familiar.

O Repasse de Carneiros, já na 7ª edição, é coordenado pela Prefeitura de Butiá e o Sindicato

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dos Trabalhadores Rurais e surgiu em consequên-cia do Concurso de Cordeiros. Com orçamento ao redor de R$ 15.000/ano, é avaliado como uma novidade promissora, com resultados em agrega-ção de valor pela melhoria genética dos rebanhos e peso médio dos cordeiros, influenciando inicia-tivas em vários rincões, como Barão do Triunfo e São Jerônimo, que estudam a implantação, e Dom Feliciano, que já iniciou um programa si-milar. Seu objetivo é repassar carneiros com alto valor zootécnico para carne ou lã em condições de preço e formas de pagamento subsidiados aos pecuaristas familiares.

Considerações sobre um trabalho em evolução

Os resultados apurados com esta experiência podem ser observados na dimensão técnico-eco-nômica, com agregação de valor aos produtos e

criação de novos mercados; na dimensão social, com o fortalecimento da capacidade de agên-cia dos agricultores, através de ações de orga-nização e participação popular em conselhos e políticas públicas. Nessa dimensão, observa-se também ganhos em cidadania e reconhecimento dessa categoria social e das famílias envolvidas. Na dimensão ambiental, o conjunto do traba-lho constitui-se como uma barreira potencial ao avanço da degradação dos campos. Entretanto, os avanços são parciais e relativos diante de uma dinâmica populacional decrescente dos pecuaris-tas familiares nos espaços rurais e da degradação ainda acelerada dos recursos campestres. Inicia-tivas, como as aqui apresentadas, precisam de continuidade e intensificação para que os resul-tados se tornem mais abrangentes e consolidem a reprodução social deste segmento, sua manei-ra de produzir e de se relacionar com a natureza, viabilizando, desse modo, o uso sustentável e a conservação do bioma Pampa.

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Em recente relatório produzido no âmbito da Organização das Nações Unidas para Alimentação e Agricultura (FAO), é evidenciado o papel global da pecuária a partir de seu potencial em garan-tir segurança alimentar a diversas populações no planeta, classificando-a como um “poderoso mo-tor” para o desenvolvimento da agricultura e dos sistemas agroalimentares. Ainda segundo essa organização, a criação de gado é a atividade que ocupa maior área de terras agrícolas no mundo, com ampla distribuição entre os países. Outro do-cumento, também produzido no âmbito da FAO, aponta que a pecuária representa atualmente pelo menos uma fonte parcial de rendimentos e de garantia de segurança alimentar para 70  % dos 880 milhões de pobres rurais no mundo, os quais vivem com menos de um dólar por dia. Por isso, a esse respeito tem sido desenvolvidos esfor-ços por organizações globais e locais para reco-nhecer o papel da pecuária também no processo

de conservação de ambientes únicos e de sua im-portância no que se refere ao uso sustentável de recursos naturais, que se mostram dependentes da presença dos animais e do manejo realizado pelo homem.

A esse respeito, o sul do estado do Rio Gran-de do Sul, no Brasil, tem características históricas marcantes relacionadas à atividade pecuária, pro-piciadas principalmente pela forma de ocupação e pela presença de extensas áreas de pastagens naturais típicas do bioma Pampa. Há registros que apontam que, nessa região ao sul do Brasil, a tra-dição pecuária está presente há pelo menos 300 anos. Entre esses produtores existe uma categoria social denominada pecuaristas familiares, a qual se distingue por características como um modo de vida específico, utilização quase que exclusi-vamente de mão de obra familiar, utilização de áreas de terra em locais considerados marginais,

CAPÍTULO 3

Mercados na pecuária familiar no sul do Brasil: O Programa Nacional de Alimentação Escolar como dispositivo para

a construção de novas formas de comercialização

Alessandra Matte

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criação especialmente de bovinos e ovinos sobre as pastagens naturais do bioma Pampa e, ainda, a presença de lógicas próprias para a comerciali-zação dos animais.

Em razão da ressonância que a expressão “pe-cuária familiar” passou a adquirir e a ocupar na agenda institucional e política no estado do Rio Grande do Sul, os esforços e resultados concretos dessas agendas passaram a dar atenção também à temática dos mercados. Assim, muito recente-mente, alguns debates e experiências envolvendo a criação de mercados na pecuária familiar têm emergido. A par do crescimento e do poder de grandes empresas frigoríficas internacionais que têm expandido sua ocupação sobre o estado, mas também em razão das transformações do mundo rural, que têm exposto os pecuaristas a situações de vulnerabilidade (êxodo rural, envelhecimento, avanços dos cultivos agrícolas sobre os campos naturais), esses mercados emergentes têm procu-rado atender às demandas dos pecuaristas familia-res e de suas representações de maneira a valori-zar e fortalecer os múltiplos ativos dessas famílias e dos espaços rurais nos quais estão inseridas.

A esse respeito, uma iniciativa tem ganhado destaque: a de um mercado de carne construído e realizado única e exclusivamente por um grupo de pecuaristas familiares no município de Pinheiro Machado, no sul do estado do Rio Grande do Sul. Tomando o caso dessa iniciativa, este texto procu-ra apresentar a trajetória que possibilitou a cons-trução desse mercado, as nuanças de seu funcio-namento e, por fim, os desafios que se colocam para a continuidade e consolidação desse projeto.

Pecuária familiar no sul do Brasil

Os pecuaristas familiares têm, entre suas ca-racterísticas, um modo de vida específico, em que suas estratégias de reprodução social estão inter-ligadas a um repertório cultural próprio, no qual as relações com os mercados envolvem graus de autonomia. Embora ocupando posições de mar-ginalidade no desenvolvimento das relações ca-pitalistas pastoris, longe de ser uma categoria social residual, a pecuária familiar assume uma representação social e produtiva de destaque, sobretudo em municípios localizados na porção sul do estado, que se encontram no território do bioma Pampa. Estima-se que existam aproxima-damente 60.000 famílias de pecuaristas familiares no Rio Grande do Sul, os quais são responsáveis pela produção de 40 % dos terneiros de corte (ou também denominados de cria) do estado. Segun-do informações da Emater (Empresa de Assistên-cia Técnica e Extensão Rural), a pecuária familiar detém algo em torno de 3 milhões de bovinos de corte, o que representa 21,5 % do rebanho de bovinos do estado.

No espaço que compreende o bioma Pampa, vicejou no Rio Grande do Sul, desde o período de colonização até o início do século XX, um modo de produção capitalista centrado na economia pecuária. Assim, a trajetória do desenvolvimen-to do capitalismo agrário no sul do estado criou uma estrutura de mercados que gerou processos de exclusão e marginalização dos pecuaristas fa-miliares, favorecendo principalmente os médios e grandes pecuaristas.

O fato de os pecuaristas familiares não atende-rem às exigências mercadológicas estabelecidas pelos frigoríficos ou mesmo pelas formas emer-gentes de mercados (como o proporcionado pela indicação de procedência2 que foi conferido à car-ne do pampa), principalmente no que diz respeito a fatores produtivos e tecnológicos, como a capa-cidade de ofertar escala produtiva regular (o que implica atender a outras exigências tecnológicas, investir em pastagens cultivadas etc.), restringe ou, em grande medida, exclui os pecuaristas des-ses mercados. Ou seja, os pecuaristas familiares

2 Ver mais em: ‹www.apropampa.com.br›.

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nem sempre conseguem se adequar aos regula-mentos específicos para a comercialização da car-ne, o que ocorre em virtude de dificuldades em atender a exigências como quantidade mínima de animais comercializados, animais com raças defi-nidas, regularidade na oferta, medidas de tama-nho e peso, entre outros fatores.

Por mais que possam estar circunscritos a situ-ações que exercem pressões e exigências merca-dológicas, historicamente os pecuaristas familia-res têm reagido a essas pressões e, em resposta a elas, têm construído estratégias mercantis que vi-

sam a garantir a sua autonomia. Nesse contexto, cabe analisar o caso de um grupo de pecuaristas familiares do município de Pinheiro Machado que, em 2009, criou o Núcleo de Criadores de Ovinos e Caprinos de Pinheiro Machado com o objetivo principal de se organizarem, unirem forças, me-lhorarem a forma de produção e, especialmente, comercializarem a carne e não somente os ani-mais. Nas palavras de um dos membros quando da criação do Núcleo, “estávamos motivados por uma questão de ter uma melhor remuneração, porque até pouco tempo a gente era escravo dos compradores, dos atravessadores”.

O cordeiro Cacimbinhas

Constituído unicamente por produtores fa-miliares, o surgimento do Núcleo contou com o apoio e incentivo da Emater municipal à época, que permitiu a aproximação e a organização de um conjunto de aproximadamente 30 famílias em 2009, número que, atualmente, chegou a 42 famílias de pecuaristas familiares. Nesse pro-cesso, o Núcleo, em colaboração com a Emater e a nutricionista responsável pelas compras para a alimentação escolar do município, deu início à comercialização de carne ovina junto ao Progra-ma Nacional de Alimentação Escolar (PNAE). As-sim, em 2010, o grupo iniciou a comercialização de carne ovina, inicialmente abatendo os animais em abatedouros de outros municípios e, poste-riormente, em um abatedouro municipal de con-cessão privada.

Essa experiência de venda de carne ovina jun-to ao PNAE foi a primeira registrada no estado do Rio Grande do Sul, e, sobretudo, foi funda-mental para a consolidação do Núcleo e de sua inserção nos mercados. Em 2012 foram comer-cializados 25 animais por mês para a alimenta-ção escolar, totalizando aproximadamente 450 kg/mês de carne ovina. De acordo com a nutri-cionista responsável pelas compras, bem como conforme algumas merendeiras do município, a carne ovina é muito bem aceita entre as crian-ças, tendo em vista que esse alimento faz parte da realidade dos estudantes. Para os pecuaristas do Núcleo, a prevalência da comercialização de seus produtos para o PNAE é o principal objeti-vo, pois se trata de um mercado adequado para sua forma de organização produtiva e, que, difi-cilmente terá como concorrência empresas mul-tinacionais do setor de carnes.

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No ano de 2014, o Núcleo reivindicou e ob-teve a concessão do abatedouro municipal por um período de dez anos, recebendo a autoriza-ção de controle sanitário do Serviço de Inspeção Municipal (SIM). Essa iniciativa permitiu que esses produtores pudessem realizar o abate de ovinos, controlando todas as etapas desse mercado, des-de a produção até a comercialização da carne, incluindo o transporte. Somado a isso, iniciaram o abate de bovinos, também com destino para os mesmos mercados que a carne ovina já ocupava. Assim, conforme um dos sócios, a lógica do Nú-cleo segue a premissa de fazer o “dever de casa”, uma vez que comercializam a carne para o comér-cio local, com o principal propósito de remunerar adequadamente o produtor rural, diferentemente de quando comercializavam para outros canais. Os abates iniciaram com um animal por semana, pois, tratando-se de um processo novo para esses pecuaristas, era necessário conhecê-lo e compre-ender como realizar a condução.

Paralelamente ao mercado proporcionado pela alimentação escolar, o Núcleo também comerciali-za carne ovina em supermercados locais e possui, por meio de apoio da prefeitura municipal, um ponto de venda próximo à BR 290 no município. Nesse estabelecimento, é possível encontrar car-ne e outros produtos da pecuária familiar, como doces, panificados, vinhos e artesanato. Nesse es-paço há uma sala de cortes e embalagem, como também o escritório do Núcleo. De maneira geral, as escolhas e ações do Núcleo estão atreladas a justificativas que não envolvem apenas o preço pago pelo animal e pela carne, mas sim ao pro-pósito de constituir um mercado seguro e livre de sabotagens, ou seja, de situações de incerteza.

No decorrer desse processo, em 2016, o Nú-cleo obteve o registro como agroindústria familiar, o que permite a participação em feiras e eventos para além dos limites municipais. Diante dessas mudanças, atualmente têm sido abatidos em mé-dia 80 ovinos e 30 bovinos por mês, e a carne é comercializada no comércio local para o PNAE, em feiras e no ponto de venda mencionado.

Em consonância com esse registro, o Núcleo criou a marca “Cacimbinhas” denominação que faz alusão ao primeiro nome do município, origi-nário da existência de uma fonte (uma cacimba) que, segundo conta a lenda, vertia água milagro-sa. A escolha do nome e da marca, que contou com o apoio do programa “Juntos para compe-tir” do Senar-RS (Serviço Nacional de Aprendiza-gem Rural do Rio Grande do Sul), é uma maneira de vincular a marca às origens do produto.

Atualmente, a carne “Cacimbinhas” recebe dois selos de procedência e qualidade. Um é o selo Sabor Gaúcho, atribuído pelo estado do Rio Grande do Sul para produtos provenientes de es-tabelecimentos de produção artesanal. O outro é o do Cordeiro Gaúcho, concedido por um progra-ma de desenvolvimento da ovinocultura realizado pelo governo do estado e pela Associação Brasi-leira de Criadores de Ovinos (ARCO).

Em essência, o Núcleo tem buscado aperfei-çoar a produção entre os sócios e comercializar em mercados locais e em feiras, procurando con-tribuir principalmente no abastecimento do mer-cado local. Além disso, todas as etapas são orga-nizadas pelos pecuaristas familiares: a produção dos animais, o transporte, a agenda de vendas,

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o abate e a comercialização. Existem apenas dois funcionários que não são sócios: um que atua junto ao abate e ao corte das carnes e uma fun-cionária que trabalha no ponto de vendas.

Em janeiro de 2016, associou-se ao Núcleo a Associação para o Desenvolvimento Sustentável do Alto Camaquã (ADAC), organização que con-ta com mais de 280 famílias de pecuaristas fa-miliares. Com essa aproximação, a ADAC realiza abate de animais e comercializa a carne de seus produtores em conjunto com o Núcleo. O estabe-lecimento dessa parceria permitiu a incorporação de um caminhão boiadeiro e de um caminhão fri-gorífico para transporte dos animais e da carne. A carne dos animais provenientes de produtores da ADAC recebe a marca do “Alto Camaquã”, jun-tamente com a marca Cacimbinhas e os demais selos já mencionados. No que se refere à marca

Alto Camaquã,3 cabe destacar que ela diz respeito ao território e não a um produto específico.

A construção de autonomia com a emergência de novas formas de mercado

Este texto está centrado na descrição de inter-faces envolvendo a estruturação e o funcionamen-to de um mercado da carne ovina em diferentes níveis (produção, transformação e distribuição), destacando o papel do PNAE como importante dispositivo responsável pelo fortalecimento desses mercados e na geração de autonomia de pecua-ristas familiares. A experiência é considerada um caso de sucesso no que diz respeito à organização social envolvendo a pecuária familiar na medida em que evidencia a relevância da construção de um processo de comercialização a partir de pro-dutores familiares, que, buscando a autonomia, rompem com dependências externas e garantem melhor preço recebido por seu produto.

A construção de novos mercados na pecuária familiar tem surgido principalmente das interações entre os pecuaristas familiares com outros atores sociais ligados ao campo institucional e político. A gênese desse processo está marcada pela neces-sidade de ampliar os meios para comercialização dos produtos e de romper com a dependência de intermediários, uma necessidade que, no caso es-tudado, emerge dos próprios pecuaristas.

Os atuais desafios podem ser sintetizados na manutenção da comercialização para o PNAE diante de oscilações na economia e na política nacional, na garantia de apoio municipal e no for-talecimento do comércio local dos produtos. No sentido de superar tais desafios, a utilização de selos de qualidade tem se mostrado como uma interessante maneira de reforçar a qualidade do produto, evidenciando também valores tácitos e a qualidade única da carne. Assim, mais do que ampliar a escala, o objetivo do Núcleo é manter a qualidade já alcançada e, quiçá, ampliar a comer-cialização para o PNAE em outros municípios.

3 Ver mais em: ‹www.altocamaqua.com.br›.

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PARTE IIDIVERSIFICAÇÃO PRODUTIVA

E AGREGAÇÃO DE VALOR

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Conhecido como um dos maiores produto-res de café conilon do Brasil, o estado do Espírito Santo, região sudeste do país, é constituído por 67.403 estabelecimentos da agricultura familiar, o que representa 80 % dos estabelecimentos agro-pecuários (Censo Agropecuário, 2010). Nesse uni-verso de propriedades, que tem como carro chefe o cultivo do café, a diversificação da produção se torna uma saída para as muitas contingências a que estão suscetíveis os agricultores familiares.

Foi procurando diversificar e garantir a própria permanência no campo que a Família Sperandio, residente no município de Santa Teresa, resolveu iniciar a produção de orquídeas. Além desta plan-ta ornamental, a família continua a produzir o café e, mais recentemente, a uva.

Para entrar em novas atividades, contudo, a fa-mília precisou contar com uma rede institucional

de apoio aos agricultores, recorrendo ao órgão de extensão rural do estado, Incaper (Instituto Capi-xaba de Pesquisa, Assistência Técnica e Extensão Rural), ao Sebrae (Serviço Brasileiro de Apoio às Micro e Pequenas Empresas), às organizações da sociedade civil, bem como às políticas públicas como o Programa Nacional de Fortalecimento da Agricultura Familiar (PRONAF) e o Programa de Aquisição de Alimentos (PAA).

É a partir da experiência dos Sperandio que re-fletiremos sobre a ação dos agricultores em busca da diversificação produtiva, bem como sobre a im-portância e o papel das instituições e das políticas públicas. Ao narrar sobre a forma como acessam os diferentes canais de comercialização em bus-ca de maior espaço de manobra, demonstramos como as estratégias de diversificação precisam es-tar sustentadas por uma rede de instituições de apoio a agricultura familiar.

CAPÍTULO 4

Diversificação da produção e políticas públicas

Celia Jaqueline Sanz Rodriguez Carlos Alberto Sangali de Matos

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A Família Sperandio e as estratégias de diversificação

O município de Santa Teresa, localizado na região Central do Espírito Santo possui área de 671,94 km², com uma estrutura fundiária pre-dominantemente de base familiar, sendo que 94,1 % do seu território é ocupado com estabele-cimentos agropecuários que tem até 72 hectares.

A cafeicultura é a principal atividade econômi-ca do município, seguida de olericultura, fruticul-tura, bovinocultura leiteira e silvicultura. Segun-do dados do Censo Agropecuário de 2010, dos 9.148 hectares de área plantada com lavouras permanentes, 8.663 hectares estão destinados à produção de café, o que equivale a quase 95 % da área total.

A Família Sperandio representa boa parte das famílias do município. De origem italiana, resi-de no município há cinco gerações, trabalhan-do principalmente na cafeicultura, em pequenos estabelecimentos de base familiar. Eles residem no Sítio das Orquídeas, no distrito de Alto Santa Maria, desde 1977, com três filhos e uma exígua base produtiva.

Atualmente o estabelecimento possuí área to-tal de 3,1 hectares, abriga duas casas nas quais residem cinco pessoas, sendo o casal numa resi-dência e a nora com seus dois filhos, numa se-gunda, ambas com ótima estrutura física.

O primeiro passo para a diversificação produtiva: consciência da necessidade de maior autonomia e renda

O agricultor Edson Sperandio conta que os fi-lhos perceberam a necessidade de aumentar as fontes de renda como forma de continuar viven-do no campo. Passaram a se ocupar com a pro-dução de mudas de orquídeas, inicialmente co-letando as matrizes na mata e, posteriormente, dedicaram-se profissionalmente à produção, edi-

ficando estufa, comprando uma câmara de fluxo e investindo em qualificação profissional.

Atualmente a propriedade é mais diversificada, distribuindo as atividades em praticamente toda área: 1 hectare para a produção do café conilon; 1 hectare de uva; 0,3 hectare dedicados à flori-cultura (cultivo de orquídeas, casa de vegetação e laboratório); 0,3 hectare em matas e capoeiras e os outros 0,5 hectare ocupados com casas e de-mais benfeitorias.

O café continua a ser plantado na proprie-dade, em uma área menor que a anterior e sem ocupar a importância de principal atividade, em função dos fatores de alto custo de produção, de escassez de mão de obra e de preços de venda com baixa rentabilidade. Não há planos da famí-lia em dispensar essa atividade, pois, como diz o Sr. Edson Sperandio, “o café tem raiz, não vai acabar nunca”.

A viticultura apresenta características diferentes da cafeicultura, desde a produção, até a comercia-lização. A variedade cultivada é a Niágara rosada para consumo in natura. São produzidas oito to-neladas por ano, com duas safras. Nesta atividade, que utiliza 1 hectare (sendo 0,5 em produção) são ocupadas seis pessoas da própria família.

A terceira atividade é o cultivo de orquídeas, considerada pelos Sperandio o carro chefe da propriedade, pois é a mais lucrativa e adaptada facilmente às pequenas áreas e à mão de obra disponível. Atualmente são produzidas 10.000 mudas mensais, com 3.000 plantas floradas por ano. Além da mão de obra familiar, são ocupadas outras pessoas, a maioria mulheres que se dedi-cam nas várias fases do processo de produção.

Essa atividade se adapta bem a realidade das mulheres, que têm também as atividades do lar, conforme salientado por Dona Lindaura Speran-dio. Para a agricultura, a produção das orquídeas é uma excelente opção para as mulheres rurais, pois além de ocupar só uma parte do dia, é uma atividade que requer menos esforço físico e ga-rante uma renda extra satisfatória.

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Segundo passo da diversificação: apoio institucional no acesso a canais de comercialização

Cientes da necessidade e da importância de di-versificar as rendas, a Família Sperandio precisou contar com apoio institucional que lhe permitis-se acessar novos canais de comercialização. Se a comercialização do café continuou limitada aos compradores regionais, com uma Cooperativa que comercializa o produto sem oferecer melho-res condições, as outras duas atividades mostram o diferencial em relação à importância do apoio institucional no fortalecimento e incentivo às es-tratégias de diversificação.

A comercialização da viticultura possibilita maior autonomia e segurança para a família, na medida em que, diferentemente do café, os Spe-randio acessam mais de um canal de comercia-lização. Parte da produção da uva é comerciali-zada na própria propriedade, possibilitando uma relação muito mais próxima entre consumidor e produtor. Além deste tipo de venda, a produção também é comercializada em feiras municipais.

Mas o mercado que garante maior demanda e segurança é o mercado institucional acessado pelo PAA, que adquire o produto in natura e tam-bém processado (suco). O PAA é um instrumento de política pública no Brasil, instituído em 2003, que tem como objetivo garantir o acesso aos ali-mentos às populações em situação de inseguran-ça alimentar, ao mesmo tempo em que promove a inclusão social e produtiva por meio do fortale-cimento da agricultura familiar.

Para acessar o PAA os agricultores possuem uma documentação específica que os certificam como agricultor familiar, além de fazerem parte de uma associação de agricultores familiares que viabiliza os projetos de comercialização entre a fa-mília e o Estado.

Os aspectos de apoio institucional em tor-no da viticultura, portanto, são mais sólidos, se comparados com a cafeicultura. Essa atividade tem o apoio da Associação dos Produtores de Uva e Vinho Teresense (APRUVIT) e demais par-

ceiros como o Incaper, a Prefeitura Municipal de Santa Teresa e o Sebrae, que exercem atividades importantes na organização, na produção (com-pra de insumos, promoção de treinamentos) na comercialização (viabilização de mercados, reali-zação de eventos) e na promoção da atividade, diminuindo custos, aumentando a rentabilidade e competitividade do setor.

A comercialização das orquídeas também é mais diversificada e conta com uma rede de ins-tituições composta por entidades da sociedade civil e instituições públicas, como a Associação de Flores e Plantas Ornamentais de Santa Teresa (FLOREST), Incaper, Prefeitura Municipal de Santa Teresa e Sebrae.

Parte da produção é adquirida por colecio-nadores da flor. Outra parte é comercializada na propriedade e em feiras locais. Contudo, é nos eventos específicos para a atividade (feiras, fes-tas, exposições) que grande parte das plantas é comercializada: cerca de 80 % são vendidas em eventos de projeção regional e estadual, garanti-do lucro e segurança na atividade.

Experiência transformada em lição

Dizer que a diversificação produtiva é uma das saídas para as contingências que enfrentam os agricultores de base familiar não é uma novidade.

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Também não são singulares os casos bem sucedi-dos de agricultores que conseguiram diversificar suas rendas e melhoraram sua qualidade de vida ampliando seus portfólios produtivos.

No entanto, a diversificação produtiva pouco viabiliza a agricultura familiar e o desenvolvimen-to rural se não houver uma rede de instituições permeável, capilarizada e atuante na implemen-tação de processos e políticas públicas que forta-leçam a agricultura familiar e viabilizem o desen-volvimento rural, nas suas múltiplas dimensões.

O caso aqui representado pelos Sperandio é figurativo desta conclusão: das atividades que visam à diversificação, todas elas tiveram como ponto em comum uma rede de instituições que possibilitou à família entrar e se manter nas ativi-dades de forma viável.

No caso das orquídeas, o apoio institucional partiu do Estado, por meio do Pronaf e também pela manutenção de instituições voltados para o apoio técnico e social dos agricultores familiares, como o Incaper e o Sebrae. As instituições da So-ciedade Civil também tiveram um papel prepon-

derante nos bons resultados, construindo e forta-lecendo, com a ação conjunta de várias famílias, novos e importantes mercados.

O caso da uva também não é diferente. Aqui além dos elementos já acentuados, tem papel fundamental o PAA, uma ação Estatal que viabi-liza e constrói um canal de comercialização que garante alimentos a quem precisa e mercado a quem produz, fazendo com que a agricultura familiar seja reconhecida pela sua importância na segurança e soberania alimentar, ao mesmo tempo em que garante a reprodução social deste importante segmento e promove o desenvolvi-mento rural.

Desta forma, a experiência dos Sperandio con-tribuí com a discussão sobre a diversificação pro-dutiva, com a sustentação de que a agricultura familiar, por sua especificidade, demanda de uma rede de instituições – governamentais e não go-vernamentais – fortalecida, capilarizada e hetero-gênea que assimile suas necessidades, bem como políticas públicas específicas que atuam no senti-do de fortalecer a agricultura familiar e viabilizar processos de desenvolvimento rural.

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Entre os caminhos apontados por especialistas para a viabilidade da agricultura familiar está a di-versificação das atividades produtivas bem como do portfólio de fontes de ingressos de rendas. Du-rante muito tempo houve resistência de técnicos e mesmo dos próprios agricultores para aceitar a ideia de que a diversificação poderia gerar maio-res oportunidades para a reprodução das famílias. Acreditava-se que o caminho mais curto para o sucesso seria a especialização, que tornaria as pro-priedades competitivas, acompanhada do desejo de tornar o pequeno agricultor um empresário ru-ral, principalmente com a modernização agrícola.

Contudo, não são poucos os casos em que essa ênfase na especialização resultou em fracassos, mostrando que esta pode causar mais danos do que benefícios. Atualmente, se reconhece que a diversificação produtiva não é sinônimo de atraso tecnológico ou falta de competividade. Organiza-ções internacionais como o Food Systems Transfor-mation Goes Beyond the Farm (FIDA), segundo seu presidente Kanayo Nwanze, estimam que entre

35 % a 50 % dos rendimentos das famílias rurais em todo o mundo não vem apenas da agricultu-ra, mas das atividades rurais não agrícolas. O DFID (Departamento de Desenvolvimento Internacional, UK) também sugeriu em documento recente que os projetos de desenvolvimento rural devem apoiar a diversificação e a resiliência produtiva.

Neste artigo apresentamos o caso da fumicul-tura no estado do Rio Grande do Sul (RS) e os es-forços que têm sido feitos pelos agricultores e pe-las políticas públicas para buscar a diversificação produtiva. O caso da fumicultura é exemplar para mostrar como pequenos produtores familiares podem sair da especialização e diversificar as ati-vidades e as fontes de renda. O tabaco é uma cul-tura comercial (cash crop) não alimentar, intensiva em uso de mão de obra, inserida em um esquema de produção integrada com o setor industrial à ju-sante, o qual tem organizado e delimitado formas de produzir tabaco e até mesmo outros produtos. Por esta razão, o caminho para a diversificação tem sido apontado como uma alternativa viável.

CAPÍTULO 5

Caminhos da diversificação produtiva – o exemplo que vem da fumicultura no sul do Brasil

Tanise Dias Freitas Sergio Schneider

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Lavoura de tabaco no município de Vera Cruz/RS.

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Cadeia produtiva do tabaco

A fumicultura demonstra sua potencialida-de há décadas. A safra de 2014 resultou numa produção de 751.030 toneladas, com 342.875 hectares plantados no país e aproximadamente 182.000 famílias participando da atividade, o que dá ao Brasil o título de maior exportador mundial de tabaco. No Rio Grande do Sul encontram-se quase 94.370 estabelecimentos fumicultores re-presentando 43 % do total do país. Isto mostra o quanto a cultura do tabaco ganhou notorieda-de em função da sua importância econômica e cultural, principalmente na região do Vale do Rio Pardo (centro do RS), onde a integração produtiva desenvolveu-se largamente.

A Cadeia Produtiva Integrada do Tabaco (CPT) está organizada com a inserção das famílias em um sistema de produção que é administrado por empresas multinacionais e agentes institu-cionais, com objetivo de garantir qualidade e controle da matéria-prima. Este é um processo vertical e altamente especializado, que leva ao enriquecimento material e financeiro de alguns produtores, reconhecida como “atividade que mais dá dinheiro por hectare”.

Porém esta cultura agrícola é controversa: os agricultores têm vantagens como o acesso à assis-tência técnica fornecida pelas empresas e garantia da compra da produção, mas o custeio dos inves-timentos produtivos e tecnológicos fica por conta dos produtores. Ao mesmo tempo em que ofe-rece altos rendimentos por área plantada, possui efeitos negativos sobre as condições de saúde e trabalho, além de gerar impactos ambientais pelo uso intensivo de madeira para a secagem do fumo e agrotóxicos em grande quantidade durante o cultivo, resultando no aumento da vulnerabilidade socioeconômica e perda de autonomia produtiva.

Pressões externas: Convenção-Quadro e o papel das políticas públicas

A partir de 2005 a fumicultura passou por diversas mudanças já que o Brasil tornou-se sig-

natário da Convenção-Quadro para Controle do Tabaco (CQCT), um tratado internacional de saúde pública que estabelece regulações sobre o consumo e a produção de tabaco. Os artigos 17 e 18 desta convenção são particularmente ex-plícitos como mecanismos que buscam reduzir a oferta do tabaco e auxiliar os produtores a de-senvolverem alternativas economicamente viá-veis alinhadas com a proteção do meio ambiente e a saúde das pessoas.

A CQCT sugere a adoção de um modelo pro-dutivo que se identifique com o desenvolvimento rural sustentável. Os países signatários compro-meteram-se na implantação de programas de apoio à diversificação dos sistemas de produção de fumo através do estímulo à policultura e plu-riatividade. No caso brasileiro, o Ministério do Desenvolvimento Agrário (MDA – extinto) tenta executar o Programa Nacional de Diversificação em Áreas Cultivadas com Tabaco através da Políti-ca Nacional de Assistência Técnica e Extensão Ru-ral (PNATER). Estas políticas têm levado algumas famílias a procurarem alternativas de produção e comercialização agrícola a fim de diminuir a de-pendência produtiva e social da fumicultura.

Experiência 1: Produção agroecológica e sementes crioulas

Esta experiência ocorreu no município de Agu-do, sendo iniciada pela equipe local da Emater--Ascar/RS com a feira “Troca-troca de Sementes Crioulas”. Conforme os técnicos extensionistas, a cada feira realizada notava-se o aumento do nú-mero de participantes, bem como a conscientiza-ção das pessoas para produzir sem uso de insumos químicos. Os relatos dos participantes apontaram para a utilização das sementes crioulas como um importante caminho para a transformação da pro-priedade tanto pela produção de alimentos natu-rais, pela possibilidade de consumir aquilo que é visto como “limpo de venenos”, mas também por permitir a inserção de algumas famílias nas feiras locais e regionais e nos mercados com um produto diferenciado, saudável e nutritivo.

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Feira Troca-troca de Sementes Crioulas em Agudo – RS.

Neste processo de conscientização e atuação junto às famílias para uma produção de alimentos pautados nos princípios agroecológicos, destaca--se a atuação dos técnicos da Emater de Agudo/RS, os quais organizam estas feiras em diferentes comunidades do município para que as famílias troquem suas sementes e produtos, permitindo também que haja discussões e apresentações de casos para auxiliar as famílias na busca de alter-nativas mais sustentáveis e para a diminuição da produção de tabaco. Trata-se de um longo pro-cesso de ensino, conscientização e readaptação produtiva, buscando a diversificação da fumicul-tura a partir de uma produção mais sustentável na agricultura familiar.

Experiência 2: Escolas agrícolas e juventude no campo

Uma segunda experiência de diversificação foi encontrada no município de Sinimbu/RS, com a transformação de uma propriedade de lavouras convencionais para produção orgânica e com a certificação “Quintais Orgânicos”. Podemos dizer que o mais interessante neste caso é que a famí-lia encontrava-se em situação de vulnerabilidade quando um dos filhos resolveu estudar na Escola da Família Agrícola em Santa Cruz do Sul (EFASC), a fim de mudar o rumo da propriedade.

Já no primeiro ano de escola, este filho começou a trazer informações e modelos de produção pautados nos princípios orgânicos. Por insistência, transformou a lavoura tradicional do tabaco em tabaco orgânico, o que agregou valor ao produto na sua comercialização. Ainda, este

jovem pode repassar e ensinar aos pais e aos demais familiares a importância da preservação ambiental e a ideia de que uma lavoura, para ser produtiva, não precisa ser “limpa”.

Propriedade com certificação orgânica em Sinimbu – RS.

Caso semelhante foi encontrado no municí-pio de Passo do Sobrado, onde uma propriedade de três hectares, que era altamente especializada na fumicultura, inicia seu processo de diversifi-cação. O único filho do casal, ao terminar seus estudos na EFASC, inicia as transformações na propriedade, passando a plantar menos fumo e aumentar a produção de frutas e hortaliças principalmente com apoio na Emater local para comercialização desses produtos. Logo depois, um dos fornos utilizados na secagem do tabaco transformou-se em local da agroindústria fami-liar, com produção de conservas, geleias, com-potas e doces.

Propriedade de três hectares em processo de diversificação – Passo do Sobrado/RS.

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Atualmente a família comercializa seus produ-tos via mercados institucionais e de forma inde-pendente em feiras e mercados locais. A produção de tabaco tem diminuído à medida que a agroin-dústria familiar cresce. O filho que antes não que-ria seguir na fumicultura orgulha-se da transfor-mação que vem ocorrendo na propriedade e da participação da mãe nos negócios da família.

Ambos os casos demonstram que a inserção de membros da família em escolas agrícolas que asso-ciam a educação tradicional com a realidade local pode ser um importante caminho para o incentivo à diversificação na fumicultura e, consequente-mente, menor dependência da cadeia do tabaco. Ainda, ressalta-se a possibilidade dos jovens em permanecerem no campo e o papel da mulher nos novos mercados, como na agroindústria familiar.

Essa aceitação das ideias dos filhos por parte dos pais também representa uma quebra de para-digmas, de gestão rural e familiar patriarcal, algo que é fortemente enraizado nestas localidades. As transformações na gestão da propriedade, am-pliação do capital financeiro e das relações sociais da família com as instituições foram beneficiadas com a realização de um trabalho pedagógico im-portante da EFASC, bem como com o apoio dos técnicos de extensão rural (Emater) dos municí-pios para a execução das políticas públicas.

Experiência 3: Mercados institucionais e autonomia produtiva

A possibilidade de alternar produção de taba-co e alimentos é o que tem motivado uma família do município de Vale do Sol. Através da criação de frangos e venda dos ovos para o Programa Na-cional de Alimentação Escolar (PNAE) essa família tem se reestruturado no trabalho e na gestão da propriedade, já que também participam de uma importante Associação de Produtores locais.

Neste caso, o apoio técnico dos extensionis-tas da Emater foi fundamental para a mudança na propriedade. As instruções repassadas pelo veterinário e o incentivo para participar do mer-cado institucional fez com que a esposa e os fi-lhos tivessem papel essencial para o crescimento da criação de frangos. Isso tem permitido a gra-dativa redução da lavoura do tabaco a partir da ampliação dos aviários, da produção de ovos e da comercialização dos frangos, tanto pela po-lítica pública de aquisição de alimentos, quanto pela associação de produtores que possui um pavilhão para venda de produtos dos agriculto-res associados.

O que podemos aprender?

As experiências apresentadas revelam a capa-cidade dos atores em transformar uma realida-de especializada na monocultura do tabaco em diversificação produtiva com apoio de políticas públicas para o desenvolvimento rural. Estes ca-sos mostramtambém a importância de jovens e mulheres exercendo atividades agrícolas nas suas propriedades, tornando possível associar a pro-dução de tabaco com alimentos, com o uso de conhecimentos da agroecologia e outras técnicas alternativas. Certamente o trabalho desempenha-do por instituições locais como Emater e EFASC, através da assistência técnica e de uma educação voltada para o saber-fazer do campo foram, e ainda são, essenciais para apoiar as famílias que buscam diversificar sua produção e diminuir a de-pendência da fumicultura.

Mesmo que por muitos anos o caminho da especialização produtiva tenha sido ressaltado como a única forma de desenvolvimento para as regiões produtoras de tabaco e, mesmo que a Cadeia produtiva ainda esteja fortemente esta-belecida, estas experiências de diversificação na agricultura familiar descortinam a ideia do tabaco como a cultura agrícola geradora de riqueza no meio rural. Por fim, estas experiências demons-tram que a diversificação produtiva pode ser uma interessante estratégia de desenvolvimento para outros países, levando em consideração as parti-cularidades locais

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Galinheiro em propriedade de Vale do Sol – RS.

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O cultivo de tabaco no Brasil envolve cerca de 180.000 famílias de produtores em cada safra. A grande maioria delas são de agricultores familia-res da região sul do país e possuem, em média, áreas de 15,6 hectares, dedicando 17,6 % dessa superfície para o cultivo de tabaco. Além do grande número de agricultores envolvidos na produção, a importância dessa atividade é evidenciada pela po-sição que o país ocupa no comércio internacional. Atualmente o Brasil é o segundo maior produtor mundial e líder global em exportação de tabaco.

Por outro lado, apesar da importância eco-nômica dessa atividade, o consumo e cultivo do tabaco são associados a diversos males à saúde humana e ao ambiente. Em função disso, em 1999, a Organização Mundial da Saúde propôs um tratado internacional com vistas a restringir sua produção e consumo. Trata-se da Conven-ção Quadro para o Controle do Tabaco (CQCT) que foi aprovada, internacionalmente, em 2003, tendo sido ratificada, no Brasil, em 2005. A con-venção prevê, entre outras medidas, o apoio pú-blico para que os agricultores possam diversificar seus sistemas produtivos, constituindo alterna-tivas viáveis que possibilitem a substituição do cultivo de tabaco.

Nesse texto vamos apresentar a experiência de uma cooperativa de agricultores familiares do Rio Grande do Sul que, desde 2004, vem desen-

CAPÍTULO 6

Substituindo a produção de tabaco por cultivos alimentares: a exitosa experiência de uma cooperativa de agricultores familiares com os mercados institucionais no sul do Brasil

Vanderlei Franck Thies Marcelo Antonio Conterato

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volvendo diversas atividades com vistas a tornar viável a substituição da produção de tabaco por cultivos alimentares.

As pesquisas sobre produção e consumo do tabaco

Diversos estudos têm sido realizados sobre a produção de tabaco no Brasil. Os resultados não são consensuais, mas fatores como a renda ge-rada por unidade de área, o acesso à assistência técnica, as relações de confiança entre empresa e agricultores, a disponibilidade de insumos, a se-gurança na comercialização, a estrutura existente na propriedade e a tradição produtiva, aparecem como fatores que explicam a permanência dos agricultores nessa atividade.

Outras pesquisas vão destacar a posição de de-pendência e submissão dos agricultores, apontando a reduzida autonomia que eles possuem na relação verticalizada que é gerenciada desde os interesses das empresas integradoras. Além disso, são bastan-te recorrentes os relatos sobre os problemas am-bientais e casos graves e frequentes de intoxicações geradas por essa atividade produtiva, que é bastan-te intensiva no uso de agrotóxicos. Também exis-tem estudos que apresentam evidencias que pro-blematizam a ideia de que o tabaco gera melhorias nas condições de vida para todos os produtores.

O que aparece nos resultados dos estudos de forma praticamente uníssona é a existência de um pequeno número de grandes empresas multina-cionais exercendo forte controle sob o conjunto dessa atividade. Essas empresas utilizam um sis-tema de coordenação da cadeia, também deno-minado de integração, em que firmam contratos com os agricultores, disponibilizando suporte à busca por financiamento, assistência técnica, in-sumos e toda a tecnologia utilizada. Além disso, os agricultores ficam comprometidos contratual-mente a vender a produção para essas empresas, que também comandam o processo de comercia-lização, padronizando e controlando a classifica-ção do produto e a definição dos preços.

A literatura nacional e internacional também converge e oferece fartas evidências ao mostrar

os malefícios à saúde causados pelos cigarros, o que gera elevados gastos públicos no trata-mento das doenças diretamente associadas ao seu consumo.

Nesse contexto o Brasil constituiu o Progra-ma Nacional de Diversificação em Áreas Cultiva-das com Tabaco (PNDACT), que tem por objetivo incentivar o processo de transição sociotécnica, tendo como princípios: o desenvolvimento sus-tentável, a segurança alimentar, a diversificação produtiva e a participação social. Esse programa é impulsionado por meio da Política Nacional de Assistência Técnica e Extensão Rural (PNATER) e junto com o trabalho de diversas Organizações não Governamentais e da ação dos agricultores, por meio de suas próprias organizações, tem leva-do muitas famílias produtoras de tabaco a buscar alternativas produtivas.

A experiência em Porto Vera Cruz

Os vales do Rio Uruguai, no noroeste do Rio Grande do Sul, estado mais meridional do Brasil, abrigam atualmente densa população de agricul-tores familiares. Essa região, que fica na divisa do Brasil com a Argentina, é denominada fronteira noroeste, sendo povoada por descendentes de imigrantes europeus, sobretudo a partir de mea-dos do século XX.

Nas terras íngremes do Bioma Mata Atlântica, esses agricultores desenvolveram sistemas de cul-tivo e criação bastante diversificados, em peque-nas propriedades. Nos dias de hoje as pequenas propriedades ainda predominam no município de Porto Vera Cruz, onde 88 % dos estabelecimen-tos rurais são de agricultores familiares e 96 % de-les possuem menos do que 50 hectares.

Atraídos pelo discurso da elevada renda, no início dos anos 1990, parte dos agricultores do munício passa a produzir tabaco. Esse discurso teve significativa penetração no município em função de que, nesse período, 42 % da popula-ção do município era considerada extremamente pobre. Além disso, o acesso à assistência técnica e a garantia de venda do produto também atraíram os agricultores para essa atividade.

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No final dos anos 1990, após sucessivas colhei-tas, os efeitos da produção de tabaco começam a ser percebidos de forma mais clara pelos agricul-tores. Entre eles: conflitos na classificação e esta-belecimento do preço do produto, dependência, endividamento e empobrecimento, degradação dos solos, problemas de saúde relacionados ao uso de agrotóxicos e ao trabalho intenso, etc.

Frente a esse quadro, um grupo de 20 agri-cultores familiares, no ano de 2004, fundou a Cooperativa dos Agricultores Porto Vera Cruz (COOPOVEC). O objetivo de criação da coopera-tiva era constituir uma ferramenta que lhes per-mitisse implantar alternativas produtivas e de co-mercialização que possibilitassem a substituição do cultivo de tabaco por outras atividades produtivas.

Essa iniciativa dos agricultores foi estimulada pela Associação Regional de Desenvolvimento (AREDE) e logo recebeu apoio do poder público, através da assistência técnica disponibilizada pela Associação Riograndense de Empreendimentos de Assistência Técnica e Extensão Rural (EMATER) e da Secretaria Municipal de Agricultura. Apesar de articular essa rede local de apoio os primeiros anos de trabalho da cooperativa foram marcados por muitas dificuldades e pela procura das tão so-nhadas alternativas ao tabaco.

A grande mudança: o acesso aos mercados institucionais

É no ano de 2006 que a situação começa a se modificar, com o início das experiências da COO-POVEC com o Programa de Aquisição de Alimentos (PAA). Esse programa é impulsionado desde o Go-verno Federal brasileiro e realiza compras dos mais

diversos produtos da agricultura familiar e os distribui para famílias em situação de insegurança alimentar. O programa garante a compra de alimentos, nego-ciando e acordando previamente os tipos, quantida-des, prazos e preços dos produtos adquiridos.

A garantia da venda e os preços previamente acordados estimularam fortemente os agriculto-res a investir na produção de frutas e hortaliças, que gradativamente passaram a substituir o cul-tivo do tabaco. No período de criação da coope-rativa cerca de 90 % dos associados cultivavam tabaco e após a participação no PAA esse número cai para cerca de 10 %.

Os frutos colhidos pela COOPOVEC

Atualmente a cooperativa conta com mais de cem associados e no ano de 2014 já eram 64 agri-cultores que vendiam seus alimentos através do PAA. Nesse ano os alimentos eram enviados para a cidade de Santa Rosa, onde eram entregues 758 cestas e para Porto Lucena, onde se entregavam 121 cestas. Essas cestas continham grande diver-sidade de alimentos, envolvendo 37 diferentes produtos, sobretudo frutas e hortaliças.

É importante destacar diversas mudanças ob-servadas na dinâmica produtiva dessas famílias após o ingresso no PAA. Através de entrevistas realizadas em pesquisa de campo observou-se que, para 90 % dos agricultores, o ingresso nes-se programa gerou aumento da área cultivada com frutas e hortaliças para venda (para 71 % deles, esse programa foi o maior responsável por esse aumento).

Além disso, para um terço dos entrevistados, após o ingresso no PAA, ocorreu aumento na área cultivada para consumo da família, sendo que 86 % desses consideraram esse programa como o maior responsável por esse aumento. Atualmente 65 % dos agricultores consultados utilizam irriga-ção e 54 % destes passaram a usar essa tecnolo-gia em função do PAA.

Paralelo ao crescimento dos valores totais contratados e do número de associados par-

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ticipantes nos projetos do PAA, a cooperativa buscou outras atividades e fontes de financia-mento, conseguindo alavancar recursos para a instalação de uma microdestilaria, que está em funcionamento, produzindo álcool combustível, melado e cachaça. Além disso, está finalizando a construção de uma agroindústria para proces-samento de frutas, que abre novas perspectivas de agregação de valor e geração de renda, valo-rizando a produção local.

A COOPOVEC funcionou como elemento de ligação entre os agricultores, criando um relacio-namento mais compromissado coletivamente, o que representou mudanças substantivas nas di-nâmicas sociais dos agricultores, que eram forte-mente pautadas pelo individualismo. As ativida-des de capacitação cumpriram papel fundamental no sentido de consolidar essas novas dinâmicas de cooperação.

Isso permitiu o fortalecimento desses sujeitos que se encontravam isolados e ampliou o processo de aprendizagem coletiva, intensificando sua capa-cidade de agir e produzir mudanças que lhes fossem favoráveis. Assim, a constituição da cooperativa per-mitiu alterações no relacionamento dos agricultores com os mercados e com a sociedade local, estrei-tando os vínculos entre produtores e consumidores.

Além disso, o trabalho impulsionado pela cooperativa possibilitou uma nova dinâmica de relacionamento com as instituições e as políticas públicas, consolidando canais de comercialização, como o PAA e abrindo espaços em feiras munici-pais e regionais. O trabalho da cooperativa tam-bém impulsionou e deu suporte a mudanças nos sistemas produtivos das famílias, de acordo com as especificidades ecológicas locais, ampliando a pro-dução e venda de alimentos mais saudáveis e o de-senvolvimento de experiências com sistemas pro-dutivos mais sustentáveis, como as agroflorestas.

A experiência relatada evidencia a importân-cia da organização dos agricultores que, apoiados por políticas públicas específicas, constituíram no-vas trajetórias de desenvolvimento. O acesso aos mercados institucionais mostrou-se um elemento estruturador de novas dinâmicas de desenvolvi-mento rural que, associado a organização dos agricultores, possibilitou a ampliação do protago-nismo e da autonomia destes nos processos de produção e comercialização. Isso tudo foi funda-mental para permitir a substituição do cultivo de tabaco por alimentos.

Face às instabilidades políticas e institucionais vividas no Brasil atualmente e as dúvidas decor-rentes sobre a continuidade de diversas políticas públicas, cabe destacar a importância da conti-nuidade do PAA como instrumento catalizador do desenvolvimento rural sustentável.

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PARTE IIIAGROECOLOGIA E

DESENVOLVIMENTO RURAL SUSTENTÁVEL

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Possibilidade de geração de renda conciliada à conservação da biodiversidade

No estado do Rio Grande do Sul, frutas como jabuticaba, butiá, guabiroba, araçá fazem parte da cultura local. Muitas pessoas as conhecem ou lem-bram que na infância, de maneira lúdica, subiram em árvores para poder degustar o sabor silvestre. Entretanto, atualmente, a aquisição dessas frutas nativas ou de seus produtos derivados é restrita, principalmente pela baixa oferta nos mercados. Por isso, o consumidor acaba levando espécies exóticas, consideradas mais produtivas pelos pro-dutores e que são facilmente encontradas em lo-cais de comercialização de alimentos.

Existe uma riqueza de espécies nativas no Rio Grande do Sul, que, historicamente, foram negligenciadas ou pouco utilizadas. Percebendo isso, técnicos do Centro de Tecnologias Alterna-tivas e Populares (Cetap), que é uma organiza-ção não governamental (ONG) do município de Passo Fundo/RS, identificaram a possibilidade de geração de renda para os agricultores fami-liares ecologistas, situados em oito regiões do Rio Grande do Sul, por meio da coleta de fru-tas das espécies nativas existentes em suas pro-priedades. Esses produtores utilizam sistemas de produção de base ecológica em pequenas áreas de terra, com mão de obra familiar, produzindo

hortaliças, feijão, milho, mel, queijo artesanal e frutas nativas, as quais são utilizadas para con-sumo próprio e o excedente comercializado em feiras. Essa ONG iniciou o trabalho de assessoria técnica, buscando aliar a produção das frutas na-tivas com a conservação da biodiversidade local.

A proposta de criar uma cadeia produtiva sur-giu com a ideia de preencher esta lacuna, com expectativa de promover desenvolvimento com geração de oportunidades aos agricultores fa-miliares ecologistas acompanhados pelo Cetap, além de levar aos consumidores alternativas para uma alimentação natural e saudável, com susten-tabilidade ambiental.

CAPÍTULO 7

Frutas nativas do Rio Grande do Sul: possibilidade de geração de renda conciliada à conservação da biodiversidade

Ana Lúcia Oliveira da Silva Leonardo Xavier da Silva

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O começo

Os técnicos do Cetap, ao realizarem trabalho de assessoria com o objetivo de contribuir para a afirmação da agricultura familiar e suas organiza-ções, e na construção da agricultura sustentável, com base nos princípios da agroecologia, consta-taram, em 2001, a presença de espécies arbóreas

nativas nas propriedades assessoradas. Observou--se que os agricultores familiares atendidos pelo Centro não faziam uso das frutas produzidas por tais espécies.

O reconhecimento de que as frutas nativas es-tão pouco presentes nos sistemas de produção de alimentos e na cultura alimentar fez com que a

Legenda

Campos de Cima da serraHortênsiasLitoralMetropolitana Delta do JacuiNorteNordesteProducaoVale do Rio dos Sinos

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ONG desse início ao trabalho voltado para a im-portância e ao potencial socioeconômico, levan-do à conservação das mesmas, estando estas em seus ambientes naturais, ou sendo cultivadas em sistemas agroflorestais.

A entidade contribuiu com ações que respal-daram o empreendimento “Encontro de Sabo-res” para a formação da cadeia produtiva das frutas nativas. Tal iniciativa colabora para a troca de conhecimentos, experiências e integração en-tre os meios rural e urbano, propiciando comple-mentaridade entre ações desenvolvidas para uma ampliação de oportunidades, associadas à preser-vação da biodiversidade local.

O nascimento do empreendimento “Encontro de Sabores”

Os três fundadores do empreendimento “En-contro de Sabores”, Alvir Longhi, Lauro Foschiera e Lidia Figueiró, que também participavam do cor-po técnico do Cetap, avaliaram que, para obter um avanço da atividade econômica na região de atuação, era necessário um articulador da comer-cialização dos produtos procedentes dos sistemas agroflorestais ou dos remanescentes florestais existentes nas propriedades dos agricultores, a fim de motivá-los a cuidar e a cultivar as espécies vegetais nativas.

Assim, o “Encontro de Sabores” foi constituí-do para fazer a conexão entre os agentes da ca-deia produtiva, a comercialização e a circulação de produtos. Também estimou-se que era funda-mental elaborar diferentes subprodutos para que o empreendimento pudesse viabilizar-se econo-micamente. Depois de criado o nome, elaborou--se a marca do empreendimento.

Marca criada para o empreendimento “Encontro de Sabores”, em 2001

Com o intuito de realizar a venda aos consu-midores, foi feito um trabalho de divulgação por meio de aulas de gastronomia, para informar so-

bre a possibilidade de produzir uma variedade de subprodutos a partir das polpas de frutas nativas (amora, araçá, butiá, goiaba, guabiroba, jabutica-ba, uvaia, açaí-juçara) ou pinhão.

Um avanço

A Cadeia das Frutas Nativas foi eleita, em 2012, para participar do convênio entre o es-tado do Rio Grande do Sul, por meio da Secre-taria da Economia Solidária e Apoio à Micro e Pequena Empresa do Estado do Rio Grande do Sul (Sesampe), e a Fundação de Educação para o Associativismo (FEA/Colacot), no marco do pro-jeto “Cooperação Internacional no Âmbito da Economia Solidária entre o Rio Grande do Sul e Países da América Latina e Caribe”. A escolha se deu, por um lado, por ser uma das cadeias que mais se projeta como estratégica e com po-tencial de crescimento no Rio Grande do Sul, e, por outro, por carecer de informações técnicas organizadas que permitam avançar na estrutura-ção de todos os elos dessa cadeia produtiva. Os objetivos do convênio são o fortalecimento da estratégia de organização e a estruturação das cadeias produtivas solidárias, como desenhada e impulsionada pela Sesampe/RS no marco da política pública. Atualmente, a cadeia produtiva conta com a participação de cerca de 500 agri-cultores familiares ecologistas, além de entida-des parceiras, ONG, associações, cooperativas e empreendimentos da economia solidária de 32 municípios do Rio Grande do Sul.

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Papel das políticas públicas

Alguns estudos acadêmicos já foram apresen-tados com o propósito de aportar subsídios que venham servir de referência para a construção de políticas públicas, as quais possam apoiar de maneira mais efetiva esta cadeia produtiva. Uma das demandas, na fase inicial, é a necessidade de apoio para suprir as precariedades, com a fina-lidade de motivar a produção e a utilização das árvores frutíferas. Outro gargalo é o suporte ins-titucional que contemple a diversidade produtiva, algo que contribua para a preservação da identi-dade daqueles (direta ou indiretamente) envolvi-dos na atividade.

As entidades que prestam serviço de acom-panhamento técnico às famílias e aos grupos vêm encontrando pouco apoio das políticas pú-blicas estaduais e nacionais, no sentido de dar continuidade aos trabalhos e de aprimorar os processos já utilizados. Para os técnicos, é in-dispensável que haja um programa de financia-mento ou uma forma de custeio que possibilite a aquisição de materiais e insumos por parte das famílias de agricultores, a fim de implantar o manejo de áreas de sistemas agroflorestais (SAF) e melhorar os processos de colheita e es-tocagem de frutas. Os técnicos reforçam que tal programa deveria se estruturar em cima da pre-missa de que esta ação cumpre com uma função ambiental relevante e, portanto, é de interesse do conjunto da sociedade.

Nas comunidades rurais, 80 % das iniciativas de produção de polpa de frutas nativas, na área geográfica de atuação, são realizadas em espa-ços informais, conforme a legislação que regu-

lamenta a atividade. A maioria dos participantes entende que há urgência de formalização, porém sem que isso descaracterize o trabalho. São ne-cessárias dinâmicas organizativas, infraestruturas e uma legislação adequada a essa realidade.

A avaliação dos agricultores

Os agricultores que possuem árvores nativas ou que implantaram sistemas agroflorestais, apesar dos desafios a serem enfrentados, são otimistas quanto ao retorno econômico da atividade, pois muitos são voltados a sistemas de cultivos para a subsistência de mão de obra familiar, o que gera uma pequena renda às famílias. Este é um dos re-sultados do trabalho realizado pelo Cetap, o qual contribui para que os agricultores sejam orienta-dos e capacitados para o manejo dessas espécies. No entanto, mais informações são necessárias por parte dos agricultores sobre o consumo das frutas nativas e demais elos da cadeia produtiva.

Alguns consumidores do município de Pas-so Fundo são conhecedores dos atributos dos produtos procedentes das frutas nativas e das ações que envolvem a sua produção e comer-cialização, mas destacam a restrição de locais de comercialização.

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A prática e o aprendizado

Muito se pode aprender ao observar o caso da cadeia produtiva das frutas nativas. O olhar é ca-paz de se voltar para o consumidor, que se sente comprometido e sensibilizado com a proposta do empreendimento de comercializar produtos sem aditivos químicos na fase inicial da produção, na coleta ou na implantação de sistemas agroflores-tais, e sem conservantes, corantes, aromatizantes no momento da transformação das frutas em pol-pas ou beneficiamento.

Pela perspectiva direcionada para o centro da cadeia, constata-se que a ação do empreendi-mento “Encontro de Sabores” é voltada, de um lado, para a articulação com entidades governa-mentais e não governamentais para fomentar e organizar a cadeia produtiva, como, por exem-plo, obter respaldo financeiro para implementar infraestrutura e gerar demanda, prospectando clientes potenciais, como os empreendimentos que trabalham com modelo produtivo, segundo premissas da economia solidária. Um dos resulta-dos dessas ações foi a entrega feita pela Sesampe/RS de um veículo para a realização de um circuito para a distribuição e o recebimento de picoletei-ras para a diversificação de produtos.

Por outro lado, quanto à demanda, esta ain-da não é expressiva, o que deflagra que a eta-pa da comercialização carece de estratégias para efetivar e complementar a cadeia. A operaciona-lização atual é executada de forma a atender à pouca procura com estoques relativamente altos para o contexto apresentado, ou que são pou-co comportados pela estrutura disponível. Cabe lembrar que a proposta original de estruturação da cadeia produtiva das frutas nativas tem como um dos objetivos implementar um distinto forma-to de produção, processamento e distribuição de alimentos, o qual segue uma lógica de estímulo à conservação da biodiversidade local, iniciando--se pela motivação à criação de empreendimentos (rurais e urbanos) da economia solidária e ao for-talecimento dos já existentes.

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A produção de banana a partir de sistemas de produção de base ecológica tornou-se uma opção viável para os agricultores do litoral do Rio Grande do Sul, no sul do Brasil, mediante as crescentes restrições impostas para a produção agrícola atra-vés da legislação ambiental. Uma vez que o bio-ma Floresta Atlântica está sob ameaça ambiental, as regras de utilização do solo se tornaram mais restritas nas últimas duas décadas, situação que motivou a busca por soluções alternativas de per-manência na região e na atividade agrícola, pro-movendo a conservação do solo.

A experiência dos bananicultores gaúchos mostra que a comunidade venceu o desafio de manter a produção e promover a preservação am-biental, garantindo o sustento das famílias diante

das restrições de uso do solo e servindo de mo-delo e inspiração para outras comunidades rurais. Este sucesso foi alcançado através da organização social dos produtores em torno do Centro Ecoló-gico e da sua capacidade de transformação em face às adversidades.

CAPÍTULO 8

Sistemas agroflorestais como estratégia de reprodução da agricultura familiar

Carolina Braz de Castilho e Silva Daniela Garcez Wives

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O bioma floresta atlântica e a legislação ambiental

Dentre os biomas brasileiros, a Floresta Atlân-tica, que abrange a costa sul, sudeste e leste do país, está entre os mais ameaçados, sofrendo pres-são pela exploração de seus recursos biológicos e usos agrícolas não apropriados. A biota presente nesse bioma contribui para o ajuste climático, de temperatura, de umidade e de chuvas, influen-ciando a fertilidade do solo, protegendo escarpas de serras e nascentes e contribuindo diretamente para a manutenção e existência dos fluxos dos mananciais de água. No entanto, a cobertura ori-ginal da Floresta Atlântica encontra-se bastante devastada, ameaçando a conservação da alta taxa de biodiversidade ali existente (são aproximada-mente 20.000 espécies vegetais e 1.650 espécies animais, das quais, 8.000 endêmicas).

Com o reconhecimento dessa ameaça, a utili-zação dos recursos da Floresta Atlântica tem sido restringida pela legislação ambiental, por meio do Código Florestal Brasileiro (Lei 1.428/2006), do Có-digo Florestal Estadual (Lei 9.519/1992) e do Có-digo Estadual do Meio Ambiente (11.520/2000).

Ainda, a Floresta Atlântica foi reconhecida pela Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura (UNESCO) como Reserva da Biosfera e transformada em Patrimônio Nacional pela Constituição Federal Brasileira de 1988, in-fluenciando políticas públicas para a manutenção da diversidade biológica dos seus fragmentos re-manescentes de vegetação nativa.

O Código Florestal, criado em 1992, aumen-tou as restrições de atividades produtivas nas áre-as de floresta, proibindo ações de corte, queima e a exploração da vegetação nativa, para preservar a fauna silvestre. Com isso, gerou-se um descom-passo entre as ações de conservação e proteção impostas pela legislação e as formas de reprodu-ção social das populações locais.

Especificamente no Rio Grande do Sul, na mi-crorregião litoral norte, as novas leis de proteção ambiental alteraram as dinâmicas locais das famí-lias produtoras de banana, cujos sistemas produ-

tivos estavam baseados na queimada, e geraram, em muitos casos, o abandono da atividade agrí-cola e das propriedades rurais, comprometendo o sustento das famílias.

A produção de banana no litoral norte

Os moradores do litoral norte do Rio Grande do Sul tradicionalmente obtêm seu sustento da agri-cultura, especialmente, cultivando banana. A ba-nanicultura, uma das produções de maior expres-são comercial da porção sul da floresta atlântica, é produzida com técnicas de manejo convencionais e também, de forma antagônica, por manejo de base ecológica, por cerca de 500 famílias.

Filhos de agricultores e originários da região, os bananicultores, em geral, apresentam idades próximas aos 50 anos, grande experiência na pro-dução de banana e baixa escolarização formal (ensino fundamental incompleto). Entre os filhos que residem nas propriedades, grande parte são estudantes em idade escolar. Entre os adultos jo-vens, a maior parte dedica-se à agricultura, garan-tindo a sucessão da propriedade.

De forma geral, os bananicultores apresentam propriedades pequenas, com cerca de cinco hec-tares, e utilizam sistemas produtivos baseados na queimada e no uso de insumos de origem fóssil. Com a implantação da nova legislação, as comu-nidades se defrontaram com um novo desafio e buscaram formas de manter sua reprodução so-cial, uma vez que os cultivos temporários ficaram mais restritos.

Sendo a banana um cultivo permanente, as áreas já estabelecidas não sofreram impactos, exceto em casos onde era necessário ampliar as plantações. Em Mampituba, no litoral norte, grande parte das áreas ocupadas com cultivos temporários foram comprometidas, bem como foi restringida a produção dos derivados de cana--de-açúcar. Assim, a bananicultura passou a ser uma opção, pois, essas áreas podem ser conside-radas permanentes, levando muitos agricultores a ocupar suas roças com bananais.

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É neste contexto de impasse entre preservação ambiental e sustento familiar pela atividade tradicional que as comunidades encontraram novas formas de organização e interação com o ambiente. A produção de base ecológica nos moldes dos sistemas agroflorestais se apresenta como uma solução para garantir a produção de banana na floresta atlântica, respeitando os limites de uso do solo estabelecidos pela legislação ambiental, e ga-rante a permanência das famílias nas comunidades.

É o cultivo de base ecológica que permite aos produtores preservarem o bioma, com a vantagem de que aumenta a renda das famílias, mesmo em pequenas áreas de terra, por isso, sua experiência de resistência torna-se um caso de sucesso que deve ser compartilhado, inspirando outras comunidades a produzir semeando a sustentabilidade.

Os sistemas agroflorestais (SAF)

Com a introdução do Código Florestal Brasi-leiro, do Código Florestal Estadual e do Código Estadual do Meio Ambiente, os bananicultores que tinham suas áreas de encostas com elevada declividade, cobertas com florestas, não puderam mais desmatá-las, como havia ocorrido a partir dos anos de 1950, no início da bananicultura.

A bananeira necessita de baixo aporte de mão de obra. Ela pode ser cultivada em terrenos mais acidentados, em uma faixa altimétrica de no má-ximo 400 metros, seja pelo frio, geada e condi-ções para realizar o manejo das plantações, adap-tando-se bem às características das propriedades rurais da região.

Nessas unidades de paisagens, de alta, média e baixa encosta, a bananeira tem as melhores condições do estado para se desenvolver. Ela exi-ge calor, precipitações bem distribuídas ao lon-go do ano e elevada umidade para o seu bom desenvolvimento e produção, condições que são propiciadas pelos microclimas nas escarpas dos vales e fundos de vales.

Nestas condições paisagísticas, o SAF se rela-ciona de forma harmoniosa com as potencialida-

des deste espaço. O sistema de cultivo ecológico SAF é utilizado nos sistemas ecológicos apresen-tando um nível de tecnificação baixo em relação a equipamentos de tração, por exemplo. Há uso de pulverizadores manuais, na maioria dos casos, além de tração animal e motriz leve para recolher a colheita e auxiliar na adubação.

Sob a ótica do desenvolvimento rural sustentá-vel, tecnologias de manejo dos sistemas agroflores-tais (SAF) aproveitam os princípios ecológicos de produção gerando sistemas mais produtivos e de menor impacto ambiental. Eles associam diversos ti-pos de manejos tais como: rotação de cultivos, con-trole biológico, cultivos associados, sistemas mistos agropecuários, insumos alternativos, entre outros.

A singularidade dos sistemas agroflorestais (SAF), utilizada pelos cerca de 500 agricultores, se apresenta como uma resposta à situação en-frentada no litoral norte. Isto se dá, sobretudo, pelo trabalho desenhado pelo Centro Ecológico Ipê Serra – Litoral Norte – Assessoria e Formação em Agricultura Ecológica (CE), localizado, desde 1991, no município de Dom Pedro de Alcântara.

O Centro Ecológico (CE) promove avanços sus-tentáveis na agricultura, através do uso de tecno-logias voltadas para a preservação ambiental e a justiça social. O CE promove capacitação para or-ganizações de agricultores familiares para a pro-dução de alimentos ecológicos. Especificamente em Dom Pedro de Alcântara, o centro mantém seu foco no apoio holístico dos produtores, mais do que na unidade produtiva.

Foi a partir da instalação do CE na região que os produtores puderam realizar a transição de modelo produtivo. A mudança do modelo con-vencional para SAF vem alterando a geografia da produção e proporcionando uma reorganiza-ção total do modelo produtivo e de organização dessas comunidades. Para os agricultores que se organizaram e se associaram, o SAF representou uma alteração profunda no sistema social ao qual estavam inseridos. O uso do sistema agroflores-tal representou uma nova forma de relação dos agricultores com os recursos naturais, através de suas práticas, diversas formas de representações

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socioambientais, das técnicas, da exploração dos recursos, da organização e gestão dos territórios.

A produção de banana orgânica no litoral nor-te do Rio Grande do Sul, além de produzir ali-mentos saudáveis, apresenta-se, portanto, como uma possibilidade real de reprodução social das famílias, manutenção das propriedades rurais e preservação ambiental, mantendo alto índice de cobertura do solo, uma vez que apenas é realiza-da a roçada para controle da cobertura vegetal. Nesse processo, os recursos e relações locais fo-ram mobilizados para ajudar as comunidades a lidar com os impactos da legislação ambiental, e os sistemas SAF permitiram que os bananicultores mantivessem o uso da terra e aumentassem a sua renda, proporcionando uma nova forma de orga-nização e interação com o ambiente.

Buscando preços e comercialização diferencia-dos, sem atravessadores, aumento da qualidade

e custo de produção diferenciado, os produtores se organizaram em associações, vendendo sua produção em quatro feiras ecológicas diretamen-te para o consumidor. A capacidade de organiza-ção local e a pressão sobre instituições públicas e privadas geraram a criação e inserção em novos mercados, com espaços diferenciados de comer-cialização, mudando a matriz de inserção social dos agricultores.

Os alimentos locais, para além do produto or-gânico, garantem a reprodução social e a autono-mia de agricultores e comunidades, e representam uma alternativa produtiva através da biodiversida-de local manejada por sistema tecnológico sus-tentável. Assim, a agricultura familiar favorece o desenvolvimento sustentável e mostra que os sistemas agroflorestais podem viabilizar a repro-dução social das famílias, objetivo alcançado com a organização social dos agricultores e a presença de instituições de apoio à agricultura familiar.

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O Município de Sobral, Ceará, foi selecionado para a realização de uma pesquisa em desenvolvi-mento rural sustentável com foco na convivência com o Semiárido. Sobral está localizado na região noroeste do estado do Ceará, inserido no Semiá-rido nordestino brasileiro, suscetível às frequentes perturbações climáticas, denominadas de secas. O município caracteriza-se por um intenso pro-cesso de urbanização (88,3 %) e a população ru-ral apresenta elevado estágio de pobreza. Apro-ximadamente 80 % da população é considerada como pobre e 31,2 % extremamente pobre.

Em 2011, o Projeto Cabra Nossa de Cada Dia (PCNCD), uma das referências de combate à po-

breza no meio rural no país, reconheceu a neces-sidade de ampliar as estratégias de inclusão social e produtiva dos agricultores e solicitou à Embrapa um projeto de pesquisa que possibilitasse a cons-trução de soluções para as famílias parceiras do PCNCD. Essa demanda resultou, em 2012, no pro-jeto Sustentare, apoiado pelo Macroprograma 6 da Embrapa, que tem como objetivo administrar projetos multi-institucionais e interdisciplinares voltados para o desenvolvimento sustentável da agricultura familiar e de comunidades tradicionais.

Foram selecionadas três comunidades rurais para serem espaços de referências no proces-so de desenvolvimento rural sustentável. Nesse

CAPÍTULO 9

Projeto Sustentare: trabalhando para e com os agricultores do município de Sobral, Ceará,

em busca do desenvolvimento sustentável

Adriana Brandão Nascimento Machado Jorge Luis de Sales Farias

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contexto empírico, foi delineado um modelo de inovação de natureza interativa, que se caracte-rizou por sua orientação aos atores. Para tanto, foi desenvolvida e utilizada uma abordagem so-ciotécnica de natureza construtivista que permitiu a interface entre conhecimento científico e táci-to, reconhecendo sua complementariedade na construção de conhecimentos, como uma prática e processo de construção social. A metodologia consiste de seis etapas: gestão para autonomia, conhecer para atuar; planejar para fortalecer, construir a sustentabilidade local, monitorar e avaliar a sustentabilidade e comunicar para o de-senvolvimento, conforme a figura a seguir.

Projeto Sustentare: resultados da primeira fase

A abordagem utilizada nas comunidades do município de Sobral revelou questões locais sobre os aspectos econômicos, sociais e ambientais. Ini-cialmente, verificou-se uma elevada agrobiodiversi-dade local, porém, notou-se uma erosão genética dos recursos locais, principalmente pela perda de sementes devido às perturbações climáticas e/ou pela existência de um programa estadual de doa-ção de sementes. Constatou-se que os sistemas produtivos são realizados em agroecossistemas que se encontram em colapso ambiental e social, com o uso do desmatamento e queima da vegeta-

ção nativa e o deslocamento da força de trabalho para o meio urbano, caracterizando um processo de desativação das famílias com a agricultura.

Assim, o contexto da ruralidade desse muni-cípio enfrenta questões relacionadas com fatores climáticos, ausência de políticas para o desenvol-vimento rural sustentável, direcionamento de po-líticas para o meio urbano com a dinamização de setores de serviço e indústria, o que resultou em marginalização das comunidades rurais com a di-minuição do peso da agricultura na manutenção das necessidades dessas famílias, ampliando a cri-se de reprodução da agricultura de base familiar.

A partir dessas informações iniciais, foram identificadas de forma participativa as demandas locais, que apresentaram como elemento comum o fortalecimento da autonomia dos agricultores familiares. Cada uma das três comunidades em que o projeto atua possui suas particularidades. A utilização da metodologia possibilitou captar essas nuances que existem nos locais, tanto que as demandas são diferenciadas, mas convergem para temas afins: transição agroecológica (mu-dança da agricultura que desmata e queima para uma agricultura sustentável), construção social de mercados e manejo da agrobiodiversidade (es-pécies animais e vegetais existentes na comuni-dade). As estratégias adotadas são distintas, de acordo com a realidade de cada local.

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Uma nova agenda para o projeto

A comunidade Pé de Serra Cedro tem um his-tórico de resistência e luta pela terra, que levou a uma organização social mais intensa, com a for-mação de dispositivos coletivos (associação comu-nitária e rede de guardiões de sementes crioulas) e à formação de lideranças. Nesse local o traba-lho é direcionado para o fortalecimento da auto-nomia dos agricultores e de sua capacidade de ação. Nas outras duas comunidades, Sítio Areias e Sítio São Francisco, os moradores estavam em processo de imobilismo social, atomizados e sem uma identidade local. As ações do projeto têm possibilitado o resgate das capacidades dos agri-cultores como agentes transformadores do seu desenvolvimento. No Sítio São Francisco, a lide-rança do agricultor Antônio Mateus se destaca e os agricultores viviam a mercê do líder para tomar as decisões. Hoje, encerrada a primeira fase do projeto, as pessoas começam a desenvolver sua individualidade e autonomia.

Iniciou-se nessas comunidades um processo de transição sociotécnica, com a adoção da agroe-cologia como matriz científica com a emersão de diferentes inovações, relacionadas ao manejo da biodiversidade e agrobiodiversidade, redesenho de agroecossistemas e construção social de mer-cados. Foram prospectadas demandas de pesqui-sa junto aos agricultores familiares parceiros do projeto Sustentare e verificou-se a necessidade de construção coletiva de conhecimentos agroecoló-

gicos que possibilitem o fortalecimento de suas redes e identidades, com a valorização de seus contextos locais.

Outro resultado prático foi o estabelecimento de um processo de mercantilização que possibili-tou a autonomia dos agricultores em mercados. Para tanto, foi selecionada a estratégia de cons-trução social de mercados que tem possibilitado a inclusão socioprodutiva dos agricultores, antes dependentes dos atravessadores para comerciali-zar seus produtos. Foram realizadas quatro feiras nessa comunidade, e nesse espaço os agriculto-res reafirmaram suas identidades social e cultural quando a denominaram de “Feira da Agricultura Familiar Pé de Serra Cedro: Valorizando as Com-petências Locais”. De acordo com avaliação reali-zada, os agricultores afirmaram que o experimen-to superou as próprias expectativas, tornando-se uma opção para a geração de renda e valorização das competências locais da comunidade, passan-do a fazer parte da agenda de eventos da comu-nidade, com a realização de duas feiras anuais.

No Sítio Areias foi implantado um quintal pro-dutivo, um sistema agroflorestal, uma casa de sementes e feito o reflorestamento de uma mata ciliar degradada. No Pé de Serra Cedro também está sendo recuperada uma área degradada onde foi montado um sistema dividido em três faixas, fazendo uma comparação entre o cultivo tradicional, a incorporação de matéria orgânica e de leguminosas.

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Promoção da autonomia: o caso do Chiquinho

No mês de fevereiro de 2016, o agricultor e presidente da Associação de Moradores da comu-nidade Pé de Serra Cedro, que fica no município de Sobral, no estado nordestino do Ceará (Brasil), Francisco das Chagas de Souza, foi pela primeira vez à capital do País. Chiquinho, como é conhe-cido em sua comunidade, foi a Brasília (DF) para participar de uma reunião do projeto Bem Diverso, fruto de uma parceria entre a Empresa Brasileira de Pesquisa Agropecuária (Embrapa) e o Progra-ma das Nações Unidas para o Desenvolvimento (PNUD), com recursos do Fundo Global para o Meio Ambiente (GEF), cujo objetivo é a conser-vação da biodiversidade brasileira e a geração de renda para comunidades tradicionais e agriculto-res familiares. A missão do agricultor nesta reu-nião foi apresentar a metodologia e os primeiros resultados do projeto Sustentare, que vem sendo desenvolvido em sua comunidade desde o ano de 2012 por pesquisadores da Embrapa.

Em sua viagem a Brasília, Chiquinho apresen-tou aos integrantes do projeto Bem Diverso os re-sultados da primeira fase do projeto Sustentare, que ocorreu de 2012 a 2015, e o que está sen-do planejados para a segunda etapa, iniciada em 2016 com previsão de término em 2019. “Cada representante de território apresentou seu projeto e todos eram com algum produto. Eu cheguei di-zendo que nós não trabalhamos com um produ-to apenas, nós trabalhamos com o SAF (Sistema Agroflorestal) e, principalmente, com as pessoas. Aí a equipe de lá falou que então nós temos o principal”, explica o agricultor.

Em relação às novas atividades, Chiquinho diz que as expectativas são as melhores. “Acha-mos que a primeira fase foi boa e a segunda será melhor. Tivemos dificuldades que estamos cor-rigindo, como o acompanhamento de algumas ações. Agora vamos trabalhar para construir uma cozinha industrial comunitária e para a formação de uma rede de consumidores para os produtos das comunidades”. Ressalta-se que ao final da primeira fase do projeto Sustentare foram pros-

pectadas demandas de pesquisa e inovação e os agricultores foram sujeitos ativos desse processo. Verificou-se que as principais demandas de pes-quisa e inovação apresentam como característica a convivência com o semiárido. Os principais te-mas para ações futuras foram o manejo da agro-biodiversidade, redesenho de agroecossistemas, agregação de valor de produtos de sua agrobio-diversidade, construção social de mercados e pro-moção e fortalecimento da rede de agricultores experimentadores.

Na visão dos agricultores envolvidos, o maior legado da primeira fase do projeto Sustentare para as comunidades é o conhecimento. “O que o projeto deixou de mais importante foi conhe-cimento, principalmente a não desmatar e quei-mar, que era como a gente fazia antes. Mas mes-mo com a gente dizendo, tem gente que ainda faz porque acham que dá mais resultado. O co-nhecimento é o mais importante porque através dele é que a gente conseguiu as outras coisas, como a cisterna e o plantio de frutas e legumes”, explica a agricultora Antônia Leuda Rodrigues de Souza, responsável pela casa de sementes, que ela acredita que também tem trazido benefícios para a comunidade. “A experiência da casa de sementes tem sido muito importante, já temos 14 sócios que utilizam as sementes e também estamos produzindo mudas para preservar as es-pécies nativas”.

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Comunicação e fortalecimento da autonomia como diferenciais

A forma de se comunicar com os agricultores e a busca por fortalecer a sua autonomia repre-sentam um diferencial importante na metodolo-gia utilizada no projeto Sustentare. As ações de comunicação não são voltadas apenas para a divulgação de informações para os participantes do projeto, busca-se uma interação, um intercâm-bio dos saberes entre todos os envolvidos para a construção de conhecimentos que possibilitem o desenvolvimento das comunidades.

Para o jornalista e pesquisador do Departa-mento de Transferência de Tecnologias da Embra-pa Antônio Heberlê, “o Sustentare aplica de fato metodologias participativas, o que não é fácil, porque o agir interativo requer uma programação mental diferente daquela a que se está acostu-mado a exercer na vida prática, competitiva, que força ao individualismo. Neste projeto, a essência da participação é respeitada”.

Esta também é a opinião da agricultora Fran-cisca Rodrigues de Souza, que destaca a forma de trabalho dos técnicos envolvidos no projeto. “Ninguém nunca tinha vindo trabalhar com a gente, chegavam aqui, diziam como tinha que fa-zer, iam embora e depois queriam ver o resultado. Os meninos, não. Eles vieram trabalhar junto com a gente. Como a gente fala, é um trabalho para e com os agricultores. O que ficou de mais impor-tante foi o conhecimento que a gente adquiriu. A gente nem sonhava com tudo o que aconteceu na comunidade com o projeto”, conclui.

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A importância das agroindústrias familiares tem crescido nos últimos anos no Brasil. Em nível nacional, as estimativas do Ministério do Desen-volvimento Agrário apontavam para a existência de aproximadamente 35.000 agroindústrias fami-liares. Já os dados do Censo Agropecuário desta-cam que 16,7 % dos estabelecimentos rurais no Brasil beneficiam e/ou transformam alguma ma-téria-prima. No país, os valores totais da produção das agroindústrias rurais atingiram R$ 3 bilhões no ano de 2006, enquanto no estado do Rio Grande do Sul geraram R$ 231 milhões em valores da pro-dução. Ainda para esse estado, os dados do Pro-grama da Agroindústria Familiar (PAF/RS) relativos ao ano de 2011 apontam a existência de 7.700 agroindústrias familiares.

Em meio a esse contexto de avanço da agroin-dustrialização em propriedades de produção fa-miliar, vem, também, ganhando espaço, o pro-cessamento de produtos orgânicos. Os dados

do Censo Agropecuário também evidenciam a importância da agricultura orgânica de base eco-lógica. No país, 90.000 estabelecimentos agrope-cuários desenvolvem este tipo de produção, re-presentando 1,75 % do total de estabelecimentos existentes.

Neste sentido a agroindustrialização de ali-mentos se apresenta como uma alternativa de melhoria de vida na agricultura familiar, transfor-mando alimentos e agregando valor a estas ma-térias-primas. A estratégia de agregação de valor aos alimentos e produtos in natura foi a forma encontrada pela família Gehn e pela família Laza-retti, na região norte do estado do Rio Grande do Sul, para se viabilizarem no meio rural e melhorar em sua qualidade de vida e renda gerada.

Os casos das duas famílias acima citados foram estudados pelo Núcleo de Estudos em Agroecolo-gia e Produção Orgânica (NEA UFRGS),4 objetivando

4 NEA: ‹https://www.ufrgs.br/nea›.

CAPÍTULO 10

A agroindustrialização familiar ecológica como estratégia de melhoria da qualidade de vida e da renda nos espaços rurais

Marcio Gazolla Carolina Brignoni

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identificar a renda gerada a partir da agroindus-trialização de produtos ecológicos e o quanto estes alimentos agregam de valor com os processos de transformação agroindustrial em pequena escala. Além disso, os dois casos apresentam lições inte-ressantes de sucesso para se pensar os processos de desenvolvimento rural em direção à melhoria contínua da qualidade de vida das famílias rurais.

A tradição repassada de mão em mão...

O primeiro caso trata da família Gehen, do Município de Seberi/RS. É uma família composta por quatro pessoas (pai, mãe, filho e nora), cuja principal atividade é a produção de erva-mate ecológica de barbaquá. Possui este nome por uti-lizar uma estrutura antiga de processamento da erva-mate – o barbaquá – que era muito utilizado na fabricação artesanal da infusão. Essa família se dedica à produção de erva-mate há cinco gera-ções, sendo que os conhecimentos tácitos e con-textuais em torno das atividades de cultivo, ma-nejo da cultura, colheita, processamento e vendas foram sendo repassados de geração em geração no interior do núcleo familiar.

A preocupação com o meio ambiente, o manejo e a qualidade dos produtos ofertados são um dife-rencial da família, que toma todos os cuidados para que seu produto mantenha um elevado padrão de qualidade, como, por exemplo, evitando qualquer forma de contato das plantas com agroquímicos.

Além da área de mato nativo, a propriedade possui 13,5 hectares e conta com uma área de reflorestamento de cinco hectares. Estas áreas são pensadas de forma a proteger as plantas de erva--mate de possíveis contatos com agroquímicos oriundos das propriedades vizinhas.

Também tomam o cuidado nas operações de sapeco, cancheamento e moagem da erva-mate, que, em média, esse processo dura uma semana, de forma a garantir a artesanalidade e a manu-tenção das propriedades aromáticas e de sabo-res naturais da bebida. Na indústria de erva mate convencional, este mesmo processo produtivo pode levar apenas um ou dois dias, perdendo-se muito da naturalidade da bebida.

Embora a família cultive pequenas lavouras de grãos e tenha criação de gado leiteiro, a erva-mate ecológica de barbaquá é a principal atividade na geração de renda. O valor agregado líquido anual, ou seja, aquele valor que é gerado a partir de uma determinada atividade, quando distribuída entre os membros da família, é de R$ 19.900 e o va-lor agregado líquido por hectare é R$ 6.400, evi-denciando a boa performance da atividade para a família. Nesta propriedade 85 % da renda é re-sultante da venda de erva-mate e apenas 15 % possui origem na comercialização dos demais pro-dutos e alimentos que são vendidos in natura.

Estes dados mostram a importância que a agroindustrialização tem frente à geração de ren-da e consequente melhoria da qualidade de vida para as famílias do meio rural. Por exemplo, com

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os recursos da erva mate a família conseguiu dar estudo aos filhos, mantê-los produtivamente na propriedade, reformar parte da casa, comprar uma caminhonete nova para trabalho e lazer e melhorar sua alimentação. Além disso, a atividade garante a permanência da família no campo, o que vem ocorrendo há várias gerações.

Transformando alimentos, transformando vidas...

O segundo caso trata da experiência de uma agricultora, a senhora Lazaretti, do Município de Constantina/RS. Com ajuda da Empresa de As-sistência Técnica e Extensão Rural do Rio Grande do Sul (Emater/RS), a agricultora começou a in-dustrializar alimentos orgânicos e comercializá-los nas feiras locais e direto para consumidores do município. Com uma propriedade de 10,2 hecta-res e apoio do marido e filho começaram os tra-balhos pelo caminho da agroindustrialização.

A agricultora era beneficiária do Programa Brasil Sem Miséria (PBSM) do Governo Federal, devido à família possuir baixos indicadores so-cioeconômicos e de qualidade de vida no meio rural. A família contou inicialmente com o apoio da Emater/RS, que lhe ofereceu gratuitamente cursos e capacitações na área de alimentos e de agroindústria. Do PBSM a família recebeu a fundo perdido R$ 2.000 do chamado Fomento Produti-vo para aprimorar as atividades de produção de alimentos básicos a família, que servem à segu-rança alimentar e nutricional (produção para sub-sistência). Primeiramente a agricultora plantou

repolhos e passou a vendê-los nas feiras locais. O sucesso nesta pequena atividade possibilitou a diversificação das culturas e com as “sobras” des-tes alimentos foi possível transformá-los em sua própria propriedade rural.

A atividade possibilitou melhorias na produção de alimentos e na renda familiar. A agroindústria exerce papel central no sustento econômico da família, além da mesma já conseguir investir em equipamentos de produção, aumentar a produ-tividade, diversificar a gama de alimentos elabo-rados e sedimentar sua agroindústria artesanal de doces de frutas e hortaliças. Esta experiência também reflete o ativo papel das mulheres traba-lhadoras rurais, já que por iniciativa da agricultora a experiência de agroindustrializar os alimentos é desencadeada na propriedade.

Atualmente a família vende trinta produtos e ali-mentos diferentes, tanto in natura ou como proces-sados. A propriedade conta com um valor agregado líquido anual por pessoa de R$ 14.200. Esta ativida-de garante uma renda anual bruta de R$ 28.300 e de R$ 12.000 por membro da família. atividade da agroindústria gera 75 % da renda anual da proprie-dade e as demais atividades de comercialização de produtos in natura 25 % da mesma.

Além de melhoria na renda a família apresen-tou melhorias em sua qualidade de vida. A mais expressiva foi ter conseguido sair da situação de vulnerabilidade social que se encontrava com o apoio da EMATER/RS e do PBSM. Outra transfor-mação foi a maior união do grupo familiar que, agora de forma mais cooperativa, consegue

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trabalhar na produção das lavouras e nas ativida-des de processamento da agroindústria. A renda gerada com a nova atividade também gerou me-lhorias na própria alimentação da família, maior acesso a bens de consumo, aumento no relacio-namento direto e solidário com os consumidores dos produtos e reconhecimento da sociedade lo-cal e dos vizinhos de comunidade.

O que estes dois casos de sucesso nos ensinam para o desenvolvimento rural?

Estes dois casos, embora sigam trajetórias di-ferentes, possuem alguns ensinamentos que são comuns. O primeiro deles é que as atividades de agroindustrialização ligadas à agricultura familiar possuem potencial de gerar renda e valor agre-gado as famílias. No caso da família Gehen, a agroindústria cumpre o papel de reproduzir a fa-mília por cinco gerações, mantendo-a no meio ru-ral, inclusive os dois filhos do casal, que também atuam na atividade.

No caso da família Lazaretti a agroindústria age como “porta de saída” da situação de precariedade social em que se encontrava. Outro aspecto impor-

tante nos dois casos é o diferencial de qualidade dos produtos e alimentos fabricados. No segundo caso, a agricultora conseguiu aprimorar seus conhe-cimentos sobre o processamento e as receitas dos produtos, confeccionando-os de forma artesanal, sendo os dois motivos do sucesso das suas vendas. No caso da erva-mate, o potencial de comerciali-zação é o diferencial ecológico, além de ser pro-duzido com uma técnica antiga retro inovativa (o barbaquá), fazendo que seja muito procurado nos mercados, por sua raridade, já que os mercados de erva mate no Rio Grande do Sul são quase exclusi-vamente dominados pela erva mate industrial.

As duas experiências ainda nos ensinam mais duas coisas importantes para o desenvolvimento rural que possuem por base a transformação de matérias-primas. Primeiro, o ativo papel da mu-lher a frente das iniciativas de agroindustrializa-ção de alimentos. Em outro sentido, não menos importante, é sempre válido considerar os conhe-cimentos tácitos e contextuais que os agriculto-res trazem do passado (através das gerações na família) sobre técnicas e tecnologias de produção e processamento de alimentos. No caso da erva--mate ecológica de barbaquá este conjunto de conhecimentos familiares foi central na evolução e sucesso da iniciativa.

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PARTE IVMULTIFUNCIONALIDADE

DO ESPAÇO RURAL E DESENVOLVIMENTO

TERRITORIAL

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Durante muito tempo, o rural, num imaginário coletivo, remeteu-nos a uma percepção de êxo-do, dispersão populacional e atrasos tecnológi-co, social e cultural. Hoje em dia, cada vez mais, experiências de êxito revelam o contrário, que é possível criar/encontrar oportunidades nestes es-paços. Aproveitando-se das novas demandas pelo consumo consciente como: alimentação mais saudável, práticas sustentáveis no uso dos recur-sos naturais, valorização sociocultural e das trocas por meio de redes de conhecimento e informa-ção, que em casos de turismo de base comuni-tária (TBC), estas possibilidades se configuram

como atrativas ao desenvolvimento da ação e da organização coletiva. No turismo, por exemplo, encontramos estratégias dinâmicas, dialógicas e criativas de desenvolvimento rural, em especial, o desenvolvimento endógeno.

Portanto, consideramos este caso de sucesso como uma resposta de enfrentamento e resistên-cia perante a um modelo de modernização em fase de superação para determinados grupos. Para os jovens e suas famílias, novos formatos de vida no campo suscitam a possibilidade de vi-ver o rural como um espaço de reconhecimento,

CAPÍTULO 11

Agroturismo como estratégia de fortalecimento da agricultura familiar: o caso do roteio agroturístico “Acolhida na Colônia”

em Santa Rosa de Lima, Santa Catarina

Mayara Roberta Martins Carlise Schneider Rudnicki

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um lugar de empoderamento, que envolve uma comunicação que realmente constrói e disputa sentidos. Um espaço que propicia a geração de rendas e, acima de tudo, um modo de vida valori-zado pela sociedade.

Eis que apresentaremos alguns apontamentos voltados ao agroturismo, a partir da organização coletiva de agricultores agroecológicos do estado de Santa Catarina, mais especificamente do mu-nicípio de Santa Rosa de Lima - com aproximada-mente 2.065 habitantes, de acordo com o Censo Populacional de 2010, e distante 120 km da capi-tal Florianópolis, Santa Catarina.

Destacamos o esforço conjunto das duas asso-ciações: a Associação dos Agricultores Ecológicos das Encostas da Serra Geral (conhecida pela sigla, AGRECO) e a Associação de Agroturismo “Acolhi-da na Colônia” (Responsável pelo Roteiro “Acolhi-da na Colônia”), as quais colaboram nas estratégias de diversificação local com o foco na produção de alimentos orgânicos e no agroturismo.

As primeiras iniciativas: a agricultura orgânica como principal atrativo turístico

Em 1996, no território conhecido como Encos-tas da Serra Geral/SC, foi organizada a Agricultores Ecológicos das Encostas da Serra Geral (AGRECO). Com o objetivo de atender os anseios dos agri-cultores por uma agricultura familiar com foco no

resgate, no aperfeiçoamento e no melhoramento de técnicas de cultivo, o trabalho foi direcionado para a produção de alimentos orgânicos.

Com o passar dos anos, a associação se tornou uma ampla rede de conhecimento sócio técnico integrada aos agricultores familiares, mediadores (universidades e agências de extensão rural) e por intermédio de políticas públicas municipais, esta-duais e federais. O município de Santa Rosa de Lima recebeu em 2007, através de um projeto de lei aprovado na Assembleia Legislativa Estadual, o título de Capital Catarinense da Agroecologia.

Na iniciativa, são mescladas práticas tradicio-nais e inovadoras, desde técnicas de plantio e cultivo sem agrotóxicos à instalação de agroin-dústrias de pequeno porte, como o processa-mento de frutas, hortaliças, grãos, dentre outros produtos. A maioria destas unidades de produção agrícola já foi certificada pela Ecocert-Brasil, outra organização preocupada com as regras e normas de certificação das práticas de produção orgânica, também sediada no município. Os agricultores fa-miliares, portanto, empenharam-se em pesquisar e compreender as normas de uma nova forma de cultivo e padronizaram seus modos de inspeção.

Importa destacar que, além de agricultores interessados, alguns agentes externos (experts, universidades e agências de extensão) iniciaram a implantação de um modelo de agroturismo em-basado nas experiências da associação francesa Accueil Paysan, (“Acolhida na Colônia”).5

5 Para mais informações, acesse: AGRECO ‹www.agreco.com.br›, “Acolhida na Colônia” ‹www.acolhida.com.br›, Accueil Paysan ‹www.accueil-paysan.com/en› e Ecocert ‹http://brazil.ecocert.com›.

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Os esforços iniciais para o agroturismo: do passado ao futuro

A necessidade de atender visitantes interessa-dos nos modos de produção orgânica e nas iniciati-vas locais ampliou também os interesses locais pela valorização de seus aspectos socioculturais. Vale destacar que a maioria destes agricultores familia-res descendem de imigrantes alemães e italianos que ocuparam o território no final do século XIX.

Surgiu, então, a necessidade da organização coletiva destes agricultores, tanto no que se refe-re à construção da infraestrutura básica quanto à organização de condutores locais, infraestrutura de acolhimento à visitação e divulgação do ro-teiro, conforme as imagens abaixo. Em 1999 foi criada, em Santa Rosa de Lima, a Associação de Agroturismo “Acolhida na Colônia” e iniciou-se a organização do roteiro agroturístico.

Após duas gerações de agricultores familiares o agroturismo tornou-se uma atividade potencial por intermédio de propostas que visam um menor impacto produtivo ao meio ambiente e a valoriza-ção dos aspectos culturais.

Organização local e as políticas públicas

Com a criação da “Acolhida na Colônia” fo-ram construídas regras e acordos locais. A par-tir das condições estabelecidas, a comunidade passou a regular as condições mínimas que cada agricultor associado deveria adequar em sua pro-priedade para obter uma infraestrutura mínima.

Com o passar dos anos, ações como pales-tras, cursos e capacitações, foram desenvolvi-das pela Associação (em parceria com iniciativas públicas e privadas). O município foi incluído no Programa Nacional de Municipalização do Turismo (PNMT) do Governo Federal e passou a receber financiamentos para cursos de capacita-ção nos setores de hospedagem, alimentação e organização de eventos, a partir da prestação de serviços de consultorias especializadas no desen-volvimento turístico.

O roteiro recebeu diversos prêmios nacionais e internacionais, que o certificam como destino referência de turismo rural do Ministério do Tu-rismo (MTur) e recebeu apoio, também, do Mi-nistério do Desenvolvimento Agrário (MDA), que desde 2000 apoiaram vários projetos de turismo em áreas rural.

Com o sucesso da experiência do agroturismo em Santa Rosa de Lima, outros agricultores fami-liares que viviam pelo território das Encostas da Serra Geral aderiram ao roteiro. Ao todo, no Esta-do de Santa Catarina, 180 famílias de agricultores estão associadas à Acolhida na Colônia.

Eis que os novos agricultores membros da as-sociação, aos poucos, criaram no município pe-quenos negócios: espaços gastronômicos, pou-sadas, além novas atividades no roteiro, como o cicloturismo. Estas iniciativas contribuíram ao de-senvolvimento de uma economia criativa, basea-dos na interação entre comunidade, agricultura familiar e turismo.

Aprendizados e perspectivas para as futuras gerações

As experiências dos agricultores em organiza-ções, como a AGRECO e a Acolhida na Colônia, demonstraram que tais entidades são as prota-gonistas da ação para a consolidação do agrotu-rismo como estratégia de desenvolvimento rural. Os projetos e as práticas de sustentabilidade na atividade turística foram delineados de forma endógena e contemplam uma ampla rede sócio--técnica em torno da produção de alimentos or-gânicos. O agroturismo estimulou visibilidade e um constante desafio de reavaliação da atividade por parte dos próprios agricultores.

No que se refere às perspectivas futuras, os jovens rurais (neste caso, 14 jovens que estavam envolvidos mais diretamente no roteiro) manifes-taram o desejo de permanecer nestas áreas rurais. A vontade ficar foi predominante nos discursos dos entrevistados. Outro fator importante se re-fere ao acesso à internet e os meios de comuni-cação, os quais ampliaram, segundo eles, as con-

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dições de permanência juvenil em Santa Rosa de Lima, aliado à participação destes jovens, tanto na agricultura, como no turismo.

A necessidade constante pela compreensão do ato de acolher e de recepcionar os grupos de visitantes – aliados às atividades agrícolas, ao co-nhecimento local e aos aspectos culturais – con-tribuíram para o êxito do agroturismo, neste caso. Logo, as iniciativas locais de organização possibi-litaram a convivência de diferentes gerações de agricultores e visitantes de outras realidades do país e do mundo.

A busca dos jovens pelo aperfeiçoamento téc-nico, profissional e educacional nas temáticas relacionadas ao turismo e da produção orgânica já é uma realidade. Alguns, entre 25 e 28 anos, relataram que, após estudarem em outras cida-des e viverem fora das áreas rurais, retornaram ao município e se destacaram na organização das atividades de turismo, agricultura e associações.

Ressaltamos aqui que não é uma tarefa sim-ples inserir as atividades de turismo em áreas de agricultura familiar. Os esforços de implantação, de monitoramento e de planejamento futuro do turismo dependem da disponibilidade dos agricul-tores interessados na organização e distribuição

de tarefas, na criação de infraestruturas mínimas para o pernoite (quartos e pousadas), alimenta-ção e entretenimento local, logística, divulgação e gestão do turismo. Os atores sociais encontram na organização coletiva o desafio constante da negociação no exercício da cooperação em prol da comunidade.

Portanto, entendemos que o constante traba-lho de mobilização interna dos agricultores fami-liares para se organizarem foi o principal elemento para o êxito desta atividade. Entretanto, a organi-zação/mobilização social são processos permanen-tes de reajustes e negociações coletivas. Apesar dos desafios, averiguamos que é possível associar as práticas socioambientais, os aspectos culturais e o saber-fazer da agricultura familiar para delinear uma ação coletiva própria para o turismo.

Se a ideia de desenvolvimento, até pouco tem-po, estava previamente justificada na produtivida-de a qualquer custo e dispersa no que tange a questões como reconhecimento social e qualidade de vida, por exemplo, consideramos a experiência relatada um formato importante para a constru-ção de relações mais estreitas entre localidades, sociedade e Estado, bem como uma resposta pos-sível de enfrentamento e resistência perante um modelo de modernização introspectado.

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O processo de agroindustrialização represen-ta uma alternativa aos agricultores gaúchos para otimizar o uso dos seus recursos disponíveis (ter-ra, trabalho familiar, conhecimento). A partir dos incentivos à diversificação e à agregação de valor à produção primária, vinculados, por exemplo, ao Programa Sabor Gaúcho no Rio Grande do Sul, esta estratégia se torna eficiente e representa im-pactos positivos no incremento da renda, na auto-nomia e no desenvolvimento das atividades agrí-colas. As famílias de agricultores passam, então, a desempenhar um novo papel na economia local.

Na agricultura familiar, a inovação tem sido associada aos sistemas de conhecimentos e tra-

dições locais, adaptadas e combinadas com novas fontes de informação que envolvem, dentre tan-tos fatores, o ambiente econômico e institucional. Neste sentido, a inovação acontece ao se adota-rem novas ideias, tecnologias ou processos, de forma individual ou coletiva, os quais poderão ser difundidos em casos de sucesso. Para a eficácia desse complexo processo, é necessário envolver diversos atores em um sistema de interações.

Para ilustrar estratégias de inovação em casos de sucesso, apresenta-se o estudo realizado jun-to à Cooperativa dos Produtores Ecologistas de Garibaldi (Coopeg). Os agricultores cooperados concretizaram diferentes processos inovadores

CAPÍTULO 12

Estratégias de inovação na Cooperativa dos Produtores Ecologistas de Garibaldi (COOPEG)

Ana Paula Matei Ana Lúcia Oliveira da Silva

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associados às oportunidades de interagir com os parceiros institucionais e também pelo acesso aos programas e políticas públicas importantes para o desenvolvimento das agroindústrias familiares. Para esses agricultores cooperados, os processos de inovação representam uma forma de concreti-zar, por meio do desenvolvimento de produtos e serviços, o conhecimento sobre a produção, sobre os costumes e saberes envolvidos nas atividades das agroindústrias familiares.

As inovações são contextualizadas e vinculam--se aos resultados de processos que demonstram a capacidade de resposta em termos de competi-tividade na atividade agroindustrial. Desde a im-plementação da atividade até o desenvolvimento de produtos e serviços, os processos são gerados e orientados a partir de uma lógica de inserção eco-nômica e social e de reprodução dessas famílias. A artesanalidade e a originalidade intrínsecas nesses processos são destacadas, bem como a constante busca pela inovação e pela diferenciação.

O contexto institucional para agroindústrias familiares no Rio Grande do Sul

Os programas e as políticas públicas para as agroindústrias familiares vêm evidenciando a im-

portância que as famílias de agricultores desem-penham para a economia e para o desenvolvi-mento local e regional. Em relação ao ambiente nacional, o Programa Nacional de Fortalecimento da Agricultura Familiar (Pronaf), o Programa de Aquisição e Alimentos (PAA) e o Programa Na-cional de Alimentação Escolar (PNAE) contribuem para que as famílias se organizem em termos de investimentos para infraestrutura e capital (má-quinas, equipamentos, instalações), e acessem os mercados com maior garantia de comercialização (por meio dos mercados institucionais).

Um dos gargalos enfrentados pelas agroindús-trias familiares refere-se ao acesso aos mercados, não apenas em termos de canais de comercializa-ção, como também de atendimento às legislações e normas higiênico-sanitárias. Para tratar essas implicações, dentre outras inerentes às ativida-des econômicas das agroindústrias familiares, é que foi criado no estado do Rio Grande do Sul o “Programa Sabor Gaúcho”. Este evoluiu para uma política pública em 2012, com a criação da Lei nº 13.921/2012, a qual instituiu a Política Es-tadual da Agroindústria Familiar do RS (PEAF-RS).

O objetivo dessa política pública é reconhe-cer a importância da agricultura familiar e das dinâmicas de desenvolvimento rural local, visan-do respeitar os valores de uma agricultura volta-da à diversificação dos sistemas produtivos e do

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meio ambiente, especialmente com seu foco na agroecologia. Integra a estratégia de desenvolvi-mento governamental para apoiar a legalização e a implantação de agroindústrias familiares no RS, além de promover a qualificação profissional, assistência técnica e extensão rural, bem como a participação em feiras e eventos específicos para aumentar os pontos de comercialização. Atual-mente, com as ações de disseminação do PEAF-RS e os apoios obtidos para a regularização das ati-vidades, incluindo crédito para investimentos, há 2.420 agroindústrias cadastradas e 728 inclusas no programa.

A implementação de programas e políticas pú-blicas demanda que se consolide um ambiente propício para que haja a interação entre o públi-co-alvo e os agentes dessas ações. As interações e a concretização de parcerias entre esses atores tornam-se fundamentais e reforçam-se dentro das estratégias de inovação, agregando esforços para canalizar as ações e obter os resultados.

História de inovações, desafios e resultados

A Coopeg iniciou suas atividades em 1999, no município de Garibaldi, região da Serra Gaúcha, a partir da oportunidade viabilizada pelo apoio de entidades técnicas e sindicais, e pela obtenção de financiamento e crédito pelo Pronaf e outras li-nhas públicas de apoio técnico e financeiro. Com o apoio dessas entidades parceiras, a cooperativa iniciou a organização de produtores orgânicos, para que realizassem o beneficiamento e comer-

cialização do principal produto produzido por eles, a uva. O principal apoio recebido foi da Ema-ter, do Sindicato dos Trabalhadores Rurais, da Pre-feitura Municipal e do Centro Ecológico de Ipê.

A cooperativa é formada por 48 agricultores familiares, que produzem de forma orgânica sem uso de agrotóxicos. Dessa organização, formou-se a agroindústria, que, de modo artesanal, transfor-ma a uva em sucos, vinhos, espumantes e doces de frutas. Em 2008, diversificou suas atividades com a produção de hortaliças e frutas orgâni-cas, com ampla variedade de produtos ofertados (conservas, doces de frutas, molhos, orgânicos in natura, temperos). Atualmente, são produzidos 108.000 litros de sucos de uva, 9.000 litros de vinhos, 1.100 litros de espumantes, 1.100 quilos de doces de frutas e 420.000 quilos de verduras e uva in natura por ano. Participa de diversas redes de apoio, programas, e inclusive rotas turísticas. As famílias recebem acompanhamento e certifi-cação da produção orgânica por meio de outras entidades participativas, como a Ecovida.

Desde a organização dos produtores até a mu-dança no modelo de produção e a adaptação das famílias para produzir no modelo agroecológico, somados à participação em cooperativa, são cons-tatados processos de inovação de diferentes for-mas. A participação em cooperativa foi iniciada para repensar alternativas eficientes para poder tornar-se competitivo, mas baseado na cooperação social. Para melhorar essa cooperação, foram defi-nidos mecanismos de integração e de experiência, com acompanhamento e capacitação para que os novos cooperados se comprometam e não abdi-quem do trabalho em cooperativa. “Para se asso-ciar, tem que gostar de produzir orgânicos, tem que participar de 70 % dos dias de campo e dos cursos que são promovidos, e tem que ter um ‘padrinho’, alguém que será o condutor”, afirma a presidente da Coopeg, Salete Arruda da Silva. Ela reconhece que “produzir orgânico é muito mais consciência do que trabalho, é uma filosofia de vida”.

Com o apoio dos parceiros institucionais, estão em constante movimento para inovar, de modo contextualizado e de acordo com a percepção dos agricultores cooperativados. Para melhor or-ganizar suas atividades, as famílias mantêm uma

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estrutura híbrida de governança, apoiada em re-lações contratuais entre os associados, entre as entidades de certificação orgânica e outros par-ceiros, inclusive no compartilhamento da infraes-trutura de produção. Soma-se a este processo a mudança nos métodos produtivos, em que novos procedimentos, tecnologias e técnicas são imple-mentados para viabilizar a produção agroecológi-ca das espécies e dos produtos finais.

É crescente o envolvimento da cooperativa com entidades, redes, universidades, sindicatos, governos local, regional, estadual e nacional. A entidade mantém forte interação e atuação em redes de apoio, e nos programas e nas políticas públicas como: Pronaf, PEAF-RS, PNAE e rotas turísticas.

Recentemente, foi inserida na Plataforma de Boas Práticas para o Desenvolvimento Sustentável da FAO, Food and Agriculture Organization of the United Nations, sendo reconhecida como uma alternativa de produção agroecológica cooperati-va. A Coopeg é uma das instituições parceiras do projeto, que tem o objetivo de difundir as boas práticas realizadas na Região Sul do Brasil, para que mais pessoas, governos e entidades possam conhecê-las e aplicá-las. Também é um centro de

referência do Programa Ecoforte de Cooperativas Agroecológicas do governo federal.

Nas inovações em produtos e processos, hou-ve maior diversificação na produção de matéria--prima, consequentemente, maior diversidade de produtos acabados. As principais inovações rea-lizadas estão na produção orgânica de varieda-des de espécies, processos de fabricação e novos produtos. Muitas das inovações foram implemen-tadas nos processos de produção, envolvendo desde mudança para a produção orgânica e agro-ecológica, até as mudanças no processamento da matéria-prima, envolvendo novas práticas, técni-cas e tecnologias associadas à melhoria do pro-cesso de agroindustrialização. Como resultados, apresentam aumento da produtividade, também devido à ampliação de áreas para a transforma-ção e processamento agroindustrial.

Atualmente, estão realizando um projeto de cooperação junto a uma universidade da região, cujo apoio financeiro é oriundo de duas agências de fomento, estadual e nacional. O projeto con-siste na pesquisa de novos produtos que possam reduzir o desperdício dos alimentos (o qual chega a ser de até 30 %), além de formulações quanto à apresentação desses produtos.

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No que se refere às estratégias de inovação em mercados e marketing, a Cooperativa parti-cipa ativamente em feiras especializadas e espe-cíficas da agricultura familiar, além de concursos e premiações relativos à qualidade dos produtos. Usa selos identificadores como os da marca Sabor Gaúcho e o da Agricultura Familiar, implementa-dos pelo apoio de programas e políticas públicas. Os principais canais de venda são diretamente ao consumidor, seja no estabelecimento ou em feiras promovidas por entidades parceiras, pelo progra-ma PEAF-RS e outros promovidos pelo Ministério de Desenvolvimento Agrário.

De acordo com a presidente da Coopeg, a participação nas feiras especializadas promovidas para a agricultura familiar é um grande momento para ouvir os consumidores e conhecer os produ-tos concorrentes. Isso inspira a criação, a melhoria e o desenvolvimento de novos produtos. As par-ticipações nas feiras obedecem a determinados critérios, pois as bancas são coletivas, e está se propondo um regimento para organizá-las.

A cooperativa atua em mais de 10 estados bra-sileiros, fornecendo produtos para grandes redes, distribuidores, lojas especializadas e para os mer-cados institucionais para a alimentação escolar (PNAE) no município de Garibaldi e região. Está inserida na Cooperativa Estadual da Agricultura Familiar (Cooperagroart), e no roteiro de turismo rural (Estrada do Saber), atendendo a turistas do Brasil e de outros países.

Segundo a presidente e alguns dos coopera-dos, a cooperativa está se desenvolvendo, sem-pre buscando novas formas de melhorias, de produtos, de processos, de organização, mas, principalmente, aumentando a oferta de produ-tos orgânicos acessíveis de qualidade. As políticas públicas ainda penalizam algumas ações, pois o marco legal precisaria de atualização e de dife-renciação em termos de escala e de rendimentos das cooperativas e das agroindústrias familiares. As parcerias também são fundamentais e contri-buem para que as inovações sejam disponibiliza-das para a sociedade.

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O Brasil vitivinícola

É simplesmente impossível compreender a produção de vinhos no Brasil sem destacar uma espécie de paradoxo: 90 % do volume comercia-lizado pelas empresas brasileiras provêm do pro-cessamento de uvas “não viníferas”. Isso mesmo! A imensa maioria do vinho brasileiro é feito com uvas que, teoricamente, são inaptas à vinificação, ou seja, com variedades americanas e híbridas a partir das quais se produz “vinho comum” ou “vi-nho de mesa” – em oposição ao “vinho fino” de variedades viníferas europeias.

Por que aqui se utilizam estas variedades que outros países se esforçaram em eliminar? Há uma

razão agronômica. O clima quente e úmido da principal região produtora brasileira (Serra Gaú-cha, Rio Grande do Sul) fez com que estas varie-dades fossem desde muito cedo preferidas pelos imigrantes italianos que ali se estabeleceram a partir do final do século XIX. Ademais, além da maior resistência a doenças e pragas que ataca-vam facilmente as uvas européias, a alta produti-vidade por área das uvas comuns se tornava um atrativo em face de um mercado que não remu-nerava a qualidade diferenciada. O que importava era a quantidade.

E há uma razão sociológica. Ao longo do tem-po, estas variedades constituíram uma identida-de sociocultural associada à pequena agricultura

CAPÍTULO 13

Vales da Uva Goethe: do vinho comum ao território singular

Paulo Andre Niederle

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familiar que se estabeleceu nas regiões produtoras. Não é em vão que o produto também seja conhe-cido como “vinho colonial”, em alusão à forma de agricultura desenvolvida pelos colonos imigrantes.

Políticas de reconversão produtiva

O problema é que, no mundo dos vinhos, a produção de uvas americanas e híbridas sempre foi desprezada. Em toda parte, apenas um con-junto restrito de variedades europeias se estabele-ceu como sinônimo inquestionável de qualidade. No Brasil não foi diferente. Desde os anos 1970, as principais políticas de modernização da vitivini-cultura vêm incentivando a substituição das culti-vares e dos métodos tradicionais de viticultura por outros considerados mais adequados a produzir “vinhos de qualidade superior”.

Alguns resultados importantes foram obtidos. As vinícolas que estiveram à frente dos processos de inovação tecnológica e organizacional con-seguiram encontrar espaço no hipercompetitivo mercado de vinhos finos, inclusive enfrentando a invasão dos importados, os quais já ocupam mais de 80 % do mercado brasileiro, principalmente vinhos chilenos (35,6 %) e argentinos (14,2 %).

Mas os recursos sempre estiveram concentra-dos em poucas empresas e cooperativas, o que li-mitou o processo de reconversão produtiva. Além disso, a partir dos anos 1990, o movimento de integração vertical desencadeado pelas principais empresas excluiu grande parte da agricultura fa-miliar. O argumento para justificar este processo

esteve associado ao controle da qualidade da uva, mais simples quando a vinícola assume todas as fases da produção.

Assim, ao mesmo tempo em que o vinho fino brasileiro conquistou algum reconhecimen-to – adequando-se a padrões globalizados –, crises sucessivas atingiram os produtores familiares. A cada safra finalizada, uma nova negociação co-meçava: governo e setor produtivo procurando soluções para comercializar os estoques, garantir preços e sustentar a renda.

O que fazer com as uvas comuns?

A busca por alternativas para os vinhedos tra-dicionais está presente nas discussões setoriais há décadas. Alguns especialistas sugerem a ne-cessidade de concluir o processo de reconversão para uvas viníferas. Mas, além de altamente cus-toso, nada garante que isto permitirá competir com os importados. Evidência disso é a própria evolução da produção brasileira de vinhos finos, que, entre 2004 e 2014, manteve-se relativa-mente estável, oscilando em torno de 40 mi-lhões de litros por ano.

Outros apostam na produção de suco de uva, um mercado emergente com crescimento médio anual de 28 % nos últimos cinco anos. De fato, esta é uma alternativa que tem incitado o investi-mento de muitos produtores familiares, sobretudo por intermédio de associações e cooperativas. Em vista dos preços elevados do suco, é possível que sua produção absorva uma quantidade expressiva de uvas comuns, que, neste caso, não apenas são desejáveis, mas privilegiadas em relação às varie-dades viníferas.

O que raramente se considerou, contudo, foi a possibilidade de qualificar os vinhos coloniais, os quais ainda são preferidos pelos consumido-res brasileiros (por razões de preço e de gosto), incluindo os próprios agricultores. Menor ainda foi a atenção conferida a segmentos específicos de consumidores em busca de vinhos singulares. No mundo todo, cresce a procura por alternati-vas à chamada McDonaldização do mercado de

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vinhos, resultado do processo de homogeneiza-ção das variedades, métodos de cultivo e práticas de vinificação em escala global. Em várias regiões os agricultores estão voltando a cultivar cepa-gens tradicionais para diferenciar seus produtos. A questão é se o vinho colonial pode encontrar espaço junto a estes consumidores?

Os Vales da Uva Goethe

Situados no sul do Estado de Santa Catarina, Brasil, os Vales da Uva Goethe abrigam uma expe-riência singular de desenvolvimento territorial que

busca conciliar a tradição herdada dos imigrantes italianos com a revalorização de um produto tí-pico, cuja produção quase foi colocada em risco pela política de modernização dos vinhedos.

Cultivada na região desde o inicio do século XX, a variedade híbrida Goethe adaptou-se às condições de solo e clima, o que permitiu aos viticultores explorar seu potencial enológico. Ao longo do tempo, a tipicidade da cultivar tornou--se inclusive objeto de reconhecimento nacional, o que, nos anos 1950, trouxe as primeiras premia-ções ao “vinho branco de Urussanga” (principal município da região).

Mas a política de modernização colocou um freio à produção de vinhos comuns. Muitos pro-dutores familiares abandonaram a atividade. Ou-tros tentaram, sem sucesso, competir no merca-do de vinhos finos. A crise tornou-se ainda mais grave com o processo de abertura comercial dos anos 1990. Empresas e cooperativas faliram. Os agricultores viram o preço da uva despencar. Polí-ticas de diversificação produtiva foram elaboradas para amenizar o problema.

Foi neste momento que alguns produtores co-meçaram a estruturar novas estratégias. Uma das principais novidades foi a criação de associações

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de pequenas e médias vinícolas familiares, as quais, primeiramente, voltaram-se a mercados lo-cais associados ao enoturismo e, em seguida, in-vestiram na diferenciação dos produtos por meio de Indicações de Procedência.

A primeira experiência foi desenvolvida no Vale dos Vinhedos ‹www.valedosvinhedos.com.br›, cuja indicação de procedência foi reconhecida em 2002. A partir daí se estruturaram, também na Serra Gaúcha, as iniciativas de Pinto Bandei-ra ‹www.asprovinho.com.br›, Monte Belo do Sul ‹www.aprobelo.com.br›, Farroupilha ‹www.afavin.com.br›, Flores da Cunha e Nova Pádua ‹www.apromontes.com.br›.

Qualidade e território

Uma estratégia similar foi perseguida nos Va-les da Uva Goethe, mas com uma particularidade: enquanto a Serra Gaúcha adotou a perspectiva modernizante dos vinhos finos, os produtores ca-tarinenses resolveram nadar contra a corrente.

Motivados pelo objetivo de reencontrar o pres-tígio do vinho Goethe, os produtores constituíram, em 2005, a Associação dos Produtores da Uva e do Vinho Goethe ‹www.progoethe.com.br›. Atual-mente, a PROGOETHE é formada por nove viníco-las familiares de pequeno porte, além de produ-tores de uva e estabelecimentos de gastronomia e hotelaria.

O projeto de qualificação do vinho Goethe conta com a assessoria de técnicos da Empresa de Pesquisa Agropecuária e Extensão Rural de Santa Catarina (EPAGRI) e pesquisadores das universida-des federal e estadual de Santa Catariana (UFSC/UDESC). Além de investimentos para melhorar os atributos organolépticos e sensoriais do produto, os esforços também se voltam à gestão da qua-lidade imaterial, por meio do manejo de signos culturais associados ao território.

Os produtores não apenas estão alterando o vinho dentro da garrafa, mas se apropriando de referências identitárias (cultura italiana) e pa-trimoniais (arquitetura, paisagem, gastronomia

colonial e italiana). O resultado é a produção de um vinho de tipicidade inquestionável, profunda-mente enraizado em suas origens.

Indicação de procedência

A iniciativa da PROGOETHE foi criticada por inúmeros enólogos e especialistas. Afinal, qual a razão de despender esforços em um vinho de-finido de antemão como sem qualidades? As críticas se tornaram ainda mais ásperas quando os produtores resolveram apostar naquilo que se tornaria, em 2011, a primeira indicação de procedência para um vinho comum do Brasil – que, a partir de então, já não teria mais nada de “comum”.

A experiência dos Vales da Uva Goethe tornou--se o centro das atenções setoriais porque trouxe à tona esta realidade incômoda, ratificando a im-portância da vitivinicultura tradicional e, mais do que isso, colocando em questão a imagem mun-dialmente construída dos vinhos finos como os únicos portadores de uma qualidade inerente.

Atualmente, cinco vinícolas seguem a norma-tiva da indicação de procedência. Para utilizar o selo, os produtores submetem o vinho à avalia-ção de um Conselho Regulador. Conformado por representantes dos produtores de vinho e uva, técnicos e consumidores, este Conselho define as normas e os padrões de produção e zela pelo cumprimento dos mesmos.

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Desenvolvimento territorial

Embora a iniciativa seja relativamente recente, alguns efeitos já podem ser percebidos. O princi-pal deles é o modo como a busca por reconhe-cimento estimulou a organização coletiva, não apenas dos produtores, mas de todo o território. Afinal, o que está em jogo é a reconstrução de uma identidade que o vinho materializa, mas é expressão da cultura de pessoas cujos antepassa-dos ocuparam a região há mais de um século.

Do ponto de vista econômico, destaca-se a construção de circuitos locais de comercializa-ção, sobretudo por intermédio do enoturismo. Hoje, juntamente com ações de revitalização do patrimônio histórico local, discute-se um plano de desenvolvimento do turismo no espaço ru-ral. O processo de construção da indicação de procedência teve um forte efeito de agregação destas estratégias.

O incremento da notoriedade do produto tam-bém tem ampliado a demanda de consumidores interessados em conhecer os saberes e sabores impressos neste vinho tão singular. Há quem su-gira que o próprio fato dele ter se tornado objeto de discórdias entre os enólogos, tenha favorecido sua notoriedade.

Ademais, em face da readequação dos méto-dos de produção, os próprios especialistas têm alterado suas posições, e já não são poucas as re-ferências ao vinho Goethe nas publicações espe-cializadas da área (blogs, revistas, jornais).

Por sua vez, um dos principais desafios ainda é o ingresso em mercados de alta gama. Marca-dos pelo estigma construído em torno dos vinhos comuns, o produto ainda encontra barreiras para alcançar lojas e restaurantes especializados fora da região. No entanto, a crescente repercussão que os movimentos de gastronomia regional têm alcançado no Brasil pode abrir estas portas, assim como já vem ocorrendo no caso dos queijos arte-sanais, os quais já foram igualmente estigmatiza-dos pela ciência moderna.

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PARTE VRECONECTANDO PRODUTORES

E CONSUMIDORES

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Vivemos em uma época em que a alimentação tem sido considerada uma fonte recorrente de problemas de saúde. Hipertensão, diabetes, aler-gias, problemas cardíacos, câncer e, até mesmo, doenças mentais têm sido associadas aos altos ín-dices de aditivos químicos usados na produção de alimentos, seja em forma de agrotóxicos nos pro-dutos in natura ou de conservantes nos alimentos processados. No Brasil, o Instituto Nacional do Câncer (Inca) divulgou, em 2015, uma pesqui-sa que coloca o país como o maior consumidor mundial de agrotóxicos, com um consumo médio anual de 5,2 litros por habitante. Neste sentido, medidas e ações para uma melhoria na qualidade da alimentação tornam-se urgentes. No entanto, criar novos hábitos alimentares nem sempre é fá-cil, tampouco, acessível a todos.

Parte do problema está relacionada a um dis-tanciamento entre agricultores e consumidores, de tal forma que muitos citadinos não só desco-

nhecem a origem de seus alimentos, como ig-noram seu processo de produção, dificultando a escolha por produtos mais saudáveis. Os mais in-formados tendem a buscar produtos sem veneno e pouco processados, um mercado em expansão no país, mas que segue um tanto quanto elitiza-do, em especial, se considerarmos aquilo que é ofertado nos supermercados e lojas especializa-das. Por outro lado, as grandes redes varejistas são de difícil acesso para pequenos agricultores, que enfrentam dificuldades para atingir escala de produção e, geralmente, dependem de uma cadeia de intermediários para que seus produtos cheguem ao ponto de comércio. Essa cadeia afeta drasticamente o valor recebido pelo produto, tor-nando esta venda pouco rentável aos agricultores.

Aqui, pretendemos apresentar a experiência dos grupos de consumo responsável, iniciativas que têm crescido no Brasil, criando situações ga-nha-ganha em que agricultores e consumidores

CAPÍTULO 14

Parcerias saudáveis entre agricultores e consumidores: o caso dos grupos de consumo responsável

Potira Viegas Preiss Flávia Charão Marques

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constroem parcerias em torno de alimentos sau-dáveis comercializados a preços justos.

Os grupos de consumo responsável no Brasil

Os grupos de consumo responsável são inicia-tivas em que produtores e consumidores estabe-lecem arranjos específicos para comercialização direta de alimentos e outros produtos. As primeiras iniciativas brasileiras surgiram ainda na década de 1970, mas é nos anos mais recentes que tem havi-do uma grande expansão de grupos a nível nacio-nal, chamando a atenção de organizações não go-vernamentais, movimentos socais e universidades. Uma pesquisa realizada, em 2009, pelo Instituto Kairós havia identificado 17 experiências ativas no país. No entanto, em um levantamento feito pelas autoras, em 2015, foram encontradas pelo menos 46 iniciativas, localizadas em 33 cidades brasileiras.

CSA/Porto Alegre/RSCooperativa de Consumo Ateneu Libertário/RSGIA/RS

Copet/RSEcotorres/RS

Compras Colectivas Ecossolidárias/RSGrupo de Compras Colectivas Agroecológicas de Matinhos/PR

C.C.R.U./SPConsumo Consciente ABSConsumo Consciênte Giramiundo/SPCSA Micael/SPComerAtivaMente/SPMICC/SP Clube de Orgânico/SP

Rede Agroecologica Caiçara/SPRede Solidária de Comedores Orgânicos/RJRede Ecológica/RJ

C.C.R.U./SPCSA APANFE/MG

Raízes da Mata/MG

Rede Terra Viva/MG

Rede Moinho/BA

TECHNE/RN

Rede Xiquexique/RN

ADAO/CE

Grupo de Consumidores do Benfica/CE

Consumidores Responsáveis de Fortaleza/CERede Tapiri/AM

SISCOS/MT

Grupo de Consumo Mercado Sul/DF

CSA Campinas/SPTrocas Verdes/SP

Recore/SP

CSA São Carlos/SP

Consumoso/SPGuandu/SP

Direto da Roça/SP

CSA - Escola Waldorf Vives/SP

Grupo de Compras Colectivas/MS

Grupo de Consumo Consciente/SPCSA Demetria/SP

GCCAE-UFFSPR/PR

GOG/SC

GAS/RS

Bancopire/MG

APOMM/MG

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Em agosto de 2011, o Instituto Kairós orga-nizou um encontro sobre consumo responsável, em Parelheiros (SP), que resultou na fundação da Rede Brasileira de Grupos de Consumo Respon-sável, possibilitando assim uma maior articulação dos grupos e a possibilidade de realização de ações conjuntas seja para comercialização, ou consumo de produtos entre os membros da rede. Os forne-cedores são, geralmente, agricultores familiares que, muitas vezes, também participam de merca-dos institucionais pelo acesso a políticas públicas como o Programa de Aquisição de Alimentos e o Programa Nacional de Alimentação Escolar. Os gru-pos apresentam, ainda, uma variedade de elemen-tos ideológicos e políticos: solidariedade, agroeco-logia, ecologia, consumo responsável, integração campo e cidade são alguns dos valores expressos pela pluralidade de agendas envolvidas nas iniciati-vas brasileiras. Com vista a exemplificar como se dá a dinâmica de funcionamento destas iniciativas e a diversidade dos arranjos envolvidos, apresentamos o caso de dois grupos – o MICC e o GIA.

MICC, Associação de Integração Campo-Cidade

O MICC atua desde meados dos anos 1980 na cidade de São Paulo, e além de ser o grupo mais antigo ativo no país, é também o maior, já que for-nece alimento para aproximadamente 800 famílias de consumidores de residentes na zona leste da cidade. A formação inicial partiu de um grupo de pessoas envolvidas com a Igreja Católica e vincu-lado ao movimento da teologia da libertação. Elas buscavam concretizar os ensinamentos católicos de solidariedade através do apoio a movimentos sociais, à reforma agrária e à luta por direitos tra-balhistas promovida pelos metalúrgicos da cidade. Por um bom tempo, as compras eram ocasionais e para produtos específicos, o objetivo era ajudar a escoar a produção de agricultores sem acesso a mercados, em especial, famílias dos assentamentos do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST), comunidades indígenas e quilombolas.

Foi somente em 1993, que uma ação da Cam-panha da Fraternidade da região possibilitou a compra de um veículo para a entrega dos “kits”,

pacotes com hortaliças que, até hoje, são entre-gues semanalmente. Os kits são compostos por oito a doze produtos da estação, “sem veneno”, dos quais três tendem a ser folhas e cinco outras hortaliças conforme a disponibilidade de colheita.

As entregas sempre acontecem nas quartas--feiras, atendendo metade dos pontos de distri-buição a cada semana. Ao todo, são 23 pontos de distribuição que incluem residências, unidades básicas de saúde, creches, academias de ginás-tica, sedes de pastorais, centros espíritas, igrejas católicas e messiânicas. O processo todo acon-tece através de uma grande rede de voluntários que se articulam para fazer a negociação com os agricultores e a logística de distribuição para os consumidores. O valor de cada kit é de R$ 14,00 e equivale a aproximadamente um terço do que os consumidores pagariam pela mesma quantidade de produtos convencionais nas feiras da região. É o que conta Mariana, mãe de dois meninos, que trabalha como agente de saúde comunitá-ria. Além de ser consumidora, ela também é res-ponsável pelo ponto de distribuição da Unidade Básica de Saúde Sinhá: “Eu realmente gostei da qualidade, sabe? Aqui no bairro não temos ne-nhum lugar para comprar essas coisas, é tudo com veneno e a verdura é cara mesmo! No mer-cado a alface agora é R$ 2,00, chega a R$5,00, às vezes! Na feira, você pode encontrar mais bara-to, mas não é a mesma coisa! Não tem a mesma durabilidade, estraga logo, porque não é de boa qualidade.” Poder aliar qualidade a valores aces-síveis é a maior motivação entre os consumidores do MICC, que se destaca por atender famílias de baixa a média renda salarial.

Os alimentos são fornecidos pela Associação dos Pequenos Produtores de Ibiúna, município lo-

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calizado cerca de 100 km da capital. Além de criar um mercado estável, a ausência de intermediários no processo garante um melhor retorno econômi-co do que conseguiriam em mercados convencio-nais. Além disso, os valores pagos aos agricultores são renegociados a cada quatro meses, de forma a garantir um pagamento justo aos produtores e manter os preços acessíveis aos consumidores.

Grupo de Integração Agroecológica (GIA)

O GIA nasce em 2012 a partir da amizade entre uma consumidora e um agricultor que decidiram fazer uma experiência buscando en-tre seus conhecidos possíveis interessados em participar de um processo de comercialização di-reta entre consumidores e produtores. Com um bom retorno, o grupo começou a tomar forma e teve suas primeiras entregas com vinte e três famílias consumidoras e cinco famílias produto-ras. Os primeiros meses foram caracterizados por um intenso processo de “aprender fazendo”, de forma que a dinâmica do grupo foi sendo cons-truída a partir da prática. O processo permitiu que os consumidores passassem a ter maior co-nhecimento sobre os produtos e as dificuldades enfrentadas pelos agricultores, tanto para pro-dução como para o comércio e processamento dos alimentos. O impacto da chuva nas folhas, a escassez do mel, o contato com alimentos até então desconhecidos como o agrião pimenta, foram pequenos aprendizados que se materiali-zam na encomenda de cada semana.

Após seis meses de funcionamento semanal de modo bastante informal, inclusive, com as entre-gas realizadas no apartamento da consumidora, o crescimento do grupo exigiu um novo espaço. Uma parceria com o Programa de Pós-Graduação em Desenvolvimento Rural (PGDR) da Universida-de Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS) possi-bilitou um novo espaço para a realização da par-tilha e entrega dos produtos. A parceria também permitiu que o processo de gestão, que até então acontecia de forma bastante centralizada, fos-se partilhado de forma colaborativa entre todos consumidores que passam a fazer um rodízio para realizar as entregas. Incluiu, ainda, um programa

de extensão universitária que resultou no desen-volvimento de um site e um software para a rea-lização dos pedidos, gerando grande melhoria na logística de funcionamento do grupo e no proces-so de divulgação.

As encomendas seguem sendo semanais e acontecem conforme uma lista com mais de 50 produtos sazonais entre hortaliças, verduras, tem-peros, frutas, cereais, ovos, queijo, pães e massas. A produção é totalmente agroecológica e realiza-da por famílias do Assentamento Filhos de Sepé, localizado no distrito de Águas Claras, município de Viamão, Região Metropolitana de Porto Ale-gre. A participação no GIA auxiliou a ampliação a novos mercados. A família Bendente, na época de formação do GIA, tinha como espaços de co-mercialização: uma feira na universidade, um res-taurante e vendas ocasionais para o Programa de Aquisição de Alimentos. Através de contatos que foi fazendo com a participação no Grupo, atual-mente participa de outras três feiras e fornece para dois restaurantes. O envolvimento também auxiliou a ampliação de seus conhecimentos de in-formática, visto que parte do software de pedidos é administrada diretamente pelos agricultores. O grupo tem como prática, ainda, a realização de atividades como jantares e visitas a propriedades dos agricultores, que, além de contribuírem para a socialização dos participantes, também acabam sendo espaços de troca e aprendizagem.

Benefícios gerados

Em função da participação nos grupos, os agri-cultores são muito claros quando afirmam que passam a vislumbrar novas oportunidades de mer-cado, de qualificação da produção e de geração de renda de modo mais estável. Os consumido-res, por sua vez, passam a acessar produtos orgâ-nicos da agricultura familiar a valores acessíveis, podendo, assim, ter uma alimentação de melhor qualidade, além de ampliarem seu conhecimento sobre o contexto agrícola e contribuírem direta-mente para economias locais. É assim que a re-lação entre quem produz e quem consomem cria novos arranjos institucionais e logísticos que dão margem para práticas inovadoras, mas também a consolidação de redes de apoio e solidariedade.

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Atualmente, a gastronomia contemporânea vem utilizando cada vez mais ingredientes tradi-cionais, locais e/ou orgânicos, entendidos como ingredientes diferenciados. Neste contexto, os chefs tem recorrido progressivamente às com-pras diretas dos produtores afim de garantir a qualidade, o frescor e o sabor dos ingredientes. Para além da relação de compra e venda desses ingredientes singulares, este recurso tem criado redes de relacionamentos entre chefs, produtores e consumidores, que além de promover aumento das vendas dos agricultores, também tem criado novos espaços de (re)valorização simbólica, convi-

vência, comercialização entre estes atores e novas utilizações e/ou criações de produtos.

Este processo vem crescendo em vários pa-íses como uma tendência mundial. Entre os ca-sos mais célebres deste fenômeno está o melhor restaurante do mundo, o El Celler de Can Roca, em Girona, na Espanha, eleito pela revista inglesa Restaurant, que tem seu tipo de cozinha espa-nhola moderna (Modern Spanish), que prima pela sazonalidade, terroir e compra direta do agricul-tor; e o movimento internacional Slow Food, cria-do por Carlo Petrini na Itália, em 1989, que prega

CAPÍTULO 15

Muito além de ingredientes: A contribuição da gastronomia para o fortalecimento da agricultura familiar – o caso da

relação entre chefs, agricultores e consumidores do Instituto Maniva, no Rio de Janeiro

Tainá Zaneti Sérgio Schneider

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a utilização de alimentos bons, limpos e justos; o papel do chef como co-produtor; e a valorização de produtos locais e artesanais.

O aspecto comum a todas estas iniciativas re-side no fato de que os gastrônomos passaram a valorizar o produto e o modo de produzir os ali-mentos, percebendo que ambos estão umbilical-mente conectados à cultura e ao modo de vida dos agricultores. Há uma percepção comparti-lhada entre os chefs de que na produção de ali-mentos há uma simbiose entre o produto, o local/território e as pessoas que produzem, o que torna a comida o resultado da interação entre humanos e a natureza, entre sociedade e meio ambiente.

Por ser um movimento emergente, há várias questões a serem aprofundadas e melhor compre-endidas, tais como, o papel das políticas públicas no estímulo e apoio a estas iniciativas, particular-mente o papel da assistência técnica aos produto-

res rurais. A fim de observar esse cenário no con-texto brasileiro, este texto irá mostrar o caso do Instituto Maniva, na cidade do Rio de Janeiro, que mostra como a gastronomia pode ser uma ferra-menta de valorização da relação entre produtores e consumidores e de fortalecimento e criação de novos mercados para agricultura familiar.

A experiência: o caso do Instituto Maniva

O Instituto Maniva foi criado pela chef Teresa Corção em 2007 e tem como missão “agregar valor aos agricultores familiares brasileiros favo-recendo a manutenção da biodiversidade gastro-nômica e a melhoria da qualidade alimentar das sociedades rural e urbana”. A chef Teresa Cor-ção é formada em design, porém é cozinheira e chef autodidata no restaurante O Navegador,

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que fica no centro da cidade do Rio de Janeiro. O restaurante existe há mais de 20 anos e servia pratos de cozinha internacional. No ano 2000, a chef conheceu o movimento italiano Slow Food, e, a partir deste contato, passou a repensar sua gastronomia e a direcionar seu trabalho para a pesquisa e uso da mandioca (cassava). A chef conta que iniciou esse processo visitando e en-trevistando os atores das casas de farinha no nordeste brasileiro, o que a permitiu identificar inúmeros usos, subprodutos e tipos de farinha de mandioca, assim como colecionar histórias de pessoas envolvidas na produção da cultura da mandioca.

Destas iniciativas resultou a criação do Instituto Maniva, com o objetivo de ampliar as parcerias com órgãos públicos e empresas privadas afim de aumentar a abrangência de agricultores envol-vidos e beneficiados com as ações do instituto. Uma das primeiras ações do Instituto foi a criação de um projeto de educação do gosto, que ensina crianças da rede escolar pública do RJ a história da mandioca, da culinária brasileira e a fazer tapioca, já instruiu mais de 800 crianças.

Atualmente, o instituto é composto por dezes-seis Ecochefs, cozinheiros com responsabilidade socioambiental que realizam ações de comuni-cação e conexão entre produtores, cozinheiros e consumidores, que atuam nas propostas e fren-tes do Instituto Maniva. As ações do Instituto são organizadas em três principais frentes: cultura, educação e agricultura. Estas frentes contemplam atividades como: produção de documentários, programas de valorização de produtos locais jun-to ao Governo e oficinas de cozinha sustentável com cozinheiras escolares e crianças. A principal atividade do Instituto é sua participação semanal com a “Barraca de Tapioca do Maniva” em cinco das 14 feiras do Circuito Carioca de Feiras Orgâ-nicas, gerido pela instituição Essência Vital e com o apoio da Prefeitura da cidade do Rio de Janeiro.

Esta atividade é fruto do projeto “Parceiro do Agricultor”, que visa auxiliar os agricultores fami-liares orgânicos na comercialização de seus pro-dutos com os restaurantes do Rio de Janeiro, ten-do o chef como elo entre produtores, donos de restaurantes e consumidores. Este projeto realiza

um mapeamento dos restaurantes localizados no entorno das feiras e busca incentivá-los a fazer parcerias com os agricultores.

Uma receita de sucesso: a parceria entre Instituto Maniva e os agricultores familiares

A partir de entrevistas com a chef Teresa Cor-ção, com alguns produtores e com o gestor do Circuito Carioca de Feiras Orgânicas e diretor pre-sidente da instituição Essência Vital, Marcos Melo, foi possível perceber a importância dessas ações para a promoção das feiras e seus agricultores, bem como para ressiginificação de seus produtos tidos como comuns, para diferenciados. O gestor do circuito de feiras, bem como os agricultores avaliam que a presença da “Barraca do Maniva” traz maior movimento para as feiras, aumenta as vendas e propicia um espaço de troca e sociabili-zação entre os produtores, consumidores e chefs.

Apesar de considerarem a relevância dessas re-lações, há um consenso de que estas são recentes e que ainda não está bem estruturada. Ainda sim, é possível notar, na fala do gestor do Circuito de Feiras do Rio de Janeiro, que tanto pelo esforço de instituições como o Instituto Maniva, quanto por iniciativas individuais de chefs, essas relações tem se estabelecido não apenas como ação de compra e venda, como também uma relação pes-soal e de amizade. Vale ressaltar também que o fortalecimento de espaços como as feiras, permi-tem que os encontros entre os atores aconteçam e que essas relações diretas e de proximidade se estabeleçam, demonstrando-se como uma estra-tégia eficiente para o incremento da renda e da autonomia dos produtores.

Em associação aos restaurantes, outros espa-ços de comercialização tem sido criados seguindo princípios de fair trade, como as lojas online e/ou físicas nos restaurantes com os produtos de origem que os abastecem. Este trabalho desen-volvido no Instituto Maniva reverberou, também, nas práticas do restaurante da chef. Assim, a chef passou a remodelar a proposta de seu restaurante utilizando e valorizando os produtos brasileiros e

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informando a seus comensais da onde e por quem os ingredientes utilizados nos pratos foram pro-duzidos, como pode ser visto no cardápio abaixo:

Além disso, a chef criou uma mercearia em seu restaurante, chamada de “Nave”, na qual vende os produtos que utiliza no restaurante, baseados nos princípios do fair trade, para oportunizar, por um lado, mais um mercado para os agricultores e, por outro, criar oportunidades e acesso para os comensais de seu restaurante afim de estimu-lar o consumo desse tipo de produto. Diante de sua forma de organização e atuação, o Maniva se mostra como um ponto convergente entre vários setores e atores, em que é capaz de estabelecer uma rede de relações entre eles.

O olhar dos agricultores frente ao circuito gastronômico

Todos os agricultores entrevistados expressaram que os chefs são divulgadores de seus produtos, que dão notoriedade a eles e os aproximam de no-vos consumidores, fazendo com que suas vendas aumentem consideravelmente. Os agricultores co-mentam que os chefs trazem jornalistas e imprensa para conversar com eles; fazem documentários e re-portagens para mostrar o dia a dia dos agricultores e o “caminho do alimento”; e, também, promovem visitas de consumidores até os sítios dos agricultores.

A relação com os chefs também propicia novos recursos, que antes eram desperdiçados e, atual-mente, são comercializados. Há relatos de de-senvolvimento e\ou melhoramento de produtos para comercialização, como o vinagre de caqui e o pesto com ramo de cenoura. Os agricultores elencam, como principais vantagens da relação com os chefs a “venda certa”, no sentido de te-rem a venda garantida para os restaurantes, maior quantidade do que para consumidores comuns, pagamento direto e entrega direta no restaurante.

Assim, da parte dos produtores, parece que a constituição desse mercado oferece vantagens em relação a outros tipos de mercado e constituí-da de maneira satisfatória para os produtores, de modo que eles tenham menores custos, cansaço,

recebam um valor justo e possam ter mais tempo para investir em suas atividades.

Quando perguntados acerca dos significado de vender para os chefs, os agricultores mencio-nam que é um orgulho vender para os chefs e que se sentem felizes por isso, como conta o agri-cultor e feirante Onésio: “Pra mim é bom. Quan-do a gente estava sozinho, a gente encontrava um pouco de dificuldade. A gente só vendia pras feiras. Então, hoje já vendendo pros ecochefs. Me sinto feliz porque eu vendo pra eles e eles estão colocando saúde nas mesas dos consumidores”.

A chef Teresa confirma a fala dos produtores contando que eles costumam dizer que “a coisa mais valorizada possível quando eles veem o pro-duto deles feito por um chef num prato” e que eles dizem que ficam com “um orgulho muito grande”, pois sabem da dificuldade para produzir o ingrediente e “de repente eles veem aquilo ves-tido de festa”.

Além disso, os agricultores afirmam que esta-belecem uma relação de amizade com os chefs. Seu Luis conta que encontra os chefs regularmen-te, que construíram uma relação de confiança e que até já participou da festa de aniversário da chef Teresa Corção, demonstrando que a relação entre eles vai muito além de ingredientes e se sus-tenta sobre valores simbólicos, morais e relações sociais enraizadas.

A gastronomia como estratégia de valorização para a agricultura familiar

O caso do Instituto Maniva demonstra uma metodologia bem-sucedida de utilização da gas-tronomia como ferramenta para novas formas de interação e comercialização entre chefs, produto-res e consumidores. Deste caso, é possível apreen-der vários ensinamentos. Primeiramente, pode-se notar o papel central do chef como um novo ator e agente que vem se aliando aos agriculto-res familiares. Há uma miríade de iniciativas nes-te sentido, sendo as mais evidentes os inúmeros

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programas televisivos e outras mídias que se ocu-pam da comida. Disso, evidencia-se um processo de ressignificação e (re)valorização de produtos tradicionais, artesanais e locais, conferindo-lhes traços de singularização e distintividade. Assiste--se, também, a reação dos consumidores e a sua adesão crescente ao consumo destes produtos diferenciados, valorizando a origem, o produto e a sua forma de produzir, tanto no circuito gastro-nômico, como em feiras.

Apesar desta experiência se mostrar positiva, há desafios a serem superados. Primeiro, é pre-ciso ampliar o acesso dos agricultores familiares a este tipo de mercado, de tal forma que pos-sam ampliar o portfólio de produtos e a escala de produção. Da mesma forma, é preciso, também, criar espaços que oportunizem a participação de um maior e diverso número de consumidores. Uma vez que este tipo de gastronomia tem um

preço salgado, com ticket médio de R$ 120,00, o acesso a ela acaba restringindo-se a uma peque-na parcela da população brasileira. Em segundo, está o desafio de melhorar a infraestrutura mate-rial de apoio a este tipo de relação entre produ-tores rurais, chefs e consumidores, uma vez que, em muitas situações, há precariedade de estra-das e as comunicações são falhas. A difusão e a ampliação do uso da internet para estimular a conexão entre os diferentes agentes poderia ser uma alternativa a este desafio; por fim, é preciso criar uma institucionalidade para que estas ini-ciativas não representem mais uma nova forma de apropriação dos conhecimentos e do modo de produzir e preparar alimentos dos produtores e das populações tradicionais, mas que a gas-tronomia seja agregada como instrumento para compor a cesta de atividades de políticas públi-cas voltadas para valorização e fortalecimento da agricultura familiar.

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A experiência apresentada aborda a emergên-cia de iniciativas de diferenciação agroalimentar no âmbito da produção e consumo de alimentos no município de Santana do Livramento, locali-zado na região da Campanha do estado do Rio Grande do Sul.

No caso evidenciado, procura-se demonstrar e valorizar características sociais e produtivas das agriculturas locais de base familiar, as quais per-maneceram por um longo tempo invisibilizadas perante o campo social, acadêmico e político. Acredita-se que são essas características detento-ras de um potencial endógeno que podem inspirar

outros grupos sociais “minorados” a proporem as suas próprias alternativas de desenvolvimento.

Situado na zona de fronteira do Brasil com o Uruguai, Santana do Livramento é tradicional-mente reconhecido pela produção de pecuária extensiva. Fundado por imigrantes portugueses, em princípios do século XIX, o município desen-volveu sua estrutura produtiva e econômica por intermédio da criação de bovinos de corte, cria-dos sobre extensas áreas de pastagens naturais.

A forma de apropriação da terra, por meio da doação de sesmarias, privilegiou uma acu-

CAPÍTULO 16

A emergência da diferenciação agroalimentar no Pampa Gaúcho: reconectando agricultores e consumidores

Márcio Zamboni Neske Cláudio Becker

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mulação voraz das terras, dominada, mormente por grandes latifúndios. É corriqueiro verificar na historiografia no Rio Grande do Sul análi-ses que associam a região da Campanha como aquela em que à ocupação da terra e formação da propriedade privada ocorreu unicamente por grandes propriedades, ignorado a presença de núcleos familiares na formação social, eco-nômica e produtiva. Esse é um mito que tem sido constantemente recriado. No entanto, uma análise mais apurada evidencia que, desde meados de 1800, em Santana do Livramento e região, sempre se encontravam produtores fa-miliares que se dedicavam a pequena produção, embora ocupando uma posição marginal na es-trutura agrária local.

Assim, além dos descendentes portugueses majoritários, na década de 1930 se estabeleceram no município alguns imigrantes de outras etnias. Esse é o caso dos italianos vindos da província de Buenos Aires, que ao se instalarem no entorno da cidade, passaram a desenvolver uma agricultura de subsistência. No decorrer da década de 1990, a formação de núcleos familiares oriundos da re-forma agrária marca uma nova fase do processo de reterritorialização de Santana do Livramento, sendo que atualmente existem 30 assentamentos rurais no município.

Segundo dados do Instituto Brasileiro de Ge-ografia e Estatística, Santana do Livramento é o segundo maior município em extensão territorial do Rio Grande do Sul, com uma área de 617.000 hectares, sendo que os estabelecimentos agro-pecuários com mais de 500 hectares ocupam 74 % da área agrícola total. É nesse contexto de concentração de terras que a estrutura fundiária aponta para a forte presença de estabelecimentos familiares agropecuários, denotando uma enorme heterogeneidade social e produtiva. Atualmente, 81 % do total dos estabelecimentos agropecuá-rios são classificados como da agricultura familiar, sendo que 1332 são assentados da reforma agrá-ria, 35 são quilombolas, 673 são pecuaristas fami-liares e 100 são “agricultores familiares típicos”.

Nesse universo agrário diverso mercados locais estão sendo reinventados por meio de processos

que estimulam e fortalecem a (re)conexão da pro-dução e consumo de alimentos agroecológicos em circuitos curtos, em que os agricultores familiares são os principais protagonistas desse processo.

De “chacareiros” a “hortaleiros”

Os autodenominados chacareiros eram peque-nos produtores descendentes de italianos e por-tugueses que se instalaram na periferia da cidade, constituindo um modo de vida específico basea-do no trabalho e na produção familiar. Ocupando pequenas áreas, os chacareiros desenvolviam o policultivo associado à criação de animais. Além da produção para o autoconsumo, muitas des-sas chácaras apresentavam atividades produtivas de valor comercial, tendo importante papel no abastecimento de alimentos do centro urbano. Os produtos eram comercializados em alguns es-tabelecimentos comerciais, nas chamadas “casas de comércio”, e também nas praças locais. Com o processo de divisão das propriedades por he-rança, a partir dos anos de 1960, muitos filhos dos chacareiros migraram para a cidade, e outros poucos, seguindo a tradição familiar, mantiveram a atividade de produção e comercialização na cidade. Desde então, os descendentes dos cha-careiros se autodenominam de “hortaleiros”, fa-zendo referência que a produção é orientada à produção de legumes, verduras e frutas, não se tratando de uma produção diversificada como à época dos seus pais.

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Dispositivos de construção de novos mercados

Surgiram há cerca de duas décadas no mu-nicípio algumas iniciativas mais disseminadas de diversificação produtiva empreendidas pelos hor-ticultores familiares. Fundamentalmente, a produ-ção de frutas e hortaliças passou a ganhar escopo na produção local, incentivada pelo Programa de Fruticultura da Metade Sul (PFMS). Essa iniciativa foi criada em 1998, tendo como propósito ser-vir de dispositivo para a reestruturação produti-va da região da Campanha. Diversos pequenos e médios agricultores aderiram ao programa como uma medida de diversificação produtiva, mas por sua característica top down, em seguida, a inicia-tiva não teve o êxito esperado, fazendo com que diversos produtores desistissem do PFMS.

Como parte do processo de difusão do pro-grama, foi criada a Associação Santanense de Produtores de Hortifrutigranjeiros (ASPH), que objetivava, à época, servir como uma instância de legitimação para a execução das ações do PFMS. Apesar do término do programa, a ASPH perma-neceu ativa, atualmente congregando agriculto-res familiares que produzem e comercializam seus gêneros em mercados locais e em circuitos de cadeias curtas “face a face”, por meio de feiras livres e/ou entregas em domicílio.

Mais recentemente, alguns agricultores fa-miliares vêm fornecendo produtos – obtidos em sistemas produtivos agroecológicos e/ou que se encontram em transição agroecológica – para es-colas da rede pública de ensino, por meio do Pro-

grama Nacional de Alimentação Escolar (PNAE). A experiência tem sido bem sucedida e vem desper-tando o interesse de outros produtores da ASPH, sobretudo pela possibilidade de acesso a novos espaços de comercialização. Entretanto, por não existir nenhuma forma efetiva de certificação, os alimentos comercializados junto ao PNAE acabam sendo classificados como gêneros convencionais.

A construção social de um sistema participativo de certificação de produtos

Visando criar mecanismos para reconhecer e legitimar a produção agroecológica, uma parce-ria entre Empresa de Assistência Técnica e Exten-são Rural (Emater), Universidade Estadual do Rio Grande do Sul (UERGS) e Secretaria Municipal de Agricultura, Pecuária e Abastecimento (SMAPA), juntamente com os produtores da ASPH, passa-ram a atuar no sentido de construir um mecanis-mo coletivo para a legalização dessa produção (de certificação participativa) no município.

Neste sentido, a legislação brasileira de pro-dutos orgânicos (Lei 10.831/2003) é particular-mente inovadora ao possibilitar que o processo de legalização seja realizado pelo controle social, ou seja, que os próprios envolvidos na produção agroecológica consigam organizar-se coletiva-mente de tal forma que a sociedade e o Minis-tério da Agricultura, Pecuária e Abastecimento (MAPA) confiram legitimidade aos grupos cons-tituídos para a venda direta aos consumidores. Dessa forma, no Brasil admitem-se três formas de certificação, quais sejam: Contratação de Certifi-cadoras (empresas); Organismos Participativos de Avaliação de Conformidade (OPAC); e Organis-mo de Controle Social (OCS).

O OCS foi a modalidade legal adotada pelos agricultores familiares vinculados à ASPH e inse-ridos na produção agroecológica. Cabe destacar que esta organização não pode ser composta exclusivamente de produtores, fazendo-se ne-cessária a participação de consumidores e técni-cos, como uma forma de fornecer legitimidade ao processo. O processo inicial da construção do

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OCS envolveu a elaboração de procedimentos para seu funcionamento, sistematizados na for-ma de Regras de Convivência. Para a conclusão dessa etapa, foram realizadas reuniões durante o primeiro semestre de 2015, contando com o em-prego de métodos participativos de trabalho.

Transcorrida esta etapa preliminar, iniciaram as atividades práticas a campo, quando foram rea-lizadas visitas pelos técnicos e consumidores às unidades produtivas dos agricultores familiares. Estas visitas tiveram como objetivo a definição da área que está sendo ou será destinada a produ-ção agroecológica, bem como ampliar a troca de conhecimentos entre os envolvidos (agricultores, técnicos e consumidores).

Posteriormente, a partir das discussões coleti-vas, o grupo definiu o nome do OCS, passando a ser denominado: Agroecologia Pampa, Terra e Fronteira. O grupo tem por objetivo a busca pela qualidade no processo de produção e consumo de alimentos e na relação social entre as pessoas envolvidas, além de melhorar as condições eco-nômicas das famílias, utilizando o trabalho cole-tivo como gerador de confiança e credibilidade do grupo, constituído por agricultores familiares, consumidores e técnicos. Em setembro de 2015, o MAPA realizou a entrega da declaração de ca-dastro e a declaração de produtor vinculado ao OCS. Com isso, os agricultores familiares poderão identificar seus produtos como orgânicos nos lo-cais de comercialização.

Ensinamentos e desafios

No caso da feira livre, é possível constatar a existência de uma política do consumo, na qual questões como a qualidade dos produtos, os pre-ços praticados e a confiança no agricultor são al-gumas das atribuições que definem a existência de consumidores politizados. A criação do OCS é um mecanismo importante para ampliar esse perfil de consumidores, pois, segundo eles próprios, a cer-tificação é uma maneira eficaz de diferenciação e garantia da qualidade e origem dos produtos.

Do ponto de vista dos agricultores familiares, além do OCS representar o efetivo reconhecimen-to de que sua produção é agroecológica, também institui as condições para a inserção em mercados que privilegiam esta característica, como é o caso da Alimentação Escolar.

De toda a forma, a construção do OCS é alta-mente tributária de um processo de organização social, alicerçado em valores como: confiança, par-ticipação, autonomia e sustentabilidade. A conso-lidação e o futuro da produção e consumo de ali-mentos agroecológicos no município, bem como, a ampliação dos mercados locais necessitarão que se mantenham e se fortaleçam estes atributos.

Acredita-se que essa experiência contém ele-mentos – históricos, culturais e socioprodutivos – que podem servir de referência para outras ini-ciativas com características semelhantes na região do Pampa Gaúcho.

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Adriana Brandão Nascimento MachadoJornalista (UFPI). Mestranda em Desenvolvi-

mento Rural (PGDR/UFRGS). Atua no Núcleo de Comunicação Organizacional da Embrapa Capri-nos e Ovinos em Sobral/CE.

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Alessandra MatteGraduada em Zootecnia (UFSM). Mestre e

Doutoranda em Desenvolvimento Rural (PGDR/UFRGS). Redatora do Programa Fidamercosur CLAEH, para o projeto Profundización y Amplia-ción de la Plataforma para Diálogo en Políticas Pú-blicas sobre Agricultura Familiar y Desarrollo Rural en América Latina y el Caribe.

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Ana Lúcia Oliveira da SilvaBacharel em Jornalismo e Publicidade e Propa-

ganda (PUCRS). Mestre em Desenvolvimento Ru-ral (PGDR/UFRGS). Jornalista.

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Ana Paula MateiGraduada em Administração (UFPel). Mestre

em Engenharia de Produção (PPGEP/UFRGS). Dou-tora em Desenvolvimento Rural (PGDR/UFRGS). Servidora Pública Federal, Secretaria de Desenvol-vimento Tecnológico (SEDETEC).

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Carlise Schneider RudnickiBacharel em Comunicação Social, Relações Pú-

blicas (UFRGS). Mestre e Doutora em Desenvolvi-mento Rural (PGDR/UFRGS). Professora Adjunta I no Departamento de Ciências da Comunicação na Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFSM).

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Carlos Alberto Sangali de MatosGraduado em Administração Rural (USP). Pós-

-Graduado em Economia e Administração Rural (FGV/RJ). Extensionista do Instituto Capixaba de Pes-quisa, Assistência Técnica e Extensão Rural (Incaper).

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Carolina Braz de Castilho e SilvaBacharel em Ciências Sociais (UFRGS). Mestre

em Sociologia (PPGS/UFRGS). Doutora em Desen-volvimento Rural (PGDR/UFRGS).

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Carolina BrignoniAdministradora (UERGS). Mestre em Desenvol-

vimento Rural (PGDR/UFRGS). [email protected]

Celia Jaqueline Sanz Rodriguez Cientista Social (UFES). Mestre em Políticas

Sociais (PPGPS/UENF). Doutoranda em Desenvolvi-mento Rural (PGDR/UFRGS). Bolsista Fapes. Exten-sionista do Instituto Capixaba de Pesquisa, Assis-tência Técnica e Extensão Rural (Incaper).

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Cláudio BeckerEngenheiro Agrônomo (UFPel). Mestrado e Dou-

torado em Sistemas de Produção Agrícola Familiar (PPGSPAF/UFPel). Professor Adjunto em Agroecolo-gia da Universidade Estadual do Rio Grande do Sul, Campus de Santana do Livramento.

[email protected]

Daniela Garcez WivesLicenciada em Geografia (ULBRA). Mestre e Dou-

tora em Desenvolvimento Rural (PGDR/UFRGS). Pós-Doutoranda em Desenvolvimento Rural (PGDR/UFRGS).

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Flávia Charão MarquesGraduada em Agronomia (UFRGS). Mestre

em Fitotecnia (PPGF/UFRGS). Doutora em De-senvolvimento Rural (PGDR/UFRGS). Professo-ra da Faculdade de Agronomia e do Programa de Pós-Graduação em Desenvolvimento Rural (PGDR/UFRGS).

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SOBRE OS AUTORES

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Jorge Luis de Sales FariasMédico veterinário (UECE). Mestre em Zootec-

nia (PPGZ/UVA). Pesquisador na área de Desenvol-vimento Rural e Agricultura Familiar na Embrapa Caprinos e Ovinos em Sobral/CE.

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Leonardo Xavier da SilvaGraduado em Ciências Econômicas – PUCRS.

Mestre em Economia Rural – PPGER/UFRGS. Dou-tor em Economia – PPGE/UFRGS. Professor do Departamento de Economia e Relações Interna-cionais da Universidade Federal do Rio Grande do Sul.

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Marcelo Antônio Conterato. Graduado em Geografia (UFSM). Mestre e

Doutor em Desenvolvimento Rural (PGDR/UFRGS). Professor do Departamento de Economia e Rela-ções Internacionais (DERI), coordenador do Ba-charelado em Desenvolvimento Rural (PLAGEDER) modalidade a distância, ambos na Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS).

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Marcelo Porto NicolaGraduado em Engenharia Agrônomica (UFPEL).

Mestre em Extensão Rural (PPGExR/UFSM). Doutor em Desenvolvimento Rural (PGDR/UFRGS). Geren-te Técnico da Estação Experimental Agronômica (EEA/FAGRO/UFRGS).

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Márcio Zamboni NeskeBiólogo (URCAMP). Mestrado e Doutorado em

Desenvolvimento Rural (PGDR/UFRGS). Professor Adjunto em Desenvolvimento Rural da Universi-dade Estadual do Rio Grande do Sul, Campus de Santana do Livramento.

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Marcio GazollaGraduando em Agronomia (UFSM). Mestre e

Doutor em Desenvolvimento Rural (PGDR/UFRGS). Professor da Universidade Tecnológica Federal do Paraná (UTFPR) Campus Pato Branco/PR, e no Pro-grama de Pós Graduação em Desenvolvimento Re-gional (PPGDR).

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Mayara Roberta Martins. Bacharel em Turismo (UFSCar). Mestre em De-

senvolvimento Rural (PGDR/UFRGS). Doutoranda em Ambiente e Sociedade (NEPAM/UNICAMP). [email protected]

Paulo André Niederle. Engenheiro Agrônomo (UFPEL). Mestre em

Desenvolvimento Rural (PGDR/UFRGS). Doutor em Ciências Sociais (CPDA/UFRRJ). Professor dos Programas de Pós-Graduação em Sociologia e em Desenvolvimento Rural da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS).

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Potira Viegas PreissGraduada em Ciências Biológicas (Unisinos).

Mestre e Doutoranda em Desenvolvimento Rural (PGDR/UFRGS).

[email protected]

Sergio SchneiderGraduado em Ciências Sociais (UFRGS). Mestre

em Sociologia (IFCH/Unicamp). Doutor em Socio-logia (UFRGS/Université de Paris X). Professor Titu-lar da UFRGS. Professor Permanente nos Programa de Pós-Graduação em Desenvolvimento Rural e Sociologia (PGDR/PPGS/UFRGS).

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Tainá ZanetiGastrônoma (IESB). Mestre em Agronegócios

(PROPAGA/UnB). Doutora em Desenvolvimento Rural (PGDR/UFRGS). Docente no CET-UnB.

[email protected]

Tanise Dias FreitasBacharel em Ciências Sociais (UFSM). Mestre

em Ciências Sociais (PPGCS/UFSM). Doutora em Sociologia (PPGS/UFRGS). Pós-Doutoranda em Economia e Desenvolvimento (PPGE&D/UFSM).

[email protected]

Vanderlei Franck Thies. Engenheiro Agrônomo (UFPel). Mestre e Dou-

torando em Desenvolvimento Rural (PGDR/UFRGS). [email protected]

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EXPERIÊNCIAS INOVADORASNA AGRICULTURA FAMILIAR BRASILEIRA:

ATORES, PRÁTICAS E PROCESSOSPARA O DESENVOLVIMENTO RURAL

COLECCIÓNBuenas Prácticas

en Agricultura Familiar