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Expandindo a precarização: o ensino primário na Salvador republicana (1912-
1916)
Fabiano Moreira da Silva1
O estudo sobre o processo de escolarização primária na cidade de Salvador
durante Primeira República tem muito a contribuir para o conhecimento desse período
marcado por agitações políticas, sociais, dificuldades financeiras, administrativas e
condições econômicas desfavoráveis. As ações para a expansão das escolas voltadas
para o ensino primário fazia parte do projeto de formar o cidadão republicano patriótico,
ordeiro, civilizado, alfabetizado e no futuro, a mão de obra dócil para o mercado de
trabalho2. Em um estado que a maioria da sua população era analfabeta3 havia a
necessidade de ampliar a oferta de instrução, no entanto o que ocorreu foi a expansão de
estabelecimentos de ensino que não estavam de acordo aos anseios presente no discurso
republicano e o que se presenciava era a oferta de escolas em condições precárias e
professores vivendo em situação de dificuldade financeira. Esse artigo trata das
condições precárias de trabalho dos professores e professoras do ensino primário de
Salvador (1912 a 1916) tendo por base os prédios e as casas onde estavam instaladas as
escolas pelos distritos da cidade. Através de reportagens publicadas na imprensa, textos
memorialísticos, cartas redigidas pelos professores e relatórios da Intendência
Municipal foi possível conhecer a dura realidade do professorado municipal que tinha
que exercer o seu ofício em imóveis que não atendiam a determinação da lei e
funcionavam, na sua maioria, em casas e prédios alugados que eram adaptados para
servirem de escola. O período abordado nesse artigo refere-se ao período do primeiro
governo de J.J Seabra marcado pelas intervenções urbanísticas, o déficit habitacional e a
carestia no preço dos alugueis na cidade de Salvador.
1 Mestrando em História pela Universidade Federal da Bahia – [email protected] 2 Segundo Luz a escola tornou-se o principal instrumento da utopia republicana. LUZ, José Augusto.
Educação, progresso e infância na Salvador republicana: percursos históricos. História da educação na
Bahia. Salvador: Arcádia, 2008. 3 Em 1890 apenas 8% da população sabia ler e escrever , esse número decresce para 5% em 1920.
Verificar em: SAMPAIO, Consuelo Novais. Os Partidos Políticos da Bahia na Primeira República.
Salvador: Edufba, 1998. p. 22
2
Em 02 de julho de 1891 foi promulgada a primeira constituição da Bahia que,
entre outros temas, tratou da instrução pública passando aos municípios a competência
do ensino primário. Segundo o artigo 109 inciso 6º cabia aos municípios “Crear, manter,
transferir e supprimir escolas de instrucção primária, com o concurso do Estado, onde o
município não puder desempenhar este serviço, e sem prejuízo das instituições
congêneres que aquelle entenda crear e manter”. Ainda o inciso 7º atribuía ao município
outras responsabilidades como “ despezas com os serviços de vaccinação, illuminnção
publica, asseio, limpeza, calçamento, esgoto, arborisaçães, ajardinamentos e quaesquer
outros, inclusive com o de soccorros aos indigentes e enfermos pobres do municipio e
demais serviços de assistencia publica” 4.
Esse conjunto de leis colocava sob a responsabilidade municipal o ordenamento
e o custeio do ensino primário com a sua organização burocrática, física, material e de
pessoal além das atribuições de manutenção da cidade e atenção aos seus moradores, ou
seja, o município recebia a responsabilidade por serviços que se mostrariam custosos
para os cofres municipais, debilitando as suas finanças, gerando dívidas e atraso de
pagamentos para os funcionários municipais entre eles os professores e professoras5.
Outra situação enfrentada pela intendência municipal ao assumir a educação
primária era a obrigatoriedade legal de prover casas e prédios para instalar as escolas e
ainda na falta destas o caberia ao município o aluguel de casas que pudessem servir
como escola6. Em 1896 havia em Salvador apenas cinco prédios escolares e somente
dois funcionavam de fato como escolas, com isso o município incumbiu aos professores
de procurar um imóvel, contratar a locação, se responsabilizar com o pagamento do
aluguel recebendo um auxilio para custear a locação enquanto a Intendência Municipal
não providenciava imóveis próprios para instalar as escolas. Uma situação que deveria
ser momentânea persistiu durante o período de quase 28 anos em que o ensino primário
esteve sob a responsabilidade da Intendência Municipal7.
4 BAHIA (Estado) Constituição do Estado da Bahia promulgada em 2 de julho de 1891 Bibliotec Digital
do Senado Federal Bahia: Litho-typ. Tourinho, 1891 http://www2.senado.gov.br/bdsf/item/id/224181 5 Segundo Santos (2001, p. 36) de 1901 a 1908 os professores municipais já criticavam a falta de
pontualidade e os atrasos nos vencimentos que acumulavam nove meses em 1908. SANTOS, Mário
Augusto da Silva. A República do povo: sobrevivência e tensão –Salvador (1890-1930). Salvador:
EDUFBA, 2001. p. 36 6 BAHIA.Lei de 24 de agosto de 1895.Nº 117 Artigo 19, incisos 1º e 2º 7 Verificar em Nascimento, Lília de Jesus. Antonio Bahia da Silva Araújo: suas ideias sobre
organização,planejamento e gestão do ensino municipal. In: Elizabete Conceição Santana; Ladjane Alves
Sousa; Natalli Soeiro Costa;Verônica de Jesus Brandão. (Org.). A construção da escola primária na
Bahia: O ensino Pimário no Município de Salvador 1896-1929. 1eded.Salvador: Editora da Universidade
Federal da Bahia -EDUFBA, 2014, v. 3, p. 99-112.
3
Os professores recebiam da municipalidade o auxílio no valor de 50$000
(cinquenta mil réis) para custear a locação do imóvel escolar, porém esse valor não era
suficiente para alugar um imóvel compatível para instalar uma escola obrigando os
professores a complementarem de seus salários para pagar o aluguel das casas ou
prédios. Essa situação foi um empecilho ao desenvolvimento do ensino primário
municipal porque os professores buscavam imóveis para instalar suas escolas de acordo
a sua possibilidade de pagamento e muitas dessas escolhas, como se verá adiante, se
davam em casas e prédios inapropriados para o funcionamento de uma escola.
Acrescente-se a essa situação o déficit habitacional na cidade, o aumento progressivo
nos valores dos alugueis após a reforma urbana iniciada no governo de J.J. Seabra em
1912 e o não reajuste no auxílio financeiro para o aluguel disponibilizado pelo
município.
Encontrar um imóvel adequado para instalar uma escola para abrigar crianças e
que atendesse aos requisitos de higiene, espaço e conforto não era uma tarefa fácil. A
cidade era composta de construções antigas com a presença de casas e sobrados que na
sua construção, reforma ou ampliação não tinha a preocupação com circulação de ar,
iluminação e linearidade formando assim ruas estreitas, desalinhadas e mal ventiladas8.
As casas e os sobrados eram comprimidos uns aos outros, com terrenos disputados
palmo a palmo a área construída. As casas tinham aspectos construtivos semelhantes
com uma ou duas salas, um corredor onde estariam os acessos para os quartos, a
cozinha ao fundo e na parte posterior a existência de um quintal ou pátio, essa
semelhança de padrão construtivo tinha como objetivo a venda ou o aluguel9. Os
sobrados são descritos por Mario Augusto dos Santos como construções de dois, três ou
mais andares que atendia a função habitacional nos andares superiores e comercial nos
andares inferiores10. Alguns desses sobrados possuíam uma loja que conforme descreve
João José Reis11 é espécie de subsolo com janelinhas ou “óculos”, geralmente ovais e
8 Verificar a descrição urbana da cidade de Salvador em 1912 em LEITE, Rinaldo Cesar Nascimento. E a
Bahia civiliza-se... Ideais de civilização e cenas de anticivilidade em um contexto de modernização
urbana. Salvador 1912/1916. Salvador: UFBA. 1996. (Dissertação de Mestrado) 9 Os aspectos urbanos da cidade da Salvador podem ser verificados em NASCIMENTO, Anna Amélia
Vieira. Dez freguesias da cidade do Salvador: aspectos sociais e urbanos do século XIX.
Salvador.Edufba.2007 10 SANTOS, Mário Augusto da Silva. Crescimento urbano e habitação em Salvador (1890-1940). Revista
de Urbanismo e Arquitetura, v. 3, n. 1, 2008.p. 26 11 João José Reis descreve um loja ao tratar dos locais onde se reunião os negros malês no planejamento
da rebelião ocorrida em Salvador em 1835. Ainda é possível verificar esse modelo construtivo no centro
4
redondos, gradeados, que dão para o nível da calçada possuindo o acesso por uma única
porta e que pela sua construção não favorecia a circulação de ar. Nos sobrados poderia
também existiam o sótãos ou “águas furtadas”.Nas áreas mais distantes do centro
prevaleciam as casas de tamanho reduzido, mas com área externa e tinham como
característica o teto baixo12.
As condições da maioria dos imóveis da cidade de Salvador não atendiam os
padrões exigidos para a instalação de uma escola. Em 1895 foi publicado o
Regulamento do Ensino Primário da Bahia que entre outros assuntos tratava do padrão
arquitetônico e construtivo do edifício escolar. Entre as exigências estavam a
disponibilidade de salas individuais para atividades de desenho, biblioteca, sala de aula,
gabinete para o professor, pátio para o recreio arenoso e cimentado, latrinas, mictórios e
água canalizada. Quanto a sua localização deveria ser situado em terreno seco, elevado,
de fácil acesso, em preferência em solo calcário ou passível de drenagem. A escola não
deveria se localizar próximo a lugares ruidosos e que não comprometesse a higiene,
saúde, moral e bons costumes dos alunos. As salas deveriam ser higiênicas, ventiladas,
em um único pavimento e suas dimensões com 70 metros retangulares e com altura não
inferior a 4 metros, em caso de possuir escadas que sejam poucos os degraus13. A
legislação referente a localização e padrão construtivo atendiam as exigências de um
projeto higienizador que acompanhava o avanço do conhecimento cientifico e médico.
Era preciso combater e eliminar focos de doenças e meios de transmissão causadores de
epidemias entre o final do século XIX e inicio do século XX. Além disso, era necessário
modificar hábitos e costumes dos habitantes das cidades principalmente nas camadas
populares e para obter sucesso era necessário o apoio de diversas autoridades14.
antigo da cidade de Salvador. REIS, João José. Rebelião escrava no Brasil: a história do levante dos
malês em 1835. Companhia das Letras, 2003 p. 108-109.
12 SANTOS, op. cit. , p.26
13BAHIA. Ato de 4 de outubro de 1895 Regulamento da Instrução Primária e Secundária do Estado da
Bahia. Artigos 123 a 134.
14 Em relação às ações voltadas para higiene adotadas pelas autoridades públicas e influência nas ações de
modernização das cidades verificar em SAMPAIO, Gabriela dos Reis. Nas trincheiras da cura: as
diferentes medicinas no Rio de Janeiro imperial. Unicamp, 2001 ; LEITE, Rinaldo Cesar Nascimento. E
a Bahia civiliza-se... Ideais de civilização e cenas de anticivilidade em um contexto de modernização
urbana. Salvador 1912/1916. Salvador: UFBA. 1996. (Dissertação de Mestrado)
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Na medida em que ocorria a expansão urbana e o crescimento populacional da
cidade também aumentava a quantidade de escolas pelo município. Havia escolas
públicas primárias em todos os distritos da cidade. Dados apontam para 174
estabelecimentos no ano de 1915 e 240 no ano de 1919 divididos entre escolas
masculinas, femininas e mistas15. As escolas voltadas para o público feminino eram
superiores em relação as destinadas ao público masculino, enquanto que em 1915 havia
64 escolas masculinas as escolas femininas eram num total de 86. Isso refletia no
número de matrículas nas escolas sendo 7067 meninas e 4794 meninos. Essa diferença
pode ser explicada pelo uso da mão de obra infantil masculina que era comum no ramo
fabril e nos estabelecimentos comerciais. Os meninos exerciam atividades como
ajudante-aprendiz nas oficinas, indústrias, construção civil e nos trabalhos de rua como
vendedores ambulantes, entregadores das casas comerciais 16. A baixa frequência dos
alunos nas escolas e quantidade de crianças nas ruas foi tema de artigo no jornal Diário
de Notícias que fazia críticas ao governo devido à presença de crianças pelas ruas da
cidade. O articulista em sua escrita carregada de preconceito afirmava que se encontrava
nas ruas da cidade “centenas de meninos que sem destino, vagabundos, se entregam a
ociosidade, inutilizando-se para o trabalho e tornando-se nocivos a sociedade”.
Prosseguia o artigo tratando dos delitos cometidos, as arruaças, palavrões, embriaguez,
brigas e os problemas com a polícia. Ao final do texto o articulista sugeria duas formas
de combater situação, a criação de colônias correcionais e escolas para destinar os
“menores vagabundos”17. A presença de crianças perambulando pelas ruas era tida com
uma cena de não civilidade e uma ameaça social. Crianças pobres e desacompanhadas
nas ruas, principalmente nas partes da cidade que sofreram intervenção urbanística, era
visto como um risco social, como algo que precisava ser disciplinado e controlado pelas
autoridades públicas18.
As meninas também faziam parte do mundo trabalho e estavam presentes, em
sua maioria, no trabalho doméstico e muitas delas vindas da zona rural para
15 Os dados estatísticos referente ao ensino primário em Salvador estão organizados e disponíveis em
SANTANA, Elizabete. C. COSTA, Natalli Soeiro.Progressos e retrocessos da escolarização obrigatória
na escola primária do município de Salvador entre 1896 e 1927. In: Elizabete Conceição Santana;
Ladjane Alves Sousa; Natalli Soeiro Costa;Verônica de Jesus Brandão. (Org.). A construção da escola
primária na Bahia: O ensino Primário no Município de Salvador 1896-1929. 1ed.Salvador: Editora da
Universidade Federal da Bahia -EDUFBA, 2014, v. 3, p. 31-57 16 Conforme descrito por SANTOS, Mário Augusto da Silva. A República do povo: sobrevivência e
tensão –Salvador (1890-1930). Salvador: EDUFBA, 2001. (p. 50-51) 17 Diário de Notícias, 11 de janeiro de 1913 18 LEITE, op. cit. , p. 130-134
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trabalharem, precocemente, nas casas dos futuros “patroas” levadas por outras mulheres
pobres que já prestavam serviços às famílias mais ricas. É possível que as famílias
urbanas não quisessem esse destino para suas filhas e buscassem as escolas das
professoras para a alfabetização e a aprendizagem de prendas domésticas como costura
e artesanato. O magistério era basicamente exercido por mulheres com a predominância
de seis vezes mais que a masculina em 1915 e representarem em torno de 81% dos
professores municipais do ensino primário em 1920. O magistério vivenciou um
processo de feminização desde os primeiros anos da República na Bahia com a
participação massiva de mulheres no magistério que foi acompanhada da degradação
dos vencimentos, das condições precárias de trabalho e do descaso das autoridades19.
A chegada de J.J Seabra ao governo da Bahia marcou o momento de
modernização urbana da cidade com obras que visavam a mobilidade por meio da
construção de avenidas, o embelezamento da cidade por meio de calçamentos,
iluminação e com viés higiênico com serviço de água e esgoto. A cidade se transformou
num canteiro de obras e sofreu alterações nas características populacionais dos distritos
com a migração de parte da população da região central da cidade para outros pontos
mais próximos ao litoral. Os proprietários dos imóveis dos distritos próximos ao centro
da cidade e a região portuária tinham preferência de alugar seus imóveis para fins
comerciais atendendo a demanda da expansão comercial da cidade. A demanda por
imóveis fez com que os proprietários preferissem subdividir o imóvel para alugar
cômodos e andares separadamente e assim aumentarem a sua fonte de renda. A pouca
disponibilidade de imóveis e a alta procura favorecia o encarecimento dos alugueis.
Na disputa por imóveis estavam também os professores e as professoras que
com pouco recurso muitas vezes se instalavam em locais que não era observado as
exigências da legislação, mas sim a possibilidade de pagamento. Essa foi uma situação
que não passou despercebida pela imprensa que periodicamente abordava a
precariedade em que o ensino primário era ofertado na cidade e a dificuldade financeira
do professorado municipal. As reportagens referentes à situação da instrução pública
municipal, principalmente após 1912, teve relação com o domínio político de J.J Seabra
no estado onde foi governador entre 1912 a 1916, elegendo seu sucessor, Antonio
Muniz para o período de 1916 a 1920 e retornando ao governo entre 1920 a 1924. Além
19 SANTOS, op. cit.,p. 50 ; COSTA, Ana Alice A. Conceição, Hélida. Revolta dos resignados: a
participação feminina na greve dos professores (1918/1919). In. Fazendo Gênero na Historiografia
Baiana. Salvador: NEIM/UFBA, 2001. p. 121
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do controle do poder estadual Seabra também controlou a gestão municipal primeiro
apoiando a eleição de Julio Viveiro Brandão e em 1915 com a mudança na lei de
organização municipal extinguiu as eleições passando o cargo a ser nomeado pelo
governador e com isso garantindo que pessoas ligadas ao seu grupo político estivessem
à frente da administração da cidade. O domínio seabrista na Bahia provocou a formação
de grupos de oposição principalmente os ligados ao ex governador Severino Vieira e a
outro político influente no estado, Rui Barbosa20.
Os jornais de maior circulação e melhor estrutura estavam ligados a correntes
partidárias, alguns eram tidos como da situação como a Gazeta do Povo (1909-1916) e o
Democrata (1916-1922), que apoiavam J.J. Seabra e seus correligionários; outros, como
o Diário de Notícias, o Diário da Bahia de propriedade do ex-governador Severino
Vieira e o jornal A Tarde de propriedade de Ernesto Simões Filho eram oposicionistas
ao governo e, por isso, não poupavam críticas às suas ações e serviam de espaço para
denuncias e reclamações às ações governamentais. Além desses havia outros periódicos
como o Moderno, o Imparcial que abriam espaços para situação política e econômica do
estado. A instrução pública municipal, devido aos seus problemas, era um ponto de
fragilidade do governo e pro isso era um assunto recorrente nos jornais oposicionistas
que através de artigos, reportagens, muitos em destaque na primeira página, tratavam
dos problemas que atingiam o professorado municipal como o atraso no pagamento dos
salários e as más condições de trabalho. As matérias jornalísticas que tratavam das
condições de trabalho eram produzidas após visitas nas escolas, entrevistas com
professores e apresentavam detalhes do espaço físico, condição do mobiliário, matérias
escolares, condições higiênicas.
O jornal A Tarde em 21 de outubro de 1912 publicou uma reportagem em que
relatava as condições de uma escola do sexo masculino. A casa antiga de dois andares
que foi descrita como de “architetura bisonha, sem esthetica, mal dividida, sem luz, sem
ventilação, humidas, cheirando a bafio[mofo],moradia predilecta das aranhas
caranguejeiras e dos morcegos.”21 A descrição do repórter também detalhava as
condições do móveis escolares velhos e improvisados com caixas de velas, querosene e
alguns bancos feitos as custas do professor. O jornal A Tarde publicou reportagens
descrevendo a visita de repórteres a quatro escolas relatando a situação de falta de 20 As disputas políticas envolvendo J.J. Seabra e Ruy Barbosa pode ser verificada em SARMENTO,
Silvia Noronha. A raposa e a águia : J.J. Seabra e Rui Barbosa na política baiana da Primeira
República.EDUFBA. Salvador, 2011. 21 Jornal A Tarde, 21 de outubro de 1912.
8
mobiliário escolar e a necessidade dos professores de solicitarem empréstimo de
mobílias para darem suas aulas. Ainda havia descrição de escolas que funcionavam em
pequenos espaços, sem circulação de ar, próxima ao gasômetro da cidade fazendo com
que as paredes da escola ficassem enegrecidas ou instaladas em lojas(subsolos) com
apenas uma porta e uma janela e até escolas que funcionavam em sótãos22. Ao escrever
a suas memórias o professor Álvaro Zózimo relembra a escola primária em que estudou
descrevendo-a como uma acomodação exígua instalada em um prédio que também
servia de moradia da professora. Por falta de escola masculina na proximidade,
descumprindo determinação do regulamento da escola publica, aceitou meninos para
estudar em escola feminina colocando-os em um espaço apertado na sala que ficava do
fundo de uma casa23.
Outro momento em que as condições do ensino primário da cidade de Salvador
ocuparam as páginas dos jornais foi quando o jornal O Moderno através de uma série de
reportagem intitulada “Outro Inquérito Útil” se propôs a percorrer diversas escolas do
ensino primário da capital baiana para saber “em que pé se acha o ensino municipal e
quais são as suas necessidades”. No ano de 1913 os repórteres percorreram 18 escolas
em diferentes distritos da cidade realizando entrevistas com as professoras responsáveis
pelas escolas e descrevendo as condições físicas e materiais dos estabelecimentos de
ensino. As escolas visitadas pelos repórteres tinham como responsáveis professoras
sendo a maioria dos estabelecimentos direcionados para alunos do sexo feminino,
porém havia escolas mistas e outras que atendiam somente o sexo masculino.
Os imóveis onde funcionavam as escolas primárias visitadas pela reportagem
não eram prédios construídos para fins escolares, tratava-se de imóveis residenciais ou
comercias que eram adaptados para que fossem ministrados aulas. Essa adaptação não
levava em conta aspectos pedagógicos, conforto, adaptabilidade ou higiene, mas a
disponibilidade de um imóvel que oferecesse um mínimo de espaço e que fosse possível
o pagamento pelo professor já que eram eles que faziam o papel de locatários. Era o
professor que tinha a responsabilidade de pagar o aluguel e para isso recebiam um
adicional no seu vencimento de 50$000(Cinquenta contos de réis) para o auxilio da
22 Verificar em SILVA, Maria Conceição B. da Costa e Silva. O ensino Primário na Bahia: 1889-1930.
Salvador: UFBA, 1997. (Tese de Doutorado). p. 68-71
23 ZÓZIMO, Álvaro. Sempre a serviço da educação: uma experiência de vida de mais de 80 anos. Edição
do autor, 2000. p.23.
9
locação. Esse valor não era suficiente para custear a locação de um imóvel com um
espaço para instalar uma escola sendo que parte dos imóveis locados era cobrado o
valor de 100$000 fazendo com que o docente complementasse a outra parte com o seu
salário. As professoras relatavam que o valor disponibilizado pela Intendência não era
suficiente para locar um imóvel em localização que pudesse atender a comunidade onde
estava inserida. Ao mesmo tempo, pelas limitações financeiras, não tinham condições
de pagar aluguel de prédios em melhores condições físicas.
Entre o meses de setembro a novembro de 1913 repórteres do jornal Moderno
percorreram 18 escolas do ensino primário da capital instaladas em diversos distritos
desde os localizados na parte central da cidade como a Sé, São Pedro, Mercês, Carmo,
Santo Antonio e Pilar outras nos arredores da parte central como Nazaré, Sete Portas
como também lugares mais distantes como Rio Vermelho e Amaralina. Todas as
escolas visitadas eram conduzidas por professoras e estavam distribuídas em escolas
femininas, masculinas e mistas. As professoras que estavam à frente das escolas eram
mulheres experientes na docência sendo que algumas delas possuíam mais de uma
década no magistério como as professoras Jesuina Beatriz Oliveira (22 anos), Carolina
Rosa Simões (22 anos), Sydonia Gonçalves de Oliveira Alcântara (23 anos), Emilia
Lobo Viana (17 anos), Virginia Torres De Lima (18 anos). Outra característica era o
alto número de matriculas de alunos por escolas como, por exemplo, a escola da
professora Leonor Ferreira, 11 anos de magistério, que tinha matriculado 195 alunas
para estudar em um prédio considerado pelos repórteres como anti-higiênico. As
professoras Jesuína Beatriz Oliveira e Emilia Lobo Viana tinham matriculadas 144 e
190 alunas respectivamente.
Nas escolas visitadas havia uma diferença entre alunos matriculados e os
presentes em sala de aula. A situação de pobreza de parte da população e a necessidade
de buscar o sustento numa cidade que conviva com a carestia era apontado como
principal motivo para a baixa frequência escolar. Um exemplo dessa situação é descrito
pela professora Maria Augusta d’Oliveira que ao ser questionada sobre a causa a
diferença entre alunas matriculadas e as presentes responde que pelo fato a escola
possui “meninas que podem, meninas ricas, mas tenho com especialidade, meninas
pobres... Ora estas que são em número muito superior as outras, faltam
consideravelmente por motivos as vezes justificáveis. Por exemplo: aos sábados e
segundas-feiras, decresce muito a frequência, justamente porque são dos dias em que os
10
pobres precisam mais de seus filhos, para os ajudarem”24. A pobreza também é o
motivo citado pela professora Jesuína Beatriz d’Oliveira pela diferença entre
matriculadas e frequentadores nas escolas25. Aliada a essa situação pode-se pontuar que
a escola não era atrativa tanto no seu aspecto físico como didático. Lembra o professor
Álvaro Zózimo que a escola para o aluno iniciante era “motivo de medo e repulsa,
acentuados pela figura austera e até ameaçadora do professor, demonstrando a
possibilidade de castigos corporais, tendo a palmatória como seu maior instrumento.”26.
Foi durante a visita de uma das escolas os repórteres testemunharam uma
situação que se aproxima das lembranças do professor Álvaro Zózimo. Após subirem
uma longa escada os repórteres chegaram à sala de aula onde se encontrava a aluna-
mestra Maria José de Figuerêdo Gesteira castigando um dos seus alunos com bolos
utilizando uma palmatória. Pedindo desculpas aos visitantes a professora suspendeu o
castigo e informou que era uma necessidade, um “ estimulizinho ” e justificava sua
ação, alisando a cabeça de um aluno dizendo que “ não é máo (sic) um bolinho”. A
criança respondeu de maneira impulsiva, “ eu não gosto, não!”. Talvez não fosse
somente do castigo que a criança não gostava, mas também de estudar em uma escola
próxima ao trapiche e a zona portuária onde uma mistura de odores vinda dos depósitos
de mercadorias composta de fumo, café, couro e pescados deixavam, segundo os
repórteres, “um odor esquisito e desagradável ao orphato (sic).”27.
Não era somente os articulistas dos jornais que criticavam a situação das
crianças fora da escola, os professores também faziam observação sobre o assunto. A
equipe do jornal Moderno visitou a escola da professora Eufrosina Amélia de Miranda
que ministrava aula para 32 alunos do sexo masculino no distrito do Pilar em uma casa
localizada em frente a um depósito de carvão o que provocava a presença do pó negro
na sala de aula, nas portas e janelas. A professora apresentou suas queixas em relação às
condições que se encontravam o ensino e convidando os repórteres a chegarem até uma
janela que dava vista para a praia e mostrou um grupo de crianças que estavam fora da
escola observando que havia mais meninos na praia rolando nas areias , jogando pedras
na água e brincando com os outros do que na sua sala de aula. Para a professora a
solução seria o ensino obrigatório28. Talvez a sua fala expressasse o desejo de uma
24 Jornal Moderno, 14 de outubro de 1913 25 Jornal Moderno, 11 de setembro de 1913 26 ZÓZIMO, op. cit., p. 21 27 Jornal Moderno, 4 de novembro de 1913 28 Jornal Moderno 7 de novembro de 1913
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maior ação do poder público já que o ensino era obrigatório para crianças entre 06 e 14
anos de idade. Além dessa escola próximo a um depósito de carvão houve também a
visita da equipe do Moderno a uma escola, também do sexo masculino, que estava
próximo ao trapiche e que por isso convivia com um odor desagradável, ainda havia
escolas situadas em casa pequenas, com paredes úmidas, paredes rachadas, com pouca
ventilação e baixa iluminação.
As péssimas condições onde as escolas eram instaladas se devia a falta de
prédios escolares de propriedade do município com o padrão exigido pela legislação. Na
falta de imóveis construídos e destinados para funcionar como uma escola restava aos
professores e professoras buscarem imóveis que pudessem ser utilizados como espaço
escolar e ao mesmo tempo tivesse um valor de aluguel viável para o pagamento. A
professora Emilia Lobo Vianna durante entrevista ao jornal Moderno29 faz uma crítica a
essa situação ao informar ao repórter que pagava 100$000 de locação em um segundo
andar e um sótão onde acomodava 190 alunas, disse ainda que os altos preços dos
alugueis no distrito do Carmo onde estava instalada dificultava a instalação em um lugar
mais apropriado. A reclamação em relação ao valor que a intendência destinava para o
custeio do aluguel era comum entre as professoras entrevistadas.
Na década de 1910 a população de Salvador enfrentou graves problemas
financeiros devido à alta generalizada dos preços dos alimentos, dificuldades da
intendência manter em dias o pagamento dos funcionários municipais e a alta nos
valores cobrados pelos alugueis. A ocorrência da Primeira Guerra (1914 a 1918) trouxe
consequências para os preços dos alimentos na cidade devido a parte do que era
consumido pela população como o arroz, feijão, batata e bacalhau era importado da
Europa30. O conflito na Europa afetou também as obras de remodelação da cidade que
estava em andamento no governo de Seabra devido a retração e corte de creditos
estrangeiros. A falta de recursos paralisou obras de urbanização, impedia repasses de
recursos para as empresas contratadas pelo município provocando dispensas de
trabalhadores e atrasos nos pagamentos31. A Intendência Municipal que já enfrentava
crise financeira ao assumir a responsabilidade pelo ensino primário, serviços de
manutenção da cidade e assistência social teria sua situação agravada no período da
reforma urbana.
29 Jornal Moderno, 9 de setembro de 1913 30 SANTOS, op. cit. , p. 71-72 31 LEITE, op. cit. , p. 72-74
12
A remodelação urbana da cidade onerou os valores cobrados pelos alugueis que
sem uma legislação específica ficava por conta dos proprietários a majoração dos
valores de acordo a procura e as despesas para manter os imóveis. A cidade de Salvador
vivenciava carência de habitações e o interesse dos proprietários em locar seus imóveis
para os comerciantes que podiam suportar os aumentos e manter em dias os
pagamentos. Era comum a prática de subdividir os imóveis, alugando andares e ou
cômodos para inquilinos diferentes32.
O professorado municipal enfrentava essas duas situações adversas, a crise
financeira do município que provocava o não pagamento dos salários e da ajuda de
custo para locação de imóveis e a pressão decorrente do aumento nos valores dos
alugueis dos imóveis. A falta de pagamento de alugueis onde estavam instaladas escolas
gerou solicitações de devolução de imóveis e ações de despejos que os professores
relatavam ao Diretor de Ensino solicitando providencias urgentes. Foi assim que o caso
da professora Marianna Olympia dos Santos Silva que solicitava providências da
Intendência Municipal contra uma ação de despejo e penhora devido a dívida com
aluguel no valor 240$000 informando a professora que essa situação foi devido a dois
meses sem receber os seus vencimentos33. Queixa semelhante dirigiu também o
professor Isauro Coelho que atuava no distrito suburbano do Passé. Relatou o professor
que mesmo pagando 30$000 no aluguel do prédio escolar, quantia inferior a ajuda de
custo ofertada pelo município, já acumulava onze meses de atraso. A professora Emilia
Lobo Vianna ,em 1915, enviou carta ao Intendente Municipal solicitando providencias
quanto ao pagamento do aluguel do prédio onde sua escola estava instalada e informava
que já tinham sido movidas quatro ações de despejo, solicitava a professora a aquisição
de um prédio novo que pudesse abrigar as suas trezentas alunas não sendo possível
continuar numa casa “ escura, anti-higiênica e sem as necessárias acomodações”.
Informava ainda que o proprietário do imóvel solicitava por via judiciais a majoração do
valor do aluguel de 94$000 mensais para 300$000 e que só não tinha conseguido devido
à ação do advogado procurador do município.
Esses exemplos mostram como a situação do professorado municipal
encontrava-se difícil durante o primeiro governo de Seabra. Diante da situação de
32 SANTOS, Mário Augusto da Silva. Crescimento urbano e habitação em Salvador (1890-
1940). Revista de Urbanismo e Arquitetura, v. 3, n. 1, 2008.p. 26 33 Cartas enviadas a diretoria de ensino. Arquivo Histórico Municipal de Salvador. Fundo Intendência.
Diretoria de Ensino Municipal. Caixa 07.
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irregularidade no pagamento dos salários uma comissão de professores foi até o
governado Seabra solicitar o pagamento dos salários atrasados e queixar-se que
enquanto alguns professores não recebiam seus vencimentos outros em pagos em dia.
Irritado o governador Seabra disse que o Tesouro Municipal não tinha dinheiro e que
tudo era consequência da “crise mundial”34.
A situação de precariedade dos imóveis onde estavam instaladas as escolas
primárias da cidade e as dificuldades financeiras dos professores não era desconhecida
da Intendência e chegava a ser abertamente e oficialmente admitida nos relatórios
apresentados ao Conselho Municipal. Em 1º de janeiro de 1916 o intendente Antonio
Pacheco Mendes apresentou ao Conselho Municipal referente ao ano de 1915 que entre
outros assuntos tratou do ensino primário. A fala do intendente se remetia a situação de
falência do município causada pelas más gestões anteriores e ciente da situação do
ensino primário afirmou que não era “possível tratar imediatamente a sua solução
completa e integral. Outras questões de inadiável solução devem monopolizar a attenção
da administração”. O intendente deixava claro que a prioridade não seria a instrução
pública e sim a dívida do município contraída pelo empréstimo no exterior que entre
outros fins foi destinado para reforma urbana da cidade. Neste relatório do intendente ao
Conselho Municipal também era anexado o relatório do Diretor de Ensino que revelava
as condições das escolas do município. O Diretor de Ensino iniciou o seu relatório
solicitando ao intendente atenção para os prédios onde funcionavam as escolas e para o
mobiliário. Os prédios são descritos como sofríveis, situados em locais insalubres e
existindo escolas que não possuíam vasos sanitários e nem água encanada35.
A precariedade do ensino primário era visível aos olhos de todos, população,
governo e imprensa e os políticos como o Senador governista Campos França36 que em
discurso reconhecia ter sido um erro a municipalização do ensino primário. A crise
financeira do município se agravou e o atraso nos pagamentos do professorado que se
acumulava em poucos meses chegou a mais de dois anos em 1918 fazendo com que a
classe dos professores iniciassem uma longa greve, a primeira da categoria, que duraria
nove meses, de janeiro a setembro daquele ano, trazendo para as primeiras páginas do
34 Esse fato foi noticiado pelo Jornal A Tarde de 26 de janeiro de 1915 e pode ser encontrado em LUZ,
José Augusto Ramos da. Um olhar sobre a educação na Bahia: a salvação pelo ensino primário (1924-
1928). Feira de Santana: UEFS Editora, 2013. p. 59-60 35 MENDES, Antonio Pacheco. Relatório Apresentado ao Conselho Municipal do Estado da Bahia.
Bahia: Secção de Obras do “O Democrata”.1916. 36 Jornal O Democrata, 18 de abril de 1918
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jornais da capital baiana e do Rio de Janeiro a situação crítica que se encontrava o
ensino primário em Salvador.