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| 9 EVANGELHOS E BIOGRAFIAS EM DIÁLOGO: AS INFLUÊNCIAS DOS GÊNEROS LITERÁRIOS DA ANTIGUIDADE TARDIA NOS EVANGELHOS CANÔNICOS Brian Gordon Lutalo Kibuuka* RESUMO O artigo consiste na análise das relações entre os evan- gelhos cristãos canônicos e alguns dos gêneros biográficos da Antiguidade tardia cujos modelos de alguma forma manifes- tam paralelos importantes com os textos cristãos sobre Jesus. PALAVRAS-CHAVE Evangelhos, biografia helenística, encômio, gênero lite- rário. * Professor Substituto de Língua e Literatura Grega na Universidade Federal do Rio de Janeiro, o Autor está em fase de conclusão dos estudos do mes- trado em Estudos Clássicos pela Universidade de Coimbra. É membro do Centro de Estudos Clássicos e humanísticos da Universidade; membro do Grupo de Pesquisa Imagens, Representações e Cerâmica Antiga/NEREI- DA – UFF; e membro do Grupo de Pesquisa Discurso na Antiguidade Gre- ga: texto, contexto e memória –UFRJ. O link para o curriculum do Autor na Plataforma Lattes (CNPQ) é: http://lattes.cnpq.br/5276135301125711.

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| 9EVANGELHOS E BIOGRAFIAS EM DILOGO: AS INFLUNCIAS DOS GNEROS LITERRIOS DA ANTIGUIDADE TARDIA NOS EVANGELHOS CANNICOSBrian Gordon Lutalo Kibuuka*RESUMOOartigoconsistenaanlisedasrelaesentreosevan-gelhos cristos cannicos e alguns dos gneros biogrficos da Antiguidadetardiacujosmodelosdealgumaformamanifes-tam paralelos importantes com os textos cristos sobre Jesus. PALAVRAS-CHAVEEvangelhos,biografiahelenstica,encmio,gnerolite-rrio.* Professor Substituto de Lngua e Literatura Grega na Universidade Federal do Rio de Janeiro, o Autor est em fase de concluso dos estudos do mes-trado em Estudos Clssicos pela Universidade de Coimbra. membro do Centro de Estudos Clssicos e humansticos da Universidade; membro do GrupodePesquisaImagens,RepresentaeseCermica Antiga/NEREI-DA UFF; e membro do Grupo de Pesquisa Discurso na Antiguidade Gre-ga: texto, contexto e memria UFRJ. O link para o curriculum do Autor na Plataforma Lattes (CNPQ) : http://lattes.cnpq.br/5276135301125711.10 | Revista ReflexusABSTRACTThis paper describes the analysis of relations between the canonical gospels and some of the biographical genre of late antiquitywhosemodelssomehowrevealimportantparallels with the Christian texts about Jesus.KEYWORDSGospels,HellenisticBiography,Encomium,Literary Genre.O cristianismo do primeiro sculo o resultado do impac-to da vida e do ensino de Jesus, que a partir da Galileia iniciou ummovimentocujaamplituderapidamenteseamplioueal-canou novas paragens e ambientes em todo o vasto Imprio Romano.1 A histria e a mensagem de Jesus foram acolhidas por pessoas pertencentes s mais diferentes culturas ainda no primeiro sculo da presente era, constituindo-se um fenmeno deexpansoeadesodesingularpreeminncia,umcresci-mento improvvel devido ao incio humilde do cristianismo a partir de uma localidade considerada insignificante e rida.21A expanso do cristianismo pelo Imprio Romano atestada por autores latinos. Tcito afirma que a superstitio crist havia chegado cidade deRoma,tendosidoperseguidaporNero(TCITO,Annales,15.44). Suetnio relata essa mesma perseguio (SUETNIO, De Vita Cesarum, Nero, XVI, 2), e tambm faz meno ao edito de Cludio de 49 d.C. que procura controlar os conflitos entre os judeus de Roma por causa da pro-paganda crist (idem, ibidem, Divus Claudius, XXV, 4). Plnio, o moo, legado do Imperador na provncia do Ponto, na Bitnia, entre 111 e 113 d.C.,relataapresenadecristosequalificaomovimentocomosu-perstio que se irradia por cidades e em cada estrato social (PLNIO, o Moo, Epistulae, 96.8-10).2SegundoRinaldoFabris,aexpansodocristianismonomundogreco-romano nos primeiros trinta anos excepcional e nico, j que o pro-selitismo judaico e a propaganda das religies orientais, em particular as | 11 Brian Gordon Lutalo KibuukaAps os incios humildes na Palestina, a pregao sobre oCristoeosseusfeitosalcanouRoma, Alexandria,Tiro, fesoeAntioquia...,levadapelosapstolosdeJesusque viajavamappelasgrandesestradasenavegavampeloMe-diterrneo a bordo de galeras mercantes e navios de passagei-ros.3 Ainda no primeiro sculo, a mensagem crist chegou at outros centros urbanos menores pela atuao de missionrios, dentre os quais Paulo se destaca devido ao abundante nmero de suas missivas, bem como do relato de Atos dos Apstolos ao seu respeito.4Asingularexpansodocristianismoveioacompanhada do enriquecimento da tradio crist atravs da sua assimila-opordiferentesgrupossociaiseculturas.Emespecial,as tradies a respeito da vida e da obra de Jesus, ao alcanarem essesnovoslocais,foramaceitaspornovosouvintesemum trnsito que tambm ocasionou a modificao e adaptao des-satradioparalinguagens,categorias,formasetemasmais compreensveis aos diferentes contextos. Sendo assim, muito se conservou do mais antigo krygma jesunico, repleto de re-fernciasvidacampesinaehumildedaGalileia,pequenae insignificante como um gro de mostarda, bem como repleto deinformaesarespeitodaatuaodeJesusnaJudeia,da egpcias,nosocomparveisexperinciamissionriacristquanto capilaridadedepenetraoerapidezdedesenvolvimento.FABRIS, Rinaldo, Os Atos dos Apstolos, p. 271.3HORSLEY, Richard; SILBERMAN, Neil Asher, A Mensagem e o Reino: comoJesusePauloderamincioaumarevoluoetransformaramo Mundo Antigo, p. 125.4Especialmente o apstolo Paulo nos conhecido como fundador de um grande nmero dessas comunidades nas quais predominava, ou, em gran-departeestavapresentecomexclusividadeoelementocristogentli-co(STEGEMANN,Ekkehard W;STEGEMANN, Wolfgang,Histria social do protocristianismo, p. 288).12 | Revista Reflexussua morte em Jerusalm e de sua ressurreio. Mas essa nar-rativa foi aproximada dos seus ouvintes pela insero de cate-gorias acessveis aos novos contextos, situaes e culturas dos gruposqueaderiramaocristianismo.SegundoFitzmyer,a multiplicidade de relatos na tradio primitiva revela que eles no foram compostos com o simples propsito de narrar fatos sobre Jesus.5 Entre os fatores enumerados por Fitzmyer que influenciaram as mudanas na tradio crist esto os ecos de preocupaes religiosas tardias, as controvrsias entre grupos religiosos, as necessidades missionrias e a perseguio.A memria do processo de intercmbio, adaptao, con-servaoeinovaopeloqualatradiojesunicafoisendo enriquecidaaindanocristianismoprimitivoestacessvel pesquisa contempornea atravs da farta produo literria dei-xada pelos grupos cristos desde os primrdios do movimento. Tal literatura, diversificada em forma e contedo, uma forte evidnciadaseleoeressignificaodastradies.6Dessa literatura, d-se aqui particular destaque aos evangelhos.Em um sentido geral, a palavra evangelho proveniente dogrego!"#,quesignificarecompensa,aesde graas,sacrifciooferecidoporumaboa-nova,ouapr-priaboa-nova. AutilizaodotermojerafeitanaLXX, traduo grega do Antigo Testamento hebraico,7 onde o verbo hebraico basar traduzido pelo verbo grego $%&'!, quesignificaemvrioscontextosbasicamenteproclamara boa nova (Is 40.9; 52.7; 61.1; Sl 96.2). Em especial no Deu-tero-Isaas,aexpressoserelacionaaomensageirodeDeus 5FITZMYER, Joseph A., Catecismo cristolgico: respostas do Novo Tes-tamento, p. 20.6FIORENZA, Elizabeth Schssler, Jesus e a poltica da interpretao, p. 12.7BAILLY,A.!"#.In:AbrgdudictionaireGrec-Franais, p. 369-370. | 13 Brian Gordon Lutalo Kibuukaque proclama a boa nova escatolgica da irrupo do soberano domnio de Deus.8Alm da influncia veterotestamentria, advinda da tradu-o dos Setenta, a palavra evangelho j havia adquirido forte conotaoreligiosanomundoromanoporcausadocultoao imperador, em especial na atribuio a este, no fim do sculo I a.C. e do incio do sculo I. d.C., a figura de legislador divino universal.Umaevidnciaestnainscriodocalendriode Priene, na sia Menor (ano 9 a.C.), no qual o nascimento de Augusto mencionado como sendo boas novas: o anivers-rio do deus [Augusto] marca para o mundo o comeo das boas novas [].9As duas influncias descritas a judaica e a romana so interlocutoras do uso do termo no Novo Testamento. Paulo o autor neotestamentrio que mais utiliza a palavra evangelho. Das setenta e seis ocorrncias no Novo Testamento do voc-bulo, sessenta esto nas epstolas paulinas.10 Paulo geralmente utilizaapalavranosingular,contrariandoousocorrentena 8KMMEL, Werner G., Introduo ao Novo Testamento, p. 34.9TCITO, Annales, VI, XXII.10 Segundo James Dunn, h quatro ocorrncias da palavra em Mateus, oito em Marcos, duas em Atos, nove em Romanos, oito em I Corntios, oito em II Corntios, sete em Glatas, quatro em Efsios, nove em Filipenses, duasemColossenses,seisemI Tessalonicenses,duasemII Tessaloni-censes, uma em I Timteo, trs em II Timteo, uma em Filemon, uma em I Pedro e uma vez no Apocalipse. Quanto ao verbo !"#$, esse surge uma vez em Mateus, dez em Lucas, quinze em Atos, trs em Roma-nos, seis em I Corntios, duas em II Corntios, sete em Glatas, duas em Efsios, uma em I Tessalonicenses, duas em Hebreus, trs em I Pedro e duas no Apocalipse (nas epstolas paulinas, aparece vinte e uma vezes, de um total de cinquenta e quatro). Por sua vez, a palavra %&'(# aparece em Rm 16.25, I Co 1.21, 2.4, 15.14; II Tm 4.17; e Tt 1.3 (nas epstolas paulinas, surge seis vezes, de um total de oito). Ver: DUNN, James D. G., The Theology of Paul the Apostle, p. 164-165.14 | Revista ReflexusLXX. Evangelho um termo tcnico utilizado por Paulo para sereferirsuaprpriaproclamaoatravsearespeitode Jesus.11 Em Paulo, evangelho um termo que faz meno proclamao a respeito de Cristo e salvao trazida por ele (Rm 1.1ss; I Co 15.1ss etc.). Em Jesus, especialmente naquilo que pode ser atestado nos evangelhos, possvel observar que a ideia do Trito-Isaas retomada: a concepo de que o evan-gelho boa nova da salvao trazida por um pregoeiro em um tempo escatolgico. No caso, o portador de tal mensagem nos evangelhos o prprio Jesus (Mt 11.5).Logo, no Novo Testamento, o euanglion geralmente o termo utilizado para fazer meno palavra viva da prega-o, geralmente alusria pregao oral de ou sobre Jesus.12 E o termo evangelista usado para designar o pregador itine-rante (At 21.8; Ef 4.11; II Tm 4.5). Um nico texto faz refern-cia ao seu prprio escrito chamando-o de evangelho no Novo Testamento: Marcos (Mc 1.1), o que indica ser seu relato uma pregao salvfica.13 Em Marcos, o princpio do evangelho a proclamao do Batista (Mc 1.2-8), mas Jesus tambm assume essa tarefa (Mc 1.14-15). Os contextos missiolgicos em que o Batista e Jesus pregam o evangelho anunciam revelam que o termo foi extrado da linguagem missionria do cristianismo primitivo.14 Logo, ouvir a mensagem crist crer no evan-gelho (Mc 1.15). Ainda assim, no h ainda a ideia de que o gnero dos relatos escritos a respeito da vida e obra de Jesus seja evangelho.11STUHLMACHER, Das Evangelium und die Evangelien: Vortrge vom Tbinger Symposium 1982, p. 27.12Assim afirma FRIEDRICH, G., !"#, p. 718-734.13Assim afirma VIELHAUER, Philipp, Histria da literatura crist pri-mitiva, p. 284.14KERTELGE, Karl, A epifania de Jesus no evangelho de Marcos, p. 197. | 15 Brian Gordon Lutalo KibuukanaIgrejaAntigaqueoevangelhosetorna,emuma acepo geral, a boa nova escrita da salvao. nesse sentido que o termo aparece na Didaqu (Did 15.3) e em 2 Clemente (2Clem8.5),ambosdatadosporvoltadocomeodosculo II.Porm,outraconcepodesenvolvida,aqualassumir significativa importncia: a de que o evangelho um livro de origem apostlica logo, de testemunhas oculares.Justino,apologistacristodasegundametadedos-culoII,afirmouqueosevangelhossoasmemrias[ !"!#$%%]dosapstolos.15Essareferncia,mais do que uma designao origem dos evangelhos, uma indi-cao da natureza do texto: apomnemonemata so colees de anedotas mais ou menos artsticas, que formam um texto nico (no necessariamente uma mesma narrativa) a respeito de uma pessoa em particular.16 Papias, bispo de Hierpolis do incio do segundo sculo j havia caracterizado o Evangelho de Marcos como apomnemonemata de Pedro ou seja, uma histria de anedotas sobre as palavras e aes de Jesus, escri-tassobaformadeummaterialdidtico(&'&%)*+-'%'/,for-muladas para necessidades especficas (012 2 30#4%2/.17 Ou seja: ainda que se questione a tradio de Papias, certo queosevangelhoseramconsideradosescritospertencentes a um tipo especfico de literatura, cujos paralelos podem ser encontradosnaamplagamaderelatosbiogrficosda Anti-guidade tardia.15JUSTINO, Apologia, LXVII. Ver tambm a expresso !"#$%& '( $)* +(,-(&* .! /0$1( !,(2,(+3,/#&(4 5 +0/-%&/ 6/%+)$/&... [porm, os apstolos, nas memrias compostas por eles, que so chama-das evangelhos...]. idem, ibidem, LXVI, 3.16DARTON,StephenC.,TheCambridgeCompaniontotheGospels, p. 21-22.17 EUSBIO, Histria Eclesistica, III, 39.15.16 | Revista ReflexusAlm de caracterizar a natureza literria dos evangelhos, Justinooprimeiroautorcristoachamarosescritossobre Jesusdeevangelhos(!noplural,emoposio a!"#,nosingular).Eemp66eIrineu,18oslivrosque tratavamdeJesuspassaramaserchamadosde!"# $%&... [evangelho segundo...]. Esta tambm uma evidncia importante de que os livros passam a ser chamados pelo nome dosseusautores,antecedidosdaexpresso:Evangelhose-gundo que at hoje utilizada. No Cnon Muratori, o evange-lho de Lucas chamado de tertium evangelii librum secundo lucan [o terceiro livro do evangelho segundo Lucas].19 co-mum o aparecimento em verses latinas da palavra $%& sem traduo por exemplo, Cata Mateo [segundo Mateus].20O primeiro a chamar o autor de um evangelho de evange-lista foi Taciano, e por entender serem os evangelhos uma uni-dade,compsoDiatessaronemaproximadamente170d.C., sendo essa obra uma harmonia dos evangelhos que foi o pri-meiro escrito sobre a vida de Jesus em latim, siraco, armnio, georgiano e arbico.2118O p66, tambm conhecido como papiro Dodmer II, tem setenta e cinco fliosetrintaenovefragmentosnoidentificados,queapsoarran-jototalizamsetentaeoitofliose156pginas.Essepapirodenomi-na o Evangelho de Joo !"# $%' ()#*# [evangelho segundo Joo]; chama o Evangelho de Pedro de $%' +%,"# [o -evangelho/ se-gundoPedro];eoEvangelhode Tom0)12#!"#[Evangelho de Tom]. O cdice do incio do sculo II. Quanto a Irineu, esse tam-bm utiliza o $%& [segundo], que ser adotado a ponto de ser utilizado com frequncia nos cdices neotestamentrios. Ver: IRINEU, Adversus haeresis, III, 11, 70.19 GLOAG, Paton J., Introduction to the synoptic gospels, p. 168.20 JLICHER, Adolf, Einleitung in das Neue Testament, p. 273.21Segundo Petersen, O Diatessaron de Taciano muito importante para a o estudo do texto dos evangelhos e para a anlise da evoluo da sua tra-dio. Ver: PETERSEN, William L., The Diatessaron of Tatian, p. 77. | 17 Brian Gordon Lutalo KibuukaAtosculoIII,comumencontrarcitaesealuses aosvriosevangelhospelosautorescristos.Orgenesmen-ciona nos seus escritos o Evangelho de Tom, o Evangelho de Matias, o Evangelho de Baslides, o Evangelho dos Egpcios. Porm, a meno dos mesmos geralmente reprovativa, j que na segunda metade do sculo II j estava em desenvolvimento a concepo da existncia de quatro evangelhos cannicos nos crculoseclesisticos.Irineu,emAdversushaeresis,afirma queoevangelhotetrapartido.22 Amesmaindicaofeita por Clemente de Alexandria.23O evangelho, portanto, assumiu a acepo de gnero pr-prio para a comunicao dos atos e palavras alusivas a Jesus e de seu grupo. um texto pertencente a um gnero literrio, o que no pode ser ignorado em sua anlise. As narrativas escri-tas sobre Jesus surgiram em um perodo de desenvolvimento do estudo dos gneros literrios na Antiguidade, chamado ori-ginalmentepelosgregosdeou!,edesenvolvidona incipiente crtica literria promovida por autores latinos, prin-cipalmente Horcio (65-8 a.C.), autor da Ars Poetica.Horcio, pela sua proximidade histrica com o perodo da produo literria crist, um autor importante para a compre-ensodascaractersticasassumidaspelostextosdoprimeiro sculo. R. K. Hack afirma que so duas as aproximaes pos-sveis obra de Horcio, feitas pelos seus crticos modernos. A primeira explicao a de ser a Ars Poetica uma eisagoge, escrita com um esquema retrico definido. A segunda aproxi-maoentendeseraArsPoeticaumaepistula,feitaemtom conversacional. Ambasasleituraspartemdopressupostode que a forma de um escrito determina seu contedo e sua estru-22 IRINEU, Adversus haeresis, III, 1, 8-9.23 CLEMENTE, Stromata, I, 136.18 | Revista Reflexustura.24 Porm Hack, a partir da anlise do restante da obra de Horcio, percebe que ele est em busca da Forma Ideal ( ou!")enodasregrasfixas.EmsuasdezesseteEpodes, nove so satricas e oito so lricas. Alm disso, as suas Odes sooresultadodointer-relacionamentooucriaodenovos gneros literrios. Conclui-se, portanto, que as leis do gnero lrico estabelecidas por Horcio, o crtico, so definitivamente transgredidas por Horcio, o poeta.25Rossi, em sua anlise da crtica literria na Antiguidade, constata que as leis e teorias formuladas pelos gramticos e oradores no so rgidas. Os elementi da obra literria te-mas,estrutura,linguagem,metro,msicaedanadepen-diam fundamentalmente da relao entre o autor e a audin-cia, dos contextos sociais e da situao histrica, mais do que das leis que governavam os gneros literrios.26 Sendo assim, operodohelenstico,noqualocristianismoestinserido, temumaliteraturacaracterizadapelainovao,experimen-tao e mudana, de tal forma que os textos do ltimo sculo a.C.eoprimeirod.C.apresentamgrandeflexibilidadenos gneros literrios.27A abundncia de gneros e a tendncia experimentao explicam em parte o surgimento dos evangelhos. certo que esses escritos cristos tm um forte substrato veterotestament-rio, porm, tanto a literatura judaico-helenstica quanto a crist sofreu forte influncia da literatura helenstica, tanto no idio-ma adotado o grego quanto nas formas e gneros literrios. Sendo assim, para o estudo dos evangelhos, preciso recorrer 24 HACK, R. K., The Doctrine of Literary Forms, p. 1-65.25 Idem, p. 63-65.26ROSSI,L.E.,IGeneriLitterarieLeLoroLeggiScritteenonScritte Nelle Letterature Classiche, p. 69-94.27 Idem, p. 83. | 19 Brian Gordon Lutalo Kibuukaaos textos que se assemelham a eles: no caso, os encmios e as biografias greco-romanas.O encmio (do grego !", louvor, elogio, pane-grico) uma apresentao laudatria de uma pessoa, sendo semelhante biografia, ainda que no faa referncia totali-dadedavidadopersonagemnarrado.Oprimeiroafazerem prosatalapresentaoelogiosafoiIscrates(436-338a.C.), nas obras Niccles,28 Os Ciprianos29 e Evgoras.30 Ele afirma ser a sua tarefa #"$%&' #%)*+" $- ./0" 012)" [elo-giar a virtude do homem atravs das palavras].31 O modelo de IscratesfoiseguidoporXenofonteem Agesilau,obracom-postaem360a.C.edivididaemduaspartes:aprimeiradiz respeito histria desse rei de Esparta, e a segunda enumera suas virtudes.32A estrutura dos encmios foi desenvolvida no perodo he-lenstico, principalmente entre os oradores romanos. Segundo Ccero (106-43 a.C.), um encmio deve conter o nome, a ori-gem, o modo de vida, a fortuna, os hbitos, os sentimentos, os interesses, as propostas, as realizaes, os acidentes e uma fala sobre os seus feitos.33K. Berger afirma que, quando o encmio segue uma ordem cronolgica(narrativium),formadopelasseguintespartes: 28 uma exortao a Niccles, novo rei.29 Sobre deveres morais.30 Sobre a morte do pai de Niccles.31 ISCRATES, Evgoras, 8.32 Sem dvida, essa obra acolhe grande parte do material e segue a forma de Evgoras. um louvor ao rei de Esparta Agesilau, nascido em 444 a.C., um grande soldado que liderou a expedio grega na sia Menor contra a Prsia entre 396 e 394 a.C. Ver: EUCKEN, Christoph, Isokrates, p. 264-269.33 CCERO, De inventione, I, xxiv, 34.20 | Revista Reflexuspromio; indicao de origem (povo, ptria, cidade, famlia, an-cestrais,antepassados,formadenascimento,qualidadesnatu-rais);formaoeprofisso;eatos(!)sejamvirtudes, vcios ou mesmo atitudes habituais.34 As fontes mais abundantes dos encmios so as inscries e a literatura judaico-helenista, as quais apresentam um modelo simplificado contendo a sequncia natureza-origem-atos-fama.35 Essa estrutura que se assemelha mais ordem costumeira dos encmios neotestamentrios.36O Novo Testamento tambm apresenta os seguintes enc-mios: 1 Tm 3.16, escrito no passivum divinum e prximo aos encmiosmaisantigos(enumeraaorigem"#$%&'*"% +$-. [revelado na carne] e as aes); Cl 2.9-15, Hb 7.1-10, I Tm 2.5-6 e Tt 2.11-15, textos em que so citadas as principais obras dignas de louvor, primeiro as da graa, depois as de Jesus Cristo. Tambm h referncias ao gnero oposto ao encmio, a zombaria: Mc 15.29-32,36; Mt 27.40-44; Lc 23.35-37,39; Mc 15.18; Mt 27.49; Lc 22.64; Jo 11.37, 19.3; e Lc 4.23.Quanto relao entre os encmios e os evangelhos, essa se d em nvel estrutural, particularmente na utilizao da com-parao(+/0-+!)1 Talrecursocaractersticodaliteratura grega desde o sculo V e IV a.C., em particular, das compara-es entre gregos e brbaros, homens e mulheres, cidados e estrangeiros, livres e escravos etc.37 As narrativas da infncia 34 BERGER, Klaus, As formas literrias do Novo Testamento, p. 311.35 Na literatura judaica em lngua grega, h encmios em Sr 44-55 e I Mc 2.50-64.Quantosinscries,umexemplooEpitfiode Abramos, judeu, dignatrio de Leontpolis, cujo encmio convida todos reflexo 234%50$6786#7%5%39![observandoasepulturadeumgrandeho-mem]. Ver: VAN HENTEN, J. W.; VAN DER HORST, Pieter W., Studies in Early Jewish Epigraphy, p. 23.36 Fl 2.6-11; Hb 1.1-4; I Tm 3.16.37 CARTLEDGE, Paul, The Greeks, p. 232. | 21 Brian Gordon Lutalo Kibuukade Jesus, presentes em nos evangelhos de Mateus e Lucas, os relatos do Batista e aqueles introduzidos por citaes bblicas (porexemplo,Mc1.4-8;Lc4.17-19)tambmseaproximam nosdosencmiosdeIscrateseXenofonte,mastambm das Vitae Prophetarum e da literatura laudatria de Flon (Vita Mosis), ambos pertencentes ao judasmo.38As biografias greco-romanas, por sua vez, tambm apre-sentamgrandeflexibilidadeevariabilidadenoperodocom-preendido entre o sculo I a.C. e I d.C. a biografia que con-serva relaes mais prximas com o gnero evangelho. Essas biografias,desdeasuaorigem,foramchamadasdeVidas (em grego, ; em latim, vitae). Essa referncia feita cons-tantementeaomanuscritoqueapresentaessascaractersticas literrias (!" #"$%&$')*,39 ao escritor que se dedica a esse tipo de literatura40 e para fazer referncia prpria produo textual.41Um paradigma para a anlise da biografia grego-romana da poca da redao dos evangelhos a obra do Plutarco (45-125? d.C.), autor grego de quem pelo menos cinquenta Vidas foram preservadas e so conhecidas hoje. A introduo da obra Alexandre de Plutarco oferece uma distino entre os escritos que mencionam grandes eventos (+-.&$* e aqueles que di-zem respeito ao carter de um homem (*/ Esse ltimo diz 38 SHULER, A., A Genre for the Gospels, p. 75.39 o caso de Satyrus Historicus, em sua Vita Euripidis.40Eunapius,porexemplo,afirmaqueLuciano 0123"$45'6-7'8 " #"9%&:'1 [escreveu a vida do filsofo Demnax]/ Ver< EUNAPIUS, Vitae sophistarum, 454.41 Por exemplo, Plutarco assim define o seu prprio trabalho< %&:'29" 85 [escrevemos as vidas] (Alexandre, =/>*; sua obra serve .? @9&B .C585#"$%&$')[paradescrioarespeitodasvidas](Pricles, 2.4).22 | Revista Reflexusrespeito s muitas vezes (! e no sempre, "#$!) queagrandezadocarterdoprotagonistada%&!serevela, especialmente nas pequenas coisas ('*+-. %'./0)142 Sendo assim, distintamente das 23#'&., as %& no requerem rigidez formal, sendo caracterizadas como parte de um gnero muito flexvel,eseuinteressenopano-de-fundohistricoapenas uma das variveis consideradas.43A partir do exemplo de Plutarco, possvel concluir que as biografias se concentravam nos detalhes do carter do seu protagonista, contendo uma narrativa histrica apenas abrevia-da, tendo carter moral e protrptico e grande diversidade de padres literrios.44SegundoK.Berger,oselementosquefazempartedas biografias helensticas eram: o genetlaco, as histria de infn-cia polticas, as progymnsmata, as narrativas sobre prodgios pessoais, a descrio da extraordinria e precoce sabedoria do protagonista,aultimaverbaeasncrise.45Esseselementos, porm, no so programticos, apresentando grande variao nas antigas biografias da Antiguidade.46 Dessa forma, a biogra-fia como gnero literrio multiforme e amplo se assemelha aos evangelhos, compartilhando formas e caractersticas comuns, porm a biografia e o evangelho no so gneros idnticos.42 Ver o relato em BURRIDGE, Richard A.; STANTON, Graham, What are the Gospels?, p. 63.43 PELLING, C. B. R., Plutarch and Roman Politics, p. 159.44 Idem, Plutarchs Adaptation of his Source Material, p. 135, 139.45 BERGER, Klaus, As formas literrias do Novo Testamento, p. 314-315.46 Para ver a relao entre os Evangelhos e as biografias da Antiguidade, ver: SCHMIDT, Karl L., Die Stellung der Evangelien in der allgemeinen Literaturgeschichte;DIHLE,A.,DieEvangelienunddiegrieschiche Biographie; e BERGER, Klaus, As formas literrias do Novo Testamen-to, p. 312-322. | 23 Brian Gordon Lutalo KibuukaOgenetlacoumaprofeciasobreumacriana,cujas origensremontamprincipalmenteliteraturajudaica(Hen 106.13,19). No Novo Testamento, Lc 1.1,13b, 2.11,34-35,38 e Mt 1.20-21 so verses crists dessa forma literria.As histrias da infncia de carter poltico so aquelas que dizem respeito aos atos executados por autoridades em favor ou contra o heri enquanto ele um infante. Relatos gregos e judaicostestemunhameventosdessanatureza:Suetnio,em Augusto 84; e os midrashim judaicos sobre Abrao. No evan-gelho de Mateus h um relato semelhante (Mt 2.16-18).A eugenea, tanto da cidade quanto da ptria, indica a ori-gem nobre do heri. Eugenia ou ascendncia nobre a atri-buio de valor elevado ancestralidade. A cidade e a ptria somencionadosparaqueseidentifiqueopertencimentodo protagonista a um grupo social, o que geralmente implica na possibilidadedoexerccioporestedacidadaniaemcritrios bem considerados e elevados. Vrios autores relatam a impor-tncia desses valores: Aphtonius, Progymnsmata 8-9; Ccero, Deinventione,2(59)177f;Quintiliano,Institutiooratoria, 3.7.1-18; Hermgenes, Progymnsmata 7; e Theon, Progym-nsmata 8. No Novo Testamento, trs relatos de Mateus (2.4-6,13-15,19-23), alm do incio desse evangelho (Mt 1.18-25) e o evangelho de Lucas (2.1-5) indicam a ascendncia nobiliar (tribo de Davi) e a judaicidade de Jesus.Quantosnarrativasarespeitodosprodgiospessoais, taissoalusriasaosacontecimentosquerevelamagrande-za do heri. Esses relatos fazem referncia ocultao dessas virtudes, com a posterior revelao da verdade. Tais fatos es-peciais so relatados em Lc 1.44, 2.25-38; Mt 2.1-12, 21.15-16,27.51b-53; Mc 14.3-8 e paralelos.Osrelatosdasabedoriadoprotagonistadodestaque precocidadedessahabilidade.Xenofonte,naCyropaedia, 1.2,8,relataaprecocidadeehabilidadesingulardeCiro,rei 24 | Revista Reflexusdospersas,apontodele,aosdozeanos,serrpidocomoos adultos.DigenesLarcio,aocitar AristondeKosemseu relato sobre Epicuro (X, 14) afirma que esse comeou a filo-sofar aos doze anos de idade. Na literatura judaica, Josefo afir-ma que Samuel comeou a profetizar com doze anos de idade (Antiquitates Judaicae, 5.348). No evangelho de Lucas, Jesus tambm um prodgio tendo apenas doze anos (Lc 2.41-52).A ultima verba o conjunto das palavras finais do heri. Na literatura greco-romana, corresponde s palavras de Hrcu-les no relato de Sneca (Hercules Oetaeus, v. 1472s). Os evan-gelhosapresentamparalelosimportantescomaultimaverba em Mc 15.3334; Mt 27.46; Lc 23.46 e Jo 19.30.possvelaindaconsiderarassemelhanasentreosre-latos de sofrimento e morte da Antiguidade tardia e os relatos dosevangelhos.SegundoM.Hengel,aPassionsgeschichte presente em Marcos e Mateus tem semelhanas com as obras Cato Minor e Eumenes de Plutarco. Segundo Hengel, embo-rahajadiferenassignificativas,assemelhanasconfiguram inmerosparalelos,principalmentenabelaeencantadora histriaPaixo,nacronologiainsuficiente,nafaltadeuma descrio psicolgica mais profunda e no desenvolvimento a partir de Palavras e Aes, entre outros.4747 HENGEL, Martin, Probleme des Markusevangelium, p. 433. | 25REFERNCIASBERGER,Klaus.AsformasliterriasdoNovoTestamento. So Paulo: Loyola, 1998.BURRINGTON, Richard A.; STANTON, Graham. What Are the Gospels?: A Comparison with Greek-Roman Biography. Grand Rapids: Eerdmans, 2004.CARTLEDGE, Paul. The Greeks: A portrait of self and others. Oxford: Oxford, 1993.DUNN, James D. G. 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