eugel herrigen - a arte cavalheiresca do arqueiro zen[1]

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A ARTE CAVALHEIRESCA DO ARQUEIRO ZEN

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EUGEN HERRIGEL

A ARTE CAVALHEIRESCA DO ARQUEIRO ZENPrefcio do Prof. D. T. Suzuki Traduo, prefcio e notas de J. C. Ismael

EDITORA PENSAMENTO So Paulo

Ttulo do original: Zen in der Kunst des Bogenschiessens

Otto Wilhelm Barth Verlag, 1975

PREFCIO

S encontrar a sua vida aquele que a perdeu (Provrbio Zen)

MEdio __________ O primeiro nmero esquerda indica a edio, ou 19 20 21 22 23 o ano em que esta edio, ou reedio, foi publicada. reedio, desta obra, A primeira dezena direita indica

Direitos de traduo para a lngua portuguesa adquiridos com exclusividade pela EDITORA PENSAMENTO-CULTRIX LTDA. Rua Dr. Mrio Vicente, 368 - 04270-000 - So Paulo, SP Fone: 272-1399 - Fax: 272-4770 E-mail: [email protected] http://www.pensamento-cultrix.com.br que se reserva a propriedade literria desta traduo. Impresso em nossas oficinas grficas.

estre, discpulo, arco, flecha, alvo: essas so as personagens que esperam pelo leitor nas pginas que se seguem. Mas tal encontro exigir, por parte do leitor, algumas abdicaes. A lgica do pensamento ocidental deve ser posta de lado. A estrutura do cartesianismo, reduzida a cinzas. A relao causa-efeito, desprezada. A separao sujeito-objeto, ignorada. O tdio, ridicularizado. Mas a paixo pela vida, enaltecida. A cerimnia desse encontro presidida pelo prncipe Sidarta, que perdeu a sua vida para despertar como Buda, o Amida, o smbolo da compaixo, aquele que nos mostrou o caminho do meio como o nico capaz de vencer os sofrimentos que marcam a banalidade do cotidiano. Este livro trata do Zen como os mestres gostam de abord-lo: uma experincia direta, imediata, no-filtrada pelo intelecto. O autor, ocidental tpico, cai na tentao 5

de questionar, de pr em evidncia sua perplexidade diante das lies do mestre. Muitos anos se passam at que ele perca a sua vida e descubra o que o Zen: transcendncia do intelecto, desprezo pelas palavras, silncio, gestos iluminantes e iluminados, comunho com o cosmo. Eugen Herrigel nasceu em Lichtenau, Alemanha, a 20 de maro de 1885. Desde jovem se sente atrado pelo misticismo oriental, embora se dedique com afinco filosofia do Ocidente e ao neo-kantismo em especial. Confuso, procura de pistas que levem ao ponto de encontro de todas as religies e filosofias, termina o doutorado em filosofia na Universidade de Heidelberg. Ento, com trinta e nove anos de idade, viaja com a mulher para o Japo, onde passa quase seis anos ensinando na Universidade de Tohoku. Durante esse perodo dedica-se com afinco ao aprendizado de uma das artes mais inteis que existem: a do arqueiro, tal como praticada pelos mestres Zen-budistas. J estudara o Zen nos livros. Chegara a hora de conhec-lo atravs da vivncia concreta. A oportunidade imperdvel. Herrigel vive os anos mais difceis e mais belos da sua vida. Ao regressar do Japo, contratado pela Universidade de Erlangen, onde leciona durante muitos anos. Havia publicado dois livros: Urstoff und Urform (1926) e Die metaphysiche Form (1929), e editado as obras completas do filsofo alemo Emil Lask (1923-24). Este livro s surgiria em 1948, quase vinte anos depois de Herrigel ter voltado do Japo. Antes de morrer, em 18 de abril de 1955, ele ainda escreve Der Zen-Weg, na 6

esteira das publicaes semelhantes no Ocidente, com a finalidade de divulgar o Zen de maneira mais simples possvel. A aventura espiritual de Herrigel, vivida na instigante atmosfera das aulas do mestre Kenzo Awa, merece ser compartilhada. uma peregrinao que nos arrebata desde as primeiras pginas deste livro. Uma dura, spera e longa viagem que comea nas trevas do exterior e termina na ofuscante luminosidade interior e que nos lembra a clebre declarao Zen: "Antes que eu penetrasse no Zen, as montanhas e os rios nada mais eram seno montanhas e rios. Quando aderi ao Zen, as montanhas no eram mais montanhas, nem os rios eram rios. Mas, quando compreendi o Zen, as montanhas eram s montanhas e os rios, apenas rios." Quando o arqueiro Zen dispara a flecha, ele atinge a si prprio. Nesse momento mgico, ele se ilumina. Mesmo sem jamais ter empunhado um arco, a dimenso metafrica deste livro no passar despercebida pelo leitor atento, obrigando-o, certamente, a refletir sobre o enredo da sua vida. No essa a misso dos bons livros? J. C. I. So Paulo, outono de 1983

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INTRODUO Por Diasetz T. Suzuki

O

que nos surpreende na prtica do tiro com arco1 e na de outras artes que se cultivam no Japo (e provavelmente tambm em outros pases do Extremo Oriente) que no tem como objetivo nem resultados prticos, nem o aprimoramento do prazer esttico, mas exercitar a conscincia, com a finalidade de faz-la atingir a realidade ltima2. A meta do arqueiro no apenas atingir o alvo; a espada no empunhada para derrotar

1. Em que pese a spera e dura sonoridade dessa expresso, no me ocorre nenhuma outra equivalente originai alem Bogenschiessen, nem francesa tir l'arc ou a castelhana tiro con arco, uma vez que a lngua portuguesa no conhece outra que possa substitu-la.(N. do T.) 2. Ou seja, o nirvana, um estado de iluminao suprema, para alm da concepo do intelecto. (N. do T.)

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o adversrio; o danarino no dana unicamente com a finalidade de executar movimentos harmoniosos. O que eles pretendem, antes de tudo, harmonizar o consciente com o inconsciente. Para ser um autntico arqueiro, o domnio tcnico insuficiente. necessrio transcend-lo, de tal maneira que ele se converta numa arte sem arte, emanada do inconsciente. No tiro com arco, arqueiro e alvo deixam de ser entidades opostas, mas uma nica e mesma realidade. O arqueiro no est consciente do seu "eu", como algum que esteja empenhado unicamente em acertar o alvo. Mas esse estado de no-conscincia s possvel alcanar se o arqueiro estiver desprendido de si prprio, sem, contudo, desprezar a habilidade e o preparo tcnico. Dessa maneira, o arqueiro consegue um resultado em tudo diferente do que obtm o esportista, e que no pode ser alcanado simplesmente com o estudo metdico e exaustivo. Esse resultado, que pertence a uma ordem to diferente da meramente esportista, se chama satri, cujo significado aproximado "intuio", mas que nada tem a ver com o que vulgarmente assim se denomina. Prefiro, por isso, cham-lo de intuio prjnica. Podemos traduzir prajn como sabedoria transcendental, embora essa expresso tampouco reflita os mltiplos e ricos matizes contidos nessa palavra, porquanto se trata de uma intuio especial, que capta simultaneamente a totalidade e a individualidade de todas as coisas. Essa intuio reconhece, sem nenhuma 10

espcie de meditao, que o zero o infinito e que o infinito o zero. E isso no constitui uma indicao simblica ou matemtica, mas uma experincia direta-mente apreensvel, resultante de uma experincia direta. Psicologicamente falando, o satri consiste numa transcendncia dos limites do ego. Do ponto de vista lgico, a percepo da sntese da afirmao e da negao. Metafisicamente, a apreenso intuitiva de que ser vir a ser e vir a ser ser. A diferena mais marcante entre o Zen e as demais doutrinas de ndole religiosa, filosfica e mstica que, sem jamais sair da nossa vida cotidiana, com tudo o que ela tem de concreto e prtico, o Zen tem qualquer coisa que o mantm acima e alm da banalidade do cotidiano. Aqui chegamos ao ponto de contacto entre o Zen, o tiro com arco e as demais artes, como esgrima, o arranjo de flores, a cerimnia do ch, a dana, a pintura etc. O Zen a "conscincia cotidiana", de acordo com a expresso de Baso Matsu (morto em 788). Essa "conscincia cotidiana" no outra coisa seno "dormir quando se tem sono e comer quando se tem fome". Quando refletimos, deliberamos, conceptualizamos, o inconsciente primrio se perde e surge o pensamento. J no comemos quando comemos, nem dormimos quando dormimos. Dispara-se a flecha, mas ela no se dirige diretamente ao alvo e este no est onde devia estar.

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O clculo verdadeiro se confunde com o falso. A confuso Introduzida no esprito do arqueiro se traduz em todos os sentidos e em todos os domnios. O homem definido como um ser pensante, mas suas grandes obras se realizam quando no pensa e no calcula. Devemos reconquistar a ingenuidade infantil, atravs de muitos anos de exerccio na arte de nos esquecermos de ns prprios. Nesse estgio, o homem pensa sem pensar. Ele pensa como a chuva que cai do cu, como as ondas que se alteiam sobre os oceanos, como as estrelas que iluminam o cu noturno, como a verde folhagem que brota na paz do frescor primaveril. Na verdade, ele as ondas, o oceano, as estrelas, as folhas. Uma vez que o homem alcance esse estado de evoluo espiritual, ele se torna um artista Zen da vida. Ele no precisa, como o pintor, de telas, pincis e tintas; nem como o arqueiro, do arco, da flecha, do alvo e dos demais acessrios. Ele tem seus membros, seu corpo, sua cabea e os rgos que constituem seu corpo. Sua vida, no Zen, se expressa por meio de todos esses instrumentos importantes, como manifestaes suas. Suas mos e os seus ps so os pincis. O universo a tela sobre a qual ele pinta sua vida durante setenta, oitenta, noventa anos. Esse quadro se chama a histria. Hoyen de Gosozan (morto em 1104) disse: "Eis um homem que converte o vazio do espao numa folha de papel, as ondas do mar em tinta e o Monte Sumeru 12

em pincel para escrever estas cinco slabas: so-shi-sai-rai-i3. "Diante dele eu estendo meu zagu e me inclino profundamente4." Poder-se-ia perguntar o que significa essa maneira fantstica de escrever. Por que digno da mais alta venerao algum capaz disso? Um mestre do Zen talvez respondesse: "Como quando tenho fome; durmo quando estou com sono." Se seu esprito estiver voltado para a natureza, ele tambm poderia dizer: "Ontem fazia um belo dia e hoje chove." Mas para o leitor, a pergunta ainda subsiste: "Onde est o arqueiro?" Neste maravilhoso livro, o professor Herrigel, filsofo alemo que viveu durante muitos anos no Japo e se dedicou ao tiro com arco para poder compreender o Zen, nos transmite sua experincia de uma maneira luminosa. Graas limpidez do seu estilo, o leitor do Ocidente no ter dificuldade em penetrar na essncia dessa experincia oriental, at agora to pouco acessvel. Ipswich, Massachusetts, maio de 1953

3. Esses cinco caracteres chineses significam literalmente: "A razo pela qual o primeiro patriarca veio do Ocidente", isto , a ndia. Esse tema fre-qentemente objeto de um mondo. (Ver D. T. Suzuki, "Essais sur le Bouddhis-me Zen", vol. 1, pg. 302 e seg.) O mondo trata da essncia do Zen: uma vez compreendido, incorporamo-nos a ele instantaneamente. (N.doT.: O mondo t um exerccio de perguntas e respostas rpidas para "quebrar" as fronteiras do pensamento conceptual.) 4. O zagu um dos acessrios que o monge Zen carrega consigo. O monge o estende sua frente enquanto se prostra diante do mestre ou do Buda.

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Estabelecer, primeira vista, um paralelo entre o tiro com arco (seja qual for o conceito que dele se tenha) e o Zen parece ser uma intolervel depreciao deste ltimo. Embora, com generosa complacncia, aceitemos para o tiro com arco a qualificao de arte, dificilmente algum ir nela buscar outra coisa alm da prtica de um esporte. Se assim pensar o leitor, esperar encontrar neste livro um relato sobre faanhas assombrosas dos arqueiros japoneses, que gozam do privilgio de contar com uma tradio venervel e ininterrupta do manejo do arco e da flecha. Apenas h algumas geraes, o Extremo Oriente trocou os antigos meios de combate por armamentos modernos, mas esse fato no impediu que eles continuassem presentes na vida daqueles pases. Pelo contrrio, so cada vez mais amplos os adeptos dedicados a tais prticas. No se poder, ento, esperar uma descrio do modo peculiar da prtica do tiro com arco, tal como ele praticado e consagrado no Japo como esporte nacional? No,

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porque esta suposio est distante da realidade. O tiro com arco, no sentido tradicional, isto , respeitado como arte e honrado como preciosa herana cultural, no considerado pelos japoneses como simples esporte que se aperfeioa com um treinamento progressivo, mas como um poder espiritual oriundo de exerccios nos quais o espiritual se harmoniza com o alvo. No fundo, o atirador aponta para si mesmo e talvez em si mesmo consiga acertar. Para muitos leitores, essa abordagem pode parecer enigmtica. Como possvel que o tiro com arco, praticado no passado como lutas mortais e sem se ter mantido sequer como esporte nacional, tenha se transformado num sutil exerccio espiritual? Para que servem, ento, o arco, a flecha, o alvo? No se estar renegando a antiga, viril e honesta arte do tiro com arco, ao transform-la em algo nebuloso e impreciso, quase fantstico? preciso lembrar que, depois de perdida toda a utilidade nos combates e competies, o esprito dessa arte se manifestou de maneira ntida e espontnea. Assim, um erro afirmar-se que esse esprito tenha surgido recentemente, uma vez que sempre foi inerente ao tiro com arco, desde os seus primrdios. Mas sua tcnica (depois de ter perdido qualquer importncia para o combate) no se converteu num passatempo ameno, sem sem-teto e seriedade. A Doutrina Magna do tiro com arco nos diz outra coisa. Segundo ela, desde os seus primrdios, trata-se de uma questo de vida e morte, na medida em que uma luta do arqueiro consigo mesmo. Essa forma de 16

luta no uma medocre contra faco, mas sim o que inspira e sustenta toda a luta contra o mundo exterior e, talvez, contra um adversrio de carne e osso. A natureza misteriosa dessa arte se revela unicamente neste combate do arqueiro contra ele mesmo, e por isso seu ensinamento nada tem de essencial, se prescindir da aplicao prtica daquilo que em seu tempo exigiam as lutas cavalheirescas. Quem se dedicar, nos dias de hoje, a esta arte, tem a vantagem de no sucumbir tentao de ofuscar ou simplesmente impedir com a proposio de fins utilitrios a compreenso da Doutrina Magna, por mais que oculte de si mesmo esses fins. Porque, e nisso esto de acordo os mestres arqueiros de todos os tempos, a verdadeira compreenso dessa arte s possvel queles que dela se aproximam com o corao puro, despido de qualquer preocupao. Se se perguntar, desse ponto de vista, aos mestres arqueiros japoneses sobre esse enfrenta-mento do arqueiro consigo mesmo, sua resposta soar mais do que misteriosa. Porque para eles o combate consiste no fato de que o arqueiro se mira e no entanto no se atinge, e que por vezes ele pode se atingir sem ser atingido, de maneira que ser simultaneamente o que mira e o que mirado, o que acerta e o que acertado. Ou, para nos utilizarmos de uma expresso cara aos mestres, preciso que o arqueiro, apesar de toda a ao, se converta num ser imvel para, ento, se dar o ltimo e excelso fato: a arte deixa de ser arte, o tiro deixa de ser tiro, pois ser um tiro sem arco e sem flecha; o mestre 17

volta a ser discpulo; o iniciado, principiante; o fim, comeo, e o comeo, consumao. Para os ocidentais, habituados a conceitos mais claros, tais formulaes familiares aos habitantes do Extremo Oriente so de difcil apreenso, levando quase sempre perplexidade. por essa razo que convm irmos buscar sua origem longnqua. No nenhum segredo o fato de que no Japo as artes tm no budismo a sua raiz comum. Essa constatao vlida tanto para a arte dos arqueiros, como para a pintura, para a arte dramtica, da esgrima, da cerimnia do ch e dos arranjos florais. Isso significa, em primeiro lugar, que todas essas artes pressupem e, segundo sua ndole, cultivam conscientemente uma atitude espiritual que em sua forma mais elevada caracterstica do budismo, e determinam as caractersticas essenciais que devem ter os sacerdotes que as difundem. importante lembrarmos que ao, falar em budismo, no temos em mente o budismo meramente especulativo (que, por ter sido divulgado em livros e artigos acessveis, o nico que o Ocidente conhece), mas o budismo dhyana5, chamado de Zen no Japo. Mesmo naqueles que supem conhec-lo baseados em experincias marcantes e poderosas, os rgos habituais da compreenso no conseguem

capt-lo, pois ele no uma simples especulao, mas experincia nica que o intelecto no pode conceber. Em resumo: s o conhece quem o ignora. Com o objetivo de vivenciar essas experincias, o budismo Zen segue por caminhos que, atravs de um recolhimento metdico e sistemtico, conduzem o homem a perceber, no mais profundo da sua alma, o inefvel que carece de fundo e de forma. Em relao ao tiro com arco, isso significa (expresso de maneira bastante aproximada e talvez por isso passvel de uma interpretao errnea) que os exerccios espirituais suscetveis de constituir uma arte da tcnica esportiva sejam exerccios mestios. O tiro com arco no persegue um resultado exterior, com o uso do arco e da flecha, mas uma experincia interior, muito mais rica. Arco e flecha so, por assim dizer, nada mais do que pretextos para vivenciar algo que tambm poderia ocorrer sem eles; pois so apenas auxiliares para o arqueiro dar o salto ltimo e decisivo6. Assim, nada melhor nos ocorre do que recorrer a exposies dos adeptos do Zen com o objetivo de nos aprofundarmos na compreenso desse assunto. Assim, por exemplo, D. T. Suzuki, em seus

5. Dhyana um termo tcnico da ioga, que conota a concentrao do esprito sobre um objeto nico e no , rigorosamente, o mesmo que Zen, embora ambos derivem da palavra chinesa Ch'an-na. O autor tem razo, apenas do ponto de vista etimolgico, em identific-los. (N. do T.)

6. Essa expresso, que pode parecer obscura para muitos leitores, a vivncia do satri, que , no fundo, a meta nica do Zen-budismo, essencial para atingir o nirvana. (N. do T.)

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Essays on Zen-Buddhism7, demonstrou que a cultura japonesa e o Zen esto intimamente ligados, de maneira que as artes japonesas, a atitude espiritual do samurai, o estilo de vida nipnico e at certo ponto sua moral, sua esttica e sua postura intelectual esto fortemente impregnadas dos fundamentos do Zen. Por isso, so quase incompreensveis para quem no esteja familiarizado com ele. Os livros de Suzuki, bem como os de outros estudiosos do assunto, tm despertado um interesse significativo. Todos concordam que o budismo dhyana nascido na ndia, e que depois de muitas transformaes atingiu sua maturidade na China foi adotado e cultivado pelo Japo, que dele fez uma tradio viva que subsiste at hoje. com essa maneira Zen de viver que ns iremos nos familiarizar. Porm, em que pesem os esforos empreendidos pelos divulgadores do Zen, inegvel que continua sendo muito pouco o que ns, ocidentais, temos conseguido apreender da sua essncia. Como se se opusesse a toda penetrao, nossas tentativas de explor-lo mediante a intuio e a empatia logo se deparam com obstculos intransponveis. Envolto em trevas espessas, o Zen se nos apresenta como o enigma mais estranho proposto pela vida espiritual

asitica: insolvel e, no obstante, irresistivelmente atraente. A origem dessa penosa impresso de inacessibilidade iremos encontrar na maneira como se tem apresentado o Zen aos no-asiticos. Nenhuma pessoa razovel ir exigir do budista zen, que vive na verdade inconcebvel e inexprimvel, que ele tente apresentar sequer um esboo das experincias que o libertaram e transformaram. Isso porque o Zen est aparentado com o mais puro e contemplativo misticismo. Quem jamais teve experincias mestias, est e ficar excludo. Essa lei, que rege todo mesmices genuno, no admite excees, e o fato de que se dispe de um nmero muito grande de textos sagrados no entra em contradio com ela, j que estes tm a peculiaridade de revelar seu sentido vivificante unicamente a quem j vivenciou todas as experincias decisivas, de maneira que seja capaz de extrair daqueles textos a confirmao daquilo que, independentemente deles, experimentou. Por outro lado, para o nefito, aqueles textos nada significam, pois ele incapaz de ler nas entrelinhas, o que lhe causar grande confuso, mesmo que deles se aproxime com a maior delicadeza e com o esquecimento de si mesmo. O Zen, como toda mstica, acessvel apenas ao verdadeiro mstico, ou seja, a algum que no est exposto tentao de obter, de maneira sub-reptcia, o que a prpria experincia mstica nega. Outrossim, a existncia de algum que foi purificado pelo "fogo da verdade" suficientemente convincente 21

7. Publicados em Londres, em trs volumes (1927, 1933, 1934). Existe no mercado uma excelente traduo francesa feita por Jean Herbert para as ditions Albin Michel. (N. do T.)

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para que se possa fazer pouco caso dela. Assim, no exige muito quem, cedendo a impulsos de uma grande afinidade espiritual, e em busca do poder que produz resultados to poderosos (no falamos aqui do mero curioso, bvio), espera que o zen-budista descreva, pelo menos, o caminho que o conduziu sua meta. Nenhum mstico, nenhum zen-budista ser mais o mesmo depois que houver dado o primeiro passo e atingir sua autoperfeio. Quantas coisas ter de vencer e deixar para trs at que, por fim, encontre a verdade... Quantas vezes ser acometido, durante sua caminhada, da sensao de estar aspirando o impossvel... E, no obstante, chegar o dia em que o impossvel se transformara no possvel e, mais ainda, no natural. Ento, no ser lcito esperarmos uma descrio minuciosa de to longa e cansativa jornada que nos permita, pelo menos, perguntar se nos atreveremos a percorr-la? Porm, tais descries faltam quase que por compl na literatura Zen. Isso se deve, por um lado, ao fato de que o adepto do Zen se recusa sistematicamente a oferecer uma espcie de Manual para alcanar a bem-aventurana, pois sabe pela prpria experincia que ningum capaz de percorrer o caminho do Zen e nem chegar ao seu final sem a ajuda de um mestre. Sabe tambm como decisivo que suas vivncias, vitrias e transformaes, embora suas, sejam vencidas e modificadas muitas e muitas vezes, at que tudo o que seja seu tenha sido aniquilado. somente a esse preo que ele pode encontrar a base da experincia que, sintetizada na verdade 22

universal, o desperta para uma vida que no mais ser sua vida pessoal, cotidiana. Transmudado a esse estado, ele vive sem que seja ele que esteja vivendo. Compreende-se, assim, por que o adepto do Zen evita falar de si mesmo e da sua evoluo. No porque o considere uma tagarelice imodesta, mas porque v nisso uma traio ao esprito do Zen. A simples deciso de dizer qualquer coisa a respeito do Zen exige um srio exame de conscincia, pois tem diante de si o clebre exemplo de um dos maiores mestres que, interrogado sobre a natureza do Zen, permaneceu em silncio, imutvel como se nada tivesse ouvido. Assim, concebvel que o adepto verdadeiro sucumba tentao de prestar contas sobre o que deu de si e sobre o que no lhe faz falta. Diante disso, seria irresponsvel de minha parte oferecer frmulas complicadas e paradoxais, expostas em palavras de efeito. Meu desejo , ao contrrio, fazer reluzir a essncia do Zen atravs do modo como se manifesta numa das artes por ele eleita. Esse reluzir no , porm, a iluminao, na acepo de um termo to fundamental para o Zen, mas insinua, pelo menos, a presena de algo, como o sbito claro de um relmpago longnquo que vemos atravs da neblina espessa8. Apreendida

8. Existem muitas verses da iluminao do Buda Gautama. A mais aceita que ele permaneceu sentado durante sete dias debaixo de uma rvore, at atingir o estado bodhi ou iluminao suprema: j no era mais o prncipe Sidarta, mas o Buda. (N. do T.)

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deste modo, a arte do tiro com arco representa, por assim dizer, um curso preparatrio ao Zen, pois graas a ela possvel que um acontecimento primeira vista incompreensvel se torne transparente, o que por si mesmo antes era impossvel. Do ponto de vista factual, partindo de cada uma das artes mencionadas anteriormente, possvel iniciar-se uma caminhada com destino ao Zen. Contudo, parece-me que posso alcanar minha meta de maneira mais eficiente se descrever a trajetria percorrida por um discpulo da arte dos arqueiros. Durante quase seis anos de permanncia no Japo, fui instrudo por um dos mais eminentes mestres daquela arte. Tratarei, aqui, de expor os acontecimentos ocorridos durante to longo aprendizado de maneira mais clara possvel, pois estarei falando da minha experincia pessoal. Mas para ser compreendido, ainda que de maneira aproximada porque mesmo a instruo preliminar oferece muitos enigmas , nada mais posso fazer alm de relatar com detalhes todos os obstculos que tive que vencer e todas as inibies que fui obrigado a superar, antes de conseguir penetrar no esprito da Doutrina Magna. Falo de mim mesmo porque no vejo outra possibilidade de atingir a minha meta. Pela mesma razo, limitar-me-ei a descrever o essencial, para que ele se destaque com maior nitidez. E abster-me-ei deliberadamente de descrever o ambiente onde se realizou meu aprendizado e de evocar cenas fixadas na minha memria e, sobretudo,

de esboar a figura do meu mestre, em que pese o fascnio que ele ainda exerce em mim. Limitar-me-ei a descrever a arte do tiro com arco, tarefa muitas vezes mais difcil do que sua prpria aprendizagem. E levarei minha exposio at o ponto em que se vislumbram os remotos horizontes por trs dos quais o Zen respira.

C

abe-me explicar por que me dediquei ao estudo do Zen e por que, a fim de me facilitar seu estudo, me propus a aprender a arte dos arqueiros. J nos meus tempos de universitrio, como que animado por um misterioso impulso, ocupava-me com o estudo do misticismo, no obstante viver numa poca que demonstrava pouco interesse por tais inquietaes. Mas apesar de todos os meus esforos, sempre tive conscincia de que no poderia apreender os ensinamentos msticos de um ponto de vista externo. Eu era capaz, verdade, de compreender o que se pode chamar de fenmeno mstico primrio, mas no me era possvel transpor o crculo que, como uma alta muralha, cerca o misterioso. 25

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Na abundante literatura sobre o misticismo, no encontrei o que buscava, e assim, desiludido e desanimado, cheguei concluso de que s quem verdadeira-mente se isola capaz de aprender o que significa isolamento, e s quem leva uma vida contemplativa est completamente livre e desprendido de si para a unio com o "Deus supradivino". Eu compreendera que no havia outro caminho que conduzisse ao misticismo, a no ser o da prpria vivncia e o do sofrimento. Se faltam essas premissas, fica apenas o inconseqente palavrrio. Como se chega a ser mstico? Como se alcana o estado do verdadeiro isolamento? Separado dos grandes mestres pelo abismo dos sculos, o homem medi-lo, cujas condies de vida so to peculiares, poder encontrar um caminho de acesso? Minhas perguntas permaneciam sem respostas satisfatrias, embora eu soubesse da existncia de etapas e de estaes de um caminho que prometia conduzir-me ao meu objetivo final. Mas para percorr-lo faltavam instrues metodolgicas precisas que pudessem, pelo menos durante algum tempo, substituir o mestre. Porm, mesmo supondo que tais instrues existissem, seriam elas suficientes? Ser que elas s poderiam criar em ns a pre-disposio de receber aquilo que nem a melhor metodologia pode oferecer, de modo que nenhuma preparao dada pelo homem capaz de impor fora a vivencia mstica? Diante de mim, as portas permaneciam fechadas, mas eu no poderia deixar de for-las. E, quando o desejo que eu teimava em manter ia desapare26

cendo, eu ansiava que ele voltasse com maior intensidade. Assim, logo depois de ter sido designado professor-adjunto, quando me foi oferecida uma ctedra de histria da filosofia na Universidade Imperial de Tohoku, recebi, com particular alegria, a oportunidade de conhecer o Japo e os japoneses e de entrar em relao com o budismo, suas prticas contemplativas e sua mstica. Eu j sabia que existiam no Japo uma tradio cuidadosamente conservada, uma prtica viva do Zen, uma didtica consagrada pelos sculos e, o mais importante, mestres possuidores de uma assombrosa experincia na arte de orientao espiritual. To logo me instalei provisoriamente no meu novo ambiente, tratei de concretizar os meus desejos. De incio, trataram de me dissuadir, no sem mostrar grande perplexidade. Afinal, no se tinha notcia de algum europeu que se houvesse dedicado seriamente ao Zen e, como ele s poderia ser transmitido pela prtica, eu no iria me conformar em receber apenas ensinamentos tericos. Perdi muito tempo antes que compreendessem por que queria dedicar-me ao Zen no-especulativo... Ento me informaram que, para um europeu, seria pouco menos do que intil tratar de penetrar no mbito da vida espiritual asitica, a mais estranha do planeta, a no ser que eu comeasse a estudar uma das artes japonesas vinculadas ao Zen. A idia de ter que cursar uma espcie de escola primria me assustou. Eu estava disposto a fazer qualquer concesso para poder apro-

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ximar-me paulatinamente do Zen, e at o mais penoso desvio era prefervel ausncia de um caminho. Minha mulher aderiu, sem muita hesitao, ao estudo de arranjos florais e pintura, enquanto que para mim era atraente o tiro com arco, pois eu supunha (errada mente, como descobriria mais tarde), que minhas experincias com fuzil e pistolas seriam teis. Pedi a um dos meus colegas, Zozo Komachiya, professor de direito que, desde os vinte anos de idade, tomava aulas de tiro com arco e era considerado o melhor conhecedor dessa arte na Universidade, que me recomendasse como aluno ao seu preceptor, o clebre mestre Kenzo Awa. De incio, o famoso mestre recusou meu pedido, alegando que j se havia deixado convencer por um estrangeiro para ensin-lo e que os resultados foram muito desagradveis. Por isso, no estava disposto a aceitar um novo pedido, pois temia prejudicar o aluno com o esprito peculiar dessa arte. Somente quando lhe assegurei que um mestre que tomava to a srio sua misso tinha o direito de tratar-me como o mais jovem dos discpulos porque eu no desejava aprender a arte para divertir-me, mas para penetrar na Doutrina Magna , ele me aceitou, a mim e minha mulher, como alunos. Era costume no Japo iniciar tambm as mulheres nesta arte, motivo pelo qual a mulher do meu mestre e as suas filhas se exercitavam assiduamente. Assim comeou um rduo e intenso aprendizado, durante o qual participava como intrprete, para nossa satis-

fao, o professor Komachiya, que com tanta insistncia havia intercedido em nosso favor, oferecendo-se quase como um avalista. Por outro lado, a oportunidade de assistir, na qualidade de ouvinte, s aulas de arranjos florais e de pintura freqentadas por minha mulher, me permitia obter, mediante comparaes com outras artes complementares, uma base mais ampla para auxiliar minha compreenso.

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esde a primeira aula, fomos alertados de que o caminho que conduz arte sem arte spero. Primeira-mente, o mestre nos mostrou os arcos japoneses e nos explicou que sua extraordinria elasticidade era resultado de sua construo peculiar e das caractersticas do bambu, ou seja, do material de que eram construdos. Depois, ele nos chamou a ateno para a forma nobre que possui o arco, de quase dois metros de comprimento, quando armado com a corda, e que se manifesta de maneira surpreendente quanto mais tensionado. "Quando estiramos a corda ao mximo", disse-nos o mestre, "o arco 29

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abarca o universo, e por isso importante saber curv-lo adequadamente". Em seguida, escolheu o melhor e o mais resistente dos seus arcos e, numa atitude solene, fez a corda vibrar repetidas vezes, extraindo um som ao mesmo tempo grave e agudo que, depois de se escutar algumas vezes, jamais se esquece, to original e irresistvel a maneira como ele chega ao corao. Desde tempos remotos se atribui a esse som o misterioso poder de afastar os maus espritos: eu podia, ento, compreender por que tal crena se arraigara no povo japons. Depois dessa significativa introduo, purificadora e consagratria, o mestre nos convidou a observ-lo atenta-mente. Colocou uma flecha, estirou o arco de tal maneira que cheguei a temer que no resistisse a encerrar o universo, e finalmente disparou. A cena no s pareceu muito bela, como fcil de ser imitada. Ento nos ordenou: "Faam o mesmo, mas lembrem-se de que o tiro com arco no destinado a fortalecer os msculos. No estirem a corda aplicando todas as suas foras, mas procurando dar taba unicamente s mos, enquanto os msculos dos braos e dos ombros ficam relaxados, como se estivessem contemplando a ao, sem nela intervir. Somente quando tiverem aprendido isso que cumpriro uma das condies para que o tiro se espiritualize." Logo depois de pronunciar tais palavras, tomou minhas mos e guiou-as lentamente pelas fases do move-mento que em seguida teriam que executar, como para acostumar-me quela nova experincia. Logo na primeira tentativa, realizada com um arco de 30

resistncia mdia, percebi que precisava empregar muita fora para curv-lo. A isso se somava a dificuldade de que o centro do arco japons, ao contrrio do europeu, no se encontra na altura dos ombros, no oferecendo, por isso, uma espcie de ponto de apoio. Assim, uma vez colocada a flecha, temos que ergu-lo com os braos quase estendidos, de tal maneira que as mos do arqueiro fiquem acima da sua cabea. Por conseguinte, no se pode fazer outra coisa a no ser separ-las uniformemente, direita e esquerda, e, quanto mais se afastam uma da outra, mais descem, descrevendo curvas, at que a esquerda, que sustenta o arco, se encontra com o brao estendido altura dos olhos, e a direita, que estira a corda, com o brao dobrado altura da articulao do ombro. A ponta da flecha de quase um metro de comprimento sobressai muito pouco da borda exterior do arco, to grande a sua envergadura. O arqueiro deve permanecer naquela posio durante alguns momentos antes de disparar a flecha. A fora necessria para sustentar o arco de maneira to inslita fez com que em poucos instantes minhas mos comeassem a tremer e a respirao ficasse mais difcil. Durante semanas, essas reaes se repetiram. O gesto de estirar o arco continuou a exigir de mim grande esforo e, por mais que eu me exercitasse, no chegou a espiritualizar-se. Para consolar-me, pensei que se tratava de um ardil que por alguma razo o mestre no queria revelar-me, o que despertou minha curiosidade. Aterrado com obstinao ao meu objetivo, continuei

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praticando. O mestre observava atentamente meus esforos, corrigia serenamente a rigidez da minha postura, elogiava meu zelo, censurava-me pelo desperdcio de energia e deixava-me prosseguir. Vez por outra, exclamava em minha lngua: "Relaxe-se!", enquanto colocava os dedos nos pontos dolorosos do meu corpo, sem nunca perder a pacincia nem a afabilidade. Porm, chegou o dia em que fui eu quem perdeu a pacincia e lhe confessei que me era simplesmente impossvel estirar o arco da maneira indicada. "Se o senhor no consegue", replicou o mestre, " porque respira de maneira inadequada. Depois de inspirar, solte o ar lentamente, at que a parede abdominal esteja moderadamente tensa, retendo-o por alguns segundos. Em seguida, expire da maneira mais lenta e uniforme possvel e, depois de um breve intervalo, volte a aspirar rapidamente, continuando, assim, a inspirar e expirar com um ritmo que pouco a pouco se instalar por si s. Se fizer isso de maneira correta, sentir que o tiro se torna cada vez mais fcil, pois essa respirao no s lhe permitir descobrir a origem de toda fora espiritual, mas far brot-la como um manancial cada vez mais abundante, irradiando-se pelos seus membros." Em seguida, para me demonstrar o que havia dito, armou o seu forte arco e me convidou a colocar-me por trs dele, a fim de poder apalpar-lhe os msculos dos braos. Com efeito, estavam livres de tenso, como se no estivessem fazendo esforo. Pratiquei a nova respirao sem arco e flecha at ela se converter numa coisa natural. At a leve tortura que me acometera desde o incio das aulas desapareceu. 32

Nosso mestre dava tanta importncia expirao lenta e uniforme que deveria desaparecer paulatinamente que, para melhor exercit-la e control-la, fazia-nos acompanh-la de um zumbido. Somente quando, com o ltimo vestgio do hlito, o rudo tambm se extinguia, que nos autorizava a voltar a inspirar. Ele dizia que a inspirao une e rene tudo o que justo e a expirao libera e consuma, vencendo toda restrio. Mas ns no ramos, ento, capazes de compreender essa linguagem. Em seguida, o mestre passou a relacionar a respirao com o tiro com arco, porque ela no se pratica como um fim em si mesma. A ao contnua de estirar o arco e disparar a flecha se dividia nas seguintes fases: segurar o arco, colocar a flecha, levantar o arco, estir-lo e mant-lo no mximo de tenso e disparar. Cada fase se iniciava com uma inspirao, apoiava-se no ar retido no abdome e terminava com uma expirao. Tudo isso era possvel porque a respirao se adaptara de maneira natural, no apenas acentuando significativamente as diferentes posturas e os movimentos, mas entrelaando-os ritmicamente em cada um de ns, segundo as caractersticas respiratrias individuais. No obstante estar decomposto em vrias fases sucessivas, o procedimento de cada um de ns dava a impresso de um acontecimento nico, que vive de si e em si mesmo e que nem de longe pode ser comparado com um exerccio de ginstica, ao qual podem ser adicionados ou substitudos gestos sem que lhe destruam o carter e o significado. No me possvel recordar aqueles dias sem deixar de 33

lembrar como era difcil, no princpio, fazer com que a respirao surtisse o efeito desejado pelo mestre. Eu respirava de forma tecnicamente correta, mas quando, ao estirar o arco, me concentrava para que os msculos dos braos e dos ombros permanecessem relaxados, a musculatura das pernas se contraam independentemente da minha vontade. Era como se me fizessem falta uma base firme de apoio e uma postura slida e, como Anteu9, tivesse que extrair toda a minha energia da terra. Muitas vezes, o mestre no tinha outro remdio a no ser apertar subitamente algum msculo das minhas pernas, em pontos particularmente sensveis. Quando, numa dessas ocasies, eu lhe disse, guisa de desculpa, que eu estava me esforando para permanecer relaxado, replicou: "Este o seu maior erro: o senhor se esfora, s pensa nisso. Concentre-se apenas na respirao, como se no tivesse de fazer mais nada!" Entretanto, passou muito tempo antes que eu conseguisse atender s suas exigncias. Mas consegui. Aprendi a deter-me na respirao to despreocupadamente que s vezes tinha a sensao de no respirar, mas de ser respirado, por estranho que parea. E embora, nas horas de meditao, eu me defendesse de to extravagante idia, j no podia duvidar que a respirao ocorria exatamente como o mestre havia prometido.

Aos poucos e cada vez com maior freqncia, medida que se passavam os dias, consegui estirar o arco e mant-lo teso com o corpo relaxado, sem que pudesse explicar como aquilo estava ocorrendo. A diferena qualitativa entre essas poucas tentativas satisfatrias e as que com freqncia fracassavam fizeram com que eu comeasse a entender o que significava estirar o arco espiritualmente. Era este, pois, o quid da questo: no se tratava de nenhum ardil tcnico, que eu em vo queria descobrir, mas de uma respirao nova, que me abria inusitadas possibilidades de liberao. No digo tais palavras impensadamente: sei muito bem como grande, nesses casos, a tentao de sucumbir a uma forte influncia e, enredado por uma falsa iluso, superestimar o alcance de uma experincia que por si s inslita. O sucesso obtido por essa nova maneira de respirar era evidente demais, a despeito de todos os meus escrpulos, condicionados pela reflexo tpica que fazem os espritos positivos. Eu j conseguia estirar, relaxadamente, o arco rgido do mestre. Certa ocasio, durante uma longa conversa mantida com o professor Komachiya, perguntei-lhe por que o mestre havia observado impassivelmente e durante tanto tempo meus esforos infrutferos para estirar o arco espiritualmente. No teria sido mais fcil que ele tivesse me ensinado, desde o princpio, a respirao correta? "Um grande mestre", respondeu-me, "tem que ser ao mesmo tempo um grande educador, pois para ns esses atributos so inseparveis. Se o aprendizado tivesse sido 35

9. Personagem da mitologia grega, guerreiro indestrutvel e cruel que retirava uma energia descomunal do contacto com o solo. (N. do T.)

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iniciado com os exerccios respiratrios, jamais o senhor se convenceria da sua influncia decisiva. Era preciso que o senhor naufragasse nos prprios fracassos para aceitar o colete salva-vidas que ele lhe lanou. Creia-me, eu sei por experincia prpria que o mestre conhece o senhor e cada um de seus discpulos melhor do que a ns mesmos. Ele l nas nossas almas muito mais do que estamos dispostos a admitir."

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epois de um ano inteiro de exerccios, ser capaz de estirar o arco de forma espiritual, isto , vencendo-lhe a resistncia sem nenhum esforo, no um acontecimento excepcional. Contudo, eu me achava satisfeito, pois comecei a compreender como a tcnica de defesa pessoal prostra o adversrio sem despender nenhuma fora, apenas recuando, elstica e imprevistamente, aos seus esforos. por isso que essa forma de luta se chama arte gentil (traduo literal das palavras jiu-jitsu), e o seu smbolo o da gua que sempre cede, mas jamais vencida. No foi por outro motivo que 36

Lao-Ts10 disse que a vida autntica se parece com a gua, que a tudo se adapta porque a tudo se submete. Nas aulas do mestre, era hbito dizer-se que quem no mostrava dificuldades no comeo iria conhec-las, de maneira muito mais forte, durante o curso. Para mim, o incio tinha sido extremamente penoso. Eu no teria, ento, o direito de ser otimista em relao ao que me esperava, e cujos sacrifcios eu vislumbrava vagamente? As. aulas prosseguiram com o aprendizado do disparo da flecha, que at o momento havia sido praticado displicentemente, como se estivesse entre parnteses, margem dos exerccios. No nos preocupvamos com o que sucedia com a nossa flecha. Era suficiente crav-la no disco de palha prensada que fazia s vezes de alvo, apoiado num banco de areia. Acert-lo no era nenhuma faanha, pois estava, quando muito, a uma distncia de dois metros. At ento, quando me parecia insuportvel permanecer por mais tempo na tenso mxima, eu simplesmente soltava a corda, para no aproximar as minhas mos, que eu distanciara com tanto esforo. No pensem que a tenso me causava dor. Um protetor de couro no polegar impede que a presso da corda o moleste e que o arqueiro,

10. Mstico chins que viveu no sculo VI a.C. Considerado o "pai" do taosmo, foi contemporneo de Confcio. autor do clebre Tao-te-ching, que contm a essncia do seu pensamento, todo ele voltado para a bipolaridade csmica, e cuja traduo aproximada o livro que conduz divindade. (N. do T.)

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por causa disso, interrompa prematuramente o tensionamento do arco. Para estir-lo, dobra-se o polegar em torno da corda e por debaixo da flecha, o indicador, o mdio e o anular prendem-no com firmeza, dando ao mesmo tempo um apoio seguro flecha. Disparar significa que os dedos que prendem o polegar se abrem e o liberam. A forte trao da corda tira-o da posio e o estica: a corda vibra e a flecha lanada. Os meus disparos provocavam sacudidelas e trepidao generalizada no meu corpo, que se transmitiam ao arco e flecha. Por causa disso, nenhum tiro era suave e muito menos acertavam o alvo. Certo dia, quando no encontrava mais nenhum vcio na minha postura, disse-me o mestre: "Tudo o que o senhor aprendeu at agora no foram mais do que exerccios preparatrios para o disparo. Comearemos agora uma nova etapa, particular-mente difcil, atravs da qual atingiremos um novo nvel na arte do tiro com arco." Em seguida, pegou o seu arco e o disparou. S ento e porque ele me chamou a ateno para esse detalhe observei que sua mo direita, aberta repentinamente e liberada de toda tenso, fez um brusco movimento de retrocesso, sem que o menor estremecimento percorresse o seu corpo. O brao direito, que antes do disparo formava um ngulo agudo, cedeu trao e se abriu, com um movimento suave. O impacto inevitvel havia sido amortizado e neutralizado elasticamente. Se a potncia do disparo no se revelasse pelo estalo produzido pela corda ao chocar-se com o arco, nem pela velocidade da flecha, o movimento do arqueiro

no permitiria que suspeitssemos daquilo que vamos. Executado pelo mestre, o disparo parecia simples e carente de complexidade, como se fosse uma brincadeira infantil. A facilidade com que se executa um ato que exige fora , sem dvida, um espetculo cuja beleza o oriental aprecia com grande prazer. Quanto a mim, parecia mais importante ainda e, dado o meu estgio de aprendizagem, no podia me ocorrer outra coisa que a preciso do tiro dependia da suavidade do disparo. Minhas experincias com o fuzil me ensinaram o quanto contribui para um erro o menor tremor das mos. Tudo o que eu havia aprendido at ento era: relaxar ao estirar, permanecer relaxado durante a tenso mxima, estar relaxado ao soltar a flecha e compensar, relaxadamente, o tremor do corpo. Afinal, tudo isso no estava a servio da preciso do tiro, isto , o objetivo para o qual nos dedicamos com tanta pacincia e sofrimento? Por que, ento, o mestre agora falava de um acontecimento que ultrapassaria tudo o que havamos feito at agora? Eu continuava me exercitando com afinco, segundo todos os ensinamentos do mestre, mas meus esforos eram vos. Muitas vezes, tive a impresso de que antes, quando disparava com espontaneidade, obtia resultados melhores. Eu no podia abrir sem esforo a mo direita (primeiramente, os dedos que prendiam o polegar) e a conseqncia era uma sacudidela que desviava a flecha no momento do disparo. E era tambm incapaz de compensar elasticamente o choque da mo direita liberada. Imperturbvel, o mestre me mostrava de vez em quando 39

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a execuo correta do disparo. Com perseverana, eu tratava de imit-lo, sem outro resultado que o da minha insegurana cada vez maior. Eu parecia uma centopia incapaz de mover as patas, por no saber em que ordem isso deveria ser feito. Meu fracasso afetava muito mais a mim do que ao mestre. Saberia ele, por experincia prpria, que tais fatos ocorriam? "No pense no que deve fazer ou em como faz-lo!", exclamou. "Somente se o prprio arqueiro se surpreender com a sada da flecha que o tiro sai suavemente, como se a corda cortar de repente o polegar que a retm, sem que se abra a mo intencionalmente." Seguiram-se semanas e meses de infrutferos exerccios. Os disparos do mestre me forneciam indicaes precisas, revelavam-me a sua essncia, mas, quanto a mim, os fracassos se repetiam. Se, esperando em vo pelo disparo, cedia tenso porque ela era insuportvel, as mos se aproximavam lentamente uma da outra, no resultando tiro algum. Se resistia obstinadamente at perder o flego, eu era obrigado a forar a musculatura dos braos e dos ombros, "permanecendo como uma esttua", nas palavras do mestre, numa posio espasmdica, sem nenhum relaxamento. Devido a uma casualidade que parecia intencional, reunimo-nos, certo dia, o mestre e eu, diante de uma taa de ch. A ocasio me pareceu propcia para um dilogo profundo. Abri meu corao: "Compreendo muito bem que a mo no deve abrir-se bruscamente no ato do disparo, mas, faa o que fizer, sempre me saio mal. Se 40

fecho a mo com todas as minhas foras, o golpe ao abri-la inevitvel. Por outro lado, se me esforo para deix-la relaxada, a corda me escapa antes de estar estirada completamente, antes de eu estar pronto para atirar. Oscilo entre esses extremos do fracasso e no encontro soluo." " preciso manter a corda esticada", explicou o mestre, "como a criana que segura o dedo de algum. Ela o retm com tanta firmeza que de admirar a fora contida naquele pequeno punho. Ao soltar o dedo, ela o faz sem a menor sacudidela. Sabe por qu? Porque a criana no pensa: "agora vou soltar o dedo para pegar outra coisa". Sem refletir, sem inteno nenhuma, volta-se de um objeto para outro, e dir-se-ia que joga com eles, se no fosse igualmente correto que so os objetos que jogam com a criana." "Compreendo o que o senhor quer dizer com essa comparao, mas no me encontro numa situao diferente? Quando estou com o arco estirado, chega um momento em que sinto que, se no disparar imediata-mente, no resistirei mais tenso. O que sucede, ento? Fico sem poder respirar. E sou eu quem deve dispar-lo a todo custo, porque no consigo esperar mais." "O senhor acaba de descrever com perfeio qual sua dificuldade. Sabe por que no pode esperar pelo momento exato do disparo e por que perde a respirao? O tiro justo no momento justo no ocorre porque o senhor no sabe desprender-se de si mesmo, um acontecimento que deveria ocorrer de maneira independente, 41

pois, enquanto no suceder, a mo no se abrir de maneira adequada, como a da criana." Tive de admitir diante do mestre que essa interpretao me confundia ainda mais: "Pois sou eu quem estira o arco e sou eu quem o dispara em direo do alvo. Estirar o arco , pois, um meio para um fim, e essa relao no pode ser perdida de vista. A criana, contudo, no a conhece e eu, obviamente, no posso descart-la." "A arte genuna", afirmou o mestre, "no conhece nem fim nem inteno. Quanto mais obstinadamente o senhor se empenhar em aprender a disparar a flecha para acertar o alvo, no conseguir nem o primeiro e muito menos o segundo intento. O que obstrui o caminho a vontade demasiadamente ativa. O senhor pensa que o que no for feito pelo senhor mesmo no dar resultado." "Mas o senhor mesmo me disse muitas vezes que a arte do arqueiro no um passatempo, um jogo carente de finalidade, mas uma questo de vida ou morte." "Eu no me desminto. Ns, os mestres-arqueiros, dizemos: um tiro, uma vida! Talvez lhe seja difcil compreender isso, mas posso ajud-lo com outra imagem que expressa a mesma vivncia. Ns dizemos que com a extremidade superior do arco o arqueiro trespassa o cu; na inferior est suspensa, por um fio de seda, a terra. Se o tiro for disparado com violncia, existe o perigo de que o fio se rompa. Para o voluntarioso e agressivo, a abismo ser, ento, definitivo, e ele permanecer no centro fatal, entre o cu e a terra, sem jamais vir a conhecer a salvao."

"Ento, o que devo fazer?" "Tem que aprender a esperar." "Como se aprende a esperar?" "Desprendendo-se de si mesmo, deixando para trs tudo o que tem e o que , de maneira que do senhor nada restar, a no ser a tenso sem nenhuma inteno." "Quer dizer que devo, intencionalmente, perder a inteno?" "Confesso-lhe que jamais um aluno me fez tal pergunta, de maneira que no sei respond-la de imediato." "Quando comearemos com novos exerccios?" "Espere at que chegue o momento."

E

sse prolongado dilogo, o primeiro que mantnhamos desde o incio da minha admisso s aulas, me deixou perplexo. Finalmente, eu e o mestre tocvamos no tema pelo qual eu me interessava ao me decidir estudar a arte do arqueiro. A liberao de si mesmo, de que ele falava, no era o caminho que conduzia ao vazio e meditao? No era chegado, pois, o momento a partir do qual se fazia 43

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sentir a influncia do Zen sobre a arte do tiro com arco? Eu no conseguia determinar a relao que existia entre a expectativa livre de inteno e o disparo da flecha, no momento de liberar a tenso. Mas por que antecipar com o pensamento o que s a experincia pode ensinar? J no era tempo de afastar to estril propenso? Quantas vezes eu havia invejado os numerosos discpulos do mestre que, como crianas, se deixavam tomar pela mo para que ele os guiasse... Como devem ser felizes as pessoas que assim agem... Esse comportamento no conduz indiferena, nem paralisia espiritual. Afinal, as crianas no costumam fazer inmeras perguntas? Durante a aula seguinte, sofri uma grande decepo, pois o mestre insistia em continuar com os mesmos exerccios: estirar o arco, mant-lo tensionado, disparar a flecha. Por mais que ele me encorajasse, eu estava desanimado. Seguindo suas instrues, eu procurava no ceder tenso, mas super-la, como se a natureza do arco no tivesse limite algum, e esperava com pacincia e afinco que, no ato do disparo, a tenso se consumasse e se resolvesse de vez. Em vo. Eu perdia todos os tiros: artificiais, tremidos, desviados. Quando chegou o momento a partir do qual a continuao desses exerccios se mostrava no s intil, como perigosa (porque cada vez mais aumentava o pressentimento do fracasso), o mestre decidiu iniciar uma etapa completamente nova. "De agora em diante", advertiu-nos, "devem comear a se concentrar durante o caminho para as aulas, sem prestar ateno em nada e em ningum, como se no mundo inteiro exis44

tisse apenas uma nica coisa importante e real o tiro com arco." O mestre decomps em sees diferentes o caminho da libertao de si mesmo, cada uma das quais devendo ser atentamente praticada. Suas breves e delicadas insinuaes continuavam, pois para executar tais exerccios suficiente que o aluno compreenda, e s vezes apenas vislumbre, o que se espera dele. No necessrio recorrer-se s tradicionais e ntidas distines metafricas. provvel que elas, oriundas de uma prtica centenria, penetrem em ns com maior profundidade do que o nosso conhecimento cuidadosamente elaborado. O primeiro passo j havia sido dado: graas a ele chegramos ao relaxamento corporal, sem o que no possvel estirar-se o arco adequadamente. Porm, para que o tiro ocorra de forma apropriada, o relaxamento fsico tem que se entrelaar com o relaxamento psico-espiritual, com a finalidade, no s de agilizar, como de liberar o esprito. Temos que ser geis para alcanar a liberdade e livres para recuperar a agilidade primordial. Essa agilidade primordial diferente de tudo o que se entende vulgarmente por agilidade mental. Entre o estado de relaxamento psquico de um lado e o da liberdade espiritual de outro, existe uma diferena de nvel que o ato de respirar, por si s, no pode compensar. Para perdermos o eu, necessrio cortarmos todas as amarras, sejam quais forem, para que a alma, submergida em si mesma, recupere todo o poder da sua indizvel origem. No conseguiremos fechar a porta dos sentidos atra-

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vs de uma simples recluso, mas de uma disposio de ceder sem resistncia. Para conseguirmos instintivamente essa atitude no-ativa, a alma precisa de um apoio ntimo, que o ato de respirar. Ele deve ser executado conscientemente, com um cuidado beirando a afetao. Tanto a inspirao como a expirao precisam ser praticadas em separado e com a maior ateno. Os bons resultados desses exerccios no tardam. Quanto mais intensa a concentrao na respirao, mais rapidamente desaparecem os estmulos exteriores, pois eles se confundem com vagos murmrios a que prestamos cada vez menos ateno, at que deixem de nos perturbar, como o rudo das ondas quebrando-se na praia. Com o passar do tempo, conseguimos nos insensibilizar para estmulos fortes e deles nos desprender com maior facilidade e rapidez. importante, porm, que o nosso corpo, esteja em p, sentado ou apoiado, permanea o mais relaxado possvel e concentrado na respirao. Rapidamente nos sentiremos isolados como que por um invlucro acstico. Assim, a nica coisa que sabemos e sentimos que respiramos, e para nos libertarmos desse saber e sentir no necessria nenhuma deciso, pois a respirao ir, espontaneamente, ficando mais lenta, diminuindo cada vez mais o consumo de ar e, por conseguinte, prendendo cada vez menos a nossa ateno. Infelizmente, esse agradvel estado de recolhimento pode no ser duradouro, pois est arriscado a ser destrudo: como que brotando do nada, surgem de repente estados de nimo, sentimentos, desejos, preocupaes e 46

at pensamentos borrados uns com os outros que, quanto mais fantsticos, menos esto relacionados com aquilo pelo qual prescindimos de nossa conscincia comum, to mais obstinadamente nos dominam. como se quisessem se vingar pelo fato de a conscincia tocar esferas s quais comumente no chegam. Mas essa perturbao vencida se se continua respirando tranqila e serenamente, aceitando-se de maneira agradvel o que acontece, acostumando-se perturbao, aprendendo-se a contempl-la com indiferena e, finalmente, cansando-se de acompanh-la. Assim se imerge, pouco a pouco, num estado similar quele relaxamento que precede o sono. Deslizar definitivamente para esse estado um perigo que devemos evitar: consegui-lo-emos mediante um esforo especial de concentrao, que pode ser comparado ao que faz algum que sabe que sua vida depende da viglia de todos os seus sentidos. Feito uma vez, esse esforo poder ser repetido seguidamente com toda segurana. Graas a ele, a alma entra espontaneamente numa espcie de vibrao suscetvel de se intensificar, at chegar sensao de incrvel leveza, que s experimentamos poucas vezes no sonho, e segurana de podermos dirigir energia em qualquer direo, aumentar e dissolver tenses, numa lenta e gradual adaptao. Esse estado, em que no se pensa nada de definido, em que nada se projeta, aspira, deseja ou espera e que no aponta em nenhuma direo determinada (e no obstante, pela plenitude da sua energia, se sabe que capaz do possvel e do impossvel), esse estado, fundamen47

talmente livre de inteno e do eu, o que o mestre chama de espiritual. Com efeito, ele est carregado de viglia espiritual, e recebe tambm a denominao de verdadeira presena de esprito. Isso significa que o esprito est onipresente, porque no est preso em nenhum lugar. E assim pode permanecer, pois embora se relacione com isto ou aquilo, no se liga a nada reflexivamente e, portanto, no perder a sua mobilidade original. Podemos compar-lo gua que enche um tanque, mas que em qualquer momento est em condies de extravas-lo. Pode usar sua inesgotvel energia porque est livre, e abrir-se para todas as coisas porque est vazio. Um crculo vazio, smbolo desse estado primordial, fala com muita fora para quem nele se encontra. Quem se libertou de todas as ligaes tem que exercer qualquer arte que seja, a partir dessa plenipotncia da sua presena de esprito no distrada por nenhuma inteno, por mais oculta que seja. Mas para que se possa esquecer de si mesmo durante o processo de realizao formal, preciso que a prtica de tal arte seja atraente. Porm, se estiver imerso em si mesmo diante de uma situao dentro da qual for impedido de entrar instintivamente, ela no se desprenderia da conscincia. Assim, voltaria a ligar-se com todos os vnculos de que se desprendera, parecendo-se com quem acorda e se programa para o dia, jamais como iluminado que vive no estado primor-dial e age a partir dele. No teria a impresso de que as diferentes fases do processo realizador se deram atravs das suas mos, como que emanadas de um poder superior, 48

e no saberia jamais com que fora embriagadora o vibrante impulso de um acontecimento capaz de transmitir-se a quem , em si mesmo, mera vibrao, pois tudo o que faz est feito antes que o saiba. O desprendimento e a liberao necessrios, a internalizao e condensao da vida at a plena presena do espiritual no devem ficar merc de uma predisposio favorvel nem sorte, nem tampouco ao processo criador, que exige todas as energias, com a esperana de que a concentrao necessria surja espontaneamente. Ao contrrio, antes de qualquer ao e desempenho, antes de toda entrega e assimilao, deve-se provocar essa presena do espiritual e assegur-lo por meio do exerccio. A partir do momento em que ela conseguida com xito e em poucos instantes, a concentrao, tal como a respirao, relaciona-se com o tiro com arco. Para penetrar, como deslizando suavemente, na ao de estirar o arco e disparar a flecha, o arqueiro, que ajoelhado comeara a se concentrar, se levanta, dirige-se a passo solene em direo ao alvo e, depois de uma profunda reverncia e de apresentar o arco e flecha como oferendas sagradas, coloca uma flecha, levanta o arco, estira-o e, num estado de intensa viglia espiritual, permanece esperando. Depois da fulminante liberao da flecha e da tenso , o arqueiro conserva a postura adotada imediatamente aps o disparo, at que, depois de uma prolongada expirao, volta a aspirar. Ento, baixa os braos, inclina-se diante do alvo e, se no tiver que disparar mais flechas, retira-se serenamente para o fundo do recinto. 49

Dessa forma, o tiro com arco se converte numa cerimnia que interpreta a Doutrina Magna. Embora nessa etapa o discpulo no tenha apreendido a transcendncia dos seus tiros, compreende definitivamente que o tiro com arco no pode ser um esporte ou um mero exerccio fsico. E compreende por que o meramente tcnico, enquanto aprendido, tem que ser praticado at a exausto. Isso tudo depende de que, esquecidos por completo de ns mesmos e livres de toda inteno, nos adaptemos ao acontecer: a execuo de algo exterior desenvolve-se com toda a espontaneidade, prescindindo da reflexo controladora. Com efeito, a maneira japonesa de ensinar conduz a um domnio incondicional das formas. Praticar, repetir, repassar o repetido numa linha ascendente, tais so as suas caractersticas. Pelo menos quanto s artes tradicionais, essa afirmao verdadeira. Demonstrar, exemplificar, penetrar o esprito e reproduzi-lo, tais so as etapas tradicionais da didtica japonesa, apesar de que, durante as ltimas geraes, juntamente com a introduo de novas mudanas, a metodologia europia tem sido assimilada com indiscutvel facilidade. A que se deve, pois, em que pese todo entusiasmo pelo novo, o fato de que as artes nipnicas no tenham sido essencialmente afetadas por essa nova didtica? No fcil responder a tal pergunta. Contudo, tentarei faz-lo, ainda que de maneira sumria, com a finalidade de destacar o estilo 50

do ensino e, por conseqncia, o significado da imitao. O aluno japons traz consigo trs coisas: uma boa educao, um profundo amor pela arte escolhida e uma venerao incondicional pelo mestre. Desde tempos ime-morais, a relao entre mestre e discpulo pertence s relaes elementares da vida e ultrapassa muito os limites da matria que ensina. No princpio, a nica coisa que se lhe exige que imite respeitosamente tudo o que o mestre faz. Pouco amigo de prolixos doutrinamentos e motivaes, ele se limita a breves indicaes e no espera que o aluno faa perguntas. Observa tranqilamente suas aes, sem esperar independncia ou iniciativa prpria, aguardando com.pacincia o crescimento e a maturao. Os dois dispem de tempo: o mestre no pressiona, o discpulo no se precipita. Longe de querer despertar prematuramente o artista, o mestre considera como sua misso primordial converter o discpulo num arteso que domine profundamente o ofcio, o que este far com a sua habitual e pertinaz dedicao e como se no tivesse aspiraes mais elevadas, submetendo-se ao duro aprendizado com resignao, para descobrir, com o passar dos anos, que o domnio perfeito da arte, longe de oprimir, libera.

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ia aps dia ficava cada vez mais fcil levar a cabo, sem esforo, as sugestes tcnicas que eram propostas, mas devamos tambm ser capazes de ter inspiraes prprias, indispensveis para nosso enriquecimento interior. Assim, por exemplo, a mo que guia o pincel, no exato momento que o esprito comea a elaborar as formas, j encontrou, juntamente com esse, a idia que pretendem realizar: o aluno, por causa disso, no sabe se o "autor" da obra a mo ou o esprito. Mas para que isso possa ocorrer, quer dizer, para que o trabalho se espiritualize, se faz necessria a concentrao de todas as energias fsicas ou psquicas, tal como na arte dos arqueiros. Em nenhuma circunstncia, como veremos nos exemplos seguintes, possvel prescindirmos da concentrao. Um pintor que trabalha com tinta nanquim senta diante dos seus alunos. Examina os pincis e arruma-os pausadamente. sua frente, sobre uma esteira, est estendida uma longa e estreita tira de papel. Finalmente,

depois de haver permanecido durante longos momentos em profunda concentrao, cria, com traos rpidos e precisos, uma imagem que, no necessitando de nenhuma correo, serve de modelo aos seus alunos. Um mestre de arranjos florais comea a aula desatando cuidadosamente a fita que mantm as flores e os ramos unidos e, depois de enrol-la com esmero, deposita-a de lado. Em seguida, examina cada um dos ramos, escolhe os que lhe parecem melhor, curva-os atentamente, dando-lhes a forma segundo o papel que iro desempenhar no conjunto, e finalmente coloca-os num vaso previamente escolhido. Contemplando o resultado, dir-se- que o mestre adivinhou os obscuros sonhos da natureza. Nesses dois casos, aos quais me limito, os mestres se comportam como se estivessem sozinhos. No dirigem nenhum olhar e nenhuma palavra aos seus alunos. Compenetrados e serenos, executam as operaes preliminares; absorvem-se no ato de plasmar e formar, processo que, desde os primeiros gestos iniciais, at que dem por acabada a obra, parece um gesto nico, sem etapas, contido em si mesmo. Com efeito, sua fora expressiva to grande que impressiona o espectador como se fosse um quadro11

11. No por outra razo que a psicologia da Gesta/t d tanta importncia ao zen-budismo e teoria taosta do wu-wei (vontade passiva, vazio pleno). Os gestalt-terapeutas, a exemplo do "mestre" Frederick Perls, levam seus pacientes a fecharem a Gesta/t, isto , a uma viso integrada da sua circunstncia, sem a perda dos detalhes, bem como a fertilizarem o vazio (sunyata), impedindo que ele cresa e se intrometa na vontade, impedindo que ocorra aquilo que os zen-budistas chamam de obscurecimento da mente. (N. do T.)

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Mas por que o mestre no encarrega um discpulo experiente desses trabalhos preparatrios, inevitveis, porm secundrios? Ser que diluir a tinta ou desatar to cuidadosamente a fita ao invs de cort-la contribuem para estimular a sua intuio e criatividade? O que o faz repetir em cada aula essas operaes com a mesma e inexorvel insistncia, sem nenhuma omisso, exigindo que os seus discpulos o imitem? Ele insiste em manter esse ritual tradicional porque sabe que os preparativos tm a virtude de sintoniz-lo com a sua criao artstica. serena tranqilidade com que os executa deve o relaxamento decisivo, o equilbrio de todas as suas energias e a concentrao, sem os quais nenhuma obra autntica se realiza. Absorto na sua ao, livre de inteno, conduzido at o momento em que a obra, atingidas suas formas ideais, completa-se quase que por si mesma. O que so no tiro com arco os passos e os gestos, o so nestes casos os preparativos: a forma diferente, mas a significao a mesma. Quando tal procedimento no possvel, como no caso do danarino religioso ou no do ator, a concentrao ocorre antes que apaream em cena. No h dvida de que nesses exemplos, como no do tiro com arco, trata-se de cerimnias. Mais claramente do que o mestre pode explicar com palavras, o discpulo aprende com elas que o mais alto estado espiritual do artista s alcanado quando se mesclam, num nico continuum, os preparativos e a criao, o artesanato e a arte, o material e o espiritual, o abstrato e o concreto. E graas a isso ele descobre um novo enredo de imitao. 54

Depois, o que se exige que ele domine perfeitamente todas as tcnicas de concentrao e meditao, esquecendo-se de si mesmo. A imitao fica mais livre, mais gil, mais espiritualizada, pois no mais se refere a contedos objetivos que qualquer um pode reproduzir apenas com um pouco de boa vontade. O aluno se v frente a novas possibilidades, mas ao mesmo tempo aprende que sua realizao de maneira nenhuma depende da simples boa vontade. O aluno que tenha todas as possibilidades de progredir encontra-se diante de um perigo que muito difcil de ser evitado durante seu desenvolvimento. No se trata de se perder num narcisismo estril, porque o oriental tem pouca predisposio egolatria, mas de achar que o que j sabe suficiente, principalmente se obteve xito e fama naquilo que fez. Assim, ele corre o risco de se comportar como se a existncia artstica fosse uma forma de vida nascida e justificada espontaneamente em si mesma. O mestre sabe desse perigo. Cautelosamente, com sutis recursos psicolgicos, trata de prevenir a tempo e de liberar o aluno de si mesmo. Faz com que ele perceba, sem insistir, como se se tratasse de algo secundrio e referindo-se prpria experincia do aluno , que a criao autntica s possvel num estado de desprendimento de si mesmo, durante o qual o criador no est presente como ele mesmo. Somente o esprito deve estar presente, numa espcie de viglia que prescinde do eu mesmo e que pervade todos os espaos, todas as profundezas, com olhos que ouvem e

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ouvidos que vem. Desta maneira, o mestre consegue que o discpulo passe atravs do prprio ser, tornando-se cada vez mais receptivo. O mestre pode mostrar-lhe algo de que ele tinha ouvido falar muitas vezes, mas cuja realidade s agora fica tangvel, em virtude das suas prprias experincias. No importa que nome o aluno lhe d, se que ele lhe d algum. Em silncio, ele compreende: o mestre no precisa dizer nada. Mas com isso se inicia um movimento interior decisivo. O mestre o observa e, sem influir no seu progresso por meio de novos ensinamentos que de nada adiantariam, ajuda-o de maneira mais ntima e secreta. Mediante a frmula conhecida em certos crculos budistas, "assim como com uma vela acesa se acende outra", o mestre transmite o genuno esprito da arte, de corao a corao, para que eles se iluminem. Ento, se a graa lhe reservada, o discpulo descobre em si mesmo que a obra interior que ele deve realizar bem mais importante que as obras exteriores, por mais atraentes que sejam, e que ele deve persegui-la se quiser ser o artfice do seu destino de artista. A obra interior consiste em que o aluno, como homem que , como o eu que se sente ser e como quem se reencontra uma ou outra vez, se converta na matria-prima de uma criao, de uma realizao formal, que termina no domnio da arte escolhida. Nele se fundem o artista e o homem, no sentido amplo da palavra, em algo superior. O domnio pleno da arte vlido como forma de vida pelo fato de viver arraigado na verdade ilimitada e ser, como sua ajuda, a arte primordial da

vida. O mestre j no busca, mas encontra. Como artista, um sacerdote; como homem, um artista em cujo corao no seu agir e no-agir, criar e silenciar, ser e no-ser penetra o olhar do Buda12. O homem, o artista, a obra formam um todo. A arte da obra interior que no se desprende do artista como a exterior, a que ele no pode fazer, mas unicamente ser, surge das profundezas que no conhecem a luz do dia. spero o caminho do aprendizado. Muitas vezes, a nica coisa que mantm o discpulo animado a f no mestre, em quem s agora reconhece o domnio absoluto da arte: com sua vida, d-lhe o exemplo do que seja obra interior, e convence-o apenas com a sua presena. Nessa etapa, a imitao do discpulo atinge a maturidade, conduzindo-o a compartilhar com o mestre o domnio artstico. At onde o discpulo chegar coisa que no preocupa o mestre. Ele apenas lhe ensina o caminho, deixando-o percorr-lo por si mesmo, sem a companhia de ningum. A fim de que o aluno supere a prova da solido, o mestre se separa dele, exortando-o cordial-mente a prosseguir mais longe do que ele e a se "elevar acima dos ombros do mestre". Para onde quer que o caminho escondido leve o

12. Toda a teoria do budismo gira em torno de uma nica palavra: iluminao. Buda foi Buda porque era Buddha, isto , o Iluminado. Sermos pene-trados pelo olhar do Buda significa que estamos caminhando para a iluminao, para o satri, como dizem os zen-budistas. (N. do T.)

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discpulo, ele pode perder o mestre de vista, mas jamais esquec-lo. Com uma gratido disposta a qualquer sacrifcio, gratido que substitui a venerao incondicional do principiante e a f salvadora do artista, ele lhe ser sempre fiel. Inmeros exemplos, vindos do mais longnqo passado, demonstram que essa gratido supera bastante a que habitual entre as pessoas. Dia aps dia, eu ia penetrando com maior facilidade na interpretao e na prtica da Doutrina Magna do tiro com arco e a executava sem esforo, como se o estivesse praticando durante um sonho. Confirmavam-se, assim, as palavras do mestre. Contudo, eu no conseguia me concentrar alm do momento do disparo. Manter a ateno num mximo de tenso no s me fatigava, ocasionando um relaxamento da prpria tenso, como se desvanecia, perdendo sua energia potencial at tornar-se insuportvel e, em muitas ocasies, obrigando-me a dirigir minha ateno, provocando eu mesmo o disparo. "Deixe de pensar no disparo!", exclamava o mestre. "Assim no h como evitar o fracasso!" "Eu no consigo evitar", repliquei. "A tenso insuportavelmente dolorosa." "Isso acontece porque o senhor no est' realmente desprendido de si mesmo. Contudo, to simples... Uma simples folha de bambu pode ensin-lo. Com o peso da neve ela vai se inclinando aos poucos, at que de repente a neve escorrega e cai, sem que a folha tenha se movido. Como ela, permanea na maior tenso at que o disparo caia: quando a tenso est no mximo, o tiro tem que cair, 58

tem que desprender-se do arqueiro como a neve da folha, antes mesmo que ele tenha pensado nisso." Apesar de todos os meus esforos de absteno e de no-interveno, eu continuava a provocar o tiro deliberadamente, sem esperar que ele casse. Esse fracasso continuado me deprimia muito, principalmente porque h trs anos que eu me exercitava. No nego que atravessei momentos penosos, durante os quais me perguntava se sacrificar o tempo daquela maneira contra tudo o que eu aprendera at ento era justificvel. Veio-me memria a observao jocosa de um compatriota. Ele me perguntou se no haveria no Japo algo mais valioso para fazer do que se dedicar anos a fio a essa arte improdutiva. Na ocasio, eu achei a pergunta absurda, mas estava prestes a mudar de opinio. O mestre deve ter percebido o que eu sentia e por isso, como me contou mais tarde o professor Komachiya, comeou a estudar uma introduo filosofia para descobrir de que maneira me poderia ajudar, partindo de um ngulo que me fosse mais familiar. Porm, logo a deixou de lado, com mau humor, dizendo que agora compre-dia que algum, preocupado com aquelas coisas, dificilmente assimilaria a arte do tiro com arco. Naquele ano, passamos as frias de vero beira-mar, na solido de uma paisagem tranqila e bela, onde nada nos impedia de sonhar. Nossos arcos era o que tnhamos de mais importante. Dia aps dia, eu me preocupava com a realizao do disparo verdadeiro, uma idia fixa que me fazia esquecer cada vez mais o conselho do 59

mestre, segundo o qual deveramos pratic-lo nica e exclusivamente com um recolhimento liberador. Analisando todas as possibilidades que pudessem explicar meus fracassos, cheguei concluso de que eles no se deviam causa apontada pelo mestre, ou seja, minha incapacidade de liberar-me de toda inteno e do meu prprio eu, mas porque os dedos da mo direita prendiam o polegar com firmeza excessiva. Quanto mais eu esperava o disparo, tanto mais eu os apertava sem querer, espasmodicamente. Eis aqui o ponto onde devo concentrar meus esforos, pensei. Eu havia encontrado uma soluo simples e plausvel para o problema. Se, uma vez estirado o arco, eu soltasse cuidadosa e lentamente os dedos que prendiam o polegar, chegaria o momento em que este, libertado, seria arrancado automaticamente da sua posio. O tiro, disparado de maneira fulminante, "cairia como a neve acumulada na folha de bambu". Esse descobrimento me convenceu, sobretudo por sua grande afinidade com a tcnica do tiro de fuzil, segundo a qual o indicador dobra-se lentamente, at que uma presso insignificante vence a ltima resistncia. Eu me convencera de que estava no caminho certo, porque quase todos os tiros, pelo menos assim parecia, saam de maneira suave e imprevista. Porm, eu no atentava para o reverso da medalha: para obter xito, eu dirigia toda a minha ateno para a mo direita. Consolava-me a perspectiva de que essa soluo tcnica chegaria a ser, pouco a pouco, to familiar que dispensaria toda ateno. Algum dia, graas a ela, me seria possvel soltar

o tiro inconscientemente, permanecendo esquecido de mim mesmo, na maior tenso. Assim, tambm nesse caso, a tcnica se espiritualizaria. Cada vez mais confiante nessa descoberta, no dei ouvidos s objees de minha mulher e senti, por fim, a tranqila sensao de ter dado um decisivo passo frente. Ao se iniciarem as aulas, o primeiro tiro j me pareceu excelente. Desprendeu-se suave e sem esforo. O mestre me olhou por um momento e, hesitante, como quem no cr no que est vendo, ordenou: "Mais uma vez, por favor!" O segundo tiro me pareceu superar o primeiro. Ento, sem dizer uma nica palavra, o mestre se aproximou, tomou o arco das minhas mos e, dando-me as costas, sentou-se numa almofada. Compreendi o que isso significava e retirei-me.

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o dia seguinte, o mestre, por intermdio do professor Komachiya, avisava-me de que se recusava a continuar com suas lies porque eu o havia enganado. Entristecido por essa interpretao do mestre, expliquei ao seu 61

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mensageiro como me havia ocorrido aquela maneira de disparar, uma vez que eu no conseguia avanar um passo, apesar dos meus esforos. Graas sua interveno, o mestre reconsiderou sua atitude, mas com a condio expressa de que eu prometesse jamais violar o esprito da Doutrina Magna. No bastasse meu profundo sentimento de vergonha, o comportamento do mestre fez com que ele aumentasse. Sequer mencionou o incidente, simplesmente disse: "O senhor sabe o que acontece se somos incapazes de permanecer livres de inteno, no estado de mxima tenso. O senhor no pode continuar o aprendizado se no se perguntar uma ou outra vez: 'Eu o conseguirei?' Espere pacientemente o que vier e como vier!" Lembrei-lhe que estava no curso h quatro anos e que minha estada no Japo no era ilimitada, ao que ele respondeu: "O caminho at a meta incomensurvel. Para ele nada significam semanas, meses, anos." "Mas se eu tiver que interromper meu aprendizado na metade do caminho? " "Pode faz-lo a qualquer momento, desde que se tenha desprendido realmente do seu eu. Por isso, continue praticando!" E assim, voltamos a comear desde o princpio, como se todo o aprendizado tivesse sido intil. Continuava impossvel para mim permanecer sem inteno dentro, como se fosse possvel escapar de um caminho por demais viciado, at que um dia perguntei ao mestre: 62

"Como o disparo pode ocorrer, se no for eu que o fizer acontecer?" "Algo dispara", respondeu-me. "J ouvi essa resposta outras vezes. Modifico, pois, a pergunta: como posso esperar pelo disparo, esquecido de mim mesmo, se eu no posso estar presente? "Algo permanece na tenso mxima". "E o que esse algo?" "Quando o senhor souber a resposta, no precisar mais de mim. E se eu lhe der alguma pista, poupando-o da experincia pessoal, serei o pior dos mestres, merecendo ser dispensado. Por isso, no falemos mais! Pratiquemos!" Passaram-se muitas semanas sem que eu tivesse avanado um passo, mas isso em nada me afetava. O longo aprendizado tinha me tornado indiferente. Aprender a arte, descobrir o que o mestre quis dizer com o seu algo, encontrar o acesso ao Zen, tudo isso me pareceu de repente to longnquo, to indiferente, que j no me preocupava. Em vrias ocasies, propus-me confess-lo ao mestre, mas diante dele a coragem desaparecia. Estava convencido de que escutaria outra vez a sua resposta tranqila: "No pergunte, pratique!" Ento, deixei de fazer perguntas e por pouco, tambm de praticar, se o mestre no me tivesse mantido seguro nas suas mos. Indiferente, eu deixava os dias passarem, cumprindo da melhor maneira possvel minhas obrigaes profissionais, j no me afastando a constatao de indiferena que eu tinha diante daquilo a que, durante anos, eu dedicara meus mais persistentes esforos. 63

Certo dia, depois de um tiro executado por mim, o mestre fez uma profunda reverncia e deu a aula por terminada. Diante do meu olhar perplexo, exclamou: "Algo acaba de atirar"13. E, ao compreender o que ele queria dizer, fui tomado por uma incontida exploso de alegria. "Minhas palavras", advertiu-me o mestre, "no so de elogio, mas uma simples constatao que no deve alter-lo. A minha reverncia no foi dirigida ao senhor. O mrito desse tiro no lhe pertence, pois o senhor permanecia esquecido de si mesmo e de toda inteno, no estado de tenso mxima: o disparo caiu, tal qual uma fruta madura. Agora, continue praticando, como se nada tivesse acontecido." Transcorreu muito tempo at que eu conseguisse alguns poucos tiros perfeitos, que o mestre saudava, sem dizer uma nica palavra, com profunda reverncia. Como era possvel que se produzissem sem minha interveno, por si mesmos? Como era possvel que minha mo direita, firmemente fechada, se abrisse sem que eu soubesse e ainda no saiba explicar? A verdade que era dessa forma que as coisas ocorriam, e isso o que importa. Com o passar do tempo, eu mesmo conseguia distinguir os tiros frustrados dos bem-sucedidos. A diferena

qualitativa entre eles to grande que, uma vez sentida, no mais passar despercebida. Para o observador, o tiro bem-sucedido se d quando o rebote da mo direita se amortece a tempo, sem sacudir o corpo. Por outro lado, depois dos tiros frustrados, a respirao at ento retida sai de maneira explosiva, havendo necessidade de inspirar imediatamente. Ao contrrio, quando o tiro feito com xito, a respirao, que estava presa, sai com suavidade, voltando-se a inspirar pausadamente. O corao continua a bater num ritmo uniforme e tranqilo e a concentrao, por no ter sido perturbada, permite iniciar de imediato o segundo disparo. O resultado interior dos tiros executados com perfeio causam a sensao de que o dia acaba de nascer. Depois deles, o arqueiro se sente apto a praticar toda espcie de ao perfeita ou a mergulhar no mais puro cio. um estado extraordinariamente delicioso. "Mas", adverte o mestre, "quem o experimenta, melhor far se ignor-lo. Somente uma firme serenidade capaz de fazer com que ele volte sempre." Certo dia, ao anunciar que iramos passar para a prtica de novos exerccios, disse-nos o mestre: "Parece-me que a parte mais difcil terminou. A quem deve caminhar cem milhas, recomendamos que considere noventa como sendo a metade. Trataremos, agora, de praticar o tiro ao alvo". At ento, o alvo (que tambm servia para guardar as flechas) era um disco de palha prensada e apoiado num cavalete de madeira, distante do arqueiro o equivalente ao comprimento de duas flechas. O novo alvo, porm,

13. O zen-budismo assimilou, sua maneira, o conceito taosta do wu-wei (ver pg. 53), presente nesse enigmtico conceito de algo, que os mestres aceitam como dogma e que lembra as palavras de Cristo: "No sou eu que fao as obras, o Pai que as faz; eu, de mim, nada posso fazer." (N. do T.)

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estava colocado a uma distncia de sessenta metros, apoiado numa espcie de colina de areia com uma larga base, cercado por trs paredes e protegido, como a galeria onde fica o arqueiro, por uma cobertura de telhas harmoniosamente encurvada. Ambas as galerias (onde permanecem o arqueiro e o alvo) so unidas por altos tabiques que ocultam do exterior a cena onde acontecem coisas to misteriosas. O mestre nos demonstrou o tiro no novo alvo: suas duas flechas se cravaram bem no centro. Em seguida, convidou-nos a executarmos a cerimnia como sempre o fazamos, sem, porm, nos deixarmos influir pela presena do alvo. Deveramos permanecer no estado de mxima tenso at que o disparo casse. Nossas delgadas flechas de bambu partiam na direo do alvo, mas no atingiam sequer o banco de areia, fincando-se no cho alguns metros adiante. "Suas flechas no atingem o alvo", observou o mestre, "porque espiritualmente no percorrem grandes distncias. Comportem-se como se o alvo estivesse a uma distncia infinita. Para ns, mestres-arqueiros, um fato conhecido e comprovado pela experincia cotidiana que um bom arqueiro, com um arco de potncia mdia, capaz de um tiro mais longo do que um outro, empunhando um arco mais potente, mas carente de espiritualidade. Logo, o tiro no depende do arco, mas da presena de esprito, da vivacidade e da ateno com que manejado. Mas, para desencadear uma maior tenso nessa viglia espiritual, os senhores devem executar a cerimnia de

maneira diferente da que vem sendo feita at agora, mais ou menos como dana um verdadeiro danarino. Assim o fazendo, os movimentos dos seus membros partiro daquele centro do qual surge a verdadeira respirao. Ento, a cerimnia, ao invs de desenvolver-se como uma coisa aprendida de cor, parecer criada segundo a inspirao do momento, de tal maneira que dana e danarino sejam uma nica e mesma coisa. Se os senhores se entregarem cerimnia como se se tratasse de uma dana ritual, sua lucidez espiritual atingir o ponto mximo." Ignoro at que ponto fui capaz de danar a cerimnia e de transmitir-lhe alguma coisa da minha vida interior. Meus tiros, porm, j no eram to curtos, apesar de no atingirem o alvo. Foi isso que me fez perguntar ao mestre por que no nos havia ensinado como mirar. Deveria existir, eu supunha, uma relao entre o alvo e a ponta da flecha e, por conseguinte, uma maneira de dirigir a pontaria para atingir o alvo com maior facilidade. "Naturalmente que existe", afirmou o mestre, "e no lhe ser difcil descobrir por si mesmo. Porm, se quase todas as suas flechas atingirem o alvo, o senhor no ser outra coisa alm de um artista que se exibe ao pblico. Para o ambicioso, que s se importa com os tiros certeiros, o alvo no nada mais do que um simples pedao de papel que ele destri com suas flechas. Para a Doutrina Magna dos arqueiros, esse procedimento , no mnimo, diablico. Ela ignora o alvo erguido a uma determinada distncia do arqueiro. A nica meta que persegue aquela que de nenhuma maneira se pode alcanar tecnicamente, e essa 67

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meta se chama se que se lhe pode dar algum nome Buda." E, depois de pronunciar tais palavras como se fossem compreensveis em si mesmas, o mestre nos pediu para observar atentamente os seus olhos enquanto ele atirava. Semicerrados, como permaneciam durante as cerimnias que ele dirigia, nos davam a impresso de que a nada miravam. Ns permanecemos observando docilmente algo atirar sem apontar. Passei a no me preocupar com o destino das minhas flechas. Nem sequer me alegrava com um ou outro acerto ocasional, porque sabia que se deviam ao puro acaso. Passado algum tempo, porm, j no suportava esses acertos ocasionais, obtidos de maneira indesejvel, e pus-me a refletir uma vez mais sobre o que estava acontecendo. O mestre fez de conta que no percebia o que se passava comigo, at o dia em que lhe confessei que me sentia desorientado. "O senhor se atormenta em vo", disse-me ele para me acalmar. "Eleve o esprito para alm da preocupao de atingir o alvo. Mesmo que nenhuma flecha o alcance, o senhor pode tornar-se um mestre-arqueiro. Os impactos no alvo nada mais so do que confirmao e provas exteriores, da sua no-inteno, do seu autodespojamento, da sua absoro em si mesmo ou de qualquer nome que lhe d. O aperfeioamento supremo tem os seus prprios nveis e s quem atingiu o ltimo jamais errar o alvo exterior." " precisamente isso o que no entendo", repliquei. "Creio que sei o que o senhor quer dizer quando fala na

meta verdadeira, ntima, que devemos atingir. Entretanto, como possvel que a meta exterior, o alvo de papel, seja atingida sem que o arqueiro tenha feito pontaria, de maneira que os acertos confirmem exteriormente o que se passa no interior? Confesso que essa correlao me incompreensvel." Depois de um longo momento de reflexo, o mestre me respondeu: "O senhor est enganado se pensa que pode tirar algum proveito da compreenso de to obscuras conexes, inalcanveis para o intelecto. Lembre-se de que na natureza ocorrem coincidncias incompreensveis, e no obstante to comuns que nos acostumamos a elas. Vou dar-lhe um exemplo sobre o qual refleti muitas vezes: a aranha dana sua rede sem pensar nas moscas que se prendero nela. A mosca, danando despreocupadamente num raio de sol, se enreda sem saber o que a esperava. Mas tanto na aranha, como na mosca, algo dana, e nela o exterior e o interior so a mesma coisa. Confesso que me sinto incapaz de explicar melhor, mas dessa maneira que o arqueiro atinge o alvo, sem mir-lo exteriormente." Apesar das reflexes que despertaram em mim essa parbola apesar de no conseguir penetrar-lhe a essncia , alguma coisa em mim impedia que eu continuasse praticando com o esprito tranqilo. medida que se passavam as semanas, uma objeo se tornava cada dia 69

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mais forte, at que eu no pude evitar de coloc-la para o mestre: "No possvel ocorrer que o senhor, depois de dezenas de anos de prtica, maneje o arco de uma maneira intencional, mas com a segurana de um sonmbulo, de tal maneira que o senhor tenha-se tornado incapaz de errar, mesmo que no tenha apontado conscientemente para o alvo?" Acostumado s minhas cansativas perguntas, o mestre balanou a cabea depois de um silncio meditativo: "No vou negar que possa estar fazendo algo parecido com o que o senhor sugere. Coloco-me frente do alvo, logo tenho que v-lo, embora no me fixe nele intencionalmente. Por outro lado, sei que v-lo no suficiente, que isso nada decide ou explica, pois eu o vejo como se no o estivesse vendo." Foi ento que me escapou a seguinte observao: "Se assim, nada impede que o senhor acerte o alvo com os olhos vendados." O mestre me dirigiu um olhar que me fez sentir que eu o tivesse ofendido, e em seguida me disse: "Eu o espero noite."

entei-me numa almofada, diante do mestre que, em silncio, me ofereceu ch. Permanecemos assim durante longos momentos. O nico rudo que se ouvia era o do vapor da gua fervendo na chaleira. Por fim, o mestre se levantou e fez sinal para que eu o acompanhasse. O local dos exerccios estava feericamente iluminado. O mestre me pediu para fixar uma haste de incenso, longa e delgada como uma agulha de tricotar, na areia diante do alvo. Porm, o local onde ele se encontrava no estava iluminado pelas lmpadas eltricas, mas pela plida incandescncia da vela delgada, que lhe mostrava apenas os contornos. O mestre danou a cerimnia. Sua primeira flecha partiu da intensa claridade em direo da noite profu