a arte cavalheiresca do arqueiro zen - eugen herriguel

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Livro de Eugen Herriguel

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    EUGEN HERRIGEL

    A ARTE CAVALHEIRESCA DO ARQUEIRO

    ZEN Prefcio

    Prof. D. T. Suzuki

    Traduo, prefcio e notas de J. C. Ismael

    EDITORA PENSAMENTO So Paulo

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    Ttulo do original: Zen in der Kunst des Bogenschiessens

    Otto Wilhelm Barth Verlag, 1975

    Edio Ano 987 8

    Direitos reservados. EDITORA PENSAMENTO

    R. Dr. Mrio Vicente, 374 - 04270 So Paulo, SP - fone: 63-3141

    Impresso em nossas oficinas grficas.

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    PREFCIO

    S encontrar a sua vida aquele que a perdeu (Provrbio Zen)

    Mestre, discpulo, arco, flecha, alvo: essas so as personagens que esperam pelo leitor nas pginas que se seguem. Mas tal encontro exigir, por parte do leitor, algumas abdicaes. A lgica do pensamento ocidental deve ser posta de lado. A estrutura do cartesianismo, reduzida a cinzas. A relao causa-efeito, desprezada. A separao sujeito-objeto, ignorada. O tdio, ridicularizado. Mas a paixo pela vida, enaltecida. A cerimnia desse encontro presidida pelo prncipe Sidarta, que perdeu a sua vida para despertar como Buda, o Amida, o smbolo da compaixo, aquele que nos mostrou o caminho do meio como o nico capaz de vencer os sofrimentos que marcam a banalidade do cotidiano.

    Este livro trata do Zen como os mestres gostam de abord-lo: uma experincia direta, imediata, no-filtrada pelo intelecto. O autor, ocidental tpico, cai na tentao de questionar, de pr em evidncia sua perplexidade diante das lies do mestre. Muitos anos se passam at que ele perca a sua vida e descubra o que o Zen: transcendncia do intelecto, desprezo pelas palavras, silncio, gestos iluminantes e iluminados, comunho com o cosmo.

    Eugen Herrigel nasceu em Lichtenau, Alemanha, a 20 de maro de 1885. Desde jovem se sente atrado pelo misticismo oriental, embora se dedique com afinco filosofia do Ocidente e ao neo-kantismo em especial. Confuso, procura de pistas que levem ao ponto de encontro de todas as religies e filosofias, termina o doutorado em filosofia na Universidade de Heidelberg. Ento, com trinta e nove anos de idade, viaja com a mulher para o Japo, onde passa quase seis anos ensinando na Universidade de Tohoku. Durante esse perodo dedica-se com afinco ao aprendizado de uma das artes mais inteis que existem: a do

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    arqueiro, tal como praticada pelos mestres Zen-budistas,. J estudara o Zen nos livros. Chegara a hora de conhec-lo atravs da vivncia concreta. A oportunidade imperdvel. Herrigel vive os anos mais difceis e mais belos da sua vida. Ao regressar do Japo, contratado pela Universidade de Erlangen, onde leciona durante muitos anos. Havia publicado dois livros: Urstoff und Urform (1926) e Die metaphysiche Form (1929), e editado as obras completas do filsofo alemo Emil Lask (1923-24).

    Este livro s surgiria em 1948, quase vinte anos depois de Herrigel ter voltado do Japo. Antes de morrer, em 18 de abril de 1955, ele ainda escreve Der Zen-Weg, na esteira das publicaes semelhantes no Ocidente, com a finalidade de divulgar o Zen de maneira mais simples possvel.

    A aventura espiritual de Herrigel, vivida na instigante atmosfera das aulas do mestre Kenzo Awa, merece ser compartilhada. uma peregrinao que nos arrebata desde as primeiras pginas deste livro. Uma dura, spera e longa viagem que comea nas trevas do exterior e termina na ofuscante luminosidade interior e que nos lembra a clebre declarao Zen: Antes que eu penetrasse no Zen, as montanhas e os rios nada mais eram seno montanhas e rios. Quando aderi ao Zen, as montanhas no eram mais montanhas, nem os rios eram rios. Mas, quando compreendi o Zen, as montanhas eram s montanhas e os rios, apenas rios.

    Quando o arqueiro Zen dispara a flecha, ele atinge a si prprio. Nesse momento mgico, ele se ilumina. Mesmo sem jamais ter empunhado um arco, a dimenso metafrica deste livro no passar despercebida pelo leitor atento, obrigando-o, certamente, a refletir sobre o enredo da sua vida. No essa a misso dos bons livros?

    J. C. I. So Paulo, outono de 1983

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    NOTAS 1. Em que pese a spera e dura sonoridade dessa expresso, no me ocorre nenhuma outra equivalente original alem Bogenschiessen, nem francesa tir larc ou a castelhana tiro con arco, uma vez que a lngua portuguesa no conhece outra que possa substitu-la.(N. do T.) 2. Ou seja, o nirvana, um estado de iluminao suprema, para alm da concepo do intelecto. (N. do T.) 3. Esses cinco caracteres chineses significam literalmente: A razo pela qual o primeiro patriarca veio do Ocidente, isto , a ndia. Esse tema freqentemente objeto de um mondo. (Ver D. T. Suzuki, Essais sur le Bouddhisme Zen, vol. 1, pg. 302 e seg.) O mondo trata da essncia do Zen: uma vez compreendido, incorporamo-nos a ele instantaneamente. (N. do T.: O mondo um exerccio de perguntas e respostas rpidas para quebrar as fronteiras do pensamento conceptual.) 4. O zagu um dos acessrios que o monge Zen carrega consigo. O monge o estende sua frente enquanto se prostra diante do mestre ou do Buda. 5. Dhyana um termo tcnico da Ioga, que conota a concentrao do esprito sobre um objeto nico e no , rigorosamente, o mesmo que Zen^ embora ambos derivem da palavra chinesa Ch'an-na. O autor tem razo, apenas do ponto de vista etimolgico, em identific-los. (N. do T.) 6. Essa expresso, que pode parecer obscura para muitos leitores, a vivncia do satri, que , no fundo, a meta nica do Zen-budismo, essencial para atingir o nirvana. (N. do T.) 7. Publicados em Londres, em trs volumes (1927, 1933, 1934). Existe no mercado uma excelente traduo francesa feita por Jean Herbert para as Editions Albin Michel. (N. do T.) 8. Existem muitas verses da iluminao do Buda Gautama. A mais aceita que ele permaneceu sentado durante sete dias debaixo de uma rvore, at atingir o estado bodhi ou iluminao suprema: j no era mais o prncipe Sidarta, mas o Buda. (N. do T.)

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    9. Personagem da mitologia grega, guerreiro indestrutvel e cruel que retirava uma energia descomunal do contacto com o solo. (N. do T.) 10. Mstico chins que viveu no sculo VI a.C. Considerado o pai do taosmo, foi contemporneo de Confcio. autor do clebre Tao-teching, que contm a essncia do seu pensamento, todo ele voltado para a bipolaridade csmica, e cuja traduo aproximada o livro que conduz divindade. (N.doT.) 11. No por outra razo que a psicologia da Gestalt d tanta importncia ao zen-budismo e teoria taosta do wu-wei (vontade passiva, vazio pleno). Os gestalt-terapeutas, a exemplo do mestre Frederick Perls, levam seus pacientes a fecharem a Gestalt, isto , a uma viso integrada da sua circunstncia, sem a perda dos detalhes, bem como a fertilizarem ovazio (sunyata), impedindo que ele cresa e se intrometa na vontade, impedindo que ocorra aquilo que os zen-budistas chamam de obscurecimento da mente. (N. do T.) 12. Toda a teoria do budismo gira em torno de uma nica palavra: iluminao. Buda foi Buda porque era Buddha, isto , o Iluminado. Sermos penetrados pelo olhar do Buda significa que estamos caminhando para a iluminao, para o satri, como dizem os zen-budistas. (N. do T.) 13. O zen-budismo assimilou, sua maneira, o conceito taosta do wu-wei (ver pg. 53), presente nesse enigmtico conceito de algo, que os mestres aceitam como dogma e que lembra as palavras de Cristo: No sou eu que fao as obras, o Pai que as faz; eu, de mim, nada posso fazer. (N. do T.) 14. O que o mestre quer dizer que a meditao se incorpora de tal forma em seus discpulos que eles e ela se transformaram numa nica coisa, inseparvel e indissolvel. 15. O mestre se dirige ao autor e sua mulher. No nos esqueamos de que ela tambm fizera o curso, apesar de Herrigel no se referir ao seu aprendizado, talvez por achar que estaria cometendo uma profanao se abordasse de fora a experincia da mulher ou de quem quer que fosse. (N. do T.) 16. Herrigel se refere ao livro de Suzuki intitulado Zen Buddhism and its Influence on Japanese Culture, publicado pela Eastern Buddhist Society de Quioto, em 1938 e traduzido para o alemo com o ttulo de Zen un die Kultur Japans. (N.doT.) 17. Os surrealistas franceses adotaram o principio da criture automatique numa tentativa, at ento original no Ocidente, de se desembaraarem do intelecto e de deixar fluir toda a atividade

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    psquica sem qualquer bloqueio, exatamente como o pintor que trabalha sob inspirao zen-budista. O curioso que os dadastas, que os precederam e influenciaram, pregavam um conceito de vazio que se confundia com o niilismo, e que por isso nada tinha a ver com o Zen. (N. do T.) 18. Guerreiros da poca do Japo feudal (sculos XVIII e XIX), embora suas origens ou as do seu esprito remontem ao sculo IV. (N. do T.) 19. A alegria de viver um dos mais dos mais venerados princpios do zen-budismo, pois s atravs dela seus adeptos sabem que podem vencer o seu inimigo mais forte: o medo. (N. do T.) 20. Foi neste mestre que Takuan se inspirou para escrever o seu tratado intitulado A impassvel compreenso. 21. Antigo chefe militar do Japo. (N. do T.) 22. O autor se refere ao salto originrio (Ursprung), imagem muito usada pelo filsofo alemo Martin Heidegger, para quem o salto d origem (er-springt) ao prprio fundamento da investigao. (N. do T.)

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    INTRODUO

    Por Diasetz T. Suzuki

    O que nos surpreende na prtica do tiro com arco1 e na de outras artes que se cultivam no Japo (e provavelmente tambm em outros pases do Extremo Oriente) que no tem como objetivo nem resultados prticos, nem o aprimoramento do prazer esttico, mas exercitar a conscincia, com a finalidade de faz-la atingir a realidade ltima2. A meta do arqueiro no apenas atingir o alvo; a espada no empunhada para derrotar o adversrio; o danarino no dana unicamente com a finalidade de executar movimentos harmoniosos. O que eles pretendem, antes de tudo, harmonizar o consciente com o inconsciente.

    Para ser um autntico arqueiro, o domnio tcnico insuficiente, E necessrio transcend-lo, de tal maneira que ele se converta numa arte sem arte, emanada do inconsciente.

    No tiro com arco, arqueiro e alvo deixam de ser entidades opostas, mas uma nica e mesma realidade. O arqueiro no est consciente do seu eu, como algum que esteja empenhado unicamente em acertar o alvo. Mas esse estado de no-conscincia s possvel alcanar se o arqueiro estiver desprendido de si prprio, sem, contudo, desprezar a habilidade e o preparo tcnico. Dessa maneira, o arqueiro consegue um resultado em tudo diferente do que obtm o esportista, e que no pode ser alcanado simplesmente com o estudo metdico e exaustivo.

    Esse resultado, que pertence a uma ordem to diferente da meramente esportista, se chama satri, cujo significado aproximado intuio, mas que nada tem a ver com o que vulgarmente assim se denomina. Prefiro, por isso, cham-lo de intuio prjnica. Podemos traduzir prajn como sabedoria transcendental, embora essa expresso tampouco reflita os mltiplos e ricos matizes contidos nessa palavra, porquanto se trata de uma intuio especial,

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    que capta simultaneamente a totalidade e a individualidade de todas as coisas. Essa intuio reconhece, sem nenhuma espcie de meditao, que o zero o infinito e que o infinito o zero. E isso no constitui uma indicao simblica ou matemtica, mas uma experincia diretamente apreensvel, resultante de uma experincia direta. Psicologicamente falando, o satri consiste numa transcendncia dos limites do ego. Do ponto de vista lgico, a percepo da sntese da afirmao e da negao. Metafisicamente, a apreenso intuitiva de que ser vir a ser e vir a ser ser.

    A diferena mais marcante entre o Zen e as demais doutrinas de ndole religiosa, filosfica e mstica que, sem jamais sair da nossa vida cotidiana, com tudo o que ela tem de concreto e prtico, o Zen tem qualquer coisa que o mantm acima e alm da banalidade do cotidiano.

    Aqui chegamos ao ponto de contacto entre o Zen, o tiro com arco e as demais artes, como esgrima, o arranjo de flores, a cerimnia do ch, a dana, a pintura etc.

    O Zen a conscincia cotidiana, de acordo com a expresso de Baso Matsu (morto em 788). Essa conscincia cotidiana no outra coisa seno dormir quando se tem sono e comer quando se tem fome. Quando refletimos, deliberamos, conceptualizamos, o inconsciente primrio se perde e surge o pensamento. J no comemos quando comemos, nem dormimos quando dormimos. Dispara-se a flecha, mas ela no se dirige diretamente ao alvo e este no est onde devia estar. O clculo verdadeiro se confunde com o falso. A confuso introduzida no esprito do arqueiro se traduz em todos os sentidos e em todos os domnios.

    O homem definido como um ser pensante, mas suas grandes obras se realizam quando no pensa e no calcula. Devemos reconquistar a ingenuidade infantil, atravs de muitos anos de exerccio na arte de nos esquecermos de ns prprios. Nesse estgio, o homem pensa sem pensar. Ele pensa como a chuva que cai do cu, como as ondas que se alteiam sobre os oceanos, como as estrelas que iluminam o cu noturno, como a verde folhagem que brota na paz do frescor primaveril. Na verdade, ele as ondas, o oceano, as estrelas, as folhas.

    Uma vez que o homem alcance esse estado de evoluo espiritual, ele se torna um artista Zen da vida. Ele no precisa, como o pintor, de telas, pincis e tintas; nem como o arqueiro, do arco, da flecha, do alvo e dos demais acessrios. Ele tem seus

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    membros, seu corpo, sua cabea e os rgos que constituem seu corpo. Sua vida, no Zen, se expressa por meio de todos esses instrumentos importantes, como manifestaes suas. Suas mos e os seus ps so os pincis. O universo a tela sobre a qual ele pinta sua vida durante setenta, oitenta, noventa anos. Esse quadro se chama a histria.

    Hoyen de Gosozan (morto em 1104) disse: Eis um homem que converte o vazio do espao numa folha de papel, as ondas do mar em tinta e o Monte Sumeru em pincel para escrever estas cinco slabas: so-shi-sai-rai-i3. Diante dele eu estendo meu zagu e me inclino profundamente4. Poder-se-ia perguntar o que significa essa maneira fantstica de escrever. Por que digno da mais alta venerao algum capaz disso? Um mestre do Zen talvez respondesse: Como quando tenho fome; durmo quando estou com sono. Se seu esprito estiver voltado para a natureza, ele tambm poderia dizer: Ontem fazia um belo dia e hoje chove. Mas para o leitor, a pergunta ainda subsiste: Onde est o arqueiro? Neste maravilhoso livro, o professor Herrigel, filsofo alemo que viveu durante muitos anos no Japo e se dedicou ao tiro com arco para poder compreender o Zen, nos transmite sua experincia de uma maneira luminosa. Graas limpidez do seu estilo, o leitor do Ocidente no ter dificuldade em penetrar na essncia dessa experincia oriental, at agora to pouco acessvel.

    Ipswich, Massachusetts, maio de 1953

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    Estabelecer, primeira vista, um paralelo entre o tiro com arco (seja qual for o conceito que dele se tenha) e o Zen parece ser uma intolervel depreciao deste ltimo. Embora, com generosa complacncia, aceitemos para o tiro com arco a qualificao de arte, dificilmente algum ir nela buscar outra coisa alm da prtica de um esporte. Se assim pensar o leitor, esperar encontrar neste livro um relato sobre faanhas assombrosas dos arqueiros japoneses, que gozam do privilgio de contar com uma tradio venervel e ininterrupta do manejo do arco e da flecha. Apenas h algumas geraes, o Extremo Oriente trocou os antigos meios de combate por armamentos modernos, mas esse fato no impediu que eles continuassem presentes na vida daqueles pases. Pelo contrrio, so cada vez mais amplos os adeptos dedicados a tais prticas.

    No se poder, ento, esperar uma descrio do modo peculiar da prtica do tiro com arco, tal como ele praticado e consagrado no Japo como esporte nacional ? No, porque esta suposio est distante da realidade. O tiro com arco, no sentido tradicional, isto , respeitado como arte e honrado como preciosa herana cultural, no considerado pelos japoneses como simples esporte que se aperfeioa com um treinamento progressivo, mas como um poder espiritual oriundo de exerccios nos quais o espiritual se harmoniza com o alvo. No fundo, o atirador aponta para si mesmo e talvez em si mesmo consiga acertar.

    Para muitos leitores, essa abordagem pode parecer enigmtica. Como possvel que o tiro com arco, praticado no passado como lutas mortais e sem se ter mantido sequer como esporte nacional, tenha se transformado num sutil exerccio espiritual? Para que servem, ento, o arco, a flecha, o alvo? No se estar renegando a antiga, viril e honesta arte do tiro com arco, ao transform-la em algo nebuloso e impreciso, quase fantstico?

    preciso lembrar que, depois de perdida toda a utilidade nos combates e competies, o esprito dessa arte se manifestou de maneira ntida e espontnea. Assim, um erro afirmar-se que esse esprito tenha surgido recentemente, uma vez que sempre foi inerente ao tiro com arco, desde os seus primrdios. Mas sua

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    tcnica (depois de ter perdido qualquer importncia para o combate) no se converteu num passatempo ameno, sem sentido e seriedade. A Doutrina Magna do tiro com arco nos diz outra coisa. Segundo ela, desde os seus primrdios, trata-se de uma questo de vida e morte, na medida em que uma luta do arqueiro consigo mesmo. Essa forma de luta no uma medocre contrafaco, mas sim o que inspira e sustenta toda a luta contra o mundo exterior e, talvez, contra um adversrio de carne e osso.

    A natureza misteriosa dessa arte se revela unicamente neste combate do arqueiro contra ele mesmo, e por isso seu ensinamento nada tem de essencial, se prescindir da aplicao prtica daquilo que em seu tempo exigiam as lutas cavalheirescas.

    Quem se dedicar, nos dias de hoje, a esta arte, tem a vantagem de no sucumbir tentao de ofuscar ou simplesmente impedir com a proposio de fins utilitrios a compreenso da Doutrina Magna, por mais que oculte de si mesmo esses fins. Porque, e nisso esto de acordo os mestres arqueiros de todos os tempos, a verdadeira compreenso dessa arte s possvel queles que dela se aproximam com o corao puro, despido de qualquer preocupao. Se se perguntar, desse ponto de vista, aos mestres arqueiros japoneses sobre esse enfrenta-mento do arqueiro consigo mesmo, sua resposta soar mais do que misteriosa. Porque para eles o combate consiste no fato de que o arqueiro se mira e no entanto no se atinge, e que por vezes ele pode se atingir sem ser atingido, de maneira que ser simultaneamente o que mira e o que mirado, o que acerta e o que acertado. Ou, para nos utilizarmos de uma expresso cara aos mestres, preciso que o arqueiro, apesar de toda a ao, se converta num ser imvel para, ento, se dar o ltimo e excelso fato: a arte deixa de ser arte, o tiro deixa de ser tiro, pois ser um tiro sem arco e sem flecha; o mestre volta a ser discpulo; o iniciado, principiante; o fim, comeo, e o comeo, consumao.

    Para os ocidentais, habituados a conceitos mais claros, tais formulaes familiares aos habitantes do Extremo Oriente so de difcil apreenso, levando quase sempre perplexidade. por essa razo que convm irmos buscar sua origem longnqua.

    No nenhum segredo o fato de que no Japo as artes tm no budismo a sua raiz comum. Essa constatao vlida tanto para a arte dos arqueiros, como para a pintura, para a arte dramtica, da esgrima, da cerimnia do ch e dos arranjos florais. Isso significa, em primeiro lugar, que todas essas artes pressupem e, segundo sua ndole, cultivam conscientemente uma atitude

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    espiritual que em sua forma mais elevada caracterstica do budismo, e determinam as caractersticas essenciais que devem ter os sacerdotes que as difundem.

    importante lembrarmos que ao, falar em budismo, no temos em mente o budismo meramente especulativo (que, por ter sido divulgado em livros e artigos acessveis, o nico que o Ocidente conhece), mas o budismo dhyanas, chamado de Zen no Japo. Mesmo naqueles que supem conhec-lo baseados em experincias marcantes e poderosas, os rgos habituais da compreenso no conseguem capt-lo, pois ele no uma simples especulao, mas experincia nica que o intelecto no pode conceber. Em resumo: s o conhece quem o ignora.

    Com o objetivo de vivenciar essas experincias, o budismo Zen segue por caminhos que, atravs de um recolhimento metdico e sistemtico, conduzem o homem a perceber, no mais profundo da sua alma, o inefvel que carece de fundo e de forma. Em relao ao tiro com arco, isso significa (expresso de maneira bastante aproximada e talvez por isso passvel de uma interpretao errnea) que os exerccios espirituais suscetveis de constituir uma arte da tcnica esportiva sejam exerccios msticos. O tiro com arco no persegue um resultado exterior, com o uso do arco e da flecha, mas uma experincia interior, muito mais rica.

    Arco e flecha so, por assim dizer, nada mais do que pretextos para vivenciar algo que tambm poderia ocorrer sem eles; pois so apenas auxiliares para o arqueiro dar o salto ltimo e decisivo6. Assim, nada melhor nos ocorre do que recorrer a exposies dos adeptos do Zen com o objetivo de nos aprofundarmos na compreenso desse assunto. Assim, por exemplo, D. T. Suzuki, em seus Essays on Zen-Buddhism7, demonstrou que a cultura japonesa e o Zen esto intimamente ligados, de maneira que as artes japonesas, a atitude espiritual do samurai, o estilo de vida nipnico e at certo ponto sua moral, sua esttica e sua postura intelectual esto fortemente impregnadas dos fundamentos do Zen. Por isso, so quase incompreensveis para quem no esteja familiarizado com ele.

    Os livros de Suzuki, bem como os de outros estudiosos do assunto, tm despertado um interesse significativo. Todos concordam que o budismo dhyana nascido na ndia, e que depois de muitas transformaes atingiu sua maturidade na China foi adotado e cultivado pelo Japo, que dele fez uma tradio viva que subsiste at hoje. com essa maneira Zen de viver que ns iremos nos familiarizar.

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    Porm, em que pesem os esforos empreendidos pelos divulgadores do Zen, inegvel que continua sendo muito pouco o que ns, ocidentais, temos conseguido apreender da sua essncia. Como se se opusesse a toda penetrao, nossas tentativas de explor-lo mediante a intuio e a empatia logo se deparam com obstculos intransponveis. Envolto em trevas espessas, o Zen se nos apresenta como o enigma mais estranho proposto pela vida espiritual asitica: insolvel e, no obstante, irresistivelmente atraente.

    A origem dessa penosa impresso de inacessibilidade iremos encontrar na maneira como se tem apresentado o Zen aos no-asiticos. Nenhuma pessoa razovel ir exigir do budista zen, que vive na verdade inconcebvel e inexprimvel, que ele tente apresentar sequer um esboo das experincias que o libertaram e transformaram. Isso porque o Zen est aparentado com o mais puro e contemplativo misticismo. Quem jamais teve experincias msticas, est e ficar excludo. Essa lei, que rege todo misticismo genuno, no admite excees, e o fato de que se dispe de um nmero muito grande de textos sagrados no entra em contradio com ela, j que estes tm a peculiaridade de revelar seu sentido vivificante unicamente a quem j vivenciou todas as experincias decisivas, de maneira que seja capaz de extrair daqueles textos a confirmao daquilo que, independentemente deles, experimentou.

    Por outro lado, para o nefito, aqueles textos nada significam, pois ele incapaz de ler nas entrelinhas, o que lhe causar grande confuso, mesmo que deles se aproxime com a maior delicadeza e com o esquecimento de si mesmo. O Zen, como toda mstica, acessvel apenas ao verdadeiro mstico, ou seja, a algum que no est exposto tentao de obter, de maneira sub-reptcia, o que a prpria experincia mstica nega.

    Outrossim, a existncia de algum que foi purificado pelo fogo da verdade suficientemente convincente para que se possa fazer pouco caso dela. Assim, no exige muito quem, cedendo a impulsos de uma grande afinidade espiritual, e em busca do poder que produz resultados to poderosos (no falamos aqui do mero curioso, bvio), espera que o zen-budista descreva, pelo menos, o caminho que o conduziu sua meta.

    Nenhum mstico, nenhum zen-budista ser mais o mesmo depois que houver dado o primeiro passo e atingir sua autoperfeio. Quantas coisas ter de vencer e deixar para trs at que, por fim, encontre a verdade... Quantas vezes ser acometido, durante sua caminhada, da sensao de estar

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    aspirando o impossvel... E, no obstante, chegar o dia em que o impossvel se transformar no possvel e, mais ainda, no natural. Ento, no ser lcito esperarmos uma descrio minuciosa de to longa e cansativa jornada que nos permita, pelo menos, perguntar se nos atreveremos a percorr-la?

    Porm, tais descries faltam quase que por completo na literatura Zen. Isso se deve, por um lado, ao fato de que o adepto do Zen se recusa sistematicamente a oferecer uma espcie de Manual para alcanar a bem-aventurana, pois sabe pela prpria experincia que ningum capaz de percorrer o caminho do Zen e nem chegar ao seu final sem a ajuda de um mestre. Sabe tambm como decisivo que suas vivncias, vitrias e transformaes, embora suas, sejam vencidas e modificadas muitas e muitas vezes, at que tudo o que seja seu tenha sido aniquilado. somente a esse preo que ele pode encontrar a base da experincia que, sintetizada na verdade universal, o desperta para uma vida que no mais ser sua vida pessoal, cotidiana. Transmudado a esse estado, ele vive sem que seja ele que esteja vivendo.

    Compreende-se, assim, por que o adepto do Zen evita falar de si mesmo e da sua evoluo. No porque o considere uma tagarelice imodesta, mas porque v nisso uma traio ao esprito do Zen. A simples deciso de dizer qualquer coisa a respeito do Zen exige um srio exame de conscincia, pois tem diante de si o clebre exemplo de um dos maiores mestres que, interrogado sobre a natureza do Zen, permaneceu em silncio, imutvel como se nada tivesse ouvido. Assim, concebvel que o adepto verdadeiro sucumba tentao de prestar contas sobre o que deu de si e sobre o que no lhe faz falta.

    Diante disso, seria irresponsvel de minha parte oferecer frmulas complicadas e paradoxais, expostas em palavras de efeito. Meu desejo , ao contrrio, fazer reluzir a essncia do Zen atravs do modo como se manifesta numa das artes por ele eleita. Esse reluzir no , porm, a iluminao, na acepo de um termo to fundamental para o Zen, mas insinua, pelo menos, a presena de algo, como o sbito claro de um relmpago longnquo que vemos atravs da neblina espessa8. Apreendida deste modo, a arte do tiro com arco representa, por assim dizer, um curso preparatrio ao Zen, pois graas a ela possvel que um acontecimento primeira vista incompreensvel se torne transparente,, o que por si mesmo antes era impossvel.

    Do ponto de vista factual, partindo de cada uma das artes mencionadas anteriormente, possvel iniciar-se uma caminhada

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    com destino ao Zen. Contudo, parece-me que posso alcanar minha meta de maneira mais eficiente se descrever a trajetria percorrida por um discpulo da arte dos arqueiros.

    Durante quase seis anos de permanncia no Japo, fui instrudo por um dos mais eminentes mestres daquela arte. Tratarei, aqui, de expor os acontecimentos ocorridos durante to longo aprendizado de maneira mais clara possvel, pois estarei falando da minha experincia pessoal. Mas para ser compreendido, ainda que de maneira aproximada porque mesmo a instruo preliminar oferece muitos enigmas , nada mais posso fazer alm de relatar com detalhes todos os obstculos que tive que vencer e todas as inibies que fui obrigado a superar, antes de conseguir penetrar no esprito da Doutrina Magna.

    Falo de mim mesmo porque no vejo outra possibilidade de atingir a minha meta. Pela mesma razo, limitar-me-ei a descrever o essencial, para que ele se destaque com maior nitidez. E abster-me-ei deliberadamente de descrever o ambiente onde se realizou meu aprendizado e de evocar cenas fixadas na minha memria e, sobretudo, de esboar a figura do meu mestre, em que pese o fascnio que ele ainda exerce em mim. Limitar-me-ei a descrever a arte do tiro com arco, tarefa muitas vezes mais difcil do que sua prpria aprendizagem. E levarei minha exposio at o ponto em que se vislumbram os remotos horizontes por trs dos quais o Zen respira.

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    Cabe-me explicar por que me dediquei ao estudo do Zen e por que, a fim de me facilitar seu estudo, me propus a aprender a arte dos arqueiros. J nos meus tempos de universitrio, como que animado por um misterioso impulso, ocupava-me com o estudo do misticismo, no obstante viver numa poca que demonstrava pouco interesse por tais inquietaes. Mas apesar de todos os meus esforos, sempre tive conscincia de que no poderia apreender os ensinamentos msticos de um ponto de vista externo. Eu era capaz, verdade, de compreender o que se pode chamar de fenmeno mstico primrio, mas no me era possvel transpor o crculo que, como uma alta muralha, cerca o misterioso.

    Na abundante literatura sobre o misticismo, no encontrei o que buscava, e assim, desiludido e desanimado, cheguei concluso de que s quem verdadeiramente se isola capaz de aprender o que significa isolamento, e s quem leva uma vida contemplativa est completamente livre e desprendido de si para a unio com o Deus supradivino. Eu compreendera que no havia outro caminho que conduzisse ao misticismo, a no ser o da prpria vivncia e o do sofrimento. Se faltam essas premissas, fica apenas o inconseqente palavrrio.

    Como se chega a ser mstico? Como se alcana o estado do verdadeiro isolamento? Separado dos grandes mestres pelo abismo dos sculos, o homem moderno, cujas condies de vida so to peculiares, poder encontrar um caminho de acesso? Minhas perguntas permaneciam sem respostas satisfatrias, embora eu soubesse da existncia de etapas e de estaes de um caminho que prometia conduzir-me ao meu objetivo final. Mas para percorr-lo faltavam instrues metodolgicas precisas que pudessem, pelo menos durante algum tempo, substituir o mestre. Porm, mesmo supondo que tais instrues existissem, seriam elas suficientes? Ser que elas s poderiam criar em ns a predisposio de receber aquilo que nem a melhor metodologia pode oferecer, de modo que nenhuma preparao dada pelo homem capaz de impor fora a vivncia mstica? Diante de mim, as portas permaneciam fechadas, mas eu no poderia deixar de for-las. E, quando o desejo que eu teimava em manter ia desaparecendo, eu ansiava que ele voltasse com maior

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    intensidade. Assim, logo depois de ter sido designado professor-adjunto,

    quando me foi oferecida uma ctedra de histria da filosofia na Universidade Imperial de Tohoku, recebi, com particular alegria, a oportunidade de conhecer o Japo e os japoneses e de entrar em relao com o budismo, suas prticas contemplativas e sua mstica. Eu j sabia que existiam no Japo uma tradio cuidadosamente conservada, uma prtica viva do Zen, uma didtica consagrada pelos sculos e, o mais importante, mestres possuidores de uma assombrosa experincia na arte de orientao espiritual.

    To logo me instalei provisoriamente no meu novo ambiente, tratei de concretizar os meus desejos. De incio, trataram de me dissuadir, no sem mostrar grande perplexidade. Afinal, no se tinha notcia de algum europeu que se houvesse dedicado seriamente ao Zen e, como ele s poderia ser transmitido pela prtica, eu no iria me conformar em receber apenas ensinamentos tericos.

    Perdi muito tempo antes que compreendessem por que queria dedicar-me ao Zen no-especulativo... Ento me informaram que, para um europeu, seria pouco menos do que intil tratar de penetrar no mbito da vida espiritual asitica, a mais estranha do planeta, a no ser que eu comeasse a estudar uma das artes japonesas vinculadas ao Zen. A idia de ter que cursar uma espcie de escola primria me assustou. Eu estava disposto a fazer qualquer concesso para poder aproximar-me paulatinamente do Zen, e at o mais penoso desvio era prefervel ausncia de um caminho.

    Minha mulher aderiu, sem muita hesitao, ao estudo de arranjos florais e pintura, enquanto que para mim era atraente o tiro com arco, pois eu supunha (erradamente, como descobriria mais tarde), que minhas experincias com fuzil e pistolas seriam teis.

    Pedi a um dos meus colegas, Zozo Komachiya, professor de direito que, desde os vinte anos de idade, tomava aulas de tiro com arco e era considerado o melhor conhecedor dessa arte na Universidade, que me recomendasse como aluno ao seu preceptor, o clebre mestre Kenzo Awa.

    De incio, o famoso mestre recusou meu pedido, alegando que j se havia deixado convencer por um estrangeiro para ensin-lo e que os resultados foram muito desagradveis. Por isso, no estava disposto a aceitar um novo pedido, pois temia prejudicar o aluno com o esprito peculiar dessa arte. Somente quando lhe assegurei

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    que um mestre que tomava to a srio sua misso tinha o direito de tratar-me como o mais jovem dos discpulos porque eu no desejava aprender a arte para divertir-me, mas para penetrar na Doutrina Magna , ele me aceitou, a mim e minha mulher, como alunos. Era costume no Japo iniciar tambm as mulheres nesta arte, motivo pelo qual a mulher do meu mestre e as suas filhas se exercitavam assiduamente.

    Assim comeou um rduo e intenso aprendizado, durante o qual participava como intrprete, para nossa satisfaco, o professor Komachiya, que com tanta insistncia havia intercedido em nosso favor, oferecendo-se quase como um avalista.

    Por outro lado, a oportunidade de assistir, na qualidade de ouvinte, s aulas de arranjos florais e de pintura freqentadas por minha mulher, me permitia obter, mediante comparaes com outras artes complementares, uma base mais ampla para auxiliar minha compreenso.

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    Desde a primeira aula, fomos alertados de que o caminho que conduz arte sem arte spero. Primeiramente, o mestre nos mostrou os arcos japoneses e nos explicou que sua extraordinria elasticidade era resultado de sua construo peculiar e das caractersticas do bambu, ou seja, do material de que eram construdos. Depois, ele nos chamou a ateno para a forma nobre que possui o arco, de quase* dois metros de comprimento, quando armado com a corda, e que se manifesta de maneira surpreendente quanto mais tensionado. Quando estiramos a corda ao mximo, disse-nos o mestre, o arco abarca o universo, e por isso importante saber curv-lo adequadamente. Em seguida, escolheu o melhor e o mais resistente dos seus arcos e, numa atitude solene, fez a corda vibrar repetidas vezes, extraindo um som ao mesmo tempo grave e agudo que, depois de se escutar algumas vezes, jamais se esquece, to original e irresistvel a maneira como ele chega ao corao. Desde tempos remotos se atribui a esse som o misterioso poder de afastar os maus espritos: eu podia, ento, compreender por que tal crena se arraigara no povo japons.

    Depois dessa significativa introduo, purificadora e consagratria, o mestre nos convidou a observ-lo atentamente. Colocou uma flecha, estirou o arco de tal maneira que cheguei a temer que no resistisse a encerrar o universo, e finalmente disparou. A cena no s pareceu muito bela, como fcil de ser imitada. Ento nos ordenou: Faam o mesmo, mas lembrem-se de que o tiro com arco no destinado a fortalecer os msculos. No estirem a corda aplicando todas as suas foras, mas procurando dar trabalho unicamente s mos, enquanto os msculos dos braos e dos ombros ficam relaxados, como se estivessem contemplando a ao, sem nela intervir. Somente quando tiverem aprendido isso que cumpriro uma das condies para que o tiro se espiritualize.

    Logo depois de pronunciar tais palavras, tomou minhas mos e guiou-as lentamente pelas fases do movimento que em seguida teriam que executar, como para acostumar-me quela nova experincia.

    Logo na primeira tentativa, realizada com um arco de resistncia

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    mdia, percebi que precisava empregar muita fora para curv-lo. A isso se somava a dificuldade de que o centro do arco japons, ao contrrio do europeu, no se encontra na altura dos ombros, no oferecendo, por isso, uma espcie de ponto de apoio. Assim, uma vez colocada a flecha, temos que ergu-lo com os braos quase estendidos, de tal maneira que as mos do arqueiro fiquem acima da sua cabea. Por conseguinte, no se pode fazer outra coisa a no ser separ-las uniformemente, direita e esquerda, e, quanto mais se afastam uma da outra, mais descem, descrevendo curvas, at que a esquerda, que sustenta o arco, se encontra com o brao estendido altura dos olhos, e a direita, que estira a corda, com o brao dobrado altura da articulao do ombro. A ponta da flecha de quase um metro de comprimento sobressai muito pouco da borda exterior do arco, to grande a sua envergadura.

    O arqueiro deve permanecer naquela posio durante alguns momentos antes de disparar a flecha. A fora necessria para sustentar o arco de maneira to inslita fez com que em poucos instantes minhas mos comeassem a tremer e a respirao ficasse mais difcil. Durante semanas, essas reaes se repetiram. O gesto de estirar o arco continuou a exigir de mim grande esforo e, por mais que eu me exercitasse, no chegou a espiritualizar-se. Para consolar-me, pensei que se tratava de um ardil que por alguma razo o mestre no queria revelar-me, o que despertou minha curiosidade.

    Aterrado com obstinao ao meu objetivo, continuei praticando. O mestre observava atentamente meus esforos, corrigia serenamente a rigidez da minha postura, elogiava meu zelo, censurava-me pelo desperdcio de energia e deixava-me prosseguir. Vez por outra, exclamava em minha lngua: Relaxe-se!, enquanto colocava os dedos nos pontos dolorosos do meu corpo, sem nunca perder a pacincia nem a afabilidade. Porm, chegou o dia em que fui eu quem perdeu a pacincia e lhe confessei que me era simplesmente impossvel estirar o arco da maneira indicada. Se o senhor no consegue, replicou o mestre, porque respira de maneira inadequada. Depois de inspirar, solte o ar lentamente, at que a parede abdominal esteja moderadamente tensa, retendo-o por alguns segundos. Em seguida, expire da maneira mais lenta e uniforme possvel e, depois de um breve intervalo, volte a aspirar rapidamente, continuando, assim, a inspirar e expirar com um ritmo que pouco a pouco se instalar por si s. Se fizer isso de maneira correta, sentir que o tiro se torna cada vez mais fcil, pois essa respirao no s lhe permitir

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    descobrir a origem de toda fora espiritual, mas far brot-la como um manancial cada vez mais abundante, irradiando-se pelos seus membros. Em seguida, para me demonstrar o que havia dito, armou o seu forte arco e me convidou a colocar-me por trs dele, a fim de poder apalpar-lhe os msculos dos braos. Com efeito, estavam livres de tenso, como se no estivessem fazendo esforo. Pratiquei a nova respirao sem arco e flecha at ela se converter numa coisa natural. At a leve tortura que me acometera desde o incio das aulas desapareceu. Nosso mestre dava tanta importncia expirao lenta e uniforme que deveria desaparecer paulatinamente que, para melhor exercit-la e control-la, fazia-nos acompanh-la de um zumbido. Somente quando, com o ltimo vestgio do hlito, o rudo tambm se extinguia, que nos autorizava a voltar a inspirar. Ele dizia que a inspirao une e rene tudo o que justo e a expirao libera e consuma, vencendo toda restrio. Mas ns no ramos, ento, capazes de compreender essa linguagem.

    Em seguida, o mestre passou a relacionar a respirao com o tiro com arco, porque ela no se pratica como um fim em si mesma. A ao contnua de estirar o arco e disparar a flecha se dividia nas seguintes fases: segurar o arco, colocar a flecha, levantar o arco, estir-lo e mant-lo no mximo de tenso e disparar. Cada fase se iniciava com uma inspirao, apoiava-se no ar retido no abdome e terminava com uma expirao. Tudo isso era possvel porque a respirao se adaptara de maneira natural, no apenas acentuando significativamente as diferentes posturas e os movimentos, mas entrelaando-os ritmicamente em cada um de ns, segundo as caractersticas respiratrias individuais. No obstante estar decomposto em vrias fases sucessivas, o procedimento de cada um de ns dava a impresso de um acontecimento nico, que vive de si e em si mesmo e que nem de longe pode ser comparado com um exerccio de ginstica, ao qual podem ser adicionados ou substitudos gestos sem que lhe destruam o carter e o significado.

    No me possvel recordar aqueles dias sem deixar de lembrar como era difcil, no princpio, fazer com que a respirao surtisse o efeito desejado pelo mestre. Eu respirava de forma tecnicamente correta, mas quando, ao estirar o arco, me concentrava para que os msculos dos braos e dos ombros permanecessem relaxados, a musculatura das pernas se contraam independentemente da minha vontade. Era como se me fizessem falta uma base firme de apoio e uma postura slida e, como Anteu9, tivesse que extrair toda a minha energia da terra.

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    Muitas vezes, o mestre no tinha outro remdio a no ser apertar subitamente algum msculo das minhas pernas, em pontos particularmente sensveis. Quando, numa dessas ocasies, eu lhe disse, guisa de desculpa, que eu estava me esforando para permanecer relaxado, replicou: Este o seu maior erro: o senhor se esfora, s pensa nisso. Concentre-se apenas na respirao, como se no tivesse de fazer mais nada! Entretanto, passou muito tempo antes que eu conseguisse atender s suas exigncias. Mas consegui. Aprendi a deter-me na respirao to despreocupadamente que s vezes tinha a sensao de no respirar, mas de ser respirado, por estranho que parea. E embora, nas horas de meditao, eu me defendesse de to extravagante idia, j no podia duvidar que a respirao ocorria exatamente como o mestre havia prometido.

    Aos poucos e cada vez com maior freqncia, medida que se passavam os dias, consegui estirar o arco e mant-lo teso com o corpo relaxado, sem que pudesse explicar como aquilo estava ocorrendo. A diferena qualitativa entre essas poucas tentativas satisfatrias e as que com freqncia fracassavam fizeram com que eu comeasse a entender o que significava estirar o arco espiritualmente. Era este, pois, o quid da questo: no se tratava de nenhum ardil tcnico, que eu em vo queria descobrir, mas de uma respirao nova, que me abria inusitadas possibilidades de liberao. No digo tais palavras impensadamente: sei muito bem como grande, nesses casos, a tentao de sucumbir a uma forte influncia e, enredado por uma falsa iluso, superestimar o alcance de uma experincia que por si s inslita.

    O sucesso obtido por essa nova maneira de respirar era evidente demais, a despeito de todos os meus escrpulos, condicionados pela reflexo tpica que fazem os espritos positivos. Eu j conseguia estirar, relaxadamente, o arco rgido do mestre.

    Certa ocasio, durante uma longa conversa mantida com o professor Komachiya, perguntei-lhe por que o mestre havia observado impassivelmente e durante tanto tempo meus esforos infrutferos para estirar o arco espiritualmente. No teria sido mais fcil que ele tivesse me ensinado, desde o princpio, a respirao correta? Um grande mestre, respondeu-me, tem que ser ao mesmo tempo um grande educador, pois para ns esses atributos so inseparveis. Se o aprendizado tivesse sido iniciado com os exerci'cios respiratrios, jamais o senhor se convenceria da sua influncia decisiva. Era preciso que o senhor naufragasse nos prprios fracassos para aceitar o colete salva-vidas que ele lhe

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    lanou. Creia-me, eu sei por experincia prpria que o mestre conhece o senhor e cada um de seus discpulos melhor do que a ns mesmos. Ele l nas nossas almas muito mais do que estamos dispostos a admitir.