eu te vejo - trilogia dei sensi - livro 01 - irene cao.pdf

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Copyright © 2013 RCS Libri S.p.A., Milano

Todos os direitos desta edição reservados àEDITORA OBJETIVA LTDA.Rua Cosme Velho, 103Rio de Janeiro – RJ – CEP: 22241-090Tel.: (21) 2199-7824 – Fax: (21) 2199-7825www.objetiva.com.br

Título originalIo ti guardo

CapaMarcela Perroni sobre original de FrancescaLeoneschi

Imagens de capaUmberto Nicoletti

RevisãoLilia ZanettiCristiane Pacanowski

Coordenação de e-bookMarcelo Xavier

Conversão para e-bookAbreu’s System Ltda.

CIP-BRASIL. CATALOGAÇÃO NA PUBLICAÇÃOSINDICATO NACIONAL DOS EDITORES DELIVROS, RJ

C86eCao, Irene

Eu te vejo [recurso eletrônico] / Irene Cao;tradução Aline Leal. – 1. ed. – Rio de Janeiro: Ob-jetiva, 2014.

recurso digital

Tradução de: Io ti guardoFormato: ePubRequisitos do sistema: Adobe Digital EditionsModo de acesso: World Wide Web215p. ISBN 978-85-8105-177-2 (re-curso eletrônico)

1. Romance italiano. 2. Livros eletrônicos. I.Leal, Aline. II. Título.

13-05629 CDD: 853CDU: 821.131.3-3

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Para Manuel, meu irmão

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O amarelo absorve a luz do sol, muda para olaranja e, então, desaparece num vermelhovivo. Um corte, quase uma ferida, deixa en-trever pequenos grãos de um roxo brilhante.Meus olhos estão parados nesta romã háhoras. É apenas um detalhe, claro, mas tam-bém é a chave do afresco.

O tema é o rapto de Proserpina, mo-mento em que o severo senhor do inferno,um Plutão enrolado na nuvem púrpura desua vestimenta, agarra com força os quadrisda deusa que está pegando uma enormeromã às margens de um lago.

O afresco não é assinado, por isso o autorpermanece rodeado por uma aura de mis-tério. Sei apenas que viveu no início dos anos1700 e que deve ter sido um autêntico gênio,considerando o estilo do desenho, a granu-lação da cor e o delicado jogo de luz e som-bras. Estudou cada uma das pinceladas e euestou tentando não trair seu esforço de per-feição. A uma distância de séculos, minhatarefa é interpretar seu gesto criativo ereproduzi-lo no meu.

Este é o primeiro restauro de verdade noqual estou trabalhando completamente soz-inha. Aos 29 anos, este trabalho é umagrande responsabilidade, mas também umorgulho: desde que saí da Escola de Restauroesperava a minha chance, e agora que elachegou vou fazer de tudo para nãodesperdiçá-la.

Então, aqui estou eu, há horas em cimadesta escada, no meu macacão impermeável,

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de bandana vermelha para segurar meu ca-belo castanho estilo Chanel — mas algunscachos rebeldes teimam em escapar e cairsobre meus olhos —, e com o olhar fixo naparede. Felizmente não há espelhos por aqui,porque com certeza devo estar com o rostomarcado pelo cansaço e pelas olheiras. Masnão me importo. São os sinais visíveis daminha determinação.

Vendo-me friamente: sou eu mesma,Elena Volpe, sozinha no saguão imenso deum palácio antigo e desabitado há tempos,no coração de Veneza. E é exatamente aquique quero estar.

Passei uma semana inteira limpando ofundo do afresco e hoje, pela primeira vez,vou usar cores. Uma semana é muito, talvezdemais, mas não quis arriscar. É necessárioter muita cautela, porque basta um únicotoque errado para comprometer o trabalho

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inteiro. Como dizia um professor meu: “Sevocê limpar bem, já é meio trabalhoandado.”

Algumas partes do afresco estão total-mente estragadas e nesses pontos terei queme conformar em fazer um novo reboco como estuque. Culpa da umidade de Veneza, quepenetra em tudo: na pedra, na madeira, notijolo. Mas em volta das áreas danificadas háoutras em que as cores conservaram todo oseu brilho.

Hoje de manhã, subindo na escada, dissea mim mesma: “Só vou descer quando tiverencontrado os tons certos para aquela romã.”Mas talvez eu tenha sido otimista demais...Nem sei quantas horas se passaram e aindaestou aqui, testando toda a paleta dos ver-melhos, dos laranjas e dos amarelos sem umresultado que me satisfaça. Já joguei foraoito potinhos de prova, onde misturo os póspigmentados com pouca água e algumas

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gotas de óleo para obter consistência. Estouprestes a me aventurar com o nono potinho,quando escuto um toque. Vem justamente dobolso do macacão. Infelizmente. É inútiltentar ignorá-lo. Por pouco não caio no chão.Agarro o celular e leio o nome piscando cominsistência no visor.

É Gaia, minha melhor amiga.— Ele, tudo bem? Estou na piazza Santa

Margherita, quer vir beber alguma coisa noRosso? Hoje está mais cheio que de costume,está ótimo, vem! — diz de um fôlego só, semperguntar se está incomodando ou simples-mente me dar a chance de responder.

Pronto, ela já está em sua fase relaçõespúblicas. Gaia trabalha para os bares mais namoda da cidade e da região do Vêneto, or-ganiza eventos e festas VIPs. Começa porvolta das quatro da tarde e continua diretoaté tarde da noite. Mas para ela não se tratasomente de um trabalho; é uma verdadeira

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vocação: aposto que, mesmo se não lhe pa-gassem, faria isso.

— Desculpe... Que horas são? — per-gunto, tentando conter sua avalanche depalavras.

— Seis e meia. Então, você vem?O Rosso é um bar frequentado pelos

jovens venezianos despreocupados, aqueletipo de gente que precisa de uma pessoacomo Gaia para decidir o que fazer com aspróprias noites.

Meu Deus, já é tão tarde assim? O tempovoou sem que eu percebesse.

— Ei, Ele... Você está aí? Tudo bem? Digaalguma coisa, droga... — Gaia grita e sua vozfura meus tímpanos. — Você está emburre-cendo com aquele afresco... Você tem que viraqui, imediatamente! É uma ordem!

— Puxa, Gaia, daqui a meia hora eu paro,prometo. — Respiro fundo. — Mas vou paracasa. Por favor, não fique chateada.

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— Claro que eu fico chateada, você nãopassa mesmo de uma boba! — desabafa.

Um clássico. É nosso jogo de papéis: doissegundos depois e ela está calma e feliz denovo. Ainda bem que Gaia não registra nen-hum dos meus “não”.

—Tudo bem, escute, então vá para casa,descanse um pouco e mais tarde vamos aoMolocinque. Só digo que temos dois in-gressos para a área VIP...

— Obrigada pela lembrança, mas nãofaço nenhuma questão de me enfiar naquelamultidão — apresso-me em dizer antes queela continue. Gaia sabe que não suporto con-fusão, que quase nunca bebo e que, paramim, dançar significa, na melhor dashipóteses, bater o pé contando o tempo... umtempo só meu, para falar a verdade. Soutímida, não levo jeito para esse tipo dediversão, sinto-me sempre deslocada. Masela não desiste: sempre tenta me arrastar

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para uma de suas noitadas. E, no fundo, em-bora nunca confesse, agradeço a ela por isso.

— Você já terminou de trabalhar? — per-gunto, tentando mudar o rumo da conversa.

— Sim, e hoje o dia foi incrível. Eu estavacom uma diretora russa. Ficamos três horasna Bottega Veneta olhando bolsas e botas decouro, então depois eu a levei a Balbi e lá amulher decidiu comprar dois vasos de Mur-ano. Aliás, na loja da Alberta Ferretti vi doisvestidos da nova coleção que parecem perfei-tos para você. De um bege que ficaria fofocom o castanho dos seus cabelos... Vamos láum dia desses, assim você experimenta.

Quando não está ocupada dizendo àspessoas aonde ir à noite, Gaia explica a elascomo gastar o próprio dinheiro: na prática, épersonal shopper. É aquele tipo de mulherque tem ideias claras sobre tudo e umagrande capacidade de convencer os outros.

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Tão grande que existe quem está disposto apagar para ser convencido.

Mas eu não: desenvolvi anticorpos em 23anos de amizade.

— Vamos, claro, assim você acaba com-prando para você, como sempre.

— Mais cedo ou mais tarde eu consigofazer com que você se vista decentemente.Você é um desafio permanente, minhaquerida, saiba disso!

Desde que éramos adolescentes Gaia levaadiante essa cruzada contra meu jeito, di-gamos, um pouco desleixado, de me vestir.Para ela, sair por aí de jeans e sapatos semsalto não representa uma alternativa con-fortável, mas um auto-sacrifício explícito eincompreensível. Se dependesse de Gaia, eutrabalharia todos os dias de minissaia e salto12, e pouco importa que eu seja obrigada asubir e descer mil vezes perigosíssimas esca-das de pintor ou que fique por horas em

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posições que eu não definiria exatamentecomo confortáveis. “Se eu tivesse as suaspernas...”, repete sempre. E, além disso, todavez repete o mantra de Coco Chanel: “Precis-amos estar sempre elegantes, todos os dias,porque o destino pode estar nos esperandona esquina.” E, de fato, ela não coloca os pésna rua sem estar com a maquiagem, o pen-teado e os acessórios perfeitos.

Às vezes, é incrível como eu e essa mulh-er vivemos em planetas tão diferentes. Senão fosse minha melhor amiga, provavel-mente eu não a suportaria.

— Mas, Ele — ela volta ao ataque, in-abalável. — Hoje à noite você tem que ir aoMolo...

— Puxa, Gaia, não fique chateada, já disseque não posso! — Quando cisma com umacoisa, me dá nos nervos.

— Mas Bob Sinclair vai estar lá!

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— Quem? — pergunto, enquanto naminha testa pisca “SEM REGISTRO”.

Gaia bufa, irritada.— O DJ francês, aquele famoso. Estava

no júri do Festival de Cinema semanapassada...

— Ah, então tá!— De qualquer maneira — continua,

como se nada pudesse ofendê-la —, sei porfontes seguras que vários famosos estarão naárea VIP, inclusive, escute bem... — faz umapausa estudada — ... Samuel Belotti!

— Ai, meu Deus, o ciclista de Pádua? —reclamo, indignada, com um tom de desap-rovação total. É um dos tantos meio namora-dos “famosos” que Gaia espalhou em algunscantos da Itália e do mundo.

— O próprio.— Não entendo o que você vê nele: é um

cretino arrogante, não sei mesmo onde vocêacha que ele é um gato. — Eu e Gaia não

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temos o mesmo gosto nem em relação ahomens.

— Ah, eu sei bem onde ele é gato... — dáuma risadinha.

— Tudo bem... — mudo de assunto. — Eele está a fim?

— Eu mandei uma mensagem pro celulardele. Não me respondeu, está com a dançar-ina da televisão agora. — Suspira. — Mas eunão desisto, porque não é que ele tenha medado um fora, exatamente... Acho que está sóganhando tempo.

— Não sei como você consegue conhecertanta gente, e talvez nem queira saber.

— Trabalho, querida, isso é só trabalho —diz, e posso imaginar muito bem o sorrisinhomalicioso que deve estar estampado em seurosto nesse momento. — As relaçõespúblicas, todo mundo sabe, exigem muitadedicação...

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— Na sua boca, as palavras “trabalho” e“dedicação” soam vazias, sem significado —provoco-a, escondendo uma pontinha de in-veja. Nisso eu gostaria de parecer com elaum pouco, admito. Eu sou super-rigorosa eresponsável. Ela, leve e descaradamenteirresponsável.

— Você não me admira, Ele. É minhamelhor amiga e não me admira! — ri.

— Tudo bem, vá ao Molo e divirta-se.Aliás, cuidado para não se cansar demais,querida!

— Claro que você vai dizer não de novo...Mas eu não estou nem aí e continuo in-sistindo, você sabe. Não me rendo, meuamor...

Claro que sei. Esse teatrinho é o nossojeito de dizermos que gostamos uma daoutra.

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— É que agora eu estou realmente nummau momento: não posso voltar às três,senão amanhã de manhã não levanto.

— Está bem, desta vez você venceu.Finalmente...— Mas você promete que a gente vai se

ver no fim de semana? — conclui, chegandoao que interessa.

— Prometo. A partir de sábado sou todasua.

O nono potinho de vermelho Ticianotambém tem que ser jogado fora: aproximeiuma ponta de cor à casca da romã e aindanão cheguei lá. Resignada, recomeço, masum barulho atrás de mim me distrai. Alguémentrou pelo portão principal e está subindo aescadaria de mármore: por um momentotemi uma surpresa de Gaia, mas, semdúvida, são passos masculinos. Desço compressa da escada, tomando cuidado para não

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tropeçar nos potinhos que deixei cair de-sordenadamente na rede de proteção.

A porta do saguão se abre e na entradasurge a figura magra de Jacopo Brandolini, oproprietário do palácio, além de meu cliente.

— Boa noite — cumprimento com umsorriso formal.

— Boa noite, Elena — retribui meu sor-riso. — Como vai o trabalho? — Olha ocemitério de potinhos estendido a nossos pésenquanto dá um nó, na altura do peito, nasmangas do pulôver, certamente de caxemira,sobre os ombros.

— Muito bem — minto e espanto-me coma minha desenvoltura, mas não estou comvontade de explicar os detalhes que, de todomodo, ele não entenderia. No entanto, tenhoque acrescentar algo para parecer profission-al: — Acabei a limpeza ontem mesmo e apartir de hoje posso me dedicar à cor.

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— Ótimo. Confio na senhora, está tudoem suas mãos — diz, erguendo o olhar atémim. Ele tem os olhos pequenos e azuis,duas fendas de gelo. — Como sabe, esteafresco é muito importante para mim. Queroque o resultado seja o melhor possível.Apesar de não ser assinado, se vê que é bem-feito.

Concordo.— O pintor com certeza era um grande

mestre — apresso-me em dizer.Brandolini sorri, revelando uma ponta de

satisfação. Tem 40 anos, mas parece ter umpouco mais. Seu sobrenome é antigo — édescendente de uma das mais famosasfamílias nobres de Veneza — e ele tambémpassa a ideia de ser um pouco antigo. É su-permagro, tem a pele transparente, o rostochupado e nervoso, os cabelos loiro-acin-zentados. E, além disso, veste-se como umvelho. Ou melhor, as roupas fazem um efeito

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estranho nele, um pouco retrô. Por exemplo,agora está usando calça Levi’s e uma camisade meia manga azul-clara. Mas quase pareceestar nadando dentro delas, de tão fino queé. E o conjunto tem algo de idoso que não seiexplicar bem. Ainda assim, diz-se que oconde provoca um sucesso discreto com asmulheres. É muito rico, não consigo encon-trar outras razões.

— Está correndo tudo bem aqui? — per-gunta, olhando ao redor para conferir se estátudo no lugar certo.

— Muito bem! — e solto a bandana nanuca, porque percebo que não estou nem umpouco apresentável assim.

— Pode pedir qualquer coisa a Franco. Seprecisar de material, pode mandar buscar.

Franco é o vigia do palácio. É um homen-zinho corpulento e muito simpático, mastambém discreto e silencioso. Em dez dias detrabalho, cruzei com ele apenas duas vezes,

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no jardim do pátio interno, enquanto regavao agapanto, e em frente ao portão de en-trada, concentrado em lustrar a maçaneta demetal. Nunca entra, fica sempre do lado defora e, depois, por volta das duas da tarde,vai embora. É uma presença tranquilizadora.

— Eu me viro muito bem sozinha, obri-gada. — Percebo tarde demais que minha re-sposta soa um pouco brusca, e mordo alíngua.

Brandolini levanta os braços, em sinal derendição.

— De todo modo — limpa a garganta —,passei aqui para lhe comunicar que, a partirde amanhã, haverá um inquilino no palácio.

— Um inquilino?Não. Isso não é possível mesmo. Não es-

tou acostumada a trabalhar com pessoas emvolta de mim fazendo confusão.

— O nome dele é Leonardo Ferrante, éum famoso chef de origem siciliana —

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explica ele, satisfeito. — Chegará direta-mente de Nova York para a abertura donosso novo restaurante em San Polo. Como asenhora deve saber, a inauguração será da-qui a três semanas.

Junto com o pai, o conde administra out-ros dois restaurantes em Veneza, um atrásda piazza San Marco e outro, menor, ao ladoda ponte de Rialto. Os Brandolini têm outroem Los Angeles, além de dois clubes priva-dos, um café e um apart hotel. Ano passadotambém abriram em Abu Dhabi e Istambul.Ou seja, não é raro encontrar fotos deles nasrevistas de fofoca de que Gaia gosta tanto.

Eu não me interesso nem um pouco pelavida dos famosos. Mas, principalmente, al-guém para me atrapalhar é a última coisa deque preciso.

— Foi dificílimo conseguir tudo dentro doprazo e, como a senhora sabe bem, a logísticaveneziana certamente não ajuda — continua

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ele, sem notar minha decepção —, mas, vejabem, quando desejamos muito uma coisa, oesforço não pesa tanto.

Lá vem ele com lições de vida, agora.Concordo mecanicamente com ar deaprovação. A ideia de ter que trabalhar comum desconhecido andando pelo palácio meirrita, e muito. Como Brandolini não con-segue entender que meu trabalho é delicado?Que basta uma coisinha à toa para me fazerperder a concentração?

— A senhora verá, vai se dar muito bemcom Leonardo, é uma pessoa muitoagradável.

— Não tenho dúvida, o caso é que estesaguão...

Não me dá tempo de terminar.— Veja bem, claro que eu não podia

deixá-lo morando em um quarto frio de hotel— continua Brandolini, com a segurança dequem não deve pedir permissão a ninguém.

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— Leonardo é um espírito livre e aqui se sen-tirá em casa, poderá cozinhar quando quiser,tomar café da manhã de madrugada e al-moçar à tarde, ler um livro no jardim e apro-veitar o Canal do terraço.

Eu estava prestes a lembrar a ele que osaguão onde trabalho dá acesso a todos osoutros cômodos do palácio, não existemcorredores, e que, portanto, esse sujeitoobrigatoriamente terá que passar por aqui, esabe-se lá quantas vezes por dia. Mas eletambém sabe disso, só que, é claro, decidiuignorar. Deus, estou quase tendo um ataquede nervos.

— Quanto tempo esse chef deve ficaraqui? — pergunto, na esperança de receberuma resposta animadora.

— Pelo menos dois meses.— Dois meses?! — repito sem me preocu-

par mais em esconder a irritação.

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— Sim, dois meses, mas talvez até mais,pelo menos enquanto o restaurante não est-iver funcionando plenamente. — O condeajeita novamente o pulôver nos ombros, en-tão me olha nos olhos, decidido. — Esperoque não seja um problema para a senhora. —Como se dissesse: “Dê um jeito de dar tudocerto.”

— Bem, se não há outra solução... — Que,porém, é o meu modo de dizer: “Não gostonada disso, mas tenho que engolir.”

— Está bem, então só me resta lhe desejarbom trabalho — conclui, estendendo-me amão fina. — Até logo, Elena.

— Até logo, senhor conde.— Me chame de Jacopo, por favor.Está tentando tornar a situação aceitável

sendo menos formal? Forço um sorriso:— Até logo, Jacopo.Assim que Brandolini sai, vou me sentar

no sofá de veludo vermelho encostado em

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uma parede. Estou nervosa, impaciente: aessa altura perdi a inspiração. Não querosaber nada desse seu restaurante, desse seuchef aristocrata, não estou nem aí para essainauguração à la As mil e uma noites. Sóquero trabalhar em paz, sozinha, em silêncio.É pedir demais? Seguro a cabeça com asmãos e olho os potinhos cheios de têmpera*

seca, que parecem estar ali para me jogar nacara o meu fracasso. Com grande esforçoresolvo ignorá-los. Que vá para o inferno oafresco também! São sete e meia da noite eminha concentração já foi para o espaço.Chega. Estou cansada. Vou para casa.

Saio na rua e deixo-me envolver pelo arúmido e adocicado de outubro. Agora já dápara se sentir a noite mais fresquinha. O soljá se pôs quase completamente sobre a La-guna e os lampiões começam a se acender.

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Percorro as ruas a passos rápidos, com ospensamentos ainda presos naquele saguãoempoeirado e temo que permaneçam lá porum bom tempo, levando em conta minhatendência de remoer as coisas. Gaia e minhamãe vivem jogando isso na minha cara:dizem que quando cismo com alguma coisaeu fico fora do ar, distraída, nas nuvens. Éverdade, eu me perco com prazer nos meuspensamentos, feliz quando me levam paralonge... Mas é apenas uma pequena fuga dopresente, uma mania toda minha, da qualnão pretendo abrir mão. Por isso adoro cam-inhar sozinha pela cidade: deixo que meuspés me guiem e a mente fica finalmente livre,sem que ninguém exija ser o centro daminha atenção.

Uma pequena vibração estridente me trazsubitamente de volta à realidade. No visor doiPhone, uma mensagem não lida.

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Bibi, vamos ao cinema?

Hoje à noite está passando o último filme

do Sorrentino no Giorgione.

Beijo.

Filippo. Aí está alguém com quem tenhovontade de passar a noite, mesmo depois deum dia como esse. Mas acho que não tenhoenergia suficiente para me arrastar até o Gi-orgione. Estou realmente exausta e a ideia deme trancar por duas horas em uma sala nãome atrai. Preciso ficar confortável num sofá.

Rebato:

E se a gente jantasse na minha casa e

visse um filme?

Estou destruída, acho que não vou curtir

Sorrentino...

Resposta imediata.

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Ok. Até daqui a pouco, na sua casa ;-)

Conheço Filippo desde a época da fac-uldade. Nós nos encontramos no curso dedesign de interiores, eu ainda era caloura, elejá estava no terceiro ano. Um dia propôs queestudássemos juntos e aceitei. Ele me pareciaalguém em quem se podia confiar; eu sentia,de um jeito ainda misterioso, que entre nóshavia uma afinidade. Eu não tinha ummotivo especial, simplesmente sabia.

Ficamos logo amigos. Íamos às ex-posições juntos, ao cinema, ao teatro. Oupassávamos noites inteiras conversando. Édesde essa época que Filippo me chama de“Bibi”. Repetia-me sempre que eu pareciacom a Bibi de uma história em quadrinhosjaponesa, uma personagem um pouco desas-trada e sonhadora, perdendo-se em fantasiasconfusas e sem sentido.

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Depois da faculdade, nem lembro porque, perdemos um pouco o contato. No anopassado, eu soube por intermédio de Gaiaque ele havia começado a trabalhar paraCarlo Zonta, um dos arquitetos italianosmais famosos, e que se mudara para Roma.

Então, há um mês, como se só um dia setivesse passado desde aqueles anos que paramim já pareciam muito distantes, ele surgiudo nada com um e-mail: “Estou em Venezanovamente. Há quanto tempo não vamos aoMuseu Correr?” Um convite que me pegoutão desprevenida que em um segundo me deiconta do quanto sentia saudade de Filippo.Aceitei na hora.

Era a primeira vez que nos revíamos de-pois de tanto tempo, ainda assim parecia quenada tinha mudado. Passeamos pelas salasdo museu com calma, parando diante denossas obras preferidas — eu ainda me lem-brava das suas e ele, das minhas — e falando

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sobre nossas vidas do ponto onde ashavíamos deixado.

Depois nos encontramos de novo, umavez para jantar e outra no cinema. Dissemosaté que seria bom retomar contato com oscolegas da faculdade, mas depois, sabe-se lápor quê, nem tentamos organizar nada.

Falta pouco para as nove e o som do in-terfone me faz escapulir para fora do ban-heiro, um fio de maquiagem nos olhos e oscabelos presos num rabo curto que chamarde imperfeito seria, sem dúvida, generoso.Obrigo-me a não pensar na expressão queGaia faria ao me ver desarrumada assim.Abro a porta de calça jeans, regata branca echinelo de dedo e, enquanto o espero, mer-gulho em um casaco felpudo maior que omeu tamanho. É minha roupa de andar emcasa, mas tenho certeza de que Filippo não seescandalizará...

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Sobe as escadas correndo, com duas em-balagens de pizza nas mãos. Quando chega, avoz doce e quente do último CD de NorahJones o recebe.

— Vamos, rápido senão elas esfriam! —diz, entrando. Joga sua bolsa no chão, mebeija de leve na bochecha e invade a cozinhacomo um míssil.

— Está com fome? — Eu vou atrás dele eabro espaço na mesa.

— Morrendo!Já abriu uma gaveta — adivinhando ime-

diatamente a certa, apesar de não pisar nomeu apartamento há anos — e achou o corta-dor de pizza. Fatia primeiro a minha.

Eu o olho. Seu rosto tem algo de sincero eluminoso, quase tranquilizador: talvez tam-bém tenha sido por isso que na época da fac-uldade nos escolhemos como amigos. Olhosgrandes e profundos, puxados: Filippo pare-ceria asiático se eles não fossem verde-claros

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e se na cabeça não tivesse aquele tufo de ca-belos loiros e desgrenhados.

— Vegetariana sem pimentão, como vocêgosta — diz ele, dando-me uma fatia.

Claro, ele se lembra até disso. Concordo,satisfeita, e ele me fita com aqueles seus ol-hos que são quase uma anomalia e dos quaisé impossível desviar o olhar. Ficamos por umsegundo assim, meio distraídos, depois Fil-ippo volta a se concentrar na pizza e eucomeço a procurar os copos, só para fazeralgo.

Dura apenas um instante, mas nós doispercebemos que há uma estranha eletricid-ade no ar.

— Hoje eu também vou ser vegetariano,assim você se sente menos sozinha — brinca,abrindo a segunda embalagem. Sorri, deix-ando à mostra os dentes brancos e perfeitos.Outra coisa que gosto nele. Como a covinhana bochecha direita.

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— Mas, Bibi, posso dizer que a pizzariaaqui embaixo é nojenta?

— Claro — respondo, dando a primeiramordida. — Mas vou continuar indo lámesmo assim... É o único jeito rápido e indo-lor que tenho para me alimentar.

— Será que não chegou a hora de vocêaprender a cozinhar?

Finjo refletir sobre aquilo por dois segun-dos antes de responder.

— Não.Ele pega uma azeitona da pizza e a joga

em mim.

Quando acabamos de comer, enquantopreparo meu chá de erva-cidreira, Filippo ex-amina os DVDs colocados desordenada-mente na última prateleira da estante.

— E este aqui? — começa a rir. — De ondevem? — disse, balançando a capinha deDança comigo?.

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— Ai meu Deus, Gaia deve ter deixadoisso aqui há muito tempo! — Escondo o rostocom um braço.

Ele me olha, compreensivo:— Por mim não tem problema... Você

pode me dizer se gosta desse negócio agora,não tem que se envergonhar: admitir é oprimeiro passo para se curar. Sou seu amigo,pode falar... Posso ajudar você, se quiser.

— Bobo.O cinema é uma das paixões que sempre

compartilhei com Filippo. Nós nos encon-trávamos com frequência em cines clubesuniversitárias, nós dois sozinhos na sala as-sistindo, até os créditos finais, a filmesdesconhecidos de diretores ignorados, de al-guma monótona e igualmente esquecidavanguarda russa, enquanto todos os nossoscolegas já tinham nos abandonado há umbom tempo para ir beber na praça.

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Filippo continua passando os olhos nosnomes dos DVDs e pega Um dia muito espe-cial, de Ettore Scola.

— Acho que já vi pelo menos quatrovezes, mas não me canso. E você?

— Seria a minha terceira, então eu topo.Filippo joga-se no sofá. Debate-se com o

controle remoto, resmungando algo sobre asnovas tecnologias. É engraçado, me faz sor-rir. Vou até ele com duas grandes xícaras fu-megantes nas mãos. Coloco-as na mesinhade centro, jogo os chinelos em um canto,bebo um gole do chá esquecendo que estáfervendo e queimo a língua... Então eu tam-bém me abandono no sofá, ao lado dele.

Na tela de plasma começam a passar oscréditos de abertura, enquanto sinto o joelhode Filippo apoiar-se ao meu. Aquele contatome deixa inesperadamente desconfortável, écomo se eu percebesse só agora o quanto es-tamos próximos. Ajeito-me no sofá,

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afastando-me alguns centímetros. Ele nãoparece notar nada, talvez seja só uma para-noia minha...

O filme vai em frente, doce e amargocomo lembrávamos. Nós o acompanhamosem um silêncio religioso, bebericando o chá,que enquanto isso atingiu temperaturas hu-manas, e às vezes voltamos algumas cenaspara rever os trechos mais memoráveis.Agora Mastroianni e Loren arriscam algunspassos de dança, acompanhando algumasmelodias.

Com o canto do olho vejo que Filippo estáme observando. Mas senti seu olhar em mimdesde que começamos a ver o filme. Quente eenvolvente. Viro-me para ele e o encaro:

— O que foi?Ele sorri, como se tivesse sido pego em

flagrante.

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— Estava pensando que você não mudounada nesses anos. — Não para de me olhar.De repente me sinto um pouco constrangida.

— E eu que esperava melhorar com otempo... — tento cortar o clima.

— Bem, felizmente você eliminou o únicodefeito que tinha.

Dou uma olhada interrogativa para ele.— Valerio, seu ex.Dou um soco em seu braço, fingindo estar

ofendida. Comecei a namorar Valerio nopenúltimo ano da faculdade: Filippo não osuportava e não fazia nada para disfarçarisso. “Superficial e imaturo demais para vo-cê”, deve ter me repetido mil vezes, até ocansaço.

— Demorei um pouco para entender, masno final das contas você tinha razão —admito.

— Há quanto tempo vocês não estão maisjuntos?

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— Um ano e meio.— E você não está saindo com ninguém

agora?Direto ao ponto. Eu não esperava por

isso.— Não.Sabe-se lá por que o silêncio que se segue

me parece opressivo. Queria ter uma piadapronta para aliviar essa tensão, mas não aencontro. Não sei o que se passa na cabeçade Filippo, mas sei que eu nunca tinhapensado nisso. Pelo menos até agora. Estoufeliz demais por tê-lo reencontrado comoamigo e não considerei de jeito nenhum aideia de que possa existir mais alguma coisa.Mas de repente meu castelo de certezasparece prestes a desabar.

— Esta é a minha cena preferida — dizFilippo, virando-se novamente para a tela.Mastroianni e Loren subiram ao terraço e es-tão dobrando os lençóis pendurados para

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secar. Talvez tenha entendido meu con-strangimento e veio ao meu socorro. Isso étípico dele.

Dou um pequeno suspiro silencioso dealívio. Tento me distrair, talvez sejam apenasfantasias minhas e não passe absolutamentenada na cabeça dele. Concentro-me no filmee, aos poucos, relaxo de verdade.

Lá fora começou a chover e é como se asgotas que batem na janela também tocassemlevemente meu coração. É uma sensaçãoagradável, e eu sinto uma vontade irresistívelde me entregar...

De repente, como se eu estivesse ressur-gindo de um coma profundíssimo, escutouma voz delicada sussurrando:

— Bibi, eu já vou.Abro os olhos e vejo Filippo de pé, in-

clinado sobre mim. Os créditos finais do

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filme passam na tela. Faço menção de melevantar.

— Mas por que você não me acordou?— Shhh, fique aí. — Ajeita docemente

uma manta sobre meus ombros. — Vouroubar seu guarda-chuva quebrado.

— Pode pegar o bom.— Não se preocupe... Não vou para longe.Faz um carinho na minha bochecha com

uma ternura que nunca tinha visto nele ebeija levemente minha testa.

— Tchau, Bibi.* Têmpera: mistura de pigmentos dissolvidos numadstringente, como cola ou clara de ovo. (N. da E.)

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2

Hoje de manhã decidi tirar uma folga doafresco. Tenho um monte de chatíssimastarefas domésticas. Digamos que não sou ex-atamente a dona de casa perfeita. Do cestode roupa suja transborda uma montanha depeças emboladas e me conformo em lavar al-gumas. Depois passo na tinturaria parapegar um vestidinho que deixei lá desde overão e me aventuro no supermercado parafazer compras do meu jeito: basicamente, meabasteço de comidas prontas e congeladas,minha especialidade sempre. Quando chegoem casa, sou tentada por um instante pela

ideia de organizar um pouco as coisas, mas avontade passa logo: melhor trabalhar. Então,pego as chaves e saio.

No caminho para o palácio passo naNobili, preciso de meio grama de pó azul-ul-tramarino, caso o que tenho não seja sufi-ciente. Prefiro comprar a cor eu mesma econferir com meus olhos se é a certa. Se eumandasse Franco, como Brandolini sugere,ele sempre voltaria com a tinta errada.

Às duas da tarde a rua para a qual se abrea entrada do palácio está deserta. A vant-agem de trabalhar como freelancer em umedifício do qual praticamente só eu tenho achave — bem, pelo menos até ontem... — éque se eu estiver atrasada com o cronogramaposso trabalhar sábado também, quando hámenos pessoas nas ruas: não há estudantes etodos os turistas se concentram em São Mar-cos e em Rialto, bem distantes daqui.

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Coloco a chave comprida na fechadura doportão, rodo-a uma vez para a esquerda eduas vezes para a direita e sinto que gira emvão. O portão está aberto e o alarme não estáativado. Melhor assim, porque uma vez dis-parou por engano e aquela foi a única vezque tive que recorrer a Franco. Provavel-mente é ele mesmo quem está lá dentro.Subo a escadaria de mármore e empurro aporta de serviço, que se abre para o saguão.

Pronto, o momento tão temido infeliz-mente chegou.

Na minha frente surgem costas largas,envolvidas em uma camisa vermelha. É ele.O inquilino. Eu não esperava que já estivesseaqui. Está observando a parede que contém oafresco e parece quase enfeitiçado. Imóvel.Enorme. A seus pés, uma grande bolsa deviagem que leva todo o jeito de ter sidojogada em mais de um aeroporto, da qualdesponta um blazer de jeans.

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Finjo uma tossida leve para marcarminha presença, ele se vira e me atravessacom um olhar tão intenso que eu quasetenho vontade de andar para trás. Seus olhossão de um preto impenetrável; ainda assim,por trás das vastas sobrancelhas, emanamuma luz que, não sei como, me deixa semfôlego.

— Olá, sou Elena — digo, recuperandoum pouco a segurança e dando uma olhadano afresco. — A restauradora.

— Oi — ele me sorri —, Leonardo, prazer.— Aperta minha mão e sinto sua pele ásperasobre a minha. Deve ter sido o trabalho quetornou suas mãos tão grossas. — Jacopo mefalou muito de você.

Olheiras, lábios carnudos, nariz pronun-ciado, barba por fazer e com alguns pelosavermelhados, cabelos escuros que não veemtesouras há um tempo: parece saído de umquadro de Goya. Deve ter pouco menos de

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quarenta anos, mas sua presença é sólida enecessária como a de uma árvore centenária.

— É uma pintura de uma sensualidadeúnica — diz, virando-se novamente para aparede, e sua voz revela um leve sotaque si-ciliano. Aproveito para estudá-lo detalhada-mente: usa calça preta de linho, como a cam-isa abotoada até a metade, sob a qual se intuiuma musculatura forte. Nos pés calça um parde tênis surrado em alguns pontos. Trans-mite uma energia misteriosa e selvagem, aponto de explodir debaixo das roupas.

— Tecnicamente, trata-se de um estupro— especifico. Quando não estou à vontade equero manter a formalidade tendo a mecomportar como uma professora de jardimde infância, é mais forte do que eu. Ele meolha e eu abaixo os olhos. Uma labareda deconstrangimento incendeia meu rosto. —Retrata uma cena da mitologia clássica, o

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rapto de Proserpina — acrescento, em umtom um pouco menos arrogante.

Ele concorda, ainda concentrado na con-templação do afresco:

— Plutão rapta Proserpina e a conduz atéHades. Antes de levá-la de volta à terra, ondepermanecerá por seis meses, obriga-a acomer nove sementes de romã. É um mitorelacionado ao tempo e às estações.

Um a zero para o cozinheiro siciliano queconhece os mitos clássicos: ele me deixousem palavras e eu mereci.

Leonardo olha ao redor com ar admiradoe dá um longo suspiro. Noto que na orelhadireita tem um pequeno brinco de prata.

— Claro que este palácio é realmentemaravilhoso, é uma sorte estar aqui, não?

Foi até hoje, antes da sua chegada, penso,mas nunca teria coragem para dizer isso.

— Tudo certo, meu amigo, podemos ir —Jacopo nos interrompe. Surgiu de repente do

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corredor à esquerda do salão e, assim quenota minha presença, apressa-se em mecumprimentar: — Olá, Elena.

— Bom dia, conde... eh... Jacopo. —Ainda tenho certa dificuldade em chamá-lopelo nome.

— Vejo que vocês já se apresentaram.— Sim — diz Leonardo. — Elena é muito

gentil, estava me explicando seu trabalho —mente por mim, não fui nada gentil, e buscaminha cumplicidade com um olhar que eu,porém, não retribuo.

Brandolini sorri, satisfeito.

— Vamos, Leo — pega-o por um braço, —vou lhe mostrar seus aposentos. Ontem Olgaveio arrumar tudo.

Leonardo apanha a bolsa de viagem dochão, coloca-a no ombro e faz menção deseguir o conde.

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Uma preocupação me invade quandopenso na moça da faxina.

— Jacopo, desculpe... — minha voz saimais estridente do que gostaria.

— Sim? — O conde vira-se junto comLeonardo.

— Nada de importante, só queria lhepedir um favor. — Assumo tons mais cordi-ais. — Se puder, diga para Olga não limpar osaguão, a poeira poderia comprometer orestauro.

— Claro, não se preocupe — ele me tran-quiliza. — Ela já tinha sido avisada.

Sinto os olhos de Leonardo novamenteme atraindo. Tento ignorá-los, mas é impos-sível, parecem ímãs.

— Obrigada — respondo e viro-me paraescapar do seu magnetismo. Os dois se des-pedem e vão embora.

Respiro fundo para tirar de cima de mimaquela estranha inquietação — não adianta

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muito — e começo imediatamente a trabal-har: quero experimentar o azul que compreiagora há pouco. Vou até a torneira da co-zinha e encho até a metade minha jarra comfiltro anti-impurezas. O calcário de Veneza életal, gravemente nocivo à fixação da cor.Aprendi isso sozinha, infelizmente na prát-ica, e é uma descoberta da qual sou muitoorgulhosa.

Ouço as vozes e os movimentos dos doisintrusos na ala direita do palácio. Eu tereique me acostumar, e ainda não sei como. Es-pero que esse Leonardo seja um cara dis-creto. Tomara que passe o dia inteiro no res-taurante e que no resto do tempo fique quiet-inho em seu quarto. Não o quero na minhacola, sua presença me deixa pouco à vontade.

Ajoelho no chão sobre a rede de proteçãoe começo a misturar três potinhos com quan-tidades diferentes de pigmento branco eazul. A cor da roupa de Proserpina não é

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muito problemática, diferentemente daromã. No terceiro potinho acho que já estouchegando perto. É uma experiência, princip-almente para satisfazer minhas ânsias incon-troláveis de perfeccionismo e para testar se opigmento é realmente de boa qualidade.

— Cara Elena, vou embora. — Brandolinireaparece no saguão pouco depois. Estásozinho. — Deixo-a em boa companhia. Asenhora verá, vai se dar muito bem com Leo.— É a segunda vez que me repete isso e nãosei por que me parece um mau sinal. Deslizao dedo indicador na maçaneta da porta deserviço, como se quisesse levantar um véu depoeira que não existe. — Bom trabalho. Atélogo.

— Até logo, senhor conde... Quero dizer,Jacopo.

São quase seis horas e Leonardo aindanão apareceu. Durante um tempo escutei

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música clássica vindo do andar de cima, masdepois parou. Acho que ficou dormindo atarde toda: ele chegou de Nova York, deveestar com jet lag. De todo modo, se ele ficarem sua toca e não sair mais, melhor paramim.

Entro no banheiro para me arrumar umpouco. Tiro a camiseta de trabalho e a calçajeans e coloco uma calça limpa e uma blusade algodão que trouxe em uma bolsa deginástica. Esta é minha ideia de elegância,seja lá o que for que Gaia diga.

Esta noite vou à casa de meus pais, umjantar em família para comemorar aaposentadoria de meu pai da Marinha Milit-ar. Depois de 45 anos de honrosa carreira, otenente Lorenzo Volpe retira-se para a vidaparticular. Por ironia do destino, sou filha deum ex-marinheiro e mal sei nadar. Culpa daminha mãe, talvez, que nos verões no Lido,assim que me via afastada demais da

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margem, era invadida pelo medo de que eunão voltasse mais. Tenho certeza de que her-dei dela meu jeito ansioso e, tenho que ad-mitir, um pouco paranoico, enquanto domeu pai puxei a teimosia infinita e a ded-icação absoluta ao trabalho.

Já sei que, assim que eu entrar em casa,minha mãe virá ao meu encontro dizendoque estou magra demais, cansada demais,descuidada demais, apesar de me esforçarpara disfarçar o estresse cobrindo-o comblush e batom. Já meu pai me observará emsilêncio a noite toda e, na hora de eu ir em-bora, me acompanhará até a porta, bemereto e com as mãos atrás das costas.

“Tudo bem?”, ele me perguntará antes deme deixar sair. “Se precisar de alguma coisa,nós estamos aqui. Com você.” Eu lhe direipara não se preocupar e lhe darei um beijo,como sempre, e voltarei para casa serena e

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em paz comigo mesma, como me acontece sóquando estou com eles.

Não os vejo há tanto tempo e estou quer-endo mesmo um colinho.

Esfrego os lábios diante do espelho paraespalhar melhor o batom que passei apressa-damente, coloco tudo de volta na bolsa e es-tou pronta. Antes de sair, dou uma olhadafurtiva nas escadas. Parece que Leonardoainda está entrincheirado em seus aposen-tos, não sei se digo um “até logo”. Talvez nãovenha ao caso.

Decido que não.Saio do portão de madeira maciça, to-

mando muito cuidado para não fazer barulhoe, quando chego à rua, viro-me instintiva-mente para olhar o palácio. No andar nobrea luz está acesa. É estranho pensar que apartir de hoje não estarei mais sozinha commeu afresco.

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Já chegou o fim da tarde de um entedi-ante, mas incomumente quente domingoveneziano. Marquei com Gaia no Muro emRialto para uns drinques. Há pouco, ao tele-fone, ela me ameaçou seriamente:

“Se não vier vestida como uma mulher,juro que mando o segurança colocar vocêpara fora!” Geralmente ignoro seus consel-hos, mas de vez em quando gosto de deixá-lasatisfeita. Porém, botar um salto monstruosonem pensar, então optei por uma sandália decetim verde, salto oito. E, depois, um vestidocurto de seda sem alças com blazer preto.Um gesto de grande coragem para mim:mais feminino que isso não consigo nemimaginar (bem, talvez eu pudesse ter ousadomais com o cabelo estilo Chanel de colegi-al...). Já sei que vou me arrepender, de todomodo, porque em Veneza, à noite, devemosandar a pé entre pontes e calçamento depedra, os táxis custam os olhos da cara e o

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vaporetto funciona vagarosamente. Gaia vaiter que reconhecer meu sacrifício.

O Muro já está lotado, as pessoas estãoamontoadas entre o balcão e as vidraças quedão para a praça. A ideia de me meternaquela confusão não me anima, mas devofazer isso, pelo menos para dar um sentidoao esforço sobre-humano de ter aguentadoos saltos até aqui. Dando cotoveladas, con-sigo abrir caminho no meio da multidão emfrente à entrada e, com duas passadas dignasde top model em final de carreira, entro nobar, sã e salva. O caos reina soberano — atrilha sonora não é exatamente das mais del-icadas — e todos já estão bêbados, emborasejam só sete da noite. Como quase nãobebo, nunca consigo me integrar completa-mente nas situações de puro prazer alcoólico,enquanto Gaia é capaz de entornar três moji-tos em uma hora sem dar sinais de se render.

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Lá está ela, a rainha dos contatos sociais!Está vagando de uma mesa à outra,mostrando a todos seu sorriso mais sim-pático, temperado com elogios melososagudos e penetrantes. O rabo de cavalo loirose sobressai no meio da multidão: Gaia já éalta, mas como sempre exibe saltos de com-bate. Agora parou no meio de uma galerinhaque eu conheço. Ficando na ponta dos pés,aceno para ela de longe. Ela me viu, feliz-mente. Balança os braços de um jeito anim-ado para me convidar a ir até ela. Chocando-me com umas dez pessoas, enfio-me na con-fusão e chego lá.

— Finalmente! Aonde você tinha idoparar? — Dá um beijo na minha bochecha.Então, como sempre, comenta minhaprodução. — E essa sandália? Verde, super-estilosa... Muito bem, Ele, gostei!

Passei na prova. Pelo menos esta noitenão terei que encarar os seguranças.

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— E então, como foi com seu ciclistanaquela noite? — digo-lhe no ouvido, belis-cando o quadril dela.

— Ele não estava lá... — Gaia finge umacarinha abatida pouco verossímil. — Achoque ele está preocupado com outras coisasno momento...

— Jura? — digo, exagerando o espanto.— Ah, mas eu não vou ficar presa ao

Belotti, não! Não não não, nem pensar. —Em um instante retoma a garra. — Bem...Um lugarzinho no meu coração ele sempreterá, mas vamos deixar que ele decida. Se eleme quiser, tem que vir atrás de mim.

— Pode ser... — Continuo não entend-endo o que ela vê de tão especial naquelesujeito. Os mistérios insondáveis do amor.Ou dos hormônios, no caso de Gaia.

— E, de qualquer maneira, ontem à noiteno Piccolo Mondo fiquei com Thiago Men-donza. Você se lembra dele, o modelo de

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Armani? Trocamos nossos números detelefone.

— Você não perde tempo, não é? — Nãosei quem é esse carinha novo, mas é típico deGaia reagir a uma decepção jogando-senuma nova conquista.

Explode em uma risada sonora, depoiscontinua, dirigindo-se ao resto do grupotambém:

— Gente, estou com sede. Mais um spritzpara todo mundo?

O grupo concorda unânime. Gaia mepega pelo braço e me arrasta de novo para amultidão.

— Nico, faz oito spritz com Aperol paramim? — pede ao barman, chegando no bal-cão e piscando os cílios cheios de rímel.

— Agora, amor.É típico dos venezianos, homens e mul-

heres, chamarem uns aos outros de “amor”,mesmo que se conheçam há menos de uma

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hora. E Nico, barman aspirante a ator, comcerteza não é diferente.

— E uma Coca-Cola para a minha amigatambém — acrescenta Gaia, antecipandomeus desejos.

Enquanto isso, o resto do grupo está seaproximando do balcão e, num piscar de ol-hos, os copos são passados de mão em mão,tilintando num brinde.

— Vamos fumar? — alguém propõe. E obando encaminha-se pacificamente para olado de fora. Gaia fica comigo e senta nobanco na frente do meu. A Coca-Cola estádemorando.

— Filippo também vem jantar com agente? — pergunta Gaia.

— Acho que sim.— Vou gostar de encontrar com ele de

novo.Quando conheci Filippo, Gaia já tinha

saído da universidade há um tempo. Fui eu

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quem o apresentei a ela, mas logo descobri-ram ter amigos em comum: Veneza épequena, todos acabam conhecendo quasetodo mundo, principalmente se a pessoa temuma vida social intensa, como Gaia.

De repente alguém a chama do canto dossofás.

— Dá licença, vou cumprimentar algumaspessoas — diz, pulando do banco.

— Pode ir — respondo. — Vá cumprir oseu dever!

Gaia pisca para mim e está pronta paraum minidesfile em seus jeggins coladíssi-mos: descobri há pouco, obviamente graças aela, que este é o nome daquele jeans grudadono limite da asfixia. Gaia usa-o com frequên-cia, apesar de ter a panturrilha um poucogrossa — sua maior preocupação. Curto o es-petáculo do meu banco: uma gata movendo-se numa camiseta de algodão transparenteque deixa pouco espaço à fantasia, embora

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na verdade seja tudo mérito do sutiã push-upforrado, porque Gaia nature teria apenasuma segunda pele (mas isso só sabemos eu eos homens com quem ela foi para a cama).

Finalmente Nico me dá minha Coca.— Você poderia colocar um pouco de

gelo? — peço.— Quer limão também, amor?— Quero, obrigada.Dou o primeiro gole pelo canudo quando

sinto meu telefone vibrar. Uma mensagemde Filippo.

Bibi, estou atrasado.

Chego em meia hora.

Beijo

Respondo logo, torcendo para que ele seapresse.

OK, estamos te esperando!

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Acabei de responder, quando uma mãotoca levemente meu ombro nu. Viro-me deimediato e na minha frente surge LeonardoFerrante, o inquilino.

— Oi, Elena — ele me cumprimenta. —Veneza é pequena mesmo... — Ele continuacom aquele jeito amarrotado, camisa amas-sada fora da calça, mas parece sinceramentecontente em me ver.

— Boa noite... — Sou pega de surpresa eme ajeito melhor no banco. Não sei se estoucontente como ele. Este homem me per-turba. Sequer consigo pensar direito na suapresença. E isso não é bom.

Senta-se ao meu lado sem ser convidadoe fixa seus olhos pretos em mim.

— Você está sozinha? — Toca levementemeu braço com uma das mãos e não sei porque aquilo me perturba.

— Não, estou com alguns amigos... — re-spondo, balançando a mão no ar para dar a

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entender que estão por ali. Há algo emLeonardo que mexe comigo, chega direto àminha barriga como um golpe seco. Eu quer-ia que ele fosse embora. Talvez.

Vira-se de repente para um grupo depessoas que está pegando um lugar a umamesa:

— Gente, podem pedir — diz com determ-inação — Eu já vou. — Depois, volta a falarcomigo. — É a equipe toda do restaurante,meus funcionários — explica, indicando-os.

— Ah, mas se o senhor tem que ir... —precipito-me a responder.

— Não, gostei de ter encontrado você. —Então é oficial: embora eu continue otratando formalmente, ele resolveu, sem amenor dúvida, encurtar as distâncias.

— O que acha de me chamar de “você”? —continua.

Enrugo a testa e olho minhas mãos.Parece que ele leu meus pensamentos.

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— Sim, claro... — murmuro.Por educação e para acabar com o con-

strangimento, eu me obrigo a puxarconversa:

— Ontem saindo do palácio tentei nãofazer barulho. Espero não tê-lo acordado. —E logo me arrependo do que disse. No fundo,seria ele quem deveria se preocupar em nãome incomodar. Por que estou quase mejustificando?

— Fique tranquila, quando durmo não es-cuto nada. — Capta o olhar do barman, queno meio-tempo se aproximou.

— Um martíni branco para mim.Nico enche seu copo e ele pega a carteira.— Vou pagar o dela também — diz,

fazendo um sinal em minha direção.— Não, não precisa... — tento me opor e

já mergulhei o braço na bolsa. Ele me detéme meu pulso é minúsculo entre seus dedos,seu toque é leve, mas decidido. Balança

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levemente a cabeça e eu me rendo no mesmoinstante.

— Tudo bem... Obrigada.Enquanto ele beberica o martíni, fita meu

copo.— Por que nada de álcool?— Não bebo — justifico-me, dando de

ombros.— Isso é ruim, muito ruim — sorri, meio

malicioso. — Quem só bebe água tem algo aesconder.

— Mas eu não bebo só água. Isso aqui éCoca-Cola, por exemplo.

Leonardo ri, mostrando dentes brancos eferozes. Tenho a impressão de que ele não rida minha piada, mas de mim. Então tomaum gole de martíni e me olha, de novo sério.

— Minha presença no palácio incomodamuito você?

— Não... — respondo automaticamente,mas logo me detenho. Ele não está fazendo

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uma pergunta e é óbvio que não liga nem umpouco para a minha falsa gentileza. Tento re-começar: — Na verdade, eu preferiria trabal-har sozinha — arrisco, com um pouco de cor-agem. — Eu sou assim, não consigo me con-centrar se há pessoas por perto. E, além domais, os trabalhos de restauro deveriam serfeitos em ambiente o mais isolado possível.

Espero que ele diga algo do tipo“entendo, vou tentar atrapalhar o menospossível”. Mas não. Fica ali me examinandocomo se tivesse acabado de entender algo defundamental que eu, porém, não capto.

De repente, estica uma mão em minhadireção: instintivamente me retraio —quando foi que eu lhe dei permissão para to-car em mim? —, mas seus dedos se metemno meio dos meus cabelos, onde as pontasencostam o pescoço.

— Cuidado, isso aqui caiu.

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Segura entre o polegar e o indicador omeu brinco. Fico olhando-o um pouco aérea,então pego o brinco apressadamente e o re-coloco na orelha.

— Acontece toda hora, estão com defeito— justifico-me, evitando seu olhar. Meurosto se colore de todos os tons de vermelho.Pronto, agora eu realmente gostaria que elefosse embora.

Felizmente um de seus funcionários ochama. Leonardo faz-lhe um gesto e depoisse vira outra vez para mim:

— Dá licença, vou sentar com meupessoal — diz-me. — Nos vemos amanhã.

— Claro. Até amanhã.Olho para ele juntando-se ao grupo sen-

tado à mesa e, enquanto confiro obcecada denovo o brinco fujão, tento me livrar dessasensação absurda de embaraço.

Pouco depois Gaia reaparece. Conseguiufugir das obrigações de relações-públicas.

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Senta de novo no banco e fixa em mim umolhar quase policial. Preparo-me psicologica-mente para o interrogatório.

— Ele, querida... — e aqui já sei aondepretende chegar —, quem era aquele cara?

— Quem?— Não disfarce — ela me corta —, o

homem com quem você estava falando háum minuto.

— É o sujeito que Brandolini teve a gen-tileza de hospedar no palácio. O nome dele éLeonardo, é chef. — Minha voz deixa trans-passar um pouco de ansiedade.

— Interessante... — Gaia observa-o delonge. — E quantos anos ele tem?

— Sei lá. Só troquei duas palavras comele.

— Claro que você podia me apresentar...É sexy de matar!

— Minha nossa, Gaia, você está sempre àcaça! — Abro os braços. — E, de todo modo,

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não sei o que você vê nele, é um grosso —digo, e dessa vez sou eu quem o olho.

— Com certeza ele não é igual aos outros,aquele lá é um homem de verdade, escute oque estou dizendo, Ele... — Gaia morde olábio.

Procuro as palavras para contradizê-la,mas não as encontro.

— Meninas! — Uma voz familiar me salvada aula de anatomia masculina que Gaia estáprestes a dar.

Filippo abre caminho entre as pessoas enos cumprimenta com dois beijos.

— Desculpem, tive um aborrecimento noestúdio. Aquele mala do Zonta me faz trabal-har até aos domingos. Ele e os clientesmilionários dele... Gaia, há quanto temponão nos vemos?

— Há uns dois anos, Filippo. E, por favor,me diga que não envelheci, mesmo se achar

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que sim. — Nós três damos uma gargalhada.Então Gaia estende-lhe um spritz.

— Beba isso agora e depois vamos jantar.— Vocês já escolheram o lugar? — Filippo

beberica o drinque sem fazer objeção.— Por que não vamos ao restaurante ve-

getariano no Ghetto? — proponho. Pelo ol-har deles entendo imediatamente que nãogostaram muito da minha ideia.

— Ele — diz Gaia —, como eu digo isso...Essa sua cisma de não comer carne já me en-cheu um pouquinho.

— Tudo bem, finjam que eu não dissenada. Insensível. — Faço uma cara dezangada, mas nunca me irrito realmentequando Gaia faz comentários sobre minhasmanias vegetarianas.

— Vamos ao Mirai — intervém Filippo —,o restaurante japonês em Cannaregio.

— Vamos! — exclama Gaia. — Adorosushi, o de lá é maravilhoso.

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— Tudo bem, assim pelo menos possocomer um pouco de arroz e legumes.

— Então, todo mundo topa? — Filippo meolha como se dissesse “espero ter encontradoum bom meio-termo”.

Sorrio para ele e concordo.— Vamos!

No Mirai o jantar foi agradável. No fimdas contas foi uma mesa para dez, já queGaia estendeu o convite para outras pessoasque encontrou no Muro. Obviamente era ummovimento estudado. Sim, porque, quandoacabou o jantar, a rainha da noite conseguiuarrastar todos ao Piccolo Mondo, uma dasdiscotecas onde trabalha como relações-públicas. Todos, menos eu e Filippo.

Assim que recusei o convite, Filippo mepropôs que continuássemos a noite juntos eagora estamos vagando pelas ruas. Ainda hápessoas circulando, a temperatura ainda está

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amena o bastante para dar vontade de sairde casa. Os bares estão lotados e de vez emquando vemos algumas pessoas saindo cam-baleando. Eu também começo a cambalear, enão por causa do álcool, mas por culpa dassandálias que estão me massacrando.

— Por favor, não aguento mais, vamosparar um pouco.

Nem acabei de falar e já me joguei em umbanco vazio, e estou vasculhando na bolsa naesperança de encontrar um Band-aid. Nada.Eu tinha até pensado em pegar dois antes desair, mas depois esqueci. Tiro as sandálias emeus pés estão vermelhos e inchados, mar-cados pelos cadarços. As crueldades damoda.

— Meu Deus, eles ficaram destruídos... —murmuro, acariciando-os. Mas doem muito.

Filippo apanha meu pé direito e o apoiaem seu joelho, obrigando-me a girar o corpotodo em sua direção.

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— O que está fazendo? — pergunto,surpresa.

— Pronto socorro — responde ele,começando a massagear. Seu toque éterapêutico, sinto o sangue recomeçando afluir. Por um tempo relaxo e deixo que suasmãos se movam macias sobre mim. Aos pou-cos, porém, o constrangimento substitui oalívio. Estou deitada num banco de rua, nomeio da noite, com Filippo massageandomeus pés. É uma situação um pouco es-tranha... E seu gesto é íntimo demais paranós dois. Eu o olho e percebo que ele tam-bém está me fitando. Mas não do jeito queum amigo faria. Nossos rostos estão bempróximos, estamos prestes a nos beijar, sintoque está para acontecer, eu quero, mas tenhoum pouco de medo, prendo a respiração...

Um celular toca, trazendo-nos brusca-mente de volta à realidade. É o meu.

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— Ele, desculpe a hora. Já estavadormindo?

É Gaia.— Não, não...O encanto se quebra. Coloco os pés apres-

sadamente de volta nas sandálias. Enquantoas fecho, dou uma olhada maliciosa para Fil-ippo: ele parece decepcionado, e talvez eutambém esteja. Mas não há mais nada a sefazer, Gaia exige minha atenção, nessemomento.

— Você me ouve? Onde está?— Sim, desculpe. Ainda estou na rua...— Escute, estou na merda! Briguei com

Frank no Piccolo Mondo... Ele é doido, mechamou ao escritório lá em cima e começou adizer que da última vez eu levei uma gen-tinha à discoteca. Fui embora batendo aporta. Mas acabei deixando as chaves e tudoo mais na escrivaninha dele.

— E você não pode voltar para buscá-las?

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— Não, Ele, nem quero mais ver aquelebabaca de novo. Eu volto lá amanhã, quandoa discoteca estiver fechada e ele não estiverlá. Mas essa noite... Posso dormir na suacasa?

— Claro, espero você lá em casa daqui apouco.

— Chego em dois minutos.Dois minutos? Então ela já tinha certeza

de que eu diria sim.Desligo e viro-me para Filippo.— Desculpe, mas Gaia está vindo para a

minha casa, ela perdeu as chaves.Ele sorri, mas percebo em seus olhos um

véu de tristeza.— Não tem problema, Ele, eu vou com

você até o vaporetto.Nós esperamos por 15 minutos quase em

silêncio, no ar o embaraço por causa daquelebeijo que não aconteceu. Trocamos algumasfrases formais, só para quebrar o gelo.

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Quando o vaporetto chega, para mim pareceum príncipe encantado que veio me salvar epulo nele com prazer, quase correndo.

— Bibi... Você não vai sumir, não é? —pergunta Filippo, do cais.

— Claro que não, a gente se vê logo — re-spondo, balançando a mão. Então vou em-bora deslizando na água.

Em frente ao portão de casa encontroGaia, ainda com raiva. Enquanto subimos asescadas ela me conta tintim por tintim ahistória com Frank e eu me distraio pelomenos um pouco do pensamento de Filippo.Às vezes ela se empolga demais e tenho quepedir que abaixe a voz: está tarde, estão to-dos dormindo no prédio.

Enquanto retiramos a maquiagem nobanheiro, noto o olhar de Gaia me seguindono espelho.

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— Por acaso você está me escondendo al-guma coisa? — Pronto. Gaia, a GrandeInquisidora.

— E o que eu estaria escondendo? — falolentamente, escovando os dentes.

— Não sei, você e Filippo não estão medizendo tudo. Eu interrompi alguma coisa?

— Gaia, somos só amigos.Ela não se convence nem um pouco.— Hum... Acho que ele gosta de você.

Aliás, sempre gostou.Dou de ombros.— E você gosta dele?— Não sei. Nunca pensei nisso de ver-

dade. — E estou dizendo a verdade. Pelomenos até essa noite...

Vamos para debaixo das cobertas naminha cama de casal e sabe-se lá por queisso nos deixa alegres, de repente. Gaia jogaum travesseiro no meu rosto e logo nos

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voltam à cabeça aquelas festas do pijama quefazíamos quando éramos adolescentes. Ri-mos das garotas que éramos naquela época ede como somos agora. Apago a luz do abajure nos desejamos boa-noite.

Acabei de pegar no sono quando a voz deGaia me acorda.

— Ele...— Hein? — respondo, com sono.— Aquele tal de Leonardo... Você disse

que mora no palácio onde você está trabal-hando, não é?

— É.— E onde é, exatamente?— Amanhã eu explico. Agora dorme.

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— Ele!Alguém está sacudindo meus ombros.— Vamos, Ele, acorde! — A voz de Gaia

me traz de volta à realidade em umsobressalto.

— O que foi? — resmungo, com a vozempastada.

— Merda, lembrei que tenho que buscarContini no aeroporto... O diretor de cinema...Ele tem uma reunião no ateliê de Nicolaopara o figurino do próximo filme.

O cheiro do café fresquinho invade do-cemente minhas narinas.

— Mas que horas são?— São 7h15. Tomara que o voo de Roma

esteja atrasado...Esfrego os olhos para enxergar melhor.

Gaia já está vestida e maquiada. Não seicomo ainda consegue andar com as botascurtas de ontem à noite.

— Tenho que ir embora. O café estápronto na cafeteira. — Ela me dá umbeijinho. — Obrigada por ter me acolhido.

— Imagina — resmungo, virando para umlado. — É ótimo levar chutes a noite inteira.

Gaia desarruma meu cabelo e sai encost-ando a porta, deixando-me sozinha noquarto para acabar de acordar. Sigo-a empensamento pelas escadas, imagino-a jágrudada ao BlackBerry falando de roupas,acessórios e lantejoulas.

Com um esforço que me parece de-sumano me apoio na cabeceira da cama. Meucorpo estala. Talvez eu devesse levar em

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conta a ideia de ir à academia com ela. Gaianão demonstra de jeito nenhum nossos 29anos, é uma explosão contínua de energia.

Mas só de pensar em estar apertada emleggings coloridas, em frente a um espelho,saltitando no ritmo de uma música, desan-imo para qualquer ideia de malhação. Tereique conviver com as juntas que estalam,tenho que me conformar com isso.

Saio da cama e mergulho no armário,onde pego por acaso uma saia e um casa-quinho esportivos antes de me rastejar até obanheiro.

Fora do portão a primeira luminosidadedesta manhã de outubro me recebe. É umaluz suave, que aquece sem ferir o olhar. Hojenão vou pegar o vaporetto, de San Vio atéCa’ Rezzonico são dez minutos e quero curtirtodos eles.

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Aos poucos me acostumo com a luz dodia. Os olhos não podem me trair, não hojeque me dedicarei de corpo e alma àquelaromã: meu desafio será encontrar o tomperfeito.

Caminho sem pressa, a passos relaxados;um pouco porque ainda estou com os pésdoloridos de ontem à noite e um poucoporque é impossível não se deixar conquistarpela calma de Veneza.

A primeira ponte do dia está ali, para melembrar de que a alma desse lugar é a água, enão a pedra. E gosto de parar nem que sejaum momento para observar a vida aqui decima. O rio de San Vio é um canal estreito,esquisito, uma faixa que liga o Grande Canalàs Zattere, cortando o bairro em dois. Daquipodemos ver as duas faces de Veneza: SanMarco de um lado, a Giudecca do outro. AVeneza dos turistas e a dos venezianos.

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O sino da igreja de Santa Inês bate asnove. Me apresso. Estou atrasada. Enquantopasso ao lado das Galerias da Academia, umamulher loira e acima do peso me pede eminglês para tirar uma foto dela com o namor-ado. Eu não estou com a menor vontade, es-tou com pressa, mas respondo que sim e, en-tão, ela me estende a máquina fotográfica ex-plicando qual botão apertar. Ajeito minhabolsa no ombro e me posiciono bem, en-quanto suas expressões se congelam, felizes,no enquadramento.

Clic. Arrumo o foco, primeiro disparo. Cl-ic. Pose para a foto, sorrisos mostrando os 32dentes e uma vista digna de cartão-postal,provavelmente a que vão escolher para o ál-bum. Clic. A terceira foto, inesperada, semfazer pose. A melhor.

O casal solta-se do abraço e me agradecediversas vezes. Como muitos outros, não vi-eram a Veneza apenas para conhecer a

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cidade, mas para tentar viver sua históriaromântica. E eles têm todo o direito. Pelomenos eu acho...

Esboço um sorriso e vou embora. Umabrisa leve desarruma meus cabelos. Aindanão incomoda, mas é uma pequena amostrado outono que está quase chegando.

O ar tem cheiro de croissants quentes ecappuccino, aquele perfume intenso que meacompanha sempre que vou para o trabalhoa pé. Quase nunca paro no caminho para to-mar café da manhã. De manhã eu não como,tenho o estômago fechado e, além do mais,se eu comer fico com sono. Hoje vou daruma paradinha na tabacaria que fica em-baixo do pórtico para comprar palitinhos dealcaçuz; ajudam-me a ficar concentrada eevitar quedas crônicas de pressão.

A rua do palácio desemboca diretamenteno Grande Canal. É preciso tomar cuidadoao percorrê-la, principalmente à noite. É

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uma ruazinha anônima, escondida, poucoiluminada e pouco nobre, infestada de ervasdaninhas que trepam nos muros. Ninguémdiria que no final desta viela de pedregulhosse esconde uma das construções mais lindasde Veneza.

Por outro lado, essa cidade é uma anom-alia urbanística. Tudo parece estar emruínas, a ponto de se desmanchar na águaturva. Mas ao mesmo tempo tudo é vivo,tudo arrebata os olhos com uma beleza detirar o fôlego.

Pincéis e têmperas estão exatamenteonde os deixei sábado, na mesma rigorosaordem. Ninguém tocou neles e isso me tran-quiliza. O afresco também está bem, nãoaconteceu nada com ele. É que podemacontecer inúmeras coisas com uma obra emrestauração quando é deixada sem vigilância.Todas as manhãs, fico ansiosa com a possib-ilidade de encontrar uma bela mancha de

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umidade, uma colônia de formigas ou im-pressões digitais.

Do quarto de Leonardo não chegamsinais de vida. Talvez já tenha saído.

Visto o uniforme de trabalho e, comouma caça-fantasma, estou pronta paracomeçar. Quase pronta... Tenho que refres-car os olhos com o colírio de qualquer jeito.Por culpa de Gaia, que não parava de se virarna cama — e, na verdade, de Filippo tam-bém, que continuava a rondar a minhacabeça —, não dormi bem esta noite e meusolhos estão pesando como duas bolas dechumbo.

Por um instante a cena de Filippo mas-sageando meus pés naquele banco invademeus pensamentos. Foi ontem à noite, masquase parece um sonho, agora. A lembrançaestá desfocada, não consigo reviver assensações que ela traz. Estranho.

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Tiro o vidrinho azul do bolso do macacão,reclino a cabeça para trás e deixo caíremduas gotas no olho direito e duas no es-querdo. No início o líquido queima, mas emcinco segundos passa tudo e sinto-me umanova pessoa.

De repente, uma risada maliciosa tomaconta do saguão. Ainda estou com os olhosembaçados, mas mesmo assim consigo verduas silhuetas avançando em minha direção.De mãos dadas. Leonardo e... pisco paraenxergar... e uma mulher lindíssima, cabelosesvoaçantes e pele de porcelana, o corpo en-volvido por um elegante vestido curto de ce-tim vermelho que, além de ressaltar as per-nas torneadas e esguias, deixa suas costas in-teiras descobertas. Tem um porte de fazer in-veja a Audrey Hepburn, o olhar satisfeito eluminoso.

— Bom dia, Elena — diz Leonardo,quando passam ao meu lado. Não está

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vestido para sair, usa um agasalho de mo-letom e chinelos de dedo. Um contrastebizarro com a elegância dela.

— Olá — respondo, com uma indiferençacalculada.

A diva me cumprimenta com um gesto eacompanha Leonardo com o olhar, tambori-lando os saltos no chão. Dirigem-se às esca-das que levam à saída, ele desliza uma mãonas costas nuas dela com um gesto sensual eao mesmo tempo protetor. O contraste entresua pele escura e a pele alva dela é perturb-ador. Impossível não reparar nisso. É evid-ente que passaram a noite juntos, quasesinto o cheiro de sexo vindo deles.

Eu queria mergulhar no meu trabalhonovamente, mas outra coisa me distrai, destavez um estrondo do lado de fora que, de re-pente, faz com que as paredes vibrem. Pareceo motor de um barco. Curiosa, afasto a cor-tina de uma das portas-balcões que dão para

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o Grande Canal e percebo que uma lanchabranca está atracada ao píer do palácio. E láestá a diva: acabou de tirar os sapatos desalto e colocou uma jaqueta preta de couro.Agora, ela se aproxima da borda e procuraLeonardo. Ele rapidamente projeta-se domolhe, toca levemente seus lábios com umbeijo, depois tira a corda da estaca de at-racação e despede-se dela. A diva coloca ócu-los de sol pretos, aciona a alavanca sobre aponte de comando e parte a toda velocidade,deixando para trás um rastro acinzentado.Parece a cena de um filme, mas é tudo ver-dade, aqui, diante dos meus olhos.

Ajeito a cortina e volto ao trabalho imedi-atamente. Aquilo não me interessa, repitopara mim mesma, e tento pensar em outracoisa.

Leonardo volta logo depois. Finjo que es-tou muito ocupada enquanto misturo aoacaso alguns pigmentos, esforçando-me para

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manter o olhar baixo. Ele passa na minhafrente sem dizer uma palavra e em um se-gundo desaparece em seus aposentos,assobiando.

Preparo um pouco de vermelho, subo naescada e estou pronta para me dedicar àromã. Agora espero poder trabalhar em paz,mas, como sempre, os pensamentos vão paraonde bem entendem, dando voltas na minhacabeça. Sabe-se lá se aquela era a mulher deLeonardo ou somente um caso de umanoite... Não consigo tirar dos olhos a imagemdele tocando levemente as costas nuas dela e,depois, aquele beijo, tão fugaz, mas sensual.

Agora o barulho da água corrente chegado banheiro. Depois uma voz poderosa masdesafinada canta uma música que fala de sale de mar. Leonardo está fazendo as coisascom calma, parece não ter muita pressa parair trabalhar esta manhã.

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Viro-me para procurar um pincel e per-cebo que ele acabou de sair do banheiro e es-tá vindo em direção ao saguão. Sem camisa.Uma toalha enrolada na cintura, os cabelosmolhados e os pés descalços. Lembra umgladiador. Aproxima-se de mim com um arousado e o piso instável oscila um pouco sobseu peso.

— Então, Elena, tudo bem?— Tudo bem, obrigada — digo, quase em

voz baixa, demonstrando indiferença. Tentomanter o olhar grudado no afresco. Sinto-medesconfortável, pequena e desajeitada nomeu macacão largo. Por que ele não vai sevestir?

— E como vai o trabalho? — Balança oscabelos e uma nuvem de gotinhas se solta noar. Vejo-o com o canto do olho. Felizmenteainda está a uma distância segura da parede.

— Tudo indo...

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— Sabe que você parece muito mais àvontade nessa escada do que no banco de umbar?

— Vou considerar isso um elogio.— E é, na verdade.Não faz menção de ir embora. Sinto-me

observada, quase examinada, e não gostodisso.

— Desculpe, mas estou muito ocupada...— digo, virando-me levemente em direção aoafresco.

— Claro — responde, esboçando um sor-riso consciente e levantando as mãos. —Você não gosta de ter gente por pertoquando está trabalhando. Foi muito clara on-tem à noite...

— Exatamente — balbucio, enquanto ovejo se afastar em direção ao seu quarto. Masnão sei se digo isso ou se apenas penso.

Assim que fico sozinha, desço da escada:preciso de alcaçuz. A presença de qualquer

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outra pessoa me incomoda; a dele, porém,me desestabiliza.

Respiro fundo e com um palitinho quederrete na minha boca decido recomeçar.Merda, a cor secou completamente. Ficoudensa demais. Agora tenho que esvaziar ospotinhos, lavá-los e regular novamente asquantidades do pó. Vou tentar usar o pincelde ponta chata, pelo menos para a primeiraaplicação, assim soluciono maisrapidamente.

Subo na escada de novo, verifico de perto,mais uma vez, a tonalidade das sementespara fixá-la bem na cabeça. Então, experi-mento uma nova mistura de vermelho eroxo.

Do corredor à minha direita ouço os mes-mos passos seguros se aproximarem. Viro-me instintivamente: desta vez ele estávestido. Usa uma calça jeans rasgada e umacamisa de linho branca — esse homem adora

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linho. No pescoço uma echarpe de seda pretaque esvoaça a cada movimento seu. Não seicomo consegue não sentir frio. Já estamosem outubro...

Aproxima-se até apoiar um braço na es-cada. Um arrepio atravessa minha coluna eme faz perder levemente o equilíbrio. Nãotenho ideia do que está acontecendo comigo,mas não estou gostando.

— Vou sair para comprar algumas coisaspara o restaurante — diz, olhando para cima.— Vou até Rialto, você precisa de algumacoisa?

— Não, obrigada, não preciso de nada.— Tem certeza? — inclina levemente a

cabeça para o lado e a luz atinge seu brinco,fazendo-o cintilar. Seus olhos também bril-ham de um jeito estranho. Quase parecemsorrir. Nunca achei tão sexy ruguinhas de ex-pressão ao lado dos olhos. Ai meu Deus, o es-pírito de Gaia está baixando em mim...

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— Tenho, de verdade. Não estou fazendocerimônia. — Recupero-me, virando emdireção à parede para não ficar abobada denovo. O afresco é minha única salvaçãoagora. — Ah, para ir a Rialto é melhor pegaro vaporetto, assim você não corre o risco dese perder — acrescento, tentando pareceresperta.

— Mas é tão bom se perder em Veneza! —Dá de ombros.

— Eu disse isso só para fazê-lo ganhartempo. Imagino que deve ter mil coisas pararesolver.

— Claro, mas eu deixo as chateações paraos meus funcionários. Eu cuido é da parte di-vertida da brincadeira. — Sorri, seguro de si.Dá a impressão de alguém que tem confiançaabsoluta no próprio talento, alguém paraquem as coisas saem naturalmente bem, semmuito esforço.

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— Deixei croissants e café ainda quentesna cozinha, se quiser tomar café da manhã.

— Não, obrigada. Quase nunca como demanhã... E, além disso, não posso inter-romper o trabalho agora.

— Por quê? — parece curioso.— Tenho que ficar com o olho focado na

cor, ou eu a perco.Leonardo passa uma mão no queixo e me

fita.— A cor daquela romã?— Sim — concordo, olhando-o na minha

frente. — Estou batendo a cabeça há dias, es-tá me enlouquecendo. Tem mil nuances e to-das muito difíceis de representar, sem falarno chiaroscuro... — Vejo-me sendo elo-quente contra a vontade, falar do meu tra-balho me empolga. Leonardo deve ter perce-bido porque está sorrindo. Observa atenta-mente a romã, depois a mim, como se est-ivesse refletindo sobre alguma coisa.

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Fico quieta de repente, não sei no que es-tá pensando, mas digo a mim mesma quenão tenho que me importar com isso. Ele mefez perder tempo até demais. Estou para medespedir dele, quando uma voz conhecidame impede.

— Ele, cadê você? — barulho inequívocode saltos nas escadas. — Tem alguém aqui?

Leonardo me olha interrogativo e eu lhefaço um sinal para dizer que está tudo sobcontrole. Gaia materializa-se no saguão: pas-sou em casa para mudar de roupa, não estámais vestida como ontem à noite, mas estáimpecável como sempre. CumprimentaLeonardo antes de falar comigo.

— Oi...— Oi — ele responde inclinando um pou-

co a cabeça.— Passei para dar um oi — ela me diz, en-

tão, com um sorriso inocente. Mentirosa.Desde que comecei a trabalhar neste saguão

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ela nunca veio me visitar, sequer uma vez.Está aqui só por causa dele, deve ter visto oendereço em algum lugar na minha casa.Quando quer, exibe qualidades insuspeitá-veis de detetive.

Continuo grudada na minha escada, nãodesço nem por um decreto. Pelo menos aquide cima posso curtir a cena em suatotalidade.

— Mas você não tinha um compromissoimportantíssimo hoje de manhã? —pergunto-lhe, pelo puro prazer sádico decolocá-la em uma situação difícil.

— Tudo resolvido! E já até peguei minhabolsa no Piccolo Mondo — apressa-se em re-sponder e me olha como se quisesse dizer “oque você está esperando para me apresentara esse homem?”.

Percebo que Leonardo a está examinandosatisfeito, com uma das mãos no bolso dacalça jeans e um dedo sobre os lábios.

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— Esta é Gaia, minha amiga — digo.Minha apresentação soa estranhamentesolene do alto.

— Prazer, Leonardo. — Aperta a mão delavigorosamente. Está com uma expressãomais sedutora ou divertida? Não saberiadizer. Volto a misturar a cor, para demon-strar que não estou interessada no queacontece a um metro e meio abaixo de mim.

— Prazer... — ouço a voz de Gaia e tenhocerteza de que está piscando cheia de malí-cia. Embora eu não a veja, é claro que estádando o melhor de si. De repente eu a escutoexclamar:

— Que trabalhão esse seu, Ele! É enorme,mas maravilhoso... — Eu a olho surpresa edesconfiada: ela nunca deu a menor im-portância para restauros e afrescos. — Não émesmo? — acrescenta, então, dirigindo-se aLeonardo. Isso mesmo: ela está apenas pro-curando um pretexto para puxar conversa.

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— Elena tem uma grande paixão por seutrabalho, dá para ver. — A vibração quenteda voz de Leonardo sobe até mim.

Gaia, enquanto isso, conseguiu uma aber-tura e, ágil, a agarrou:

— E você, trabalha com o quê?— Sou chef. Agora estou inaugurando o

novo restaurante dos Brandolini.Sei exatamente quais serão as próximas

palavras de Gaia: “Um chef... Incrível!”— Chef, que trabalho interessante.Eu me enganei, mas por pouco. Sorrio,

eles não estão me vendo mesmo.Gaia continua com as perguntas de

sempre: há quanto tempo você está emVeneza, até quando fica, está gostando...

Ri e concorda solenemente toda vez queele diz alguma coisa. Sei de cor todo o seu ar-senal de sedução: olhos lânguidos, dedosbrincando com os cabelos, sorriso malicioso,lábios num biquinho...

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Projeto-me da escada para assistir ao es-petáculo e talvez também para conferir queefeito provoca em Leonardo. Parece satis-feito. Até ele, como todos os outros, parecevencido pelo fascínio de Gaia. Mas de re-pente ele se lembra de mim e levanta o olhar.Eu me retraio de um pulo e quase deixo cairum potinho.

— Por acaso estamos atrapalhando você,Elena?

Resolvo ser um pouco azeda:— Bem, vocês é que sabem...Leonardo dirige-se a Gaia novamente:— Melhor eu ir, até porque estou at-

rasado. Foi um prazer, de todo modo.— O prazer foi meu — responde ela,

derretendo-se como um bombom ao sol.Leonardo despede-se de nós, depois vai

apressado em direção à saída. Gaia reparaem seu bumbum, eu olho Gaia e,

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inevitavelmente, meu olhar também caisobre o objeto em questão. Depois nosfitamos.

— Nada mal... — Nós duas pensamos,mas só ela diz. — Como você consegue tra-balhar com um sujeito desses por perto?

— Como consigo trabalhar com vocêsdois flertando aqui embaixo, você quer dizer!— rebato, indignada. — Você até finge tervindo aqui para me ver... Você não temvergonha...

— Eu tenho que inventar alguma coisa, jáque você não colabora comigo. Quer descerdessa escada, por favor?

— Não.Suspira, coloca um pé no apoio da escada

e um braço sobre um degrau, ainda olhandona direção em que Leonardo foi.

— De todo modo, Elena, aquele homem éuma coisa de louco. Você tem que admitirisso, senão eu te derrubo daí.

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Adoto a estratégia da indiferença.— Passe-me aquela esponjinha, assim

pelo menos você é útil.Gaia obedece, depois olha em volta para

estudar o ambiente, visto que até agora nãoteve tempo de fazer isso.

— O quarto dele é para lá? — pergunta,apontando o corredor que leva à esquerda.

— Sim.— Você já viu o quarto dele?— Não, por quê?— Não acredito... Não teve vontade de

bisbilhotar?— Não é que não tenha tido... — Um arre-

pio de terror me sacode, pensando no que elaestá arquitetando.

— Eu tenho vontade — e vai naqueladireção sem me esperar.

— Gaia, volte aqui imediatamente! —grito para ela, mas claro que é inútil. Souobrigada a descer da escada. Corro atrás

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dela. — O que você quer fazer? Para comisso! — Eu a alcanço e agarro sua manga,mas ela é mais forte e decidida e me arrastajunto.

— Ora, só uma olhadinha! — insiste, todaempolgada.

Já atravessamos o corredor e estamos su-bindo as escadas que levam ao andar decima, onde fica o quarto de Leonardo. Sempoder pará-la, sou obrigada a segui-la paraevitar que apronte alguma catástrofe, ou, pi-or, deixe rastros.

— Escute, vai acabar sobrando para mim,eu trabalho aqui! — Tento mostrar a ela queisso me causaria constrangimento, mas es-queço que o assunto trabalho não significamuita coisa para ela.

A porta do quarto está aberta. O cômodoé enorme como eu imaginava, parece umasuíte de um hotel de luxo. A cama, no meio,ainda está por fazer, os lençóis de seda

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embolados pendem de um lado. Por todaparte uma forração vermelha e dourada, quese reflete infinitas vezes nos enormes espel-hos que ocupam as duas paredes aos ladosdo dossel. É um ambiente sexy e elegante,decorado com um pouco de vaidade. Certa-mente Brandolini não lhe deu esse quartopor acaso...

— Que estilo! — exclama Gaia.— Que bagunça! — eu faço eco. Está tudo

desorganizado. Ao que parece, Leonardo nãose preocupa muito com arrumação. Napequena poltrona de veludo vermelho umadezena de camisas está amontoada e duascalças de linho estão jogadas no chão sobre otapete persa.

— É normal que esteja bagunçado — dizGaia, com ar de sabe-tudo. — Ele é umartista.

— Na verdade, ele é um cozinheiro — eu acorrijo —, e, de qualquer jeito, essa história

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do gênio e a falta de regras é uma grandebobagem, ou só uma desculpa...

— Pode ser, mas no caso dele é verdade —rebate, decidida. — Ora, só de olhar para eledá para entender que tem uma personalid-ade excêntrica, que é um homem criativo.

— É mesmo? Então você já sabe tudosobre ele.

— Algumas coisas são óbvias. Ponto.Sobre a mesinha de cabeceira

sobressaem-se uma garrafa aberta de Moët &Chandon e uma bandeja de prata com duastaças. Uma delas com marcas de batom.

Gaia me dá uma olhada eloquente e con-firmo o que já intuí.

— Hoje de manhã havia uma mulher comele e estava claro que tinham passado a noitejuntos. — Talvez eu tenha encontrado o jeitode neutralizá-la, por isso sou mais feroz:

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— E ela é bonita, rica e charmosa. Prat-icamente insuperável. Até para você,querida... Por isso, agora vamos.

— Humm, a brincadeira está ficando in-teressante... — Os olhos de Gaia acendem-sede curiosidade. Acho que consegui o efeitocontrário.

— Talvez não seja sua mulher. Senão viv-eriam juntos, não é? — continua, agarrando-se em suas suposições. — É normal que umhomem assim tenha mais de uma amante. —Da próxima vez, tenho que lembrar quequando tento desencorajá-la só pioro asituação.

Em vez de sair do quarto, como eugostaria, Gaia aproxima-se do armário e oabre. Por um instante meu olho cai sobre ocinzeiro no centro de uma mesinha e perceboque há restos de maconha. Não digo nada aela porque não quero alimentar ainda maisseu interesse.

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— Adora roupas de linho amassado —constata, surgindo de uma porta do armário.Depois se aproxima da poltroninha sub-mersa por camisas e percorre as peças usa-das por Leonardo com um ar sonhador. — Éelegante, tem bom gosto... E, confie em mim,essa é uma característica rara em umhomem.

— Agora, chega, você já me encheu! — ex-plodo, desistindo de usar qualquer estratégiapsicológica. — Vamos embora daqui, porfavor!

Aproximo-me de Gaia para pegá-la pelobraço, quando minhas narinas são agrada-velmente pinicadas por um perfume intenso,talvez âmbar. Eu o sinto de um modo nítido,imediato: é o cheiro de Leonardo, do qual es-tão impregnadas suas roupas. Sinto-me pou-co à vontade como se ele estivesse aqui. PuxoGaia pela manga.

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— Ora, para de ser chata... Só um mo-mento... — protesta ela, tentando se soltar.

De repente, um ruído do lado de fora nosparalisa. Ouvimos uma porta se fechar comum rangido. Meu Deus, Leonardo já voltou.

— Está vendo? — eu rosno, tomada pelopânico.

Nós nos atiramos para fora, voando es-cada abaixo. Quando surgimos no saguão —sem fôlego e com o coração a mil —, quasedecepcionadas, percebemos que não éLeonardo, mas o vigia do palácio.

Recomponho-me em um instante e digo,desenvolta:

— Bom dia, Franco.— Bom dia, senhorita. Passei para dar

uma olhada. Está tudo bem?— Tudo bem, obrigada, nenhum prob-

lema. — Minha voz vacila por causa da cor-rida de momentos antes. — Eu estava

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mostrando o palácio para uma amiga queveio me visitar.

— Olá — diz Gaia, acenando para ele.Franco pousa um olhar benevolente em nós,aquele que, tenho certeza, reserva às moçasdireitas.

— Está bem, então eu vou embora —conclui, aproximando-se da saída. — Se pre-cisar de alguma coisa...

— Obrigada, Franco, não preciso de nada.Até amanhã.

— Até logo.Quando a porta se fecha, eu e Gaia nos ol-

hamos. Eu queria esganá-la, mas sinto osmúsculos do rosto cederem sob o impulso deuma risada. Explodimos em uma gargalhada,cobrindo a boca com as mãos como quandoéramos crianças e tínhamos acabado de ap-rontar uma das nossas.

Esforço-me para ficar séria novamente.

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— Mas agora você vai sumir daqui, certo?— ameaço em um tom intimidador. Perceboque está mesmo tarde e de qualquer jeitodevo refazer todo o trabalho que não deucerto.

— Tudo bem, vou deixar você em paz. —Gaia faz menção de ir embora, mas antes desair se vira em minha direção: — Mas a gentese divertiu. E como sempre o mérito é todomeu... — diz, dando uma piscadinha.

— Some — sorrio.— Tchau, ridícula.

Já passou muito das seis e me resigno avoltar para casa, embora o dia não tenha sidoprodutivo como eu gostaria. É inútil, é im-possível trabalhar com um vaivém desses!Praticamente joguei a manhã fora, apenas àtarde consegui recuperar um pouco de con-centração, mas deixei a romã de lado, pelomenos por enquanto, e fiz uma primeira

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aplicação da roupa de Proserpina. Pelomenos isso ficou bom.

Assim que abro o portão para a rua, per-cebo que menosprezei demais o alarme met-eorológico divulgado ontem à noite pelocentro de marés. A água está subindo emuma velocidade espantosa. Eu devia ter idoembora antes, assim que ouvi a sirene dotoque de recolher, mas eu quase nunca douimportância e sempre acho que a água de-mora bastante para subir, e às vezes nemsobe. Desta vez eu fui realmente uma idiota.Deixei as galochas em casa — hoje de manhãestava sol! É um clássico: estou com elas sóquando não preciso, um pouco como oguarda-chuva.

Tento andar alguns metros, caminhandona ponta dos pés com minhas sapatilhas decamurça na água que já começa a escorrerpelo chão, lenta, mas implacável. É muito di-fícil. Chego ao final da rua com os pés

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completamente encharcados. Eu poderiaprocurar dois sacos plásticos e cobri-los, am-arrando as alças em volta dos tornozelos.Mas acho que já é tarde demais, consider-ando que em cinco minutos a água parece tersubido pelo menos trinta centímetros.

Protejo-me em cima de um murinhoainda seco para avaliar o que fazer... Emboraperceba que não há muita coisa para avaliar.Ou continuo em direção à minha casa,sabendo que chegarei encharcada e terei quejogar a roupa fora, ou volto para o palácio,correndo o risco de ficar presa lá dentro atétarde da noite, quando a maré terá baixado.

Enquanto estou indecisa entre essas duasopções, ambas pouco atraentes, Leonardo saido portão do palácio assoviando, com botasde pescador nos pés.

— Oi, Elena, o que você está fazendo aí?— pergunta, assim que me vê encolhida nomurinho como um gato com medo de água.

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— Estava tentando voltar para casa... —respondo, tentando desesperadamentemanter a dignidade. — Mas você não estavano restaurante?

— Estava, mas voltei por volta das cinco— disse, vindo em minha direção e deslo-cando metros cúbicos de água sob seus pas-sos. — Só que você estava tão mergulhada notrabalho que nem se deu conta e não quisincomodá-la.

— Ah. — Ele me alcançou. Daqui de cimaestou tão alta quanto ele.

— O que fazemos? — Observa comprudência o nível da água. — Quer que lhe dêuma carona até em casa?

— E como?— Você se agarra em mim — ordena,

batendo em um ombro — que eu cuido doresto.

A proposta soa um pouco indecente. Olhopara ele, hesitante. Gostaria de responder:

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“Não se preocupe, obrigada, eu me viro dealgum jeito”, mas nas minhas condições nãodaria para acreditar. — Acho que terei deaceitar.

— Mas tem certeza? Você vai perdertempo... — Estou quase aceitando...

Faz um gesto animador com a mão e vira-se, mostrando-me as costas. Tudo bem,aceito.

Suas costas são grandes, parecem umamontanha a ser escalada. Debaixo da camisade linho habitual posso entrever os múscu-los. Levanto um pé, mas o coloco de volta nochão, indecisa. Como eu fui burra, quandohoje de manhã pus saia e meias três-quartos.Sinto-me desajeitada como quando na escolaa professora de educação física me mandavasaltar com a vara, sob o olhar cruel de meuscolegas. Tento novamente, primeiro apoiouma das mãos em seu ombro, depois a outra,e o aperto, deixando-me levar, com o resto

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do corpo contra suas costas. Leonardo agarrauma de minhas pernas e a enlaça em volta dacintura. E eu faço o mesmo com a outra.

— Está pronta? — pergunta.— Acho que sim. — Agora meu corpo se

gruda completamente o dele. — E você?Consegue?

— Você é leve como uma pluma. — Ri. Se-gura minhas coxas nuas com as mãos e, cam-inhando com passos de gigante, ultrapassa aprimeira ponte em um minuto. Sinto meuseio esmagado contra seus músculos dorsais,enquanto envolvo seu pescoço com os braçospara não cair. Está com um perfume bom, omesmo que senti hoje em suas roupas. Masabaixo posso perceber outro, mais autênticoe selvagem, o de sua pele. Cheiro de vento ede mar.

— Para qual lado? — pergunta, quandoterminamos de passar pela ponte.

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Indico o caminho, falando a um centí-metro de seu ouvido, num sussurro que, nãosei por quê, tem algo de malicioso, e ele voltaa andar. Continua tranquilo, como se tudofosse perfeitamente normal, enquanto eu mepergunto o que diabos estou fazendomontada em um desconhecido. Tudo isso éabsurdo, mas ainda assim não me desagrada.Experimento uma sensação de calor que, porum instante, me faz desejar nunca descer,ficar sempre grudada em Leonardo, e de re-pente me dou conta de que meu sexo pres-siona suas costas: há somente o tecido dacalcinha nos separando, já que as meias nãochegam acima do joelho. Tenho certeza deque Gaia pagaria uma fortuna para estar nomeu lugar agora.

Ai meu Deus, estou quase escorregando.— Tem certeza de que está confortável?

Você é realmente levíssima. Quase não a

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sinto... — Aperta minhas pernas, ajeitando-me com um pequeno pulo.

— Tenho...É forte, seus músculos estão tensionados,

o sangue quente pulsa em suas veias. Suasmãos deslizam sobre minhas coxas com umanaturalidade que acaba com qualquer em-baraço meu. Quase parece já conhecer meucorpo, e isso me deixa desnorteada, não sei oque pensar.

Na rua Della Toletta os garis estão mont-ando as passarelas de madeira e, entre sor-risinhos maliciosos e comentáriosespirituosos, olham-me como se eu fosseuma princesa árabe em cima de um camelo.Como se dissessem: “Aquela lá está se dandobem...” Meu mal-estar cresce junto com aágua, que jorra sem trégua dos bueiros e in-vade tudo, encharca os muros, destroça astábuas de madeira. Felizmente Leonardo não

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pode ver a vermelhidão que está subindo nomeu rosto.

Nas lojas estão tirando rapidamente asmercadorias das prateleiras mais baixas.Gritando os comerciantes xingam a cada es-quina. A água é terrível, invade tudo, nãotem piedade de nada nem de ninguém. Defato, tenho que admitir: eu acabei me dandobem, hoje.

Pronto, chegamos. A ponte de madeira daAcademia surge em nossa frente. Daqui acem metros estou em casa e felizmente desteponto em diante o caminho está todo cobertopelas passarelas.

Belisco levemente o ombro de Leonardo.— Pode me soltar — digo —, daqui posso

ir sozinha.Leonardo para.— Tem certeza? Não me custa nada andar

mais alguns metros.

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— Está bem assim, mesmo. Você já foiótimo... — Por um momento, avalio a ideiade lhe oferecer algo para beber em casa, masnão queria dar margem a nenhum mal-en-tendido. A distância entre nós já diminuiu osuficiente por hoje. Além do mais, minhacasa está uma bagunça e resolvo evitar maisconstrangimentos.

— Fim da viagem — diz, soltando minhaspernas e tocando levemente minha calcinha.Com certeza ele não deve ter percebido. Ou,melhor, eu devo até ter imaginado que issoaconteceu... Então, dobra os joelhos e,segurando-me pelos ombros, me ajuda adescer.

Pulo para a passarela, ajeitando a roupa.— Obrigada, você me salvou.— Foi um prazer.Olho-o nos olhos. Será que foi um prazer

mesmo? Porque, para mim, acho que real-mente foi.

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— Então, tchau. A gente se vê.— Tchau, Elena, até amanhã. — Dá um

passo na água turva, depois se vira, dizendo:— Foi bom andar na água alta, sabe? Foiuma experiência que sempre quis fazer... Enunca teria imaginado compartilhá-la comvocê.

Sorrio para ele, ele sorri para mim e medeixa sozinha, enquanto Veneza se deixa aca-riciar pela maré.

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4

Hoje, sem desculpas: tenho que enfrentar aromã, mesmo me sentindo um trapo. Tivepesadelos horríveis a noite toda e quandoabri os olhos me vi deitada atravessada nacama, o lençol embolado e o travesseiro nochão. Custei para me levantar, com o coraçãolatejando no ouvido, e nem vinte gotas relax-antes de tília adiantaram alguma coisa. Ten-tei me alongar para soltar os músculos dolor-idos, mas quando percebi que as pontas dospés estavam mais distantes do que nunca,abandonei a ideia.

Consideradas as condições físicas e odesânimo, decidi pegar o vaporetto para irao trabalho: não quero nem saber de camin-har esta manhã.

Apoio-me na escada e olho a romã debaixo. Solto um suspiro, com um misto deadmiração e desconforto.

Eu gostaria de dizer a mim mesma queestou cheia de energia, que tenho certeza deque vou conseguir, mas não é verdade.Tenho medo de que o restauro não saia per-feito como exijo de mim mesma, de que nofim tenha de me contentar com um resultadopróximo, talvez com uma cor que não sejaexatamente a mesma, mas que tenta, semsucesso, aproximar-se da original. Já até sei:o pintor anônimo virá me visitar em umsonho, de madrugada, acusando-me de terestragado sua obra-prima.

Passo a mão entre os cabelos para ex-pulsar esses pensamentos estúpidos e coloco

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a bandana. Devo me concentrar e terminaressa maldita romã de qualquer forma. Se eucontinuar assim, corro o risco de tambémperder a visão geral e comprometer todo oresto.

O sino de San Barnaba acabou de bater asonze. Geralmente a essa hora faço um lanchecomo na hora do recreio da escola — na ver-dade, seria meu café da manhã ainda —, masagora não estou com nenhuma fome. A man-hã começou mal e parece continuar pior.Perdi até o colírio, justamente agora que pre-ciso dele. “Você é mesmo uma cabeça devento”, diria minha mãe, e teria razão.Procuro no assoalho , porque ele pode terescorregado do bolso, mas nada. Droga, eagora? Vou à farmácia comprar outro novo?Claro, porque já fui bem produtiva atéagora...

Tudo bem, o colírio que se dane. Façouma leve massagem nas pálpebras com os

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dedos e então subo na escada repetindo meunovo mantra — você vai conseguir, Elena —e eis que estou novamente cara a cara com aromã. Ela me olha com ar de desafio.

Não tenho medo de você, não, não tenhonenhum medo de você.

Comecei a trabalhar há quase uma hora,com pouco resultado, quando uma voz atrásde mim estoura a frágil bolha de con-centração onde eu tinha conseguido mefechar.

— Oi, Elena.Ferrante, só me faltava ele.— Leonardo... — cumprimento com um

aceno distraído, esperando que não queiraconversar. Não cruzava com ele há dias,desde que me levou para a casa nas costas.Desde então, porém, ele com frequênciavirou protagonista — contra minha vontade— de certos pensamentos secretos e

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inoportunos, que em geral reprimo pontual-mente assim que nascem.

Espio-o com o canto do olho: tem nasmãos um saquinho de papel marrom,daqueles que são usados no mercado.

Olha a pintura coçando o queixo duasvezes, depois se dirige ao pequeno sofá en-costado na parede e joga em cima dele o sa-quinho, que faz um baque surdo no veludodo estofado. Virando-se de costas para mim,tira a jaqueta de couro e fica com uma camis-eta branca de mangas curtas. Sua pele é es-cura, queimada de sol, os músculos dosbraços, cuidadosamente esculpidos, as veiasem evidência. É um homem muito bonito.Não tenho o que dizer, devo dar razão a Gaia.

— Pode descer um minuto? — pergunta-me.

Viro-me para ele franzindo as sobrancel-has e balanço a cabeça.

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— Vamos... — continua ele com um tomdecidido. — Quero fazer uma experiência.

— Que experiência?— Primeiro você desce, depois eu digo. —

Um sorriso ambíguo desliza em seus lábios.Não sei o que quer fazer, aquele olhar não

é muito tranquilizador, ainda assim seu con-vite tem algo de irresistível, que me deixacuriosa. Meu embaraço, enquanto isso,cresce — meu rosto está fervendo, eu sinto—, e o único modo de vencê-lo é decidir obe-decer à ordem sem fazer muito charme. Porisso, coloco potinho e pincel no último de-grau da escada e a passos lentos desço umdegrau depois do outro.

Pronto, estou na frente dele agora.Leonardo me estuda, atravessando-me como olhar.

— Bem — dá um suspiro profundo —,agora você tem que fechar os olhos.

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— Hein? — pergunto, surpresa. — Possosaber o que está pretendendo?

— É só uma tentativa — encoraja-me comvoz convincente. — Mas se funcionar você vaime agradecer.

Percebo que minhas mãos estão tre-mendo levemente. Não é normal que essehomem venha aqui interromper meu tra-balho e me dar ordens e eu seja incapaz deresponder como gostaria. Há um magnet-ismo nele, algo que não tenho a capacidadede controlar e muito menos de rejeitar.

Respiro profundamente. Deixo os braçoscaírem ao longo do corpo e, agora sim, fechoos olhos. Confio nele, imagino que não tenhooutra escolha.

— Você tem que jurar que não vai abrirenquanto eu não mandar.

— Tudo bem — concordo. — Sinto-me umpouco idiota.

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— Confie em mim, Elena — ele me tran-quiliza. Sua voz é mais doce, agora.

Escuto alguns passos. Está se afastandode mim. Então, um barulho de papel amas-sado, desenrolado. Presumo que está vascul-hando no saco. Entreabro os olhos, masLeonardo está de costas para mim e não vejonada, então mais vale fechá-los de novo.Pergunto-me se não é o caso de ter medo, nofundo esse homem é um total estranho paramim... Não, pensando bem, não acho quedevo ter medo. Na verdade, tenho vontadede rir.

— Vejo que você está se divertindo... Issoé bom! Melhor assim — comenta.

Meu Deus, ele percebeu. Agora está vindoem minha direção. Parou a poucos centímet-ros do meu rosto — pelo menos eu acho — econsigo até sentir sua respiração.

— Agora não pense em nada. Somente es-cute — ordena, de maneira respeitosa.

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Um ruído seco chega direto ao meuouvido direito. É um som indecifrável,primeiramente duro e depois mais macio. Dealgo de vivo que se quebra, se parte ao meiocom um estalido.

— O que é? — pergunto, surpresa.— Você tem que adivinhar, é essa a

brincadeira.Intuo que sorri, sua respiração exala em

meu rosto. Está cada vez mais perto.— Sinta o cheiro.Aproxima o objeto misterioso do meu

nariz e inspiro. Um perfume peculiaríssimome agita, descendo até a garganta. Parecealmíscar, terra... matéria viva.

— É uma fruta? — arrisco.Leonardo não responde. Pega minhas

mãos suavemente e as gira com as palmaspara cima. Um arrepio quente atravessaminhas costas, perdendo-se entre asnádegas.

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— Toque nela — sussurra. Pousa em min-has mãos duas semiesferas.

Dobro levemente os dedos para sentirmelhor sua consistência. Por fora é liso e aomesmo tempo rugoso, enquanto por dentroreconheço com o tato um emaranhado de se-mentes revestidas por uma película fina quese rasga em alguns pontos.

Talvez eu tenha entendido.— É uma romã?— Você vai descobrir agora. — Leonardo

solta minhas mãos. — Abra a boca, prove.Hesito, não gosto da ideia de não ver o

que estou prestes a colocar na boca, mas façocomo ele diz. Algumas sementes escorregamfrescas na língua. Têm um gosto ácido, pin-icam um pouco e sob os dentes sinto umapolpa dura e doce de essência fibrosa.

— Agora abra os olhos — diz Leonardo.Abro lentamente as pálpebras. Ele está na

minha frente e me olha com ar de satisfação.

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— E isso aqui é uma romã de verdade. Asmais doces vêm da Espanha, sabe? — diz, se-gurando a fruta nas mãos. — Acho que vocêprecisa partir daqui para chegar ali — e in-dica a romã no afresco.

Eu também a olho, enquanto as sementesgrudentas ainda rodam na minha boca.Aquele detalhe que antes era apenas umarede de formas e cores é, de repente, algovivo. Ele está na minha boca, nas narinas, nabarriga, mais que na cabeça. E tenho a im-pressão de vê-lo realmente pela primeira vez,de poder descobrir seu mistério. Não sei oque dizer, estou completamente des-norteada. Procuro ajuda no olhar deLeonardo. Ele sorri para mim.

— Às vezes os olhos não bastam para ver-mos tudo, não é?

Concordo, ainda insegura.— Acho que entendi o que você quer

dizer...

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— Então você deveria voltar logo ao tra-balho. Vou deixá-la tranquila. — Faz mençãode ir embora.

Dá alguns passos em direção ao corredor,mas de repente volta, como se houvesse es-quecido algo, talvez o saquinho com asromãs ou a jaqueta. Mas não. Baixa o olharum instante, vasculha em um bolso da calçajeans e pega meu colírio.

— Encontrei isso aqui ontem no meuquarto — explica, estendendo-o para mim. —Talvez você possa precisar dele.

Petrificada, pego o vidrinho. Agora eu sóqueria abrir um buraco no chão, me enterrare nunca mais sair.

— Obrigada, procurei por ele a manhã in-teira — digo, desenvolta, tentando disfarçarem vão o constrangimento que sinto crescerdentro de mim. — Realmente não sei comofoi parar lá, no seu quarto — continuo, e en-quanto isso minhas bochechas estão

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pegando fogo. De novo. Eu queria encontrarum álibi válido, mas nunca fui boa emmentir. Aquela idiota da Gaia... E eu maisidiota ainda em ir atrás dela! Agora ele deveestar pensando que sou uma bisbilhoteira,ou, pior, uma desequilibrada, porque é óbvioque, aos seus olhos, sou eu a autora docrime.

Leonardo dirige-me um olhar cúmplice,como se pudesse ler meu pensamento. Dá deombros, divertido, e abre um sorrisoamigável, que quer dizer “fique tranquila,não aconteceu nada grave”. Depois, semacrescentar mais nada, vai embora,deixando-me ali, plantada, no meio dosaguão. E fico indecisa entre fingir que nãoaconteceu nada e correr para me esconderonde ninguém possa vir me procurar.

Quando saio do palácio está quaseescuro, os lampiões já se acenderam ao longo

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da rua e o ar fresco de outubro obriga-me alevantar a gola do casaco. Estou arrumandoo cabelo para um lado, quando uma voz,quase um sussurro, me chama.

— Psss... Bibi! — É a voz de Filippo.Está sentado na borda do poço no meio

da pracinha. Assim que nossos olhares secruzam, ele escorrega e aterrissa no calça-mento, mexendo a capa cinza-escura.

— Aquele afresco não queria mais largarvocê... — Coloca o telefone no bolso e seaproxima.

— Dia produtivo — respondo, mas decidodeixar de lado a experiência de Leonardo. —O que você está fazendo por essas bandas?

— Passei para dar um oi — diz, ajeitandono ombro a alça do laptop. — Não ligueiporque sei que você não atende quando estátrabalhando.

— Bem, talvez você eu tivesse atendido —e bato o ombro no dele, de brincadeira.

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Andamos em direção à piazza San Barn-aba. Estou feliz que Filippo esteja aqui. Eletem a extraordinária capacidade de me relax-ar e me deixar imediatamente à vontade.

— Tenho que lhe dizer uma coisa — coçaa nuca como se buscasse as palavras. Seus ol-hos se entristecem em um instante.

— O quê?— Amanhã tenho que voltar para Roma.

E ficar lá — diz, de um fôlego só.— Puxa... — Não sei como reagir à notí-

cia. Talvez para ele seja boa e não vem aocaso manifestar aquela ponta de descon-tentamento que sinto subir na garganta. —Você não tinha me dito nada...

— Soube há duas horas — abre os braçosresignado. — Decisão do chefe. Pensou emme mandar para a sede de Roma porque eleacha que sou o mais qualificado.

— Soa como uma promoção.

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— Parece ser, ao menos pelo que Zontadiz. “Considere isso um avanço na carreira”,ele me falou, atirando alguns documentos naminha escrivaninha com a postura arrogantede sempre. — Filippo afunda as mãos nosbolsos e fixa o olhar em um ponto indefinidono horizonte. — Aumento de salário e, obvia-mente, estadia paga. Acho que é umadaquelas propostas irrecusáveis... — diz, im-itando a voz de Marlon Branco no PoderosoChefão. Mas não parece muito feliz.

— E você não está contente? — pergunto,à queima-roupa.

— Sim, estou contente — responde ele. —Só que tudo aconteceu tão de repente, eutinha acabado de me readaptar a Veneza e,agora, vou embora de novo... — Ele me olhae por um instante espero que acrescente “e,além disso, não queria deixá-la”, mas logome obrigo a parar de pensar nisso. É o mo-mento dele, é a carreira dele, o objetivo pelo

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qual se dedicou tanto... Tenho que ficar felizpor ele e colocar o egoísmo de lado.

— Você vai ficar fora por quanto tempo?— pergunto, tentando não parecer muitochorona.

— Não sei exatamente, mas com certezaserão meses... E o primeiro período serátotalmente frenético. — Respira fundo, comose quisesse se preparar para uma confissão.— O escritório obteve a parceria paracomeçar a obra de um edifício projetado porRenzo Piano.

— Nossa, Fil, parabéns! E o que você es-tava esperando para me contar? — A notícianão é somente boa, é sensacional, até.Infelizmente. Dou-lhe um leve beijo estaladono rosto. — Essa é a oportunidade da suavida.

Filippo sorri, contido. Sua modéstia medeixa sem reação e é um lado dele de quegosto muito. Sei que tem orgulho de suas

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conquistas, mas não é do tipo de se gabar. Osucesso não lhe subiria à cabeça nem se lhepedissem para projetar de novo o EmpireState Building.

— Escute, agora tenho um jantar de des-pedida com os colegas do escritório. — Peloseu olhar entendo que não está com muitavontade, mas que tem que ir por educação.Que pena, esperava passar a noite com ele,pelo menos. Mas me conforta intuir que elesente o mesmo.

— E nós? Não estamos nos despedindoassim, não é? — protesto.

— Sinto muito, Bibi — ele me diz com vozcontrita, abaixando o olhar. — Amanhã,entre os preparativos e a hora da viagem,acho que não terei muito tempo.

— Droga, Fil... — É tudo rápido demaispara mim.

Ele levanta meu queixo e sorri,encorajador.

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— Mas eu vou ficar esperando você. Vocêtem que ir me visitar em Roma.

— Claro que vou — respondo com umacareta.

— Só me dê um tempo para me ajeitar ecombinamos um fim de semana. Tudo bem?

— Tudo bem. — Mas aquilo não me con-sola completamente.

— Estou contente que você está triste,sabe? — E afasta um cacho de cabelo daminha testa. — Eu sinto a mesma coisa. Nãosou muito bom em demonstrar. Mas agoratenho que ir, senão vou ser linchado... Ou,pior, corro o risco de encontrá-los já caindode bêbados.

— Vou sentir muito a sua falta.— Eu também.Nós nos abraçamos com força, como se

com aquele aperto quiséssemos imprimir emnossos corpos a marca de um no outro. De-pois damos dois beijos demorados no rosto e

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ficamos nos olhando por um momento, hes-itantes. Talvez nós dois desejássemos umbeijo diferente, mas logo desviamos o olhar evoltamos a ser os amigos de longa data.

— Vou embora. A gente se fala em breve.— Boa viagem, Fil. E boa sorte.Outro abraço rápido e então nos separa-

mos, indo para lados opostos da praça.Viramos mais uma vez para acenar adeus edepois vamos embora, por caminhos queagora divergem.

Enquanto ando a passos lentos na rua decasa, uma enorme tristeza me invade.Parece-me uma grande injustiça que Filippotenha que ir embora justo agora: havíamosacabado de nos reencontrar e estávamoscomeçando a entender muitas coisas sobrenós. Estupidamente, somente agora me douconta do quanto sua presença foi importantenos últimos dois meses.

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Estou sozinha há mais de um ano, o quesignifica que não existe nenhum homem naminha vida, mas essa condição nunca me in-comodou muito. Eu me descobri maisautônoma e independente do que pensava.Mas, então, chegou Filippo e o senti próximocomo nenhum outro. Pela primeira vez de-pois de tanto tempo tive sérias dúvidas sobreminha vocação para solteira.

Um instante depois aparece diante demeus olhos, cruel, a imagem de Valerio, o úl-timo namorado que tive, um amor que nas-ceu na época sem preocupações da faculdadee que terminou no primeiro impacto com avida adulta. Pensando nele mais uma vez,pergunto-me se o que eu amava era ele defato ou apenas a segurança artificial da nossarelação. Depois da formatura comecei a dete-star meu trabalho temporário, tinha muitasdúvidas sobre o futuro e estava sempre insat-isfeita, e ele representou um de meus poucos

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portos seguros naqueles anos. Eu precisavatanto acreditar naquilo que não percebia oquanto ele era mais frágil que eu, eu não en-tendia que nossas duas fraquezas não form-avam uma força. Foi muito doloroso deixá-lo, mas com a maturidade acho que fiz acoisa certa para ambos. Valerio representavaapenas minha fuga da realidade. O problemaé que, às vezes, esta fuga pode ser desgraça-damente parecida com o amor. Mas rompercom ele, agora tenho certeza, marcou minhaentrada no mundo dos adultos. E tenho or-gulho de ter sido eu quem tomou a decisão.

Cheguei em casa. Chega de pensar nopassado. É passado, justamente, e agora ser-ia sensato começar a me abrir às coisasnovas que esperam por mim. Se pelo menoseu tivesse tido mais tempo para passar comFilippo, talvez nossa amizade — emboranesse momento eu tenha sérias dificuldadespara definir nossa relação assim — se

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transformasse em alguma outra coisa. Sabe-se lá, quem sabe nem tudo esteja perdido,quem sabe nos reencontraremos mesmo as-sim, de algum jeito. O que é certo é que vousentir saudade de nossas saídas, nossos pa-pos sobre os filmes, nossos jantares, nossasrisadas. Vou sentir saudade de tudo nele. Éinútil negar isso, agora.

Depois do jantar, visto minha roupa deficar em casa e me jogo no sofá para zapearos canais da TV. Estou cochilando em frentea um documentário sobre os animais dasavana, quando tocam a campainha. Olho orelógio: é quase meia-noite, quem pode ser aessa hora? Espio pelo olho mágico, um poucotemerosa, e vejo-me diante de uma cabeçaloira. E, mais abaixo, os olhos verdes deFilippo.

— Ei, oi! — digo, abrindo a porta, umpouco desnorteada.

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— Eu estava passando aqui perto e queriasaber se você ainda estava acordada — dizele, com um sorrisinho malicioso.

— Sim, estava vendo um pouco de tele-visão — respondo, abrindo caminho.

Filippo entra e eu vou atrás dele. Está secomportando de um jeito estranho, estátenso, sem jeito. Indico-lhe o sofá e sento aoseu lado. Está pálido como um cadáver ecomeço a ficar preocupada.

— Aconteceu alguma coisa? — pergunto,com prudência.

— Não, mas eu queria conversar um pou-co com você antes de...

— Fil, por acaso você está mudando deideia? Não quer mais ir embora? — Eu oantecipo.

— Não, não é isso...— E então o que é?— É você, Elena.

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Sou eu. Bem, agora está tudo claro: Fil-ippo resolveu se declarar e quer fazer issopoucas horas antes de se mudar para outracidade. Perfeito: eu não estou nem um poucopreparada, estou usando a pior roupa domeu armário e nem escovei os dentes.

— Não queria ir embora sem lhe dizer oquanto gosto de você.

— Mas eu sei o quanto você gosta demim. — Não encontro nada melhor paradizer, então tento tornar o tom da conversamais leve com um sorriso e desarrumo seucabelo. Quase desejo que pare por aqui, quenão diga mais nada.

— Não, você não sabe. — Segura minhamão e pousa dentro dela um beijo profundo.O calor de seus lábios propaga-se através domeu braço e chega direto ao coração. Então,sem dizer nada, aproxima-se e também mebeija nos lábios, leve, inseguro, como se mepedisse permissão.

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Eu não recuo, aliás, me aproximo mais.Você tem minha permissão, Fil. Então seuslábios se tornam mais ousados e sua línguase mexe devagar procurando a minha. Suasmãos, tão delicadas, seguram firme minhacabeça e agarram meus pensamentos, pren-dendo todos eles no espaço que agora nãoexiste entre nós. Fecho os olhos, prendo arespiração. Estamos nos beijando de verdadeagora. Filippo se solta e me olha diretamentenos olhos.

— Eu queria ter feito isso mil vezes, Bibi.Mas não tinha certeza se você tambémqueria.

— Eu não esperava outra coisa.Nós nos beijamos mais e mais, sem nos

saciarmos, sem coragem de dizer nada. De-pois, delicadamente, Filippo me faz deitar nosofá e ajeita-se ao meu lado. Continuando ame beijar, enfia uma mão debaixo do meucasaco felpudo e toca levemente um dos

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meus seios com a ponta dos dedos. Eu me ar-repio àquele contato. Ele me olha como se eufosse a coisa mais preciosa do mundo, comose não acreditasse em seus olhos. E eu tam-bém custo a acreditar que, depois de tantashesitações e oportunidades desperdiçadas,agora estamos aqui, abraçados e emocion-ados, com uma única noite para passarmosjuntos e recuperar o tempo perdido.

— Sempre desejei você. Desde o primeiromomento — sussurra no meu ouvido, antesde voltar a me beijar com mais entusiasmoainda. Sua mão agora desliza pela minhapele e acaricia meus seios, parando por uminstante no pequeno sinal em forma de cor-ação que tenho justamente sobre o seio es-querdo. Filippo vem para cima de mim e tirameu casaco e minha camiseta em um gestosó. Não estou usando nada por baixo e ficoum pouco sem jeito, desvio o olhar e procuroo interruptor do abajur para escurecer a sala.

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Agora vejo a silhueta dele inclinando-sedevagar em cima de mim, sinto a boca en-contrando os mamilos já arrepiadas e oschupa devagar, como se fossem de açúcar.Sinto-me derreter debaixo dele. Passo os de-dos em seus cabelos, aproveitando aquele in-stante de pura delicadeza.

Procura e abre o fecho da minha calçajeans. Contraio os músculos do abdômen en-quanto sua mão abre caminho na minha cal-cinha. Acaricia meu clitóris e continua a bei-jar meu seio. É uma sensação deliciosa, queeu quase tinha esquecido. Ele para, mas sópara arrancar minha calça, junto com a cal-cinha. Eu também tiro a camiseta dele, e en-quanto isso Filippo se livra sozinho da calçajeans. Agora estamos nus, na semiescuridãoposso entrever seu tórax esguio, definido, esua ereção, vindo pra mim. Estou quase indopara a cama com Filippo, repito para mimmesma em pensamento, está acontecendo

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agora, aqui, na minha casa, mas ainda custoa entender isso. Os pensamentos viajammais lentamente que nossos corpos.

Enquanto isso, ele voltou a estimularmeu clitóris, os dedos avançam entre os lá-bios e depois sobem, preenchendo o vazio.Eu me retraio um pouco, pega de surpresa.

— Tudo bem? — pergunta Filippo.— Tudo — eu o tranquilizo.Eu não faço sexo há quase um ano e, para

dizer a verdade, estou um pouco ansiosa. Fil-ippo espera que eu esteja pronta, então sedeita em cima de mim e, segurando o paucom uma mão, me penetra devagar, um pou-co de cada vez, sem pressa. Quando estácompletamente dentro emite uma respiraçãomais profunda e começa a se mexer em ritmoregular. Envolvo seu pescoço com os braços ebeijo-o na boca, acompanhando omovimento. Deixo-me embalar e me

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abandono. Não lembrava que podia ser tãobom. Tão pleno.

O encontro dos nossos sexos liberta arre-pios de prazer, que se tornam cada vez maisintensos. Até que Filippo empurra com umpouco mais de força e eu me agarro a elequase com violência, soltando um brevegemido. E tenho um orgasmo líquido e ado-cicado que se propaga dentro de mim comouma grande onda. Tremo em seus braços,perco totalmente o controle, a noção dotempo e de onde estou. É surpreendente queFilippo esteja me dando isso. Estou feliz.Como não me sentia há tempos.

Filippo inclina-se para me beijar e mexemais o quadril, procurando o próprio prazer.Ele também está gozando agora, posso sentira pulsação de sua ereção enquanto desabaem cima de mim com um grito quaselibertador.

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Nós nos beijamos e nos abraçamos bemapertado, um pouco admirados. Não existempalavras para nós nesse momento. Fizemosamor e foi bom. Nenhum dos dois tem vont-ade de perguntar o que vai acontecer aman-hã, não agora.

— Elena — diz Filippo, segurando meurosto nas mãos. — Quero dormir com vocêessa noite.

— Sim — respondo, em voz baixa.Nós nos levantamos do sofá de mãos da-

das, com as pernas ainda um pouco trêmulase o levo até a minha cama e vamos para de-baixo das cobertas. O sono nos surpreendeenquanto ainda estamos abraçados.

Abro os olhos e uma luz azulada invade oquarto. Ontem não fechamos as persianas e aclaridade entra pela janela. Viro-me para Fil-ippo, mas ele já está de pé, vestindo-se. Sorripara mim.

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— Volte a dormir, ainda é cedo. Eu tenhoque ir fazer as malas.

Não obedeço e sento encostada àcabeceira. Nós nos olhamos, conscientes deque agora dizer adeus será ainda mais difícil.Filippo vem se sentar ao meu lado e arrumameus cabelos, que certamente estão desgren-hados. Meu Deus, não quero lhe deixar comoa última lembrança minha, a cara que tenhoquando me levanto da cama de manhã!

— Nada de carinha triste, Bibi.— Você não tem medo de termos com-

plicado tudo, Fil? Talvez tenhamos feito acoisa certa na hora errada.

— Talvez sim, mas não me arrependo. Euqueria você. E quero você agora.

— E o que fazemos, então?— Não somos obrigados a tomar uma de-

cisão. Temos todo o tempo. Bibi, não penseque isso é um adeus...

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— Não, claro... — respondo, embora nãotenha certeza de nada. — É que as grandesdecisões me deixam ansiosa, você sabe.

— Eu sei, mas não estamos com pressa.Quando nos encontrarmos de novo re-tomamos daqui.

— Então, estamos adiando tudo para ummomento melhor?

— Sim, pelo menos enquanto eu estiverem Roma e você em Veneza.

— Acho que é a decisão mais sábia, Fil.— É o único jeito de não enlouquecermos,

Bibi.Nós nos abraçamos apertado e nos bei-

jamos pela última vez, depois ele se levanta.Eu também queria me levantar paraacompanhá-lo, mas ele me detém. Ajeitamelhor a colcha em cima de mim.

— Não, fique aqui, no quentinho.Um último beijo na testa e então desa-

parece pela porta do quarto. Deito

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novamente e me cubro até acima dos ca-belos. Queria voltar a dormir e relaxar, mas écompletamente inútil, mil pensamentos jáme invadiram.

Esta noite que passei com Filippo foiterna e emocionante. Pergunto-me se eurealmente poderia me apaixonar por ele.Sempre houve um entrosamento especialentre a gente... Mas será suficiente? Tenhoque tentar entender isso, porque não possome dar ao luxo de cometer um erro e depoisvoltar atrás, não com Filippo. Devo per-manecer lúcida, descobrir se estou con-fundindo o carinho com algo mais profundo.A distância com certeza será um peso, mastalvez seja a prova de que precisamos paraentender a verdadeira natureza dos nossossentimentos.

Viro e reviro na cama, agitada, consider-ando por um bom tempo minhas análises in-úteis — uma noite de sexo e já virei

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paranoica? — e, no fim, me conformo em melevantar e vou à cozinha preparar um chá.

Na mesa, presa embaixo da fruteira, háum papel. É um desenho, o retrato de umamulher esboçado a lápis. Sou eu. Viro a folhae no canto de baixo leio uma escrita, em umacaligrafia regular e ordenada.

Como você é linda...Dormia tão bem, esta noite...

Um pouco mais abaixo, uma assinatura:Filippo

Desabo na cadeira, com os braços caídos.Reclino a cabeça para trás e emito um sus-piro profundo. Assim não vale, Fil. Como vouconseguir ficar lúcida se você faz assim?

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5

Filippo viajou há três dias. Telefonou assimque chegou a Roma e anteontem nos falamospor Skype.

— Bibi, não quero perder você. Não agora— terminou a conversa assim.

Devemos tentar nos falar com frequência,dissemos um ao outro, apesar de sabermosbem que e-mails e telefonemas não serão su-ficientes para matar as saudades.

Há três noites durmo mal. Durante o diaconsigo permanecer concentrada no tra-balho, mas pontualmente, assim que voupara a cama, dúvidas e preocupações me

invadem, às vezes, parece que sinto o cheirode Filippo, daquela nossa única noite. Comoas coisas vão acabar entre nós? Pode existirum amanhã, tenho direito de querer umamanhã, depois de meses de solidão dese-jada, ou foi apenas uma noite em que nosdeixamos levar pela emoção da despedida? Oque sentimos de verdade um pelo outro?Mas, principalmente: o que eu sinto?

Como se não bastasse, para que eu nãoconseguisse dormir essa noite, também con-tribuíram as duas gatas da vizinha, a senhoraClelia. Aquela velha solteirona as mantémisoladas o ano todo no apartamento quarto esala de trinta metros quadrados, mas quandoas bichanas estão no cio é normal que en-louqueçam, e então ela as solta na rua. Seusmiados lancinantes colocaram à dura provameu sistema nervoso e meu amor pelosanimais.

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Às quatro da manhã eu não aguentavamais, e com duas olheiras olímpicas fui paraa janela, espectadora conformada do shownoturno lá embaixo, na praça: em volta dasgatas de Clelia, cinco ou seis vira-latas es-tavam travando uma luta furiosa para gan-har o direito a elas.

Um emaranhado de costas arqueadas,bufadas, pelo arrepiado, e, depois, garras,dentes e miados agudos. De repente, as gatasentregaram-se ao desejo deles, embora eunão tenha conseguido intuir bem quem comquem, naquela orgia animal. Hoje de manhãClelia deve as estar procurando histérica pelavizinhança toda... E daqui a duas semanas asbichanas voltarão para casa, magras, arran-hadas, mas felizes. Sorte a delas!

Um toque do iPhone me traz de repentede volta à realidade. Apoio o pincel sobre arede de proteção e confiro rapidamente, semsequer tirar as luvas de borracha: já tenho

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uma ideia de quem possa ser. E, de fato, éFilippo, que me mandou uma mensagem.Baixo logo a foto: é um primeiro plano delecom os olhos ainda um pouco inchados desono e um sorriso confiante, com uma con-strução supermoderna, ou melhor, umcanteiro de obras profundo.

Bom dia, Bibi. Já no trabalho. E você?

Saudades.

Olho novamente a foto, um pouco mel-ancólica. Também sinto saudade dele.

A ideia de ir visitá-lo me tenta cada vezmais e devo admitir que o pensamento queele possa conhecer gente nova na capital mefaz sentir muito ciúme. Talvez tenha chegadoo momento em que eu também deva me jog-ar e lutar para conseguir minha aventuraerótica.

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Esfrego o visor do celular na manga domacacão e respondo.

Eu grudada no mesmo afresco, mas pelo

menos está ficando bom...

Saudades também. Um beijo.

Depois tiro uma foto com um pedaço doafresco ao fundo e anexo à mensagem.Apesar das noites insones e das minhas pre-ocupações, o restauro está indo bem. Talvezporque com o tempo eu me sinta mais se-gura, talvez a experiência de Leonardo tenhafuncionado (porque funcionou, não possodeixar de lhe dar esse mérito), talvez porque,de tanto tentar, as coisas, mais cedo ou maistarde, dão certo... Resumindo, parece ummilagre, mas hoje a romã finalmente assum-iu a tonalidade certa, a que eu buscava hátempos.

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— Tem alguém fazendo corpo mole aqui...— Uma voz familiar surge atrás de mim derepente. Viro-me e vejo Gaia na porta, abolsa de marca pendurada em um braço e oandar seguro sobre os saltos altos.

Não é possível! Apesar de todas as re-comendações e ameaças ela voltou aoataque. Contei-lhe o constrangedor epílogodo nosso vexame e lhe disse para não apare-cer mais por essas bandas, e aqui está elanovamente, com sua expressão desaforadade sempre, de quem não tem nada a temer.

Empunho o pincel sujo de têmpera e oaponto para ela:

— Vade retro, Satana — intimo. Então,me dou conta: — Como diabos você con-seguiu entrar? O portão não estava fechado?

— Subornei o vigia lá embaixo. — Gaiapisca para mim. Nada a se fazer, até o bomFranco ela compra com suas bajulações.

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— Saia imediatamente! Estou trabal-hando, tenho mil coisas para fazer e nãoquero confusão! — digo, de um fôlego só,balançando o pincel contra sua camisa deseda.

Gaia levanta as mãos e exibe aquele sor-riso com o qual acha que conquista o mundo:

— Ele, puxa vida... Tanta chateação porcausa de um colírio?

— Por causa de um colírio?! São as be-steiras que faço por sua causa... — Coloco opincel de volta no lugar, mas logo reparo quecometi um erro: para ela, isso deve parecerque estou me rendendo. De fato, aproxima-se em busca de cumplicidade.

— Vamos... Não me parece tão grave.Concentro-me em limpar alguns instru-

mentos para recuperar um pouco de respeit-abilidade profissional, ela se curva para pro-curar meu olhar. Parece que minha impa-ciência a diverte.

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— De todo modo, se Leonardo não sechateou conosco, isso quer dizer que, nofundo, no fundo, ele gosta das nossasatenções, não é?

Finjo refletir com uma mão na testa:— Ou que nos considera duas bobas sem-

graça com as quais não vale a pena se irritar.— Nunca devemos subestimar o nar-

cisismo de um homem — replica Gaia, comar de entendida. — Todo mundo gosta de serpaquerado.

— Parece que você tirou essa aí do manu-al do stalker.

Leonardo materializa-se bem naquelemomento, como uma divindade que desceudo alto em uma tragédia grega, só que usacalça jeans rasgada e jaqueta de couro preta.Os olhos de Gaia iluminam-se e minhasbochechas pegam fogo.

— Bom dia — ele nos cumprimenta cordi-almente: não parece ter notado nossas

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reações, ambas preocupantes, cada uma àsua maneira.

— Bom dia — respondemos em coro.Leonardo dá uma olhada no afresco e

sorri para mim, cúmplice.— Aquilo ali leva todo o jeito de uma

romã...— Isso — concordo. — De tanto tentar

muitas vezes... — digo, sem entrar em detal-hes. Evito qualquer menção à “experiência”,salvando-me preventivamente da curiosid-ade de Gaia. Então, começo a raspar com en-ergia a tinta de um potinho, esperando pare-cer muito atarefada.

Leonardo dirige-se a Gaia:— Você vem sempre visitar Elena?— Na verdade, eu estava passando aqui

perto...“Vem sempre visitar você”, penso, con-

tinuando a atacar a tinta seca no potinho.

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Embora eu não me intrometa, a conversados dois engrena logo. Leonardo parece sat-isfeito com a presença de Gaia, com certezaentendeu que é seu alvo. Talvez ela tenharazão, o mundo está cheio de bonitõesegocêntricos que querem apenas seradorados.

De repente, porém, vira-se para mim:— Já ia me esquecer de dizer a vocês uma

coisa importante — passa uma mão pelo ca-belo. — As duas estão convidadas para anoite de inauguração do restaurante.

Eu paro de raspar, levo uma fração de se-gundo para me sintonizar novamente naconversa deles.

— Ah, sim? E quando será? — perguntaGaia, ansiosa, usando seu tom maisdesenvolto.

— Daqui a exatamente uma semana.Quarta-feira que vem.

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Claro, só faltava essa. Abro a boca paradizer “Quarta-feira que vem? Que pena, játemos um compromisso...”, mas Gaia seantecipa:

— Obrigada, aceitamos com prazer! Nãoé, Elena? — Sem nem me olhar apressa-seem tirar o BlackBerry da bolsa. — Olha, jávou marcar no calendário. — Fazendo os de-dos voarem nas teclas, aciona a agenda e, de-pois, golpe de mestra, aproveita para pedirseu número de telefone. — Caso haja algumcontratempo de última hora... — especifica,com um sorrisinho malicioso.

Vê-la em ação parece tanto um es-petáculo, que fico hipnotizada e quase me es-queço de me irritar com ela. Gaia é meumodelo inatingível em matéria de sedução.Logo depois vêm as gatas de Clelia.

Leonardo, como se houvesse intuídominha perplexidade, me lança um olhar deencorajamento:

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— Que fique claro, espero vocês duas.Eu concordo, mas não acredito muito na-

quilo. Ele me fita, sério.— Vi o quanto é apaixonada por seu tra-

balho, Elena. E é assim para mim também.Por isso faço questão de lhe mostrar o que eufaço. — Diz isso como se realmente se impor-tasse. Não consigo não acreditar nele. Estouum pouco surpresa, então tento me fazer deimportante.

— Não sei... É que tenho tanta coisa parafazer nesse período...

Leonardo volta a se dirigir a Gaia, em-bora continue a olhar para mim:

— Conto com você, Gaia. Encontre umjeito de arrastá-la. Até quarta, meninas. —Então, vai embora, deixando-nos em dois es-tados de espírito diametralmente opostos:ela entusiasmada; eu confusa e perturbada.

— Por que você aceitou? — rosno paraela, cheia de motivos para ficar com raiva.

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— Porque não havia razão para recusar.— Simples e direta, como somente ela sabeser.

Cruzo os braços no peito.— Pode ficar sabendo que eu não vou.

Não quero ser convidada para jantar depoisdo papelão ridículo daquele dia.

— De novo esse assunto? — bufa Gaia. —Ora, Ele, acho que Leonardo já esqueceu.Vamos passar uma bela noite, comer bem,quem sabe conhecemos pessoasinteressantes...

— Nem se você me implorar.— Olhe que se você não for eu também

não vou...— Vou morrer de desgosto!— E você vai me fazer perder uma opor-

tunidade dessas? Boa amiga, você! Eu fariaisso por você...

— Não comece com a chantagememocional.

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Gaia dá uma olhada em seu relógio com oquadrante crivado de Swarovski.

— Escute, agora tenho que ir. Enquantoisso, você pensa bem, depois falamos denovo sobre o assunto.

Não entendo qual é a interferência mis-teriosa que faz meu “com certeza não” chegaràs suas orelhas como um “provavelmentesim”.

— Tudo bem, desde que você me deixeem paz — liquido com ela sem rebater maisnada. Se depender de mim, a conversa acabaaqui.

— Você disse tudo bem mesmo? Eu escut-ei direito? Sim, você disse tudo bem! — Gaiaaponta para mim o dedo indicador de unhavermelha.

— Não, eu queria dizer...Não me deixa replicar.— Agora você já falou. Você me deve isso

e pronto. Eu ligo para você! — Sopra-me um

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beijo com a mão e vai embora correndo,quase voando com seus saltinhos de zebrasobre o piso antigo.

É certo: eu a odeio.

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— O vermelho combina mais com você — dizGaia, empurrando-me para frente do espelhoda sala de estar. — Olhe para você, estámaravilhosa!

Subo nas pontas dos pés e dou meia-voltasobre mim mesma, mas minha imagem re-fletida me faz torcer o nariz. Não estou con-vencida. Esta noite haverá a tão esperada —pelo menos por Gaia — inauguração do res-taurante de Brandolini: é por isso que estourodando pela casa seminua em uma deses-perada busca por algo decente para vestir.Gaia está em cima de mim há duas horas, é

exaustivo. Com medo de que eu mudasse deideia na última hora, surgiu na minha casa jácompletamente vestida, maquiada e pen-teada, arrastando atrás dela uma mala e duasbolsas enormes cheias de roupas e acessóri-os. E agora quer me impor o visual que elaescolheu para mim.

— É curto demais, Gaia — protesto, apon-tando o dedo para minhas coxas. — Pareceque não estou usando nada... E, além disso,esse vermelho é um soco no olho.

Gaia balança a cabeça e levanta os olhosao céu.

— Você é um caso perdido mesmo. Nãoentende nada mesmo de moda...

— Vamos, deixe-me experimentar o Guccipreto de novo — digo, me preparando para oenésimo confronto com o espelho.

Gaia move-se felina sobre as sandáliasturquesa, que combinam rigorosamente com

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o minivestido de cetim que usa, e vai pegarmeu vestido no outro quarto.

— Tome — bufa, jogando a roupa emcima de mim. — Faça como quiser. Se fazquestão de não chamar nenhuma atenção...

Enquanto ela está no banheiro retocandoa maquiagem, tiro o vestido vermelho e,afastando-me do espelho para evitar um en-contro próximo com meu corpo pálido e pou-co definido, coloco rapidamente o preto denovo. Uma olhada de longe para ver o con-junto, uma de perto da cintura para cima,uma voltinha completa no lugar. É este, con-segui. Fico bem melhor, embora eu ache quenunca nada caia perfeitamente em mim.

— Mas é decotado demais! — protesto emvoz alta para que Gaia escute, ajeitando ocorpete sobre o seio.

— De jeito nenhum — rebate ela, dandouma olhada da porta do banheiro. — Ficouótimo em você. O Prada vermelho estava

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melhor, mas este Gucci também entrou paraganhar...

Apoio as mãos nos quadris e encolho abarriga. Minha dieta à base de pizza e conge-lados não é exatamente a melhor coisa para aforma física, devo admitir.

— Tenho curiosidade de saber onde vocêos arrumou. Estes vestidos devem custar umabsurdo.

— Simples, eu aluguei em um site — piscaela.

Dou uma olhada no espelho assassino etento me convencer: com este vestido ficobem, estou bonitinha... Ora, pelo menosapresentável.

— E o sutiã? Eu precisaria de um semalça. — Olho para Gaia, desejando que en-contre a solução.

— Mas você acha o que, que eu sou umaamadora? — Gaia tira de uma das duas bol-sas gigantes um push-up tomara que caia de

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renda preta e balança-o diante dos meusolhos.

Eu o visto e, como em um passe de má-gica, meus seios aumentam um número.Olho-me, hesitante: será que a renda apare-cendo não é um pouco vulgar?

— Tome — Gaia arruma uma pequenaecharpe de seda branca em meu pescoço. —Mas não se cubra toda, só um pouco.

Sorrio. Se ela entender suas clientescomo me entende, é a personal shopper maisdiabólica do mundo.

— E agora vamos escolher os sapatos —continua, vasculhando em uma das bolsas.Meus pés começam a doer só de pensar.

— Sapatos Paciotti de cetim preto, salto12 — sentencia Gaia, mostrando um par dearmadilhas em forma de sandálias. — E nãose discute.

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— Ah, tudo bem... — Uma risada histéricasai da minha boca. — Depois vou precisar deum andador para caminhar.

— Vamos, Ele, você não vai morrer seusar uma noite só!

Dou um longo suspiro.— Está bem, mas eu vou colocá-los um

segundo antes de sair. Para evitar um poucoa tortura.

— Faça como quiser, mas assim não terátempo para se acostumar... Pior para você! —E, enquanto isso, tira da mala um assustadorarsenal de maquiagem profissional.

— Agora, minha querida, maquiagem epenteado — diz, com um sorriso triunfante.

Eu a olho, desconfiada.— Mas vá devagar... — ordeno. Em geral

não me maquio muito, talvez porque nuncaaprendi como se faz realmente e nas poucasvezes em que arrisco tenho sempre a im-pressão de piorar tudo. Ainda assim, as

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regras básicas são as mesmas do restauro:primeiro limpamos bem, depois preparamosa base, então espalhamos a cor e, no fim,colocamos o brilho. Só que fazer isso sobreuma parede é uma coisa; no meu rosto éoutra história.

Gaia começa a passar o corretivo debaixodos meus olhos, depois pega a base de longaduração e a bate levemente com umapequena esponja de borracha. Confio nela.Conhece o assunto o suficiente para fazer umbom trabalho.

Estuda meu rosto, pegando meu queixoentre os dedos.

— Você tem um curvador de cílios? —pergunta.

— O que você acha?— Até parece que perguntei se você tem

um vibrador!— Você é a profissional aqui...

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— E, de fato, tenho os dois — vinga-se,com orgulho. — Como você quer o cabelo? —continua, enquanto espalha o blush em min-has maçãs do rosto.

— Dividido para o lado e pronto. — Nãofaço questão de ser torturada com grampos epresilhas, até porque depois é dor de cabeçana certa.

— Humm... Mas vou tentar ondular umpouco para suavizar seu corte estilo Chanel.Esta noite você tem que parecer uma ver-dadeira diva.

Não tenho escapatória.

Depois de duas horas e meia de preparat-ivos, finalmente estamos prontas. Gaia jádesceu para a praça para fumar um cigarro.Coloco um casaco comprido leve, pego aecharpe de seda, a carteira prata e enfio assandálias debaixo do braço. Desligo as luzes,tranco a porta e desço as escadas descalça.

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Assim que me vê surgir do portão, Gaiaapaga a guimba debaixo do plateau. Colocoas armadilhas nos pés e vamos. Que Deus meproteja!

São nove e meia da noite e na praça SanPolo, na entrada do restaurante, já há umafila. A festa é fechada, ou seja, só quem foiconvidado pode entrar. Para Gaia isso é umbom sinal, significa que lá dentro só haverápessoas selecionadas. Eu não sei, não sou es-pecialista em VIPS: minha única esperançapara esta noite é não tropeçar e desabar viol-entamente em cima de alguém.

Quando chegamos em frente ao arco daentrada, mostramos os convites ao segur-ança de casaca preta. Parece um agente doserviço secreto, cabelos raspados e fone noouvido. Dá uma olhada rápida nos convites elogo depois afasta a cordinha vermelha quecontrole a passagem.

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— Por favor — diz, deixando-nos entrar.— Obrigada — respondemos em coro.

Gaia pisca para mim, já empolgada: está emseu ambiente.

Após superarmos a primeira passagem,percorremos o tapete vermelho estendido nopátio interno, iluminado por tochas elampiões. O flash de um fotógrafo quase mecega. Tomara que eu não tenha sido focaliz-ada, porque bem naquele momento eu estavaarrumando desajeitadamente a cabeleira dediva. Amaldiçoo Gaia por ter feito ondas nomeu cabelo e principalmente por tê-las en-chido de laquê. Os dedos ficam presos nelas.

Duas modelos apertadas em impecáveistubinhos pretos conferem nossos nomes nalista de convidados e nos desejam uma boa-noite.

No interior o ambiente é quente e fascin-ante, decoração típica de casa aristocráticaveneziana com detalhes árabes. O

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restaurante tem dois andares, o de baixo érodeado por vitrais que se abrem para umjardim interno. A música de fundo é suave,envolve sem ser invasiva.

Um grupo de garçons circula entre aspessoas com bandejas cheias de taças dechampanhe. Pego uma para molhar um pou-co a boca e depois de poucos instantes passopara Gaia, que já esvaziou a sua.

Saímos no jardim, onde ficamos literal-mente encantadas: esse lugar é uma festapara os olhos, os convidados movem-se entretochas e lanternas de papel penduradas noar, que tornam a atmosfera realmente má-gica. Estudo as pessoas em volta das mesas,notando uma explosão de chiffon, seda,renda e tafetá. Somente os flashes contínuosdos fotógrafos tentam quebrar o encanto. Háaté uma pequena equipe de televisão: a jor-nalista, microfone em mãos e operador decâmera atrás, circula entre as pessoas para

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conseguir alguns comentários entusiasma-dos sobre a noite. Vem até mim também, es-pecificando que o especial irá ao ar em umconhecido canal de televisão, mas eu lhe ex-plico que não vem ao caso. Só em pensar na-quilo eu já estava ficando roxa.

Gaia está acelerada. Cumprimenta pess-oas que não conheço, exibindo para lá e paracá sorrisos amáveis.

— Desculpe, mas você conhece essa gentetoda? — pergunto.

— Um pouco — responde. — Algumas sóde vista, mas é sempre bom ser notada.

Balança a cabeça resignada e me dirigeum olhar como se dissesse “tenho que lheensinar tudo mesmo”.

De fato, eu teria muito o que aprendercom ela, admitindo-se que eu realmentequeira alargar meus horizontes sociais. Olhoum pouco ao redor e estudo a situação. Mas,no fundo, o que tenho eu a ver com essas

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pessoas? Dizer que me sinto um peixe forad’água talvez seja suave demais. Dois ho-mens próximos retribuem meu olhar comum sorriso. Do que eles estão rindo? Talvezeu esteja muito despenteada, ou com pastade dente nos lábios... Escondo-me atrás deum garçom, fingindo não vê-los. De repentelembro que estou com um vestido muito de-cotado e arrumo a echarpe de seda nos om-bros. Nesse meio-tempo, Gaia desapareceu.

Volto para dentro para procurá-la e en-trevejo Jacopo Brandolini de longe: por fimum rosto familiar. Nunca fiquei tão feliz emvê-lo. Está conversando animadamente comum grupinho de pessoas, mas me reconheceue nos cumprimentamos com um aceno.

Penso em ir até ele, quando um estrondode aplausos levanta-se do público. As pess-oas que ainda estavam no jardim entramrapidamente e todos se viram para um

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tablado no meio da sala, onde um homem el-egante de smoking anuncia a performance:

— Senhoras e senhores, tenho a honra delhes apresentar um homem que fez daculinária uma arte, um espetáculo tanto paraos olhos quanto para o paladar: o chefLeonardo Ferrante.

As luzes diminuem, a atmosfera é de sus-pense durante a espera. As notas de um vi-olino enchem o ar, enquanto holofotesazulados acendem-se em um mezanino ondeaparece uma lindíssima violinista de vestidovermelho. Com as esplêndidas mãos finas,envolvidas por pequenas luvas de rendapreta, empunha um violino elétrico de vidrotransparente que se ilumina de luz azul-es-cura ao toque do arco. Reconheço aquelevestido e a mulher também. Talvez sejasomente uma fantasia minha, mas me parecea mesma que vi sair do palácio há algum

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tempo junto com Leonardo. A diva da lan-cha. É ela, tenho certeza.

— Ele, você viu? — Gaia reaparece comoem um passe de mágica ao meu lado. — Essafulana que está tocando é famosa.

— Ah, é?— É Arina Novikov, a violinista russa. Fez

um concerto na Arena de Verona sábadopassado.

— Bem, é a tal que passou a noite comLeonardo — digo-lhe, já saboreando suasurpresa.

— Hein?— A mulher da lancha.— Jura?— Juro, tenho certeza.— Droga! — Gaia parece se divertir, o fato

de ter que competir com essa espécie dedeusa não a preocupa de jeito nenhum, aliás,deixa-a excitada. Ela é feita para os desafios.

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Agora a violinista está começando a in-confundível obra Inverno das QuatroEstações de Vivaldi e é simplesmente emo-cionante. Ao contrário de Gaia, não consigoolhá-la sem pensar que é cem vezes maisbonita e talentosa que eu.

Mas agora os olhos de todos dirigem-seao centro da sala, capturados por uma novaaparição. Leonardo ocupa a cena enquantoirrompem os aplausos. Veste um paletó pretocom colarinho mandarim, enfeitado combordas e botões brancos. Enrolada na testa,uma faixa de seda branca segura seus cabelosabundantes, fazendo-o parecer um guerreirooriental. É realmente uma presençamagnética.

Um holofote amarelo ilumina-o por trás eduas fontes de fogo acendem-se aos lados dacena. Com o Vivaldi crescendo, a perform-ance começa. Gaia me faz um sinal para nosaproximarmos e vermos melhor, e dando

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cotoveladas no meio da multidão consegui-mos avançar alguns metros. Agora estamosbem abaixo dele.

Leonardo empunha a faca e começa acortar em fatias finíssimas uma posta depeixe-espada, ancorando-o na superfície demármore com uma mão. Aquela segurançana pegada me é familiar e a lembrança voaimediatamente a quando me levou agarradaem suas costas, afundando os dedos nasminhas coxas. Enquanto o ritmo da músicaaumenta, Leonardo salpica as fatias com algoque, de onde estamos, leva todo o jeito de sersemente de papoula. Caem de seus dedos se-guros e depositam-se sobre a carne rosa dopeixe, pontilhando-a de minúsculas gotaspretas. Então, Leonardo esmigalha um pi-mentão vermelho transformando-o num póbrilhante e, com a precisão e a velocidade deuma máquina, corta fininho erva-doce,abobrinhas e aipo.

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Estou quase sem fôlego: é um mestre.Viro-me um instante para Gaia, buscandosua cumplicidade, e percebo que ela tambémestá enfeitiçada, os olhos fixos nele, a bocaentreaberta em uma expressão deadmiração.

Leonardo com as fatias de peixe-espadamonta canapés, decorando-os com a misturade legumes e lasquinhas de casca de laranja.É extremamente concentrado, seguro dospróprios gestos, o maxilar contraído, as veiasem evidência nas têmporas. Modela e trans-forma a matéria com mãos de artista, suaarte é completa, suas criações são pequenasobras-primas a serem admiradas e, nãotenho dúvida, saboreadas. Leonardo seduzcom a comida e tem consciência disso, usa-apara enfeitiçar os sentidos e a mente. Por uminstante encontro seus olhos escuros e tenhoa impressão de que me dirige um sorriso im-perceptível. Não sei se é somente minha

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imaginação, mas um arrepio de prazer fazcócegas na minha nuca.

A música agora está no crescente final.Leonardo pousa sobre uma tábua alguns la-gostins batidos crus, depois alguns filés finosde olho-de-boi. Trabalha a polpa do peixecomo se tivesse um fluido nas mãos, atéformar muitos pequenos corações divididosao meio. Enfim, salpica as partes redondascom flores de laranjeira, pimenta e sementesde gergelim. Depois tudo é disposto ceno-graficamente em três elegantes travessas, en-quanto sobre a última nota do violinoLeonardo dirige um sorriso levemente es-boçado ao público. De imediato surge oaplauso, forte e longo. Leonardo nos con-quistou. A todos.

Com o fim da performance, as pessoas sedispersam no jardim, onde o jantar será ser-vido em mesas de bufê. Sigo a massa junto

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com Gaia, aventurando-me em busca de al-guns petiscos entre vários de formas e coresdiferentes. Diante de nossos olhos um tri-unfo de extravagantes, geniais iguarias emminiatura, destinadas a serem pegas comdois dedos e saboreadas em uma só bocada.Penso no tempo que foi necessário paraprepará-las e em quão rapidamente serãoconsumidas. No fundo, é apenas isso que asdistingue de uma obra de arte: são o fruto deuma mente criativa e do trabalho hábil dasmãos, mas não são feitas para durar.

— Leonardo foi fantástico — comentaGaia, dando uma dentada em um filé desalmão em uma camada de mexilhões.

— Incrível... Você fez bem em me arrastaraté aqui — respondo. — Nunca teria ima-ginado um espetáculo assim.

Faço uma análise das iguarias, mas per-cebo que, por mais que sejam deliciosas dese ver, são uma afronta ao meu credo

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vegetariano. Cigarras-do-mar recheadas desalmão marinado, ostras sobre gelatina deespumante com molho de gengibre, torrad-inhas de pão com patê de fígado e peito depombo. Lindas, incríveis, talvez gostosas,mas não para mim. Limito-me a provar asúnicas duas propostas vegetarianas: umacrosta de parmesão com radicchio e castan-has e, depois, os talos de aipo verde comqueijo cremoso robiola, peras e nozes. De to-do modo, como acontece comigo quando nãome sinto à vontade, não estou com muitafome. E, além do mais, a performance deLeonardo me deixou, não sei por que, com oestômago fechado.

Gaia me pega por um braço e mepergunta:

— Aquele lá é Brandolini?O sujeito ao lado de duas loiras que se

desmancham em sorrisinhos ousados e ol-hares felinos.

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— Sim, é ele. O conde está semprerodeado por mulheres.

— Mas... Ele não está nada mal —comenta Gaia.

Olho-a para ver se está falando sério.Está.

— Ele tem algo de especial, dá para verque tem classe. É mais uma pessoa que vocêdeveria ter me apresentado... Mas se eu es-perar por você...

Observo-o tentando entender o que elapossa ver nele, mas percebo que não sou ob-jetiva: Brandolini é meu empregador e, comosou rígida com essas coisas, não consigoconsiderá-lo sob outros pontos de vista. Derepente atrás dele surge Leonardo. Tirou afaixa de seda da testa e no lugar do uniformede chef usa uma de suas camisas de linhoamassado, branca. Jacopo aperta sua mão elhe dá um tapinha amigável no ombro,elogiando-o.

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— Ele nos viu? — pergunta Gaia,plantando-se na minha frente e dando-lhe ascostas.

Espio por cima de seu ombro enquantofala com o conde e seu harém.

— Acho que não.— O que você acha, vamos cumprimentá-

lo?— Talvez seja melhor esperar que esteja

sozinho.Gaia bebe de sua taça, impaciente.— Nós não queremos mesmo arruinar a

alegria daquelas duas...— Espere, eles se despediram delas, estão

vindo para cá — sussurro.Leonardo avança na nossa direção, na

frente de Brandolini. Cumprimenta primeiroGaia — ela vira-se, fingindo surpresa; é ofi-cialmente meu ídolo — e depois vem até amim e me beija no rosto. É a primeira vezque acontece isso; registro a aspereza de sua

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barba ruiva e o toque fugaz dos dedos em umquadril.

— Parabéns, foi uma inauguração es-petacular — digo ao conde, apertando suamão.

— O mérito todo é do grande chef. —Brandolini dá um sorriso satisfeito indicandoLeonardo, depois fixa o olhar em Gaia,examinando-a da cabeça aos pés.

Leonardo intervém, rápido.— Esta é Gaia, a nossa relações-públicas

— e, assim, me livra do embaraço de umanova apresentação.

— Prazer, Jacopo. — O conde lhe dá amão e ensaia uma espécie de reverência.

— Prazer — pisca Gaia.— Então você trabalha com eventos... —

diz Brandolini, demonstrando um vivo in-teresse. Não entendo por que logo trata Gaiacom informalidade e continua me chamandode senhora.

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— Sim, eu e minha sócia temos umaagência. Começou um pouco como brin-cadeira e depois se tornou um trabalho deverdade. — Gaia domina a cena, segura.

— Tenho certeza de que ela poderiaajudá-lo muito, Jacopo — intervémLeonardo. — Por que não conta a ela seusplanos de divulgação do restaurante?

O conde aproveita a deixa e começa afalar sem parar com Gaia, que parecebastante satisfeita com a atenção dele, em-bora continue a dar umas olhadas emdireção a Leonardo. Enquanto isso, ele seaproxima de mim e me envolve com o olhar.

— Você está muito bonita esta noite —diz, com voz macia.

— Obrigada — limito-me a responder,tentando entender se está sendo sincero ouse é puro cavalheirismo.

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— Embora — acaricia o queixo — eu devadizer que seu macacão de trabalho tambémcombina com você.

— Oh, Deus, acho que não mesmo...— Acredite em mim. Não sou exatamente

o tipo de homem que elogia com facilidade.Acredito nele, uma massagem no ego não

faz mal a ninguém. Por um momento es-queço até os pés doloridos e tento manteruma postura, endireitando as costas e ab-rindo os ombros.

A conversa entre Gaia e Jacopo torna-secada vez mais animada, os dois riem etrocam olhares de cumplicidade. Parece quese conhecem a vida toda. De repente, porém,um garçom aproxima-se de Brandolini esussurra-lhe algo no ouvido, ele se viraprontamente para Leonardo e o agarra porum braço.

— Leo, temos que ir. Os Zanin nos esper-am para discutir sobre os vinhos.

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Pronto, meu momento de glória jáacabou. Eu murcho como uma bola furada.

— Meninas, sinto muitíssimo — desculpa-se o conde —, mas o dever está chamando.Com certeza nos vemos mais tarde. — E umaolhada eloquente pousa no decote de Gaia.

Depois que foram embora, Gaia me bom-bardeia de perguntas sobre Leonardo. Quersaber tintim por tintim sobre o queconversamos.

— Ele estava dando em cima de você? —pergunta, por fim. Era aí que ela queriachegar.

— Não diga bobagens.— Ele, ele estava comendo você com os

olhos!— Imagina!— Tudo bem, eu não fico mal, não...

Primeiro porque não sou do tipo ciumenta esegundo porque sempre posso me consolarcom o conde — e me dá uma piscadinha.

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— Como você é generosa.— Por uma amiga, isso e mais — sorri,

sonsa. — E de qualquer forma, Jacopo é real-mente um cara bonito, gosto dele.

Se ela está dizendo...Mas será que Leonardo poderia estar in-

teressado em mim de verdade? Se até Gaianotou isso, talvez... Não, provavelmentedisse aquilo só para me animar.

— Ele, seu batom está um pouco borrado.— Vou ao banheiro retocar, vem comigo?— Não, espero você sentada aqui. —

Acomoda-se em uma poltroninha debaixo datenda. — Estou um pouco tonta, acho que ex-agerei com o champanhe.

— Tem certeza de que não precisa deajuda?

— Tenho, pode ir. — E me manda emboracom um empurrão.

— Tudo bem, mas não saia daí.

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— Fique tranquila, não teria forças praisso. — Sorri, deixando os braços escorregar-em para baixo.

É claro que quando volto do banheiro,Gaia já sumiu. Procuro-a no meio da mul-tidão, no jardim, entre as mesas, depois, dolado de dentro, até no andar de cima, masnada... Parece ter evaporado. Enfim volto aojardim e me conformo em esperar. Mais cedoou mais tarde ela deverá passar por aqui,digo a mim mesma. Depois de algunsminutos, sento-me, pego o iPhone da bolsa elhe mando uma mensagem ameaçadora. De-pois tento ligar para ela, mas seu telefone es-tá desligado. Onde será que ela se meteu? Ecom quem, principalmente...

Enquanto continuo a procurá-la com oolhar, Leonardo materializa-se de repente.Senta-se ao meu lado e me olha de um modoindagador.

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— Então, gostou da noite?— Sim, muitíssimo. — Abaixo o vestido,

tentando convencê-lo a cumprir suaobrigação: cobrir-me.

— Você comeu?— Bem, um pouco...— Um pouco? — Faz uma expressão

escandalizada.— Humm... É que sou vegetariana. Há

anos.— Ah. — Sorri. O que será que há de tão

engraçado no fato de eu ser vegetariana?Tento mudar de assunto.— Gostei do espetáculo, sabe? Suas cri-

ações parecem obras de arte. Tão bonitas quequase sentimos pena de comê-las.

Ele inclina a cabeça para o lado.— E quem disse que uma coisa bonita não

pode ser comida? — solta a pergunta,fitando-me com olhos estranhos, que

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escondem algo. — Quanto mais uma coisa ébonita, mais tenho vontade de comê-la...

Por que tenho a impressão de que se ref-ere a mim? De repente, me pega pela mão ese levanta.

— Venha, quero que você prove algo es-pecial — diz, enquanto me arrasta algunsmetros mais à frente, perto de uma mesaonde estão apoiadas diversas variedades derum e chocolate. — Acabei de fazer essasaqui. — Leonardo apanha de uma bandejachocolate confeitado finamente gravada commotivos florais, parece uma pequena joia.Aproxima-a da minha boca. — Vamos — in-centiva, com um olhar que mata.

Abro a boca, sinto o chocolate se partirsob os dentes e liberar um creme doce comnotas cítricas. Retenho com a língua aquelegosto maravilhoso, que liberta uma volúpiaintensa em todas as partes do corpo.

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— É muito bom. — Olho Leonardo, com-pletamente entregue. Acho que no meu rostoficou uma expressão daquelas maravilhosasque surgem após o orgasmo e torço para quenão seja evidente demais.

— Coloquei uma coisa aí que a essa alturavocê deveria conhecer bem — confessa ele,com um sorriso malicioso. Arregalo os olhosde surpresa, acho que entendo o que querdizer. — Eh, isso... Suco de romã. Misturadocom extrato de laranja e flores de laranjeira.— Passa o polegar no meu lábio superior,provavelmente para tirar um resto dechocolate.

Ai meu Deus, acho que Gaia tem razão,ele está dando em cima de mim. De repenteme lembro dela e para atenuar a tensãoprocuro o celular na bolsa. Ligo para ela, masseu telefone ainda está desligado.

Leonardo me olha, complacente.

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— Se estiver procurando Gaia, eu a viindo embora com Jacopo — avisa. — E achoque não voltará — acrescenta, achandograça.

— Então ela me deixou aqui sozinha?— Você não está sozinha, está comigo —

ele me corrige, franzindo as sobrancelhas. Sequis me tranquilizar não conseguiu. Umaparte de mim ficou lisonjeada por seu in-teresse, mas a outra, aterrorizada, queria fu-gir na mesma hora.

— De todo modo, já está bem tarde —observo, com um sorrisinho nervoso —, émelhor eu ir.

— Eu acompanho você um pouco.— Não precisa, com certeza você deve es-

tar ocupado.— Eles podem sobreviver sem mim tam-

bém — diz ele, pondo um fim à questão comum gesto de mão. — E, além disso, estoumesmo com vontade de dar uma volta. —

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Seus olhos mostram a satisfação de um pre-dador sufocando sua vítima nos dentes.

Não tenho saída.

Percorremos um bom pedaço do caminhoem silêncio, entrando em ruas que conheçode cor, nas quais me movo com a segurançade um gato, apesar da escuridão. Meus pésdoem, mas tento não demonstrar, impondo-me um andar digno.

A rua está deserta e dos canais sobe umvapor denso que invade as narinas e insinua-se sob a pele até os ossos. Então, de repente,como se alguém tivesse acabado de construí-la naquele momento, estamos diante dabasílica dos Frari.

— Ali dentro está guardada a pintura deTiciano de que eu mais gosto — digo, apenaspara preencher um silêncio que me deixapouco à vontade, indicando a igreja com umgesto do queixo. — De vez em quando me

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refugio aqui para olhá-lo... Não sei por que,mas tenho certeza de que pode me inspirar.

— Vamos entrar, estou curioso — propõeele.

— Imagina, é proibido. Fica fechada ànoite.

— Não acho que isso seja um problema.— Em sua voz não há nenhuma sombra dehesitação.

Em um segundo Leonardo identifica umaporta secundária que leva à sacristia e, semmuito esforço, abre-a. Entrasorrateiramente, pegando-me pela mão earrastando-me atrás de si. Por que nuncaconsigo lhe dizer não? Estou com medo, oalarme poderia tocar ou alguém poderia nosver. Ou seja, é uma coisa proibida. É eletriz-ante e ao mesmo tempo muito assustador.

Da sacristia desembocamos na nave lat-eral e chegamos ao altar central, onde está oretábulo de Nossa Senhora. Ali dentro está

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completamente escuro, mas a iluminaçãosobre a tela ficou acesa, junto com umacâmera de segurança — pelo menos é o queme parece. Perfeito! Serei presa por violaçãode espaços sagrados.

— Aqui, a pintura é esta — digo, tentandonão pensar nisso.

— É enorme. Não esperava que fosse tãogrande.

— É, tem quase sete metros de altura.— É poderoso, com muito vermelho —

comenta Leonardo, com o olhar admirado.— Na época, Ticiano havia arriscado —

concordo. — Nunca ninguém vestira de ver-melho Maria subindo ao céu.

— É por isso que você gosta tanto?— Não só... É a tensão vertical que o at-

ravessa, de baixo para cima — explico, imit-ando o andamento do quadro com as mãos.— Está vendo aquele apóstolo de costas, queestende os braços em direção a Nossa

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Senhora? Parece que a está arremessando noar dando início ao seu movimento ascend-ente em direção ao céu.

— Então é isso que você vê nele?— Sim.Estamos lado a lado e o contato com ele

me provoca arrepios. Encontro seus olhospor um instante, mas me viro imediatamentepara o retábulo e continuo falando.

— Há um detalhe interessante. Se perce-ber, o rosto da Virgem não está completa-mente iluminado e isso significa que aindanão subiu aos céus: a sombra é um chamadoao mundo terreno, no qual Nossa Senhorapermanecerá presa até ter completado suaascensão.

Leonardo concorda e continua observ-ando a pintura em silêncio. Talvez o que es-tou dizendo realmente lhe interesse...Gostaria de saber o que está passando pelacabeça dele — porque é óbvio que está

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pensando em alguma coisa —, mas não ousoperguntar.

— Mas agora vamos — imploro —, antesque chegue alguém para nos prender.

Quando chegamos ao lado de fora,voltamos a caminhar. Sou eu quem dito oritmo e a direção, Leonardo me escolta confi-ante e paciente como se não tivesse maisnada para fazer. De repente percebo queficou um pouco para trás; viro-me e está en-costado no parapeito de uma ponte. Está ol-hando uma gôndola, cheia de luzes coloridas.Vou até ele. Só agora reparo que não estavaolhando a gôndola: seus olhos são atraídospela água.

— O que será que tem lá embaixo, já pen-sou nisso? — pergunta.

Eu também olho para baixo e me douconta de que, na verdade, eu nunca me per-guntara isso.

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— Esta cidade está tão ocupada em flutu-ar que ninguém nunca se preocupa com oque existe na profundeza de seu coração —reflito em voz alta.

Ele se cala por alguns instantes que meparecem longuíssimos, então se vira paramim e pergunta, em um sussurro:

— Você não gostaria de descobrir o que seesconde no fundo de todas as coisas? —Agora está me fitando com seus olhosescuros, penetrantes. Uma luz ferina at-ravessa seu olhar, mas é apenas por um mo-mento e, depois, com um sorriso gentil, sesolta do parapeito e volta a andar.

Sigo-o um pouco perturbada. A proxim-idade deste homem, o modo como falacomigo e me toca, seu perfume inebriante,tudo nele me faz sentir uma estranha agit-ação. Estamos quase chegando em casa e jáme preparo para o momento em que teremosque nos despedir. Será que ele vai tentar me

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beijar? A imagem de Filippo quica como umabolinha de borracha na minha cabeça, maslogo desaparece, é como se eu nãoconseguisse mantê-la.

Então, digo a mim mesma que estou indodepressa demais com a fantasia. TalvezLeonardo esteja com aquela lá, a diva da lan-cha, talvez esta noite só estivesse com vont-ade de dar uma volta e não tenha nenhumaintenção de me beijar. Mas, para ser sinceracomigo mesma, essa segunda hipótese medeixa um pouco decepcionada.

— A violinista é sua namorada? — a per-gunta me escapa, de uma hora para a outra.Quase não percebo ter falado aquilo em vozalta.

Leonardo me olha e dá um meio sorriso.— Não, Elena... Não sou um cara para

namorar.— Ah, entendo. — Na verdade não en-

tendo nada. O que significa que não é “um

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cara para namorar”? Que quer ficar sozinho?Que não é feito para a vida a dois? Por uminstante me iludo que ele vai me dar algumaspistas para decifrar essa frase, mas per-manece em silêncio. E eu tomo cuidado paranão lhe fazer mais perguntas. Passei doslimites.

Finalmente estamos no portão da minhacasa.

— Obrigada, cheguei.— De nada. Trazê-la em casa está virando

um hábito agradável — diz, com voz quente emusical.

— Então, tchau — dou um passo até ele.Leonardo pousa a mão em meu rosto, en-

trelaçando um cacho de cabelo meu em voltade um dedo. Sinto a respiração falhar. Ele es-tá me olhando fixamente e, com um poucode coragem, mantenho seu olhar. Então,minha atenção se precipita para seus lábios.Quero senti-los nos meus.

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Mas ele abaixa as pálpebras, sorri comaquele seu jeito malicioso e desliza a mão emmeu ombro.

— Tchau, Elena, foi realmente uma ótimanoite.

Toca levemente minha testa com umbeijo suave e recua alguns passos, depois sevira e se afasta, afundando as mãos nosbolsos do paletó. Fico olhando-o, atordoada,pior do que se eu tivesse levado um tapa.

Subo as escadas correndo. Me jogo den-tro de casa, arranco o vestido e o atiro nochão. Coloco uma camiseta qualquer e semnem tirar a maquiagem me refugio na cama.

Minha mente começa a rodar no vazio emeus olhos contemplam o teto. Como eu fuiburra em achar que um cara como Leonardopudesse se interessar por uma mulher comoeu. Você é uma pobre iludida, Elena! Aindaassim, não consigo tirar da cabeça certos

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olhares dele, aquele dedo sobre a boca eaquela mão afundando nos cabelos... Chega,Elena, dorme. Senão amanhã você não se le-vanta e não termina nunca o afresco.

Agarro o iPod na mesinha de cabeceira ecoloco os fones. Chegou a hora da minhamúsica tibetana. Para casos extremos... Ger-almente ela me faz desabar no sono maisprofundo.

Boa noite, Elena. E pare de pensar.

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Esta noite dormi profundamente, como hámuito tempo não acontecia. Deve ter sidopor causa do canto tibetano ou do cansaçoacumulado mas o fato é que desabei em umestado de semicoma e acordei esta manhãcomo se tivesse viajado no tempo.

Assim que abri os olhos, porém, ospensamentos voltaram, angustiantes exata-mente como ontem à noite. Sinto-me com-pletamente seduzida por Leonardo, mas in-capaz de conquistá-lo. Com grande autocon-trole eu me obriguei a parar de pensar nele erecuperar um mínimo de lucidez. Agora,

enquanto estou no trabalho, olhando nova-mente os fatos com a mente serena — di-gamos assim —, percebo que me deixei influ-enciar e me levar pelas minhas fantasias,como sempre: Leonardo apenas flertou umpouco comigo. Que depois tenha me seduz-ido, mesmo sem querer, é outra história.Uma história que tenho que tirar logo dacabeça. Quando ele passar aqui, eu ocumprimentarei como todas as manhãs,como se aquele passeio noturno nuncativesse acontecido e eu não sentisse nen-huma das emoções que infelizmente nãoconsigo evitar. Agora também. Deverei fazerum esforço imenso — sou ou não sou umacampeã de autocontrole? —, mas Leonardonem vai perceber, porque ele com certezanão está mais pensando nisso.

E agora, Elena, concentre-se no seutrabalho.

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Pouso os instrumentos no chão e voupara o meio do saguão, a cerca de dois met-ros de distância do afresco. De vez emquando tenho que parar para conferir delonge o bom resultado das cores, para en-tender se estou indo na direção certa. Fixo oolhar no fundo, depois o focalizo na romã,que, vista daqui, parece quase tridimension-al. Ficou boa, estou orgulhosa de mim.

Dou dois pequenos passos para trás ebato em alguma coisa. Nem tenho tempopara me virar porque duas mãos fortes meabraçam por trás. Leonardo! Um perfume in-confundível de âmbar enche minhas narinasenquanto meu corpo gruda no seu, pri-sioneiro em um doce apertão.

Sem dizer uma palavra, afunda o narizem meus cabelos e sente meu cheiro, entãose inclina para a frente e me dá um beijo pro-fundo no pescoço. O contato áspero de suabarba faz cócegas em meu rosto e uma

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profusão de arrepios propaga-se na minhapele, o ventre queima com o inesperado e ex-citante toque de seus lábios. Estou ator-doada: eu sequer tinha coragem de desejá-loe ele, no entanto, me quer. Está aqui, veio mesentir.

Solta minha bandana na nuca, atirando-ano chão com um gesto violento. Depoisagarra com força meus cabelos e sussurrameu nome no ouvido.

— Elena... — Sua voz é intensa.Sinto-me arder e não tenho forças para

dizer nada. Sinto que todas as minhasfantasias mais inconfessáveis começam a to-mar forma. Mas eu realmente o quero?

— Temos um problema... — seus lábiospressionam meu ouvido.

Eu o quero...Acaricia minha bochecha, tocando-me

levemente com os dedos até o queixo, então

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deixa deslizar a mão até o zíper do meumacacão, abrindo-o até a altura dos seios.

Minha respiração acelera, junto com asbatidas do coração.

— Um problema sério... — continua, coma voz cada vez mais quente e sensual. — Euquero você.

Vira-me de repente, como se eu fosseuma boneca incapaz de opor resistência. Si-lenciosa, eu o satisfaço, mas assim que nos-sos olhares se cruzam eu abaixo o meu. Eleagarra meu queixo com dois dedos,levantando-o em sua direção. Então, pegameu rosto, apertado entre as mãos, e afundaa língua na minha boca. Está me beijando.Agora. Não é possível.

Nunca ninguém me conquistou assim. Aforça, a violência deste beijo me deixamtonta. Estou prestes a perder o controle, eusinto isso.

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Sem largar meus lábios, com um gestorápido abaixa todo o zíper e me livra domacacão, que aterrissa no meio das têmper-as, das esponjas e dos pincéis. Tenho apenasum segundo para tomar consciência daquilo,mas já é tarde demais, e, então, eu tambémme vejo deitada naquele chão sujo de pó e re-boco, no meio dos instrumentos de trabalhojogados desordenadamente. Parece umsonho, mas é tudo real: o frio dos ladrilhos, ocalor dos nossos corpos, e não desejo maisnada neste momento.

Antes que eu consiga me dar conta,Leonardo está em cima de mim. Agarra min-has mãos e prende meus pulsos sobre acabeça com os dedos, como se quisesse im-pedir qualquer tentativa de fuga. Ao fazerisso, esbarra em alguns potinhos de têmperae um esguicho de tinta se derrama no chão.Vermelho púrpura no piso, em suas mãos, nomeu braço pálido. Sinto-o escorrer embaixo

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de mim, por um quadril. Faço menção de melevantar, não suporto aquela sensação de es-tar suja, mas ele me empurra para baixo comuma sacudida.

— O que você está querendo fazer, Elena?— sussurra. — Gosto demais dessa cor — e,enquanto diz isso, com os dedos manchadosde têmpera me acaricia inteira, da cabeça àbarriga, deixando marcas cor de sangue nomeu rosto e na camiseta branca.

Estou em seu poder e um medo e umdesejo loucos martelam meu coração. En-quanto me beija, tenho uma visão lúcida doconjunto todo: de mim, dele, deste paláciovazio, e do que vamos fazer.

Hesitante, solto meus lábios dos seus.— Pode entrar alguém... — murmuro,

com um fio de voz.— Shhh. Não pense em nada. — Leonardo

atravessa-me com o olhar e fecha minha

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boca com um dedo. Seus gestos são de-cididos. Sua segurança me excita.

Arranca minha calça jeans e minha cam-iseta. Seus olhos me examinam, ávidos. Sualíngua está dentro da minha boca nova-mente, ávida. Eu o quero e começo a tirarsua roupa, com uma naturalidade que nãoconsigo explicar, que não pertence a mim:desabotoo sua camisa devagar e solto seucinto de couro. Por baixo ele está completa-mente nu, não usa cueca. Nu e excitado,pronto para entrar em mim.

Inclina-se entre as minhas pernas,abrindo-as um pouco com as mãos. Beija-as,insaciável, e sobe lentamente com a línguapor dentro das minhas coxas, até agarrarcom os dentes minha calcinha de renda pretaque voa e aterrissa no chão.

Ainda bem que esta manhã não coloqueiminha calcinha de algodão de fazerginástica...

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Sua língua está cada vez mais perto,desliza dentro de mim e eu, já molhada,abro-me devagar ao toque de suas mãos.

— Você tem um gosto bom, como euimaginava. Deixe-me comer você... — Com alíngua, procura, explora, e eu não consigo se-gurar alguns gemidos de puro prazer.

— Muito bem, Elena, isso... — Sua voz es-tá cheia de desejo.

Levanto sua cabeça, puxando-o devagarpelos cabelos, enquanto ele termina de tirara roupa, livrando-se da calça que em um in-stante está ao lado do meu macacão. Abromais as coxas, deixando-o pressionar seupau duro e liso em meus lábios inchados.

Não sei mais quem sou. Estou com medoe, ao mesmo tempo, queria que Leonardonunca parasse de fazer o que está fazendo.Sua testa está enrugada, os músculos ten-sionados, uma energia poderosa a ser total-mente liberada dentro de mim. Ele me

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penetra com um único impulso violento. Ficaimóvel, abaixa os olhos e encontra os meus,ofuscados pelo desejo, entorpecidos.

— Elena... — sussurra, mordendo umaorelha minha. — Eu sinto você. Você tambémquer.

Fecho os olhos e suspiro.— Sim, eu quero. — Minha voz está

tomada pela excitação.Começa a se mexer devagar dentro de

mim, como se tivesse medo de me quebrar,com uma lentidão que me devasta. Então,um movimento mais enérgico, mais pro-fundo, me preenche. Cerro os dentes e gemo.Leonardo acelera, mas somente um pouco, eminha respiração fica curta, meu peito le-vanta e abaixa convulsivamente, enquantominhas pernas o apertam com um espasmo.Ele acelera mais o ritmo e continua a beijarmeu pescoço. Está me comendo.

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— Goze, Elena. — E desta vez soa comouma ordem. Mas nem precisa...

Sinto seu peso sobre mim, ele mantémmeus pulsos presos com as mãos. Fez demim sua prisioneira, uma prisioneira quenão tem nenhuma intenção de fugir.

Fico sem fôlego, o sangue corre en-louquecido nas veias e flui todo para o meiodas pernas. Um prazer devastador e irre-freável ganhou vida em meu ventre, e entãoexplode instantaneamente, espalhando-sepor toda parte. Por um longo momento, cadamolécula do meu corpo se transforma em or-gasmo puro. Solto um grito espontâneo e in-controlável e com esforço consigo sufocá-lo.Porque agora esse grito sou eu. Apesar deainda não me reconhecer. Estou transtor-nada, espantada comigo: não achava que po-dia gozar tanto assim.

Agora é a vez de Leonardo, com um gem-ido quase animal perto do meu ouvido e um

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meio sorriso no rosto. É ainda mais bonito,assim. E é para mim que está gozando.

Ficamos abandonados, ele dentro demim, por um tempo que não consigo medir.Olhos nos olhos. Boca na boca. Pele na pele.Nós nos respiramos. É um som vivo, san-guíneo. Um som que liberta rios de emoçãoem mim.

— Não se mexa — ordena, então, em vozbaixa.

Sai de mim, deita-se ao meu lado e mebeija, primeiro no peito, depois na testa, de-pois na boca. Então, passa um braço debaixoda minha cabeça. Nus, permanecemos ab-raçados um pouco, sem nos preocuparmoscom o piso frio, com o pó, com as têmperasespalhadas no chão. Minha bochecha estáapoiada em seu peito. Enquanto respira,meu rosto se levanta e se abaixa em seutórax.

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Uma sensação de satisfação total e aomesmo tempo de desorientação disputa meucoração, minha mente. Tenho dificuldadepara me reencontrar. Onde estou, quem sou?De quem sou? A Elena de somente uma horaatrás agora me parece muito distante, irreal.

De repente sinto um sopro leve nopescoço.

— Não, por favor — resmungo. — Assimvocê me deixa arrepiada, estou com frio. — Efecho-me em mim mesma como um porco-espinho.

Leonardo ri, abraça-me por trás,envolvendo-me completamente eprotegendo-me com seu calor.

— Quer que a gente suba para o meuquarto?

Sim.Não.Nem eu sei o que quero agora. Estou con-

fusa demais para pensar. Então me vem à

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cabeça a última vez que transei: com Filippo.E quase me parece que as duas experiênciasnão tenham nada em comum. Ou talvez sejaeu que tenha perdido completamente a lu-cidez e precise ficar sozinha para assimilar oque aconteceu.

— É melhor eu voltar para casa —precipito-me em dizer. Levanto-me com di-ficuldade, a cabeça rodando um pouco, masmesmo assim consigo ficar de pé. Pego acamiseta lambuzada e a visto sem sutiã, en-contro a calcinha encaixada entre um pot-inho vazio e um frasco de solvente e a colocotambém.

Leonardo levanta-se depois de mim. Depé, nu, é ainda mais imponente. Tem os om-bros largos e os quadris estreitos, as nádegasfirmes, os músculos das pernas compridos efortes. E os olhos pretos que riem: aspequenas rugas de expressão nas lateraissuavizam seu olhar viril, que ainda transpira

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desejo. Fico admirando-o, arrebatada poraquele físico tão impetuoso e, enquanto vestea calça, noto uma tatuagem no alto das cost-as. É um símbolo estranho, uma espécie decaracter gótico que não consigo decifrar bem.Tem a forma de uma âncora, mas poderiamuito bem ser algumas letras entrelaçadas,ligadas por uma corda. Tem a ver com o mare seu aspecto é quase antigo. E como tudoem relação a Leonardo, tem um quê de trági-co e secreto. Fico tentada a lhe perguntarqual o seu significado, mas quando ele sevira para mim não tenho coragem.

Aproxima-se colocando a camisa, quedeixa aberta sobre o peito, e toca em um demeus braços.

— Ei, está tudo bem?— Está — digo, um pouco constrangida. O

pensamento voa para o nosso passeio depoisda inauguração, ele que durante a noite in-teira não tirava os olhos de cima de mim, me

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acompanhou até em casa e depois me deixouassim, com o gosto amargo da desilusão.

— Por que você não tentou me beijar on-tem à noite? — pergunto-lhe.

— Porque era o que você estava esper-ando — responde, segurando-me pelos quad-ris e apertando meu corpo contra o seu. —Algumas coisas são mais gostosas quando es-tamos despreparados.

Ele tem razão. Ontem à noite eu estavasuperansiosa e cheia de expectativas e talveznão tivesse me soltado até o fim. Portanto,Leonardo intui perfeitamente meus estadosde espírito e se diverte manipulando meusdesejos. Não sei como isso me faz sentir,tranquilizador, com certeza, não é.

Sinto a necessidade de me afastar umpouco e de me proteger de seu olhar tãopenetrante. Solto-me com ternura daqueleabraço.

— Bem... Eu agora... Vou embora.

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Termino de catar minhas roupas e depoisde ter me arrumado da melhor forma pos-sível saio apressadamente, levando comigoum enigma insolúvel de perguntas semrespostas.

Passei o dia em um estado quase detranse. O tempo todo caminhei pela casacomo um autômato, tentando me ocuparcom coisas práticas, mas o pensamentosempre corria para Leonardo. De vez emquando as emoções experimentadas com elepoucas horas antes se materializavam denovo, formando pequenas espirais dentro daminha barriga. E apertando meu estômagosem piedade.

São nove horas da noite agora. Acabei decomer aqueles poucos grãos de arroz basmatique preparei com meticuloso cuidado, na in-útil tentativa de me distrair. Ligo o iPhone,que tinha deixado desligado de propósito.

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Queria ficar sozinha para reorganizar ospensamentos, sem nenhuma interferênciaexterna. O visor acende, vibra uma vez, de-pois outra e mais outra, piscando em inter-valos. Três mensagens, todas de Filippo.

Bibi, tudo bem?

Por que você não responde? Não me deixe

preocupado...

Vamos nos falar por Skype hoje à noite?

Sinto uma espécie de fogo no rosto e umafisgada poderosa no estômago. O arroz quecomi vira chumbo de repente. Estive nasnuvens até agora, até que as mensagens deFilippo me trazem de volta à realidade. “Des-culpe, não pude lhe responder porque estavaocupada fazendo amor com outro”. Se eufosse realmente honesta era isso que eu de-via lhe escrever. Mas é evidente — e não

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posso deixar de me espantar com isso — queeu não sou.

Com um pouco de apreensão, sento-meno sofá e ligo o laptop. Filippo está con-ectado, já me mandou uma mensagem peloSkype. Não gosto muito das chamadas comvídeo, mas é o único meio que temos paranos ver e, depois do que aconteceu hoje, real-mente não sei que efeito terá em mim vê-lono computador.

Respiro profundamente, clico na teclaverde e dou início à chamada. Ele atendelogo e surge na minha frente, um meio-bustoque não lhe faz justiça: seu rosto está difer-ente, mais magro, a barba por fazer. Tem umar abatido.

— Bibi, onde você se meteu hoje? —começa, um pouco preocupado. — Leu min-has mensagens?

Sua voz e seu rosto familiares aquecemimediatamente meu coração. A presença de

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Filippo, ainda que virtual, tem o poder de metranquilizar, me leva de volta à solidez daminha vida, a certezas que não podem metrair.

— Li, desculpe, meu celular ficou com-pletamente sem bateria e não levei o car-regador. E depois voltei tarde para casa.

— Ainda grudada no seu afresco?— Pois é... — engulo, sufocando o em-

baraço na garganta. Não minto bem.— Você tinha me prometido que não iria

se matar de trabalho — ele me repreende. —Mas estou feliz que você esteja se dedicandotanto, assim poderá terminar antes doprevisto.

— Tomara. — Estico os lábios em um sor-riso pouco convincente. Agora, a sensação desegurança mistura-se com um pouco de mal-estar. E sentimento de culpa. Mesmo à dis-tância, ele está me vendo, então procuro nãotransparecer nada disso. No fundo, não traí

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ninguém e não fiz nada de mal, digo a mimmesma.

— E você, deixou a barba crescer? Estábem assim! — De fato alguns pelos no rostoficam bem nele, parece mais vivido, maissexy, até. Porque Filippo é sexy, não possome esquecer disso.

— Você não vai acreditar, mas em algu-mas manhãs não dá nem tempo de fazer abarba. — Passa uma das mãos no rosto. —Estou enroladíssimo com o trabalho!

— Renzo Piano está explorando você? —Sorrio das expressões engraçadas dele.

— Olhe, vamos deixar isso pra lá... Eu o virapidamente, só uma vez, durante uma vis-toria no canteiro de obras, e depois não nosdignou mais com sua presença.

Há um momento de silêncio, em que mepergunto qual é o sentido dessa conversa.Estou falando com Filippo como se nadativesse acontecido, como se entre nós tudo

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tivesse permanecido igual e, em vez disso,desde hoje de manhã algo mudou profunda-mente em mim. Rebato com uma perguntaqualquer, tentando não pensar nisso.

— Então, como está a vida em Roma?— Está boa, Bibi, mas falta você. De resto,

parece sempre primavera.— Que inveja...— Sabia que seus olhos estão brilhando

esta noite? — ele solta de repente. — Vocêparece mais bonita que de costume.

Ai meu Deus, estou com a cara de quemacabou de transar. Tento conter a vermel-hidão que sinto subir ao rosto.

— Obrigada...— Sabe, Bibi? Continuo pensando na

noite que passamos juntos... — Abaixou umpouco a voz, agora. — Tenho uma vontadelouca de dormir abraçado com você.

Mordo um lábio.

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— Bem, também sinto sua falta. — E,talvez, se você tivesse ficado aqui, eu teriafeito amor de novo com você, e não comLeonardo. Amor... Sexo, digamos. Ou talveznão... Quem vai saber?

— É verdade que você está pensandonaquele fim de semana em Roma?

— Estou... — minto, torcendo para queele não perceba. — É que ainda preciso meorganizar.

— Tudo bem. — Leio a decepção nos ol-hos dele. — Mas não pense demais... —recomenda.

Tento desesperadamente mudar deassunto.

— O que você vai fazer hoje à noite?— Tenho que acabar um projeto do tra-

balho — suspira. — E, quem sabe, já que es-tou inspirado, depois faço um desenho seu.De como me lembro de você naquela noite...

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— Ei, assim eu vou ficar metida... — Sor-rio, mas estou uma pilha de nervos. — Bem,vou deixar você trabalhar.

— Tudo bem. Mas não vamos deixar pas-sar outra semana sem a gente se falar. Senãoeu sinto falta e tenho pensamentos ruins...

— Tudo bem.— Bibi... — Ele me olha nos olhos, como

se eu estivesse na frente dele de verdade. —... Eu amo você. — Então, dá um beijo nawebcam.

Solto um longo suspiro.— Eu também.Agora não consigo mais manter seu

olhar.

A noite é feita para as preocupações, ossofrimentos, as inquietações. Mas de manhã,debaixo da água quente do chuveiro, vejo ascoisas mais claramente. Sempre produzominhas melhores ideias naqueles dez

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minutos, enquanto aproveito o jato ferventeque leva embora todas as aflições. Assim, en-quanto lavo o cabelo — nas narinas o cheirosensual do xampu de óleo de amêndoas —reduzo tudo à escolha mais simples: hoje nãovou ao trabalho.

Não tenho nenhuma intenção de ficarcara a cara com Leonardo. Não saberia o quelhe dizer e, principalmente, o que esperardele. Além disso, nunca trocamos os númer-os de telefone — feliz coincidência! —, logoele não poderá me procurar e eu não ficareitentada a lhe mandar uma mensagem. Issode algum modo me faz sentir em segurança.Ontem foi ótimo, impetuoso, não quero neg-ar, eu seria hipócrita. Mas aconteceu tudotão rapidamente e foi tão inesperado queainda não consigo acreditar. Fazer sexo comele me jogou em um precipício de sensaçõesnovas e arrebatadoras e ainda me sinto nele.

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Além do mais, o telefonema com Filippo con-tribuiu para aumentar minha confusão.

É por isso que, esta manhã, fico em casa efinjo fazer tudo com calma. Vou fazer umafaxina — é sempre necessário e, portanto,nem é uma desculpa — e depois vou ao su-permercado fazer compras, já que a geladeiraestá vazia de novo. Quem sabe assim eu medistraio um pouco.

De repente o interfone toca. Acho que seiquem é. Somente ela deixa o dedo no botãopor dez segundos inteiros e ininterruptos.

Levanto o receptor, preparando-me parao pior.

— Gaia?— Mas por que você demora tanto para

atender? — Fura meus tímpanos com umavoz estridente. — Posso subir ou tem umhomem nu na sua cama? Meu Deus, não queisso seja um problema para mim...

— Suba. A porta está aberta.

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E agora o que eu faço? Conto tudo a elaou não?

Ainda estou na dúvida quando vejo Gaiavindo ao meu encontro com seu inconfun-dível andar felino.

— Por que ainda está em casa? Fuiprocurá-la no palácio...

— Hoje não vou trabalhar.— Ei, você está doente? — pergunta,

estudando meu rosto.Decido deixar que ela acredite nisso,

porque me dou conta de que lhe explicar averdade daria muito trabalho. E agora nãotenho energias para isso. Mais que umamentira, é uma omissão, digo a mim mesma,e isso acalma minha consciência. Pelo menosum pouco.

— Acho que minha menstruação estápara vir... Estou com um pouco de dor decabeça — respondo, e para parecer mais ver-ossímil me jogo no sofá, cobrindo as pernas

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com a manta de patchwork decorada commargaridas e corações. Foi presente daminha mãe no último Natal, depois de tergasto nela dois meses e meio de agulha elinha (e a vista cansada) costurando-a. Viroua coberta dos dias melancólicos e sonolentos.

— Hoje de manhã já acordei comenxaqueca. — Faço uma expressão sofrida eGaia agacha-se aos pés do sofá.

— Coitadinha da minha amiga... — Fazcarinho no meu rosto, quase sentindo pena.

Talvez eu esteja exagerando com esseteatro, estou me entregando. Mudo deestratégia:

— Mas já estou melhor.— Tomou algo?— Não, não precisa. Daqui a pouco es-

tarei melhor, é sempre assim.— Já lhe disse um milhão de vezes: você

tem que se desligar de vez em quando. —

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Balança a cabeça com ar severo. — Aqueleafresco vai deixá-la maluca.

Talvez não só o afresco...— De qualquer maneira, eu passei aqui

para lhe contar novidades bombásticas. —Gaia assume uma expressão maliciosa de re-pente e senta-se ao meu lado, mudando min-has pernas de lugar.

— Não... — Já entendi tudo. — JacopoBrandolini!

Ela concorda, toda satisfeita.— Aconteceu na noite da inauguração —

diz, transbordando felicidade. — Aliás, des-culpe ter sumido daquele jeito. Mas você meconhece...

De repente, lembro que me largou bemno meio da noite e faço uma cara dechateada.

— Na verdade, eu queria mesmo lhe dizeristo: babaca.

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— Eu sei, eu sei, mas era por uma boacausa... — Gaia levanta as mãos como sequisesse se defender. — E talvez Leonardoaté tenha ficado mal com isso, mas de algumjeito foi ele quem fez com que nosreencontrássemos.

— Como assim?— A certa altura, ele vem até mim e me

diz: “Ali está o bufê dos doces, não vai prová-los?” Eu explico a ele que estou esperandovocê, mas ele insiste, diz que alguns só de-vem ser comidos quentes.

Gaia está conquistando toda a minhaatenção.

— No fim das contas decido seguir suadica — continua —, vou ao bufê, e quem en-contro lá? Jacopo em pessoa, quase pareciaque estava me esperando. Começamos a con-versar e depois eu perdi a noção do tempo...

E assim Leonardo havia arquitetado tudoe empurrou Gaia para os braços de Jacopo

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para ficar sozinho comigo! O entusiasmodessa descoberta me provoca um pequenoarrepio involuntário de satisfação.

— Então, como é esse Brandolini? — levoa conversa de volta a ela.

— É simpático, brilhante, supergentil.Parece-me tão diferente de outros homenscom quem saí... Gosto dele.

Meu Deus, Gaia está com olhos de peixemorto.

— Mas vocês transaram? — arrisco.— Bem... — Abaixa o olhar por um se-

gundo, depois o levanta novamente e umsorriso triunfante ilumina seu rosto. — ...Sim, claro que transamos! Quem você pensaque eu sou?

Dou-lhe um soco leve no ombro, rindo.— Ele me convidou para sua casa. Mora

em um prédio maravilhoso, atrás de Rialto,com afrescos e tetos decorados. Parecia queeu estava em um conto de fadas, juro, uma

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coisa tipo Cinderela no baile. Eu me sentiaaté um pouco intimidada, e você sabe queisso quase nunca acontece comigo...

Fico encantada com seu modo animadode contar as histórias. Pelo menos está con-seguindo me distrair de outros pensamentos.

— E então?— E então ele me conquistou, não podia

lhe dizer não — suspira —, ou melhor, mecorrijo, não queria lhe dizer não.

— Mas como ele se comportou?— Superbem, eu diria... — Pela cara dela

percebo que Brandolini deve ser bom nisso.— Não foi a rapidinha de sempre e tchau. Elefoi muito doce, atencioso, preocupado se euestava bem... — diz, com olhar sonhador.

Por um momento repenso nas carícias deLeonardo e novamente um pequeno tremoratravessa minha barriga.

— O que você acha, você lhe dará uma se-gunda chance? Vão se ver de novo?

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— Claro, Ele! Ele já me convidou parajantar amanhã... — É como se a felicidadeflutuasse em volta e estou sinceramente felizpor ela.

— Então, se ele valia a pena assim, eu aperdoo por ter me deixado plantada sozinha— digo, em tom solene.

— Está bem, mas chega de falar de mim...E você, o que fez depois? Por acaso está meescondendo alguma coisa?

— Nada, vim embora para casa.Mas por que estou mentindo para a

minha melhor amiga? Talvez eu devesse con-tar a ela? Por um lado eu queria tanto, masainda preciso colocar as ideias no lugar etenho medo de que, falando com alguém,mesmo que seja Gaia — que é como umairmã para mim —, eu crie ainda mais con-fusão. Mordo os lábios como se quisesse im-pedir a mim mesma de pronunciar o nome

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de Leonardo. Em compensação, resolvo con-fessar outra pequena verdade.

— Escute, tenho que lhe dizer uma coisa.Gaia endireita-se de um pulo. Parece que

brotaram antenas nela de repente.— Vamos lá, sou toda ouvidos.— Tem a ver com Filippo.Gaia me examina e já intuiu o que estou

para dizer.— Bem... Nós transamos.— Aleluia! — exclama, aplaudindo.— Mas espere, não se apresse. Foi tudo

muito rápido, na noite antes da viagem dele.Não combinamos nada e não sabemos comovai terminar...

Ela começa a saltitar no sofá.— Quem liga para como vai terminar! O

importante é que começou. — Então se cala eme olha, perplexa. — Mas você não estácontente?

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— Estou, mas quero ir devagar. Com Filpoderia ser algo de verdade, não quero es-tragar nossa amizade por nada... — Respirofundo. — E, de todo modo, enquanto ele est-iver em Roma não vamos começar umahistória, com isso nós dois concordamos.

— Você está paranoica demais, Ele, comosempre. Dá para ver que vocês foram feitosum para o outro, eu sempre disse isso.

Esboço um sorriso. Sei que Filippo po-deria ser o cara certo, aquele com quem con-struir uma relação sólida e profunda. É só euquerer isso. E talvez eu quisesse, antes queLeonardo chegasse para embaralhar todos osmeus planos e meus desejos. Do jeito que ascoisas estão nem sei mais o que quero. Masisso tudo Gaia não pode imaginar nemremotamente.

— Enquanto isso vocês estão se falando?— Estamos, ontem mesmo conversamos

por Skype.

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— E de qualquer maneira, Ele, Roma nemé do outro lado do mundo. Eu, por Belotti,me mandei para Bruxelas — diz, toda con-vencida. Gaia gastou muito em viagens ab-surdas por causa daquele ciclista que, franca-mente, ainda não sei que papel possa ter emsua vida. — Acho que você deveria ir visitá-loe lhe fazer uma surpresa — continua meincentivando.

— Vou pensar no assunto.— Nada disso. Você não deve ficar reflet-

indo tanto — bate levemente na minhacabeça. — E desligue isso aqui, de vez emquando! É por causa disso que você se se dámal.

Sorrio. Para ser sincera, se antes eu es-tava fingindo, agora a dor de cabeça veio deverdade. Estou tão confusa que só queria irdormir e não pensar mais em nada.

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Gaia levanta-se do sofá e coloca a bolsa atiracolo, sinal de que está pronta para sair.Estou quase aliviada.

— Vou embora. Se precisar de algumacoisa, me ligue.

— Não se preocupe, estou bem.— Sim, claro... Você diria isso mesmo se

estivesse agonizante no chão.Por favor, não fale em chão: não consigo

deixar de pensar em Leonardo, naquele ver-melho por toda parte, no piso, no meucorpo...

— Tchau, e me liga para me contar dojantar com Jacopo.

— Claro, mantenho você informada. — Esou esmagada por um de seus abraços quemais parecem um furacão.

Depois que Gaia foi embora, fui dar umavoltinha em direção ao museu Peggy Gug-genheim. São quase duas da tarde e a essahora não há muita gente nas ruas. Os turistas

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estão lotando os restaurantes e os venezianosde Dorsoduro estão ocupados com o inev-itável cochilo de depois do almoço. Tenhovontade de me deixar acariciar pelo solmorno de outubro, que hoje tem uma mara-vilhosa luz amarelo-rosa. Ando a passosrápidos até a Punta della Dogana e, na volta,faço uma parada na piazza Barbaro, um doslugares da cidade que mais amo. É uma pra-cinha pouco conhecida, distante dos circui-tos habituais. Quando os pensamentos ficamrodando na minha cabeça, às vezes venhoaqui, e sempre acontece algo mágico, sabe-selá por quê.

Sento-me no último degrau da ponte depedra, onde o sol depositou todo o seu calor,e apoio as costas no murinho de tijolos deonde despontam alguns fios de grama. Daquitudo parece mais doce, os raios vestem asduas árvores nuas de muitas pequenas es-trelas brilhantes. No centro da pracinha há

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um canteiro cheio de rosas: é incrível,sempre florescem, até no inverno.

É inútil tentar negar ou, pior ainda, rep-rimir: coração e mente são um emaranhadocomplicado neste momento. Literalmentenão sei o que fazer.

Mais que pensamentos, na verdade, mevem imagens de Leonardo, fotogramas des-focados que atravessam minha memória:seus olhos misteriosos e aquelas ruguinhasde expressão, as mãos fortes, o corpo nu e ir-resistível sobre o meu. Depois aquela suatatuagem. E, de repente, sou tomada por umestranho pressentimento: sinto que comLeonardo eu poderia me magoar de verdade,que o preço a pagar por participar dessabrincadeira seja minha perdição.

E Filippo? Que papel tem nisso tudo? Eutambém sinto algo forte por ele, mas pro-fundamente diferente: a cumplicidade entrenós tem um sabor familiar, conhecido, é uma

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relação principalmente intelectual e afetiva.O sexo com ele foi terno e delicado, comopode ser entre duas pessoas que se con-hecem há tempos e se gostam.

Já com Leonardo, foi uma espécie debatalha carnal, ditada apenas pelo desejo dosnossos corpos, algo que nunca me aconteceraantes. E talvez seja por isso que eu não con-siga parar de pensar nele.

Desvio o olhar das rosas e detenho-mesobre a água do canal, que flui lentamenteabaixo de mim. Tem uma cor pouco anim-adora, é turva, mas me impressiona menosque de costume. De repente, a ideia de reverLeonardo também me causa menos temor.

A verdade é que, apesar de tudo, eu oquero mais uma vez. E, entre mil dúvidas,essa é a única certeza.

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Hoje é o grande dia. Vou rever Leonardo efalar com ele, explicarei quem sou e o quequero dele. Nunca aconteceu comigo de to-mar a iniciativa com um homem, nem seicomo se faz, não sou boa como Gaia para irem frente e deixar claro meus sentimentos.Porém, dessa vez tenho que tentar, dessa vezé diferente. Tenho a impressão de que terLeonardo exigirá mais coragem que de cos-tume da minha parte.

Saio do banho e paro diante do espelho.Com uma mão tiro um pouco do vapor e aquiestou eu. Continuo sendo eu. O rosto

redondo, os olhos escuros um pouco aver-melhados por causa da água, o cabelo Chanelmoreno pingando nos ombros. Ainda assim,algo mudou. Desde ontem um novo desejoabriu caminho no meu mundo, uma espéciede inquilino desagradável que está incomod-ando os antigos moradores.

Vou tentar fingir que é uma manhã comooutra qualquer, vou me comportar comosempre. Devo me convencer de que simples-mente estou indo para o trabalho, emborasaiba muito bem que estou indo até ele.

Afasto todos os pensamentos e terminode me arrumar para sair. Seco os cabelos,visto uma calça jeans macia e um puloverz-inho de lã fino, coloco a capa nos ombros epego o vaporetto até Ca’ Rezzonico, comproo jornal La Repubblica na banca da galeria,chego ao palácio e subo as escadas. Cadaetapa da minha rotina é um passo emdireção a Leonardo.

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Mas quando chego ao palácio ele nãoestá.

Eu o chamo e nenhuma resposta. Por umtempo eu o espero no saguão, na esperançade vê-lo surgir de repente do banheiro com atoalha amarrada na cintura, mas nada.Então, me conformo em perguntar paraFranco no jardim e ele me responde que nãoo viu. Deve ter saído cedo esta manhã. É aprimeira e única hipótese que consigoformular.

Assim, aqui estou eu na piazza San Polo,diante do restaurante de Brandolini, indecisase entro ou não. O coração diz que sim, acabeça diz que não, lutando com aqueleúnico pensamento que me tortura há horas:quero vê-lo de novo.

A porta está aberta, é como se mechamasse até ele, bastaria atravessá-la. E, defato, é o que eu faço.

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— Tragam rapidamente para dentroaquelas seis caixas, eu as quero aqui daqui aum minuto... E um pouco de cuidado,merda! São garrafas de Sassicaia, que sãocaras como o carro dos seus sonhos, quenunca terão! Essa é a última vez que fazemosum pedido à adega de vocês...

A voz de Leonardo. E o tom não é nemum pouco animador. Não entendo bem deonde chega: dentro do restaurante, por causada hora, ainda não há ninguém a não ser al-guns garçons. Um deles me notou e já vemao meu encontro com uma expressão edu-cada de “estamos fechados, volte maistarde”, mas eu não o deixo falar.

— Bom dia, eu estava procurandoLeonardo. — O olhar que me dirige, emboradisfarçado por uma profissionalíssima dis-crição, deixa transparecer certa curiosidade.Quero apenas vê-lo e... falar com ele, repito amim mesma. No caminho até aqui, eu

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preparei um discurso bonitinho, que decoreina minha cabeça.

— Acho que está lá fora — responde ogarçom, indicando um jardim interno.

— Obrigada — murmuro e me apresso emdireção à porta-balcão que leva ao jardim.

Leonardo não percebe de imediato minhapresença. Está sozinho, evidentemente ospobres entregadores terminaram correndo otrabalho e desapareceram. Está falando aocelular com alguém e, a julgar pelo rostozangado, não deve ser um telefonema muitoagradável. De repente desliga, mas continuapor alguns instantes com uma expressãopesada e pensativa no rosto, o olhar para ochão, fixo em um ponto indefinido. É aprimeira vez que o vejo tão sombrio e nãosaberia dizer o que pode perturbá-lo tanto.Nem ousaria perguntar isso a ele, já que, as-sim que me vê, seu rosto volta a ser sor-ridente como sempre. Cumprimenta-me com

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naturalidade, como se fosse normal me veraqui.

— Por que você sumiu? — pergunta,dando alguns passos em minha direção. —Eu teria ligado para você, mas não tenho seunúmero...

— É, nós não trocamos telefones — digo,olhando meus pés. Tenho dificuldade paraencarar o magnetismo de seus olhos.

— Bem, vamos fazer isso agora. — Aindaestá com o celular na mão. De repente, tenhoa impressão de não saber mais o meunúmero. Então, com um esforço sobre-hu-mano, consigo lembrar e digo a ele como setivesse que soletrar uma palavra complicada.

Leonardo o grava e me liga. Ainda bemque desativei o toque com voz de pato.

— Você não respondeu a minha pergunta— continua, estudando-me. — Por que nãofoi trabalhar ontem?

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Aí está um ótimo gancho para começar afalar tudo que decorei. Passo uma mão noscabelos e limpo a garganta. Estou pronta.

— Eu precisava ficar um pouco sozinha.Sabe, o que aconteceu aquele dia me confun-diu um pouco — digo, de um fôlego só.Leonardo não parece nem um pouco impres-sionado. Um sorrisinho estranho paira emseus lábios e uma espécie de diversão per-versa acende seus olhos. — Por isso eu queriafalar com você... — mas logo interrompo.

O garçom de antes passa ao nosso lado,Leonardo lhe faz um sinal e ele concorda.Está trabalhando e talvez eu esteja tomandoseu tempo.

— Se você estiver ocupado, podemos nosencontrar outra hora — coloco as mãos paraa frente.

Ele olha ao redor por um instante.— Ainda devo ficar aqui por cerca de

meia hora. Tenho que resolver alguns

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problemas. — Então, olha o celular e ficaimóvel por alguns segundos, como se est-ivesse procurando uma ideia. — Quer me es-perar na igreja dei Frari? Encontro você lápor volta das onze.

— Está bem — respondo, embora sua pro-posta me deixe um pouco atônita. Nuncaninguém marcou comigo em frente a umaigreja, muito menos em Frari. — Por quejustamente lá? — arrisco a perguntar.

— Bem, porque é um lugar bonito.

Estou há 15 minutos sentada em umdesconfortável banco de madeira na terceirafileira, na suntuosa nave central da basílicadei Frari. No ar, um cheiro de incenso mis-turado à fumaça das velas votivas. Do ladode fora tinha começado um vento forte, en-tão resolvi entrar. Espero que ninguém re-pare em mim: estou aqui, composta e recol-hida, e de vez em quando olho para o portão

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da entrada. O pensamento de que Leonardodeve chegar a qualquer momento revira meuestômago de tanta ansiedade e excitação. Aonão me ver do lado de fora, vai entender queestou dentro; de todo modo, agora eu tenhoseu número e posso ligar para ele se forpreciso.

Olho ao redor e sinto-me como uma pen-etra em uma festa. Entre os bancos há pess-oas rezando, enquanto alguns visitantes cir-culam, silenciosos e discretos, a maioriaparando para olhar o magnífico retábulo daNossa Senhora de Ticiano. Com a luz do sol éainda mais bonito. Os raios vazam pelos vit-rais, desenhando incríveis reflexos na pin-tura, e as cores parecem mais vivas do quenunca.

— Quer dizer que ter feito sexo comigo tedeixou confusa... — ouço sussurrarem emmeu ouvido. Leonardo chegou e sentou-se aomeu lado. Eu me viro de um pulo, com o

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sangue imediatamente voltando a pulsar. Eleme fita, esperando que eu continue, do pontoem que parei.

— Sim, é isso — admito. Então respirofundo. — Talvez seja porque foi completa-mente inesperado. Não costumo me entregartão facilmente, mas você... — hesito. Meudiscurso não me ajuda, de repente me parecesem sentido, antiquado. — Bem, olhe, não seibem como lhe dizer...

— Já existe outro, é isso que está tent-ando me dizer, certo? — Ele é direto,espontâneo, obriga-me a colocar para fora ascoisas como estão, sem rodeios ou jogos depalavras.

— Não, não é bem assim. — Balanço acabeça. — Até anteontem eu achava quequeria outra pessoa... Mas agora não tenhomais tanta certeza disso.

A imagem de Filippo materializa-se naminha frente e, nesse momento, parece com

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meu discurso bonitinho: uma coisa que per-tence ao passado. Me dou conta disso e sintouma espécie de fisgada no coração.

— Então, o que há, Elena? — pressiona.— É que eu gostei muito. Talvez demais.

Tentei me convencer de que foi apenas umafraqueza, um impulso, um dos poucos quetive, e que nós dois não temos nada a ver umcom o outro. Ou seja, gostaria de acreditarque basta terminarmos com essa históriaaqui. Mas continuo pensando em você e...Quero que aconteça de novo.

Pronto, falei, apesar de não combinarcomigo, apesar de não serem palavras quedeveriam ser pronunciadas no banco de umaigreja! Sinto-me queimar, literalmente.

Leonardo não tem nenhuma reação, pelomenos aparentemente, e isso só aumentameu embaraço. Por alguns instanteslonguíssimos seus olhos vagam no retábuloda Assunção de Nossa Senhora. Eu estou

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sufocando, espero que ele diga algo como umréu aguardando a sentença definitiva.

Então, sem dizer nada, me pega pela mãoe me leva justamente para debaixo da pin-tura. Há outras pessoas ao nosso lado,Leonardo vai para trás de mim e fala baixono meu ouvido.

— Sabe por que lhe pedi para vir aqui,Elena?

Balanço a cabeça, completamentedesnorteada.

— Porque essa pintura entrou em mim,depois que você me falou dela. Pensei muitonela desde aquela noite.

Ergo o olhar para o quadro.— Acho que sei por que você gosta tanto

dela: você queria ser como aquela NossaSenhora — continua Leonardo, tocandomeus cabelos com sua respiração leve. —Você gostaria de estar lá em cima, em seumundo, distante de qualquer coisa que possa

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magoá-la. No fundo, você acredita que é des-tinada a isso.

Olho a imagem de Nossa Senhora, tãodistante, serena, invulnerável. Percebo queele tem razão, eu também gostaria de serassim.

Leonardo inclina-se sobre mim, sinto seucalor no meu corpo e é uma sensação estran-hamente excitante, aqui, nesse lugarsagrado, no meio dessas pessoas que quasenão nos notam. Continua falando no meuouvido, como um demônio.

— Agora olhe o apóstolo. Naquela noitevocê me disse que está invocando a Virgem eque parece impulsioná-la em direção ao céu.

— De fato, é assim. — Bem, pelo menos asnoções de história da arte não me abandon-aram junto com todas as outras certezas.

— E se você estiver enganada? — Apertameus ombros, com força. — Eu gosto depensar que, em vez disso, ele a está

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chamando, quer mantê-la na terra, trazê-lade volta à sua natureza carnal...

Nunca tinha pensado assim. Observo apintura de uma perspectiva completamenteinvertida, agora, e percebo que, embora sur-real, essa também pode ser uma inter-pretação. Mas ainda não consigo entenderaonde Leonardo quer chegar. Eu acabei delhe dizer que desejo fazer amor com ele denovo — não sei com qual coragem — e ele meresponde propondo uma nova interpretaçãoda Assunção de Ticiano. Estou realmenteconfusa e temo que os joelhos não me aguen-tem por muito tempo.

— Por que está me dizendo isso tudo? —pergunto, com um fio de voz. Não resistomais.

Ele me pega pelos quadris e me gira emsua direção, apoderando-se do meu olhar.

— Porque quero ser aquele que traz vocêde volta para a terra, Elena.

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Está tão perto que nossos rostos setocam. Olho ao redor, esperando que nin-guém repare em nós. Mas ele não liga paraos outros e continua a me soprar palavrasardentes.

— Eu também quero você, de novo, milvezes mais. Mas do meu jeito. Quero ver oque você esconde atrás dessa sua máscaratão etérea, tão cerebral... Quero conhecer averdadeira Elena. Quero virar sua vida decabeça pra baixo.

Engulo em seco. Virar minha vida decabeça pra baixo. Olhando para ele agora, sediria que é perfeitamente capaz de fazer isso,e um pequeno arrepio percorre minhaespinha.

— Quando encontrei você pela primeiravez, toda concentrada naquele afresco, suatimidez, seu ar inocente me enfeitiçaram. Foium chamado irresistível. E não posso fazer

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nada em relação a isso, não vou sossegar en-quanto não libertar você.

De repente, sinto um fogo no peito. Écomo se ele houvesse injetado um líquido in-cendiário em mim.

— Mas você tem que se deixar sentir. Temque permitir que eu a guie... Quero ensinar avocê todos os modos de sentir prazer... —Sua voz, agora, é uma mistura sedutora,entre um gemido e um sussurro.

Estou muda, acho que não entendi direitoo que ele está me propondo. Posso somenteintuir, e leva todo o jeito de ser um acordo,um pacto terrível que mudará profunda-mente minha vida e não tenho tanta certezase quero aceitar. Mas fico tentada, com cadafibra do meu corpo, como apenas o descon-hecido e o perigo provocam.

Leonardo intui meu atordoamento e,agarrando-me por uma mão, arrasta-mepara fora da igreja pela saída lateral.

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Desembocamos em uma rua escondida efechada. Joga-me contra o muro descascadoda sacristia e levanta meu queixo.

— Entendeu o que estou dizendo, Elena?— Não tenho certeza... — murmuro.— Se você está buscando o amor

romântico, eu não sou o cara certo. Se estáachando que é uma escapulida de uma rotinachata, bem, você está enganada, Elena. Oque estou lhe propondo é uma viagem, umaexperiência que transformará você parasempre.

Estou ofegante, tento me soltar de suapegada, embora me afastar dele seja a últimacoisa que queira no mundo.

— Eu vou cuidar de você, lhe ensinareique seu corpo não é feito para inibições etabus e lhe mostrarei como usar seus sen-tidos, todos, com um único objetivo: gozar.Mas você terá que se entregar

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completamente a mim e estar pronta parafazer o que eu lhe pedir.

Aqui ele para, fixa seus olhos nos meus.— Tudo. Mesmo se você achar absurdo ou

errado.Seu tom não é autoritário, não. É per-

suasivo, desesperadamente irresistível. Seestivesse me propondo ir dançar ou beberuma taça de vinho, acho que faria exata-mente do mesmo jeito.

— Preciso pensar — imploro. — Eu... nãosei o que responder... agora...

— Mas você tem que escolher aqui.Agora. — Não dá para adiar. — Porque é aprimeira prova. É pegar ou largar.

Prendo a respiração, fecho os olhos epreparo-me como se devesse mergulhar deum precipício. Um salto no vazio, é isso queestou fazendo, justo eu, que nem sei nadar,eu, que sempre tomei minhas decisões com amáxima cautela, que nunca fui uma pessoa

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impulsiva. Estou fazendo a coisa mais in-sensata da minha vida e, talvez, exatamentepor isso, a mais certa.

— Está bem — digo, com o coração quasesaindo pela boca.

— Está bem? — repete ele.— Sim. Estou pronta. — Finalmente abro

os olhos.Caí outra vez aqui, em seus braços, e

ainda estou viva, por enquanto. Leonardosorri para mim e me beija avidamente, enfi-ando toda a língua na minha boca. Eu aindaestou abalada de emoção. Solta-se um mo-mento e me fita nos olhos, como se quisessese certificar de que eu esteja mesmo ali, de-pois volta a me beijar, ainda mais faminto,mordendo meus lábios. Sua mão insinua-se,lasciva, dentro da minha calça jeans e chegasegura lá onde não deveria, desencadeandoum redemoinho de prazer.

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— Quero que hoje, enquanto estiver notrabalho, pense em mim intensamente efaça, sozinha, o que eu estou fazendo em vo-cê, até gozar — sussurra, continuando a meacariciar.

— Não, por favor... — protesto. — Achoque não é uma boa ideia... Fico constrangidademais, nunca vou conseguir...

Leonardo corta minha fala, cobrindominha boca com a mão e atravessando-mecom um olhar assassino.

— É justamente por isso que deve fazer.Sou eu quem decide, você tem que confiarsem discutir. Lembra-se do que acabou deaceitar?

Minha vontade não conta mais.— Tudo bem. Vou tentar.— Ótimo, Elena. Assim estou gostando...Continua me tocando entre as pernas e

com a outra mão massageia meu mamilo.Desvio o olhar cheio de desejo, já estou

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molhada e excitada, mas não acho que fazerisso sozinha me dará o mesmo prazer. Nãoestou acostumada a me tocar.

Meu desejo aumenta, queria que ele fosseaté o fim, mas de repente Leonardo se afasta,deixando-me transtornada e insatisfeita. Osorrisinho sádico em seus lábios me diz quefez aquilo de propósito.

— Tenho que ir, nos vemos hoje à noitequando eu voltar. — Apoia-se com as duasmãos no muro e aproxima o rosto do meu. —Lembre-se, Elena: a partir deste momentovocê é minha. — Pousa outro beijo na minhaboca e faz menção de ir embora.

— Leonardo... — Eu o detenho,segurando-o por um braço. — Diga-me apen-as por quê. Por que faz tudo isso?

Inclina a cabeça para o lado, e um sorrisocândido e diabólico aparece em seus lábios.

— Porque tenho vontade. E porque soulouco por você.

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Percebe minha perplexidade e suspira,como se procurasse outras palavras.

— Escute-me bem, Elena: tudo o que eufaço ou que escolho não fazer é puro hedon-ismo. Não tenho outros estímulos ou mo-tivações. Não acredito na força das ideiasnem muito menos na moral. Vivi o suficientepara saber que a dor nos alcança de qualquerjeito, sem que a tenhamos provocado. Port-anto, já que não podemos evitá-la e que a fe-licidade absoluta não existe, o que sobra é oprazer. Busco o prazer com uma determin-ação que você ainda vai conhecer.

Estou sem palavras. Agora, em suasfeições vejo a dureza de quem lutou e um so-frimento oculto e permanente, como atatuagem que tem nas costas. Mas tambémvejo fome de vida e a coragem de quemnunca se rendeu naquele olhar orgulhoso enaquele sorriso que parece desafiar o mundointeiro.

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Você é um mistério, Leonardo, um en-igma que, agora, não tenho nenhuma possib-ilidade de decifrar. Mas, de qualquer jeito,estou com você. E, a partir de hoje, sou sua.

Não penso em outra coisa o dia todo.Desligo-me do afresco algumas vezes e merefugio no banheiro para tentar fazer o queLeonardo mandou, mas é uma tragédia.Sinto-me suja. Aliás, me sinto verdadeira-mente culpada, embora não saiba com quem.

Evitando me olhar no espelho, abaixo ozíper do macacão até conseguir entrever o dacalça jeans. É a terceira vez que tento. Fechoos olhos e penso em Leonardo, em seus bei-jos plenos, em seu corpo nu sobre o meu, en-tão coloco timidamente uma mão dentro dacalcinha, deixando-a escorregar sobre oventre. Meus lábios estão secos e mudos e re-cusam drasticamente aquele contato. Não re-spondem a nenhum toque, como se

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rejeitassem minha mão tão insegura. Reabroos olhos e, suspirando, sento-me na borda dabanheira, deixando meus braços caíremsobre os joelhos. Percebo que não tenhomuita familiaridade com meu corpo, soucheia de bloqueios e inibições. Talvez porquenunca tenha tentado realmente me darprazer sozinha, sempre deixei essa funçãopara os outros, para os poucos homens comquem estive... E, sinceramente, agora, depoisde ter estado com Leonardo, não sei seaquilo era o máximo a que se podia aspirar,na verdade.

Tento me concentrar de novo, mas assimque tento esticar a mão, um toque do celularme interrompe. Espio no bolso externo domacacão e vejo no visor o nome de Filippo.Inacreditável. Por que você me liga justoagora, Fil? Está me controlando a distância?Já é tudo tão complicado do jeito que está...Sinto-me ridícula de repente.

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Chega, desisto. Não sei como Leonardome vê, é isso. Ou talvez liberar minha sensu-alidade não seja algo que eu possa alcançarsozinha.

Tirei o macacão de trabalho e estou quasepronta para voltar para casa, frustrada. Aprimeira etapa da minha viagem erótica foium fracasso.

Sentindo-me uma covarde, queria sumirantes que Leonardo voltasse, mas a limpezados utensílios é mais difícil que de costume.Assim, ele chega antes que eu consiga ir em-bora e me vejo envolvida por seu abraço. Nãoposso dizer que não estava torcendo pelomenos um pouco por isso...

— Oi, Elena. Tem alguma coisa para medizer? — pergunta em um sussurro.

Queria mentir para ele, dizer que foiótimo e que todas as partes do meu corpo

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ardem em desejo, mas não consigo. E, de-pois, acho que minha cara fala por si só.

— Eu tentei.— Você tentou. — Ele me examina, sério.— Porém... — respiro, temendo sua

reação —, não deu muito certo.— Venha, vamos subir lá no meu quarto.

— Não parece irritado. Talvez esperasse poresse resultado, e isso me feriu ainda mais.Hesitante, deixo que ele pegue minha mão eo sigo. Não sei o que tem em mente, mas mesinto protegida quando ele me seguradaquele jeito.

Conheço esse quarto. Está mais ou menostão bagunçado quanto no dia em que entreiescondida com Gaia. A cama está desfeita.Faltam o champanhe e a maconha, mas serespira o mesmo clima de sedução, e tam-bém aquele perfume intenso de âmbar queimpregnou as paredes e os lençóis.

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Leonardo me joga na cama. Ele fica empé, na minha frente.

— Tire a roupa — manda. — Quero ver oque você sabe fazer.

Sento-me na beira da cama, agarrando asmãos nos lençóis. Um fiozinho de suor friodesce pelas minhas costas. O espelho diantede mim é uma presença inquietante e opensamento que a violinista sexy de corpoperfeito esteve aqui faz com que me sintamal no mesmo instante, antes ainda detentar fazer qualquer coisa.

— Vamos, Elena — Leonardo me en-coraja, pegando minha cabeça nas mãos. —Tire a roupa. Você não está fazendo nada deerrado.

Ficar nua na frente de um homem nuncafoi simples e natural para mim. Faz com queme sinta pouco à vontade, sempre me causouaquele embaraço que me levava a apagar aluz já durante as preliminares. Resumindo,

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expor minha nudez aos olhos de outro mecausa muita ansiedade.

Lentamente fico de pé e estou na frentedele. Com as mãos trêmulas tiro a camiseta edeixo o sutiã, mas pelo olhar severo deLeonardo intuo que devo tirá-lo também.Solto-o por trás e ele me ajuda a passá-lopelos braços.

— Sou louco pelo seu peito, é tão... macioe perfeito. — Acaricia-o, delicado. Entãobeija um ponto atrás da minha nuca tãosensível que, ao toque de sua língua, meusjoelhos amolecem. — Mas agora você temque fazer sozinha.

Deixo minha mão escorregar entre acavidade dos seios e começo a acariciar umdeles, apertando-o com os dedos ao redor domamilo.

— Isso, Elena... Agora dê um pouco deatenção ao outro também — ordena, bei-jando meu pescoço novamente.

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Tento relaxar e faço o que ele me pede. Écomo se seus gestos e suas palavras me en-corajassem a ter mais confiança em meucorpo.

— Muito bem... — Está com os olhos bril-hando de desejo. Agarra um dos meus braçose o encosta no meu ventre. — Agora desçalentamente com a mão. Até lá dentro.

Sinto-me ainda mais nua e vulnerável doque quando estava embaixo dele. Há algo defortemente erótico e proibido nisso tudo. Aânsia está contraindo meu estômago, mas seique não posso parar agora, não quero.

Abro caminho com a mão no meio dacalça jeans e começo a mexer os dedos para afrente e para trás, como se beliscasse as cor-das de um violão. Tenho certeza de que elegosta de ficar me olhando. Já eu me sinto in-defesa, totalmente à mercê daqueles olhosque parecem querer me devorar.

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— Você sabe como se dar prazer melhordo que qualquer pessoa — tranquiliza-me. —Aprenda a se conhecer...

Joga-se em cima de mim e me provocacom a mão através da calça. Consigo senti-lo.Apoia as pontas dos dedos no lado externodos grandes lábios e empurra para cima,para que me possua inteira entre os dedos. Éuma massagem profunda, que me acende depaixão.

Leonardo tira a camisa e arranca minhacalça e minha calcinha. Então, senta na beirada cama e me arrasta até ele, fazendo-meapoiar as costas em seu peito nu. Inclina-separa a frente, inundando meu pescoço de ar-repios ao contato com seus lábios macios.Sua respiração chega aos meus mamilos, quereagem de imediato. A imagem do meucorpo nu se reflete no espelho e me agridebrutal e violentamente como um tapa. Nãoconsigo continuar me olhando e viro a

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cabeça de lado. Leonardo agarra meu queixoe me faz virar de volta ao espelho.

— Olhe como você é bonita, Elena. Vocêtem que amar seu corpo, ficar orgulhosadele, porque lhe dá prazer. E a mim também.

Eu tento, mas é difícil. A visão da minhacarne nua, do meu sexo exposto, da minhapose lasciva não me enche de orgulho, masde vergonha. Leonardo pega uma das minhasmãos e a apoia sobre meu sexo úmido equente.

— Continue se tocando — sussurra-me noouvido. — Não pare.

Obedeço de olhos fechados, pelo menosassim eu venço a vergonha. Lentamentesinto os lábios ficando molhados, enquantoLeonardo apoia as mãos, que agora estãocobertas de óleo, nos meus seios. Um deli-cioso perfume de rosa acaricia minha pele.Seus dedos se movem leves sobre meu corpoaté pararem em meus mamilos arrepiados.

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Ele os aperta, agora, enquanto suas mãospressionam meus seios, como se quisessemdar forma a uma massa que pede para sermodelada. Existe apenas Leonardo, só comele consigo sentir esse prazer indescritível.

— Sobre a ponta dos dedos. É lá que vocêdeve estar concentrada agora. Com você in-teira. — Agarra meu pulso e o apoia logoabaixo do ventre.

Minha mão explora, estimulada pelodesejo de conhecer, mas avança aindainsegura.

— Agora tente com meus dedos... Se lheder mais prazer... — sussurra-me, afastandouma mão do meu seio. — Mas quero que vo-cê faça. Mais um pouco.

Agarro com delicadeza sua mão e deixoseus dedos deslizarem dentro de mim, aper-tando para cima e para baixo ao longo doclitóris.

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Depois, de repente, Leonardo livra-se dasminhas mãos. Começa com uma carícia levee macia que toca ligeiramente o interior dasminhas coxas, e não avança mais por lá atéeu abrir completamente as pernas e minhapelve começa a arquear. Então faz os dedosdeslizarem entre os lábios externos,estimulando-os com um pequeno movi-mento circular e uma leve pressão. Fecha umlábio entre polegar e indicador, apertando-odelicadamente na base, depois percorre comas polpas dos dedos minha vagina, de baixopara cima, descrevendo a curva de umparêntese, e repete a mesma coisa no outrosentido. Uma onda de prazer propaga-se at-ravés de todo o meu corpo.

Quando começo a me mexer ao toque deseus dedos, ele acaricia o clitóris com umapressão levíssima, depois desce mais, atémeus lábios o convidarem a entrar.

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— Agora abra os olhos, Elena —murmura-me no ouvido. — Quero que vocême veja.

Levanto as pálpebras como uma cortina ea imagem do meu corpo, aprisionado no seu,apresenta-se na minha frente. Nossos ol-hares se cruzam no espelho, enquantoLeonardo insere docemente o dedo médiodentro de mim e o usa para desenhar muitospequenos círculos, alargando delicadamenteminha carne. Vencida, me entrego. É o sinalinequívoco — como se fosse necessário —que ele pode ir além. Àquela altura, move odedo mais a fundo: está completamente den-tro de mim. Para e brinca mais um pouco.Agora eu quero mais e ele entende na hora.Espera que a abertura relaxe, e então insereoutro dedo, dando-me uma divina sensaçãode plenitude. No espelho meu rosto estátransfigurado de prazer e todos os meusmúsculos estão tensos em um espasmo,

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como se uma corrente de energia os atraves-sasse por dentro. Quase não me reconheço: éa primeira vez que me vejo gozar. Leonardosorri para mim do espelho, como se intuíssemeus pensamentos. Quando fico ofegante,flexiona os dedos em L, empurrando sobre abase do clitóris, com um movimento que estádizendo sem palavras “venha aqui”. Seus ol-hos também dizem isso. Agora nós dois es-tamos assistindo ao meu momento, eu meentregando.

— Isso, Leonardo... — gemo. A cabeçaroda, os sentidos cedem, completamenteperdidos numa agonia erótica. — Mais forte!— imploro.

Agarro-me aos seus ombros atrás demim, enquanto ele aumenta o ritmo dos de-dos dentro e bate delicadamente no ventrecom a outra mão.

— Você gosta assim?

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— Sim, gosto... — murmuro. Mnha excit-ação é total. — Mais, por favor... Não pare. —Agora sou eu quem peço a ele.

Ele continua seu jogo turbulento. É umtormento que me devasta, me leva à ex-austão. E é ele quem manda completamente.Meu corpo se debate, estremece sem maisfreios. Estou no auge do prazer e gemo semnenhuma inibição. Mais e mais. E, então, umberro rouco, que me faz desabar sob seus de-dos e arquear violentamente as costas contraseu peito, enquanto uma profusão de minús-culas farpas se espalha dentro de mim.

Leonardo me abraça, apertando-me fortee me enche de pequenos beijos no pescoço.

— Muito bem — murmura contra minhaboca. — Isso significa gozar.

Estou de costas na cama, saciada e ex-austa. Ele me olha, satisfeito, e eu me cubrocom o lençol. Sorri.

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— Você se incomoda tanto assim em serolhada?

— Sim... — respondo, sem forças.Sei que não faz sentido, porque até um

momento antes eu estava completamentenua em seus braços. Mas agora sinto a ne-cessidade de proteger minha intimidade, deabrigá-la debaixo desse lençol.

— Então esse deve ser o próximo tabu doqual tem que se livrar. Porque eu gostomuito de olhar você. — Sua voz é doce. Estádeitado ao meu lado, a camisa aberta nopeito, o braço dobrado no cotovelo apoiandoa cabeça.

Uma ideia fugaz atravessa meuspensamentos. Acabei de tomar um caminholouco. Louco, mas terrivelmente excitante.Que me seduz com o sabor do proibido e meassusta um pouco. Não sei aonde me levará,por enquanto só sei que quero percorrê-loaté o fim.

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Olho Leonardo, sua expressão é incon-stante, cada hora diferente. Não sei como,mas suas feições nunca me parecem famili-ares, é como se eu sempre as descobrisse deuma perspectiva nova. Quem é esse homemna verdade? Como chegou até a mim? Tenhoa impressão de que nunca saberei respondera essas perguntas. Mas sou devorada poruma curiosidade que não me dá paz. E tam-bém estou perdendo o controle do que digo.

— Você já teve muitas mulheres na suavida? — pergunto, sem rodeios. Já me disseque não é um homem que namora e o modocomo conhece e faz vibrar meu corpo revelauma grande experiência.

Ele não parece nem um pouco surpresocom a minha pergunta.

— Tive muitas, sim. — Dá um suspiroprofundo e deita-se de costas, com as mãosatrás da nuca. — Mas os sentimentos não sãoexatamente o meu forte, eu já disse. — De

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repente, parece que se entristeceu. Então sevira para mim subitamente e me olha, sério.— Você não é a única, Elena, se é isso quequer saber. Não espere que eu seja fiel avocê.

Eu queria me esconder debaixo do lençol.Sinto-me tola e infantil.

Ele deve ter percebido, porque me olhaum pouco desorientado:

— Eu achava que isso estava claro...— Está, está claro — digo rapidamente,

com um sorriso. Na verdade sinto ter sidoenganada, mas com um esforço sobre-hu-mano deixo passar. “Você não terá o amorromântico comigo”, ele me disse com todasas letras, eu só tenho que colocar isso nacabeça de uma vez.

— De qualquer jeito, acho que está nahora de eu ir embora — acrescento,levantando-me da cama e levando o lençolcomigo.

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Visto-me às pressas e Leonardo meacompanha até a porta. De repente me sintoinsuportavelmente presa a ele, quase es-magada pela força que emana. Ele para nasoleira e ajeita um cacho meu atrás daorelha.

— Tudo bem? — pergunta, atencioso.— Tudo — respondo, embora, com toda a

sinceridade, eu não tenha certeza.— Até amanhã, então?Nem tenho tempo de lhe responder que

sim, porque sua boca gruda voraz à minha.Pega com força meu rosto nas mãos e seubeijo torna-se mais intenso. Depois meafasta e me olha como se quisesse meestudar.

— Estou planejando algo especial paravocê — sussurra-me, misterioso. — Venhalogo.

— Claro... — respondo, atordoada.Não vejo a hora que chegue amanhã.

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9

Ao meu redor, só escuridão e silêncio.Ele me deixou aqui nua, amarrada a uma

pequena poltrona, um lenço de seda pretatapando meus olhos. Sinto-me pequena nocentro dessa sala enorme, o salão de festas, omaior do palácio.

Esta manhã, enquanto eu vinha encon-trar Leonardo, não sabia o que esperar real-mente, pensei em mil cenários diferentes,consciente de que, de todo modo, ele con-seguiria me surpreender.

E conseguiu. Como sempre.

Abriu a porta para mim e apareceu nasoleira com aquela expressão segura que nãodeixa escapatória. Não perguntou nada, sóme puxou e me beijou, depois me pegou pelamão, guiando-me através de escadas e corre-dores até este salão. Parou no centro ecomeçou a me despir. Meu coração mar-telava no peito, eu achava que iríamos fazeramor, eu o desejava intensamente. Queriaque ele me abraçasse e que, com seu corpo,anulasse minha nudez, que me deixava con-strangida e nervosa.

— Vire-se — disse, porém. E eu obedeci.Ele me vendou antes que eu pudesse dizerqualquer coisa, atando um nó, atrás da nuca,em um lenço preto que trazia no bolso dacalça. — Hoje você não precisa enxergar,Elena. Vou lhe ensinar a ver de outro jeito.

Colocou-me sentada, amarrou meuspulsos aos braços da poltrona não sei bemcom o que — poderiam ser as argolas das

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esplêndidas cortinas de brocado dessa sala —e fez o mesmo com os tornozelos,prendendo-os aos pés da cadeira.

— O que você está pretendendo fazer? —perguntei, com voz entrecortada.

— Shhh... Agora não é hora de perguntas— respondeu ele em um sussurro. Cobriu-mecom um lençol áspero, daqueles que são usa-dos para esconder as telas dos artistas, comose eu fosse uma criação sua, deixando expos-tos o rosto e o seio. Acariciou uma de minhasbochechas e depois ouvi seus passos seafastando.

Estou aqui há mais de uma hora. Pelomenos acho que foi esse o tempo que passou,já que escutei uma vez os sinos de SanBarnaba.

No início, fiquei atordoada e com ospensamentos descontrolados. Eu estava empânico, desorientada, parecia que estava

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sofrendo uma tortura sem sentido. Eu meodeio por ter me colocado nessa situação epor ter aceitado aquele pacto infernal. Sóqueria me soltar e fugir.

Então, eu entendi.O cheiro dessa sala penetrou lentamente

nas minhas narinas, sutil e insistente:madeira antiga, poeira, umidade. O veludodo forro começou a fazer cócegas nas minhascostas, enquanto uma brisa suave entrou poruma das janelas — um arrepio leve percorreutodo o meu corpo, tornando meus mamilosarrepiados. E também do silêncio, lenta-mente, emergiram os sons: as vozes doGrande Canal, o resmungo distante dos va-poretti, uma gota caída não sei onde, minharespiração tornando-se quaseensurdecedora.

Leonardo me vendou porque a visão évoraz. Consome tudo, não deixa espaço paraos outros sentidos. Meu olhar é submetido a

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estímulos infinitos todos os dias: meu tra-balho, minhas paixões, a cidade onde moro.Há 29 anos eu me drogo com a beleza deVeneza, me alimento de mármores, es-tuques, têmperas e pedras. Eu leio o mundoapenas através dos olhos. E agora eles estãocobertos, adormecidos, entorpecidos. Estaúnica via era suficiente para que eu conhe-cesse as coisas. Eu era feliz e segura. Antesde encontrar com Leonardo.

Um raio de sol vaza pelas folhas dasjanelas e acaba atingindo a mão direita,entorpecida. Não o vejo, mas estou tentandosenti-lo. Estou tentando observar o mundosem olhos. Além dos olhos. Onde está a ver-dadeira Elena, aquela que Leonardo quer.

Agora os tornozelos começam a doer e ospulsos também. O sangue tem dificuldadepara chegar às extremidades. Uma lágrimafina desliza por debaixo da venda até os

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lábios — é doce e salgada —, quando perceboum leve chiado. Sinto uma presença na sala.

— Leonardo? É você? — agito-me napoltroninha.

Ouço seus passos se aproximando. Háquanto tempo está aqui? Desde quando estáme observando? Agora está de pé na minhafrente, consigo senti-lo, o calor de seu corpoe aquele inconfundível perfume de âmbarchegam até a mim.

— Leonardo, me solte... por favor...Não me responde. Levanta uma barra do

lençol e o faz deslizar com uma lentidão ex-asperante. Agora estou nua, completamenteexposta, impotente. Por um tempo que meparece infinito, percebo seus olhos explor-ando cada parte minha. É um toque indelic-ado, ácido, que provoca pequenos estremeci-mentos sob a pele. Isso me machuca e me ex-cita ao mesmo tempo.

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De repente, sua voz está muito próximado meu ouvido.

— Estou olhando você, Elena. Em todosos lugares.

Queria dizer a ele que gosto de que me ol-hem assim, que não sabia e descobri agora,mas tenho que engolir saliva e não consigofalar.

Deve ter se ajoelhado na minha frente,suas mãos estão em cima das minhas coxas.Então, lábios quentes e molhados pousamsobre os meus. Descem lentamente pelopescoço, sinto sua barba contra a minhabochecha, sobre meu seio, em meu umbigo.Barba que toca, faz cócegas, fere e machuca.Seu brinco roça em meu ombro. E depoisseus lábios estão sobre os meus novamente,a língua pressiona, arrogante, abrindo umapassagem entre os dentes, e irrompe naminha boca.

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Uma onda desaforada sacode meu ventree depois desce, líquida e traiçoeira. Queriasentir o resto de seu corpo, envolver seusombros com as mãos, mas posso apenasabri-las e fechá-las, impaciente.

— Relaxe, Elena — Leonardo sopra emmeu rosto. — Hoje só eu posso usar as mãos.

Deve estar com o olhar sombrio, ardentede desejo, eu sei, ainda que não possa vê-lo.Aquele sorriso enigmático, cruel, paira emseu rosto.

Percorre com os dedos as partes do meurosto, até o queixo. Agarra meus cabelos,soltando alguns da venda. Sua língua dentroda minha orelha. Sangue fervendo nas veias.

— Apesar de você não me ver — sua voz éveludo, ressoa à minha volta, dentro de mim—, você pode me sentir, eu sei. — Leonardorefugia-se no pescoço e me cheira, bebe meuodor. — Você só tem que confiar nos seussentidos... Elena...

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Então, algo fresco, vivo, me toca de leve,desce languidamente do pescoço à garganta,vai até o seio, parando nos mamilos. É algode inesperado, molhado, e são suas mãos queo guiam. Passa pelas minhas coxas, entre aspernas, e depois de novo para cima, atépousá-lo na minha boca.

— Lamba-a — ordena, com voz diabólica—, devagar...

Faço o que ele me diz. Nunca provei umalaranja desse jeito. Tem o gosto acre dopecado, seu sabor mistura-se ao meu.

Agora, Leonardo está roubando seu sucodos meus lábios, seguindo seu rastro atéabaixo do meu umbigo. Sinto suas mãospressionarem as minhas pernas, que in-stintivamente querem se fechar. Eu tenhovontade de me mexer, me liberar dessa docetortura, mas não posso.

Seus dedos estão dentro de mim. Separacom o médio os pequenos lábios e com o

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indicador e o anelar os pequenos dosgrandes. Afunda o dedo médio dentro demim, depois o leva à minha boca e me fazchupá-lo. Meu sexo está molhado de tantodesejo.

Solta um dos meus tornozelos. Apoio apanturrilha em seu quadril e me abro, paradar espaço ao que virá. Mas Leonardo se re-trai inesperadamente.

Sinto uma gota de um líquido frio aterris-sar em meu joelho e, dali, escorregar até opé. Depois a mesma gota na boca, densa, es-palhada pelos dedos de Leonardo. Tem gostode álcool e alcaçuz.

— Você sabe que eu não bebo... — mur-muro, com dificuldade.

— Acho que você não vai morrer —sussurra-me, a voz entrecortada pelo prazer.

Ele me dá mais da bebida, diretamenteda garrafa. É um sabor forte, violento, com oqual não estou acostumada. Retraio-me com

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uma careta, um pouco de líquido pinga noqueixo e no pescoço. Leonardo ri e meprovoca, tirando-o com os lábios.

— Elena... — sussurra, quase no meuouvido —, você não é um anjo puro e sem ví-cios... Pense só em gozar, agora. — Enquantofala, enfia de novo as mãos no meio das min-has pernas, fazendo-me estremecer. Ele tam-bém bebe um gole, me puxa para perto deleapertando atrás da nuca e o passa na minhaboca. O licor desce assassino na garganta. Ébom, doce e amargo ao mesmo tempo. Porfora refresca, por dentro queima como fogo.

— Você gosta, não é? Eu sei...Penetra-me com a língua e a passa em

volta da minha. Então segura minha cabeça ea abaixa. Uma profusão de pontinhos bran-cos gira no preto dos meus olhos. Tudo roda,sinto-me atordoada.

— Me chupa. — Sua ordem é doce, cheiade promessas.

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Estou em suspenso entre o medo desempre e o desejo de agora. Toco-o leve-mente com a língua, como se toca o perigo.Saboreio seu pau prepotente. Está duro, apele tensionada. Cresce pulsando.

Poucos instantes apenas e, então, apoi-ando uma mão na minha testa, afasta meurosto de sua ereção impaciente e, com umgesto decidido, solta meu outro tornozelo.

Seus dedos deslizam rápidos pelas min-has pernas, apertando e massageando, comopara trazê-las novamente à vida. Meusbraços precipitam-se ao longo dos braços dapoltrona, Leonardo desatou todos os nós.Estou livre. Livre para tocá-lo. Livre parafazer o que desejo. Levanto uma mão emdireção à venda, mas ele me detém.

— Não. Isso aqui fica. — É uma ordem.Aperta o nó para reforçá-lo bem na nuca.

— Por favor — imploro.

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— Não, Elena... Você precisa — sussurra-me, encostando os lábios quentes e úmidosem meus olhos cobertos.

Então, prendendo meus quadris, levanta-me e me toma nos braços. Empurra-me con-tra a parede, apertando-me mais forte. Sintoas palmas de suas mãos afundarem na minhabunda. Seu sexo desliza no meu e abre es-paço pressionando com experiência, sempressa.

Sinto sua respiração no meu ouvido.— Você ainda não se conhece. Mas vai

chegar lá, sem perceber. — Sua voz vibra dedesejo.

Minha respiração sintoniza-se com a sua.E agora o prazer queima como fogo em nos-sos corpos suados.

Enfim, me coloca no chão, sobre o panoque antes me cobria, e deita-se em cima demim, mergulhando dentro de mim. Deixo-me possuir, dessa vez mais profundamente.

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Gemidos, cada vez mais ofegantes. Suspiros.Arranhões. Apertões. E, então, de novo,respiros curtos, vertigens. Tudo cede,despedaça-se sob os golpes de sua carne, deseu desejo. Leonardo busca o prazer dentrode mim, e o encontra. O orgasmo acende-serepentino e eu contraio os músculos como sequisesse detê-lo, mas ele explode violento eimplacável, invade tudo, da ponta dos pésaté os ossos do crânio. Agarro-me com as un-has às suas costas enquanto me precipitodentro dele. Ouço meus gemidos. Perdi total-mente o controle, não sou mais eu, não soumais a Elena que conhecia. Sou a impotenteespectadora de mim mesma.

Leonardo desliza para fora do meu corpomolhando meu seio, depois desaba ao meulado, ofegando.

Manteiga. É assim que me sinto agora.Um abandono pegajoso e sensual me

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mantém colada ao chão. Pequenos arrepiosainda percorrem minha coluna.

Uma mão doce acaricia meu rosto e liberameus olhos da seda preta. Sem forças abro efecho as pálpebras na luz fraca da tarde. Nãoconsigo enxergar bem, no início, mas aospoucos a pupila acostuma-se novamente e sedilata. Esta sala parece-me diferente da que ésempre, como se eu emergisse agora de umsonho e nunca houvesse estado aqui. Asvidraças sobre o Canal, os lustres de Murano,o veludo das cadeiras, as estátuas dos doisMouros aos lados da lareira. Nada é comoantes. O cheiro da poeira mistura-se ao dosexo.

Meu olhar encontra o de Leonardo, queme sorri como alguém que procurava umapessoa e finalmente a encontrou.

— Olhe só para você — diz devagar, tran-quilizador, limpando meu seio com uma

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barra de tecido. — Está ainda mais bonita,agora.

Não tenho forças para falar. Sorrio-lhe,passando a mão entre seus cabelos, en-quanto ele se abaixa para preencher meuumbigo com um beijo delicado.

— Foi tão terrível, uma vez só, não olhar ese deixar olhar? — pergunta-me, apoiando aboca em meu ombro.

— Foi maravilhoso — sussurro, com umfio de voz. Tenho medo de quebrar aqueleencanto.

— Essa necessidade toda de controle épura ilusão, Elena. É quando você se aban-dona a você mesma que se torna o que real-mente é. — Acaricia minha testa e ajeita umcacho atrás da orelha. — E o que fizemos ho-je foi só uma pequena amostra... — Sorri, de-pois me dá um tapinha leve no ombro. —Agora vire-se, quero massagear suas costas.

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Obedeço, ainda dolorida. Ele aperta meusquadris com os joelhos e deixa as mãos livrespara viajar sem direção sobre minha pelenua. Sinto os músculos de novo.

Não sei que horas são, não contei mais ostoques dos sinos. Sei apenas que daqui apouco terei que ir embora. Sei que, enquantoandar por essas ruas estreitas e lotadas de-mais, ainda vou sentir o perfume deLeonardo. Não me deixará, me seguirá viol-ento até o portão de casa, enquanto eu subiras escadas, leve nos meus pensamentos.Aquele cheiro me fará companhia pelo restodo dia e nada poderá tirá-lo de mim.

— Elena, onde você está? — belisca meusombros, como se quisesse me despertar doturbilhão de pensamentos nos quais estoumergulhada.

— Estou aqui. Mas daqui a pouco vouembora.

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Daqui a pouco vou embora, mas per-maneço mais um pouco. Porque agora mesinto bem onde estou, nesse quadrado de luzque inunda o chão, meu corpo nu, o dele, emais nada.

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10

Não vejo Leonardo há dias. Desapareceu derepente, nada de mensagens, nada de tele-fonemas, e eu me arrasto por aí com essa es-tranha sensação de que me falta parte docorpo. Não passou muito tempo do dia donosso pacto — se pode ser definido assim —,mas ele já se tornou indispensável. Estouvivendo uma dependência que nunca experi-mentei antes, espero nosso próximo encon-tro como se não nos víssemos há meses: sousua e quero ser ainda mais. Nunca havia sidopossuída de um jeito tão visceral.

Ele sumiu do palácio. Espiei em seuquarto (estou me comportando como umaparanoica, e isso não tem a ver comigo) ehavia a bagunça de sempre, os lençóis amas-sados de sempre, as camisas de sempre es-palhadas pelo tapete. Liguei para seu celular,mas desanimei com a voz anônima dasecretária eletrônica, que me aconselhava atentar mais tarde.

E foi o que eu fiz, sem, porém, recebernenhuma resposta. Parece que Leonardo de-sapareceu do nada e seu silêncio me enchede perguntas. Mas existe uma que, mais queas outras, não me dá paz: e se ele já tiver secansado de mim? Formulei as hipóteses maisabsurdas. De vez em quando o imaginojogado na cama de um hospital com ummedicamento correndo na veia, mas nominuto seguinte penso nele em um luxuosoquarto de hotel, gozando nos braços deoutra. Talvez tenha me descartado para ficar

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com a violinista escultural — no fundo, isso émais que possível.

O trabalho não ajuda a me distrair: a mãonão está firme, os olhos não focalizam e amente inventa mil hipóteses. Pergunto-me sealgum dia voltarei a ser feliz como fui emcontato com sua pele nua. Mas, acima detudo, pergunto-me se nesses dias ele poracaso pensou em mim como eu penso nele.Como uma obsessão.

Estou voltando de vaporetto da ilha deSan Servolo. Para não morrer de tantopensar, fui ver a retrospectiva de um famosorepórter fotográfico sueco. Não sei se foi umaboa ideia. As imagens das paisagens irani-anas atraíam minha atenção, mas enquantoeu estava lá e circulava sozinha entre as salaslotadas de gente, não pude deixar de pensarem Filippo. Geralmente eu ia com ele às ex-posições e era incrível compartilhar as

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opiniões sobre tudo e bastava um olhar paranos entendermos. Às vezes ele tinha o ânimode passar horas inteiras encostado em umaparede, caderneta e caneta na mão, copiandolegendas, rabiscando rascunhos, fazendo an-otações. Então, eu estourava e, depois de se-questrar seu amado caderninho, eu o puxavacom força. Ríamos como loucos.

Porém, se Filippo estivesse aqui, seriatudo mais complicado, agora.

Uma névoa leve pousa sobre as águas daLaguna, enquanto o dia está afundando si-lenciosamente no horizonte. Curto o pôr dosol do vaporetto e tenho a impressão de es-tar me movendo no céu junto com o sol. Aessa hora, no ar de Veneza sempre se difundeuma estranha nostalgia.

Desço na parada de San Zaccaria, trom-bando com as pessoas presentes no píer. Emvolta dos cais dos vaporetti, as pessoas eseus pensamentos costumam parecer

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especialmente próximos e semelhantes.Somos todos marinheiros, embora estejamosapenas nos deslocando de um bairro aooutro da mesma cidade.

Decidi passar para dar um beijo nos meuspais, assim quem sabe também aproveitopara jantar — o único jantar da semanadigno de tal nome. Depois de dias de ina-petência, começo a sentir fome, mas aindanão estou com o humor adequado para en-frentar o supermercado. Se eu fosse fazercompras, agora, correria o risco de encherum carrinho inteiro de biscoitos de chocol-ate, me arrependendo depois de ter compra-do e comido um pacote no meio do caminho.

Ando a passos rápidos sob os pórticos doFlorian, protegida da multidão, deixandopiazza San Marco aos turistas e às suas foto-grafias. Desafiando o vento frio que corta orosto, chego à piazza Santa Maria del Giglio etoco o interfone da casa Volpe. Minha mãe

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atende, e pela voz parece no sétimo céu. Nãoestava esperando minha visita.

Subo as escadas e me deixo envolver peloperfume do strudel de maçã recém-saído doforno. Minha mãe é uma cozinheira excep-cional. Se não fosse por ela me alimentando,é provável que em todos esses anos de rig-orosa fé vegetariana eu tivesse morrido defome.

Tiro o casaco e, beliscando uma ponta dostrudel, afundo no sofá. Ligo o rádio, porquesomente isso me é permitido: nada de tele-visão antes das nove da noite sempre foi umaregra rígida na casa Volpe. Isso explica porque cresci sem desenhos animados e ao somde coletâneas de Mina e Lucio Battisti.

Minha mãe coloca para descansar amassa dos gnocchi de abóbora — outra espe-cialidade sua — e da cozinha vem ao meu en-contro na sala e começa a me bombardear deperguntas sobre a inauguração do

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restaurante de Brandolini. Não a vejo desdeentão e eu tinha certeza de que faria um in-terrogatório sobre o acontecimento do mês.Eu lhe conto tudo em linhas gerais, obvia-mente sem mencionar Leonardo, e ela pareceinsaciável. Quer saber tudo sobre quem es-tava e quem não estava lá e exige todos osdetalhes sobre os convidados presentes.

— Li no jornal que havia um cozinheirofamoso... — insiste, esperando uma respostaque a satisfaça.

— Sim, mãe, é o sujeito que mora nopalácio onde estou restaurando o afresco. —Sou vaga, mas já sinto as bochechas pegandofogo. Se ela soubesse o que sua filhinha fazcom aquele “cozinheiro famoso”... Ajeitomeu cachecol. Não o tirei para esconder umamarca explícita que Leonardo deixou no meupescoço.

— E, então, como ele é? — continua comaquele seu tom indagador.

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— Só cruzei com ele poucas vezes —abaixo o olhar para o tapete —, mas pelo queparece cozinha bem.

— E o que havia para comer?— Muita variedade de petiscos, uma coisa

ultrassofisticada... Mas nada que se comparecom o que você cozinha, mãe — eu a tran-quilizo, com um sorrisinho bajulador.

Contente, passa a mão nos cabelos que hávinte anos pinta com a mesma tonalidade decastanho-acobreado. Toda vez que alguémlhe faz um elogio sobre seus dotes culinários,minha mãe fica em êxtase.

— Você não vai tirar o cachecol?Pronto, eu sabia. Nada lhe escapa.— É que estou com um pouco de torcicolo

e ele mantém meu pescoço aquecido — digo,fingindo uma expressão sofrida.

— Querida, você tem que se agasalharmais com essa umidade!

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— Talvez seja culpa do afresco. Fiqueitempo demais naquela posição descon-fortável em cima da escada. — Socorro, nãoconsigo manter a desculpa do torcicolo,quando penso em mim enroscada emLeonardo.

— Claro, se você forçou os músculos, en-tão em um instante pode acabar com umabela contratura — diz ela, toda convencida.

Por favor, mãe, não continue. Você nãosabe — e não vai querer saber — quais mús-culos sua filhinha forçou. Tento mudar deassunto.

— Cadê o papai?— Foi à loja de ferragens.— Para quê?— Sei lá — balança a cabeça, resignada —,

desde que se aposentou tem se dedicado àmarcenaria.

— Isso é bom. Então vou pedir para eleconstruir uma estante nova para mim, já que

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na minha não há mais nenhum cantinholivre.

— Com certeza ele iria adorar. Parece es-tar se divertindo muito às voltas com afuradeira nova.

É nesse preciso momento que escuto ocelular tocar na bolsa. Olho o iPhone, e no vi-sor pisca um número que começa com 041, oprefixo de Veneza. Quem poderia me ligar deum telefone fixo que eu não tenho gravadona agenda? Ai meu Deus, deve ser o con-sultório do dentista para me lembrar da con-sulta de amanhã.

— Alô? — atendo, com tom distraído.— Oi, sou eu. — Uma voz forte chega do

outro lado. A voz dele.Dou uma olhada tranquilizadora em

minha mãe – como se dissesse “está tudobem, é um telefonema de trabalho” – e es-capo para meu antigo quarto. Meu coraçãopulsa nas têmporas.

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— Leonardo... — Apoio-me no aquecedore olho pela janela. Por um instante tenho aimpressão de que o tempo se congela e que aágua do canal abaixo para de correr. Encostoa testa no vidro:

— Mas onde você se meteu? Tentei ligarum monte de vezes.

— Eu sei — diz ele.— Achei que você não quisesse mais me

ver — acrescento, com voz incerta.— Não, Elena, não tire conclusões... Est-

ive na Sicília — continua ele, com tom ser-eno. — Era um assunto urgente e tive queviajar sem poder avisar. Só isso.

— Pelo menos você podia ter me telefon-ado — insisto, com uma pontinha de raiva.

Ele prende a respiração.— Não espere telefonemas meus, Elena.

Não espere uma rotina de namorados. Eutenho que me movimentar com liberdade,por isso não quero compromisso.

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É assim, então, muito mais simples doque eu havia imaginado. Podia inventarqualquer desculpa, mas me diz semcerimônias: não deu sinal de vida porque nãoquis. E o jogo é esse: é pegar ou largar.

— Estou no restaurante — continua. —Cheguei há uma hora e você é a primeirapessoa para quem eu ligo.

— Para me dizer o quê? — pergunto-lhe,seca, o orgulho ferido.

— Venha para cá. Espero você à meia-noite, depois que fecharmos.

— Por quê? — Pego o telefone com aoutra mão e limpo a palma suada na calça.Estou ficando inquieta.

— Porque quero vê-la. — Tenho a im-pressão de que está sorrindo da minha re-lutância. — Venha elegante e com muitafome. Jantaremos juntos.

Ele já dá como certo que eu vou aceitar.Como sempre. Mas eu queria ter a força de

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lhe dizer não, só para me fazer de importantee me vingar por ter sido abandonada daquelejeito. Mas é inútil me enganar: estou comvontade demais de vê-lo.

— Tudo bem. Nós nos vemos depois. — Eo orgulho que vá para o inferno.

— Até mais tarde.A ligação acaba. Aperto o celular tão forte

que meus dedos doem. Estou feliz que eletenha aparecido novamente, eu não esperavaoutra coisa, mas me sinto cada vez mais inse-gura, à mercê de seus planos obscuros. O queserá que ele tinha para fazer de tão urgentena Sicília para sumir daquele jeito? Não seipor quê, mas de repente tenho vontade dechorar. Não sei nada sobre Leonardo, sobreseu passado ou o que faz quando não estácomigo. Embora eu conheça cada centímetrode seu corpo, seu mundo interior permaneceum mistério para mim.

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Demoro um pouco para me recuperar e,antes de voltar à sala, vou ao banheiro con-ferir o estado do meu rosto. O fogo que tenhodentro de mim subiu todo para a testa e umaonda úmida insinuou-se suavemente entreminhas pernas. Só o fato de pensar nele meprovoca uma reação física. Eu o desejo,loucamente.

Quando volto à sala, encontro minha mãeinclinada sobre a superfície de mármore dacozinha enrolando os gnocchi com o garfo,uma habilidade que sempre me deixachocada.

— Quem era ao telefone? — pergunta,continuando a cortar pedaços de massa.

Penso apenas um instante e já estoupronta para mentir.

— Era Gaia.— E como ela está? Não a vejo há tanto

tempo...

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Já me preparo para outro interrogatório.Tenho um repentino flashback da época doensino médio, quando eu voltava para casaexausta depois de um dia na escola e minhamãe me perguntava sobre as notas que meuscolegas haviam tirado, ou sobre que coisatínhamos discutido durante a aula de itali-ano. Se eu não estivesse com muita dis-posição, ela mesma preenchia os silêncios,falando das doenças de suas amigas, decomo o funcionário dos Correios havia sidoantipático ou do fato que encontrara minhaprofessora do ensino fundamental na quit-anda. Ela não mudou muito desde então.

— Gaia está bem, sempre muito ocupada.— Aproximo-me do cabideiro e pego ocasaco. — Desculpe, mãe, mas não possoficar para o jantar.

— Como assim? Vai embora desse jeito?— Franze as sobrancelhas em sinal de desap-rovação e me olha atravessado. — Eu tinha

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até preparado uma salada de frutas, porquesei que você nunca as come. — Então, olha-me desconfiada. — Elena, você está tão pál-ida... Tem certeza de que está bem?

Pálida? Achei que estava pegando fogo hápouco. Merda. Será que ela percebeu algumacoisa? Na época do colégio eu nunca quis lhedizer de quais meninos eu gostava, caso con-trário ela me massacraria com perguntas. Eagora também não direi nada, minha bocapermanece lacrada sobre certos assuntos.Tenho quase trinta anos e ainda gostaria quemeus pais me estimassem, que tivessem umaimagem pura de mim. E minha mãe, umamulher que encontra o sentido da própriavida na receita do strudel e nas toalhas decentro de mesa bordadas, nunca entenderiauma relação como a que tenho comLeonardo. Nem eu a entendo, para sersincera.

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— Sim, estou bem, mãe. Deve ser essetorcicolo que faz com que eu me sinta umtrapo.

Minha mãe olha para baixo e alisa a saia.Ela ficou chateada. Primeiro eu alimentosuas esperanças e depois lhe digo que nãoposso ficar para o jantar. Ser filha única é umtrabalho de tempo integral, não há irmãos eirmãs que se revezem comigo quando euabandono a partida.

— Ora, não fique zangada... — Aproximo-me e dou um beijo no seu rosto. — Gaia in-sistiu, você sabe como ela é. Tem que mecontar uma coisa importante.

— O que pode ser tão importante?Está tentando novamente. Talvez tenha

intuído que há outra coisa além de Gaia equer ver se eu cedo.

— Não sei, mãe, mas parecia uma coisaurgente... Já vou.

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— Está bem, mas juízo. — No fim, ela seconforma, mas antes que eu vá emboracoloca em minhas mãos um pote cheio degnocchi de abóbora. — Coloque-os na ge-ladeira, duram até amanhã. E coma tudo!

Eu poderia ter ficado para jantar na casados meus pais e ir encontrar Leonardo maistarde, mas a ideia de passar diretamente docalor do lar às garras do meu Pigmalião nãome agradava. Seria traumático demais. Ficarem casa sozinha está fora de cogitação, eume consumiria na espera. Então liguei paraGaia e pedi que jantasse comigo. Ela aceitouna hora. Da última vez que nos falamos, suahistória com Jacopo ia a mil maravilhas, masimagino que ela tenha novidades import-antes e esteja ansiosa para me contar.

Coloco lingerie preta, comprada há al-guns dias em uma loja do centro. Meias altascom cinta liga e um vestido de renda

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também preto, que estava no meu armário eeu nunca uso. Foi Gaia que me deu, não melembro em qual ocasião, mas sempre o con-siderei curto e decotado demais. Esta noite,porém, estou me vestindo para que Leonardopossa me despir mais tarde e pensar nissome estimula a ousar.

Encontro Gaia na Oche, uma pizzaria nasZattere. Na entrada há uma bela fila, entãosugiro irmos ao pequeno restaurante algunsmetros mais adiante. Não quero chegar tardeao encontro com Leonardo, mas Gaia insiste,está morrendo de vontade de comer pizza epromete que se a fila não andar rápido elavai dar um escândalo. Isso sim é que metranquiliza. Eu a estudo um pouco: esta noiteestá mais radiante que o normal, está com asfeições relaxadas e os cabelos passaram poruma escova perfeita. Das orelhas pendemdois chamativos brincos de pérolas e ourobranco.

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— Está tudo bem com meu rosto? —pergunta-me, dando tapinhas nas própriasbochechas.

— Eu só estava olhando seus brincos.Muito bonitos...

— Você acha? Foi Jacopo que me deu —diz, com um sorriso mostrando os 36 dentes.

— Brandolini não erra uma, hein...Ela sorri, não via a hora que eu tocasse no

assunto.— Ele me levou a um resort nas colinas

da Toscana e passamos um fim de semanaincrível. Conheci um monte de gente de seucírculo, eu achava que fossem metidos, maspelo contrário... — Continua contando dur-ante um tempo, preenchendo, assim, o tédioda espera. Enfim me pergunta como foi omeu fim de semana.

— Ótimo — respondo. — Trabalhei. Deiduro com o afresco.

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— E você voltou a encontrar Leonardo? —pergunta distraidamente, enquanto noslevam a uma mesa no andar de cima. — Nãoo vejo desde a noite da inauguração.Devíamos ir de novo ao restaurante dele!

Meu coração para de bater no peito porum segundo.

— Podemos combinar, claro. — Tento servaga, mas por pouco não tropeço nasescadas.

Chegamos à mesa e, quando tiro o sobre-tudo, a surpresa se desenha no rosto de Gaia.

— Finalmente vejo você com esse vestido!— observa-me satisfeita sob as luzes, fazendocom que eu dê uma voltinha. — E está bonitade maquiagem também. Muito bem, de vezem quando você me escuta: aquela besteirade sair de cara limpa morreu com as feminis-tas nos anos 1970.

— Eu sempre escuto você — rebato,sorrindo.

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— Claro... — e molha um talo de aipo nomolho de azeite, sal e pimenta. — Seu colartambém é bonito. Um pouco extravagante,mas combina perfeitamente. — Pena que nãose sabe o que se esconde por trás disso tudo.De todo modo, ter a aprovação de Gaia re-força minhas esperanças de que Leonardotambém vai gostar.

O garçom chega à nossa mesa para anotaros pedidos. Ela pede uma pizza de rúcula ebresaola,** eu, uma salada. Leonardo medisse para chegar com fome, não quero es-tragar o apetite.

Gaia olha-me espantada.— Só isso? Vai deixar que eu me afunde

em carboidratos sozinha?Tento acalmá-la.— Eu disse a você que praticamente

jantei na casa dos meus pais. Você conhece ostrudel da minha mãe...

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— Ah, o strudel da Betta... Tudo bem,essa noite você está perdoada.

Fala comigo, mas está olhando o garçom,que ainda está de pé ao nosso lado e que, nãoposso tirar a razão dela, é realmente umgato. Ele sorri e ela retribui, sedutora.

— Por favor, a pizza... bem torradinha. —Coloca o cabelo para o lado.

O garçom pisca e vai embora. Gaia nãoperde o espetáculo de seu bumbum apertadona calça justa.

— Olha, ele é novo demais para você —digo-lhe, sem me preocupar se ele aindapode nos ouvir.

— O quê? — responde ela, com ar ino-cente. — Ora, eu não estava flertando. Massó porque está claro que ele é gay.

Damos uma gargalhada. Apesar de Bran-dolini, Gaia continua uma devoradora de ho-mens incorrigível. Sou eu que estou difer-ente: sempre lhe contei as minhas histórias,

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mas não consigo falar de Leonardo. Eu teriade lhe explicar que o que temos não é exata-mente uma relação, que entre nós existe umaespécie de pacto, uma brincadeira perversa,em que ele só tem a ganhar e eu tenho apen-as uma coisa a perder: eu mesma. Não, achoque Gaia não aprovaria, ou melhor, se pre-ocuparia comigo e me aconselharia a deixarisso de lado. Mas eu não quero deixar, aindanão.

— Escute, me conta de Filippo... — elafala de repente, batendo levemente nos can-tos da boca com o guardanapo. — Quandofalou com ele pela última vez?

— Há alguns dias, por Skype. Está ocu-padíssimo com o trabalho.

— Mãe do céu, só por causa disso vocês jáformariam um par perfeito. São dois work-aholic! — Balança os braços no ar. Depois seinclina para a frente e fala, toda séria: — Ele,

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eu já lhe disse, você deveria ousar um poucomais com ele.

— Não sei... — digo, os olhos fixos natoalha. Filippo parece tão distante nestemomento.

Gaia faz uma careta.— Mas por que você é tão controlada?

Relaxe e escute suas emoções, pelo menosuma vez...

— Já disse, é a distância que me assusta...— “Além do fato de eu estar transando comoutro.”

— Então vá visitá-lo! Ou você poderiafazer algo por Skype, por exemplo... — con-tinua, com um tom cada vez mais malicioso.

— Pare com isso, você acha que Filippo édo tipo...

— Meu Deus do céu, Ele, acorde! Ele tam-bém é um homem... Não deve ser muitodiferente dos outros.

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— Agora, chega! — Escondo-me atrás doguardanapo. E, aí está, diante dos meus ol-hos, pontualmente, minha imagem refletidano espelho enquanto me dou prazer nosbraços de Leonardo.

Felizmente chegam nossos pedidos.Abocanho a primeira garfada de salada e jásei que farei um esforço imenso para comê-lainteira. Meu estômago está fechado e estouachando esse troço totalmente sem gosto.Agora na minha mente só existem o cheiro eo gosto de Leonardo, algo que se parece comâmbar, com mar e com terras distantes.Pergunto-me o que me espera depois, nonosso encontro, mas afasto o pensamento.

Para me distrair, tento fazer com queGaia fale.

— Enfim, então você está realmentegostando de Jacopo. Mas me explique umacoisa: qual é a posição do ciclista no seuranking de objetos de desejo?

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Inesperadamente, Gaia muda de ex-pressão. Eu não achei que estivesse tocandonum assunto delicado.

— Infelizmente ainda não esqueci Belotti.— Suspira. — Sei que está na concentraçãocom a equipe, agora, porém mais cedo oumais tarde ele vai me ligar, você vai ver.

Estou surpresa, não imaginava que seussentimentos por aquele sujeito fossem tãopersistentes.

— E então o que você faria, largaria Bran-dolini de uma hora para a outra? —pergunto.

— Não sei, talvez para ficar com ele eufizesse isso. — Avista o garçom e pede a con-ta, fazendo um rabisco no ar. — Mas por en-quanto estou firme com Jacopo.

— E faz bem — comento. Entre o conde eo ciclista, eu torço pelo conde.

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— Vamos beber algo no Skyline? —propõe, recuperando de repente a habitualleveza.

Solto a frase que havia preparado comantecedência:

— Não posso, amanhã acordo cedo paratrabalhar — digo, com a voz empastada desono fingido e dou um bocejo perfeito.

— Eu poderia apostar meus sapatos Man-olo Blahnik que você me diria não.

Bem, minha interpretação foiconvincente.

— Mas me prometa que, assim quechegar em casa, vai ligar o computador eprocurar Filippo no Skype.

— Tudo bem... Se ele estiver acordado.Nós nos despedimos na esquina da ponte.

Abraço Gaia e lhe agradeço pela noite. Doualguns passos em direção à minha casa, masassim que nos separamos viro na segundarua à direita e começo a correr. Em direção a

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uma tentação à qual, a essa altura, não seimais resistir.

Margeando o Grande Canal chego àpiazza San Polo. Somente poucos prédiosque dão para ela estão iluminados, a maioriajá está afundada na penumbra. A escuridãoficou ainda mais densa por causa da típicanevoazinha que antecipa o inverno, quesuaviza as arestas e desbota as cores. Estoucom frio, as mãos congeladas, mas dentro demim sinto uma onda de calor. Tirei o colar eo cachecol também, que não precisam maisficar no meu pescoço. Agora quero que cadacentímetro da minha pele pertença a ele.

O restaurante está fechado. Ligo para ocelular de Leonardo. Ele não atende, mas emum instante vejo sua sombra nas vidraças daentrada. Ele abre a porta e surge na soleiracom o jeito amarrotado de sempre, jeito dequem tem pouca confiança no mundo e

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muita em si mesmo. Puxa-me para dentro,pegando-me pela cintura, e me dá um beijoprofundo na boca.

— Bem-vinda.Agarro-me às suas costas como a uma

rocha segura. Ele me deixou atormentada,foi embora sem deixar rastros, mas agoraaqui está ele, nos meus braços, e eu já es-queci tudo.

Guiando-me através das mesas do salão,com andar seguro me leva ao seu reino. A co-zinha. É um lugar que dá um pouco de medo,tão limpo e arrumado, imerso nasemiescuridão: sabe-se lá o inferno que éaqui enquanto os clientes estão confortavel-mente sentados no salão esperando seus pe-didos. Quase pareceria um laboratório se nãofosse por um canto do balcão arrumado paraduas pessoas e iluminado por um feixe de luzlaranja. Mais para lá, sobre o mesmo balcão,algumas bandejas escondidas sobre tampas

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de prata. Talheres, pratos e copos são essen-ciais e brilhantes como instrumentos de pre-cisão. Definitivamente parece mais o cenáriode um experimento que de um jantar.

— Este é o seu lugar. — Leonardo tirameu sobretudo e me coloca sentada em umdos bancos altos, e então se senta também.

— Eu nunca tinha comido na cozinha deum restaurante. Aliás, acho até que nuncaentrei numa — digo, olhando ao redor,curiosa.

— Você deveria vê-la de dia, cheia degente, de barulhos, de movimento. Mas eu aprefiro à noite, quando está vazia e silen-ciosa. — Passa o olhar em meu vestido.

— Você está muito elegante — observa,contente. Então para no pescoço. — E essamarca?

— Foi você que fez... — e instintivamenteme cubro com a mão. Leonardo a tira e,

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inclinando-se na minha direção, pousa os lá-bios quentes e macios em cima dela.

— Também está com fome? — pergunta,então, estendendo-me um aperitivo à base demorangos e champanhe.

— Estou — respondo, enquanto nossoscopos se tocam num tintim. Na verdade, es-tou com o estômago apertado. Eu queria ele,não a comida. Molho suavemente os lábios eentão pouso a taça no balcão.

— Você tem que beber tudo — ele merepreende, astuto e ameaçador ao mesmotempo.

— Não posso. Fico tonta já no segundogole, eu sei.

— Bom. Vai sobrar para mim levá-la paracasa nas costas de novo.

Sorri, mas pelo seu olhar entendo quenão posso recusar. Deixo escorregar um goledo aperitivo debaixo da língua e, assim quedesce, meu estômago se retorce como uma

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folha seca. Queima, mas tenho que admitirque é bom.

— Não é propriamente um sacrifício, nãoé? — pergunta, bebendo também.

Concordo e continuo bebericando ochampanhe. Leonardo pega um cubo de gelodo recipiente e o esfrega no meu pescoço, de-pois traça um rastro até a curva do seio epassa a língua em cima. Um arrepio rapida-mente percorre o meu corpo, os mamilosficam arrepiados, exigem uma língua, dentesque os torturem. Mas ainda não é o mo-mento, meu desejo tem que esperar. Ele estáplanejando outra coisa.

— Esta noite, Elena, seu prazer seráguiado pelo paladar — ele sussurra. — Queroque você esqueça seus gostos e seus hábitos eque experimente tudo, até comidas de quenão gosta, ou que não gostava até agora. —Enquanto fala, levanta a tampa de um pratocheio de ostras marinadas. É esse seu plano:

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quer destruir meus tabus à mesa. Mas nãovai conseguir.

— Por favor, não — imploro com os olhosentrefechados. Não sei se aguento. A certoponto da minha vida, quando eu ainda eraadolescente, comecei a perceber tudo o queera vivo como algo não comestível. Resum-indo, desde aquela época, para mim, comer acarne de qualquer animal é como ter a morteno estômago. Devo ser um pouco melo-dramática, eu tenho noção disso, mas éassim.

— Já provei ostras. E tenha certeza: elasme fazem vomitar — digo, com esperança deque ele tenha pena de mim.

Balança a cabeça, impassível.— As experiências passadas não contam

nesse momento. Deixe que só seus sentidosjulguem. Aqui e agora. — Agarra uma ostracom decisão e a encosta em meus lábios.Hesitante, arranco o molusco com os dentes

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e sinto a carne mole se dissolver entre a lín-gua e o palato. Ainda parece viva. E não temgosto de morte, como eu temia, mas de mar,um sabor descaradamente feminino e intrig-ante. Engulo um pouco com medo e somenteagora descubro um gosto residual de laranjacristalizada.

— A mistura com frutas cristalizadas éum segredo meu. — Leonardo olha-me comose soubesse cada sensação minha enquantotambém come uma.

— Viu? Você sobreviveu... Vamos, pegueoutra.

Hesitante, escolho outra concha e dessavez tiro o molusco com a língua, como se est-ivesse dando um beijo lascivo. Sinto-me sug-ada por seu olhar magnético, mas aquilo nãome inibe, pelo contrário, me excita. Semparar de me olhar, agarra uma garrafa deValpolicella já aberta e serve um pouco dabebida em duas taças altas.

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— Agora prove isso.Bebo o vinho denso e escuro. É forte,

aromático, aquece o coração e depois sobepara embaralhar a cabeça. Leonardo levanta-se para pegar mais dois pratos, enquanto eudeslizo numa prazerosa embriaguez. Observoseu corpo imponente se movimentar comagilidade surpreendente e um sorriso semsentido surge em meus lábios. Quando ele sevira, procuro disfarçar, apoiando o queixonuma das mãos.

— Você já está altinha... Mas tambémgosto de você assim. E não tente esconder —ele me repreende, voltando na minha direçãocom o ar de quem pegou uma criançaroubando doce. Pousa os pratos no balcão eme estuda: — Você está linda com asbochechas vermelhas e os olhos brilhando.

Instintivamente me olho no reflexo datravessa que cobre o prato e percebo que eletem razão: minha pele adquiriu nuances de

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vermelho, sobretudo nas maçãs do rosto, emeu olhar está com uma luz estranha, umpouco líquida. Mas aquilo me diverte. Aindaestou analisando minha imagem, quandoLeonardo levanta a travessa e a destapa. Umtartar de carne vermelha mostra-se em todaa sua descarada monstruosidade: ficohorrorizada. Retraio-me num impulso, tent-ando reprimir uma careta de repugnância,enquanto o cheiro do sangue, misturado comas especiarias, invade minhas narinas. OlhoLeonardo, desorientada, e ele faz que sim,inflexível.

— Sim, Elena. Você tem que comê-lo.Cru.

Bebo outro gole de vinho para tomar cor-agem. Quem sabe sirva para me prepararpara os sabores fortes, penso. Mas não con-sigo, é demais para mim. Engulo saliva.

— Não tente imaginar que sabor tem —sugere Leonardo —, descubra-o e pronto. —

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Então, espeta o garfo no seu tartar e provaum pedaço, molha dois dedos no molho degengibre e o espalha em meus lábios. Ele melimpa passando a língua, que num instanteabre caminho na minha boca molhada dedesejo. Junto com seu gosto, eu sinto, sutilmas insistente, o da carne misturada comgengibre.

Pega uma garfada do meu prato e acoloca na minha boca. Oponho uma minús-cula resistência e lá está aquele sabor viol-ento e sanguíneo no palato. Quase que porreflexo condicionado, eu mastigo e engulo,mas o estômago se revolta, contorce-se emum espasmo. Rápida, relato tudo com umgole de vinho.

Leonardo estuda minha reação.— Vamos, Elena. Experimente de novo.

Se você não gosta de algo na primeira veznão significa que não vai gostar na segunda.Não existe nada de inato ou instintivo no

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prazer: precisamos chegar nele devagar,conquistá-lo.

Olho o prato, cerrando os punhos. Então,decidida, agarro o garfo e pego outro pedaço.Dessa vez saboreio a carne por mais tempo,respirando com calma. Não sei se é boa ounão, mas tem gosto de proibido, tem o saborambíguo das regras quebradas. Aos poucostomo coragem e pego mais. E mais. Não con-sigo acreditar: estou comendo carne, depoisde anos, depois de ter esquecido até o cheirodela, e é um gesto animal, feroz, primitivo.Faço isso porque Leonardo me pede eporque é assim que eu também me sinto, sobseu olhar faminto: carne, presa, instinto. E,devo admitir, eu gosto. Esse nosso ato decomer um diante do outro e nos olharmos ebebermos vinho já é fazer amor. É como senos alimentássemos um do outro.

Terminamos o tartar e Leonardo já estátemperando com azeite e pimenta-malagueta

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uma salada de erva-doce, laranjas e azeito-nas pretas. Depois a mistura com as mãos.Ele me persegue com os olhos e eu não fujo,espero que venha me pegar, sem pressa.Sinto-me provocante e indefesa ao mesmotempo, num estado de abandono e onipotên-cia. É ele ou o vinho? Não sei mais, e não meinteressa. Perdi o controle e não queroreencontrá-lo, qualquer coisa que ele estejaplanejando, quero que faça.

Coloca um pouco de salada no meu pratoe, enquanto eu a provo, ele chega mais perto.O fogo da pimenta-malagueta desce pelaminha garganta, misturando-se ao acre dalaranja, ao amargo da azeitona e ao frescorda erva-doce.

— Prepare-se, Elena, porque a próximacoisa que eu vou comer — Leonardo sopraem meu rosto — é você.

Sua mão escorrega debaixo da minhasaia, passa pela barra das meias com ligas,

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até chegar à calcinha. Insinua-se, lasciva, sobo elástico e me penetra sem delicadeza.

Meu garfo cai da mão e fico sem fôlego.No meio das minhas pernas, a pimenta-malagueta que sobrou em seus dedos arde,acende-se como um fogo. Tento me esquivar,completamente desnorteada, mas Leonardome detém.

— Não fuja, é inútil — ordena ele. Então,tira minha calcinha e a joga no chão, abreminhas pernas afastando os joelhos com asmãos e se agacha na minha frente. Sua bocaune-se ao meu sexo em um beijo faminto.Chupa, saboreia, lambe. Agora, a dor peloroçar da barba por fazer arruivada torna-seuma coisa só com o picante da pimenta-malagueta, e eu me agarro com as mãos nabeira do balcão, dominada por esse doce tor-mento. Leonardo levanta o olhar, como sequisesse admirar o efeito que tem sobremim.

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— Não pare, por favor... — suplico. Queroque continue a me devorar daquele jeitosublime.

Seus lábios úmidos e vermelhos dobram-se instantaneamente num sorriso perverso,depois voltam a pousar sobre meu clitóris,enquanto os olhos permanecem grudadosnos meus e a língua começa a abrir espaçocom carícias. Sua boca me lambendo, suasmãos nas minhas coxas, seu olhar no meu. Éum paraíso de luxúria que eu nunca teriaimaginado conhecer. Levo dois dedos à bocae começo a chupá-los, gemendo e me de-batendo sem qualquer inibição. O incêndiodeflagra-se, cada vez mais potente, chego aoápice do prazer, reclinando a cabeça paratrás e soltando um grito profundo, depois de-sabo no balcão, entre pratos e talheres.

Leonardo volta a ficar de pé, passando alíngua nos lábios. Vejo-o enquanto volto domeu orgasmo com os olhos ainda enevoados.

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Acho aquilo sensual e divertido ao mesmotempo. Então, nossos olhares se cruzam, sor-rimos um para o outro e começamos a rir. Sefoi o vinho que me deu essa sensação deplenitude e felicidade, eu me arrependo detodos esses anos de abstinência idiota... Masnão acho que seja apenas isso. Agora queLeonardo me abraça e me beija, eu tenhocerteza.

— Você é linda. E quando ri é mais ainda— sussurra-me.

No mesmo instante meu estômago con-trai e, antes que eu possa me controlar, estoudesejando que me segure assim para sempre.

Depois de um tempo, afasta-me dele epega meu rosto nas mãos.

— O jantar ainda não terminou. Falta asobremesa. Está disposta?

— Estou. — Eu teria respondido isso aqualquer coisa que ele tivesse perguntado.

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Tira da geladeira uma garrafa e, quando apousa no balcão, leio o nome no rótulo:Picolit.

— Este é um vinho que adoro — diz, en-quanto o abre. — Vem de uma casta rara. Porcausa de um defeito congênito, só poucos ba-gos chegam à maturação. Ao vê-los, oscachos estão magros, parecem doentes, nin-guém nunca diria que se possa tirar algo debom. E, pelo contrário, sinta isso — conclui,servindo-me um pouco. Tomo um gole e oque sinto é uma doçura lancinante.

— É delicioso — comento.— Este vinho é a prova de que mesmo no

erro e no defeito pode se esconder algo sub-lime. Basta ter a paciência para descobri-lo.

Pousa um beijo na minha boca com os lá-bios macios, depois do bolso da calça tira seulenço de seda. Por um momento acho quequer me vendar de novo, mas ele me tran-quiliza rapidamente.

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— Não se preocupe, não é para os olhosdesta vez. — Enquanto fala comigo com suavoz irresistível, vira-me para amarrar meuspulsos atrás das costas. Então, bebe um golede vinho e encosta o copo em meus lábios.Bebo como se fosse a coisa mais natural domundo àquela altura.

Pega uma travessa do freezer. Depois detê-la regado de Picolit, coloca-a na minhafrente. Um cilindro de sorbet de chocolateamargo em toda a sua pecaminosa beleza.

— Coragem. Prove. — Um sorriso irônicodesenha-se em seu rosto.

Inclino-me para a frente e começo alambê-lo, primeiro devagar, depois com vo-racidade crescente. Sinto o chocolatederreter sob o calor da língua. Leonardo meabraça por trás e me acompanha nessa dançalenta. Sinto sua ereção contra as nádegas, opeito musculoso pressiona minhas costas,

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enquanto a língua desliza leve sobre meupescoço.

Sinto o peso e a ausência repentina dequalquer pensamento. O Picolit reavivouminha embriaguez e Leonardo reacendeu odesejo.

De repente, solta-se de mim. Vejo com ocanto do olho que tira a camisa e a calça, de-pois levanta meu vestido com calma. De-baixo dele já estou nua e molhada, e quandoele penetra em mim eu me escancaro pararecebê-lo. É inebriante senti-lo dentro demim, é como acolher o universo inteiro. Seusexo, voraz, alimenta-se do meu. Parece quejá estou a ponto de explodir e não vejo ahora, mas ao mesmo tempo desejo que durepara sempre. Sai e entra em mim, seguindoas notas de uma música rápida, e meusquadris têm vontade de se mexer e acompan-har seu movimento. Logo me perco num

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novo orgasmo, num desfalecimento desaliva, suor e gemidos.

Leonardo quase não me dá tempo parame recuperar, solta minhas mãos e faz comque eu me vire.

— Agora está na sua vez, Elena — diz,colocando uma das minhas mãos em seu pauduro e apoiando-se ao balcão.

Um pouco hesitante começo a acariciá-lo,primeiro devagar, depois cada vez mais forte.Ajoelho-me diante dele e molho meus lábiose minha língua com um pouco mais desaliva. Sua ereção está me chamando para si.Agarro-o na base, esticando a pele com opolegar e o indicador, enquanto com a mãolivre acaricio o interior de suas coxas e ostestículos. Lambo-o duas vezes, deixandominha saliva descer ao longo da linha defogo, então começo a chupá-lo.

Leonardo segura minha cabeça do-cemente e começa a deslizar devagar, para a

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frente e para trás na minha boca, facilitandomeu balanço. Está crescendo em mim, pro-vocando meu prazer líquido. Enquanto vousubindo, faço alguns pequenos movimentoscom a cabeça, depois me concentro no topo,pousando a ponta da língua sob a borda in-ferior da glande e pressionando suavementeas dobras.

— Isso, Elena, assim — geme. — Gosto doque você está fazendo.

Eu o olho. Tem os olhos e a boca en-treabertos. Está gozando. Eu também gostode saber que posso transformar esse homemgrande e vigoroso e reduzi-lo a um grão deprazer. Isso faz com que eu me sintapoderosa.

Continuo assim até Leonardo soltar umgemido e eu sinto que está chegando ao or-gasmo. Deixo que o faça na minha boca e re-cebo seu jato quente, enquanto ainda pulsaem meus lábios. Quando acabou, me afasto

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docemente, ele me pega pelos ombros e mefaz levantar, aperta minha cintura e me olha.Ainda estou com seu esperma na boca.Nunca fiz isso, mas desta vez me perguntocomo seria engoli-lo. Por isso, paro de ima-ginar e simplesmente engulo. É adocicado epegajoso, mas também tem um sabor per-turbador, como cada parte de Leonardo.Agora eu sei.

Não sou eu. Ou talvez sim, esta sou eu, etenho que aprender a me descobrir, a prestarcontas com essa Elena que parece ter dor-mido por 29 anos dentro de mim. Ele sorripara mim, quase espantado, e então encostaa testa na minha.

— Agora você também conhece meugosto, Elena — e preenche minha boca comum beijo.

Apoio a cabeça em seu peito e ouço o cor-ação batendo. É um som calmo, regular, eupoderia ficar ali escutando por horas.

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Enquanto estamos nos vestindo, pensonovamente nos dias que passei semLeonardo, na frieza daquele distanciamento,e depois no entrosamento que existe agoraentre nós, na naturalidade com a qual nosreencontramos. Sempre vivo uma espécie dedesorientação com ele: entreguei-lhe a partede mim mais íntima e secreta, ainda assimcontinuo a não conhecê-lo.

É como se ele tivesse uma alma dupla,um lado solar e hedonista — que adoramostrar —, e um lado misterioso, uma som-bra negra, que mantém oculta com muitocuidado, mas que inevitavelmente per-manece grudada nele e que somente quemnão o conhece bem não vê.

Viro-me para observá-lo e meu olho recaisobre aquela estranha tatuagem que tementre as escápulas. Chego perto e a toco leve-mente com os dedos, sei que ali estáguardado seu segredo.

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— Quando a fez? — arrisco.Seu rosto fica triste no mesmo instante e

torna-se de pedra.— Não quero falar sobre isso — responde,

irritado e sombrio.— Mas assim você só aumenta minha

vontade de saber — explico a ele.— Eu sei. Mas infelizmente não poderei

satisfazer você — e coloca depressa a camisa.Então, me fita de repente, como se achasseque um esclarecimento fosse necessário. —Existem coisas que quero guardar para mim,Elena. Não precisamos saber tudo um dooutro.

Entre nós pode existir sexo, nada mais, éisso que está me dizendo. Fico de bocacalada, não quero lhe dar a entender quetenho dificuldade em aceitar essa condição.

A cozinha ficou gélida de repente.

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— Vamos, eu a levo para casa — ele mediz, voltando a ser gentil. Mas está claro quequer ir embora logo.

Sem perder tempo coloco o sobretudo eme dirijo à saída antes dele, com passosrápidos. Antes que possa abrir a porta,porém, ele me agarra pelo braço e me puxapara si.

— Escute, Elena... Desculpe-me se fuigrosso. — Ele me aperta tão forte que quaseme machuca. Perplexa, levanto o olhar paraseu rosto e lá encontro uma expressão so-frida que nunca havia visto antes nele. —Mas você tem que me fazer uma promessa.

— Qual?— Que nunca vai se apaixonar por mim.Por que você está me dizendo isso agora?

Faço a pergunta em silêncio, mais para mimmesma do que para ele, enquanto fico ali,encarando-o com os olhos arregalados.

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— Digo isso por você... — continuaLeonardo, afundando os dedos nos meusbraços. — Porque eu não vou me apaixonarpor você. E se um dia eu perceber que estáenvolvida demais, tudo termina. Juro quenão vou mudar de ideia.

Engulo para tentar desatar o nó na minhagarganta. Assumo o papel de mulher forte eemancipada. Eu também tenho o meuorgulho.

— Tudo bem, você tinha sido claro desdeo início — digo, esperando parecer tranquilae segura.

— Então prometa — ele me puxa com vi-olência, sem me soltar.

— Sim, eu prometo.Por fim ele me larga e saímos juntos para

o ar livre. Massageio meus braços e sigo-oem silêncio pela rua. Claro que não vou meapaixonar, digo a mim mesma, enquantouma raiva impotente me contorce por

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dentro. Não sei nada sobre ele, é evasivo,lunático, até mesmo bruto. E eu sou umamulher independente, perfeitamente capazde levar adiante um relacionamento sexualsem complicar tudo com os sentimentos.Continuará por mais um tempo e depoiscada um segue seu caminho, como noshavíamos dito desde o início.

Não vou me apaixonar por ele.Não vou me apaixonar por ele.Repito outra vez, e mais uma vez, até as

palavras perderem significado e restar apen-as uma prece vazia.** Embutido italiano feito com carne bovina magra.(N. da T.)

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Estou voltando do cinema para casa. No Gi-orgione estava passando o terceiro filme deuma mostra dedicada a Giuseppe Tornatoree eu fui, sozinha. Somente Filippo teria con-seguido aturar as duas horas e meia deBaaria — a porta do vento junto comigo,mas ele não está aqui e eu o sinto cada vezmais longe. Nossos encontros pelo Skypetornaram-se um pouco mais raros nos últi-mos tempos, principalmente por minhacausa. Sua distância física reflete-se nosmeus pensamentos também e às vezes acho

que comecei a esquecer seu rosto, a não melembrar mais nem da sua voz.

Na minha mente há um pensamentodominante, agora: Leonardo. Tudo me re-mete a ele, está comigo não importa o que eufaça. Não consigo me libertar dele. Enquantoeu estava na sala do cinema e era arrebatadapor aquelas paisagens queimadas pelo sol,por aqueles rostos encovados pelo vento, nãopude deixar de pensar na Sicília. Na terradele. Sabe-se lá como são os rostos de seuspais, de seus amigos, em qual cidade nasceue cresceu. Por que estou sonhando em ir atélá um dia? Quem sabe junto com ele?

Chega. Estou fantasiando demais e issonão é bom. Não posso me deixar seduzir pelaideia de me apaixonar. Tenho que manter ocontrole da situação, racionalizar, separarcoração, mente e corpo. Passou-se mais deum mês desde que transamos pela primeiravez e não sei como isso tudo vai acabar,

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talvez muito mal para mim. Mas não tenho aintenção de abrir mão dele, quero viver essaaventura até o fim.

São dez da noite, do lado de fora faz frio,as luzes natalinas iluminam os prédios e serefletem nos canais. Faltam 15 dias para oNatal e não consigo acreditar, o tempo liter-almente voou.

Ouço um assobio na rua, depois uma vozmasculina — A n’vedi!*** —, seguida deumas expressões maliciosas. Dois rapazescom um sotaque romano pesado passam aomeu lado e, depois de terem descaradamenteme despido com o olhar, sorriem satisfeitospara mim e começam a cochichar entre si,sumindo nas minhas costas. Aconteceucomigo outro dia também, quando umsujeito que passava pela rua se virou, cruz-ando o olhar com o meu. Aquilo me sur-preendeu, não estou acostumada. Antes deLeonardo não acontecia com tanta

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frequência, talvez porque eu evitasse isso in-conscientemente, mantendo as pessoas a dis-tância de alguma maneira. Não sou mais amesma, tenho uma energia nova, sensual. Eos outros também devem ter notado isso,porque parece que me olham de um jeitodiferente. Eu mesma me olho no espelhoquase me deliciando com a imagem que re-flete — não mais aquela de antes, mas gostode mim. Isso é certo. Meu corpo nu não émais uma visão a ser evitada, mas algo de ín-timo e familiar, uma paisagem que habitosem mais inibições. E não tenho mais medode colocá-lo à mostra ou de usá-lo para pro-vocar: lingerie de renda preta, sapatos desalto, uma maquiagem leve ou roupas deco-tadas não são mais um tabu para mim. FoiLeonardo quem me fez redescobrir uma fem-inilidade na qual eu não prestava atençãoantes. Ao querer ser mulher para ele a

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qualquer custo, acabei me tornando umapara mim mesma também e para os outros.

Antes de voltar para casa, faço umpequeno desvio, esticando o percurso por al-gumas centenas de metros. Com passos len-tos me aproximo dos fundos do palácio deBrandolini, só para ter a sensação de estarmais perto dele. Daqui consigo ver osaposentos de Leonardo no andar de cima. Aluz está acesa. Fico tentada a tocar o inter-fone, mas sei que assim eu descumpririanosso pacto. Sempre espero que ele me ligue,que ele faça a proposta indecente, e em al-guns momentos essas esperas pesam deses-peradamente em mim, porque eu desejariavê-lo sempre. Levanto o olhar em direção àsjanelas, contemplando.

Vamos, Leonardo, olhe para fora e mediga que me quer. Estou aqui para você.

De repente, vejo passar atrás dos vidrosuma sombra preta, mas não é a dele. É a

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silhueta de uma mulher, percebo isso pelacurva do seio e pela cabeleira longa e solta.Uma mulher nua... a violinista! Tenho cer-teza de que é ela. Meu coração para de baterpor um segundo e meu sangue para de circu-lar nas veias. Não estou sonhando, tudo estáacontecendo diante dos meus olhos.

Com um nó na garganta e as pernas tre-mendo, percorro a rua que desemboca noGrande Canal, quase preanunciando a mimmesma a surpresa que terei que enfrentar. Ede fato é exatamente como eu imaginava: nopíer em frente ao palácio está atracada a lan-cha branca. Aquela lancha.

Sinto-me como se tivesse levado um tapana cara. Cerro os punhos com toda a forçaque tenho, afundando as unhas nas palmasdas mãos. Queria chorar, mas as lágrimasnão caem, engasgadas no coágulo de raivaque guardo dentro de mim. Você não é a ún-ica, Elena. Não espere que eu lhe seja fiel. As

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palavras de Leonardo ressoam na minhacabeça como um mantra. Insuportáveis. Elehavia me avisado, foi claro desde o início.Mas, ainda assim, estou fora de mim, e o fatode ter sido avisada não ameniza o golpe. Umsoco é um soco e machuca mesmo se você opreviu.

Tenho vontade de cobrir a lancha daquelababaca de gasolina e depois atirar um fósforoaceso, como nos filmes. Ou grudar na cam-painha para interromper o romance deles eencher os dois de palavrões. Em vez disso,vou embora, junto os cacos que sobraram demim e bato em retirada, ferida e impotente.

Passaram-se longos dias e noites aindamais longas desde aquela noite. Leonardosumiu de novo e evito ir para o trabalho noshorários em que ele está no palácio. Não seimais em que pensar. Talvez eu não devessepensar mesmo. Os desejos incontrolados de

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vingança, ou, pior, de reivindicação, com otempo, deixaram espaço a uma tristeza pro-funda. Apesar de tudo, sinto a falta deLeonardo e sua ausência me machuca maisque qualquer outra coisa. Não quero acredit-ar que o perdi para sempre, não posso aceit-ar que aquela mulher o tenha levado embora.Todas as noites eu durmo pensando nele, jásabendo que seus olhos pretos devastarãomeus sonhos. Eu o odeio, mas esquecê-lo éimpossível.

Então, numa manhã, já perdidas as es-peranças, ele reaparece de repente. É quasemeio-dia e estou fazendo um acabamento noafresco. O iPhone no bolso do meu macacãotoca uma vez. Uma nova mensagem.

Às 17h em Mendicoli

Quero você de saia e meias com cinta-liga

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É Leonardo, safado e seguro de si, comosempre. Minhas mãos tremem um pouco en-quanto digito a resposta.

Espere por mim. Estarei lá.

O que mais eu poderia ter respondido?Que estou cheia dele e não quero mais vê-lo?Não é verdade, então mentir a mim mesmanão vai adiantar nada.

Assim, imediatamente, resolvi que o deix-arei conduzir a brincadeira, até porque nãotenho muita escolha. Não vou dar um escân-dalo, não insistirei em exigências inúteis,mas preciso olhá-lo nos olhos para entenderse algo mudou no pacto que havia entre nós.E, principalmente, se sou realmente capaz deaceitar as condições.

Falta pouco para as cinco e a escuridãocaiu quase completamente. Não sei por queLeonardo quis marcar o encontro comigo

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justamente em San Nicolò dei Mendicoli, umdos cantos mais esquecidos da cidade. Pou-cas pessoas conhecem, mas eu sempre oachei muito pitoresco, um daqueles lugaresque você grava por causa de sua singularid-ade em relação ao resto do mundo. Quandoeu estudava no Instituto de Arquitetura, eraobrigada a passar por lá para chegar ao pré-dio das salas de aula. Às vezes, no início doverão, para me proteger do calorão in-suportável eu me refugiava na igreja e ficavasentada no fresco lendo um livro, deixando-me ninar pela música sacra que chegava, semparar, do púlpito atrás do altar. Até onde eusei, esta é a única igreja de Veneza onde umdisco gravado roda 24 horas por dia, en-chendo o ar de notas celestiais. Mas aindanão entendo o motivo pelo qual Leonardoescolheu a piazza dei Mendicoli, emboratalvez não haja um motivo preciso. Só esperoque seja pontual, porque vestida desse jeito

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não vou aguentar por muito tempo: as meiascom cinta-liga certamente não são as ideaispara esse clima, já de inverno. Apesar de tercaprichado no visual com um sobretudocomprido até os pés, sinto-me nua e o frioúmido sobe pelas minhas pernas, inundandominhas costas de arrepios.

Leonardo chega na hora. Não são nemcinco horas e ele já está lá. Tem o olhar per-dido no horizonte, o corpo coberto por umlongo capote, estilo Keanu Reeves em Mat-rix. Assim que me vê, vem em minha direçãoe me cumprimenta com um abraço e umbeijo impetuoso.

— Você está cada vez mais bonita...Parece que sempre encontro uma mulherdiferente — diz, examinando-me da cabeçaaos pés.

Eu o observo. Seus olhos escuros aindasão os mesmos, transmitem aquela luzquente que derrete o gelo em volta do

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coração. Estar de novo em seus braços écomo voltar para casa.

— Por que nos encontramos aqui? — per-gunto, desviando o olhar para o campanárioda igreja, que agora bate as cinco horas.

— Porque eu gosto. Descobri este lugarpor acaso há alguns dias, indo ao píer deSanta Marta para receber um carregamentode mercadorias. — Olha em volta, aquecendomeu rosto com as duas mãos. — É bonito,parece um pouco fora da realidade.

— É verdade. — Pensamos do mesmojeito. Devo começar a me preocupar? Pousominhas mãos sobre as suas e por um instanteesqueço aquela mulher nua na janela de seuquarto, os pensamentos tristes dos últimosdias e os pesadelos que povoaram as últimasnoites. Quando ele me beija sei apenas umacoisa: que ainda me quer. E eu também oquero.

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Ficamos parados na esquina nos beijandoum pouco, antes de entrar na enoteca algunsmetros mais à frente. Não estou com vontadede beber vinho, mas Leonardo insistiu queentrássemos. Sua mão pousa nas minhascostas e desce rápida para o traseiro, en-quanto me empurra em direção ao balcão. Olocal está quase deserto, então os olhoscuriosos do gerente são exclusivamente paranós enquanto nos sentamos nos bancos al-tos. Embora por dentro eu ainda esteja mor-rendo de ciúmes, curto as demonstrações deafeto de Leonardo, seus dedos entre os meuscabelos, suas pernas entrelaçadas nas min-has. Olhamos a carta de vinhos e então escol-hemos um Pinot Grigio. Leonardo paga, comas taças nas mãos escapulimos e lá forausamos a mureta que costeia o canal comomesa de apoio, como fazem os venezianos.

Estou bem relaxada, agora, mas basta umolhar insistente demais de Leonardo para

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uma garota que passa na nossa frente paraque um impulso de ciúme volte a envenenarmeu sangue. Eu tinha começado com a ideiade não dar escândalos e estava convencida deque conseguiria, mas é mesmo difícil. Beboum gole de vinho e coloco a taça de volta namureta, olhando em direção à outramargem. Meu rosto está seriíssimo, elepercebeu.

— O que foi? — pergunta, balançando acabeça.

— Eu a vi, sabe... — E o nó de raiva que eutinha dentro de mim se desata no mesmo in-stante, espalhando fel no estômago.

Leonardo cai das nuvens.— Você viu quem?— Pare com isso, vamos. Não precisamos

de mentiras inúteis entre nós, não é? — Viro-me para ele com olhos flamejantes. — Suaamante, eu vi. No seu quarto, há algumasnoites.

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Dou um suspiro e recuo alguns passos.Leonardo arregala os olhos, depois em

seu rosto logo reaparece uma expressãocalma e relaxada.

— Então você começou a me espionar —dá uma risadinha. — Cuidado com o quepode descobrir, Elena — e acaricia meu narizcom o dedo indicador.

Agarro sua mão e o afasto de mimbruscamente.

— Pelo menos me diga quem é, o que elasignifica para você...

— O nome dela é Arina — precisa.— ... Arina ou qualquer que seja a droga

do nome! — A imagem daquela mulheraparece na minha frente e sinto-me irre-mediavelmente pequena e fracassada. A se-gurança que eu achava que tinha con-quistado nas últimas semanas se esvai numsegundo. — Você continuou a vê-la durantetodo esse tempo? — pergunto-lhe.

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— Claro que continuei a vê-la, é umaamiga minha. Mas só fomos para a camaduas vezes — diz, provocador, com uma tran-quilidade que me dá nos nervos.

A facilidade com a qual consigo a res-posta me desnorteia. Leonardo não tem nadaa esconder porque não me deve nada, é esseo ponto.

Meus olhos ficam brilhantes e queimampor causa das lágrimas de raiva que segurocom uma determinação de aço. Ele me puxapara si, agarrando-me pelo quadril, e pegameu rosto com uma mão.

— Elena, não faça assim. Você quer sabero que aquela mulher significa para mim? Éuma aventura, uma viagem, como qualqueroutra...

— E eu? Eu também sou igual às outras?— Não, não é. — Olha-me diretamente

nos olhos. — Porque cada viagem é diferente,cada uma é bonita do seu jeito.

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— Mas eu não sou suficiente para você. —Vou direto ao ponto.

— Por que está raciocinando assim? Nãoentendo por que você acaba tirando essasconclusões... Se você tivesse outros amantes,eu ficaria feliz por você, não teria nada paracriticar. — Parece quase alterado pela minharigidez. — O ciúme é uma prisão que só nosdá a ilusão de possuir o outro. Mas não po-demos aprisionar os desejos — sentencia, en-quanto me mantém prisioneira de seuabraço.

Eu queria me soltar e enchê-lo de socos.Odeio ele e sua liberdade, e ao mesmo tempoo invejo. Também gostaria de ser capaz deter sua mente aberta, mas é difícil nos liber-tarmos dos esquemas que, a essa altura, seapropriaram da nossa maneira de pensar,dos modelos que interiorizamos. Por outrolado, se ele começasse a me fazer grandiosaspromessas de fidelidade agora eu nunca

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acreditaria nele completamente. Tenho queencarar a realidade: Leonardo nunca será sómeu, nunca poderei prendê-lo em uma cerca.Só posso torcer para que, em suas aventuras,ele continue a voltar para mim.

Andamos em direção à piazza Sant’An-gelo. Permaneço em silêncio e um pouco dis-tante, Leonardo envolve meu quadril e es-pera que minha cara feia desapareça. De re-pente ergo o olhar e avisto uma figura famili-ar a alguns metros de distância. É JacopoBrandolini e está vindo em nossa direção.Solto-me rapidamente de Leonardo, bemquando o conde nota nossa presença. Ai meuDeus, ele vai nos perguntar o que estamosfazendo aqui e nem temos tempo de inventaruma história!

— Oi, Jacopo! — cumprimenta-oLeonardo, tranquilo como sempre.

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— Oh, boa noite. — Ele diz dirigindo-se anós dois. Vejo os olhos de Brandolinitraçando uma curva até o meu rosto. — Oque vocês fazem por essas bandas? — Mudaa bolsa de couro de um ombro para o outro enos dá um sorriso surpreso.

Eu rio nervosamente.— E o senhor? — pergunto. É uma tent-

ativa desesperada para conseguir dois segun-dos. Estou terrivelmente tensa, um desastreabsoluto.

— Vou até o único alfaiate decente quesobrou na cidade. Ele me faz camisas sobmedida. — É verdade, agora que penso nisso,todas as suas camisas têm as iniciais JB bor-dadas no punho.

Droga, não consigo parar de mexer a per-na direita. Estou nervosa demais. Acalme-se,Elena. Ele não viu vocês enquanto estavamabraçados. Respire.

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— Eu estava voltando de Santa Marta,tinha ido conferir a chegada de um carrega-mento — diz Leonardo. Domina a situaçãocom perfeição. — E encontrei Elena emfrente à igreja...

— A igreja de San Nicolò dei Mendicoli...— eu me intrometo, num impulso. — O padreestá procurando um restaurador para umtrabalho. — E você se apresenta de minis-saia, meias e botas de salto? Raciocine,Elena. Fecho bem o sobretudo. — Sabe, achoque até o Natal terei terminado no palácio...

— É verdade, o afresco ficou muito bom,a senhora fez um ótimo trabalho, Elena — re-bate Brandolini, aparentemente satisfeito.

— Obrigada. — Estou quase dizendo algopara me despedir, mas ele é mais rápido.

— Vocês bebem algo comigo? — per-gunta, indicando um bar atrás de nós.

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Eu gaguejo e resmungo algo incom-preensível. Depois olho para Leonardo, im-plorando ajuda.

— Obrigado, mas realmente tenho que irpara o restaurante — ele se livra comdestreza infalível. — Quem sabe uma próx-ima vez.

Tomo coragem e também escapo doembaraço.

— Eu aceitaria com prazer, mas aindatenho que acabar de fazer as compras deNatal, infelizmente. — É a primeira desculpaque me vem à cabeça. Leonardo está fazendoeu me tornar uma mentirosa horrível.

— Está bem, então nos vemos no palácio— e despede-se de nós, apertando nossasmãos. Ainda não entendo como ele conseguelevar Gaia para a cama e manter essa formal-idade comigo que, como imagino que ele pre-suma muito bem, sei tudo sobre eles.

— Até logo — despedimo-nos.

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Ficamos olhando para ele até o vermosentrar na alfaiataria do outro lado da rua quemargeia o canal. Dou um suspiro de alívio.

— Que coincidência... — comentaLeonardo.

— Veneza é pequena — acrescento, per-manecendo distante. — Você já deve ter per-cebido isso.

Ele me puxa de novo para si e estala umbeijo na minha bochecha. Ter compartilhadoaquele teatrinho inevitavelmente nos tornoucúmplices e agora ele se sente autorizado aacabar com a distância entre nós. Viro-meimediatamente para trás para verificar seBrandolini ainda está nos arredores e ele rida minha prudência.

— Ele foi embora, fique tranquila... E, detodo modo, não haveria nada de mal se elenos visse.

— Não, é verdade. Mas eu não faço nen-huma questão de me passar por uma de suas

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amantes — digo, agarrando-me ao meu mauhumor e voltando a andar. Com o canto doolho vejo-o balançar a cabeça e vir atrás demim com uma expressão entre o resignado eo divertido. Eu esperava um pouco por isso.

Caminhamos lado a lado por mais umtempo e vamos parar na rua dell’Avogaria.Há uma placa em um muro: ESCOLA DETANGO.

Uma vez estive lá com Filippo, quandoestávamos na fase musical Carlos Gardel. Anoite foi um desastre. Depois de termos mas-sacrado nossos pés de pisões, nós dois enten-demos que não levávamos o menor jeito parao tango.

Leonardo passa à minha frente e começaa andar de costas de um jeito engraçado, naminha frente. Que estranho, de algumamaneira isso também é um tango.

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— Você ainda vai ficar com essa cara em-burrada por quanto tempo? — pergunta-me,procurando meu olhar.

— Não sei — respondo, de cara feia.— Você é uma criança, sabia? — para de

repente e eu acabo batendo em seu peito. Eleme prende em seus braços fortes. Estounuma armadilha.

— Dá um beijo e fazemos as pazes — or-dena, rindo.

Também sinto um pouco de vontade derir, mas me seguro.

— Não. — Na verdade, estou morrendo devontade de beijá-lo.

— Então eu vou roubá-lo de você.Ele me beija, pressionado a língua contra

meus dentes, que permanecem fechadoscomo protesto. Sem desanimar, empurra-mecontra o muro, insinua-se debaixo do casacoe acaricia meu seio.

— Solte-me — digo, sem muita convicção.

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— Não.Seus dedos deslizam pela minha pele nua

e eu vibro como um instrumento sensível aoseu toque. Com a língua lambe meu pescoçoe sobe, desenhando espirais concêntricas nasminhas orelhas. Estou me derretendo numlento, prazeroso tormento e esqueço todo oresto. Por fim me rendo, abro a boca paradeixar que sua língua entre e com uma dasmãos acaricio sua nuca, enquanto a outraescorrega sobre seu sexo. Ele me deseja,sinto isso dentro do tecido da calça.

— Vamos para casa — sussurro-lhe noouvido.

Mas ele me pega pela mão e me arrastaaté uma galeria que se abre sobre um lado darua, quase um pequeno túnel que dá para umpátio fechado afundado no silêncio. Move-secom segurança, como se conhecesse esseslugares. No pórtico há um velho portão em-butido no muro. Leonardo empurra-me

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contra a madeira e, agarrando-me pelabunda, pressiona minha pelve na sua,fazendo com que eu sinta sua ereção.

— O que você quer fazer? — pergunto,temendo a resposta.

— O que você também quer fazer — re-sponde, mordendo meu pescoço.

— Aqui?— Por que não?De repente meu celular toca. Consigo me

mexer o suficiente para puxá-lo do bolso dosobretudo e ver quem é, prometendo a mimmesma não atender, quem quer que seja. Aimeu Deus, é Brandolini. Olho para Leonardosem saber o que fazer.

— Atenda — sugere ele, indiferente.Atendo, um pouco preocupada.— Alô? — digo, tentando parecer natural.— Elena, olá. — O conde está com a voz

serena de sempre. Enquanto isso, Leonardoenfia a mão debaixo da minha saia. — Eu me

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esqueci de lhe dizer que, se precisar de umareferência com dom Marco para o trabalhoem Mendicoli, eu posso interceder. Eu o con-heço bem.

Não estou certa de ter entendido a fraseinteira. Ele quer me indicar ao padre? A mãode Leonardo acaricia, leve, minha calcinha,enquanto a outra aperta forte meu seio es-querdo. Seguro um gemido.

— Ah, obrigada. — Minha voz está entre-cortada de desejo.

— Eu faço isso com prazer. A essa alturaconfio na senhora.

— O senhor é muito gentil, mas eupreferiria esperar. Ainda não tenho certezasobre o trabalho... Desculpe, mas não o es-cuto direito... — Finjo que o celular não estápegando. Na verdade eu o ouço muito bem,mas nesse momento a mão de Leonardo ul-trapassou a renda da calcinha e está abrindo

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caminho entre as minhas pernas. — Agora eurealmente preciso desligar.

— Está bem, Elena — conclui Brandolini.— Nós nos vemos nos próximos dias.

— Certo. Até logo.— Você se saiu muito bem — sussurra

Leonardo, procurando meus lábios e con-tinuando a empurrar os dedos dentro demim.

Desligo o celular e deixo-o escorregar nobolso do sobretudo, enquanto ele passa a lín-gua entre meus seios, no meio do decote dablusa, depois tira uma taça do corpete pretoe chupa um mamilo.

— Vamos, por favor. Qualquer um podenos ver... — tento me opor.

— Eu sei — ele me cala. — É justamentepor isso que estamos aqui.

E assim entendo que era tudo premedit-ado, um de seus experimentos: trouxe-me

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neste lugar para me submeter à outra de suasprovas, para desafiar meu senso de pudor.

A essa altura, a situação já está completa-mente fora do meu controle. Leonardo le-vanta um pouco minha saia, que já é curta, earranca minha calcinha, rasgando a barradela com as mãos. Agora estou nua da cin-tura para baixo. Tenho um medo louco quealguém possa nos descobrir, mas a ideia, aomesmo tempo, me excita. Leonardo des-abotoa a calça e deixa sair seu pau duro.Empurra-me no canto entre o portão e oumbral de mármore e levanta minha perna.Com as mãos, agarra minha bunda e num se-gundo está dentro de mim. Nós dois estamoscobertos por seu casacão largo, Leonardopermanece imóvel alguns instantes, como sequisesse me fazer saborear seu desejo, de-pois começa a se mexer para a frente e paratrás, lentamente.

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Estou morrendo de prazer. É uma agoniaque eu não queria que acabasse nunca, algoque se abre devagar dentro de mim e sobepela espinha até a cabeça. Gemo, incapaz dedeter a explosão do meu gozo.

Leonardo continua a beijar minha boca emeu pescoço, e ainda que eu esteja metadenua no ar gelado, seu corpo contra o meu lib-era um calor imenso.

De repente, escutamos algumas vozes seaproximarem, paramos subitamente,Leonardo me aperta mais ainda contra omuro, permanecendo dentro de mim. Res-piramos devagar, nossos rostos estão muitopróximos e meu coração bate descontroladosobre seu peito. Dois homens passam na ruae atravessam a galeria sem reparar em nós.Olho Leonardo, aterrorizada, enquanto elesorri, insolente. Assim que percebemos ospassos se afastarem, ele levanta minha outraperna, segurando-me praticamente nos

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braços, e volta a se mexer com ainda maisvigor.

— O que estamos fazendo, Elena? — Eleme provoca. — Se alguém nos visse, umamenina comportada como você... —sussurra-me, diabólico.

É tudo tão louco, perverso, excitante. Nãoentendo mais nada, só sei que estou goz-ando. E, além do mais, agora, nada mais meinteressa. Aperto suas pernas em volta dacintura e seguro um cacho de cabelo rebeldedele, gemendo em seu ouvido.

— Desgraçado.Ele me penetra com um impulso mais vi-

olento. Gemo, mais forte que antes.Um novo, doce tormento cresce dentro de

mim, com solavancos profundos que mefazem estremecer. Sinto o orgasmo se aprox-imar, descontrolado e violento. Sem con-seguir me controlar, emito um berro rouco epotente que Leonardo imediatamente detém

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com sua mão forte. Continuo gritando emsua palma, despreocupada com tudo, en-quanto a vista se ofusca e uma lágrimaquente escorre do canto de um olho.Leonardo goza logo depois, exala um gemidoprimitivo, desabando dentro de mim eafundando a cabeça em meu peito.

Segura-me mais um pouco assim,montada sobre ele, beija docemente meus ol-hos fechados, sem se mexer, demorando-sealguns instantes. Nossas respiraçõesofegantes agora se misturam com os sons dacidade, que aos poucos reemerge: o motor deum vaporetto a distância, uma janelabatendo em algum lugar, as vozes das pess-oas na praça ao lado. Quando desperto destesono estático, Leonardo desliza devagar parafora de mim, segurando-me enquanto colocoum pé depois do outro no chão. Uma redomade calor espalhou-se à nossa volta e sobe

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para o alto, esvaindo-se no ar úmido doinverno.

— Agora, sim, podemos ir para casa —comenta, sorrindo.

Eu também sorrio e balanço a cabeça,conformada, divertida, espantada.

Nós nos vestimos rapidamente. Ele temque ir para o restaurante, e eu vou voltarpara casa. Abaixo a saia e noto minha cal-cinha no chão, rasgada. Olho-a, incerta, enão arrisco pegá-la.

Leonardo faz isso por mim e a coloca nobolso, e pegando-me pela mão me leva parafora do pátio.

— Você fica melhor sem ela — diz, pis-cando para mim. Então me dá um beijo cine-matográfico que termina com uma mordida.

Não tenho forças para lhe responder.Esse homem me desarma todas as vezes.Tenho que me resignar em percorrer a rua

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assim, sem nada por baixo, exceto o cheirodo sexo.

Tudo bem, Leonardo. Você venceu, denovo.*** Dialeto romano, que significa “Olha só!”. (N. daT.)

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Estou acordada há duas horas. Tomei café damanhã com calma, coisa que quase nuncafaço: preparei um bom café, cortei algumasfrutas da estação e passei Nutella em duastorradas. Posso me considerar satisfeita.

Agora estou sentada diante do meuMacBook e sinto uma necessidade desesper-ada de que alguém me diga o que fazer. Olhopela janela. As árvores da piazza San Vio es-tão decoradas com laços vermelhos e à noitebrilham luzinhas amarelas, enquanto na en-trada da pizzaria destaca-se uma estrela ca-dente luminosa e um pouco kitsch, com o

escrito FELICIDADES. O tempo voou efaltam somente cinco dias para o Natal. Eutambém peguei os enfeites habituais e mon-tei minha árvore ecológica, mas este ano háuma novidade: pintei as bolinhas de vidro daIkea com os versos de amor de alguns poetasfamosos. É uma árvore de Natal romântica,uma pequena concessão ao meu coraçãoamordaçado.

Volto a olhar o computador. Uma únicaimensa razão me leva a ligá-lo, agora: Fil-ippo. Não respondi seu último e-mail. Nãoconsegui. Pena que, depois, ele tenha escritode novo várias vezes, perguntando-me comcada vez mais insistência por onde euandava, convidando-me novamente para ir aRoma. Sinto tê-lo traído. Embora ele nãoseja meu namorado e tenhamos decidido decomum acordo não estarmos juntos, os sen-timentos de culpa sufocam minha gargantamesmo assim quando penso nele.

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Decidi. Vou escrever para ele agora. A pá-gina em branco escancara-se na minhafrente e deixo os pensamentos livres para iraonde quiserem, enquanto os dedos osseguem, obedientes.

De: Elena Volpe

Para: Filippo De Nardi

Assunto: De coração

Meu querido Fil,

aqui estou eu, escrevendo para você depois

de um longo silêncio.

Não foi um período fácil para mim. Eu po-

deria inventar desculpas, mas seria inútil

mentir: a verdade é que eu devia encontrar a

coragem de lhe falar com toda a sinceridade

que você merece. Fil, eu conheci um homem

do qual não posso mais abrir mão. Não sei ex-

plicar a mim mesma, nem muito menos aos

outros, mas quero tentar. Não estamos juntos,

entre nós existe uma relação brutalmente

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carnal. Ele me pegou e virou minha vida de

cabeça para baixo, cismou que me faria vencer

meus bloqueios e meus limites, como se fosse

um desafio ou uma brincadeira, e eu permiti

que ele fizesse isso. Aconteceu que eu aprendi

a gozar como nunca, que meus sentidos

acordaram e agora o exigem desesperada-

mente. Ele me libertou, de algum modo, mas

agora não consigo mais voltar a ser aquela de

antes. É uma espécie de obsessão, penso nele

em todos os momentos do dia e a cada encon-

tro meu desejo de revê-lo torna-se mais

intenso.

Não espero que você me entenda, tenho

noção de que tudo isso pode lhe parecer

absurdo.

Sinto muitíssimo, mas acho que, pelo que

somos, ou pelo que tínhamos imaginado ser,

nosso encontro em Roma seria algo mais que

umas férias, seria o início de um relaciona-

mento que eu queria, mas agora não consigo

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mais imaginar. Não posso, Fil. Não posso

mesmo.

Você vai me odiar, eu sei, e não vai mais

querer me ver. Tudo bem por mim, eu mereço,

e não vou fazer nada para me opor a isso.

Agora eu só preciso viver essa história até o

fim, aonde quer que ela me leve.

Perdoe-me se depois desta mensagem eu

sumir de novo no silêncio.

Bibi

Escrevi de uma vez só, quase em um es-tado de transe, e lá estão meus pensamentosnus, expostos quase contra a minha vontade,preto no branco. Escrevi mais para mim doque para ele, agora está claro.

Releio o e-mail mais duas vezes e douuma volta na sala, como se quisesse me dis-tanciar daquilo. Volto a me sentar e meudedo demora-se sobre o teclado. A teclaENVIAR nunca me deu tanto medo. Se

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realmente lesse essa mensagem, Filippoficaria magoado, mas pelo menos saberia averdade. De repente um aviso do Skype meindica que ele está on-line. Após alguns se-gundos, me escreve uma mensagem:

Bibi, você está aí? Podemos nos falar?

Sinto-me suja, como se tivesse sido sur-preendida roubando. Respondo que sim eaceito sua chamada de vídeo.

Ele não está em casa, pelo que vejo. Estáme ligando de um lugar de Roma que logoreconheço.

— Bom dia, Bibi! Quer vir tomar um cháem Babington’s? — é a primeira coisa que mediz, com aquele sorriso que fala direto aocoração. Seus olhos verdes brilham no sol.Cadê a coragem para machucar esse príncipeencantado?

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— Quem dera, Fil! — Ajeito-me nacadeira, sentindo-me um pouco descon-fortável. — Você está na piazza di Spagna?

— Estou, sentado na escadaria. — Gira omonitor e a vista panorâmica sobre Trinitàdei Monti destaca-se diante dos meus olhosem todo o seu esplendor. Parece que estounum filme do qual ele é o diretor. — Estávendo?

— Que espetáculo! Continua maravil-hosa... — A última vez que estive lá foi justa-mente com ele, em uma excursão de estudono terceiro ano da faculdade.

— Então, quando você vai resolver vir?Pronto. Sabia que me perguntaria isso,

mas não sei o que lhe responder.— Mais cedo ou mais tarde... — digo,

escondendo a aflição atrás de um sorriso.— Terminou o afresco?— Sim, hoje é o último dia — suspiro.— Então você vem para o Natal, não é?

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— Mas você não volta? — rebato, e é ummodo miserável de evitar mais ainda a per-gunta e ganhar tempo.

— Trabalho no dia 27, infelizmente —bufa, levantando os ombros. — Poxa, Bibi,venha. Estou com saudade de você, não medespreze...

Meu Deus, não consigo manter seu olhar.Também estou com saudade de você, Fil,mas não do mesmo jeito. Coisas demaismudaram desde que você foi embora.

— Fil, no Natal eu não posso. — Estoucom um nó na garganta agora, mas aindaconsigo controlá-lo. — É que na vésperatenho o jantar de família... — tentoconvencê-lo, com uma expressão sofrida. —Meus pais fazem questão, você sabe comoeles são. Já os vejo pouco...

— Entendi... Natale con i tuoi****... —diz, com um sorriso resignado. — Eu sou o

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único filho babaca que boicota as reuniões defamília.

— Você não é babaca.— Você acha?— Acho. — A única babaca aqui sou eu.Sorri, sonso, depois se vira de repente,

como se tivesse visto alguma coisa oualguém.

— Tenho que desligar agora. O assistentede Renzo Piano está chegando para discutir oprojeto — e sopra-me um beijo com a mão.

— Tudo bem, bom trabalho, então.— Obrigado, para você também. — Olha-

me diretamente nos olhos, como se quisesseler algo neles. Ou talvez seja apenas minhaconsciência culpada que me deixa paranoica.— Nós nos falamos de novo para nos desejar-mos feliz Natal... E, de todo modo, eu nãodesisto: espero ver você logo — conclui.

— Eu também. — Retribuo o beijo, en-quanto vejo seu rosto desaparecer.

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Fecho o Skype e na tela do MacBookmaterializa-se outra vez a mensagem, comouma nuvem ameaçadora em um céu límpido.Agora me parece uma loucura total tê-la es-crito. O que foi que me deu? Não posso ex-cluir Filippo da minha vida. Pelo menos nãoassim, com um e-mail frio. Ele não merece.

O cursor move-se para a tecla APAGAR.Clico sem piedade e sem dúvidas. Sim, queroapagar esse e-mail. E quero apagar os senti-mentos de culpa, as inseguranças e asobrigações morais pesadas demais, queacabam me esmagando. Vai ver sou hipócritae egoísta, mas preciso saber que Filippo estálá, preciso acreditar, num cantinho damente, que nós dois ainda temos algo paradar um ao outro. Se uma despedida tiver queacontecer, acontecerá, mas não agora. Nãodesse jeito.

Voltam à minha cabeça as palavras deLeonardo, quando me disse que não

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podemos prender os desejos. Fora da prisão,agora eu percebo, há o caos emocional, mas aessa altura eu estou no jogo e voltar atrás éimpossível.

No início da tarde preparo-me para sair;lavo os cabelos e me visto com capricho,como se fosse uma ocasião importante — e,de fato, é. Terminei o restauro do afresco eagora estou indo devolver as chaves do palá-cio. A julgar pela suntuosa retribuição depos-itada na minha conta bancária — maior doque havíamos combinado —, Brandolini deveter ficado mais que contente com meu tra-balho. Isso quer dizer que, pelo primeiro anodesde que me formei, poderei finalmentecomprar os presentes de Natal sem ficar afl-ita com os gastos... É uma bela satisfação.

Atravesso o portão de entrada e subo rap-idamente as escadas para chegar ao saguão.Lá está, o afresco me recebe com seu jogo de

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cores por fim vivas e brilhantes. Exibo umsorriso silencioso e dou alguns passos emdireção a ele para observá-lo melhor.Abandono-me à fantasia de que o pintor an-ônimo aparece na minha frente e me oferecealgumas sementes de romã como agradeci-mento. Quantos dias de testes e frustraçõesaquele detalhe me custou! Provavelmente,sem a ajuda de Leonardo, eu nunca teriaconseguido encontrar a tonalidade certa. Égraças a ele que meus olhos viveram umamudança e aprenderam a olhar não apenasaquela romã, mas o mundo todo, de um jeitodiferente. Este afresco acompanhou os últi-mos meses da minha vida, a minha trans-formação, e me causa certa pena, agora,separar-me dele. Da próxima vez que eu vol-tar a este palácio — se eu voltar — não serámais por causa dele, mas por causa deLeonardo.

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Basta evocá-lo por um instante na mentee eis que, como num passe de mágica, ele sematerializa no saguão, fazendo meu coraçãosaltar no peito. É sempre assim quando nosencontramos.

— Oi — digo —, eu estava justamentepensando em você.

— Ah, é? E no que pensava? — aproxima-se, com o olhar no afresco.

— Que sem esse restauro nunca teríamosnos conhecido. — Viro-me um pouco e en-contro seus olhos pretos. As pequenas rugasnos cantos me dizem que ele está sorrindo.

Eu desejaria beijá-lo, mas sempre esperoque ele faça o primeiro movimento.

— Você trabalhou bem, Elena. Está real-mente muito bonito.

— Deveríamos comemorar. — Não resistoe me viro. Estou para aproximar minha bocada sua, mas assim que fico na ponta dos pésele se afasta, deixando-me petrificada.

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— Vamos comemorar quando eu voltar —diz, em tom neutro e decidido.

— Quando você voltar? — Arregalo os ol-hos. Dentro de mim ainda tenho que digerira rejeição. — Você está indo embora?

— Hoje à noite, para a Sicília.— Por quanto tempo?— Não sei, vou decidir quando estiver lá.

— Seu olhar está enevoado, quase sombrio.Subitamente, sinto-o frio e distante.

— E o restaurante? — arrisco.— Deixei um substituto. — Dá de ombros.

— Meus funcionários já sabem se virar sozin-hos, a essa altura.

A notícia me transtorna. Eu já havia tidomil ideias — talvez seja mais correto falar defantasias — para essas férias de Natal, dissenão para Filippo também porque esperavapassar o tempo todo com Leonardo. Porém...

— Mas você precisa mesmo ir? — per-gunto, tentando disfarçar meu desespero.

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— Eu quero — responde, com o olhar de-terminado. — Pelo menos uma vez por ano,onde quer que eu esteja no mundo, voltopara a Sicília.

— Você tem pessoas queridas lá?— Tenho o meu passado.Eu lhe faria mais perguntas, mas me se-

guro. Leonardo não suporta intromissões emsua vida particular, e a relação com sua terra,exatamente por isso, faz parte de uma esferaabsolutamente íntima e inviolável.

— Tente se divertir mesmo sem mim. —Pega meu queixo com uma mão e esforça-separa sorrir, como se quisesse fugir da direçãoque a conversa tomou.

Eu queria lhe dizer para não ir ou parame levar junto, pois não suporto a ideia deme separar dele por tanto tempo assim.

— Você vai me telefonar, pelo menos? — étudo o que eu tenho coragem de perguntar.

Ele balança a cabeça.

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— Não, Elena. Prefiro que não nosfalemos enquanto eu estiver fora.

— Por quê? — Agarro-o pelo braço. Seique não deveria insistir, mas tenho necessid-ade de uma explicação.

— Porque preciso me afastar, ficar soz-inho. Porque minha vida não é só a que eulevo aqui e não quero misturar as coisas. —Seu olhar não admite réplicas. — Ligo paravocê assim que eu voltar. — Ele me faz umaúltima carícia e dirige-se para as escadas,sem se virar para trás.

Estou atordoada. Ele foi embora, semdesculpas nem justificativas. Deixou-meaqui, engolindo o milésimo desgosto e comos braços indefesos ao longo dos quadris.

Chega. Tenho que sair daqui já. Procuro ovigia no jardim e lhe dou o molho de chaves.

— Até logo, Franco, e boas festas —despeço-me dele apressadamente, sem meperder em formalidades demais.

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— Para a senhorita também, feliz Natal.— Franco faz uma meia reverência, como es-tá acostumado. — Tudo de bom.

Levanto a cabeça, uma última olhadapara aquelas janelas, e então vou embora,precipito-me na rua com passos rápidos.

Adeus, afresco. Adeus, Leonardo.

É véspera de Natal e me custou umesforço sobre-humano sobreviver a esses di-as de euforia festeira depois de ter sidochutada daquele jeito. A peregrinação deuma loja à outra para comprar presentes deinutilidade garantida e ver toda aquela gentefeliz e atarefada me fizeram cair em um es-tado de profunda melancolia: eu, que geral-mente amo o Natal, agora o odeio com toda aminha força.

Mas, de todo modo, consegui sobreviver aesses quatro dias. Embora saiba que o piorainda está para acontecer. São oito horas da

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noite e daqui a menos de uma hora estarei nacasa dos meus pais para o tradicional jantarcom a família. Se eu passar nessa prova tam-bém, posso me considerar quase salva.

Às 21h15, após ter perdido um vaporettoe gasto meio salto das botas novas por terandado tudo a pé, estou diante da porta dacasa Volpe. Toco a campainha com um poucode dificuldade, sobrecarregada deembrulhos.

Minha mãe abre a porta para mim, enro-lada em um tailleur vermelho-cereja, com aexpressão um pouco preocupada.

— Elena! Nós quase achamos que tinhadesaparecido! Só estávamos esperando você.— Ao fundo já ouço a falação dos convidadospor cima das notas de Mariah Carey, quegorjeia as músicas de Natal de sempre.

— Desculpe, mãe, eu perdi o barco.Com um único gesto, ela consegue me

beijar, tirar meu sobretudo, jogá-lo no

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cabideiro, arrumar meu cabelo e me fazersentir culpada.

— Querida, essa saia não está um poucocurta demais? — pergunta, dando uma ol-hada perplexa no meu vestido de renda, omesmo que usei para o jantar com Leonardona cozinha do seu restaurante.

— Eu não acho — respondo, com indifer-ença. — Você sempre reclama que eu nuncauso saia... Pronto, esta noite quis agradarvocê.

Entro na sala de jantar e, por um in-stante, a ideia de fugir passa levemente pelaminha cabeça: na minha frente está en-fileirado, ao redor da mesa de festa, umpelotão de parentes em posição de guerra,que batem os pés, balançando os talheres noar, como se não comessem há uma semana.Expulso o pensamento com um movimentoda cabeça. Está tudo sob controle, Elena, vo-cê vai conseguir.

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Não falta ninguém: vovó, as tias, osprimos, minha mãe foi capaz de subornar atémesmo o tio Bruno, que está sempreviajando pelo mundo com seus amigos gays.Dou um oi geral, recebendo sorrisinhos deum lado e do outro, e logo vou para o meulugar. Obviamente me colocaram ao lado daprima Donatella, que tem quase a minha id-ade. Mas é muito diferente em todo o resto.Quando tinha 25 anos se casou com Um-berto, o clone veneziano de Flavio Briatore, eno ano seguinte já havia dado à luz apequena Angelica, que agora tem sete anos eparece uma Barbie em miniatura. Senta-se àminha esquerda e me cumprimenta com amão.

— Oi, tia!Faço um carinho na cabecinha dela e lhe

sorrio apertando os olhos, falsíssima.— Elena, você está maravilhosa — diz

Donatella, dando-me dois beijos e me

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inundando com seu perfume enjoativo de írisamarela.

— Obrigada, você também está em ótimaforma.

— Não, nem fale nesse assunto. Engordeicinco quilos. — Faz uma expressão desesper-ada e, levantando a saia, me mostra um ped-aço da coxa. — Olha, estão todos aqui.

Pronto, começou. Todos os anos é amesma lenga-lenga, mas desta vez realmentenão estou com vontade de aturar suashistórias sem graça. Tenho que me salvar,antes que ela comece a discorrer sobre o úl-timo achado no campo dos cremesanticelulite.

— O que Papai Noel trouxe para você? —pergunto à sua filha, tentando mudar deassunto.

— Um celular novo — responde,mostrando-me, orgulhosa, um iPhone de úl-tima geração.

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— Legal... — O que ela faz com ele,naquela idade, francamente eu não sei.

— Posso ver o seu, tia?E pare de me chamar de tia, mal conheço

você, garotinha. Puxo meu iPhone da bolsa.Ela faz uma expressão surpresa, pegando-onas patinhas.

— Mas este é o quatro! Você não sabe queagora saiu o cinco? — pergunta,escandalizada.

Feia, impertinente, mimada e in-suportável. Por um instante, volto a ser cri-ança e tenho uma vontade incontrolável depuxar o cabelo dela.

Exibo outro sorriso de plástico e decidoignorá-la, dirigindo minha atenção à entradaque acabou de sair da cozinha. Obviamente,segundo a tradição da casa Volpe, na vésperade Natal a comida é leve, por isso tudo será àbase de peixe. Creme de bacalhau, vieirasgratinadas e torradinhas de salmão.

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Minha mãe fica no céu com os elogios daparentada.

Para que eu não morra de fome, comogeralmente acontece nessas ocasiões, elapreparou um menu vegetariano só para mim.Claro que ela não sabe sobre minha recenteconversão à carne e, para evitar perguntas enão frustrar seus cuidados comigo, resolvodeixar isso de lado.

— Obrigada, mãe, você é um amor —digo-lhe, mastigando alguns palitinhos debiscoito, e pego uma pequena porção dorisoto de radicchio vermelho que ela cozin-hou com tanto amor para sua filhinha.

Observo meus parentes, um por um.Parece que estou lidando com um grupo deestranhos: não tenho vontade de estar aqui,quero voltar à minha vida, pelo menos aoque foi nos últimos dois meses. Cada dia quepassa sem Leonardo me parece um diadesperdiçado. Sirvo-me de uma grande taça

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de Prosecco, quem sabe me dá um pouco dealegria.

Minha mãe me olha como se escamashouvessem brotado em mim de repente.

— Elena, o que você está fazendo? — per-gunta, horrorizada.

— Por quê? É proibido, agora? — Dirijo-lhe um olhar inocente e encho o copo denovo.

— Mas desde quando você bebe vinho? —Não desiste, e essa sua insistência me irrita.Ela não tolera que alguma coisa fuja de seucontrole e de sua aprovação.

— Desde agora, se não for um problemapara você — respondo, aborrecida.

— Para ser sincera, é um pouco, sim...— Não enche, mãe — eu a calo brusca-

mente. Minha mãe me olha, incrédula, e meupai também. Um silêncio pesado cai sobre amesa. Minha avó, que é um pouco surda,pergunta a um dos meus primos o que está

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acontecendo, enquanto minha tia ajeita oguardanapo nos joelhos, tossindo um pouco.Olho ao redor levemente arrependida.Exagerei, geralmente não respondo assim,sempre sou simpática e tolerante em casa.Agora percebo que não são eles os estranhos,fui eu que mudei.

Felizmente tio Bruno vem em meusocorro.

— Ora, Betta, o vinho faz bem para osangue — diz, dando-lhe um beliscão nobraço. — E, além do mais, nas festas deve-mos brindar! — Levanta a taça e brinda coma minha, piscando para mim.

— Tem razão, saúde! — continua meu pai,erguendo sua taça também. Pela olhada queme dá, entendo que me perdoou.

O jantar continua sem outros empecilhosaté o panetone, seguido pela troca das felicit-ações e dos presentes. Ganho um travesseirode patchwork feito pela mamãe — para

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combinar com a coberta que ela me deu anopassado – uma boina de lã, dois pares demeias grossas feitas à mão, um cachecol decaxemira. Evidentemente, passo a ideia deuma pessoa friorenta. Mas para o gelo quesinto agora, a lã não adianta.

Assim que tenho oportunidade, dou umbeijo de reconciliação na minha mãe,despeço-me dos parentes e fujo para casa.Feliz por ter me livrado daquela tarefa epoder ficar sozinha.

É quase uma da manhã. Os sinos deVeneza anunciam, festivos, o fim da missa deNatal, enquanto os poucos gondoleiros queainda trabalham apressam-se para descansarda última volta de barco. Ando rapidamente,tentando me concentrar na nuvenzinha devapor formada pela minha respiração. Nãoquero pensar. Mas antes de abrir o portão decasa, levanto os olhos ao céu e observo as

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estrelas. Quem sabe se Leonardo também asestá olhando.

No dia de Natal, no fim da tarde, vou àcasa de Gaia, que mora num pequeno loftperto dos Jardins da Bienal. De vez emquando, debaixo da janela de seu quartosurge alguma instalação estranha, como a úl-tima obra de um artista brasileiro, umafileira de totens de plástico branco que ànoite se iluminam de luzinhas fluorescentes.Parecem mais bonecos de neve engraçadosdo que totens e, embora eu não acreditemesmo que tenha sido a intenção do artista,têm tudo a ver com o Natal. Comprei depresente para Gaia um estojinho coberto deglitter com um rímel para dar volume daLancôme e um curvador de cílios de ShuUemura. Ela é louca por essas coisas e seique vai gostar.

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Assim que abre a porta, ela me esmaganum de seus enérgicos abraços, quase mefazendo trombar com a fotografia ampliadade Marilyn Monroe pendurada na parede.

— Feliz Natal! — ela me deseja, todaalegre, e segue na minha frente para a sala,arrastando os chinelos. Ela só não usa saltoem casa.

— Para você também, Gaia! — respondo,tirando o sobretudo.

— Venha, vamos nos sentar no sofá — dize desliga a televisão.

Sempre que me sento em seu sofá decouro branco caríssimo, não consigo deixarde imaginar as coisas bárbaras que faz comseus amantes ali.

— Será que por acaso você está curada dasua doença e quer um Bellini? — pergunta.

— Aceito.

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— Muito bem, assim é que se fala! —Olha-me, sem dúvida surpresa com minhaescolha alcóolica.

Ela some na área da cozinha e, quandovolta com a bandeja e as taças, percebo queestá usando um brilhante no dedo anelar.

— E isso aí? — pergunto-lhe logo.— Foi Jacopo que me deu — diz,

aproximando-o do meu rosto.— Um anel de noivado? — Arregalo os

olhos.— Bem, um anel.— Gaia, não se faça de boba — eu a

repreendo.— Tudo bem, eu admito. Jacopo quer

levar as coisas a sério.— Mas você não — concluo seu

pensamento.— É um pouco cedo demais, você não

acha? — olha-me em busca de aprovação.Parece estar preocupada. Não está realmente

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apaixonada — isso me soaria como um mil-agre, considerando os pouquíssimos preced-entes — está escrito na sua testa.

— Mas então por que aceitou umpresente tão importante?

— O que eu deveria ter feito, hein? —justifica-se. — Devolvê-lo? No Natal?

— Não sei, Gaia, mas talvez seja o caso devocês conversarem sobre isso.

— Olhe, eu gosto de Jacopo — diz, beber-icando o aperitivo.

— Pode ser. Mas talvez você goste maisde outro que nunca aparece...

Acertei em cheio.— Leia — diz, estendendo-me o Black-

Berry. É a última mensagem de Belotti.

Feliz Natal, minha pequena. Daqui a pouco

vou buscar você.

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Os olhos de Gaia brilham de amor, agora.Em outro momento, eu a alertaria, interpret-aria a personagem de sempre, da amiga sériae um pouco carola que a traz de volta à real-idade e diz o que é certo fazer. Mas agora eua entendo como nunca antes, e não tenhocoragem de repreendê-la.

— Mas ele vai vir buscá-la mesmo? —pergunto.

— Sei lá — responde ela, com o rosto es-perançoso. Não tem sentimentos de culpaem relação ao pobre conde, não lhe importaque ele possa sofrer por sua causa. Para ela,só interessa ser feliz. Junto com Belotti,possivelmente.

Talvez por causa da lei da atração,naquele momento meu iPhone também toca.No meu coração, cultivo uma única esper-ança. Deus, faça com que seja Leonardo.

— Quem é? Quem é? — cantarola Gaia,curiosa.

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Leio a mensagem e tento esconder adecepção.

— Ah, é Filippo. Está me desejando felizNatal.

— E você diz isso assim? — Talvez eu nãotenha disfarçado tão bem.

— Por que, como eu deveria dizer?— Com um pouco mais de entusiasmo,

Ele! — Sacode carinhosamente meus om-bros. — O que está acontecendo? Você nãotem mais certeza sobre ele?

— Não, imagine — apresso-me em dizer.— Estou com um pouco de saudade...

Ela me olha, perplexa.— Só um pouco? Olhe, Fil é um cara legal.

Na minha opinião ele é o homem certo paravocê.

Ai meu Deus, Gaia, não complique minhavida você também! Estou com a cabeça tãoconfusa... Filippo é o homem certo, mas nãoé ele que eu desejo nesse momento.

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— Vamos ver... — limito-me a dizer.— Responda logo a ele — ordena —, en-

quanto isso, vou pegar seu presente.Digito uma resposta um pouco fria e

formal, mas só percebo depois que a enviei.Quando levanto o olhar, Gaia está nova-mente na sala, com um sorriso triunfante.

— Voilà! — Entrega-me o embrulho e eufaço o mesmo com o dela.

É claro que Gaia rasga o papel na velocid-ade da luz. A julgar pela cara que faz, acerteiem cheio, ela gostou do presente. Já eusempre fui uma daquelas que demora umséculo para abrir os pacotes: avanço comcalma, gosto de saborear a surpresa.

Balançando levemente a embalagem, de-duzo que pode se tratar de um óleo para ocorpo, ou um perfume, o barulho parece o deuma garrafa de vidro.

— É inútil tentar adivinhar, você nuncaconseguiria... — diz Gaia, toda empolgada.

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Finalmente abro a caixa e fico roxa.— Um vibrador?! De cristal?!— Cristal falso, para ser precisa.Pego-o nas mãos e não sei se fico furiosa,

escandalizada, desesperada. No fim, começoa rir, não há outra coisa a se fazer. Gaia ricomigo, obteve o efeito desejado.

Pronto, estamos numa cena de Sex & theCity.

— Já que você não tem um e nunca com-praria, eu fiz isso por você. — Aciona o inter-ruptor com jeito experiente, piscando. —Dizem que é incrível em ação...

— Bem, com certeza é muito chique. —Balanço a cabeça, olhando o objeto refletir aluz na parede. — Mas você não vai se ofenderse eu não usar, não é?

— Nunca diga nunca. De qualquermaneira, é sempre bom ter um... — respondeela, convicta.

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— Bem, pelo menos não é o par de meiasde sempre — digo, com uma naturalidadeestudada.

Rimos de novo e penso que só com Gaiase pode passar uma tarde de Natal assim.

Em casa, porém, sou invadida de novopela tristeza e por aquela sensação de impot-ência que chega quando não podemos ter oque desejamos. Por mais que eu tenteexpulsá-lo, Leonardo domina os meuspensamentos, implacável. Por que ele foi tãoduro? Por que continua sendo sempre tãoambíguo, rodeando-se de sombras e mistéri-os? Por um instante estou a ponto de ligarpara ele ou lhe escrever uma mensagem,mas, então, para não cair em tentação, des-ligo o telefone.

Ponho a bolsa com o presente de Gaia naescrivaninha. Tiro o vibrador da caixa e

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rapidamente o escondo no banheiro. O queeu vou fazer com esse negócio?

Quero Leonardo. E é um desejo que nen-huma outra coisa pode saciar.**** Parte de um famoso ditado italiano (Natale con i

tuoi, Pasqua con chi vuoi), que diz que o Natal é uma

festa familiar, enquanto a Páscoa geralmente é pas-

sada com os amigos. (N. da T.)

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A última coisa que me sinto física e emocion-almente capaz de encarar agora é uma sessãode restauro completo de mim mesma para aceia do Réveillon no hotel Hilton. Gaia eBrandolini me convidaram e todas as minhastentativas de recusar a proposta foram in-úteis. Eu deveria me sentir grata à minhaamiga e seu “noivo”, mas, no meu atual es-tado de espírito, a ideia de segurar vela anoite toda me desanima muito. Estou soz-inha, sem Leonardo, e continuarei assimmesmo rodeada por uma multidão festiva.Estou irritada e hostil, talvez também porque

meu humor seja afetado pelas condiçõesmeteorológicas, e agora um assustador céucarregado está me ameaçando da janela.

Esta noite eu preferiria ficar em casa depijama vendo um filme, enrolada na minhacoberta de patchwork, correndo o risco deficar diabética com uma indigestão dechocolates After Eight.

E, em vez disso, aqui estou eu, lutandodiante do espelho. Alisar o cabelo, me depil-ar inteira, passar o creme de firmeza nosseios e nas coxas, vestir lingerie vermelha,passar blush nas bochechas, nas pálpebrasum pouco de sombra cintilante e na boca,um batom de longa duração. Tudo isso paraquem? Faria sentido se fosse para Leonardo,para ser atraente aos seus olhos, mas agorame parece completamente inútil. Sabe-se lá oque deve estar fazendo e com quem deve es-tar agora! Estou sofrendo de abstinência ecomeço a desejá-lo cada vez mais, com a

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avidez de uma dependente química. Penaque nenhum traficante possa me arranjarminha droga nesse momento.

O interfone toca. Devem ser Gaia e Ja-copo, pontualíssimos para me apanharem eme arrastarem à força ao Réveillon animadodeles.

— Já vou descer — digo, com preguiça.— Tudo bem, venha logo — responde

Gaia, animada.Dou uma última olhada no espelho, ajeit-

ando um cacho rebelde — já está mesmo nahora de dar forma de novo a esse ex-corteChanel —, e me atiro escada abaixo, tomandocuidado para não tropeçar no casaco.

Abro a porta e encontro Gaia e Jacopo demãos dadas.

— Será que eu deveria pegar um guarda-chuva? — pergunto. Então levanto o olhar eno escuro atrás deles noto uma sombrafamiliar.

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— Mas que guarda-chuva, dá para ver asestrelas. — Sua voz é inconfundível e chegaaté a mim como uma carícia inesperada.

Gaia pisca o olho para mim e Brandoliniafasta-se para me deixar passar.

Filippo está aqui, na minha frente, todoelegante em seu Burberry verde. Não consigoacreditar, por um instante tenho a impressãode estar sonhando.

— Fil! O que você está fazendo aqui?— Voltei — diz ele, exibindo um de seus

esplêndidos sorrisos.Sentimentos contraditórios disputam

meu coração, criando uma confusão excit-ante e inesperada. Então, sobre todos elesprevalece um enorme carinho e tenho de re-pente vontade de abraçá-lo. Porém ficoimóvel, com os braços caídos. O que as pess-oas fazem nesses casos? Beijam-se? O queaconteceu há alguns meses foi uma despe-dida apaixonada, mas nesse meio-tempo

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aconteceu de tudo e eu não sei se... Feliz-mente é Filippo quem deixa a hesitação delado, aproxima-se e toca levemente meus lá-bios com um beijo suave, logo notado porGaia. Agora, sim, eu o abraço com o deses-pero de uma náufraga. Sou grata a ele por es-tar aqui e a Gaia por essa linda surpresa.Tenho certeza de que a mão dela está portrás disso tudo.

Durante o caminho, Gaia e Jacopo vão ànossa frente, mantendo alguns metros dedistância. Filippo oferece-me o braço e eu meagarro nele, aproveitando o calor de seucorpo.

— Estou feliz que você esteja aqui — digo.— Eu também.— Mas quando você chegou?— Praticamente há duas horas.Observo-o melhor, sob a luz fraca de um

lampião. Seu rosto sem barba está um poucochupado, traz as marcas das madrugadas que

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passou trabalhando, mas seus olhos brilhammais do que nunca.

— Achei que você tivesse compromissosem Roma.

— Eu tenho, mas consegui tirar dois dias.— Então, sorri para mim. — Estava commuita vontade de ver você.

Eu também estava com vontade de vê-lonovamente, mas só percebi isso agora. Atéesse momento eu estava ocupada demaispensando em outro.

— Só dois dias? — pergunto.— Infelizmente sim. Dia 2 tenho que estar

no trabalho de novo. São uns exploradores. Eeu me deixo explorar.

Diminui o passo e solta o braço do meupor um instante, olhando-me nos olhos.

— Você está mesmo feliz em me ver? Pelacara que fez antes eu não teria tantacerteza...

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Ele é sensível a ponto de perceber cadanuance dos meus estados de espírito. Euhavia me esquecido disso.

— Claro que estou feliz — digo, num sor-riso muito aberto. — É que não esperava porisso...

Um frio repentino me pega pelas costas.Não é a brisa do inverno, não. É que não es-tou dizendo toda a verdade. Estou contenteem vê-lo, Fil, mas enquanto você estava foraeu fiquei doente por outro homem e agoranão sei se você pode me curar.

Voltamos a caminhar, eu ainda agarradaem seu braço. Prometo a mim mesma denovo, em silêncio, que vou esquecerLeonardo pelo menos por algumas horas eviver este momento com serenidade. Agoraestou feliz por nunca ter mandado aquele e-mail a Filippo. Se eu tivesse feito aquilo,nada disso teria acontecido. E se está

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acontecendo significa que o destino, pelomenos esta noite, está do nosso lado.

Nós quatro subimos numa lancha nasZattere e em dois minutos atravessamos ocanal da Giudecca e estamos em frente à en-trada do Hilton. É estranho ver a cidade da-qui, é como ter uma perspectiva invertida.Deslizamos sobre a passarela de veludo ver-melho e, graças à ajuda de Brandolini, pas-samos pela entrada controlada por segur-anças esnobes. Eu nunca tinha vindo a estelugar. É um hotel luxuosíssimo, além dequalquer expectativa, os funcionários são ex-tremamente elegantes, com modos formaisbeirando o meloso.

Após entregarmos os casacos e umaprimeira rodada de coquetéis, chegamos ànossa mesa, acompanhando algumas pessoasdo grupo de Brandolini. A sala é grande edecorada com requinte. Há pelo menos

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cinquenta mesas, os convidados estão eufóri-cos, mas do jeito que as pessoas muito sofist-icadas são: comportam-se como se houvesseuma câmera de vigilância ligada o tempotodo.

— Gaia começou a frequentar a alta so-ciedade — observa Filippo, cochichando nomeu ouvido. Assim como eu, ele também nãoestá acostumado com tanto luxo.

— Não, foi a alta sociedade que começoua frequentar Gaia... — eu respondo. Sorrimosum para o outro, cúmplices.

O jantar prossegue sem problemas,agradável, e descubro que os amigos doconde são menos esnobes do que se podiaimaginar. Gaia estava certa. Obrigo-me a dis-tribuir alguns sorrisos e a não pensar de-mais, repetindo a mim mesma que, nofundo, é apenas uma noite. O fato de que aomeu lado agora esteja Filippo faz com que eume sinta protegida de alguma maneira e,

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quanto mais os minutos passam, mais tenhoa impressão de reencontrar nele o en-trosamento de sempre. A certo ponto, per-cebo que o olhar dele caiu sobre meu decote.Pensando bem, agora, ele nunca me viu ar-rumada para sair à noite, esta é a primeiraocasião elegante da qual participamos jun-tos. Aquilo me diverte e, em vez de me cobrircomo eu faria normalmente, sustento seuolhar.

— Você gostou do meu vestido? —pergunto-lhe.

Ele se supreende, levemente embaraçado.— Você está linda... Mas não é só o

vestido. Você está diferente, Bibi, como setivesse desabrochado.

— Um brinde às mudanças positivas, en-tão — proponho, levantando meu copo devinho e tocando o seu.

Filippo também nunca tinha me visto be-ber. E, de fato, está surpreso:

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— Você também está bebendo, agora?— Pois é, nossa Elena é uma pequena al-

coólatra... Já estava na hora! — intromete-seGaia, juntando-se ao nosso brinde.

Filippo sorri, um pouco confuso.— Eu achava que você fosse abstêmia —

ele me olha, com curiosidade. — Nãobrindou nem na sua formatura.

— Eu também achava — dou de ombros,tomando um longo gole —, mas talvez eu est-ivesse enganada. — Como estava enganadasobre tantas outras coisas.

— Tudo bem, então às novidades — eletambém toma seu vinho.

Enquanto bebemos alegremente,comendo canapés de vol-au-vent, finjo meinteressar pelas conversas frívolas que zun-em ao meu redor e continuo a sorrir. O ál-cool começa a fazer efeito, sinto-me leve e re-laxada, exatamente o que eu queria. A certoponto, porém, esbarro sem querer numa

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garrafa de vinho, entornando-a no vestido deuma garota sentada à minha frente. Umgarçom corre para remediar o desastre, en-quanto os outros convidados, felizmente, nãoligam muito para o meu constrangimento eusam o acontecido como pretexto para outrobrinde. A garota não está achando muitagraça, porém, e me fulmina com um olharfeio.

— Você está bem, Bibi? Será que não ex-agerou um pouco? — sussurra-me Filippo,preocupado.

— Um pouquinho... — respondo, aper-tando uma das têmporas com a mão. Achoque estou altinha, talvez eu não aguente tãobem o vinho quanto eu pensava. — Sou umdesastre, não é?

— Um desastre maravilhoso — pisca paramim. — E, além do mais, aquela lá tinha carade imbecil.

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Que bom que ele está aqui, penso, nomeio da nuvem alccólica. Que bom sermimada e admirada, mesmo quando aprontoalguma confusão. Só Filippo faz com que eume sinta assim.

Enquanto isso, Gaia levantou-se e foi atéo meio do salão junto com outras pessoas danossa mesa. O DJ acabou de colocar umtrecho de uma música dance de que sei queela gosta muito, de David Guetta ou algo dogênero. Minha amiga mexe-se com umagraça maliciosa, dominando perfeitamente opróprio corpo. Esplendorosa de luz na pistade dança, envolvida no minivestido de chif-fon com lantejoulas, os cabelos enrolam umpouco por causa do suor, as bochechas estãorosadas, peroladas. Sinto vontade de dançar,justo eu, que geralmente nunca o faço, e melevanto para ir até o grupinho. Arrasto Fil-ippo comigo, apesar de seus protestos.

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— Sem discussão! — digo-lhe, imperativa,puxando-o por uma manga.

Lembro-me da famosa noite na escola detango, em que acabamos com os pés pisotea-dos, e sei que ele também está pensandonisso, enquanto dá alguns passinhos nomesmo lugar, sorrindo-me o tempo todo.Dou uma gargalhada forte, realmente nãosou mais capaz de controlar nada. Filippo mepergunta o que está acontecendo comigo,mas não consigo responder. É uma risada re-pentina, imotivada, intensa. Gaia tambémpercebe e, achando graça, aproxima-se e mepega pelos pulsos.

— Você já está bêbada, Ele?— Espero que sim — respondo-lhe,

enxugando as lágrimas. Mas agora não seimais se são lágrimas de felicidade ou dedesespero.

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Alguns minutos antes da meia-noite,subimos todos ao terraço para assistir aos fo-gos de artifício. Sempre gostei dos fogos, enão só de olhá-los, mas de fazê-los também.Lembro que, quando eu era criança, no finaldo ano eu gastava todas as economias domeu porquinho rosa para comprar girân-dolas e bombinhas e, depois, eu e meu painos divertíamos como loucos fazendo-as ex-plodir no céu. Minhas amigas diziam queaquilo não era uma brincadeira de menina,mas meu pai parecia não ligar para isso e euficava felicíssima de compartilhar esse mo-mento com ele.

A noite clareou um pouco agora e con-seguimos entrever algumas estrelas. A vistaaqui de cima é espetacular, para dizer o mín-imo, parece que somos pontinhos suspensosentre água, terra e céu. Chegou o fatídicomomento da contagem regressiva. Gaia e Ja-copo vão para a frente, ao abrigo das torres,

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enquanto eu e Filippo permanecemos atrás,num canto mais afastado.

— Cinco.Filippo abraça forte minha cintura.— Quatro.Encosto mais em seu corpo.— Três.Ele me olha.— Dois.Levanto o queixo.— Um.Sua boca está a poucos centímetros do

meu rosto.— Feliz ano-novo! — dizemos juntos, ol-

hos nos olhos, e deixamos nossas bocaslivres para se procurarem e se encontrarem.É o primeiro beijo verdadeiro desta noite edentro dele há toda a ternura que eu haviaesquecido. Filippo abre a garrafa de Moët &Chandon que segura na mão e bebemos al-guns goles de canudo, enquanto os fogos de

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artifício iluminam e colorem a cidade e ocanal aos nossos pés. Admiramos o es-petáculo em silêncio por vários minutos.

— É o momento de fazer um pedido —sussurra-me Filippo, de repente.

— Tudo bem. — Fecho os olhos para meconcentrar. Por mais que seja bonito estemomento com ele, por mais que eu me es-force para procurar um diferente, só tenhoum pedido na cabeça: Leonardo. Quando re-abro os olhos, tenho vontade de chorar.

— Já fez? — pergunta-me Filippo.Concordo e fujo imediatamente de seu ol-

har. Arranco a garrafa da mão dele e tomooutro gole.

— E você? Fez o seu? — pergunto, tent-ando sorrir.

— Não preciso. Meu pedido já está aqui —diz, abraçando-me e beijando-me de novo.

Quero morrer. Sou o ser mais mesquinhodo mundo. Agarro-me naquele beijo de

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corpo e alma, ponho nele a mesma força coma qual gostaria de lhe pedir perdão.

Filippo puxa-me para si, segurando-mecontra seu peito. Ficamos assim não sei porquanto tempo, parece que fiz uma longaviagem da qual eu já voltei. Agora que os fo-gos terminaram, grande parte das pessoasvoltou lá para baixo e apenas algumas aindase demoram no terraço. Sinto o calor de Fil-ippo se misturar com o meu, debaixo dasroupas nossos corpos estão muito próximose o sangue ferve nas minhas veias. Deve serporque estou alterada por causa do vinho,mas de repente sinto uma vontade louca defazer amor com ele. Não sei se é por desejoou raiva, por alegria ou desespero, sei apenasque esta noite quero esquecer tudo e ser suamais uma vez. Pensarei nas consequênciasamanhã.

Então, agarro seu rosto nas mãos ecomeço a beijá-lo com desejo, afundando

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toda a língua em sua boca e colocando a mãoentre suas pernas.

Filippo, porém, se afasta e me olhadesconcertado.

— O que foi? Você não quer? — pergunto-lhe.

— Claro que quero... — responde ele, ol-hando em volta.

— E então? — sussurro, empurrando-opara um canto mais escuro do terraço.

— Bibi, tem gente olhando. — Ele gosta,eu sei, mas está envergonhado demais.

— Deixe as pessoas olharem. — Segurosua mão e a coloco em meu seio.

— Mas o que deu em você esta noite? —diz, com os olhos verdes acesos de uma luzque nunca vi.

— Estou com vontade — digo, em tom dedesafio, e abaixo uma alça do vestido, deix-ando entrever um dos seios.

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— Mas o que você está fazendo? Cubra-se. — Está atônito, contrariado, e me esconderapidamente.

— Por que você é tão careta? — Eu, pelocontrário, estou irritada e frustrada.Leonardo não teria me detido. Leonardo nãoteria me dito essas coisas. Leonardo teria mepego aqui, encostada nessa parede.Leonardo, Leonardo, só consigo pensar nele,que droga! “Por que você não faz algumacoisa para me fazer esquecê-lo?”, eu queriajogar esse grito na cara dele.

— Você está completamente bêbada — eleme diz, tirando um cacho da testa. É muitomais sexy quando está com raiva... Seu max-ilar fica mais marcado.

Agora eu o desejo quase que por re-vanche, sua recusa me excita, sinto a ne-cessidade de escandalizá-lo, de jogar na caradele a nova Elena, não mais sua, mas de

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outro. Desabotoo seu cinto, com gestosimpacientes.

— Vamos lá, Fil! Você me quer ou não?Ele me para na mesma hora, apertando

meu pulso.— Pare, Elena. Você está exagerando —

sussurra. Ele nunca me chama de Elena.Parece transtornado.

— E então vamos exagerar! — repito, en-furecida. — Você não pode se entregar pelomenos uma vez?

— Pare, já disse.— O que foi, você tem que pensar no as-

sunto? Vamos precisar de tempo para issotambém? — Agora estou furiosa e má e nãoconsigo conter as palavras que saem veneno-sas da minha boca. — Cadê a paixão, Fil,nunca existe uma merda de decisão que nãoseja planejada, nunca existe um pouco deloucura saudável entre nós? É sempre tudotão previsível!

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Eu disse, eu gritei, e já me arrependo. Fil-ippo me olha, incrédulo.

— Eu viajei seis horas para ver você — eleme diz, pálido, com os dentes cerrados. —Mas eu achava que fôssemos algo mais queuma trepada no terraço de um hotel.

Ponho as mãos no rosto. Agora estoumorrendo de vergonha.

Ele recua alguns passos, os olhosapagados. Não quer mais contato com o meucorpo.

— Não sei o que aconteceu com vocênesses meses, Elena, mas eu não a recon-heço. E o que vi esta noite... Não gostei.

Faz menção de ir embora, mas eu o se-guro por um dos braços.

— Desculpe-me, eu não queria...Ele se solta.— Claro que queria. — Olha-me, gélido,

os punhos cerrados. — Você disse o quepensava, está claro até demais. Feliz ano-

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novo para você. — Então, corre em direção àsescadas da saída.

Não posso detê-lo e nem tento fazer isso.Não tenho forças, fico parada encostada naparede, a cabeça roda e as ânsias de vômitosobem do estômago, mas por sorte consigocontrolá-las. Respiro profundamente algu-mas vezes e levanto-me com calma,arrastando-me com passos incertos paradentro, até a nossa mesa. Eu também vouembora, a essa altura é inútil ficar. Pegominha bolsa e me despeço às pressas de Gaiae Brandolini, sem dar explicações. Feliz-mente Gaia está mais bêbeda que eu, não re-parou que Filippo sumiu, nem meu estadolamentável. Repete mais uma vez “Feliz ano-novo” e, depois de beliscar meu traseiro, medeixa ir.

Aqui estou eu. Sozinha, no meu aparta-mento de solteira, às três da manhã do dia 1º

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de janeiro, com a perspectiva de vomitar deuma hora para a outra e uma dor de cabeçainfernal, que não me dá trégua. Belo começode ano. Sem Leonardo. E, agora, sem Filippotambém. O que eu fiz para merecer issotudo? Sinto-me cansada, arrasada: já fizminha escolha, mas o destino se diverte medando bordoada. Quero o que não posso ter.

Sustentando-me com dificuldade sobre aspernas, cambaleio em direção à cozinha,procuro algo que possa absorver o álcool quegira no meu estômago. Encontro um poucode pão e o enfio na boca sem me perguntarhá quanto tempo está ali. Depois entro nobanheiro e abro a torneira da banheira, des-pejando dentro dela algumas gotas de óleoessencial. Sai um pouco demais, mas eu nãoligo. Enquanto espero que ela encha, volto àsala e meu olhar é atraído pela árvore deNatal com as luzes ainda acesas. Sento-me

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no chão e fico olhando. Em uma bola leio umdos versos que eu mesma escrevi nela:

Odeio e amo. Você me pergunta como épossível.

Eu não sei, mas sinto que é assim e meatormento.

Catullo

Estou prestes a chorar. O nó na minhagarganta se afrouxa. Sou uma sentimentalidiota com os olhos vermelhos, uma meninaque quis dar uma de mulher e só arrumouproblemas.

Livro-me do meu vestido amassado edaquela estúpida lingerie sexy de rendavermelha, deixo-os cair no chão enquantovolto ao banheiro. Então, afundo lentamentena banheira cheia, colocando a cabeça de-baixo d’água também e dissolvendo ali aslágrimas.

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Aqui está ela, a nova Elena. Sozinha, con-fusa e culpada. Vítima e carrasca de simesma.

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14

Os feriados acabaram, finalmente, e agrade-cida mas sem arrependimentos deixei paratrás o ano velho. Embora eu tenha começadoo ano novo de um jeito catastrófico, tenhoque olhar para a frente. Evitei a habitual listade resoluções, mas prometi a mim mesmaque este será o ano das escolhas corajosas.

Primeiramente, quero recomeçar a tra-balhar em grande estilo. Fiz algumas entrev-istas, mas parece que em Veneza, por ora,não está acontecendo nada de interessante.Então entrei em contato com a professoraBorraccini, diretora do Instituto de Restauro

com o qual eu ainda colaboro, e ela mepropôs um projeto em Pádua: participar dosrestauros da Cappella degli Scrovegni, juntocom uma equipe sob sua supervisão. Um tra-balho prestigioso, digno de currículo, masseria necessário ir e voltar de trem todos osdias, por isso vou avaliar melhor após terfeito a entrevista.

Depois me inscrevi na academia, não seicom que coragem, para dizer a verdade. Àsterças faço pilates, às segundas e quintastenho aulas de zumba. Obviamente me saiomelhor no pilates, talvez porque não hajamuito o que fazer além de alguns alonga-mentos no mesmo lugar. Claro, eu não sou omáximo em termos de elasticidade, mas pelomenos agora consigo tocar as pontas dos péscom os dedos. Já sobre a aula de zumba eupreferiria não fazer comentários. Foi Gaiaque me convenceu e lamento o dia em quedisse sim. A professora é uma doida, além do

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mais é impossível não se olhar no espelho nasala e não se sentir ridícula no meio daquelebando de mulheres enlouquecidas rebolandoe se debatendo em um ritmo frenético, en-quanto eu fico para trás pelo menos meia se-quência no tempo. Sempre termino a aulaofegante, mas tenho que reconhecer que, nofim, sinto-me leve, cansada no melhor sen-tido da palavra e quase achando graça daminha própria falta de jeito.

No campo sentimental, porém, estouvivendo um verdadeiro impasse.

Depois daquela noite de Réveillon hor-rível, Filippo não me procurou mais. Gaiacontinua a me perguntar com insistência osmotivos do nosso distanciamento e semprefalei no assunto por alto, sendo vaga. Eudisse a ela que decidimos não nos falar porum tempo, sem lhe contar sobre minha ex-plosão, sem dizer que fui eu que o levei aorompimento. Fui realmente imperdoável

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com Filippo, acho que lhe disse aquelascoisas apenas porque inconscientemente euqueria afastá-lo de mim, induzi-lo a me dete-star. Eu consegui, no fim, e saber que entrenós terminou ainda antes de começar medeixa um gosto amargo na boca. Porém meresta a dúvida angustiante de ter perdidouma chance de ser feliz, mas não posso fazernada se meu coração vai em outra direçãoagora.

E volto sempre para Leonardo. Não seimais como segurar o desejo louco que tenhode ligar para ele, mas resistir é o único modode tê-lo novamente. O tempo que me separadele às vezes me parece insuportável, masestou confiante: a essa altura as festas jáacabaram há um tempo e sei que daqui apouco ele estará aqui de novo. De novo jun-tos. Eu e ele, embora eu não saiba bem emque termos. Mas, no fundo, de certas coisas émelhor não se conhecer os termos exatos.

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Acabei de voltar da academia e pareceque estou voando: todas as toxinas que eutinha no corpo foram embora depois de umaaula que fez até Gaia se estatelar no chão.Esta noite posso me empanzinar sem mesentir muito culpada. Estou preparandotramezzini***** com rúcula e bresaola —pois então, já não é mais um problema —,brie e nozes, gorgonzola e alcachofrinhas,dois de cada tipo. Eu os estou recheando deum jeito inacreditável, como fazem na To-letta, o bar de Veneza que serve os melhorestramezzini do mundo.

Faltam poucos minutos para as oito,quando o interfone de casa toca. Quem será?Não estou esperando ninguém. Deixo a facasuja de brie no prato e, lambendo os dedos,vou até a porta para atender.

— Alô? — digo.— Leonardo. — Uma voz firme e potente.

A sua.

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Ai meu Deus, eu vou passar mal.Instintivamente olho-me no espelho daparede. Estou horrível: calça jeans esfar-rapada, chinelos de lã de carneiro e casaco defelpa Adidas descosturado que uso para ficarem casa. O mesmo da época do ensino mé-dio. E ainda bem que não estou vestida como pijama de ursinhos-polares.

— Leonardo?! — pergunto, para ter cer-teza de que não estou sonhando.

— Sim. Você quer abrir pra mim?Espere um momento que eu vou me tro-

car. Aliás, duas horas. Assim eu me restauro.— Suba. — Aperto o interruptor e, no

meio-tempo, corro ao banheiro para passarum fio de pó compacto nas bochechas. Meuscabelos estão de um jeito que Gaia não hesit-aria em chamar de uma afronta para os ol-hos. Mas não tenho tempo. Prendo-os emum rabo improvisado.

Está subindo as escadas.

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Não achei que fosse chegar assim, semnem um telefonema de aviso-prévio. Não es-tou preparada. Meu coração está explodindoe as pernas tremem, mas devo me mostrarsegura, à vontade, não quero que ele percebao quanto me fez falta, embora ele talvez jáimagine isso e seja completamente inútilesconder.

Abro a porta tentando fazer uma ex-pressão de espanto moderado.

— Que surpresa...— A que você estava esperando — re-

sponde ele, frustrando todos os meus es-forços. Está tão sexy, a barba por fazer, os ca-belos despenteados e a pele levemente maisescura que o normal.

— Venha — digo, convidando-o a entrarcom um gesto e segurando com dificuldade avontade de pular no colo dele.

Avança poucos passos em direção à sala,larga sua bolsa verde militar no chão e me dá

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um leve beijo distraído na bochecha, olhandoao redor.

— Como você ficou sem mim?— Bem.— Mentirosa.Puxa-me para si e me beija mais e mais.

Vai para o pescoço e, depois, pegando comforça meu rosto nas mãos, empurra-me con-tra o balcão da cozinha e afunda a língua naminha boca. Por que você não se deixa serconquistado, Leonardo, por que não quer sermeu? Quanto eu senti saudade desses lábiosvorazes, desses braços fortes, deste corpoperfumado de âmbar e de vida... Mas por queeu não posso dispor dele sempre que euquiser?

Não me seguro e respondo com o mesmodesejo.

— Você come isso? — pergunta-me derepente, soltando-se do meu abraço depois

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de ter visto na mesa uma tábua de cortarcom uma fatia de pão com brie em cima.

— Como. Adoro os tramezzini àveneziana.

Leonardo balança a cabeça com um sor-risinho de desprezo. Tudo bem que ele é umcozinheiro de classe, mas ninguém podemenosprezar meus tramezzini.

— Confie em mim, estão ótimos... — in-sisto, convicta.

Leonardo começa a rir, como se eutivesse acabado de dizer algo absurdo.

— Vamos ver se eles estão ótimos mesmo— sibila, imitando a minha voz. E morde umtramezzino de brie e nozes, saboreando-olentamente.

Sinto-me sendo julgada, uma concorrentequalquer de Top Chef que está prestes a serdesclassificada do programa, com a únicadiferença de que Leonardo, além de sersevero como os jurados do programa,

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também é tremendamente sexy e, por isso,intimida ainda mais.

Olha-me com olhos que não prenunciamnada de bom. Depois suspira e me puxa parasi, pegando-me pela cintura.

— Muito bem — comenta, lambendo oslábios —, estou quase a contratando comoassistente.

— Obrigada, mas já tenho um trabalho.Mais ou menos... — respondo. Ele me dáuma palmada.

— De qualquer maneira, se você estivercom fome eu fiz outros... — digo, indicando atábua.

— Tudo bem — responde. Tira a jaquetade couro e vamos para o sofá. Ele se movi-menta completamente à vontade, já paramim é um pouco estranho tê-lo aqui, naminha casa. É a primeira vez. Deve ter lem-brado o caminho do dia da maré alta...

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Pega um tramezzino de rúcula ebresaola, enquanto eu mordo um canto dode gorgonzola e alcachofrinhas. Mastigo semvontade, de repente a fome passou. O que euquero é ele.

— Não quer mais? — pergunta.— Claro que eu quero — minto, sem ver-

gonha. Então, de repente, tenho uma ideia.— Pego algo para bebermos? Tenho uma gar-rafa de Dom Pérignon lá dentro...

— E desde quando você guarda álcool nageladeira? Você está se cuidando, mocinha...— comenta, concordando.

Levanto-me do sofá com a desculpa de irà cozinha, saio sorrateiramente para o ban-heiro e abaixo a calcinha para conferir a situ-ação. Dou um suspiro de alívio. Meus seiosestão inchadíssimos, estou para menstruar,mas seria uma pena se fosse justo estanoite... Ajeito o rabo de cavalo em frente ao

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espelho, ou pelo menos tento, depois pego ochampanhe e retorno à sala.

— Voltei. — Coloco o Dom Pérignon namesinha de centro e procuro duas taças.Leonardo me segue com o olhar enquantoabre a garrafa.

— Tudo bem? — pergunta, enquanto lheestendo os copos.

— Tudo — respondo, sentando-me nova-mente no sofá. Está tão claro assim que nãoestou me aguentando? O curso acelerado dedissimulação que impus a mim mesma nasúltimas semanas não deve ter dado grandesresultados: é impossível esconder asemoções que ele provoca em mim.

— Brindamos a quê? — pergunto.— A nós — responde, olhando-me nos ol-

hos e encostando seu copo no meu. Então,levanta-se e tira um embrulho branco dabolsa.

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— Isto é para você, diretamente da Sicília— diz.

Um presente. Por essa eu realmente nãoesperava.

— Obrigada — murmuro, um pouco con-strangida. — Mas eu não tenho nada paravocê...

— Vamos, abra — Leonardo me corta.Abro o embrulho com cuidado meticu-

loso. Parece envolver algo macio.— Como foi a viagem? — pergunto, en-

quanto abro.— Muito boa — responde ele, telegráfico.

Está com o olhar perdido no vazio, eu nãogostaria de estar enganada, mas parecequase melancólico. Alguma coisa forte develigá-lo à sua terra. Alguma coisa que eu nãoposso saber.

Tiro a segunda camada de papel, e umabarra de tecido liso surge sob meus dedos.Eu o estico, apoiando-o no peito, como se

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faria para desenrolar um pôster. Abaixo osolhos para admirá-lo. É um maravilhosomanto de seda preta com um capuz comacabamento de cetim.

— Chama-se armuscinu — explica-meLeonardo, antes que eu possa lhe fazerqualquer pergunta. — É feito à mão. Antiga-mente as mulheres sicilianas o vestiam parasair de casa, mas agora não é tão fácilencontrá-lo.

— É realmente lindo — comento,apertando-o ao peito. Deve ser uma coisarara. Perco-me nos enquadramentos dosfilmes de Tornatore: nunca estive na Sicília esão minha única fonte.

— Podia ser usado de dois jeitos. —Leonardo o apoia sobre meus ombros. —Com o capuz para baixo, quando se ia resolv-er problemas. Ou com o capuz na cabeça — ecobre a minha —, quando se ia à igreja e vis-itar pessoas importantes.

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Sorrio. Usando esse capote sinto-me umamatrioska. Que Monica Bellucci no filmeMalèna, que nada!

Leonardo me arruma como um estilistaque prepara sua modelo, depois me admira,ele também se divertindo.

— Assabinidica,****** dona Elena. Ficoumuito bem em você.

Não sei o que responder e faço umapequena reverência. Ele aproxima-se eagarra uma barra da vestimenta.

— Mas você fica ainda melhor sem nada...Tira o manto de mim, depois o casaco,

depois a camiseta de algodão. Sopra del-icadamente em meus seios nus e imediata-mente os mamilos ficam arrepiados. Senta-se no sofá e, fazendo-me virar, me acolhe noespaço entre suas pernas. Deixo-me mas-sagear por suas mãos experientes, sinto seusdedos subindo macios em volta do meupescoço e depois descendo até os quadris,

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desenhando muitos pequenos círculos pelacoluna vertebral. Depois toca de leve meusseios. Meu corpo todo é percorrido por umaonda de arrepios.

— Você tem um cheiro tão bom. Tãodoce. — Seu nariz toca levemente a cavidadedo meu colo, junto com sua língua em brasa.Meu sangue se aquece nas veias no mesmosegundo. Eu o desejo loucamente.

— Senti sua falta, Elena — continua a mesussurrar, baixinho.

Beija minha nuca e aproxima-se até seencostar completamente, com o peito, orosto, a boca contra minhas costas. Descansapor alguns instantes em cima de mim. Entãoeu me volto, não sei resistir ao chamado desua boca. Tiro seu pulôver, puxando-o pelacabeça, monto em cima dele e continuo abeijá-lo até ele me virar para baixo de seucorpo. Com as mãos agarra minhas coxas eem um instante sua boca está de novo sobre

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mim. Morde meu sexo através da calça jeans,voraz, enquanto meus dedos se entrelaçamaos seus cabelos. Gemo, e o prazer se ex-pande, irrefreável.

Subitamente ele me levanta e me jogasobre um dos ombros como um saco. Estoude cabeça para baixo, enfio as mãos nosbolsos de sua calça jeans para me sustentar.Sinto-me segura em seus braços fortes.

— Para onde está me levando? — per-gunto, rindo.

Entra, seguro, pelo corredor adentro,como se conhecesse minha casa desdesempre.

— Quero ver o seu quarto.Entra pela porta semiaberta e me atira na

cama.— Bonitinho. Gostei — comenta, olhando

ao redor e mexendo no meu mamilo.Meu coração está a mil por hora e o

desejo me percorre veloz o corpo. Arranca

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minha calça e a calcinha, depois me lambelentamente, de baixo para cima, abrindocaminho em direção ao clitóris. Estou fer-vendo. Ele me quer com um ardor que nuncaconheci em nenhum outro, é isso que medizem seus lábios experientes, incansáveis.

— Você tem um gosto bom, Elena. De pãoquente. E, dentro, de sal. — Sua línguaavança mais fundo, parece insaciável.

E eu me sinto desaparecer no nada, comose de mim eu percebesse apenas meu sexosacudido por convulsões e tremores deprazer.

De repente se levanta, os olhos cheios dedesejo, os músculos do peito tensos. Rapida-mente se livra das roupas e joga-se em cimade mim, imobilizando meus pulsos com asmãos. Ele me possui com um impulso ávidoe impaciente e começa a se mexer num ritmoacelerado, ofegando.

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Como uma molécula no meio de umatransformação alquímica, dou um pulo paraoutra dimensão. Nossos corpos unidos liber-tam uma energia tão intensa que me desori-enta. Parece que nossa separação aumentouo desejo, a ponto de nos fazer viver algoavassalador, desconcertante, violento.

Agora Leonardo me vira. Eu o satisfaço,agarrando-me à cabeceira da cama. Gemosem parar e me mexo para ir ao seu encon-tro, sentindo suas mãos nos quadris en-quanto me penetra. Tomou um ritmo exten-uante, mas consigo mantê-lo.

— Você é minha, Elena — ele me diz, aca-riciando minha bunda. E pressiona mais, osuficiente para me fazer viajar.

Não consigo parar de gritar, enquanto acabeceira da cama bate na parede. Estouprecipitando-me no turbilhão do meu or-gasmo, sinto cada músculo estremecer, osangue parece chegar aos dentes e a cabeça

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roda. Leonardo me segue, segurando-mefirme, até desabarmos juntos nos lençóis, eele me prende em seus braços.

Permaneço aninhada em seu peito umpouco, e admiro todo o seu corpo, respirandoo perfume inebriante dele. Sinto-me total-mente perdida nele e por ele.

— Clelia deve ter nos ouvido... —murmuro.

— Quem é Clelia?— Minha vizinha. — Eu fiz mais barulho

que suas gatas no cio, penso, sorrindo.— Não sei o que Clelia acha, mas é bom

ouvir você gozar — passa um dos dedos sobremeu nariz, observando-me com olhossatisfeitos.

Não faça assim, porque me dá vontade decolocar você no colo... Não posso ceder de-mais à ternura. Deixo os dedos deslizarementre os pelos de seu peito.

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— O que você acha de tomarmos umbanho quente? — pergunto, seguindo umaideia repentina.

— Por que não...Faço menção de me mexer, mas ele me

impede.— Fique aqui, eu vou encher a banheira.

— Levanta-se, e meus olhos acariciam seucorpo escultural. Gosto de quando ele toma ainiciativa. Gosto de que esteja aqui. Gosto detudo nele. Exceto o fato de que nunca poderáser meu.

***

Ainda me encontro num estado de doce tor-por quando Leonardo volta ao quarto comum ar malicioso e divertido.

— E isto aqui?Meu Deus, o vibrador! Ele o encontrou

no armário das espumas de banho. Nãooo!

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Tenho vontade de me esconder debaixo doslençóis de tanta vergonha.

— Foi Gaia que me deu. No Natal —justifico-me.

Leonardo balança a cabeça, rindo.— E você já o usou? — Aproxima-se da

cama. Aquele objeto frio em suas mãos temalgo de tremendamente erótico.

— Na verdade, não.— Por que não?— Não sei, acho que não iria gostar.— Você acha? — e seu olhar é eloquente,

enquanto sobe na cama ao meu lado.Ainda estou me recuperando do orgasmo

de antes. Esse homem vai me matar! Acariciano meio das minhas pernas, escorregandopara cima e para baixo com os dedos, comose tivesse que ligar e desligar um interruptor.Meu sexo escancara-se de novo, ainda nãosaciado, e de uma só vez sinto-mepreenchida por algo que tem a consistência

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do vidro. Liso e gélido, desliza veloz, até mefazer soltar um gemido.

Leonardo empurra-o mais para o fundo.Mexe-o dentro e fora, depois o faz vibrar. Éuma sensação nova, prepotente, excitantecomo tudo o que faço com ele. Abro os olhose o observo. Brilha sob o reflexo do abajur. Avisão daquele objeto inanimado dentro domeu corpo vivo é estranha, mas, não sei porquê, eu gosto.

Leonardo faz com que ele deslize parafora de mim e o pousa na minha mão.

— Continue você, Elena — ele me diz,pegando o pau nas mãos. — Quero ficar ol-hando. — Seus olhos estão novamente cheiosde desejo.

Obedeço, como se estivesse hipnotizada,não encontro forças para me opor. O cristalme dá um prazer sensual, amplificado peloolhar de Leonardo em mim. Não entendomais nada, estou desarmada: minha cabeça

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roda, as mãos não têm força. Ele fica me ol-hando por um tempo, depois me livra dobrinquedo, me pega pelas coxas e me pen-etra, empurrando com decisão. Eu gemo,mais forte que antes.

— E disso aqui você gosta mais, não é? —sussurra-me.

Um gemido eloquente brota dos meuslábios.

Ele sai de mim e, segurando-me nosbraços, me leva ao banheiro. A água da ban-heira quase transbordou. Inclina-se parafechar a torneira e joga lá dentro uma esferaefervescente de patchuli, que se dissolve emmuitas pequenas bolhas cheirosas. Muitobem, Leonardo. Você sempre sabe do que eugosto.

Dou um suspiro profundo e afundo-meprimeiro, escorregando sob a espuma. Eleme devora com um olhar sensual e ajeita-sena minha frente, fazendo sair um pouco de

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água. Minha banheira é pequena, favorece ocontato, nossas pernas se entrelaçam.

Seus olhos acendem-se de desejo en-quanto se aproxima do meu rosto para mebeijar. Pega-o com as mãos e se apodera daminha boca.

— Venha aqui — sussurra, fazendo comque eu suba nele. Acaricia a pequena manchasob meu seio e sorri para mim: — Sempreque penso em você, eu penso nisso aquitambém.

Agora eu o sinto. Molhada e ardente pordentro, ele me possui de novo. Sento-me de-vagar sobre ele e, quando penetra a fundopara me preencher inteira, arqueio as costas,emitindo um gemido. Então, agarro suacabeça e aperto-a no peito, oferecendo-lhemeus mamilos arrepiados. Quero sentir suaboca sobre mim e quero que saiba o quanto éintenso meu desejo por ele.

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Nós nos movemos juntos no espaço re-strito da banheira, a pele molhada e escor-regadia, os olhos úmidos de prazer, as bocasávidas de paixão. E a água agita-se à nossavolta.

Um novo orgasmo propaga-se dentro demim, devora minha alma e meu corpo. Estoudominada pelas minhas sensações e sintoque ele também está perdendo o controle.Gozamos juntos, beijando-nos na boca.

Eu sou sua. E ele é meu, pelo menos estanoite.

O banheiro está cheio de vapor, agora. Aágua, aos poucos, começa a ficar transpar-ente, depois que a espuma se dispersou.Ficamos embaixo dela mais um pouco, eudeitada de barriga para cima, encaixadaentre suas pernas como em um berço macio.

— Você mudou, Elena, sabia? — ele mediz, brincando com meus cabelos.

— O que você quer dizer?

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— Está fazendo amor de um jeito difer-ente. Está mais livre, mais sensual.

— Foi você que me mudou.— Talvez. Em parte. Eu apenas liberei o

que você já tinha dentro de si.É um elogio inesperado, que me enche de

orgulho e de ternura. Não sabendo bem oque fazer, refugio-me no sarcasmo:

— Então eu vou passar de ano, professor?Como resposta, ele me empurra para

baixo, pressionando minha cabeça com amão. Ressurjo com um berro e atiro-me emcima dele, mordendo seu braço. Rimos.

Então, ele deixa que eu me levante umpouco e passa a esponja nas minhas costas,massageando-me. Sabe ser terrivelmentedoce quando quer. Fecho os olhos e relaxo,acariciada por suas mãos e pelo som dasgotas que caem, lentas, na água.

— Você vai dormir aqui? — As palavrassaem da minha boca espontaneamente, sem

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que eu possa freá-las. Temo ter cometido umerro grave. Não são perguntas que podem serfeitas a um sujeito como ele.

— Vou.Arregalo os olhos. Não esperava essa res-

posta. Geralmente, os amantes não ficampara dormir. Viro-me e o olho, para verificarse está falando sério.

— Por mim não tem problema, se nãotiver para você. — Exatamente. ParaLeonardo o normal não vale.

Beijo-o com paixão, como talvez nunca otenha beijado até agora, como se ele fossemeu homem e eu fosse sua mulher, e não ex-istisse um maldito pacto nos unindo e nosseparando.

Eu não devo me apaixonar, eu sei. Mastambém não quero desperdiçar este instantede felicidade, enchendo-o de pensamentosinúteis. Quero vivê-lo. Agora.

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Vamos para a cama, cheirosos e aque-cidos pelo banho demorado. Leonardo estáaqui, na minha cama, e está aqui por minhacausa. Eu o abraço debaixo das cobertas, fel-iz de saber que amanhã de manhã ele aindaestará comigo.

Não adormecemos logo, nos mexemos nacama por um tempo, procurando-nos combeijos insaciáveis, abraçando-nos bem forte,como se quiséssemos agarrar tudo dos nos-sos corpos, até as respirações. Então, deslizosem interrupção desse estado de vigília a umsono profundo.

Às 6h45, o toque monótono do telefonearranca-me do descanso merecido. Abro osolhos e o agarro, enquanto recobro o ra-ciocínio: merda, a entrevista com a profess-ora Borraccini! Tenho que estar em Páduadaqui a duas horas. Eu pedi que minha mãeme ligasse para ter certeza de que iria

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acordar mesmo, como todas as vezes em quetenho que acordar muito cedo.

Atendo em voz baixa, tentando fazer comque Leonardo não me escute.

— Oi, mãe — murmuro, com a voz em-pastada de sono. Na ponta dos pés, arrasto-me para a sala.

— Mas por que você está falando tãobaixo? — murmura minha mãe.

— Talvez não esteja pegando bem. —Esqueço que estou falando ao telefone fixo enão ao celular, mas felizmente ela não per-cebe certos detalhes.

— Então, está acordada? Que horas é oseu trem?

Não sei, mãe. Nem sei em que mundo es-tou agora.

— Às oito — respondo, chutando.—Vai conseguir?— Vou. Estou no horário certinho. — Ou

pelo menos espero.

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— Atenção. Seja você mesma e dê o máx-imo de si, como sempre... Boa sorte, querida!

— Obrigada. Tchau.Volto ao quarto, os pés descalços no chão

frio e os arrepios da manhã que afloramcomo alfinetes na pele ainda quente. Colocoum casaco de lã maior que o meu tamanho.

Leonardo abre os olhos por um instante eos fecha logo depois, incomodado pelo raiode sol que vaza pela janela.

— Tocou um telefone? Que horas são? —pergunta, ressurgindo do sono. Está todoamarrotado, mas é bonito assim também. Jáeu devo estar um monstro, com os cabelosemaranhados e as bolsas debaixo dos olhos.

— Ainda é cedo, mas eu tenho que ir.Tenho um compromisso de trabalho. Vocêpode dormir, tranquilo. — Nem acabei dedizer aquilo e sinto uma fisgada no es-tômago, me dou conta de que já vivi umasituação parecida há alguns meses, com

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Filippo. Só que agora os papéis estãoinvertidos.

Expulso imediatamente aquelepensamento desagradável e, enquantoLeonardo continua dormindo, abro umaporta do armário. Escolho às pressas meumodelito e, com as roupas na mão, deslizopara o banheiro. Camisa branca Hermès bemjusta, calça preta cigarrete, cardigã cinza-escuro, botas de cano baixo salto três. Cubrolevemente as olheiras com o corretivo, colocoum pouco de blush e um pouco de gloss eprendo duas mechas de cabelo atrás da nuca:o visual perfeito de boa moça. Parabéns,Elena. Embora, a essa altura, você nem se-quer lembre mais o que é uma boa moça...

Volto ao quarto para pegar a bolsa e osobretudo e percebo que Leonardo está mefitando da cama, com os braços cruzados at-rás da cabeça e os olhos arregalados.

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— Não sei que horas eu volto — explico,aproximando-me —, mas você pode ficar otempo que quiser.

— Em um instante eu também vou em-bora — resmunga ele, a voz um pouco rude.Então segura minha mão e obriga-me a sent-ar na cama.

— Dê uma pancadinha quando fechar aporta, assim a fechadura destrava —continuo.

— Você é sempre bonita assim de manhãcedo? — diz, sem sequer me escutar epuxando-me para seus lábios.

Deixo um pouco de gloss neles e de re-pente Leonardo está engraçado: eu nunca otinha olhado por esse ponto de vista.

— Tchau — sussurro em seu ouvido e vouembora, tomando cuidado para não tropeçarou esbarrar com alguma coisa, como decostume.

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— Tchau — ele me diz também. — Bomdia.

Volto de Pádua por volta de uma e meia.Ainda não sei se aceitarei o cargo que mepropuseram, mas estou feliz e tenho vontadede sorrir para o mundo. Todos perceberamisso, até aquela mesquinha da Borraccini,que, esta manhã, ao me ver chegar,cumprimentou-me calorosamente:

— Bom dia, Elena. Você está realmentemuito bem. — É óbvio, fazer amor comLeonardo dá esse efeito, muito melhor queum creme alisador ou qualquer vitamina.

Percorro com passos rápidos o caminhopara minha casa, estou cheia de esperanças,na minha cabeça passa um lindo filmeromântico, com ele de protagonista: subo olance das escadas de dois em dois degraus,evito cuidadosamente o olhar de Cleliaquando cruzo com ela no corredor, abro

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devagar a porta e olho ao redor. Não hárastros de Leonardo.

Entro no quarto. Eu gostaria de encontrá-lo deitado na cama me esperando, exata-mente como o deixei esta manhã. Ainda oquero, sua pele, seu cheiro, sua energia. Nemestá aqui, mas seu perfume ficou no quarto.A cama arrumada com cuidado e, sobre ela, omanto de seda esticado de propósito. Emcima do travesseiro, uma folha de papel do-brada em dois.

Abro o bilhete e leio.

Se o bom-dia não é determinado pelamanhã, mas pela noite anterior, hoje seráum dia maravilhoso.

Até logo,Leo

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Mergulho na cama e encosto a folha nocoração. Olho o teto, sorrio e penso que éverdade: hoje já é um dia maravilhoso.

***** O tramezzino é um sanduíche típico italiano,feito com pão de forma e vários recheios. (N. da T.)****** Dialeto siciliano, que significa “Olá”. (N. da T.)

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Há dias Veneza está tomada pela loucura doCarnaval. As oficinas dos artesãos e os ateliêsde costura estão em polvorosa e a cidade estárepleta de barraquinhas que vendem más-caras, chapéus e perucas de todos os forma-tos e cores. Bandos de turistas do mundo to-do chegaram aqui. Quando essa massa degente circula pela cidade, caminhar nas ruase se deslocar de vaporetto tornam-se ativid-ades incrivelmente lentas e difíceis. É precisose armar de paciência e resignar-se à ideia deque, qualquer que seja o seu destino, você

chegará atrasado mesmo se sair com muitaantecedência.

É terça-feira e estou indo encontrarLeonardo. Nos últimos tempos, tenho ido aopalácio com frequência e, todas as vezes,gosto de encontrar o afresco, que me acolhecomo um rosto familiar. Já existe uma es-pécie de rotina entre nós, uma série depequenos hábitos que nos unem sem, no ent-anto, nos relacionar. Um exemplo são suasmensagens, que chegam de vez em quandopara ditar o ritmo dos nossos encontros,como um chamado ao prazer. “Encontre-meaqui por volta das cinco”, ele me disse on-tem. “Venha elegante e traga o manto.Vamos a uma festa particular.”

A última vez que me fantasiei eu tinha 12anos, eu vestia uma roupa de Pierrô, meurosto estava coberto pela maquiagem e eusentia a insegurança de uma criança que nãoé mais criança, mas ainda não é mulher. Eu

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sentia um pouco de vergonha, embrulhadanaquela roupa que não era minha, e lembroque só consegui me divertir mesmo apenasquando esqueci que a estava usando.

Para esta noite, porém, coloquei umlongo vestido de seda azul-escuro e jogueinos meus ombros o armuscinu de Leonardo.Não vejo a hora de mergulhar com ele nessaatmosfera carnavalesca tão inebriante echeia de expectativas. Dizem que nas festasque são dadas em alguns palácios particu-lares durante o Carnaval de Veneza acontecede tudo. Eu nunca estive numa e, se por umlado sinto um pouco de medo, o fato de estarcom ele me faz sentir segura.

Cumprimento o afresco e subo ao quartode Leonardo. Está terminando de se arrumare eu fico olhando-o, apoiada ao umbral daporta. Colocou um smoking preto reluzente,elegantíssimo, e, por cima, um manto deseda verde-escuro, muito parecido com o

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meu. Esse jeito de se vestir dá um toque es-pecial em sua beleza misteriosa.

Vem ao meu encontro e me cumprimentacom um beijo.

— Você está perfeita — diz, admirando-me —, mas ainda falta alguma coisa. — Entãotira do armário uma máscara maravilhosa,estilo Colombina, e a coloca em meu rosto.

— É fantástica — comento, olhando-meno espelho. Cobre os olhos e boa parte dasbochechas, deixando de fora somente a boca.

— Eu a comprei em Nicolao. Especial-mente para você.

Não me atrevo a pensar quanto vale. Éuma autêntica máscara veneziana de papelmachê, feita à mão, revestida por um pre-cioso veludo branco decorado com bordadose arabescos. Em um lado, na altura da têm-pora esquerda, estão presas uma rosa deseda branca e uma pluma prateada macia.

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Leonardo amarra-a atrás da minha nucae coloca uma máscara também. A sua é todabranca e sem enfeites, estilo Baùta dos anos1700. Cobre todo o seu rosto e alarga-se nadireção da boca.

Agora não somos mais nós mesmos e, at-rás de nossos novos rostos, estamos prontospara sair para o mundo.

A noite está cinza e úmida, e é provávelque chova, mas não precisamos do sol. Den-tro de mim reina uma alegria persistente enão ligo nem se meus cabelos enrolarem.Nós nos jogamos na multidão e atravessam-os a cidade em festa, perdendo-nos em umaprofusão de músicas, cores, plumas, véus,guizos e algazarras. Os estudantes da Aca-demia de Belas-Artes improvisam cabinesmóveis de maquiagem artística e divertem-setransformando os rostos das pessoas compinceladas coloridas e cascatas de pó cintil-ante. Há caos e euforia por toda parte.

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Eu e Leonardo fazemos uma parada numquiosque para comer uma frittella******* deabóbora. As frittelle venezianas têm umsabor divino, aquele doce que não enjoa e daboca desliza diretamente para o coração. An-damos sem rumo, deixando que a correntealegre nos leve, ou simplesmente seguindo ainspiração do momento.

Ao chegarmos à Piazza San Marco, to-pamos com o desfile das Marias. Como todosos anos, nas semanas que precedem oCarnaval, na cidade houve uma espécie deconcurso entre as belezas locais para escolh-er as 12 Marias que exibirão, então, seus en-cantos no cortejo da terça-feira de Carnaval.Daqui a poucas horas haverá a proclamaçãooficial da vencedora, a “Maria do ano”, quereceberá um generoso prêmio em dinheiro.Há uma disputa acirrada entre as venezianaspara conquistar um lugar na participação.Até o ano passado, Gaia também competia:

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graças aos seus fortíssimos conhecimentos,sempre encontrou um jeito de entrar nogrupo das 12 finalistas, mas nunca ganhou,talvez porque o presidente do júri preferisseas morenas. Um fiasco terrível, que aconte-ceu também quando teve que parar porquehavia ultrapassado o limite de idade. Feliz-mente, a minha falta de jeito não combinacom a ideia de um concurso de beleza, e meucaráter inseguro me mantém afastada dequalquer forma de competição.

Margeando a ponte dos Suspiros, en-tramos por uma rua escondida e, em poucospassos, estamos diante da entrada do palácioSoranzo.

— A festa é aqui? — pergunto, arrumandoa máscara sobre os olhos.

— É — responde Leonardo, com um sor-riso diabólico.

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Um mordomo um pouco sui generis,vestido de Médico da Peste, de máscara comum nariz comprido parecido com o bico deuma cegonha, abre o portão para nós e nosconvida a entrar, salpicando-nos de confetesde papel prateado. Parece que entramos emoutra dimensão, até os confetes são difer-entes dos lá de fora.

Atravessamos o jardim, passando de-baixo do caramanchão. A hera de folhas lar-gas se apropriou do muro, colorindo-se denuances amarelas e vermelhas. Alguns mas-carados param nos contornos do pátio, out-ros brincam de se esconder entre as estátuasrecobertas de musgo, riem e correm atrásdos outros ao redor da fonte com as estátuasde meninos. Tudo é magia, encanto, sedução.

Daqui entramos no palácio e imediata-mente somos envolvidos numa atmosfera deluxúria louca. Que entre essas paredes,porém, parece a condição mais natural do

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mundo. Há uma confusão de gente e umabarulheira de vozes e sons. Quase todosusam máscaras e parecem eufóricos. Ho-mens que beijam homens fantasiados demulher, moças que expõem seios e nádegassem vergonha, pessoas que dançam em cimadas mesas e dos sofás de veludo, amantesque se afastam para cantos escuros, bocasque entornam garrafas de vinho, línguas quese procuram, mãos que exploram. É carnav-al: não existem freios, não existem limites e aúnica coisa lícita é transgredir. Sabe-se lá seeu estarei à altura! Sinto-me quase uma in-trusa, embora — admito — este clima deliberdade total tenha me seduzido um pouco.

Encantados, passamos por algumas salasaté chegarmos ao salão central. Num mez-anino iluminado por luzes psicodélicas está amesa de som do DJ. Eu o reconheço. É Tom-maso Vianello, nome artístico Tommy Vee.Íamos juntos para o colégio na época do

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ensino médio — eu estava no primeiro ano,ele no quarto — e eu era louca por ele, masnunca tive a coragem de lhe dizer. Eu ocumprimento com um gesto da mão, ele re-tribui piscando para mim, mas duvido deque tenha me reconhecido de máscara,pensando bem agora. Neste momento estátocando seu carro-chefe, o Rondò Venezianoem versão remix. É música estilo Gaia, masaté que eu gosto também, é irresistível, temum ritmo que contagia e não deixa ninguémficar parado. As pessoas agitam-se, os movi-mentos são cada vez mais frenéticos.

No meio da sala, um grupinho de moçasde roupas curtas se empolga numa dançasensual, capturando a atenção dos convida-dos. Em volta delas logo se forma uma roda etodos se tornam espectadores de seu númeroimprovisado. Leonardo envolve minha cin-tura por trás e, tirando a máscara, apoia orosto ao meu, fazendo com que eu me mexa

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em seus braços no ritmo da música. Nãoconsigo tirar os olhos das garotas, estou fas-cinada: talvez elas estejam fazendo uma ver-dadeira coreografia. Uma em especialdestaca-se entre as outras, não posso deixarde notá-la. É uma mistura encantadora deum anjo e uma serva, uma Salomé modernade corpo descaradamente perfeito. Usa umvestido curtíssimo e semitransparente devéus brancos, os cabelos loiros presos nanuca, e entre as mechas uma correntinha destrass que se fecha com uma gota na testa.Dá uma volta leve, ficando na ponta dos péscom elegância. Tudo nela é suave e livre,cada movimento encanta e conquista.

De repente tira a máscara, exibindo doisolhos verdes estonteantes, destacados pelamaquiagem chamativa. Os olhares de todosdirigem-se a ela e a perseguem. As outrasdançarinas se dispõem em um semicírculo,deixando-lhe o centro da cena. Salomé é

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segura, deixa-se guiar por seu corpo semmedo, acompanha a música, desafiando-a.Quando passa diante de nós, cruza com meuolhar e pisca o olho para Leonardo. Viro-mee vejo que ele lhe está sorrindo. Não sintociúmes. É tão bonita que eu também tenhovontade de sorrir para ela.

— Você a conhece? — pergunto-lhe.— O nome dela é Claudia — diz, em tom

neutro, sem malícia. — Eu a vi no restaur-ante algumas vezes.

Eu queria perguntar melhor sobre ahistória deles, mas Leonardo não me dátempo de falar e chama minha atenção paraela. Claudia chegou agora até o Mouro nocanto do salão e, como se ele fosse umhomem de carne e osso, começou a seduzi-locom movimentos virtuosos da pelve. Então,agarra-se ao pescoço da estátua e, tomandoimpulso sobre a ponta dos pés, senta-se eleg-antemente em seu ombro, como uma rainha

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no trono. A música para e do públicolevanta-se um forte aplauso seguido por umagrande gritaria. Salomé desce dos ombros doMouro, faz duas piruetas e uma reverênciaaos espectadores, enquanto um Arlequimtoca levemente seu rosto com uma rosa ver-melha. Soberba, segura a haste entre osdentes e se afasta sorrindo.

Meu Deus, aquela mulher tem umcharme irresistível, até sobre mim. Não meatrevo a imaginar os pensamentos dos ho-mens. Estou arrebatada, não consigo des-grudar os olhos dela... E ela, agora, move-seleve justamente em nossa direção, sorrindopara Leonardo.

— Bem-vindo, Leo — ela diz, com um sor-riso fascinante, tocando seu rosto com os lá-bios. Ainda está com a respiração um poucoofegante e pequenas gotas de suor reluzemem sua pele. Depois se vira para mim. —

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Bem-vinda também... Qual o seu nome? — Adeusa percebeu que eu existo.

— Prazer, Elena — respondo, apertandosua mão.

— Espero que gostem da noite... — Estáme estudando. Tem uma luz estranha nosolhos.

— Claro — eu digo, um poucodesorientada. — Vê-la dançar, há pouco...Você estava maravilhosa... Ou melhor, émaravilhosa.

— Obrigada. — Ela está acostumada comos elogios. Levanta minha máscara e me ob-serva com curiosidade. — Quando é umamulher como você que diz isso, gosto maisainda. — E suas palavras criam em mim umaestranha perturbação que não sei decifrar.

— Temos os mesmos gostos, Leo. E nãosó em relação à comida — continua, com umolhar alusivo.

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Acho que não captei bem o comentário,mas vejo que Leonardo lhe sorri. Ele, por suavez, parece ter entendido tudo.

— Elena e eu trouxemos algo para fumar.Você pode se juntar a nós se quiser.

Elena e eu? Fumar? Eu não estavasabendo de nada e dou-lhe uma olhada es-pantada que, porém, ele ignora.

— Agora eu ainda tenho que fazer umacoisa — responde Claudia, que parecetentada —, mas procuro vocês depois. Nãosumam... — E, dando-nos um último sorrisomalicioso, mergulha na multidãonovamente.

Olho Leonardo, em busca de explicações.— É uma de suas amantes? — pergunto-

lhe sem perder tempo. Levanta uma das so-brancelhas, o olhar divertido.

— Não, pelo menos até esta noite...— O que você está pretendendo fazer? —

eu me alarmo.

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— Realizar suas fantasias, como sempre— responde, com o ar dócil de um tigre en-jaulado. — Eu vi como você a olhava hápouco.

— E como eu a olhava?— Como me olha.Fico roxa.— Porque ela é linda, não é? Mas imagino

que você também deve ter reparado, ou es-tou enganada? — digo, para me justificar.

— Por acaso você já beijou uma mulher?— Seus olhos são agulhas finas que meespetam.

— Na verdade, não.— E nunca teve vontade? — Ele está me

desafiando.— Não...— ...Pelo menos até esta noite — conclui

minha resposta.— Agora chega — digo, colocando o dedo

na cara dele —, pare com isso agora mesmo.

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Ele ri alto, sem se preocupar com as min-has censuras, agarra minha mão e me leva aobar, onde pede duas taças de champanhe. Eubebo pensando naquela mulher que, tenhoque admitir, me provocou certa confusão.Então olho Leonardo e me pergunto se elerealmente tem a intenção de me empurrarpara os braços dela. Não, eu nunca o deixariafazer uma coisa dessas, digo a mim mesma.Ainda assim, a euforia do lugar é contagiosa,faz com que se pense que, pelo menos estanoite, tudo pode acontecer.

Leonardo e eu vagamos um pouco noslabirintos do palácio, depois entramos emuma salinha semiescura. Algumas pessoasclaramente altinhas estão se entusiasmandopor causa de algum assunto que não consigointuir. Suas vozes se revezam com a músicaque invade tudo e não reparam em nós, quenos sentamos no sofá atrás deles. Tiramos as

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máscaras, do bolso de Leonardo surge umbaseado já pronto, que ele acende. Uma es-piral de fumaça com um odor um pouco pen-etrante faz cócegas nas minhas narinas. Temcheiro de feno queimado. Leonardo dá umatragada e depois me passa. Eu olho para eleincerta, nunca fumei sequer um cigarro, quedirá um baseado...

— Vamos — ele me anima. — Só umatragadinha, depois você toma ar nos pulmõese sopra para fora.

Tudo bem, vou experimentar. Obvia-mente a primeira tentativa é um desastre: afumaça fica engasgada na garganta e chegaaos pulmões como uma facada. Tusso atémeus olhos saltarem para fora, sob o olhargozador de Leonardo. Experimento de novo,e na segunda tentativa já me saio melhor. Naterceira eu já sou uma profissional. Fecho osolhos e coloco o baseado entre os lábios, as-pirando devagar. Seguro a fumaça por dois

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segundos, saboreando seu gosto proibido,depois a deixo sair, e uma nuvem densa seesvai diante do meu rosto. Gosto dessecheiro, a cabeça roda e os músculos serendem. Ajeito-me melhor no encosto dosofá e me abandono a uma doce sensação detorpor. Depois passo o baseado paraLeonardo. Encaixando-o entre os dedos mé-dio e anelar, fecha a mão em punho e aspiraforte. De repente o mundo à minha volta estádistante, sinto a cabeça leve e acho que umsorrisinho de plenitude está estampado emmeus lábios. Perco o contato com a realid-ade. E gosto disso. Subitamente me viro eClaudia está ao meu lado.

— Oi — digo-lhe, um pouco surpresa.— Oi — responde ela, suave, pegando o

baseado que Leonardo está lhe passando de-baixo do meu nariz. Observo os lábios deClaudia pousarem em volta do filtro e depoisse abrirem um pouco para deixar sair um

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fino vestígio de fumaça. São carnosos, queriatocá-los.

— Julgando pelo efeito que tem em você,essa erva deve ser das boas. — Coloca umamecha do meu cabelo atrás da orelha.

— Bem, é a primeira vez que fumo... Nãosaberia dizer, mas gosto muito — respondo,enquanto sinto todas as resistências e todosos constrangimentos deslizarem para fora domeu corpo.

Claudia olha Leonardo, achando graça.— Sua amiga é uma graça. — Então fita

nós dois. — Vocês dois são tão bonitos que eunão saberia quem escolher, na verdade.

— Mas você não tem que escolher... — re-sponde ele, simplesmente. Antes que o sen-tido dessa resposta fique claro para mimtambém, sinto lábios pousando em meupescoço. E não são de Leonardo. Porém sãomacios e sensuais como os seus, e nem porum instante tenho o instinto de me livrar

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deles. Sinto que algo está prestes a aconte-cer, estou prestes a ser arrastada por umaonda e não tenho nenhuma intenção de detê-la. Viro-me para Claudia e cruzo com seu ol-har lânguido. Aspira um pouco de fumaça edepois sopra na minha boca, pousando os lá-bios sobre os meus. A fumaça chega até ofundo, dissipando-se em algum lugar dentrode mim. O que resta é sua boca pequena ecarnuda e sua língua se mexendo contra aminha. Este beijo é bom, me dá sensaçõesdiferentes de qualquer outro, e enquantoLeonardo me abraça por trás sinto que issotambém é um presente dele. E é natural,como tudo o que fiz com ele, mas que nuncahavia sequer sonhado em fazer.

Claudia solta-se de mim e agora procuraLeonardo. Trocam um beijo voraz bem de-baixo dos meus olhos, mas não sei por quenão sinto ciúmes. Sou seduzida pela excit-ação deles e de tudo o que tinha sentido

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antes — palavras, pensamentos, princípios —parece não ter restado mais nada.

— O que vocês acham de irmos para umlugar mais tranquilo? — propõe ela, de re-pente. Sem esperar a resposta, levanta-se dosofá e pega uma de minhas mãos. Eu logoprocuro o olhar de Leonardo e ele pega aoutra. Sorrimos um para o outro, completa-mente cúmplices, e seguimos Claudia. Soudona de mim mesma, agora: sei o que estápara acontecer.

Subimos ao andar de cima e chegamos aum corredor comprido, iluminado por poucaluz, para onde dão diversas portas. Claudiasabe bem aonde ir e abre uma, deixando-nosentrar.

O quarto está envolvido pela penumbra,os contornos das coisas confundem-se comoas emoções que agora se agitam dentro demim. No centro há uma cama com dossel e,num canto, uma grande vela preta em forma

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de pirâmide está queimando em um cande-labro, difundindo um aroma de incenso noar. Claudia vira-se para nós. É maravilhosa,parece uma daquelas estátuas de mármoreda Grécia clássica. Tocando com suavidademeu pescoço, aproxima-me de Leonardo enos convida a nos beijarmos. Enquanto isso,acaricia meu ombro, descendo lentamenteaté meu seio. Sua mão é leve sobre a minhapele. É diferente, quente, delicada. Afasto-me de Leonardo e a olho. Seus olhos verdesme seduzem, me atraem como ímãs. Umachama acendeu-se inesperadamente e estáderretendo toda as minhas inibições. Minhaboca, sem que eu possa controlá-la, pousatímida sobre a de Claudia. Nossos lábios semisturam, úmidos, nossas línguas se entre-laçam, enquanto as mãos fortes de Leonardodeslizam sobre nossos corpos ardentes,abraçando-os.

Estou beijando uma mulher.

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Uma desconhecida.E meu homem a está tocando, aqui, junto

comigo.Não há mais nenhum rastro da Elena de

antigamente, não agora.De repente Claudia se solta. Segurando

minha mão, beija Leonardo, depois voltapara mim. Suas salivas confundem-se naminha boca sedenta de prazer. Leonardo, en-quanto isso, está acariciando seus seios ecom as mãos já abre os botões que fechamseu vestido na frente. O corpo de Claudia éliso, esguio, precioso: descobre-selentamente, entregando-se aos nossos ol-hares. Ele tira a roupa dela e um instante de-pois tira a minha. Depois eu e Claudiatiramos a dele.

Agora, nós três estamos completamentenus. A visão destes dois corpos tão difer-entes, tão perto de mim, tão vivos, me pro-voca uma pontada de excitação. Do salão de

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baixo os gritos e a música chegam até nósatenuados, os únicos ruídos são nossas res-pirações. Deitamos na cama, afastando os te-cidos adamascados, três amantes, três dese-jos que se encontram. Apenas para gozar.

Claudia vem ao meu encontro e me con-vida a ousar: sua linguagem corporal, estápedindo para eu me entregar, para eu sersua. Suas pernas, quentes e dominantes,abrem-se na minha frente, sua carne estácontra a minha. Está molhada. Lambe meusseios, esfregando seu sexo no meu, enquantoLeonardo se deita ao meu lado e me beija.Depois trocamos as posições e agora eu estouem cima dela, porque não resisto à vontadede experimentar seu seio. Nesse meio-tempo, as mãos de Leonardo vão entrandosuavemente em mim. Seu olhar, no meio docaminho entre severo e malicioso, perguntase serei capaz de gozar. Se saberei jogar.Agora seus dedos dão espaço aos de Claudia,

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que acariciam, experientes e quase con-hecidos, enquanto ele agarra minha mão e aleva para entre as pernas dela. É uma aber-tura quente e escorregadia, convidativa. Hes-itando, enfio meus dedos e exploro. Meusmúsculos se derretem, minha mente seliberta e finalmente eu a possuo e me deixopossuir.

É a minha primeira vez. É a minha noite.Mas é Leonardo quem guia nossos gestos,quem dosa nosso prazer. Antes que possam-os chegar ao ápice, ofegantes e suadas, elenos separa, beijando alternadamente nossosseios. Então leva Claudia a beijar o meu, en-quanto ele a penetra por trás. Sinto os lábiosdela apertando em volta do meu mamilocada vez com mais força, à medida que oprazer aumenta. Vem para cima de mim,afundando o rosto entre meus seios, e eu aabraço forte, gozando seu orgasmo,

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enquanto meus olhos encontram os deLeonardo, dominados de luxúria.

Claudia levanta-se do meu peito, aindamais bonita com as bochechas vermelhas eos olhos brilhantes, e abandona-se na cama,satisfeita, ainda procurando nossas mãos.

— Agora é a vez de vocês — diz, olhando-nos. Pousa docemente dois travesseiros em-baixo da minha cabeça, depois me amarra àcabeceira de ferro batido, rasgando duas bar-ras de seu vestido. Leonardo deixa que elafaça, satisfeito.

Chega delicada, me seduz, me deseja.Aquele seu jeito de me observar faz com queeu me sinta uma deusa, enquanto escorregasilenciosa com a cabeça entre minhas pernas.E meu ventre prepara-se para um dilacer-ante, catastrófico prazer. Não existe maisnenhuma Elena, existem somente os meussentidos, a língua dela, suas mãos e as de

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Leonardo. Sou um corpo recebendo, sou peleque fala e escuta.

É nesse momento que convido Leonardocom os olhos a se deixar lamber, a ereção re-luzente e inchada de prazer. Agora ele estáem cima de mim, dentro da minha boca.

Claudia ainda permanece alguns in-stantes com a língua dentro de mim, depoisdeixa Leonardo me preencher, seu pau duro,seu impulso conhecido. Nossos corposfamintos se misturam, se procuram e se pos-suem, atiçados pelo olhar sensual de Claudia.É ela quem me beija agora, deslizando asmãos pelo meu seio, até o meu clitóris, ondeLeonardo ainda pressiona. Ela acaricia nósdois, gozando junto conosco e por nós, e seuprazer amplifica sem limites o nosso.

O orgasmo vem imediatamente e trans-borda como um rio na cheia, esguicha pelosmeus olhos, colore meus lábios, incendeiaminha garganta. É ar novo para meus

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pulmões, sangue novo para minhas veias,emoção nova. E Leonardo está comigo, tam-bém extasiado, também rendido ao emaran-hado de corpos que somos agora.

Deitamos na cama e nos abraçamos maisuma vez, cúmplices, exaustos.

Quando saímos daquele palácio, estoudesorientada, parece que perdi todos os pon-tos de referência e demoro um pouco a re-conhecer o mundo do lado de fora.Despedimo-nos de Claudia, nossa compan-heira de viagem por uma noite, e não há con-strangimento, apenas uma agradávelsensação de sossego depois da tempestade.Eu e Leonardo nos encaminhamos para casa.Não falta muito para a aurora. Sua luz fracacomeça a clarear levemente o céu sobre nós.A noite, por sua vez, continua envolvendo aterra.

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Com passos lentos, entramos em umcenário pós-bélico, as ruas estão invadidasde resíduos da festa: montanhas de lixo, gar-rafas, papel e corpos cambaleantes. Viraramo mundo de cabeça para baixo e agora custaa se colocar de pé novamente. No mesmomomento nós nos viramos, nos olhamos enos reconhecemos um no outro. Não temosmais as máscaras, nós as esquecemos lá. Sor-rio. Para a vida, para a noite que está mor-rendo, para a loucura que está se esvaindo,para todas as máscaras das quais me des-nudei, para o corpo de mulher que experi-mentei. Sorrio para Leonardo, agradecida.Sem ele isso nunca teria acontecido.******* Espécie de bolinho doce frito. (N.da T.)

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Às nove e meia da manhã, Piazzale Roma éuma agitação de gente, carros, ônibus escooters partindo ou chegando: a linha defronteira entre a Veneza dos canais e o interi-or com as ruas asfaltadas. Estou aqui porqueLeonardo decidiu me levar às colinas de Tre-viso e deveria passar para me buscar com umcarro alugado. Não sei bem aonde vamos, seiapenas que tem que encontrar um produtorde vinhos.

— Um compromisso do trabalho, mas eugostaria que você viesse comigo — ele medisse uma noite, enquanto estávamos na

cama. Claro que aquilo me animou, mas ten-tei o máximo possível disfarçar. Desde quenos conhecemos, nunca saímos da cidade enunca passamos um dia inteiro juntos.

Estou há alguns minutos da área de esta-cionamento permitido e continuo olhando aoredor para tentar entender de onde ele vaisurgir, mas a confusão é tal que não consigover além de um raio de dois metros. De re-pente, uma buzinada rápida me faz virar. Láestá. É ele, a bordo de um BMW X6 branco,lustrado. Encosta, ligando o pisca-pisca. Semsair do carro, estica-se para abrir a portapara mim por dentro e me pede para entrar.

— Está pronta? — Estala um beijo suavena minha boca e engrena a primeira.

— Estou. — Afivelo o cinto de segurança,apoiando-me no assento de couro.

Leonardo coloca o Ray-Ban preto e pres-siona o acelerador ao máximo, entrando naPonte della Libertà, que liga Veneza à terra

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firme. O sol pálido de fevereiro brilha sobre aLaguna e algumas revoadas de gaivotaspontilham o céu de branco.

Noto que o velocímetro já está chegandoaos cem quilômetros.

— Cuidado que você pode levar umamulta... — Digo, apenas para induzi-lo a an-dar mais devagar, na verdade: a velocidadesempre me provocou um pouco deansiedade.

Leonardo começa a rir e acaricia minhacoxa para me tranquilizar. Depois desliza osdedos no painel e liga o rádio.

— Vamos colocar um pouco de música,assim você relaxa. — É desenvolto e segurode si na direção. Como em todo o resto.

Começa a tocar Starlight, do Muse.Ficamos em silêncio um tempo escutando acanção. Então, no refrão, Leonardo começa amexer a cabeça no ritmo e cantarola junto,

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tamborilando com os dedos no volante comose fosse uma bateria.

— Você é afinado... — comento, irônica.Ele me espia com o canto do olho.— Está de gozação com a minha cara?— Estou.— Olha que eu deixo você na primeira

parada, abandono você como um cachor-rinho... — ele me ameaça, enquanto entra naestrada para Treviso, e desarruma meucabelo.

— Onde estamos indo, exatamente? —pergunto, penteando-me com as mãos.

— A Valdobbiadene, na terra do Prosecco.Os Zanin são importantes fornecedores dorestaurante e têm uma adega incrível. — Tiracom um dos dedos uma mecha rebelde queestava cobrindo sua visão.

Os Zanin. Eu me lembro dessesobrenome. Também estavam na noite da in-auguração, quando Leonardo era pouco mais

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que uma fantasia na minha cabeça. Desdeaquela época aconteceu o inacreditável equase não me parece verdade estar aqui,agora, no carro junto com ele.

— Você tem que comprar coisas para orestaurante? — pergunto, olhando a pais-agem passar pela janela.

— Sim. Queríamos propor aos nossos cli-entes algo especial, um Cartizze de qualidadesuperior.

— Eu achava que eram seus funcionáriosque cuidavam disso — comento, lembrando-me de uma frase que ele disse alguns mesesatrás.

— Hoje não. Eu vou cuidar disso — re-sponde, com voz segura. — Eu queria daruma volta fora da cidade com você.

Não há provas para passar, não há de-safios, hoje. Só eu e ele, e um dia inteiro paraficarmos juntos. É uma promessa de normal-idade numa relação que é tudo menos

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normal, uma exceção à nossa rotina feita desexo e encontros fugazes, e aquilo me enchede alegria. Leonardo está me presenteandocom a ilusão de sermos um casal de verdade.

Coloca o endereço preciso no GPS.— Daqui a quinze minutos devemos

chegar.Olho-o e me sinto completamente per-

dida. Não tenho ânsias, nem desejos, nemexpectativas. Este momento me pareceperfeito.

— Leo?— Sim... — Gira o rosto em minha

direção, surpreso. É a primeira vez que ochamo assim.

— Estou feliz. — Queria dizer muito mais,mas não tenho coragem.

Ele me olha um pouco incerto, eu opeguei de surpresa.

— Estou feliz que você esteja feliz — diz,com um sorriso suave, e também sorriem as

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ruguinhas de expressão aos lados de seusesplêndidos olhos escuros. Então, volta ime-diatamente a se concentrar na direção.Chega, não devo ir em frente, já entendi.

A visita aos Zanin é agradável e dura amanhã toda. O proprietário, um homem porvolta dos sessenta anos, de bom porte e eleg-ante como um lorde inglês, nos mostra a pro-priedade com as vinhas e as plantações.Então, explicando-nos os métodos de cultivodas uvas, nos introduz na adega. Enquantoele e Leonardo discorrem sobre taninos, cri-ação da espuma, fermentações e perlage —assuntos sobre os quais o sentido intuoapenas superficialmente —, eu passeio pelasfileiras de barris, que me parecem enormesventres afermentando. Por fim, Zanin nosmostra com orgulho as paredes de garrafasonde o Prosecco descansa antes de ser con-sumido e nos oferece uma degustação de

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vinhos de qualidade, acompanhada por algu-mas porções de pão e frios locais.

Mais tarde, enquanto eu brinco com oscachorros da casa, uma pointer fêmea e seusdois filhotes, Leonardo conclui sua nego-ciação. Então nos despedimos de Zanin e va-mos embora.

Entramos no carro e percorremos nova-mente aquela magnífica estrada panorâmicaatravés das colinas. Embora ainda seja fever-eiro, a temperatura do início da tarde éamena e convida a ficar ao ar livre.

— O que acha de darmos uma voltinha?— Leonardo me pergunta. Eu estava tor-cendo para que me perguntasse.

Deixamos o carro numa pequena clareirae seguimos a pé, tomando uma estradinha depedra ladeada por uma aleia de vinhas. Mor-ar em Veneza nos faz esquecer de que existeuma terra firme, sólida, espaçosa, que

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existem verdadeiras estradas nas quais cam-inhar, além das pontes sobre os canais. Operfil da colina é doce, desce suave emdireção ao vale, encontrando uma fileira deimensos ciprestes. É uma paisagem encanta-dora, preenche o coração de paz epensamentos relaxantes. Eu e Leonardo a at-ravessamos em silêncio, de mãos dadas. Res-piramos a plenos pulmões, inalando o cheirode grama e terra úmida. De repente, umtoque gélido me acerta uma bochecha.

— Está chovendo. — Levanto o olhar parao céu, que no horizonte ficou preto. — Sentiuma gota...

Leonardo ergue uma mão com a palmavirada para cima.

— Agora outra. — Toco minha cabeçapara ter certeza de que não estou sonhando.— Será possível que só eu estou sentindo?

— Agora eu senti também — diz ele,fechando a mão sobre uma gota d’água.

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Após poucos minutos o céu fica com-pletamente nublado e começa a chover acântaros. Parece uma antecipação daprimavera, um daqueles aguaceiros que nossurpreendem em março.

— O que fazemos agora? — pergunto, de-cepcionada. Estou triste que nosso passeiotermine assim. Estou triste porque sei que éuma ocasião rara, talvez até única...

Leonardo cobre minha cabeça com suajaqueta de couro.

— Estamos longe demais para voltar parao carro. — Olha ao redor para procurar umasolução. — Venha. Vamos correr até ali — eleme diz, indicando uma construção a distân-cia, uma casa rural vermelha, isolada domundo, no meio do vale. De mãos dadas,corremos por uma centena de metros de-baixo da chuva violenta. Água por todo lado,parece que estamos nos mexendo nummundo líquido. Não precisava, mas este

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temporal inesperado tem todo o sabor deuma aventura.

Chegamos à cobertura externa da casa enos abrigamos. Estou sem fôlego e enchar-cada. A camisa de Leonardo, transparente,gruda no seu peito, toda ensopada de água,os cabelos e a barba avermelhada pingam.Eu o olho e tenho vontade de rir, mas umfrio repentino me atinge pelas costas,sacudindo-me toda e fazendo com que euaperte os braços no peito. Leonardo me ab-raça e me aquece com seu corpo.

— Este lugar parece habitado — observa,notando luzes na casa. — Tocamos acampainha?

— Não sei... Você acha que é o caso?Nesse meio-tempo um senhor idoso, alto

e magro, surgiu de uma espécie de palheiroao lado do casario e vem correndo em nossadireção, segurando um cesto cheio de radic-chio vermelho. Deve ser o dono da casa.

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Antes que possa se alarmar, Leonardo ocumprimenta com um gesto da mão.

— Olá. O senhor queira nos desculpar,mas aproveitamos sua varanda para nosabrigarmos.

— Mas o que estão fazendo aí embaixo?Venham para dentro, por favor — rebateimediatamente o homem, com um tom quenão admite recusa e nós, depois de umrápido olhar, o seguimos. — Venham aquipara o calor caso contrário vocês podem pas-sar mal — ele nos convida, abrindo a portada casa para nós.

Lá dentro o ambiente é gracioso e acol-hedor, decorado com móveis de estilosimples e essencial, que parecem vir de outraépoca. Respira-se um cheiro bom, de essên-cias aromáticas e madeira, típico das casasde campo, e há plantas ornamentais e floresfrescas em alguns cantos.

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Nosso anfitrião sem nome nos leva à co-zinha, onde uma mulher por volta dossetenta anos está ocupada no fogão.

— Adele, temos visitas — diz em voz alta,pousando o cesto na mesa. A mulher vira-see nos recebe com um olhar curioso. — Boatarde.

— Eles ficaram completamente encharca-dos e se protegeram na varanda, coitadinhos— continua ele, mostrando nossas roupasgotejantes.

Adele nos acomoda diante de uma grandelareira, onde crepita um fogo vivo.

— Venham, sentem-se aqui, noquentinho. — Sua voz é delicada, como asmãos claras e enrugadas. Mãos que trabal-haram uma vida inteira.

— Obrigado — respondemos falandojuntos.

Estou tocada com tanta gentileza. Eu nãosei se aceitaria tão facilmente um estranho

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em casa. Mas, principalmente, sou arre-batada pela atmosfera serena e calma que serespira aqui.

— Vou ver se acho algumas roupas secaslá em cima — diz Adele, e com passos lentosdirige-se à escada.

— Não se preocupe, senhora... — Tentodetê-la. — Vocês já foram gentis até demais!

— Isso, Adele, vai — incita o marido —,eles não podem é ficar molhados desse jeito!

A mulher desaparece no andar de cima eo homem senta-se ao nosso lado, esquenta asmãos diante da chama e nos pergunta nossosnomes.

— Eu sou Sebastiano — apresenta-se, en-tão —, mas aqui todos me chamam de Tane.

Pede que contemos de onde estamosvindo e como fomos parar por esses lados.Parece sinceramente contente de nos teraqui, observa-nos com os olhos sinceros dequem na vida aprendeu a escutar.

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Pouco depois, Adele volta com dois ca-bides onde estão penduradas roupas limpas,simples e um pouco fora de moda.

— Peguem, eram dos meus filhos. Foi omelhor que consegui encontrar — diz,estendendo-as. — Se quiserem pendurar assuas perto do fogo... Assim secarão maisrápido.

Não faz nem meia hora que a conheço,mas já tenho vontade de abraçá-la.

— Se precisarem do banheiro, é ali atrás— explica, indicando uma porta no corredor.

— Muito obrigado, Adele, vamos ser bemrápidos — responde Leonardo e, pegando-me pela mão, me leva para fora da sala.

Nós nos trocamos às pressas. Visto umacalça jeans que fica larga e um velho casacode felpa de listras coloridas da Benetton, en-quanto Leonardo coloca um pulôver de lã euma calça de veludo canelada. Ele me dáuma olhada carinhosa e sapeca um beijo

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doce na minha testa, assegurando-se de queeu esteja bem. Antes de sair, paramos ummomento diante do espelho, um ao lado dooutro, sorrindo da nossa nova versão.

Depois voltamos à cozinha e arrumamosnossas roupas em cima de duas cadeiras, emfrente à lareira. Adele nos oferece um copode vin brulé e uma fatia de torta de maçã.

— E o senhor não vai comer? — perguntaLeonardo a Sebastiano.

Ele balança a cabeça.— Tenho diabete. Essa tirana aqui me

deixa passar fome. — E com a mão procurasua mulher, que a prende nas suas, rindo. Háuma doçura infinita no modo se olham, umamor sólido, incondicional, que ambos pare-cem ter aceitado como um destino. Leonardoe eu trocamos um sorriso fugaz. Talvez es-tejamos pensando a mesma coisa, que Adelee Sebastiano são um espetáculo raro e queprovocam uma ternura imensa enquanto se

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dão as mãos. Mas não sei se ele também estásentindo inveja deles, se, como eu, está seperguntando o que o futuro reservará a nósdois.

— Há quanto tempo são casados? —pergunto.

— Há 52 anos — respondem ao mesmotempo.

— E você, quando pretende que seunamorado se case com você? — Adele mepergunta sem rodeios. — Perdoe-me, senhor-ita, mas vi que não usa aliança no dedo... Poracaso está querendo que ele fuja? —repreende-me, afavelmente.

Estou para responder que não, que ela es-tá enganada, que na realidade não somosnem um casal, mas, antes que eu possapensar uma resposta, Sebastiano meprecede.

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— Deixe-os em paz, querida, assim elesficam embaraçados... De longe se vê oquanto estão apaixonados.

Meu coração quase para. É apenas umafrase, dita com extrema ingenuidade, mastem o efeito devastador de uma bomba. Aosolhos deste estranho é evidente o que nósnunca quisemos ver e suas palavras tornamirremediavelmente real o que nós sempreconsideramos impossível. Não ouso me virarpara Leonardo, mas o escuto se levantar deum pulo e afastar-se da lareira, como sequisesse fugir. Aproxima-se de um móvelonde estão expostas algumas fotografias ecomeça a olhá-las, ficando de costas paranós.

— São seus filhos? — pergunta, pegandoum porta-retratos nas mãos e mudando deassunto com uma naturalidade que aos meusolhos, dessa vez, não consegue fingir bem.

Adele vai até ele para lhe dar explicações:

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— Este é Marco, o mais velho, trabalha naAlemanha. E esta é Francesca, que mora emPádua com o marido.

— Aqui na colina já não há mais nadapara os jovens — comenta Sebastiano,dirigindo-se a mim, com uma ponta de resig-nação. Ainda estou perturbada e nada que eupossa dizer para continuar a conversa vem àminha cabeça.

Adele, enquanto isso, continua a falar dosfilhos, mostrando outras fotos:

— Olhe, aqui eles eram pequenos, aindaestavam no início do ensino fundamental...— Levanto o olhar em sua direção e inesper-adamente cruzo com os olhos de Leonardo.Segura o porta-retratos, mas está olhandopara mim. E dentro de seus olhos vejo algoque eu nunca tinha visto antes, um desejolouco, uma necessidade desesperada, umaternura infinita. Amor. Por um brevíssimoinstante eu tenho certeza.

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Mas é apenas um instante, e logo aqueleolhar me escapa, indo se refugiar em outrolugar. Então, não tenha mais certeza denada. E meu coração entende que não lhebasta mais aquilo que já tem.

Já são cinco horas da tarde e finalmenteparou de chover. As roupas secaram e, em-bora nossos anfitriões nos tenham convidadoa ficar mais um pouco, decidimos partir. Nósnos trocamos e nos despedimos deles comcarinho.

— Por favor, se voltarem para estes lados,venham nos fazer uma visita — diz Sebasti-ano, apertando nossas mãos.

— Quem sabe... — responde Leonardo.Mas sua cabeça já está distante.

Sair daquela casa rural é como voltar deoutra época, do lado de fora ficou escuro e omundo está diferente de como o havíamosdeixado. Sombras e frio desceram sobre tudo

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e sobre Leonardo também. Seus olhos estãoapagados e seu rosto tem uma imobilidadeque me amedronta, agora. Ele me pega pelamão e me leva para o carro sem dizer uma sópalavra. Tenho medo de lhe perguntar noque está pensando, não ouso perturbar essesilêncio tão pesado.

Por um instante tenho a percepção clara enítida de que algo de assustador está prestesa acontecer. Expulso o pensamento, bal-ançando levemente a cabeça.

Entramos no carro e durante todo o tra-jeto Leonardo permanece distante, taciturno,como se estivesse remoendo algo. De vez emquando cruza com meu olhar e tenta metranquilizar com uma carícia, mas até seutoque é frio, sinto isso na pele. Tenho a es-tranha sensação de que este homem precisaser salvo de si mesmo.

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— Então, posso saber o que você tem?Por que está com essa cara? — eu explodo,enquanto já estamos caminhando para casa,depois de termos entregado o carro alugado.

Ele dá uma respirada profunda e para derepente, obrigando-me a fazer o mesmo.Estamos a dois passos de onde eu moro, nomesmo ponto em que paramos meses atrás,depois que ele tinha me trazido nas costaspor culpa — ou por mérito? — da maré alta.

— Esta é a última vez que nos vemos,Elena. — Ele me diz isso olhando-me diretonos olhos. E é uma afirmação simples, quenão admite contestação.

Sinto o sangue congelar nas veias e de-pois se partir em pedaços.

— Por quê? Não entendo... — gaguejo,confusa.

— Não faz mais sentido adiarmos essemomento. Eu já tinha percebido há umtempo, mas como um tolo quis esperar,

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iludindo-me que... Nós tínhamos um pacto eacho que ele acabou, agora.

— O quê? — Estou completamente des-norteada, uma respiração ofegante e amargasai do meu peito. — Por que está me falandodo pacto agora?

— Porque aquilo que nos dissemos no iní-cio de tudo ainda vale para mim. Eu guiei vo-cê até aqui, e agora nossa viagem terminou.— Está irredutível. Não tenho nenhuma es-perança de fazer com que mude de ideia.

— Mas então por que não pode ficar tudocomo está? — insisto. — Não podemos con-tinuar nos vendo como sempre fizemos?

Leonardo balança a cabeça.— Nós demos um ao outro tudo o que

podíamos, Elena, e foi bom. Mas é o mo-mento de nos separarmos, antes que o prazerse transforme em hábito ou em necessidade.— Enquanto diz isso, uma ruga profunda se

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desenha em sua testa. Parece quase que estálutando consigo mesmo.

Não pode ser verdade, não pode ser quedepois de um dia como esse, o mais bonitoque passamos juntos, Leonardo decida medeixar. Mas talvez seja justamente esse omotivo, talvez tenham sido as emoções vivi-das hoje que o assustaram.

— O que foi? Tem medo de que eu meapaixone por você? Ou quem sabe o con-trário? — eu grito para ele, com raiva. Perdi ocontrole. Disse aquilo mais por provocaçãodo que por convicção, mas espero ter at-ingido um ponto vital. Leonardo fica des-norteado, talvez não esperasse tanta coragemde minha parte.

Defende-se atrás de um sorrisosarcástico.

— Como posso ter medo de uma ideia quesequer levei em consideração?

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Mais que suas palavras, são sua frieza re-pentina, seu distanciamento, que memagoam.

— Elena, entre nós houve sexo, cumpli-cidade e leveza. Mas nunca amor...

— Eu invejo você, sabe? — eu o inter-rompo, mordaz. — Eu também queria ter es-sas certezas todas, queria saber exatamente oque é amor e o que não é, assim como você.— E, além disso, queria ficar firme e con-seguir não chorar, mas meus olhos já devemestar brilhando, porque Leonardo não con-segue mais me olhar na cara.

— Por favor, não complique as coisas. —Engole saliva, puxando-me para si. Abraça-me forte como se pudesse me proteger dador que ele mesmo está me causando. O cal-or de seu corpo é de uma familiaridade dol-orosa, não posso suportar a ideia de me sep-arar dele.

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— Se eu ficasse com você, eu a machu-caria mais ainda. E, acredite em mim, é a úl-tima coisa que quero — sussurra, bem baix-inho. Depois, afasta-me e enxuga uma lá-grima na minha bochecha. — No início,quando a conheci, eu tinha certeza de quevocê era um desafio para mim, uma brin-cadeira. Achava que você era apenas umamenina que eu queria escandalizar, provo-car, porém descobri muito mais. Eu vi vocêse transformar, desabrochar debaixo dosmeus olhos. Você é uma mulher maravil-hosa, Elena, você é livre e forte, não precisade mim.

— Mas eu ainda quero você — digo, com aconsciência lancinante de já tê-lo perdido.

Leonardo fecha os olhos por um instante.Vejo uma infinidade de emoções atravessarseu rosto. Quando os reabre, está com o ol-har ausente, perdido no vazio.

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— Perdoe-me, Elena, tenho que ir embora— diz, quase com urgência. Um beijo na testae, então, aquela palavra que eu nunca queriater ouvido: — Adeus.

Ele se solta do nosso abraço, levando con-sigo uma parte de mim. Fico ali, como se est-ivesse amputada, os braços dolorosamentevazios, os olhos tomados de lágrimas. Tudo oque consigo ver são suas costas que seafastam. A primeira coisa que vi deLeonardo, a última coisa que me resta dele.

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17

Hoje chorei durante duas horas sem parar.Lágrimas plenas, doídas, que nem tenteicontrolar. É mais um dia de angústia que sejunta aos que o precederam. Há quatro diasestou trancada em casa, com um nó indis-solúvel que oprime meu peito e me dá umasensação de náusea sufocante. Eu só consigopensar nele. De vez em quando me lembrode comer, mas só consigo engolir algumasporções, o necessário para não morrer defome. Meu estômago está fechado, o corpo,fraco, a cabeça, um bloco de pedra, o cor-ação, um emaranhado de raiva. Odeio

Leonardo por ter me abandonado daquelejeito. Odeio a mim mesma por ter me deix-ado levar pela ilusão de que pudesse termin-ar de outra maneira. É possível ser mais idi-ota que isso? Não adiantou nada eu ter re-petido a mim mesma, mil vezes, para não meapaixonar; no fim caí na armadilha dos sen-timentos. E o que mais eu poderia esperar demim mesma? Realmente ter me tornadooutra pessoa, mais forte, autônoma, cora-josa? Não consegui ser a mulher emancipadaque achava ser. Tudo foi apenas uma esplên-dida ilusão. E agora estou mal, um mal quetira as forças e deixa a alma torturada.

Não atendo o telefone. Gaia me procurouvárias vezes nos últimos dias, mas eu nuncaatendi. Não atendo nem minha mãe, que aessa altura deve estar prestes a ligar para oChi l’ha visto?.******** Quero ficar sozinha,mergulhada na minha solidão e na minhatristeza. Em certos momentos estou tão

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desanimada que tenho dificuldade para memexer e me parece um feito só o fato de mearrastar da cama até o sofá; em outros sintotanta raiva que queria quebrar tudo o que es-tá ao meu alcance. Há pouco reduzi a migal-has um pacote de biscoitos, dando socosnele. Depois joguei tudo pela janela. Nãoachava que ser abandonada por Leonardopudesse me levar a esse estado e não me at-revo a imaginar quanto tempo ainda precis-arei para me reerguer.

Olho ao redor. Meu apartamento nuncaesteve tão caótico: o chão cheio de poeira efarelos, a louça por lavar, as roupas jogadasdesordenadamente na cama desfeita. Aquelacama ainda tem o cheiro dele, o nosso. Oslençóis guardam um vago perfil dos nossoscorpos. Quero estar ali de novo, para me sen-tir mais perto de Leonardo.

Tiro os chinelos de lã e me enfio debaixodas cobertas, estou usando o pijama de

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ursinhos-polares. E são três da tarde. Rastejoaté o fundo do colchão, enfiando os pés naborda, e deixo meus sentidos se encheremdele. Vejo seu rosto, inalo seu cheiro, sintosuas mãos e sua boca em mim. É uma tor-tura. Não consigo deixar de fazer isso, masao mesmo tempo queria que todas as lem-branças sumissem juntas de uma vez.

Lá fora sopra um vento assustador. Chianos vidros e penetra pelas janelas com sonsinquietantes. Uma angústia violenta me in-vade. Volto a sentir os medos de antiga-mente, aqueles difíceis de administrar, omedo de não estar à altura, de não mebastar, de não ser amada.

O medo de ficar sozinha.Nos braços dele era tudo maravilhoso. Eu

era feliz, ri tanto, e agora só consigo chorar.Em um instante de irracionalidade me

vêm à mente aqueles pensamentos que amaioria das pessoas não admite que tem,

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tipo engolir uma dúzia de comprimidos emandá-los para dentro com vodca, ou se jog-ar do 12º andar de um prédio. Mas emVeneza existem prédios altos assim? Achoque não...

Sou uma idiota mesmo, mas ainda bemque nesse sofrimento todo ainda há lugarpara um sorriso.

Seria muito errado lhe mandar umamensagem para dizer que estou comsaudades e lhe pedir para voltar?

Sim, é errado, eu sei. Mas, no fundo, nãotenho mais nada a perder... Agarro o iPhonena mesinha de cabeceira e começo a digitarseu nome no teclado, com os dedos tre-mendo e o coração palpitando. De repente,antes ainda de eu ter formado uma linha damensagem, o telefone trava e o visor fica to-do preto. Por um instante entro totalmenteem pânico, eu o desligo e o ligo de novo, játemendo ter perdido todos os dados, e só me

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acalmo quando vejo reaparecerem lenta-mente os ícones no fundo.

Isso é um sinal, tenho certeza. O universoestá me mandando um recado e, sem muitaoriginalidade, faz isso através do meuiPhone: não devo mais procurar Leonardo,devo esquecê-lo! É um babaca, um egocên-trico, um egoísta, um covarde. Meta bem issona cabeça, Elena. Você quer se magoar aindamais? Não, não quero.

Com uma coragem descomunal, apagoseu número da agenda. Agora me sinto umtrapo, mas esse era o único jeito de não cairde novo em tentação. De agora em dianteLeonardo sairá definitivamente da minhavida. Toquei o fundo do poço, mas eu sou otipo de pessoa que tem que se machucar paracair a ficha e encarar a realidade. É para issoque serve essa dor toda, para me fazer abriros olhos sobre a verdade. Leonardo foi umerro, um mal, um perigo que não deveria ter

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corrido, um salto no vazio que se concluiucom um despedaçamento.

E agora realmente chegou a hora de dizerchega.

Penso em todas as pessoas que neste mo-mento devem estar sofrendo por amor, emVeneza e no mundo inteiro, e acho que mesinto menos sozinha. Repito a mim mesmaque vou sair dessa, que não será tão difícilcomo pode parecer. Não choro mais e meconcentro na respiração, como aprendi nopilates. Inspiro, expiro. Devagar.

O que vou fazer agora?Enquanto formulo uma quantidade in-

suportável de pensamentos desconexos, es-cuto a campainha tocar. É Gaia, só pode serela, eu a reconheço pelo toque insistente.Não tenho nenhuma intenção de me levantardessa cama para ir abrir. Não quero que meveja nesse estado, eu não suportaria suasperguntas.

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Fico imóvel e calada. A campainha paroude tocar agora. Talvez Gaia ache que não temninguém em casa e se conforme. Mas issonão é nada típico dela e, de fato, depois de al-guns segundos começa a tocar de novo,ainda mais insistente. Então, um novosilêncio.

— Elena! — Ouço a voz dela ecoando naminha cabeça como em uma sala vazia. —Elena, abra, você está me deixandopreocupada!

Arrasto-me por inércia até a frente daporta de entrada e fico em silêncio.

— Sei que você está aí! Se não abrir, vouchamar os bombeiros e mando arrombaremessa porta de merda! — grita, dando socos,como se realmente quisesse colocá-la abaixo.

No fim, abro e a deixo entrar.Quando me vê, ela arregala os olhos.— Posso saber o que está acontecendo

com você? — pergunta. Sem esperar uma

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resposta, ela me esmaga em um abraço e medá um beijo no rosto.

O calor daquele abraço escancara meucoração. Derreto-me dentro dele e me aban-dono. Como pude pensar em não recorrer aela? Gaia é a única pessoa para quem possoentregar o que resta de mim.

E então eu lhe conto tudo. Com coragem,honestidade e sem vergonha. Eu me livro detoda a amarga verdade sobre Leonardo, eu ajogo gota após gota em cima dela. A primeirarelação sexual no palácio, o pacto diabólico,as provas, o sexo, a minha resistência, aminha perdição. Ela escuta em silêncio, sen-tada na minha frente no sofá, sem acreditar,os olhos grandes grudados nos meus.

No fim do relato Gaia está chocada e co-movida, uma lágrima está para descer emsua face. Pronto, consegui deixá-la sem pa-lavras, coisa rara para ela. Não diz nada, masme aperta forte em um abraço que quer dizer

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tudo, e eu mergulho naquele abraço comoem uma piscina quente onde nunca afun-damos. Sinto em mim a consistência do afetoverdadeiro. Nos poucos instantes em queGaia me abraça, apertado, infunde em mimuma calma que quase custo a aceitar. Agora,não estou mais sozinha, de verdade.

— Por que não me disse nada antes? —pergunta, incrédula, afastando o cabelo daminha testa.

— Porque tinha medo de que você mejulgasse.

— Eu?! — exclama. — Ele, como é que eupoderia julgá-la?

Abaixo e ergo o olhar.— Eu sentia vergonha. — Agora, na ver-

dade, sinto vergonha por ter mentido paraela, mas seus olhos verdes estão cheios deperdão.

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— Ei... — sussurra, sacudindo meus om-bros. — Sabe que sempre pode contarcomigo, o que quer que aconteça.

— Eu sei... — E é bom escutar isso.— E agora? O que quer fazer com

Leonardo? — pergunta, com uma discriçãoque nunca vi nela.

— Esquecê-lo, deixar tudo isso para trás.Sofro como um cão, mas também sintomuita raiva.

Gaia pega minhas mãos e isso me en-coraja a falar.

— É que estou com mais raiva de mimmesma. Fui eu quem me apaixonei comouma idiota! — eu me exalto. — Ele tinha meavisado mais de uma vez. Eu achava que po-dia aguentar a brincadeira, mas... Meu Deus,que tortura! — As palavras sufocam naminha garganta.

Gaia balança a cabeça.

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— Se você tivesse me contado antes,talvez eu tivesse ajudado. Você guardou tudoaí dentro... E eu nem percebi nada! — Estáquase repreendendo a si mesma, minhaamiga. Para quem eu deliberadamente nãocontei nada.

— A culpa é minha... Errei tudo o que po-dia ter errado, Leonardo me fez mentir paraas pessoas que eu mais gosto no mundo. Éhorrível, eu sei. Me desculpa.

— Não! Sem essa de culpa — diz, com umtom quase irritado. — Você não tem culpanenhuma. Acabou mal, mas o remorso nãoserve para nada agora.

— Meu Deus, Gaia... — Afundo o queixoem seu peito, desesperada. Fecho os olhospor um instante e quando os reabro deixonovas lágrimas jorrarem.

— Ei, chega de chorar. Você não fez nadade errado, só obedeceu ao seu coração. —Gaia inclina-se em minha direção e puxa

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minhas bochechas até desenhar um sorrisoem mim. — Pelo menos me diga que se di-vertiu... — ela me provoca, em tom cúmplice.

Um sorriso verdadeiro me escapa, en-quanto enxugo as lágrimas.

— E você, como está? — pergunto, reem-ergindo da fossa dos meus pensamentos. —Só falamos de mim...

Gaia dá um longo suspiro.— Tenho novidades. Eu procurei você por

isso também.— Boas ou ruins?— Nem eu sei. — Encolhe os ombros.— Como assim?— Terminei com Jacopo. — Seu rosto fica

sombrio na mesma hora.— Não! — Estou sinceramente sentida.

Eu gostava da história deles. — O queaconteceu?

— Ele me pediu para morarmos juntos —explica, a voz fraca e sem expressão. — Mas

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diante de um compromisso tão grande en-tendi que não podia mentir para ele, e nempara mim mesma. — Nela, geralmente tãoimpulsiva e frívola, parece brotar agora umaequilibrada tomada de consciência.

— Belotti tem a ver com isso? — per-gunto, certa de que sim.

— Ele, eu tentei esquecê-lo, mas não con-segui. — Seus olhos brilham enquanto dizisso. — Jacopo foi perfeito comigo, me ench-eu de atenções e presentes, mas não foi sufi-ciente. Continuo pensando naquele babaca.

— Mas vocês se viram?— Nós só nos falamos por telefone — re-

sponde, quase conformada. — Está em umtreinamento pesado. Este ano é import-antíssimo para ele, tem que se recuperar dasquedas dos meses passados.

— E aí?— E aí que não importa. — Um traço de

tristeza enruga seu rosto. — Apesar de ele

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estar longe, apesar de ser provável que eu oveja só no final da temporada... Eu vouesperá-lo, o que mais posso fazer?

Concordo, para lhe oferecer toda a minhasolidariedade e compreensão.

— Talvez eu tenha feito uma besteira daqual me arrependa amargamente — suspiraGaia. — Jacopo ficou realmente mal. Estáapaixonado mesmo, sabe?

— Eu sei. Eu estava torcendo por ele.Queria tanto ter uma amiga condessa... —tento diminuir o peso. Um sorriso brota emseus lábios, mas ela toma muito cuidadopara expulsá-lo para o mesmo lugar de ondeele vem.

— E em vez disso você só tem uma amigaburra.

— Bem, pelo menos estamos juntasnessa.

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Depois que Gaia foi embora, o amon-toado de pensamentos em que eu estavamergulhada aos poucos se desfaz, é como sea pedra que pesava em meu estômago de re-pente houvesse rolado para fora do meucorpo, deixando-me uma sensação de liber-tação e leveza. Falar com ela me fez bem, terlhe contado toda a verdade me ajudou a veras coisas de uma perspectiva diferente, commaior distanciamento.

Fui feliz, não sou mais, mas ainda possoser. Tenho que relativizar minha dor, consid-erar Leonardo um episódio da minha vida,lindíssimo, mas único. O futuro me espera,eu só precisaria entender em qual direção ir.Poderia me jogar de cabeça no trabalho, porexemplo, decidir aceitar aquele emprego emPádua, se eu ainda estiver no prazo. Queroser forte, racional, tenho quase trinta anos equero organizar minha vida, me concentrarnas coisas das quais eu gosto, encontrar meu

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lugar no mundo. A Elena que se deleitavanos braços de Leonardo, que esperava, confi-ante, cada gesto e cada palavra dele, que es-tava pronta para fazer qualquer coisa que elepedisse, não existe mais. Aquela mulher nãoera eu. Eu era a mulher que ele queria. Agoratenho que voltar a ser eu mesma, mas semLeonardo, uma Elena que pertence somentea Elena.

Suspiro. É mais fácil dizer do que fazer.Mas tenho que começar pelas pequenascoisas: vou ao quarto fazer a cama. Colocolençóis limpos e jogo os sujos no cesto damáquina de lavar roupa para me livrar doseu cheiro e da sua imagem. Depois, abro asjanelas e deixo sair o ar viciado deste quarto.Preciso de uma onda de vento para levar em-bora as lembranças. Enquanto me movi-mento assim, um pensamento me vem. Épossível que as emoções experimentadas

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com Leonardo não fossem amor, mastivessem mais a ver com o fascínio do proi-bido, com o gosto do proibido? A ideia meperturba. Muito. Mas e se fosse assim?

Chega, não quero pensar nisso.Embora reduzir nossa história a um

desejo oculto pela transgressão talvez meajudasse a redimensionar tudo...

Vou para a sala e pego da estante umlindo volume ilustrado sobre Michelangelo ea Capela Sistina. Geralmente olhar as obrasde arte dos grandes mestres me ajuda a re-laxar. Deito no sofá, apoiando a cabeça emuma almofada, e começo a folhear o livro,parando em alguns detalhes que prendemminha atenção.

Quando chego por volta da metade, umafolha escorrega para fora do livro, caindo emmeu peito. Eu a olho: é o retrato que Filippohavia feito na noite antes de viajar. Eu ocolocara no meio daquelas páginas para que

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não estragasse, eu quase tinha esquecido, eagora meu coração para ao encontrá-lo.

Como você é linda... Dormia tão bem, es-ta noite...

De repente, sinto uma saudade imensadele. Fil, por que não entendi logo que eravocê o homem pelo qual eu tinha que medeixar amar? Era você que fazia com que eume sentisse realmente em segurança, era vo-cê quem me aceitava pelo que eu era, com to-dos os meus limites e meus defeitos, sem tera pretensão de me mudar. E eu não fiz nadapara proteger aquele sentimento puro e sin-cero que nos unia, não soube cuidar dele, euo desprezei, correndo atrás de ilusões estúpi-das. Só agora eu me dou conta do que perdi.

Uma lágrima desce devagar pelo meurosto, depois outra, depois mais outra.Entrego-me a um choro libertador, que não éde raiva, nem de dor, é o choro que se re-serva às pessoas verdadeiramente

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importantes, aquelas às quais estamos lig-ados por algo que vai além do coração, docorpo, da mente. Estas lágrimas lavam todasas emoções sentidas nos últimos meses e,quando terminam, sinto-me exausta. Masagora em mim existe uma nova determin-ação, uma nova força. Estou pronta pararenascer, e a primeira coisa a fazer é pedirperdão a quem foi vítima dos meus erros.******** Programa de televisão dedicado à procura depessoas desaparecidas. (N. da T.)

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Observo a paisagem pela janela, a cabeçaapoiada ao encosto, as mãos largadas emcima dos joelhos. As colinas da Toscanasempre me trouxeram uma sensação de pazprofunda: vistas de um trem em movimentoquase parecem se mexer, perseguindo-mecom seus contornos de terracota. Permaneçoimóvel, interrompo os pensamentos e meconcentro naquilo que acontece ao meuredor. Ruídos de trilhos, vozes que sesobrepõem, toques de celular, portas que seabrem e se fecham. Túneis, escuridão, depois

sol, depois escuridão de novo, depois sol denovo.

Recomeço daqui, deste trem que correem direção a Roma. Em menos de duas hor-as estarei na capital, com Filippo. É um mo-vimento arriscado, uma atitude que não é domeu feitio, mas eu pensei e repensei, e nofim entendi que era o melhor, o mais certo afazer: não trago nada comigo, somente avontade de pedir perdão, sem a pretensão deconseguir. Talvez Filippo não fique feliz emme rever, talvez nunca possamos superarnossa última briga e nos reencontrar noponto onde paramos. Mas eu queria pelomenos falar com ele, dizer-lhe que sintomuito e que entendi que errei. Eu poderia terescrito ou telefonado, mas achei que essaviagem será uma espécie de percurso de ex-piação, pelo menos. Reservei um quarto emum pequeno hotel perto de San Giovanni. No

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pior das hipóteses, serão apenas umas fériascurtas.

Chego à estação Termini por volta dastrês da tarde. Sou recebida por um solquente que inunda meu rosto de luz, por issotiro logo o casaco. O ar de Roma é morno,aquece o coração com novidades. Arrastandominha pequena mala, saio da estação e entrono primeiro táxi livre.

— Viale della Musica — digo gentilmenteao taxista.

Quero ir ao canteiro de obras. Da últimavez que nos falamos, Filippo me deu as co-ordenadas do lugar. Parece que passou umséculo desde aquele telefonema e não tenhocerteza nenhuma se vou encontrá-lo. Masquero tentar, é a única referência que me deudurante os encontros no Skype.

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O táxi atravessa a cidade cheia de tráfegoe barulhos e, enfim, o bairro Eur abre-se di-ante de nós com sua imponência severa.

Desço do carro e percorro alguns metrosa pé, sem saber bem aonde ir. A distânciavejo uma imensa construção de vidro e ci-mento, rodeada por guindastes e andaimes, evou naquela direção. Quando estou bem em-baixo dela, levanto o olhar. O edifício não es-tá pronto, e sabe-se lá quanto tempo aindavai demorar, mas já se pode captar a harmo-nia e aquela beleza sofisticada que apontadiretamente para o futuro.

Com passos hesitantes entro no canteiro,segurando o iPhone em uma das mãos e ar-rastando a mala com a outra. Olho em voltaum pouco temerosa, alguns operários me ob-servam, curiosos, mas nenhum me para.Uma única, imensa esperança me anima.Reencontrá-lo.

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E lá está ele, eu o reconheço de longe, es-tá de costas e usa o capacete de proteção.Tenho certeza de que é ele. Só Filippo temaquele jeito engraçado de gesticular. Estáfalando com alguns operários, o dedo indic-ador apontado para um lado da construção, eparece seguro de seus movimentos e suas pa-lavras. Meu coração acelera os batimentos efico acalorada. Mas eu não devo ter medo:agora sei o que existe no fim e no início deuma viagem. Existe vida, existe amor, existeapenas um instante, e a maravilhosa certezade não saber.

Quando os operários vão embora, eu ligopara ele no celular. Filippo vasculha no bolsodo Burberry em busca do seu iPhone. Eu ovejo hesitar por um momento. Balança acabeça, levanta as sobrancelhas, esboça umaestranha careta. Será que está surpreso?Agora sim, tenho um pouco de medo. Quase

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parece que não quer atender, como se real-mente tivesse cortado relações comigo.

Por um instante rezo que me atenda enaquele segundo sua voz chega ao meuouvido como um vento morno.

— Alô?— Vire-se — digo-lhe, apenas.Quando ele o faz, nossos olhares se

cruzam. Arregala os olhos e finca os pés nochão, paralisado, então tira o capacete, larga-o em cima de uma montagem de cimento evem ao meu encontro, lentamente. Estoucom um nó na garganta, sinto os joelhos fra-cos, mas me preparo para enfrentá-lo.

Para a meio metro de mim, o olhar duro,impenetrável.

— O que você está fazendo aqui?— Vim lhe pedir desculpa — digo, em um

piscar de olhos. — Eu errei, Fil, só queriadizer isso a você.

— Você é louca... — Está incrédulo.

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— Sou, mas estava mais louca aindaquando lhe disse aquelas coisas e depoisdeixei você ir embora: Sei que não posso re-mediar aquilo, agora que estraguei tudo, maspedir desculpa é o mínimo que eu podiafazer. E desejo isso de todo o coração. Que éum pouco seu também...

Enquanto falo sem tomar fôlego, seu ol-har se suaviza e seus lábios se curvam em seusorriso maravilhoso.

— Venha aqui, Bibi — diz, de repente,puxando-me para si.

Deus, quanto senti saudade deste abraçoe deste calor gostoso! Finalmente relaxo en-costada nele, sentindo-me salva pelaprimeira vez depois de tanto tempo. Agora, opassado me parece somente uma ilusão a seresquecida e o futuro uma caixa cheia de pos-sibilidades maravilhosas.

Eu o olho. Ele me olha. Depois apoia orosto no meu. Sinto seu coração batendo

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rápido contra o meu. Sinto suas mãos. Sintoseus lábios se mexendo devagar e deslizandosuaves sobre a minha boca. Filippo ainda mequer, e eu também o quero.

Nada mais importa.

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Agradecimento

a Celestina, minha mãe.a Carlo, meu pai.a Manuel, meu irmão.a Caterina, Michele, Stefano, faróis de dia

e de noite.a Silvia, guia preciosa.a toda Rizzoli, do térreo ao último andar.a Laura e Al, presenças importantes.a todos os amigos, incondicionalmente.a Diana e Annamaria, tias no coração e

na alma.a Filippo P. e ao trem da volta.

às dezesseis horas e dez minutos do diaquatorze de setembro de dois mil e doze.

a Veneza.ao destino.

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