eu ando muito gustavo zaraya

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Gustavo Rodrigues Zaraya (15000290); JOA (DIURNO) Gymnopédie I Eu ando muito, sabe? Sempre andei muito. Nunca andei, entretanto, com um objetivo. Muitas vezes penso em andar e saio caminhando, não para encontrar, mas para fugir, fugir da solidão, do abandono, da ânsia pela resposta. A ânsia causada pela impossibilidade de encontrar a resposta, aquela que nos acolhe e nos ensina a chave para o mistério da vida. Ando pela cidade. E olho. Olho exaustivamente a cidade enquanto ando. Em círculos contínuos, ao infinito, eu olho e tenho a impressão de que não vejo. Ver exige vísceras e eu ainda não estou pronto para dar as minhas. Ver necessita o despojamento das ilusões. Mas, não. Ainda não estou pronto para aceitar a loucura, a loucura que destoa do sorriso por sorrir mais, que destoa da lágrima por esbanjar felicidade. Não quero esta loucura, a loucura do saber. Saber exige a luta. Exige olhar para o mundo e ver a si mesmo. E ver a si mesmo é escapar de si mesmo. Meu leitor, é claro, invariavelmente medíocre, não entenderá. É certo que tudo o que escapa da nossa vida, do nosso entendimento, nos parece medíocres. Fruto de nossa prepotência e infantilidade. Pense assim, acho você, que me lê, medíocre porque não o entendo. É um saldo da nossa amizade. E também falo

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Page 1: Eu ando muito   Gustavo Zaraya

Gustavo Rodrigues Zaraya (15000290); JOA (DIURNO)

Gymnopédie I

Eu ando muito, sabe? Sempre andei muito. Nunca andei, entretanto,

com um objetivo. Muitas vezes penso em andar e saio caminhando, não para

encontrar, mas para fugir, fugir da solidão, do abandono, da ânsia pela

resposta. A ânsia causada pela impossibilidade de encontrar a resposta,

aquela que nos acolhe e nos ensina a chave para o mistério da vida.

Ando pela cidade. E olho. Olho exaustivamente a cidade enquanto ando.

Em círculos contínuos, ao infinito, eu olho e tenho a impressão de que não

vejo. Ver exige vísceras e eu ainda não estou pronto para dar as minhas. Ver

necessita o despojamento das ilusões. Mas, não. Ainda não estou pronto para

aceitar a loucura, a loucura que destoa do sorriso por sorrir mais, que destoa

da lágrima por esbanjar felicidade. Não quero esta loucura, a loucura do saber.

Saber exige a luta. Exige olhar para o mundo e ver a si mesmo. E ver a

si mesmo é escapar de si mesmo. Meu leitor, é claro, invariavelmente

medíocre, não entenderá. É certo que tudo o que escapa da nossa vida, do

nosso entendimento, nos parece medíocres. Fruto de nossa prepotência e

infantilidade.

Pense assim, acho você, que me lê, medíocre porque não o entendo. É

um saldo da nossa amizade. E também falo contigo que julga entender este

texto. Meu senhor: você entende o nada. Isto aqui é alma. Não é palavra.

E o que você sente é o julgo. As almas não devem ser julgadas. Elas

gritam por amparo e compaixão. A sua também, no presente.

Grita por compaixão.

Este texto surgiu ao acaso, enquanto ontem eu voltava justamente de

uma caminhada – não mais andando, mas desenvolvendo. Encontrei o olhar,

não o meu, mas o do meu outro eu: o de um velho. Imóvel. Medonho.

Estava em pé, na mureta do vão do MASP. Exatamente, senhores, em

pé, de costas ao vão, imóvel. Ninguém o via.

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Perguntei a uma moça sentada: “ele vai se matar?”. Ela me disse: “está

aí há muito tempo. Há dias. Imóvel. É maluco, moço”.

Vida-Morte naquele corpo, em pé, imóvel. De costas para a morte,

vendo a vida. O olhar imóvel. Absoluto.

Por pudor não disse, mas é claro que era um mendigo. Um absoluto

mendigo, de barba e pele maltratadas. De odores e muitas mágoas. Talvez, do

olhar mais sábio e impenetrável que já vi.

Sim, mais do que olhar, eu vi aquele olhar. E por mais que eu não o

compreenda, e não compreendo até hoje, aquilo ali desfigurava máscaras.

A cidade não é feita de pedra. A cidade é feita de corpos. E de crianças

abandonadas, crianças com barba, crianças que apesar de não serem vítimas,

precisam de ajuda. Duma ajuda direcionada ideologicamente à fome da África.

Mas negada nas esquinas, às mãos pedintes, aos olhares apaixonados dos

mendigos.

Aquele homem olhava ao nada. Mas via a si mesmo na cidade. Via a

sua alma, e, por isso, via a todos. Via o grito de socorro, íntimo, silencioso, que

urra pela resposta. Pela resposta chamada não de paixão, mas de sintonia.

A sintonia humana da eternidade.

Fui embora. E fugi de mim mesmo em sonhos profundos e secretos.

Achei, por um momento, que a vida não valia a pena.

Mas dos céus, como tinta cremosa, estrelada, desceram as galáxias do

firmamento e ficaram derramadas na linha do horizonte. Abençoando a nossa

esperança. Destruindo a barreira de carros, de concreto, das rosas e dos nojos.

Simples, como a natureza promete a vida. Imensas como o amor promete o

que somos nós.

No amanhã.

(E assim que o homem mais humilde de todos se aproximou do mendigo

e lhe ofereceu a sua atenção, profunda e gratuita, o eco de toda uma

civilização estremeceu e resplandeceu. É que a aurora, então, iluminou a

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esperança, boba, piegas – e secretamente austera e brutal – de um

adolescente).