Ética protestante tropical: família, fé e fábrica - a ... · ... que lhe deram determinadas...

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1 Ética Protestante Tropical: Família, Fé e Fábrica - a Trajetória da Fábrica de Chapéus Mangueira 1 Sergio Prates Lima PPCIS-UERJ-Doutorado Resumo Este trabalho tem como marco temporal os anos de 1854-1903, que delimitam o início e o desenvolvimento de uma atividade fabril de chapéus na cidade do Rio de Janeiro, que veio a se tornar uma das grandes fábricas do país, tendo funcionado por cerca de cem anos (1857-1968). Esta atividade fabril esteve muito relacionada às imigrações europeias, especialmente de Portugal para o Brasil, na segunda metade dos oitocentos. Nossa pesquisa se debruça especialmente sobre dois irmãos bracarenses, que trouxeram a experiência do fabrico de chapéus de Braga para o Rio de Janeiro, tendo criado a empresa Fernandes Braga & Cia, substituída depois pela Fábrica de Chapéus Mangueira. O estudo biográfico e da fábrica, suas imbricações com o mundo do trabalho, a expansão do protestantismo, a questão da moda, a urbanização da cidade, a influência da fábrica na ocupação do Morro da Mangueira, sua inter-relação com o mundo do samba, do trabalho e da cultura negra no período pós-abolição compõem o pano de fundo que está sendo descortinado na pesquisa. Nosso propósito é usar a fábrica como ponto de partida para pensar sua singularidade na complexificação das relações sociais, econômicas e religiosas através da análise das fontes orais, iconográficas e escritas, que compõem um rico acervo de análise para a compreensão de como foram sendo construídos os sentidos e as práticas da Fábrica de Chapéus Mangueira. Palavras-chave: fábrica - chapéus - protestantismo 1 Trabalho apresentado na 29ª Reunião Brasileira de Antropologia, realizada entre os dias 03 e 06 de agosto de 2014, Natal/RN.

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Ética Protestante Tropical: Família, Fé e Fábrica - a Trajetória da Fábrica de

Chapéus Mangueira1

Sergio Prates Lima

PPCIS-UERJ-Doutorado

Resumo

Este trabalho tem como marco temporal os anos de 1854-1903, que delimitam o início e

o desenvolvimento de uma atividade fabril de chapéus na cidade do Rio de Janeiro, que

veio a se tornar uma das grandes fábricas do país, tendo funcionado por cerca de cem

anos (1857-1968). Esta atividade fabril esteve muito relacionada às imigrações

europeias, especialmente de Portugal para o Brasil, na segunda metade dos oitocentos.

Nossa pesquisa se debruça especialmente sobre dois irmãos bracarenses, que trouxeram

a experiência do fabrico de chapéus de Braga para o Rio de Janeiro, tendo criado a

empresa Fernandes Braga & Cia, substituída depois pela Fábrica de Chapéus

Mangueira.

O estudo biográfico e da fábrica, suas imbricações com o mundo do trabalho, a

expansão do protestantismo, a questão da moda, a urbanização da cidade, a influência

da fábrica na ocupação do Morro da Mangueira, sua inter-relação com o mundo do

samba, do trabalho e da cultura negra no período pós-abolição compõem o pano de

fundo que está sendo descortinado na pesquisa.

Nosso propósito é usar a fábrica como ponto de partida para pensar sua singularidade na

complexificação das relações sociais, econômicas e religiosas através da análise das

fontes orais, iconográficas e escritas, que compõem um rico acervo de análise para a

compreensão de como foram sendo construídos os sentidos e as práticas da Fábrica de

Chapéus Mangueira.

Palavras-chave: fábrica - chapéus - protestantismo

1Trabalho apresentado na 29ª Reunião Brasileira de Antropologia, realizada entre os dias 03 e 06 de

agosto de 2014, Natal/RN.

2

1. Introdução

O texto aqui apresentado é resultado das pesquisas do doutoramento em Ciências

Sociais ainda em andamento. Meu objeto é uma fábrica de chapéus, que serviu de

instrumento de divulgação do protestantismo, não apenas no Rio de Janeiro, mas em

outras cidades do Brasil e mesmo em Portugal. Neste sentido, volto-me para uma

abordagem a respeito de determinados aspectos da prática religiosa de um português

convertido ao protestantismo, rompendo com a tradição familiar católica no Brasil do

século XIX.

A Fábrica de Chapéus Mangueira foi um estabelecimento que funcionou por cerca de

cem anos (1857-1965) na cidade do Rio de Janeiro, tendo chegado a ter, em seu auge,

mais de cem funcionários. Percebi então a necessidade de se registrar a vivência da fé

reformada no Brasil a partir de uma linhagem familiar e de uma fábrica que funcionou

como espaço voltado tanto para a produção como para a expansão da fé protestante.

José Luiz Fernandes Lopes (posteriormente José Luiz Fernandes Braga) era português e

chegou ao Brasil para trabalhar na pequena fábrica de chapéus de seu irmão mais velho,

José Antônio Fernandes Lopes, no Rio de Janeiro. Em contato com um membro da

Igreja Evangélica Fluminense, tornou-se protestante. E, sob a ética protestante, recusou-

se a continuar trabalhando aos domingos na fábrica do irmão, que o despediu. Robert

Reid Kalley, o escocês pastor da igreja, agiu e conseguiu, junto à colônia britânica do

Rio de Janeiro, um emprego de vigia noturno no porto para José Luiz. Tempos depois,

com a morte do irmão, José Antônio, assumiu a fábrica, tendo comprado a parte do

outro sócio, pagando posteriormente aos herdeiros o que lhes cabia.

A fábrica, tendo como único dono José Luiz Fernandes Braga, após um incêndio, em

1896, permaneceu fechada por dois anos, tendo sido reaberta em São Cristóvão, ao pé

do morro, que mais tarde recebeu o nome de Morro da Mangueira. A fábrica foi

utilizada como polo divulgador do protestantismo. Seus funcionários eram

preferencialmente protestantes, parte de seus lucros eram utilizados para o proselitismo

não apenas no Rio de Janeiro, mas também em Portugal. Seu proprietário foi também

um dos fundadores do Hospital Evangélico do Rio de Janeiro e da Associação Cristã de

Moços.

3

2. Referencial teórico

Como referencial teórico da pesquisa, estou me valendo de Max Weber, Roger Chartier

e Pierre Bourdieu, nos seus trabalhos sobre o estudo das religiões, campo religioso e

protestantismo.

Para Weber, há que se considerar a presença do interesse material na atuação e no

pensar mágico e religioso, fato que traz consigo o desenvolvimento de diferentes

concepções religiosas, todas elas ligadas a uma diferenciação social. E ainda, a ação

social religiosamente orientada faz com que os indivíduos atuem premidos por

princípios religiosos.

Utilizo Chartier, que ajuda a pensar a questão do protestantismo, que no Brasil se insere

num período em que eram discutidas novas ideias, outras visões de mundo, sendo mais

uma opção religiosa num leque que se abriu no país a partir da segunda metade do

século XIX.

Já para Bourdieu, a religião cumpre funções sociais e os leigos não esperariam da

religião apenas justificativas de existir capaz de livrá-los “da angústia existencial, de

doenças, sofrimento e morte, mas contam com ela para que lhes forneça justificações de

existir em uma posição social determinada com todas as propriedades que lhes são

socialmente inerentes”. 2

Na pesquisa abarco os primórdios do estabelecimento da fé protestante no Rio de

Janeiro, vislumbrando os processos imbricados entre a construção dos sentidos de uma

crença religiosa com os contextos do trabalho, da produção e da economia, sendo que os

sujeitos sociais envolvidos na formação da primeira geração de protestantes no Brasil

estavam, ao mesmo tempo, inseridos no cotidiano de práticas culturais, políticas e

econômicas.

Desde meados do século XIX, o protestantismo nascente insurgiu-se como uma prática

religiosa distinta em suas concepções de origem europeia (seus ritos, sua ética e seus

discursos), na relação dialogal e conflituosa com a cultura religiosa forjada nos tempos

coloniais, marcadamente em suas heranças católica, ibérica, africana e indígena. No

2 BORDIEU, Pierre. Gênese e Estrutura do Campo Religioso in Economia das Trocas Simbólicas.

São Paulo: Ed. Perspectiva, 2ª. edição, 1987, p. 48.

4

entanto, sua inserção coincidiu com alterações e mudanças estruturais e conjunturais na

sociedade, que lhe deram determinadas condições para se estabelecer e se consolidar.

3. A Fábrica de Chapéus Mangueira

A Fábrica de Chapéus Mangueira funcionou voltada tanto para a produção visando um

mercado consumidor, como para a expansão da nascente fé protestante no Brasil. Estas

esferas foram mediadas por uma ética protestante incorporada enquanto discurso,

valores, práticas e estratégias. O território fabril constituiu processos importantes nas

dimensões da cultura, da economia e da religiosidade, a partir das relações familiares,

eclesiásticas e econômicas. Tem-se, portanto, uma experiência concreta de como os

valores protestantes oriundos do puritanismo inglês foram aplicados nos trópicos.

A criação, estruturação e desenvolvimento da Fábrica de Chapéus Mangueira, por cerca

de um século, de propriedade da família Fernandes Braga, estabeleceram não somente a

fabricação de chapéus, mas a fabricação de sentidos para sujeitos sociais situados no

campo religioso. Ela financiou obras religiosas, assistenciais, eclesiásticas e culturais,

configurando-se em um importante objeto de estudo histórico a partir da sua trajetória

inserida nas condições do sistema capitalista na época.

Retomo, na pesquisa, os primórdios da fábrica no Rio de Janeiro, identificando o

contexto e seus principais sujeitos. Essa análise propõe a inserção do debate sobre a

historicidade das práticas de determinadas concepções éticas, tomando o protestantismo

como experiência religiosa e histórica.

A atividade dos chapeleiros estava diretamente relacionada às ondas de imigração nos

fins dos oitocentos, fator responsável por conflitos internos nas organizações operárias3.

No caso do Rio de Janeiro, interessa-me particularmente a emigração portuguesa

voltada para as atividades fabris dos chapéus.

Fernando Sousa apresentou os resultados parciais da pesquisa sobre a emigração de

portugueses do norte de Portugal entre os anos de 1834 e 1950. A partir dos livros de

registros de passaportes dos distritos de Aveiros, Braga, Bragança, Porto, Viana do

Castelo, Vila Real e Viseu, Sousa levantou “nomes dos titulares dos passaportes e

3BATALHA, Cláudio H. M. Formação da classe operária e projetos de identidade coletiva in

FERREIRA, Jorge & DELGADO, Lucilia de Almeida Neves, orgs. Rio de Janeiro: Civilização

Brasileira, 2003, p. 168.

5

respectivos acompanhantes, sexo, idade, naturalidade, estado civil, profissão, nível de

alfabetização e destino no Brasil quando possível” 4.

Dessa região norte de Portugal vieram cerca de 960 mil portugueses ou 80% dos que

emigraram para o Brasil, sendo os distritos do Porto e de Viseu os que tiveram o maior

número de emigrantes. O distrito de Braga situa-se no quinto lugar do maior número de

emigrantes, totalizando 3.466 passaportes individuais com destino ao Brasil ou 1,6%,

entre 1835 e 19505·.

A vinda dos irmãos Fernandes Lopes ocorreu no período imediatamente posterior a

1850. As mudanças políticas e econômicas que se deram tanto em Portugal como no

Brasil, criaram as condições para a emigração dos dois da cidade de Braga, norte de

Portugal.

A partir destes dados conjunturais, compreendemos a chegada dos Fernandes Lopes ao

Brasil em meados do século XIX. José Luiz Fernandes Lopes nasceu em 1842, na

cidade de Braga. Chegou ao Brasil em 1858, com 16 anos de idade, a fim de auxiliar

seu irmão mais velho, José Antônio Fernandes Lopes, na produção de chapéus na sua

fabriqueta e de "tentar fortuna” 6. José Antônio chegara entre os anos de 1851 e 1857,

tendo começado a atividade de fabricação de chapéus no Rio de Janeiro em 1857. Em

1869, José Luiz Fernandes Lopes mudou seu nome, tirando o Lopes e acrescentando o

sobrenome Braga, pelo fato de ser sempre identificado com a sua cidade de origem,

sendo chamado de José Luiz Fernandes de Braga.

Em 1862, José Luiz foi levado por João Manoel Gonçalves dos Santos, seu amigo e

membro da Igreja Evangélica Fluminense, à casa de Francisco da Gama, um português

da Ilha da Madeira que havia se refugiado em Illynois, Estados Unidos, por conta de

uma perseguição religiosa aos protestantes pelos idos de 18427 e depois veio para o

Brasil a convite de Robert Reid Kalley, pastor da Igreja Evangélica Fluminense, no Rio

de Janeiro, que havia atuado na Madeira até ser vítima de perseguição religiosa e de lá

4 SOUZA, Jessé. A construção social da subcidadania – para uma sociologia política da

modernidade periférica. Belo Horizonte: Editora UFMG; Rio de Janeiro: IUPERJ, 2003. 5 SOUSA, Fernando de. A emigração do Norte de Portugal para o Brasil: uma primeira abordagem

(1834-1950) in MATOS, Maria Izilda S. de & HECKER, Alexandre (orgs.). Deslocamentos e história:

os Portugueses. Bauru, SP: Edusc, 2008, p. 27.

6 LUZ, Fortunato Gomes da. Esboço histórico da Escola Dominical da Igreja Evangélica Fluminense

- 1855-1932. Rio de Janeiro, Igreja Evangélica Fluminense, 1932, p. 446. 7 Sobre esse tema, ver DAGAMA, João Fernandes. Perseguição dos Calvinistas da Madeira. S/ Ed. São

João do Rio Claro, SP, 1896.

6

fugira para não ser linchado pela população. José Luiz converteu-se ao protestantismo e

tornou-se membro da igreja no ano seguinte. Ao se apropriar da ética religiosa

protestante, negando-se a trabalhar aos domingos, encontrou forte oposição por parte do

irmão. Foi demitido da fábrica, indo trabalhar como vigia das chatas do porto do Rio de

Janeiro, embarcações que traziam mercadorias dos navios que não tinham espaço para

aportar. Tempos mais tarde, o sócio do irmão lhe ofereceu a parte da sociedade que

pertencia a José Antônio Fernandes Lopes, que havia retornado a Portugal

definitivamente, vindo a falecer posteriormente. José Luiz, por motivos religiosos, havia

rompido relações com a família em Braga. Sua cunhada, já viúva, autorizou o sócio do

falecido a procurar José Luiz, convidando-o a assumir a parte do irmão e enviar os

rendimentos a Portugal. José Luiz, então, comprou as partes do irmão e do sócio,

tornando-se o único proprietário da fábrica, saldando as dívidas com a família.

Apesar de iniciar suas atividades em 1857, o ano de 1868 pode ser considerado como o

início de uma nova fase da fábrica, que teve como nome Fernandes Braga & Cia.. Nos

dez primeiros anos (1857-1868) são obscuros os dados e fontes. Neste período, José

Luiz auxiliou o irmão e o sócio, rompeu com a família e a fábrica e, depois, retornou

aos negócios para expandi-los definitivamente.

A fábrica funcionou de 1868 a 1896 na Rua de São Pedro n 100, 102 e 104 e Theophilo

Ottoni n 93, “nestes quatro prédios comunicados entre si, ocupando os andares térreos

e superiores” 8.

8 FUENTES, Baldomero Carqueja ed. Visitas do Sr. Presidente da República - Exm. Sr. Dr. Manoel

Ferraz de Campos Salles - em dezembro de 1899 e janeiro de 1900. Rio de Janeiro, Imprensa Nacional,

1900, p. 58.

7

Até o ano de 1903 podemos ter os seguintes períodos da fábrica:

QUADRO 01 – Períodos da Fábrica de Chapéus Mangueira (1857-1903)

Períodos Nomes Condições da Produção Marcos Número de

Empregados

1857 a 1868

?

Início da fábrica

Manufatura artesanal

Propriedade de José Antônio

Fernandes Lopes e sócio

desconhecido

?

1868 a 1896/98 Fernandes

Braga & Cia.

Tecnologia importada

Propriedade de José Luiz

Fernandes Braga

Expansão mercado interno e

externo

Incêndio em 1896

130

1898 a 1903 Fábrica de

Chapéus

Mangueira

Reconstrução e renovação

tecnológica, ampliação da

produção

Visita de Campos Sales

Crescimento e ondas grevistas.

Ida da Fábrica para a Mangueira

80 a 100

Fonte: SANTOS, Lyndon de Araújo. Memória Viva do Protestantismo no Brasil: Família, Fé e Fábrica.

Campinas, São Luiz e Rio de Janeiro: Associação Basileia, 2008.

A mentalidade de Braga já, desde cedo, conciliou a religiosidade com a expansão dos

seus negócios, por meio de uma ética pessoal e gerencial, certamente apropriada do

puritanismo então vigente no protestantismo brasileiro nascente. Um testemunho

pessoal seu diz que:

Os negócios temporais têm corrido bem, graças a Deus; e creio que esse fato é o

resultado das petições a Ele dirigidas, para provar aos inimigos que se pode servir

ao SENHOR em qualquer posição. O crédito da casa aumenta: os homens do

mundo têm grande confiança no que dizemos. Eis uma razão para vigiarmos contra

o Inimigo das nossas almas, por este lado.9

Seu sucesso era atribuído a Deus, sendo resultado de esforços pessoais e de uma

conduta ilibada. Provavelmente, seu argumento era de que “se pode servir a Deus em

qualquer posição”, fato comprovado pelo aumento do crédito da casa por parte dos

“homens do mundo”, ou seja, dos católicos, devido à honestidade das suas palavras. A

9 ROCHA, João Gomes da. Lembranças do Passado. Rio de Janeiro: Centro Brasileiro de Publicidade

LTDA, 1942, 219.

8

conclusão era a reafirmação de um estado de vigilância moral e religiosa contra o diabo,

responsável por ameaçar a segurança dos seus negócios e de sua vida pessoal. A visão

calvinista da vocação, que deve ser vivenciada no mundo por meio de um proceder ou

de uma ética exemplar, numa evidência de sua eleição é facilmente notada em seu

comportamento. Essa ética exemplar era evidência de sua eleição, num permanente

estado de luta moral e espiritual no mundo.

Entre 1868 e 1896 ocorreu a expansão dos negócios, tanto no mercado interno como no

externo, a importação de tecnologia e a consolidação da produção. A publicidade nos

jornais enfatizava a modernidade do empreendimento e do processo de fabricação do

chapéu com tecnologia, eficiência e rapidez. Além disso, o chapéu trazia a

representação do asseio, da limpeza, da perfeição e da elegância, componentes de uma

estética social e que se relacionavam com os valores religiosos puritanos.

Em 1896 houve um incêndio de grandes proporções na fábrica. José Luiz estava num

culto, correu até o local e disse: “salvem os livros”, com registros contábeis da fábrica,

para que não parecesse que fora um incêndio criminoso. Na época, cerca de 130

empregados perderam seus empregos por conta do incêndio10

.

Foram gastos dois anos na construção das novas instalações da fábrica, que foi

deslocada para outro local menos insalubre, mais apropriado para a escala maior de

produção, a primeira parada dos trens que partiam da estação Pedro II. No local havia

uma grande mangueira que servia de referência, tornando-se a estação primeira da

Mangueira. A fábrica foi então construída ao pé da mangueira, com máquinas mais

modernas, com uma nova estrutura para aumento da produção, juntamente com casas

para os operários. A região de São Cristóvão era nessa época a direção para onde as

fábricas se deslocavam, concentrando mão de obra e novos bairros de ocupação11

.

A fábrica foi reinaugurada em 1898, e contava com cerca 100 operários, tendo sido

realizado um culto, fato que revelava a conciliação dos dois universos complementares

e componentes daqueles protestantes, a Igreja e a Fábrica. O jornal O Cristão informou

que no culto o pastor orou a fim de “implorar a direção e bênção de Deus sobre o

10

O CRISTÃO, 1896, p. 15. 11

SECRETARIA MUNICIPAL DE CULTURA, TURISMO E ESPORTES. São Cristóvão: um bairro

de contrastes. Departamento Geral de Patrimônio Cultural, Turismo e Esportes. Rio de Janeiro,

Departamento Geral de Patrimônio Cultural/Departamento Geral de Documentação e Informação

Cultural, 1991. (Bairros Cariocas; v. 4).

9

proprietário e operários” 12

. E no final da matéria, a informação relevante: “Esta fábrica

não funciona aos domingos”.13

4. Conclusão

A Fábrica de Chapéus Mangueira e seu proprietário abrem caminhos para avaliar a tese

weberiana de que, cultural e historicamente, procedeu-se a uma vinculação entre a ética

calvinista protestante e o espírito do capitalismo. A historicidade da aplicação dessa

ética no contexto brasileiro com as suas especificidades sociais, econômicas e culturais,

ajuda a rever tal assertiva. Isso pelo fato de que toda ética está condicionada à situação

histórica de sua experimentação.

A ética protestante de José Luiz Fernandes Braga se deu em condições históricas únicas,

constituída no contexto cultural adverso e num tipo de capitalismo periférico e

dependente do centro do sistema. Ela estendeu seus valores e visões de mundo à relação

entre produção e sagrado, entre trabalho e religiosidade, entre conflitos de classe e

conciliações. Enfim, uma fábrica de sentidos funcional aos seus sujeitos e aos seus

atores sociais.

A pesquisa tem possibilitado a compreensão das razões que fizeram esta unidade de

produção ter atravessado diferentes fases da história, por pouco mais de um século

(1857 a 1965), diversificando as análises e as abordagens do seu mundo ou dos seus

mundos cruzados entre a religião e a produção. Também é possível perceber como a

presença de práticas e de valores religiosos protestantes constituíram processos

importantes nas dimensões da cultura, da economia e da religiosidade, a partir das

relações familiares e das relações de produção numa fábrica. A fé, a família e a fábrica

constituíram-se em uma unidade fundante de práticas, discursos e representações dentro

e fora dos espaços religiosos do protestantismo.

O chapéu fazia parte do vestuário de qualquer cidadão que fizesse parte da civilização e,

conforme a visão da época, consequência da situação moral de um indivíduo ou de um

povo. O chapéu cumpria um papel social como peça do vestuário. Além de inserir o

indivíduo na civilização e na moral, o chapéu obedecia a normas de comportamento,

indicando a escala social onde se encontrava quem o usava.

12

O CRISTÃO, 1898, p. 12. 13

Idem, p. 12.

10

Uma análise interessante sobre a visão social do uso do chapéu nos textos de Machado

de Assis é feita por Miécio Tati. O chapéu, à época, era uma peça indispensável ao

vestuário masculino; em meados do século XIX não era habitual andar sem chapéu

pelas ruas. Era uma cobertura obrigatória para as cabeças masculinas, que eram

reconhecidas pelo modelo que usavam. Comprados na Corte ou fabricados em Paris, "o

importante era cobrir-se", de acordo com as situações e os contextos. O ato de escolher

um modelo de chapéu foi assim descrito por um dos personagens machadianos: “A

escolha do chapéu não é uma ação indiferente, como você pode supor; é regida por um

princípio metafísico”. 14

A fábrica de Fernandes Braga, que já atuava no mercado desde meados do século XIX,

foi ainda mais favorecida por esta prática do fim do século (décadas de 1880 e 1890).

Um crescente mercado de consumo, o fácil acesso às matérias-primas e máquinas

importadas da Europa e uma "força de trabalho disponível em abundância" funcionaram

como condições favoráveis à consolidação e à expansão da fábrica neste período.

Na visão de José Murilo de Carvalho, ao analisar o impacto da proclamação da

República entre a elite política e em toda a população, no âmbito das mentalidades, o

processo desencadeado pela "saída da figura austera e patriarcal do velho imperador" foi

de afrouxamento do padrão de moral e de honestidade. Isto refletiu no tipo de

capitalismo praticado de forma predatória "desacompanhado da ética protestante,

estimulado pelo encilhamento dos anos 90 “15

.

O nascente protestantismo foi diretamente favorecido pela ética religiosa de José Luiz

Fernandes Braga: um português, ex-católico, proprietário de uma fábrica com cerca de

100 empregados, que tinha uma ética caracterizada pelo ascetismo moral, um dado

ausente no conjunto das práticas do tipo de capitalismo estabelecido no Brasil. Num

país situado na periferia do sistema econômico e de tradições católica, escravista e

patriarcal, a experiência pontual de uma ética religiosa protestante proporcionou a

acumulação de capital, mas também a contribuição para a formação de um ethos

protestante.

14

TÁTI, Miécio. O mundo de Machado de Assis - O Rio de Janeiro na obra de Machado de Assis.

Rio de Janeiro, Secretaria Municipal de Cultura, Turismo e Esportes, Departamento Geral de Informação

Cultural, Divisão de Editoração, 1991. (Biblioteca Carioca; v. 16), p. 120. 15

CARVALHO, José Murilo. Os bestializados - o Rio de Janeiro e a República que não foi. São

Paulo, Companhia das Letras, 1987, pp. 26 ,27.

11

O excedente e o lucro eram canalizados para igrejas e entidades civis do mundo

protestante (Associação Cristã de Moços, Sociedades Bíblicas e o Hospital Evangélico).

Além disso, havia o sustento de missionários, o auxílio para as Igrejas em Portugal e a

construção de templos. A fábrica, até a década de 1960 do século XX, caracterizou-se

neste caso de exceção diante no contexto industrial brasileiro.

José Luiz Fernandes Braga inaugurou uma casa de oração no subúrbio da Mangueira

cujo terreno e os custos da construção foram supridos por ele. Estabeleceu-se um

complexo industrial, eclesiástico e familiar, compondo num mesmo espaço físico as

dependências da fábrica, um templo e casas para os operários16

, pois todas as condições

deveriam ser dadas para que todos ouvissem a pregação da fé evangélica. O operariado

era visto não somente como mão de obra empregada, mas como futuros conversos, no

caso dos não protestantes. A fábrica era um veículo de evangelização de operários que,

por sua vez, eram supridos com moradia (vila dos operários), assistência médica (no

Hospital Evangélico) e templos religiosos (Igreja Evangélica Fluminense e congregação

da Mangueira). O proprietário supria o alimento do corpo e da alma, através do trabalho

e da salvação.

Esta postura patronal-religiosa pode ser conciliada com a análise que considera este

período formador de uma ação pedagógica paternalista dos patrões industriais, que se

esforçavam em "determinar os caminhos da formação do proletariado", higienizar a

fábrica, prover assistência social aos operários, protegê-los, a fim de atenuar - e negar -

os conflitos entre capital e trabalho17

. José Luiz Fernandes Braga, porém, foi além, ao

acrescentar a estes benefícios a religião, a partir de sua ética.

Em minha análise, procuro, portanto, cotejar as perspectivas culturais e religiosas, a

partir de um território específico, o de uma fábrica onde os valores de uma dada ética

religiosa intervieram. A pergunta que tenho feito desde o início das pesquisas, ainda em

andamento é: em que medida essas práticas e visões de mundo ligadas à ética

protestante se inseriram no processo de constituição das relações de trabalho no

contexto da produção fabril no Rio de Janeiro? Pretendo, ao terminar a pesquisa e a

tese, ter a resposta para esta e outras questões que estão postas.

16

O CRISTÃO, 1907, p. 13. 17

RAGO, Luzia Margareth. Do cabaré ao lar: a utopia da cidade disciplinar - Brasil 1890-1930. Rio

de Janeiro, Paz e Terra, 198, pp. 32-47.

12

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15

5. Anexos

Seção de tinturaria

Seção de corte de pelo de lebre e castor

16

Operários trabalhando

17

Vista da fábrica do Morro da Mangueira. Maciço da Tijuca ao fundo

Incêndio da fábrica, com José Luiz Fernandes Braga, em 1896

18

Escombros da fábrica após o incêndio de 1896

Mostruário de chapéus

19

Funcionárias da fábrica na seção de acabamento

Operários na fábrica antes do incêndio

20

Estoque da fábrica, já na Mangueira