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Ética Protestante Tropical: Família, Fé e Fábrica - a Trajetória da Fábrica de
Chapéus Mangueira1
Sergio Prates Lima
PPCIS-UERJ-Doutorado
Resumo
Este trabalho tem como marco temporal os anos de 1854-1903, que delimitam o início e
o desenvolvimento de uma atividade fabril de chapéus na cidade do Rio de Janeiro, que
veio a se tornar uma das grandes fábricas do país, tendo funcionado por cerca de cem
anos (1857-1968). Esta atividade fabril esteve muito relacionada às imigrações
europeias, especialmente de Portugal para o Brasil, na segunda metade dos oitocentos.
Nossa pesquisa se debruça especialmente sobre dois irmãos bracarenses, que trouxeram
a experiência do fabrico de chapéus de Braga para o Rio de Janeiro, tendo criado a
empresa Fernandes Braga & Cia, substituída depois pela Fábrica de Chapéus
Mangueira.
O estudo biográfico e da fábrica, suas imbricações com o mundo do trabalho, a
expansão do protestantismo, a questão da moda, a urbanização da cidade, a influência
da fábrica na ocupação do Morro da Mangueira, sua inter-relação com o mundo do
samba, do trabalho e da cultura negra no período pós-abolição compõem o pano de
fundo que está sendo descortinado na pesquisa.
Nosso propósito é usar a fábrica como ponto de partida para pensar sua singularidade na
complexificação das relações sociais, econômicas e religiosas através da análise das
fontes orais, iconográficas e escritas, que compõem um rico acervo de análise para a
compreensão de como foram sendo construídos os sentidos e as práticas da Fábrica de
Chapéus Mangueira.
Palavras-chave: fábrica - chapéus - protestantismo
1Trabalho apresentado na 29ª Reunião Brasileira de Antropologia, realizada entre os dias 03 e 06 de
agosto de 2014, Natal/RN.
2
1. Introdução
O texto aqui apresentado é resultado das pesquisas do doutoramento em Ciências
Sociais ainda em andamento. Meu objeto é uma fábrica de chapéus, que serviu de
instrumento de divulgação do protestantismo, não apenas no Rio de Janeiro, mas em
outras cidades do Brasil e mesmo em Portugal. Neste sentido, volto-me para uma
abordagem a respeito de determinados aspectos da prática religiosa de um português
convertido ao protestantismo, rompendo com a tradição familiar católica no Brasil do
século XIX.
A Fábrica de Chapéus Mangueira foi um estabelecimento que funcionou por cerca de
cem anos (1857-1965) na cidade do Rio de Janeiro, tendo chegado a ter, em seu auge,
mais de cem funcionários. Percebi então a necessidade de se registrar a vivência da fé
reformada no Brasil a partir de uma linhagem familiar e de uma fábrica que funcionou
como espaço voltado tanto para a produção como para a expansão da fé protestante.
José Luiz Fernandes Lopes (posteriormente José Luiz Fernandes Braga) era português e
chegou ao Brasil para trabalhar na pequena fábrica de chapéus de seu irmão mais velho,
José Antônio Fernandes Lopes, no Rio de Janeiro. Em contato com um membro da
Igreja Evangélica Fluminense, tornou-se protestante. E, sob a ética protestante, recusou-
se a continuar trabalhando aos domingos na fábrica do irmão, que o despediu. Robert
Reid Kalley, o escocês pastor da igreja, agiu e conseguiu, junto à colônia britânica do
Rio de Janeiro, um emprego de vigia noturno no porto para José Luiz. Tempos depois,
com a morte do irmão, José Antônio, assumiu a fábrica, tendo comprado a parte do
outro sócio, pagando posteriormente aos herdeiros o que lhes cabia.
A fábrica, tendo como único dono José Luiz Fernandes Braga, após um incêndio, em
1896, permaneceu fechada por dois anos, tendo sido reaberta em São Cristóvão, ao pé
do morro, que mais tarde recebeu o nome de Morro da Mangueira. A fábrica foi
utilizada como polo divulgador do protestantismo. Seus funcionários eram
preferencialmente protestantes, parte de seus lucros eram utilizados para o proselitismo
não apenas no Rio de Janeiro, mas também em Portugal. Seu proprietário foi também
um dos fundadores do Hospital Evangélico do Rio de Janeiro e da Associação Cristã de
Moços.
3
2. Referencial teórico
Como referencial teórico da pesquisa, estou me valendo de Max Weber, Roger Chartier
e Pierre Bourdieu, nos seus trabalhos sobre o estudo das religiões, campo religioso e
protestantismo.
Para Weber, há que se considerar a presença do interesse material na atuação e no
pensar mágico e religioso, fato que traz consigo o desenvolvimento de diferentes
concepções religiosas, todas elas ligadas a uma diferenciação social. E ainda, a ação
social religiosamente orientada faz com que os indivíduos atuem premidos por
princípios religiosos.
Utilizo Chartier, que ajuda a pensar a questão do protestantismo, que no Brasil se insere
num período em que eram discutidas novas ideias, outras visões de mundo, sendo mais
uma opção religiosa num leque que se abriu no país a partir da segunda metade do
século XIX.
Já para Bourdieu, a religião cumpre funções sociais e os leigos não esperariam da
religião apenas justificativas de existir capaz de livrá-los “da angústia existencial, de
doenças, sofrimento e morte, mas contam com ela para que lhes forneça justificações de
existir em uma posição social determinada com todas as propriedades que lhes são
socialmente inerentes”. 2
Na pesquisa abarco os primórdios do estabelecimento da fé protestante no Rio de
Janeiro, vislumbrando os processos imbricados entre a construção dos sentidos de uma
crença religiosa com os contextos do trabalho, da produção e da economia, sendo que os
sujeitos sociais envolvidos na formação da primeira geração de protestantes no Brasil
estavam, ao mesmo tempo, inseridos no cotidiano de práticas culturais, políticas e
econômicas.
Desde meados do século XIX, o protestantismo nascente insurgiu-se como uma prática
religiosa distinta em suas concepções de origem europeia (seus ritos, sua ética e seus
discursos), na relação dialogal e conflituosa com a cultura religiosa forjada nos tempos
coloniais, marcadamente em suas heranças católica, ibérica, africana e indígena. No
2 BORDIEU, Pierre. Gênese e Estrutura do Campo Religioso in Economia das Trocas Simbólicas.
São Paulo: Ed. Perspectiva, 2ª. edição, 1987, p. 48.
4
entanto, sua inserção coincidiu com alterações e mudanças estruturais e conjunturais na
sociedade, que lhe deram determinadas condições para se estabelecer e se consolidar.
3. A Fábrica de Chapéus Mangueira
A Fábrica de Chapéus Mangueira funcionou voltada tanto para a produção visando um
mercado consumidor, como para a expansão da nascente fé protestante no Brasil. Estas
esferas foram mediadas por uma ética protestante incorporada enquanto discurso,
valores, práticas e estratégias. O território fabril constituiu processos importantes nas
dimensões da cultura, da economia e da religiosidade, a partir das relações familiares,
eclesiásticas e econômicas. Tem-se, portanto, uma experiência concreta de como os
valores protestantes oriundos do puritanismo inglês foram aplicados nos trópicos.
A criação, estruturação e desenvolvimento da Fábrica de Chapéus Mangueira, por cerca
de um século, de propriedade da família Fernandes Braga, estabeleceram não somente a
fabricação de chapéus, mas a fabricação de sentidos para sujeitos sociais situados no
campo religioso. Ela financiou obras religiosas, assistenciais, eclesiásticas e culturais,
configurando-se em um importante objeto de estudo histórico a partir da sua trajetória
inserida nas condições do sistema capitalista na época.
Retomo, na pesquisa, os primórdios da fábrica no Rio de Janeiro, identificando o
contexto e seus principais sujeitos. Essa análise propõe a inserção do debate sobre a
historicidade das práticas de determinadas concepções éticas, tomando o protestantismo
como experiência religiosa e histórica.
A atividade dos chapeleiros estava diretamente relacionada às ondas de imigração nos
fins dos oitocentos, fator responsável por conflitos internos nas organizações operárias3.
No caso do Rio de Janeiro, interessa-me particularmente a emigração portuguesa
voltada para as atividades fabris dos chapéus.
Fernando Sousa apresentou os resultados parciais da pesquisa sobre a emigração de
portugueses do norte de Portugal entre os anos de 1834 e 1950. A partir dos livros de
registros de passaportes dos distritos de Aveiros, Braga, Bragança, Porto, Viana do
Castelo, Vila Real e Viseu, Sousa levantou “nomes dos titulares dos passaportes e
3BATALHA, Cláudio H. M. Formação da classe operária e projetos de identidade coletiva in
FERREIRA, Jorge & DELGADO, Lucilia de Almeida Neves, orgs. Rio de Janeiro: Civilização
Brasileira, 2003, p. 168.
5
respectivos acompanhantes, sexo, idade, naturalidade, estado civil, profissão, nível de
alfabetização e destino no Brasil quando possível” 4.
Dessa região norte de Portugal vieram cerca de 960 mil portugueses ou 80% dos que
emigraram para o Brasil, sendo os distritos do Porto e de Viseu os que tiveram o maior
número de emigrantes. O distrito de Braga situa-se no quinto lugar do maior número de
emigrantes, totalizando 3.466 passaportes individuais com destino ao Brasil ou 1,6%,
entre 1835 e 19505·.
A vinda dos irmãos Fernandes Lopes ocorreu no período imediatamente posterior a
1850. As mudanças políticas e econômicas que se deram tanto em Portugal como no
Brasil, criaram as condições para a emigração dos dois da cidade de Braga, norte de
Portugal.
A partir destes dados conjunturais, compreendemos a chegada dos Fernandes Lopes ao
Brasil em meados do século XIX. José Luiz Fernandes Lopes nasceu em 1842, na
cidade de Braga. Chegou ao Brasil em 1858, com 16 anos de idade, a fim de auxiliar
seu irmão mais velho, José Antônio Fernandes Lopes, na produção de chapéus na sua
fabriqueta e de "tentar fortuna” 6. José Antônio chegara entre os anos de 1851 e 1857,
tendo começado a atividade de fabricação de chapéus no Rio de Janeiro em 1857. Em
1869, José Luiz Fernandes Lopes mudou seu nome, tirando o Lopes e acrescentando o
sobrenome Braga, pelo fato de ser sempre identificado com a sua cidade de origem,
sendo chamado de José Luiz Fernandes de Braga.
Em 1862, José Luiz foi levado por João Manoel Gonçalves dos Santos, seu amigo e
membro da Igreja Evangélica Fluminense, à casa de Francisco da Gama, um português
da Ilha da Madeira que havia se refugiado em Illynois, Estados Unidos, por conta de
uma perseguição religiosa aos protestantes pelos idos de 18427 e depois veio para o
Brasil a convite de Robert Reid Kalley, pastor da Igreja Evangélica Fluminense, no Rio
de Janeiro, que havia atuado na Madeira até ser vítima de perseguição religiosa e de lá
4 SOUZA, Jessé. A construção social da subcidadania – para uma sociologia política da
modernidade periférica. Belo Horizonte: Editora UFMG; Rio de Janeiro: IUPERJ, 2003. 5 SOUSA, Fernando de. A emigração do Norte de Portugal para o Brasil: uma primeira abordagem
(1834-1950) in MATOS, Maria Izilda S. de & HECKER, Alexandre (orgs.). Deslocamentos e história:
os Portugueses. Bauru, SP: Edusc, 2008, p. 27.
6 LUZ, Fortunato Gomes da. Esboço histórico da Escola Dominical da Igreja Evangélica Fluminense
- 1855-1932. Rio de Janeiro, Igreja Evangélica Fluminense, 1932, p. 446. 7 Sobre esse tema, ver DAGAMA, João Fernandes. Perseguição dos Calvinistas da Madeira. S/ Ed. São
João do Rio Claro, SP, 1896.
6
fugira para não ser linchado pela população. José Luiz converteu-se ao protestantismo e
tornou-se membro da igreja no ano seguinte. Ao se apropriar da ética religiosa
protestante, negando-se a trabalhar aos domingos, encontrou forte oposição por parte do
irmão. Foi demitido da fábrica, indo trabalhar como vigia das chatas do porto do Rio de
Janeiro, embarcações que traziam mercadorias dos navios que não tinham espaço para
aportar. Tempos mais tarde, o sócio do irmão lhe ofereceu a parte da sociedade que
pertencia a José Antônio Fernandes Lopes, que havia retornado a Portugal
definitivamente, vindo a falecer posteriormente. José Luiz, por motivos religiosos, havia
rompido relações com a família em Braga. Sua cunhada, já viúva, autorizou o sócio do
falecido a procurar José Luiz, convidando-o a assumir a parte do irmão e enviar os
rendimentos a Portugal. José Luiz, então, comprou as partes do irmão e do sócio,
tornando-se o único proprietário da fábrica, saldando as dívidas com a família.
Apesar de iniciar suas atividades em 1857, o ano de 1868 pode ser considerado como o
início de uma nova fase da fábrica, que teve como nome Fernandes Braga & Cia.. Nos
dez primeiros anos (1857-1868) são obscuros os dados e fontes. Neste período, José
Luiz auxiliou o irmão e o sócio, rompeu com a família e a fábrica e, depois, retornou
aos negócios para expandi-los definitivamente.
A fábrica funcionou de 1868 a 1896 na Rua de São Pedro n 100, 102 e 104 e Theophilo
Ottoni n 93, “nestes quatro prédios comunicados entre si, ocupando os andares térreos
e superiores” 8.
8 FUENTES, Baldomero Carqueja ed. Visitas do Sr. Presidente da República - Exm. Sr. Dr. Manoel
Ferraz de Campos Salles - em dezembro de 1899 e janeiro de 1900. Rio de Janeiro, Imprensa Nacional,
1900, p. 58.
7
Até o ano de 1903 podemos ter os seguintes períodos da fábrica:
QUADRO 01 – Períodos da Fábrica de Chapéus Mangueira (1857-1903)
Períodos Nomes Condições da Produção Marcos Número de
Empregados
1857 a 1868
?
Início da fábrica
Manufatura artesanal
Propriedade de José Antônio
Fernandes Lopes e sócio
desconhecido
?
1868 a 1896/98 Fernandes
Braga & Cia.
Tecnologia importada
Propriedade de José Luiz
Fernandes Braga
Expansão mercado interno e
externo
Incêndio em 1896
130
1898 a 1903 Fábrica de
Chapéus
Mangueira
Reconstrução e renovação
tecnológica, ampliação da
produção
Visita de Campos Sales
Crescimento e ondas grevistas.
Ida da Fábrica para a Mangueira
80 a 100
Fonte: SANTOS, Lyndon de Araújo. Memória Viva do Protestantismo no Brasil: Família, Fé e Fábrica.
Campinas, São Luiz e Rio de Janeiro: Associação Basileia, 2008.
A mentalidade de Braga já, desde cedo, conciliou a religiosidade com a expansão dos
seus negócios, por meio de uma ética pessoal e gerencial, certamente apropriada do
puritanismo então vigente no protestantismo brasileiro nascente. Um testemunho
pessoal seu diz que:
Os negócios temporais têm corrido bem, graças a Deus; e creio que esse fato é o
resultado das petições a Ele dirigidas, para provar aos inimigos que se pode servir
ao SENHOR em qualquer posição. O crédito da casa aumenta: os homens do
mundo têm grande confiança no que dizemos. Eis uma razão para vigiarmos contra
o Inimigo das nossas almas, por este lado.9
Seu sucesso era atribuído a Deus, sendo resultado de esforços pessoais e de uma
conduta ilibada. Provavelmente, seu argumento era de que “se pode servir a Deus em
qualquer posição”, fato comprovado pelo aumento do crédito da casa por parte dos
“homens do mundo”, ou seja, dos católicos, devido à honestidade das suas palavras. A
9 ROCHA, João Gomes da. Lembranças do Passado. Rio de Janeiro: Centro Brasileiro de Publicidade
LTDA, 1942, 219.
8
conclusão era a reafirmação de um estado de vigilância moral e religiosa contra o diabo,
responsável por ameaçar a segurança dos seus negócios e de sua vida pessoal. A visão
calvinista da vocação, que deve ser vivenciada no mundo por meio de um proceder ou
de uma ética exemplar, numa evidência de sua eleição é facilmente notada em seu
comportamento. Essa ética exemplar era evidência de sua eleição, num permanente
estado de luta moral e espiritual no mundo.
Entre 1868 e 1896 ocorreu a expansão dos negócios, tanto no mercado interno como no
externo, a importação de tecnologia e a consolidação da produção. A publicidade nos
jornais enfatizava a modernidade do empreendimento e do processo de fabricação do
chapéu com tecnologia, eficiência e rapidez. Além disso, o chapéu trazia a
representação do asseio, da limpeza, da perfeição e da elegância, componentes de uma
estética social e que se relacionavam com os valores religiosos puritanos.
Em 1896 houve um incêndio de grandes proporções na fábrica. José Luiz estava num
culto, correu até o local e disse: “salvem os livros”, com registros contábeis da fábrica,
para que não parecesse que fora um incêndio criminoso. Na época, cerca de 130
empregados perderam seus empregos por conta do incêndio10
.
Foram gastos dois anos na construção das novas instalações da fábrica, que foi
deslocada para outro local menos insalubre, mais apropriado para a escala maior de
produção, a primeira parada dos trens que partiam da estação Pedro II. No local havia
uma grande mangueira que servia de referência, tornando-se a estação primeira da
Mangueira. A fábrica foi então construída ao pé da mangueira, com máquinas mais
modernas, com uma nova estrutura para aumento da produção, juntamente com casas
para os operários. A região de São Cristóvão era nessa época a direção para onde as
fábricas se deslocavam, concentrando mão de obra e novos bairros de ocupação11
.
A fábrica foi reinaugurada em 1898, e contava com cerca 100 operários, tendo sido
realizado um culto, fato que revelava a conciliação dos dois universos complementares
e componentes daqueles protestantes, a Igreja e a Fábrica. O jornal O Cristão informou
que no culto o pastor orou a fim de “implorar a direção e bênção de Deus sobre o
10
O CRISTÃO, 1896, p. 15. 11
SECRETARIA MUNICIPAL DE CULTURA, TURISMO E ESPORTES. São Cristóvão: um bairro
de contrastes. Departamento Geral de Patrimônio Cultural, Turismo e Esportes. Rio de Janeiro,
Departamento Geral de Patrimônio Cultural/Departamento Geral de Documentação e Informação
Cultural, 1991. (Bairros Cariocas; v. 4).
9
proprietário e operários” 12
. E no final da matéria, a informação relevante: “Esta fábrica
não funciona aos domingos”.13
4. Conclusão
A Fábrica de Chapéus Mangueira e seu proprietário abrem caminhos para avaliar a tese
weberiana de que, cultural e historicamente, procedeu-se a uma vinculação entre a ética
calvinista protestante e o espírito do capitalismo. A historicidade da aplicação dessa
ética no contexto brasileiro com as suas especificidades sociais, econômicas e culturais,
ajuda a rever tal assertiva. Isso pelo fato de que toda ética está condicionada à situação
histórica de sua experimentação.
A ética protestante de José Luiz Fernandes Braga se deu em condições históricas únicas,
constituída no contexto cultural adverso e num tipo de capitalismo periférico e
dependente do centro do sistema. Ela estendeu seus valores e visões de mundo à relação
entre produção e sagrado, entre trabalho e religiosidade, entre conflitos de classe e
conciliações. Enfim, uma fábrica de sentidos funcional aos seus sujeitos e aos seus
atores sociais.
A pesquisa tem possibilitado a compreensão das razões que fizeram esta unidade de
produção ter atravessado diferentes fases da história, por pouco mais de um século
(1857 a 1965), diversificando as análises e as abordagens do seu mundo ou dos seus
mundos cruzados entre a religião e a produção. Também é possível perceber como a
presença de práticas e de valores religiosos protestantes constituíram processos
importantes nas dimensões da cultura, da economia e da religiosidade, a partir das
relações familiares e das relações de produção numa fábrica. A fé, a família e a fábrica
constituíram-se em uma unidade fundante de práticas, discursos e representações dentro
e fora dos espaços religiosos do protestantismo.
O chapéu fazia parte do vestuário de qualquer cidadão que fizesse parte da civilização e,
conforme a visão da época, consequência da situação moral de um indivíduo ou de um
povo. O chapéu cumpria um papel social como peça do vestuário. Além de inserir o
indivíduo na civilização e na moral, o chapéu obedecia a normas de comportamento,
indicando a escala social onde se encontrava quem o usava.
12
O CRISTÃO, 1898, p. 12. 13
Idem, p. 12.
10
Uma análise interessante sobre a visão social do uso do chapéu nos textos de Machado
de Assis é feita por Miécio Tati. O chapéu, à época, era uma peça indispensável ao
vestuário masculino; em meados do século XIX não era habitual andar sem chapéu
pelas ruas. Era uma cobertura obrigatória para as cabeças masculinas, que eram
reconhecidas pelo modelo que usavam. Comprados na Corte ou fabricados em Paris, "o
importante era cobrir-se", de acordo com as situações e os contextos. O ato de escolher
um modelo de chapéu foi assim descrito por um dos personagens machadianos: “A
escolha do chapéu não é uma ação indiferente, como você pode supor; é regida por um
princípio metafísico”. 14
A fábrica de Fernandes Braga, que já atuava no mercado desde meados do século XIX,
foi ainda mais favorecida por esta prática do fim do século (décadas de 1880 e 1890).
Um crescente mercado de consumo, o fácil acesso às matérias-primas e máquinas
importadas da Europa e uma "força de trabalho disponível em abundância" funcionaram
como condições favoráveis à consolidação e à expansão da fábrica neste período.
Na visão de José Murilo de Carvalho, ao analisar o impacto da proclamação da
República entre a elite política e em toda a população, no âmbito das mentalidades, o
processo desencadeado pela "saída da figura austera e patriarcal do velho imperador" foi
de afrouxamento do padrão de moral e de honestidade. Isto refletiu no tipo de
capitalismo praticado de forma predatória "desacompanhado da ética protestante,
estimulado pelo encilhamento dos anos 90 “15
.
O nascente protestantismo foi diretamente favorecido pela ética religiosa de José Luiz
Fernandes Braga: um português, ex-católico, proprietário de uma fábrica com cerca de
100 empregados, que tinha uma ética caracterizada pelo ascetismo moral, um dado
ausente no conjunto das práticas do tipo de capitalismo estabelecido no Brasil. Num
país situado na periferia do sistema econômico e de tradições católica, escravista e
patriarcal, a experiência pontual de uma ética religiosa protestante proporcionou a
acumulação de capital, mas também a contribuição para a formação de um ethos
protestante.
14
TÁTI, Miécio. O mundo de Machado de Assis - O Rio de Janeiro na obra de Machado de Assis.
Rio de Janeiro, Secretaria Municipal de Cultura, Turismo e Esportes, Departamento Geral de Informação
Cultural, Divisão de Editoração, 1991. (Biblioteca Carioca; v. 16), p. 120. 15
CARVALHO, José Murilo. Os bestializados - o Rio de Janeiro e a República que não foi. São
Paulo, Companhia das Letras, 1987, pp. 26 ,27.
11
O excedente e o lucro eram canalizados para igrejas e entidades civis do mundo
protestante (Associação Cristã de Moços, Sociedades Bíblicas e o Hospital Evangélico).
Além disso, havia o sustento de missionários, o auxílio para as Igrejas em Portugal e a
construção de templos. A fábrica, até a década de 1960 do século XX, caracterizou-se
neste caso de exceção diante no contexto industrial brasileiro.
José Luiz Fernandes Braga inaugurou uma casa de oração no subúrbio da Mangueira
cujo terreno e os custos da construção foram supridos por ele. Estabeleceu-se um
complexo industrial, eclesiástico e familiar, compondo num mesmo espaço físico as
dependências da fábrica, um templo e casas para os operários16
, pois todas as condições
deveriam ser dadas para que todos ouvissem a pregação da fé evangélica. O operariado
era visto não somente como mão de obra empregada, mas como futuros conversos, no
caso dos não protestantes. A fábrica era um veículo de evangelização de operários que,
por sua vez, eram supridos com moradia (vila dos operários), assistência médica (no
Hospital Evangélico) e templos religiosos (Igreja Evangélica Fluminense e congregação
da Mangueira). O proprietário supria o alimento do corpo e da alma, através do trabalho
e da salvação.
Esta postura patronal-religiosa pode ser conciliada com a análise que considera este
período formador de uma ação pedagógica paternalista dos patrões industriais, que se
esforçavam em "determinar os caminhos da formação do proletariado", higienizar a
fábrica, prover assistência social aos operários, protegê-los, a fim de atenuar - e negar -
os conflitos entre capital e trabalho17
. José Luiz Fernandes Braga, porém, foi além, ao
acrescentar a estes benefícios a religião, a partir de sua ética.
Em minha análise, procuro, portanto, cotejar as perspectivas culturais e religiosas, a
partir de um território específico, o de uma fábrica onde os valores de uma dada ética
religiosa intervieram. A pergunta que tenho feito desde o início das pesquisas, ainda em
andamento é: em que medida essas práticas e visões de mundo ligadas à ética
protestante se inseriram no processo de constituição das relações de trabalho no
contexto da produção fabril no Rio de Janeiro? Pretendo, ao terminar a pesquisa e a
tese, ter a resposta para esta e outras questões que estão postas.
16
O CRISTÃO, 1907, p. 13. 17
RAGO, Luzia Margareth. Do cabaré ao lar: a utopia da cidade disciplinar - Brasil 1890-1930. Rio
de Janeiro, Paz e Terra, 198, pp. 32-47.
12
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13
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Vista da fábrica do Morro da Mangueira. Maciço da Tijuca ao fundo
Incêndio da fábrica, com José Luiz Fernandes Braga, em 1896