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MANIFESTO PROTESTANTE ANTI-FUNDAMENTALISTA LUTA PELO PROGRESSO DA REFORMA PROTESTANTE NO BRASIL Ricardo Quadros Gouvêa 2002

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MANIFESTO PROTESTANTE ANTI-FUNDAMENTALISTA

LUTA PELO PROGRESSO DA REFORMA PROTESTANTE NO BRASIL

Ricardo Quadros Gouvêa

2002

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Introdução  

Estamos em um momento crítico e singular na história do protestantismo brasileiro. A ameaça neo-puritana e fundamentalista mostra-se cada vez mais real e já é tempo de todos aqueles que abraçam de coração o genuíno espírito da reforma protestante se manifestem e se organizem, antes que seja tarde demais e que as forças sectaristas levem as denominações históricas para os radicalismos puritânicos, fundamentalistas e carismáticos.

Este breve ensaio visa dar início a esta atividade que é hoje imprescindível se quisermos ainda sonhar com o progresso do protestantismo e da reforma no Brasil.

Trata-se de um manifesto que propõe um redirecionamento programático para a igreja e a teologia evangélicas do século 21, um redirecionamento que nos sirva de orientação, de mapa intelectual para as igrejas históricas.

Minha intenção é apresentar dez pontos programáticos, na forma de um verdadeiro manifesto com vistas à restruturação da reflexão teológica no Brasil.

Entretanto, antes de entrarmos nos dez pontos programáticos, começaremos este estudo respondendo a quatro perguntas introdutórias fundamentais, muito comuns hoje nos círculos evangélicos de reflexão eclesial e teológica. As quatro perguntas são: a) o que é ser cristão hoje; b) o que é ser igreja cristã hoje; c) o que é ser um pastor cristão hoje; e d) o que é fazer teologia cristã hoje.

Deixo claro desde já que não tenho a pretensão de esgotar estes assuntos. Como poderia? Minha intenção é fomentar o debate, e tornar óbvia a necessidade de buscarmos respostas para estas perguntas que, por estarem carecendo de respostas satisfatórias e por serem fundamentais, fazem-nos contemplar a necessidade deste redimensionamento do fazer teológico a que nos propomos. A meditação nestes temas, portanto, proporcionará a atmosfera adequada para a reflexão programática que segue.

Após oferecer respostas provisórias a estas quatro perguntas, apresentaremos e discutiremos os dez pontos programáticos essenciais que consideramos adequados para o nosso momento histórico tanto na vida da igreja quanto na teologia.

Passemos agora, então, às perguntas sugeridas:

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A.     O que significa ser cristão hoje?

Muitos se dizem cristãos, mas nem todos de fato o são. Muitos se dizem cristãos, mas nem todos vivem de forma consistente com esta declaração.

Isto não é um julgamento de indivíduos em particular, mas uma verdade evangélica. O próprio Senhor Jesus alertou-nos para este fato, ao dizer que muitos o chamariam de “Senhor”, sem que houvesse autenticidade nesta confissão, e ao dizer que haveria falsos profetas e lobos cobertos com peles de ovelhas no meio do rebanho.

Assumimos desde já, portanto, que nem todos os que se dizem cristãos, de fato, o são. Por inferência, assumimos que nem todos que se dizem protestantes, de fato, o são; que nem todos os que se dizem evangélicos, de fato, o são; e que nem todos os que se dizem reformados, de fato, o são.

Muito pelo contrário, o mundo protestante brasileiro parece, em grande parte, ter-se esquecido o que significa ser protestante. O espírito dos reformadores não se faz mais presente no coração da maioria dos evangélicos que, consciente ou inconscientemente, sucumbem a um lento e progressivo processo de catolicização, re-catolicização ou medievalização. A cosmovisão que se desenvolveu a partir da reforma vê-se hoje sob o risco de ser substituída por novas cosmovisões catolicizantes, judaizantes e carismáticas.

Há um engano sendo vivido e proclamado pelas igrejas evangélicas. Eis o engano: pensa-se que basta ser evangélico “de carteirinha”, isto é, freqüentar uma igreja evangélica, usar o jargão evangélico (o chamado “evangeliquês”) no linguajar diário, abraçar uma ética pessoal em consonância com os costumes evangélicos, e assim por diante, para ser um verdadeiro cristão, isto é, para viver a comunhão com Deus por meio de Cristo. Com esse engano, estamos re-inventando no Brasil a figura do cristão evangélico nominal. É por isso que temos visto celebridades facilmente se declararem evangélicas. Muitos hoje estão emulando a graça barata de que Dietrich Bonhoeffer nos fala no seu Nachfolge, seu clássico sobre o discipulado cristão.

O que define o cristão não é o fato de ele se dizer cristão ou evangélico, nem é o fato de freqüentar uma igreja evangélica, nem mesmo o fato de ler a Bíblia ou fazer suas orações diárias. O que determina que alguém seja ou não seja um cristão é sua vida, seu modus vivendi, que deve estar em consonância com a Oração do Senhor, que diz: “Venha o Teu Reino; seja feita a Tua vontade, ó Pai Celeste, assim na terra como é no céu”.

Não há salvação sem discipulado, e discipulado significa ser um aluno de Jesus Cristo e seguir os seus passos. Ser cristão hoje,

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portanto, deveria ser entendido como a disposição de seguir os passos de Jesus, de ser um discípulo de Cristo e viver a vida de Jesus Cristo hoje, e então poder dizer, como disse Paulo, “já não sou eu quem vive, é Cristo quem vive em mim”, ainda que tenhamos, no fim do dia, de confessar nossa incapacidade de tornar real nossa intenção manifesta em nossa oração matinal, de que a beleza e o aroma de Cristo sejam encontrados em cada um de nós.

Não estamos com isso querendo sugerir uma forma de neonomismo legalista. Muito pelo contrário, percebemos que foram exatamente os fundamentalistas e puritanos legalistas que nos trouxeram até esta crise atual, pois, pelo estabelecimento de regras comportamentais pueris, levaram-nos a “coar o mosquito e engolir o camelo”.

As grandes questões éticas, conectadas invariavelmente aos relacionamentos sociais, foram minimizadas sob o peso de regras de conduta ascéticas que nos levaram a uma ética pessoal individualista e pragmática e, portanto, anti-ética, isto é, uma verdadeira contradição em termos, uma contradição típica dos extremismos.

A resposta, portanto, não está nem no antinomianismo da graça barata nem no neonomismo do legalismo comportamentalista, mas em uma ética fundamentada em princípios bíblicos, que priorize os relacionamentos e dignifique cada ser humano, dando-lhe a competência e a responsabilidade de escolher suas atitudes e definir suas práticas a partir de parâmetros normativos divinamente outorgados e não a partir de regras heteronômicas.

Em suma, o que é ser cristão hoje? É viver a fé cristã hoje! E o que é viver a fé cristã hoje? Seria preferir uma certa forma de liturgia no momento em que a igreja local se reúne para o exercício de adoração? Seria perpetrar certos rituais tradicionais e desprezar outros? Seria preferir uma certa interpretação bíblica a outra, nas disputas escolásticas a respeito de versos difíceis da Escritura Sagrada? Seria achar-se dono da verdade teológica, proprietário do conhecimento do ser de Deus, douto nas velhas doutrinas e capaz de compreender os meandros dos paradoxos dogmáticos? Seria experimentar certas iluminações místicas e passar por experiências religiosas inefáveis que infundem conhecimentos secretos que nos fazem mais espirituais que outros? Não creio em nenhuma destas possíveis respostas.

Viver a fé cristã hoje é viver o discipulado cristão, isto é, é ser um seguidor de Cristo hoje na terra, é ser corpo de Cristo no mundo, reino de sacerdotes, luz do mundo e sal da terra. Ser cristão é dizer não à mera religiosidade, e sim à vida espiritual relacional, abraçando a responsabilidade pela reforma palingenética da criação de Deus, no combate ao pecado da objetificação de Deus e do próximo, na apropriação gloriosa da salvação por meio de Cristo em nós, no poder do Espírito Santo de Deus, que era, que é, e que será eternamente, a Ele seja dada toda a glória pelos Séculos dos Séculos.

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B.     O que é ser uma igreja cristã hoje?

Há apenas uma igreja, o Corpo de Cristo, una, santa, universal, fundada no ensino apostólico. Eu olho, entretanto, ao meu redor e vejo uma miríade de igrejas e denominações. Precisamos, é claro, buscar a unidade do genuíno evangelho cristão por trás desta diversidade institucional. Todas estas denominações e congregações se dizem cristãs, mas em muitas delas é difícil enxergar, por trás de toda uma larga crosta de badulaques e maquiagem, o genuíno evangelho da graça transformadora, aquilo que deveria ser o coração pulsante de qualquer igreja que se chame cristã.

Eu uso a palavra “evangélica” com muito cuidado ultimamente, pois o termo já não é mais sequer um referência às boas novas da salvação pela graça mediante a fé, mas sim uma indicação social de que se trata, em geral, de uma pessoa ou instituição cristã não-católico-romana.

Grande parte destas igrejas evangélicas são, na verdade, a impensável quimera: religiões cristãs-pagãs. Elas estão de tal maneira influenciadas pelo neopaganismo de nossos tempos que nelas efetuou-se uma espécie de síntese demoníaca entre o ritualismo e o pietismo cristãos com uma cosmovisão nitidamente animista.

Eu estou falando especialmente das igrejas chamadas neopentecostais, caracterizadas pela graça barata de uma religiosidade sem princípios éticos, pelo animismo de um mundo dominado por forças espirituais, e pela teologia da prosperidade, as infindáveis barganhas com Deus que fariam os vendedores de indulgências dos tempos de Lutero corarem de vergonha.

Os desvios do pentecostalismo clássico (com a licença do oxímoro), são de outra natureza. Nós aqui destacaremos apenas os dois mais importantes.

Primeiro, o legalismo pentecostal em que o evangelho da graça soçobra num emaranhado de regras de conduta. O legalismo que tem levado os membros das igrejas pentecostais aos manicômios e os pastores pentecostais ao suicídio. O legalismo, esse cartesianismo da piedade, que pensa poder construir um povo genuinamente cristão por meio de imposições e controle dos costumes.

O legalismo puritano das igrejas históricas também tem sido, entretanto, um motivo de vergonha para toda a comunidade cristã, pois é uma afronta ao evangelho daquele que comia com os ladrões e as prostitutas, daquele que tocava e cuidava dos leprosos, daquele que curava aos sábados, e que afirmou ser o sábado feito para o homem, e não o homem para o sábado.

E em segundo lugar, o sensorialismo. Todos sabemos que há muitos pentecostais que desviaram-se da genuína intimidade com

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Deus que se dá por meio da união mística com Cristo, da percepção da transcendência e da imanência divinas e do engajamento na missão de Deus no mundo, e partiram para a busca louca de experiências sensórias que lhes dêem garantias da presença e da ação de Deus.

O sensorialismo, essa mula-sem-cabeça da espiritualidade cristã contemporânea, tem como graves conseqüências o abrir as portas para o mais descarado charlatanismo, o levar muitas comunidades ao caos das manifestações sobrenaturais, e finalmente à ridicularização da ação miraculosa de Deus entre os homens, transformando tantas igrejas em tendas de milagres similares às dos cultos africanos, fazendo um pasquim e uma caricatura dos grandes milagres de Deus na história, tornando-os tão comuns e naturais como um show de televisão que se repete a cada semana, tornando os milagres de Jesus comuns e naturais, vulgares como um comentário passageiro numa conversa fortuita. Este foi um dos resultados nefastos de cem anos de pentecostalismo clássico.

Mas o que dizer das igrejas protestantes históricas? Não são elas constantemente acusadas, com a maior justiça, de serem frias e sem vida? Não são muitas delas justamente acusadas de terem se tornado clubes de encontros e sociabilização, onde converso com os amigos, onde levo meus filhos para que encontrem seus futuros cônjuges, onde eu me descarrego da culpa de uma vida sem Deus? Onde está a energia protestante que engajava os crentes no projeto de transformação do mundo? Onde está a influência protestante sobre a sociedade e o mundo em que vivemos? Por que não vemos as igrejas protestantes moldando a cultura, a moral, as artes e a vida intelectual da sociedade brasileira? Será que esquecemos o que é ser igreja? Será que deixamos para trás os nossos compromissos e os mandatos divinos, como o mandato cultural e o mandato social? Será que nos ensimesmamos ao ponto de somente nos preocuparmos com nosso próprio crescimento espiritual e o ganhar novas almas para a denominação a que pertencemos? Será que nos tornamos tão estéreis na nossa religiosidade que os desafios que encontramos diante de nós são sempre os desafios de fazer frente a outras formas de religiosidade em vez dos desafios decorrentes da busca de uma expressão cada vez mais genuína daquilo que desde a reforma do século 16 consideramos a essência do pensamento e da prática cristãs?

Qual seria, então, a marca indelével de uma igreja cristã hoje? Creio que a única resposta apropriada é: o amor, em todas as suas dimensões e com todas as suas conseqüências. As igrejas cristãs são comunidades onde se pratica o amor, onde o amor reina soberano. O conceito de amor, entretanto, tornou-se tão etéreo, tão abstrato, tão nebuloso, que hoje a palavra já não significa mais nada. É preciso explicar o que se quer dizer por amor, pois sem dúvida foi amor que Jesus Cristo nos disse ser o resumo da lei no capítulo vinte-e-dois do Evangelho Segundo Mateus: “Amarás o Senhor teu Deus de todo o

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teu coração, de toda a tua alma e de todo o teu entendimento. Este é o grande e primeiro mandamento. O segundo, semelhante a este é: Amarás o teu próximo como a ti mesmo. Destes dois mandamentos dependem toda a lei e os profetas”. E Paulo afirma, no décimo-terceiro capítulo de sua Carta aos Romanos, ser o amor o cumprimento da lei: “quem ama o próximo tem cumprido a lei. Pois isto: não adulterarás, não matarás, não furtarás, não cobicarás, e se há qualquer outro mandamento, tudo nesta palavra se resume: Amarás o teu próximo como a ti mesmo. O amor não pratica o mal contra o próximo; de sorte que o cumprimento da lei é o amor”.

Viver em amor para com Deus e para com o outro é viver em comunhão com Deus e realizar seu propósito para nossas vidas neste mundo. Mas é preciso que definamos melhor o que entendemos por amor: amor significa solidariedade, dignificação, compaixão e sacrifício. A comunidade que se diz cristã só é de fato cristã se viver em amor, isto é, se praticar a solidariedade para com Deus e sua missão, se praticar a dignificação de Deus e dos seres humanos, se fizer da compaixão uma prática permanente e ininterrupta.

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C.     O que é ser um pastor hoje?

O pastorado é uma vocação sagrada. Num certo sentido, todos somos pastores uns dos outros, responsáveis uns pelos outros. Todavia, o pastorado, stricto sensu, isto é, o pastorado de igrejas locais e comunidades cristãs, é uma vocação muito específica para alguns homens e mulheres que Deus chama para esse trabalho.

Portanto, assumimos como pressuposto bíblico que Deus convoca alguns seres humanos para pastorearem comunidades cristãs. Entretanto, quando eu olho ao meu redor, vejo pastores que são aproveitadores gananciosos, abusadores neuróticos, charlatões fracassados, ou psicóticos carismáticos.

Há pastores sérios, no entanto, que estão no momento, infelizmente, incapazes de transmitir um evangelho vivo às suas ovelhas, e estas estão mal nutridas. Há também pastores que são verdadeiros servos de Deus, fazendo bem o seu trabalho, graças a Deus. Estão desanimados de ver o seu trabalho santo de pastoreio transformado em um trabalho de politicagem tribal, no esforço contínuo por manter o grupo unificado, satisfazendo vaidades pessoais, administrando melindres dos grupelhos da comunidade.

Tenho visto pastores e líderes evangélicos cada vez mais preocupados com os números, com a freqüência nos cultos e o saldo em caixa, com o número de novas igrejas plantadas. O crescimento numérico passa a ser um fim em si mesmo, e toda a conversão passa a ser vista, sem que isso seja jamais explicitamente comunicado, muito mais uma bênção para a igreja que para o indivíduo convertido. Sucumbe-se assim ao espírito do tempo, e ao liberalismo, a igreja torna-se uma empresa, ainda que sem fins lucrativos, ou ao menos aparentemente sem fins lucrativos, mas mesmo assim uma empresa que visa a arrecadação de fundos e a venda e distribuição de um produto de consumo, numa sociedade de mercado onde a publicidade é a alma do negócio, e a ética se transforma em maquiavelismo sob o efeito das práticas inescrupulosas daqueles que seguem as leis do mercado.

O pastor cristão não deveria jamais, em hipótese alguma, colocar outras coisas quaisquer na frente das pessoas, isto é, como mais importantes do que as pessoas com as quais lida, as ovelhas que foram colocadas sob seu cuidado. O líder não deve colocar nenhuma forma de aumento numérico, seja de dinheiro, seja de pessoas, seja de congregações, à frente de seu trabalho de discipulador e consolador das ovelhas.

Muito além disto, no entanto, vão as implicações de um pastorado biblicamente orientado para o bem-estar das ovelhas, em que todo sacrifício em prol das ovelhas é desejado e esperado, e em que nada, absolutamente nada é colocado à frente do cuidado com as mesmas. O pastor não pode pensar, por exemplo, que a doutrina é

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mais importante que o amor fraternal, ou que a liturgia é mais importante que a comunhão eclesial, ou que o ensino da Bíblia é mais importante que a mente livre dos crentes, pois a Bíblia foi feita para os crentes e não os crentes para a Bíblia.

A Palavra de Deus escrita, texto fundante e autoritativo para todos os cristãos, deve servir para a iluminação das mentes e não para o obscurantismo dos doutos. A doutrina deve ser um farol, um estandarte, um símbolo de fé, e não um labirinto de logomaquias e chiboletes gnósticos e sectaristas.

A liturgia, por fim, deve ser um meio de transporte, não um cárcere. E um cárcere decorado no estilo clássico tradicional ou no estilo informal contemporâneo, continua sendo um cárcere, em vez de um veículo de libertação.

O que deveria ser a vida e o trabalho do pastor hoje? Deveria ser, antes de tudo, uma vida de discipulado cristão que servisse de exemplo, de modelo, para o povo. Em segundo lugar, deveria ser uma vida de médico de almas, dedicado ao cuidado com a vida espiritual das ovelhas, fazendo de sua igreja uma comunidade terapêutica, como se costuma dizer, mas que não se costuma encontrar em parte alguma. Antes, o que encontramos são igrejas e mais igrejas trabalhando como verdadeiras fábricas de neuróticos moralistas, de gente obcecada com a religião, de paranóicos animistas perseguidos por demônios e de esquizofrênicos divididos entre o mundo de Deus e o mundo das coisas terrenas. Em terceiro lugar, o pastor deveria ser um comandante que dirige as ações cristãs da sua comunidade para que ela possa ser uma influência na sociedade em que está inserida.

Somente a igreja composta de cristãos comprometidos com o mandato cultural e a vida cotidiana na terra, no mundo criado por Deus, pode viver o padrão eclesial que é adequado para os nossos dias, não de apocalipticismo e pessimismo, mas de prática reformacional e esperança na transformação do mundo e das instituições sociais e culturais pela igreja, Corpo de Cristo, no poder do Espírito Santo de Deus.

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D.    O que é fazer teologia hoje?

Fazer teologia hoje certamente não é simplesmente repetir velhas formulações, nem muito menos continuar a fazer a caduca defesa da fé a partir de uma cosmovisão setecentista. Assim como certamente não é sucumbir às pressões mundanas de conformidade com o século, nem também privilegiar modismos novidadeiros. O papel do teólogo é constantemente repensar a tradição. Em outras palavras, nem repetir, nem rejeitar, mas traduzir e atualizar a tradição para que a vida da tradição teológica seja preservada e sua aplicação seja sempre e cada vez mais eficiente.

O teólogo precisa estar, portanto, solidamente calcado na tradição, mergulhado nas fontes primárias das Escrituras Sagradas e dos grandes vultos da história das idéias cristãs. Não para repetir meramente, pois isto seria tradicionalismo estéril, nem para rejeitar ou rever, pois isto seria inovacionismo invencionista e caótico, mas antes para sustentar a tradição, mostrar o seu vigor e seu valor, poli-la para que apareça ante nossos olhares como uma opção não só viável mas também desejável. Este é o fascinante trabalho do teólogo.

Quais são, portanto, os grandes desafios da teologia protestante, e particularmente daquela que se diz reformada, ante as novidades teológicas modernas? É enfrentar com os pés firmes na tradição e os olhos voltados para o mundo ao nosso redor, os modernismos teológicos nas suas formas mais extremadas. São três, em minha opinião, os principais extremismos modernistas que nos cabe rejeitar: a) O Carismatismo; b) O Liberalismo; c) O Fundamentalismo.

Cada uma destas três posições extremistas devem ser rejeitadas, não só por serem extremistas, isto é, por não serem equilibradas, sóbrias, criteriosas, mas sim extremadas e instáveis, e isto porque surgiram já de uma perspectiva de confrontação e portanto de exaltação emotiva, mas também e principalmente por serem todas as três posições novidadeiras. Estes três tipos de teologia surgiram recentemente. Falta a cada uma das três o ancoramento na tradição de dois mil anos, a tradição do pensamento cristão e da prática cristã, tradição esta que, se não abraço, não sou verdadeiramente parte dela, e deixo de ser um cristão.

Isso não quer dizer, é claro, que tudo que vem destes movimentos é ruim. Não é verdade, e nem poderia ser, pois estes movimentos surgem como radicalizações de certos aspectos da tradição, e apontam para esquecimentos e lacunas na prática da constante recuperação da tradição. Estes aspectos da tradição que estão no origem destes movimentos são valiosos elementos da prática e do pensamento cristão. O problema está somente na proposta do extremismo, na ânsia pela radicalização.

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Os extremistas, quer carismáticos, quer liberais, quer fundamentalistas, compartilham algumas características básicas de atitude e comportamento que queremos utilizar na elaboração desta proposta de trabalho para a igreja cristã, ortodoxa, protestante e reformada no século 21. Quais seriam estas características comuns? Elas são: (i) a intolerância, (ii) o sectarismo, (iii) o obscurantismo, (iv) o belicismo, (v) o dogmatismo, (vi) a presunção epistemológica, (vii) o superficialismo bíblico ou biblicismo, (viii) o exclusivismo e o inclusivismo, (ix) o guetoísmo eclesiástico, e por fim (x) o legalismo e o pragmatismo éticos. Nestes pontos programáticos estaremos sugerindo opções alternativas opostas a estas tendências extremistas.

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1.    Tolerância em vez de Intolerância

A tolerância é um dos frutos do amor e, na verdade, nenhum amor é perfeito que não contenha também tolerância para com aquele que é diferente, que age diferentemente, que pensa diferentemente. Quando amamos verdadeiramente, somos tolerantes, aprendemos a nos colocar no lugar do outro, na situação do outro, não apenas na condição física e social do outro, mas também na sua condição mental, no seu nível educacional, na sua realidade existencial, e é aí, em geral, que costuma nascer em nós a verdadeira tolerância.

Infelizmente, nem sempre tem sido assim. A intolerância tem sido uma marca constante e uma das principais causas dos pecados dos cristãos e da igreja através da história. Felizmente, em contrapartida, a história também está indelevelmente marcada pelo testemunho de cristãos e de comunidades cristãs que, em praticando atitudes de tolerância, demonstraram profundo amor e conquistaram o coração das multidões por esta dignificação do outro, do diferente, do antagônico.

Todos nós sabemos que a história do cristianismo é salpicada de momentos da mais bárbara ignorância intolerante, como, por exemplo, as cruzadas medievais, as guerras religiosas da era das reformas religiosas na Europa, a condenação das bruxas em Salém, nos Estados Unidos, e mais recentemente no fundamentalismo norte-americano, ligado ao macarthismo anti-comunista, que chegou ao Brasil e às igrejas batistas e outros grupos evangélicos, durante os anos sessenta, e que permanece ativo até hoje em grupos intelectualmente recalcitrantes.

Hoje ainda encontramos em nossas igrejas, devido aos grupos que se formaram, extremismos fundamentalistas. Em algumas denominações, e em certas regiões do país, estes grupos ainda controlam a educação teológica. Nestes grupos, bem como em outros focos de extremismo tanto de cunho liberal como de cunho carismático, encontramos uma crescente intolerância. Esta intolerância é de parte a parte, de uns para com os outros. Pior para os que gostariam de ocupar uma posição equilibrada e optar pela via média. Estes são perseguidos por todos os grupos.

O problema não é o de existirem posições divergentes. A divergência de opiniões é muito salutar. O problema é justamente o contrário: é haver intolerância para com aqueles que pensam diferentemente de um indivíduo ou grupo específico, ou melhor, diferentemente daqueles que são intolerantes.

Isso me faz lembrar do famoso lema da tolerância cristã: em tudo que é essencial, a unidade; em tudo que não é essencial, a pluralidade, e em todos reine o amor. Tolerância significa perceber que aquilo que nos une é maior que aquilo que nos divide. Os grupos

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extremistas, no entanto, recrudescem-se em suas trincheiras diante de propostas como esta, e passam a considerar todas, ou quase todas as suas posturas teóricas ou práticas como essenciais. E se cada um se mantém agachado em sua trincheira, o diálogo se torna impossível.

E isso nos leva a um segundo problema ou dilema: não devemos somente optar pela tolerância em vez da intolerância, mas também pelo diálogo. Sigamos, portanto, ao próximo assunto, relacionado diretamente a este, que é a pouca disposição por parte dos extremistas intolerantes ao diálogo construtivo.

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2.    Diálogo em vez de Sectarismo

Há quem faça uma distinção, ao meu ver falaciosa, entre intolerância e intransigência. Na minha opinião, o intransigente é ad hoc et propter hoc intolerante. Dizer que o intransigente pode ser, de alguma forma misteriosa, tolerante, é como inventar um tipo falso, inteiramente abstrato de tolerância, uma tolerância para inglês ver, uma tolerância de faz-de-conta. Tolerar é transigir, ou estar sempre disposto a transigir em prol da unidade, do respeito, da dignificação do outro, do amor.

Tolerância implica, portanto, em diálogo. E diálogo, quando é diálogo honesto, implica no fim da intransigência, na disposição para debater os assuntos com abertura, com franqueza e admitindo que o outro pode estar certo. Diálogo significa aceitar que o outro pode ter mais razão, e permitir-se convencer-se pelo outro, caso isso fique demonstrado no final do diálogo.

Todo ser humano tem o direito de não dialogar, de permanecer monologando no isolamento das nossas convicções indestrutíveis. No entanto, se nos indispusermos para o diálogo, cairemos inevitavelmente no sectarismo. Estamos hoje assistindo a um crescente movimento de sectarização no mundo chamado evangélico. O protestantismo tornou-se uma fábrica de “seitas”. O risco maior ainda está adiante de nós, eu imagino, que é nós mesmos, os chamados “protestantes históricos”, nos sectarizarmos, pois há forças sectaristas ativas nas denominações históricas.

Nós nos sectarizamos quando nos desligamos do mundo que nos cerca, quando nos desconectamos de outros grupos cristãos, e ficamos com cara de seita. A sectarização acontece quando nos indispomos ao diálogo com quem pensa e age diferentemente, com outras denominações cristãs. A sectarização torna-se um fato concreto naquele momento em que começamos a achar que possuímos a única expressão correta da doutrina cristã, quando confundimos o Reino de Deus com a nossa própria denominação, como tenho visto em alguns grupos dentro das igrejas protestantes históricas e igrejas evangélicas em geral.

O remédio contra o sectarismo é o diálogo franco e aberto. É por isso mesmo que os líderes das seitas não gostam que seus seguidores conversem com parentes e amigos, não gostam que seus adeptos leiam livros que não exponham o pensamento esposado pela própria seita. É por isso que percebemos nas seitas uma preferência, e às vezes uma exigência, que os seus membros não tenham contato com membros de outras seitas ou denominações cristãs. Porque, ao terem esse contato, seus membros vão abrir-se ao diálogo, e o diálogo é o grande adversário do sectarismo, o diálogo abre a mente do indivíduo, e funciona como um laxativo, desconstipando a mente que sofreu lavagem cerebral.

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Entrei em contato, nos Estados Unidos, com pessoas especializadas em desprogramar a mente de vítimas de lavagem cerebral. Nestas conversas fui informado que o principal processo de desprogramação é precisamente o diálogo. O desprogramador conversa por horas, e repetidamente, com o indivíduo que sofreu a lavagem até que encontre os termos linguísticos que serviram de chave para a lavagem cerebral, e que permitirão, estes mesmos termos, a conseqüente desprogramação.

O sectarismo leva à prática da lavagem cerebral. Ela é feita consciente ou inconscientemente pelos líderes das seitas ou seus acessores. Eu tenho visto práticas explícitas de lavagem cerebral sendo empregadas em escolas de teologia ditas evangélicas e reformadas. Algumas destas práticas sutis de condicionamento mental, que verifiquei sendo empregadas em seminários, são, por exemplo:

(i)                  Repetição Acompanhada de Expressões Violentas. Uma das mais comuns formas de condicionamento que se verifica em seminários teológicos é a repetição de idéias acompanhadas de expressões violentas, do tipo “engula isso!”, ou abuso verbal, do tipo “só um imbecil não entende isso!”, ou ainda comunicação não-verbal por meio de expressões faciais e expressão corporal, dando a entender que o professor ou colega está disposto a partir para a violência caso o aluno ou colega não aceite o que ele está dizendo.

(ii)                Uso Contínuo de Palavras Específicas de Identificação. Alguns termos são empregados com freqüência, termos estes que, em geral, não possuem um real significado semântico, a não ser o de identificar o indivíduo como parte daquele grupo. Todas as vezes que uma idéia qualificada como indesejável aparece nas discussões ou nas aulas, o professor ou algum dos colegas condena a idéia e apresenta a opinião majoritária utilizando o termo-chave identificatório, com expressões do tipo “mas quem é X não pensa assim” ou “essa é a convicção de todo aluno que é X”. Com isso, o questionador sente-se acuado, entimidado, e ameaçado de ser excluído da identificação com o grupo, o que o leva a retrair-se e aceitar o condicionamento, pois toda lavagem cerebral apela para as emoções humanas e para o desejo de fazer parte de uma comunidade coesa.

(iii)               Sobrecarga de Leituras. Este método consiste em pedir aos alunos que executem tantas leituras a ponto de tornar tal façanha uma impossibilidade. Em geral, textos importantes da história intelectual do ocidente são escolhidos, para causar a impressão de liberdade de pensamento e diversidade de idéias. Com isto, na verdade, desestimula-se o aluno a ler, e ainda mais, a ler com

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atenção os textos acadêmicos. O aluno passa a realizar leituras rápidas e superficiais, e acostuma-se a apresentar caricaturas destas leituras como resultado da apreensão do sentido do texto e do pensamento do autor em questão.

(iv)              Designação de Professor de Leituras. Um único professor fica encarregado de pedir as leituras aos alunos, em especial, as leituras de livros que contém idéias supostamente contrárias às idéias defendidas pelo grupo de extremistas que controla a escola em questão.

(v)                Técnicas de Humilhação e Repressão. Todas as vezes que um determinado aluno parece querer insistir em manter-se fora do condicionamento, e em manter-se livre para pensar por si mesmo, ele torna-se alvo de motejos e chacotas por parte dos colegas e dos professores, que estimulam esta prática. São também perseguidos pelos professores, rotulados em classe com expressões caricaturais, e ameaçados de reprovação caso não demonstrem praticamente que aderiram ao pensamento da maioria.

(vi)              Armações com Vistas à Exclusão. Caso um elemento da comunidade, seja ele aluno ou professor, passa a desempenhar um papel crítico e passa a levantar uma voz discordante, procurando alertar os seus colegas ou seus alunos para as práticas de condicionamento da escola, é comum vermos a organização e aplicação sobre este indivíduo de armações de cunho meramente intelectual ou até mesmo de cunho moral, isto é, acusações de imoralidades ou de heresias que, em geral, são fundamentadas em meias-verdades, ameaças, testemunhas preparadas e até falsificação e desaparecimento de documentos. Estas armações visam a exclusão do elemento do seio da comunidade, e é fruto de um acordo tácito entre professores, funcionários e alunos. Os membros da comunidade que se escandalizam com estas práticas, em geral se calam com medo de sofrerem sanções semelhantes.

Já acompanhei a utilização destas técnicas, e outras tantas que não citarei aqui. Acrescento, no entanto, que uma das experiências mais revigorantes é conversar com alguém que foi desprogramado. Há nele um misto de alívio e de raiva, alívio por ver-se capaz de pensar novamente, e raiva por sentir-se violado, usado e abusado pelos programadores. Não é fácil realizar a desprogramação. Em geral, o aluno ou pastor que sofreu lavagem cerebral evita o contato com desprogramadores, e quando não pode evitar, como numa situação de sala-de-aula, como já aconteceu comigo algumas vezes, o aluno condicionado reage, a princípio usando as técnicas que aprendeu durante sua programação. Ao perceber que estas não produzem o resultado esperado, o aluno pode ficar violento. Às vezes, o professor desprogramador pode encontrar um termo-chave da

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programação, e, se insistir em usá-lo em frases específicas de desprogramação, poderá levar o aluno a momentos de profunda angústia, tremores e sudorese, e até ao colapso e perda dos sentidos. Mas que alegria quando uma pessoa condicionada volta à reflexão livre e sadia, ainda que saibamos que um período de acompanhamento será necessário para o completo restabelecimento do indivíduo em questão.

Estas considerações sobre condicionamento e lavagem cerebral, como conseqüências últimas e mais trágicas do sectarismo e da falta de diálogo, nos levam diretamente ao próximo assunto, pois o intolerante indisposto ao diálogo tem o obscurantismo como filosofia de trabalho.

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3.    Clareza em vez de Obscurantismo

O extremismo teológico de qualquer espécie acaba por levar à adoção do obscurantismo como regra fundamental. Obscurantismo significa opor-se ao esclarecimento das idéias. Uma das principais características da sectarização é manter o indivíduo no escuro, é deixá-lo incapaz de pensar por si mesmo, evitar que experimente o diálogo com quem pensa diferente, protegê-lo de materiais didáticos que possam vir a confundir a sua programação, a sua lavagem cerebral. É a essa prática que chamamos de obscurantismo.

O obscurantismo assume, no entanto, muitas formas. Uma das vias comuns é negar o valor do estudo puro e simples, inclusive do estudo teológico. Ele se manifesta através de frases do tipo: “a igreja precisa de pastores e não de teólogos”. Ou afirmações como: “o importante é a prática e não a teoria”, ou “para ser pastor ou para trabalhar na igreja é preciso apenas ser ungido, não é preciso ter estudado”. Estas são algumas típicas falácias obscurantistas.

Não estou dizendo que todo pastor precisa necessariamente passar por uma formação teológica formal em instituição de ensino teológico. As escolas, em geral, apenas fingem que ensinam, de qualquer forma, e sempre se corre o risco de se cair numa escola sectarista de condicionamento do pensamento ou indoutrinação ideológica. Toda educação é, no frigir dos ovos, auto-didatismo, uma vez que mesmo os casos de sucesso da educação formal dependeram e dependem basicamente do esforço pessoal dos alunos.

Mas há tipos mais sutis de obscurantismo, e é com estes, acima de tudo, que devemos nos preocupar. Há o tipo que sugere que não há nada de aproveitável nas ciências, com exceção da teologia, desde que estejamos falando, é claro, da forma de teologia específica defendida pelo extremista em questão. Os extremistas dizem: “Por que estudar psicologia, por exemplo, se tudo que precisamos saber sobre o ser humano, a personalidade humana, o tratamento dos problemas psicológicos do homem, e todas as respostas sobre o assunto já estão na Bíblia? Por que estudar sociologia? Filosofia então, nem convém mencionar, pois é antagônica à fé e ao cristianismo. Linguística ou semiótica? Nada poderia ser mais nocivo ao pensador cristão. Será que as pessoas não percebem que quem estuda filosofia, ciências humanas ou linguística, acaba por questionar formulações doutrinárias, e começa a querer dar novas interpretações dos textos bíblicos, e passa a ser muito crítico do trabalho da igreja? É cilada de Satanás! Não podemos permitir que nossos pastores e seminaristas se promiscuam dessa forma”, e outras colocações semelhantes. Isto é obscurantismo, e eu tenho visto este tipo de obscurantismo sendo praticado nas igrejas e nas escolas de teologia evangélicas e até algumas que se dizem reformadas.

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Veja que ninguém se iluda com a presença destas disciplinas na grade curricular de seminários. Estes cursos são, em geral, de valor meramente decorativo na grade, são os chamados “cursos cosméticos”. Neles ensina-se, em geral, apenas um suposto conteúdo das disciplinas em questão, jamais permitindo que estas sejam apresentadas aos alunos como perspectivas científicas sérias sobre o conhecimento do mundo e do ser humano em toda a sua complexidade. Muitas vezes estes cursos são ministrados por pastores que, mesmo tendo diplomas nas áreas que lecionam, aproveitam-se da ocasião para fazer apologética e ensinar idéias teológicas.

Para o indivíduo que possui uma fé firmemente enraizada no amor a Deus e às Escrituras Sagradas, e que conhece bem a tradição cristã, que tem real compromisso com Deus, o contato com outras ciências só pode ser benéfico, ainda que venha a ler as obras de autores não somente não-cristãos, mas até anti-cristãos. Se o indivíduo possui uma fé que se deixa escandalizar facilmente por argumentos, é até benéfico que ele perca essa fé falsa e fraca, para que, agora sim, sem a ilusão de que já crê, venha a ser alcançado pela graça de possuir uma fé legítima, calcada no amor e na Palavra, sustentada pela tradição.

Mas a pior forma sutil de obscurantismo, para um seminarista, pastor ou pensador cristão, é o obscurantismo intra-teológico. Os extremistas o praticam sem nenhuma vergonha disso, pois crêem com isso estar fazendo uma guerra santa contra as heresias. O pressuposto aqui é que o pior inimigo é aquele que diz ser amigo. Portanto, todos os autores que afirmam ser cristãos, que dizem querer apresentar uma teologia ou um pensamento bíblico, mas que estão em desalinho com o pensamento do indivíduo ou grupo extremista em questão, serão inteiramente execrados como os piores inimigos da verdade, como falsas testemunhas, como anticristos disfarçados, lobos em peles de ovelhas, etc., pois se dizem cristãos ortodoxos, mas defendem pontos-de-vista contrários aos defendidos pelo grupo extremista. Antes ler o livro de um ateu que os livros de um teólogo deste tipo, livros estes que jamais serão colocados ao alcance dos alunos, na livraria do seminário, por exemplo, e às vezes nem mesmo em algum canto escondido da biblioteca.

Um ex-aluno de uma escola de teologia fundamentalista disse-me certa vez que havia sido ensinado a ele que só o adentrar em uma livraria católica já era um sério pecado, do qual precisava se confessar. Esse mesmo aluno, certa noite, chegou a derramar lágrimas de arrependimento, por ter lido um trecho de um livro de estudos bíblicos publicado pelas Edições Paulinas. Esse tipo de obscurantismo tem que acabar se quisermos fazer parte de uma denominação sã.

Caminhamos, portanto, nesta estrada de purgação dos extremismos, da intolerância ao sectarismo, do sectarismo ao obscurantismo, e agora seguimos à conseqüência direta do

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obscurantismo: o belicismo. Como cura, propomos a tolerância, que leva ao diálogo, que leva à clareza, que leva ao espírito irênico.

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4.    Irenicidade em vez de Belicismo

O fruto do obscurantismo é a ignorância, e o fruto do sectarismo é a indisponibilidade e incapacidade para o diálogo. A conseqüência de tudo isso é o belicismo. O extremista desenvolve um espírito belicoso, pois não aprende a debater idéias, mas antes a impor suas opiniões, se for preciso, à força. O que propomos, em lugar desta belicosidade extremista é o espírito irênico, é a disposição para um diálogo franco e amigo, é o respeito pelas pessoas, pois as pessoas, e o relacionamento amoroso com estas, são mais importantes que quaisquer idéias que se possa pensar irrefutáveis.

Recentemente eu fui chamado por alguém de belicoso. Esta pessoa, um amigo meu, me disse: Ricardo, por que você entra tanto em controvérsias? Por que você não escolhe um tema menos polêmico para tratar? Por que você provoca os outros? Será que você não está sendo belicoso? Creio que agora é a hora de responder esta acusação. De fato, eu poderia estar escrevendo sobre um tema absolutamente não-polêmico. Poderia talvez fazer uma exposição bíblica, escolhendo de propósito uma passagem sem grandes dificuldades. Quem sabe eu agradaria a alguns com a retórica de meu discurso. Mas eu estaria servindo a mim mesmo, ao meu bem-estar, e não estaria fazendo o trabalho que Deus me chamou para fazer. É muito fácil permanecer na complacência enquanto as pessoas jazem na ignorãncia, sofrendo o abuso dos pastores e das igrejas, enquanto os seminaristas são vítimas de uma ideologização deletéria, enquanto os extremistas (quer carismatistas, quer liberais, quer fundamentalistas) acabam com a nossa denominação, sectarizando-a, deformando-a, tirando-a da tradição cristã e reformada.

Eu não chamo isso de belicismo, no entanto; eu chamo de responsabilidade. Para mim, belicismo é diferente. É indispor-se ao diálogo, mas esfaquear pelas costas, falando mal, criando maledicências, fazendo politicagem. O diálogo e o debate são irênicos, e é disso mesmo que precisamos. Desses eu não fujo, antes eu convido para o debate de idéias. O combate de idéias é um instrumento da paz e chama-se diplomacia. O combate pessoal é que é belicoso, o argumento ad hominem, quando os fins justificam os meios. Este belicismo é anti-ético. Ele é um ataque aos direitos de expressão e de pensamento dos indivíduos, é tirania e ditadura intelectual.

Nosso povo tem memória curta. Poucos são os que ainda se lembram dos horrores da ditadura militar, dos desaparecidos, das mortes, da censura. Poucos também são os que lembram o que se passou em suas denominações: a perseguição, a inquisição sem fogueiras, as acusações de comunismo que levaram pastores e professores de seminário para a polícia. As imagens já sumiram de nossa mente ou talvez nunca estiveram lá porque não nos foi permitido conhecer os fatos. Igrejas fechadas com correntes e cercadas e guardas com fuzis,

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seminários fechados, pastores com visão social tendo que pedir a ajuda da maçonaria ou da igreja católica para fugir do país, sob a acusação de estarem mancomunados com os terroristas. Só Deus sabe como é que alguns seminários renitentes resistiram aos ataques que lhe foram feitos, às tentativas de fechá-los.

Alguém pode vir a pensar, erradamente, que este espírito já não mais existe. Mas é um engano. Ainda há grupos tramando o encerramento das atividades de seminários. Ainda há pessoas sendo perseguidas por causa de suas idéias, ainda que elas nada tenham de heterodoxas, ainda que a única razão para tal perseguição seja o fato de serem idéias perigosas para a manutenção da certos grupos e certas ideologias ultrapassadas dentro da igreja.

A ignorância leva à violência, e os grupos extremistas são ignorantes e violentos. Basta trazer à mente as imagens de um fundamentalista islâmico explodindo bombas em nome de sua fé. Basta trazer à mente as imagens dos jovens fundamentalistas americanos que invadem as clínicas de aborto e matam a balas os médicos que ali trabalham. Mas a violência também pode ganhar a forma de perseguição, de demissão, de caça às bruxas. A violência pode tornar-se também abuso verbal.

O que sugerimos é que haja paz. O que sugerimos é que haja amor. E com isso o fim da violência em todas as suas formas e manifestações. É preciso que aprendamos a conviver com as divergências, pois elas estão aí para ficar, e não se resolvem divergências com tapas e gritos, com opressão e perseguição, mas com diálogo e convivência pacífica. As pessoas são mais importantes que as idéias, que os movimentos ou nossas convicções doutrinárias ou litúrgicas.

Se não nos sentimos capazes de amar aqueles que pensam diferente de nós, então é melhor desistirmos de carregar o nome de cristãos. Ser um cristão significa viver como um cristão, e isto, por sua vez, significa amar. Amar implica em tolerância. Só devemos ser intolerantes, no entanto, contra a própria intolerância, pois esta nos proíbe de sermos tolerantes. Se não formos intolerantes contra toda forma de intolerância, os intolerantes assumirão o controle das instituições e impedirão que se pratique a tolerância em qualquer esfera e em relação a qualquer pessoa ou grupo. Por isso, é absolutamente necessário que esta exceção seja feita, que os tolerantes sejam intolerantes contra todas as práticas de intolerância, essa intolerância que não quer o diálogo, pois defende o obscurantismo e impõe-se por meio do belicismo abusivo.

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5.    Confessionalidade em vez de Dogmatismo

O cristianismo possui dogmas. O abandono destes dogmas representa o abandono do cristianismo. O erro, portanto, não está na existência e aceitação dos dogmas, mas sim no dogmatismo, isto é, na absolutização dos dogmas, na dogmatolatria, a transformação dos dogmas em ídolos colocados onde só Deus pode estar, como alvos do culto reverente dos fiéis, como depósito de nossa confiança, e objeto de nossa adoração.

O dogmatismo se revela em sua face obscura quando um indivíduo ou instituição não permite que as doutrinas, geradas a partir dos dogmas fundamentais, sejam investigadas, pensadas e repensadas pela comunidade cristã, e em especial pelos pensadores cristãos que fazem parte dessa comunidade. No momento em que eu cristalizo uma determinada formulação doutrinária, uma determinada interpretação do dogma, e proíbo o debate e cerceio a atualização da doutrina, eu estou colocando a minha formulação doutrinária no lugar da Palavra de Deus, transformando-a num ídolo.

É isso que fazem os chamados “guardiões da sã doutrina”, um esquadrão-da-morte da teologia que não permite à igreja o seu legítimo direito de fazer reflexão teológica. Estes senhores julgam-se na obrigação de proteger as doutrinas das más compreensões e alterações a que elas estão sujeitas quando entregues às cabeças pensantes nas igrejas, para os pensadores cristãos. Tal protecionismo paternalista é inadmissível. Esta ação ignora o sensus fidelium da comunidade cristã. A igreja é desonrada por essa ação, é desvestida da sua dignidade de povo de Deus, Corpo de Cristo e morada do Espírito. Não existe na igreja esse ofício imaginário, esta função inventada de guardião da doutrina. Certamente não é assim que se comporta um genuíno mestre cristão. O mestre cristão sabe que serve a igreja à qual ele pertence, e deve obedecê-la no serviço de pensar a tradição para ela, e que não deve oprimi-la no falso serviço de ensinar e impor à igreja a doutrina que supõe ser correta.

Precisamos sim de teólogos, de pensadores que examinem as doutrinas na forma como as recebemos dos nossos antepassados, e façam sugestões para a sua ampliação, alteração, adaptação, atualização ou conservação, e então a igreja de Cristo, só a igreja e toda a igreja, é quem vai inexoravelmente decidir se irá adotar a nova formulação doutrinária ou permanecerá com a anterior. Esta é uma roda que precisa mover, a roda do feedback entre o teólogo e a igreja.

As heresias e extremismos descabidos surgem na igreja, não como fruto da reflexão teológica na igreja, mas pelo contrário, como fruto da falta dela. É precisamente porque a roda da reflexão teológica na igreja emperra que as novidades dos extremistas e

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visionários atraem os incautos. Os desvios doutrinários e movimentos heréticos surgem, não por causa de um deslize no trabalho dos auto-intitulados guardiões da sã doutrina, mas sim por causa da própria existência destes guardiões, emperrando a roda da reflexão teológica da igreja, pela igreja e para a igreja. O que a igreja precisa é o revigoramento das escolas superiores de teologia para que se transformem em verdadeiras academias de reflexão teológica, a restruturação da escola dominical e o revigoramento da nossa atividade editorial, para que não sirvam mais aos interesses dos dogmatistas e sim da reflexão teológica da igreja.

Não há nada erra com o fato de uma igreja ser confessional. Sua confessionalidade é uma forma de auto-garantir-se de que manter-se-á dentro dos limites do ensino escriturístico. Todavia, muitos têm confundido confessionalidade com confessionalismo. O confessionalismo é uma forma de dogmatismo, e é muito nocivo à saúde teológica de uma pessoa, instituição ou igreja. O confessionalismo é uma atitude diante do fazer teológico que emula o fazer teológico do século 17, quando a reflexão teológica protestante se viu dominada pelo escolasticismo protestante, de cunho aristotélico, que levou a melhor sobre o esforço humanista dos primeiros reformadores logo a partir da segunda geração, motivados que estavam pelas guerras religiosas e pelo medo de se verem acuados pelo avanço da ciência e da filosofia modernas. Mas confessionalismo e confessionalidade são coisas bem distintas. Esta última implica em liberdade de reflexão, necessária em um mundo em transformação, e inevitável a partir do momento em que se adquire consciência histórica, enquanto que a primeira nos lança no limbo das logomaquias escolásticas dos debates sobre minúcias na interpretação estéril de textos de velhos catecismos.

As igrejas reformadas, evangélicas e protestantes, precisa pensar no sentido da sua confessionalidade. É preciso, em prol da clareza, da precisão e do incessante combate contra as forças do obscurantismo, analisar o conceito, explicitar o seu sentido, enfim, definir o que se entende por confessionalidade.

a)      Esferas da Confessionalidade

No seu sentido mais lato e mais antigo, a confessionalidade cristã significa reconhecer o senhorio de Cristo, isto é, poder afirmar “Cristo é o Senhor” com todas as implicações teológicas e práticas desta proposição. Contudo, um protestante confessa uma fé cristã qualificada, e um calvinista professa sua fé diferentemente de um luterano. Há, no entanto, mais de um tipo de calvinista. A tradição reformada é rica e variada. Há calvinistas puritanos (com diferentes nuances), há calvinistas continentais (que podem pertencer à tradição calvinista holandesa, francesa, suíça, húngara, etc.), e há diferentes confissões de fé calvinistas, sendo que a Confissão de Fé de Westminster é apenas uma delas. Além disso, a tradição calvinista

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não está morta nem ossificada, mas viva como a língua portuguesa, sendo transformada à medida em que os séculos se sucedem. Diante desta pluralidade de confissões e confessionalidades, pode-se perguntar então se, por fim, a mais antiga das confissões, “Jesus Cristo é o Senhor”, já não traz, uma vez compreendidas todas as implicações práticas e teológicas da proposição, tudo que é essencial na confessionalidade cristã e, particularmente, na presbiteriana. A IPB, por exemplo, escolheu a CFW, o Catecismo Maior e o Breve Catecismo como seus símbolos de fé. Eles ilustram e exemplificam a exposição da fé calvinista presente nas diversas confissões reformadas e, por fim, nossa confessionalidade última que é a confissão do senhorio de Cristo, como ele mesmo ensina nas Escritura: “todo aquele que me confessar diante dos homens, também eu o confessarei diante de meu Pai que está nos céus” (Mt 10:32). O cristão confessa a Cristo. Sistemas doutrinários são meios para isso, e não fins em si mesmos.

b)      Confessionalidade ou Confessionalismo?

Queremos ser uma igreja confessional ou confessionalista? Uma igreja confessionalista abraça uma confissão doutrinária específica como inerrante, inquestionável e de sentido óbvio, como se a confissão em questão não fosse um texto carecendo ele mesmo de ser interpretado. A própria CFW reconhece sua falibilidade: “Todos os sínodos e concílios, desde os tempos dos apóstolos, quer gerais quer particulares, podem errar, e muitos têm errado; eles, portanto, não devem constituir regra de fé e prática, mas podem ser usados como auxílio em uma e outra coisa” (31:3). A CFW (produzida por um concílio de ministros reunidos na Abadia de Westminster em Londres na década de 1640-50) submete-se ao crivo das Escrituras, remetendo-nos à Palavra de Deus (1:8, 9 e 10), à luz da qual deve ser criticada. Confessionalidade, portanto, não implica necessariamente em confessionalismo, que é um posicionamento teológico prejudicado, como toda postura fundamentalista é, pelos pressupostos cartesianos da filosofia moderna. A IPB pode ser entendida como uma igreja confessional porque adotou três símbolos de fé reformados, a CFW e os catecismos, como exemplos de exposições fiéis do ensino das Escrituras, e não como as únicas formas de expor fielmente o ensino das Escrituras. Entendo que a IPB não é confessionalista porque reconhece na própria Palavra de Deus a última instância de apelo em questões de fé e de prática. O grande mérito da CFW é precisamente o fato de reconhecer-se enquanto interpretação falível, condicionada sócio-histórica, cultural e linguisticamente, e criticável á luz das Escrituras. Por estas razões, de todas as confissões reformadas, ela é a melhor para subscrevermos.

c)      A Dimensão Prática da Confessionalidade

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Em terceiro lugar, perguntemo-nos o que deve significar, na prática, confessarmos a Cristo e, conseqüentemente, subscrevermos a símbolos da fé reformada como a CFW e os catecismos. Certamente não significa apenas nem principalmente concordarmos racionalmente com as verdades ali apresentadas. Este tipo de fé redundaria numa espécie de obra salvadora, idéia contrária à própria CFW (14:2). Significa, isso sim, vivermos a fé ali descrita, encarná-la, torná-la uma fé viva, atuante e transformadora. Alguns subscrevem a CFW porque foram convencidos racionalmente da veracidade do seu conteúdo. Outros a subscrevem porque a fé ali verbalmente confessada transformou as suas vidas, fazendo-os nova criação em Jesus Cristo, restaurando de fato, e não apenas teoricamente, sua vida relacional, reconciliando-o com Deus e com o próximo em amor, ainda que a CFW seja omissa no que se refere ao amor ao próximo. Pode-se dizer que a IPB é uma igreja confessional porque ela confessa e vive na prática a fé confessada nos seus símbolos de fé. A falta de amor e de ética representam uma quebra mais grave da nossa confessionalidade do que a crítica pertinente aos artigos da própria CFW. Eu quero crer que a IPB não adota um confessionalismo estéril, fundamentado na letra, sustentado por uma compreensão racionalista da fé. Nossa fé é viva como é vivo o testemunho de fé das confissões reformadas que a CFW e os catecismos representam quando os adotamos como nossos símbolos de fé. Este foi o espírito da sua adoção, e este deve ser o espírito da nossa confessionalidade.

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6.    Humildade Noética em vez de Presunção Epistemológica

O mundo moderno foi construído a partir de bases filosóficas racionalistas. Crê-se na supremacia da razão sobre outras faculdades humanas igualmente importantes. Crê-se na autonomia da razão, na sua independência em relação a estas outras faculdades humanas.

Além disso, crê-se ser possível deduzir verdades objetivas a partir de proposições lógicas que são inferidas de outras proposições lógicas até que se chega a axiomas que são aceitos como pressupostos do senso comum ou coisa do gênero. Abraça-se a lógica aristotélica e a metafísica platônico-aristotélica sem nunca se questionar se estes constructos teóricos humanos e pagãos não são passíveis de crítica.

A partir daí erguem-se os grandes sistemas teológicos racionalistas, as catedrais da mente, a teologia escolástica que tanto prazer estético confere aos seus adeptos, mas que não são necessariamente condizentes com uma existência e uma reflexão genuinamente cristãs.

Muito pelo contrário, os cristãos têm, tradicionalmente, rejeitado a opção racionalista, abraçada igualmente por liberais e por fundamentalistas, e reconhecido a dimensão misteriosa, enigmática, paradoxal, mística e sobrenatural da vida e do mundo.

Além disso, o cristão reconhece os limites de sua mente, de sua capacidade de compreensão, ainda mais quando se trata de Deus e sua obra.

Os extremistas, no entanto, sejam eles liberais, fundamentalistas ou pentecostais, vangloriam-se na sua presunção epistemológica, acham-se donos da verdade, guardiões da sã doutrina, capazes de explicar os mistérios de todos os dogmas, da trindade à encarnação do Verbo, da revelação à eleição, dos sacramentos às últimas coisas.

Estes supostos donos da verdade são capazes de expor com certeza o sentido das passagens mais herméticas das Escrituras, seja porque receberam uma revelação adicional, como é o caso às vezes entre os pentecostais, seja porque aplicaram ao texto os cânones infalíveis da ciência, como acontece entre os liberais, ou seja porque adotam certos a-priores racionalistas que fazem da hermenêutica uma espécie de ciência exata, em que se aplicam fórmulas cartesianas e chegam-se a resultados previsíveis.

Os fundamentalistas colocam as verdades dogmáticas acima das verdades bíblicas e acham que estas últimas equivalem sempre às primeiras. O sistema de doutrinas passa a ser o critério hermenêutico através do qual toda leitura da Bíblia passa a ser feita. Em vez de valorizar as Escrituras, com sua conversa fiada inerrantista, os fundamentalistas, na prática, humilham a Palavra de Deus fazendo-a

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submeter-se aos dogmas da tradição e retirando da Bíblia sua condição de instância última de apelação em questões de fé e de prática. Em vez de fazer da Bíblia o critério para a avaliação da tradição, fazem da tradição dogmática o critério para a interpretação da Bíblia.

Tudo isso é presunção epistemológica. Nós temos a Palavra de Deus, mas só Deus pode afirmar conhecer a interpretação correta de todos os versículos da Escritura, e o resto é prepotência humana. Nós temos a tradição doutrinária, mas só Deus possui em sua mente a verdadeira sistematização das verdades eternas da sua revelação, o resto e pedantismo e vaidade.

O verdadeiro temor de Deus é reverência diante do mistério e espanto diante da profundidade da riqueza da sabedoria e do conhecimento de Deus. Os extremistas de todo tipo acham que podem engarrafar a Deus e sua obra, mas não podem. Isto não passa de soberba e presunção.

O mistério de Deus e sua obra é inerente à fé. A rejeição do mistério é uma atitude racionalista tanto dos liberais quanto dos fundamentalistas. A tentativa de controlar, catalogar e fazer uso do mistério da fé é misticismo emocionalista superficial dos carismatistas. Este controle de Deus é paganismo, é uma forma de bruxaria. Feitiçaria é utilizar objetos e palavras mágicas para controlas forças naturais e sobrenaturais. Muitas igrejas ditas evangélicas estão fazendo justamente isto, transformando os objetos do culto e da devoção em amuletos e fazendo das orações e louvores não mais que palavras mágicas para o controle de Deus, de anjos e de demônios. Tudo isto é um lamentável engano, uma exploração da crendice do povo inculto e uma afronta ao genuíno espírito da reforma que combateu arduamente todas as formas de superstição cristã medieval semelhantes a estas.

Os fundamentalistas, por outro lado, remetem-nos ao neo-escolasticismo protestante, ele mesmo um desvio da reforma e um retorno ao escolasticismo medieval, como modelo de reflexão teológica. Isto não pode continuar. É preciso que retornemos à reflexão teológica sadia, criativa e acima de tudo bíblica dos reformadores. Toda nossa reflexão teológica deve ser calcada nas Escrituras e na missão sagrada da Igreja de Cristo. Toda tradição dogmática deve ser posta em juízo diante da autoridade das Escrituras e da premência da missão.

A presunção epistemológica racionalista gera atitudes que não são proveitosas, levando grupos de indivíduos a extremismos condenáveis. Precisamos nos precaver contra isto cultivando um espírito de humildade e reverência diante de Deus.

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7.    Valorização e Dignificação das Escrituras Sagradas em vez de Superficialismo Biblicista

Vocês já repararam a escassez de comentários bíblicos no Brasil? Se não, eu lhes digo: é assustadora e preocupante. Isto não acontece por acaso nem somente por questões mercadológicas. Há uma motivação ideológica por trás disto, uma vez que a maioria das editoras evangélicas brasileiras ainda se encontra sob influência do fundamentalismo que almejamos extirpar do solo pátrio.

Vale fazer uma comparação: se vou a uma boa livraria evangélica nos EUA, encontro pelo menos cinco, talvez dez, opções de comentários recém lançados para cada livro da Bíblia. Se vou à biblioteca de um seminário americano, posso chegar a empilhar cem volumes sobre a mesa, se resolver fazer uma pesquisa. No Brasil, encontro dois ou três comentários fininhos de cada livro.

Quando pergunto aos editores o porquê disso, eles me respondem pragmaticamente que os comentários não têm muita saída no Brasil, isto é, não vendem bem. De fato, eu perguntei certa vez a um estudante se ele gostaria de ganhar um comentário da carta aos romanos, e ele me respondeu que não precisava, pois já possuía um escrito por um outro autor.

Certa vez, um fundamentalista confesso me disse que achava bom não termos muitos comentários, pois a divergência de opiniões nos comentários pode causar a impressão nos estudantes que há mais de uma maneira de se entender o texto bíblico. A falta de comentários, assim como a falta de interesse em comentários bíblicos, deixam transparecer um problema da igreja: a opção pela superficialidade.

Estamos nos acostumando a não pensar, ou, quando fazemos nossa reflexão bíblica, seguimos a lei do mínimo esforço, aceitando a primeira interpretação que aquiete a nossa boba ansiedade diante do texto aberto. Mas não adianta eu me iludir achando que o texto está fechado quando na verdade ele está aberto sobre a mesa, sendo debatido pelos quatro cantos da terra, e só eu continuo achando que o sentido do texto é esse que eu aprendi quando tinha dez anos na escola dominical.

Certas explicações servem para criancinhas de dez anos, mas já não deveriam servir para adultos de vinte, trinta ou oitenta anos. Não podemos parar de estudar a Bíblia. É um projeto de vida. E não adianta somente ler a Bíblia inteira todo o ano. No fim da vida você terá lido a Bíblia sessenta vezes sem ter entendido nada.

Cada texto bíblico é abissal por natureza e seu sentido não pode ser esgotado. Nenhuma exegese pode ser definitiva, pois isto nos levaria a um exegema, uma exegese cristalizada ou engessada, o que

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não está de acordo com o bom-senso nem com o princípio protestante. A investigação do sentido dos textos bíblicos continua inevitavelmente e sempre, pois os achados arqueológicos continuam, bem como as pesquisas sócio-históricas e também a ciência lingüística e dos estudos literários. Não há como deter a constante renovação do processo interpretativo e, logo, não há como chegarmos a uma interpretação definitiva e exaustiva de qualquer texto, o que aliás, é muito bom.

Por outro lado, a Bíblia não é tão pouco para ser usada como um oráculo. Eu a abro ao léu e leio o primeiro versículo que vejo, e eis meu horóscopo para o dia. Isso é falta de seriedade e de reverência, e é mera superstição. As velhas caixinhas de promessa deveriam ser para sempre aposentadas, pois geram a superstição e o biblicismo.

O biblicismo possui duas caractyerísticas básicas: o literalismo e o atomismo bíblicos. O atomismo é interpretar um versículo ou uma passagem da Bíblia como se esta não estivesse dentro de um contexto específico, esquecendo que um texto tirado de seu contexto só pode ser um pretexto para a manutenção de uma ideologia ou legitimação de uma instituição eclesiástica.

O verdadeiro pensador cristão mantém-se sempre distante destas atitudes por meio de checagens e auto-exames que o façam saudavelmente desconfiado das idéias dos outros e das suas próprias. Assim, evita-se a absorção inconsciente de uma ideologia espúria, bem como evita ao cristão tornar-se um instrumento nas mãos da sua denominação para a sua legitimação. Ninguém deve deixar-se usar pelas igrejas ou denominações, pois isto é abuso. Ninguém deve deixar que a denominação faça a extorção de seu dinheiro, tempo ou liberdade de expressão e de pensamento.

O atomismo bíblico ignora o lema da reforma protestante que diz ser a Escritura o parâmetro para a interpretação da própria Escritura. Este ema não apenas evita o dogmatismo hermenêutico, mas também o atomismo, pois todo versículo bíblico deve ser sempre compreendido à luz do ensino integral das Escrituras. Somente o ensino completo do cânon pode servir de base para a formulação doutrinária e para a crítica doutrinária.

A Bíblia precisa ser estudada com profundidade, não superficialmente. Os extremistas não querem isso, pois o estudo livre e aprofundado da Bíblia pode fazer com que as pessoas saiam do domínio dos líderes carismáticos, pode libertar as pessoas das amarras da lavagem cerebral, podem levar as pessoas a questionar certas convicções que são importantes para a manutenção da ideologia destes grupos. E não foi por isso que os reformadores lutaram, trabalharam e deram suas vidas para que o povo pudesse ler a Bíblia no vernáculo? Não foi por isso que os reformadores abraçaram a causa da alfabetização e da educação?

E é por isso mesmo que precisamos capacitar o povo cristão hoje para que tenha em mãos as ferramentas necessárias para que façam

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a investigação das Escrituras sem estarem submetidos aos grilhões e à tutela dos guardiões da doutrina ou de líderes interesseiros ou de movimentos ideológicos dentro da igreja.

O estudo aprofundado traz a compreensão e a liberdade de pensamento. Nunca foi tão importante ensinar a ler. Saber ler é mais que meramente soletrar as palavras, mas saber interpretar os textos e até mesmo as suas entrelinhas. Falta hoje boa-vontade e até mesmo interesse na leitura profunda de textos e até mesmo das Escrituras. Parece bem mais fácil entregar a tarefa ao pastor ou aos chamados guardiões da reta doutrina para que eles determinem o que devemos crer e pensar. O espírito da reforma protestante era outro, no entanto: a Bíblia na língua de cada povo e nas mãos de cada crente para que cada indivíduo faça o livre exame das Escrituras por si mesmo e chegue, por convicção pessoal, a uma resposta também pessoal à vocação que o texto bíblico contém.

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8.    Pluralidade em vez de Exclusivismo ou Inclusivismo

Há quem diga que o cristão deve combater o que os incrédulos chamam de pluralismo. Tudo depende, no entanto, do que se entende por pluralismo, pois há uma diferença importante entre pluralismo e pluralidade ou diversidade.

Eu entendo que há uma forma de pluralidade pela qual nós também devemos lutar e que é adequada para a vida social e é, em última análise, consistentemente cristã. A tradição protestante e a tradição calvinista sempre foram plurais e cheias de originalidade e diversidade. Os fundamentalista e puritanos anseiam pela uniformização como elemento unificador, mas isto não está de acordo com a cosmovisão protestante. A unidade é sadia, mas a uniformidade é doentia.

Por outro lado, o cristão do século 21 tem por obrigação defender a democracia e até mesmo o pluralismo religioso e sócio-político como males menores, como as formas menos más de convívio social. Toda democracia que se preze é pluralista.

O que não podemos aceitar é a imposição extremista liberal e pós-moderna do inclusivismo, isto é, sermos forçados a aceitar a mistura de tudo para todos. Um pouquinho disso e um pouquinho daquilo até termos uma salada russa em que já não se distingue o gosto de nada. Isso sim, não podemos nem nunca poderíamos tolerar, os liberais, com suas cerimônias ultra-ecumênicas, que nos desculpem.

Por outro lado, também não podemos aceitar a posição extremista advogada pelos fundamentalistas, que é o exclusivismo. O fundamentalista, por achar-se dono da verdade, sente-se no direito de impor uma única forma de culto e um único estilo de vida, o dele, é claro.

O fundamentalista de hoje só não queima as bruxas e os hereges porque a lei não permite, mas caso chegassem ao poder civil, correríamos o sério risco de ver a bruxaria, a heresia, e talvez muitas outras coisas, serem declaradas ilegais, e até passíveis de pena de morte.

O seu extremismo leva o fundamentalista a querer a proibição e o fechamento de qualquer escola que propague idéias ou doutrinas contrárias às que defende. O fundamentalista gostaria de ver todas as igrejas que considera hereges, inclusive a catolicismo romano, as sinagogas, etc. fechadas, proibidas, eliminadas, e seus líderes queimados em praça pública.

Agora você dirá que eu estou exagerando, que não há ninguém no Brasil que alimente estas fantasias. E eu lhe responderei: não sejamos inocentes. Adolf Hitler não subiu ao poder dizendo que iria

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exterminar os judeus, mas quando chegou lá, ele tentou fazê-lo. Hoje, se lermos o seu Mein Kampf, escrito quando ainda era um político principiante e insignificante, podemos perceber que suas idéias já estavam todas ali presentes.

Hoje os fundamentalistas e puritanos ensinam que as mulheres devem ficar em casa, pois sua missão é apenas a de gerar filhos e criá-los, deixando ao homens a tarefa e governar e explorar o mundo. As mulheres não devem trabalhar, dizem eles, e conseqüentemente não devem fazer curso superior, pois estes visam a profissionalização. Mas quem garante que estas tendências talebânicas do fundamentalismo protestante não acabará por instituir uma espécie de burqa como vestimenta para as mulheres?

Estes posicionamentos extremistas anti-femininos são uma aberração, uma violência e uma forma inaceitável de opressão e dominação. Muito pelo contrário, devemos nos aliar ás causas libertárias que dignificam a mulher. Já é tempo, inclusive, de conceder às mulheres o espaço que lhes é de direito na liderança das igrejas locais e das denominações protestantes.

É preciso abrirmos nossos olhos, pois nossas igrejas já sofreram demais com as posições extremistas. Foram mais de trinta anos de retrocesso teológico, mais de trinta anos em que deixamos de ser ativos na sociedade, em que caminhamos para a sectarização regidos por um grupo de indivíduos que estão mais para ditadores latino-americanos que para apóstolos, mais para coronéis nordestinos ou caudilhos dos pampas que para líderes democráticos de uma igreja naturalmente eclética e plural. Deus nos livre de vermos outra época como aquela, pois foi uma época de violências, de perseguições, de denúncias injustas, de censura e cerceamento, de caça às bruxas e de inquisição sem fogueiras.

Não queremos o inclusivismo dos liberais nem o exclusivismo dos fundamentalistas. Queremos o progresso da reforma, a diversidade eclesial e teológica e o pluralismo democrático que defende os direitos do indivíduo, o direito de culto, de ir e vir, de expressão, de pensamento.

Deus nos dê a graça de continuarmos sendo uma igreja em que a pluralidade é valorizada e preservada com carinho, ainda que permaneçamos ao mesmo tempo firmes nas nossas convicções confessionais. A confessionalidade da igreja não impede que ela seja também libertária para com seus membros, e aberta ao diálogo com os de fora, irênica e amorosa para com todos.

Como nos ensina o antigo ditado: no essencial a unidade, no que não é essencial a diversidade, e que em todos os momentos reine o amor.

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9.    Ação Social e Mandato Cultural em vez de Guetoísmo Eclesiástico

Um dos maiores erros que a igreja pode cometer é fechar-se em si mesma. Chamemos a isto de guetoísmo. Pregamos para nós mesmos e cantamos para nós mesmos. Não nos preocupamos sequer em usar uma linguagem que seja mais compreensível para aqueles que não freqüentam nossos guetos. Consideramo-nos melhores que os outros, melhores que os perdidos, sem perceber que só não somos perdidos por termos sido alcançados pela graça e, conseqüentemente, termos sido vocacionados, em Cristo, para viver em amor e serviço pelos perdidos.

Este foi o erro de Israel, posto em evidência no livro de Jonas. Israel tinha ciúmes de Yahweh, um ciúme que não lhe permitia compartilhá-lo como era sua missão fazer. Nós muitas vezes nos comportamos desta mesma forma, e esquecemos de nossa obrigação para com a sociedade ao nosso redor.

Não podemos esquecer jamais que somos uma nação de sacerdotes, e isso significa que o mundo e os povos do mundo são nossa responsabilidade. Não estou falando aqui somente de evangelização mundial, mas também de justiça social e na política nacional e internacional. A igreja deve ser a primeira a envolver-se nestes assuntos. Não há força maior de pressão sobre os governantes que a pressão que uma igreja pode fazer.

Como já disse alguém, a missão da igreja não se limita à difusão do evangelho da graça, mas também inclui a infusão deste evangelho na cultura em que vivemos. Ganhar o Brasil para Cristo é mais que fazer prosélitos para as nossas igrejas. Ganhar o Brasil para Cristo é tornar a cultura brasileira sensível e interessada nos valores do Reino de Deus.

Não é de se espantar que as igrejas não são perseguidas pelos políticos e governos, uma vez que não têm cumprido o seu papel profético. É triste quando constatamos que são os políticos evangélicos os primeiros a aprovarem e praticarem a corrupção, o nepotismo, a fisiologia, as ações em interesse próprio. Temos que nos envolver na vida da sociedade, nos problemas políticos e econômicos do país, temos que insistir na instituição de princípios éticos na política, e no desenvolvimento de um filosofia social e política cristã nas nossas escolas superiores de teologia.

Não podemos também continuar dando prioridade às nossas atividades intramuros. Não podemos achar que aquilo que fazemos aos domingos na hora do culto é o elemento crucial e máximo de nossa obra. A igreja tem muito a realizar pela sociedade e pelo país, e precisa começar a se mexer. A igreja que fecha-se em si mesma

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torna-se guetoísta. O mundo pode ruir ao seu redor, mas não tem problema enquanto o coral estiver bem ensaiado e o pastor preparando sermões bem alinhavados. Isso é guetoísmo e nada pode ser mais nocivo à vida da igreja e o cumprimento de sua missão.

É preciso sair para fora. Se o coral quer cantar, que cante nas ruas, nos asilos, nos orfanatos. Se o pastor quer pregar, que pregue nas praças, nos hospitais, nas empresas. E que a igreja se mostre presente, fazendo diferença na cidade onde está, no bairro onde se localiza. A espiritualidade de uma comunidade cristã se mede pelo que ela faz das portas da igreja para fora, e não pelo que ela faz das portas da igreja para dentro.

Eu não estou falando de um evangelho meramente social. Eu não estou falando de obras meritórias para alcançar o favor divino. Nem tampouco estou eu falando de assistencialismo, ainda que situações emergenciais como há tantas no Brasil, mereçam ação emergencial. São crianças de rua, são homens de rua, são velhos de rua. Eles são os convidados que Jesus quer que chamemos para o banquete. “Sai depressa para as ruas e becos da cidade, e traze para aqui os pobres, os aleijados, os cegos e os coxos” (Lu 14:21). Nós não amamos a miséria e gostaríamos de nunca precisar contemplá-la. Gostaríamos, até quem sabe, que o governo recolhesse os miseráveis para algum lugar isolado e lá cuidasse deles para nós, para que não precisássemos lembrar que eles estão aí, nas nossas ruas, nas nossas calçadas, bem defronte às nossas casas bem decoradas. Mas eles estão aí, construindo favelas uma após a outra, sendo atacados pelas doenças contagiosas em seus barracos cheios de ratos, e depois vindo trabalhar em nossas casas, fazendo nossa comida, cuidando de nossos filhos. Isso porque a pobreza traz em si mesma a semente da sua vingança.

A pobreza e o pobre são tarefa da igreja. E Deus não nos deixará impunes por desprezarmos a tarefa que nos dá para executar.

Muito além da ação emergencial, entretanto, está o compromisso com o chamado mandato sócio-cultural das Escrituras. Temos um compromisso diante de Deus de sermos seus colaboradores neste mundo, e isto implica em abraçar o mandato sócio-cultural: preservação da família, estímulo à educação, apoio à ciência, preservação do meio-ambiente, alimentação saudável para todos, saúde e saneamento básicos, condições adequadas de trabalho e descanso com lazer para todos. Sem lutar pelo cumprimento do mandato sócio-cultural expresso nas primeiras páginas da Bíblia, não pode haver cristianismo genuíno nem fé verdadeiramente bíblica.

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10.          Princípios Éticos e Responsabilidade Pessoal em vez de Legalismo e Pragmatismo Éticos

Fala-se muito em crise ética. Os alardes da crise estão, na verdade, proclamando uma meia verdade. Existe sim uma crise, uma vez que existe uma crise religiosa (o que é, na verdade, muito bom, pois religiosidade não serve para nada, e é talvez um grande pecado) e uma crise filosófica. Há hoje quem proclame aos quatro ventos a inexistência de qualquer absoluto, e há aqueles que, desavergonhadamente, dizem ter certeza absoluta disso, apesar da contradição lógica envolvida na afirmação. Esta crise da ética enquanto disciplina filosófica tem sido acompanhada de uma crise comportamental que sugere uma crise ética generalizada.

Mas, gostemos disso ou não, não é bem verdade. Estamos vivendo um período áureo de ética pública e social. Nunca se puniu tanto a corrupção política que sempre existiu, nunca se condenou tanto a guerra, o genocídio, o preconceito em todas as suas formas, o racismo, o chauvinismo, nunca se deu tanta atenção aos deficientes físicos, nunca se importou tanto com a infância, nunca se viu tantas denúncias de abuso sexual de menores, nunca se condenou tanto a má distribuição de renda, a exploração do homem pelo homem, a escravidão e a semi-escravidão, nunca se viu tamanha devassa contra as muitas atividades anti-éticas que sempre existiram encobertas por uma crosta de moralidade burguesa hipócrita que parecia e ainda parece igualar moralidade e pudicícia, como se toda atividade anti-ética tivesse algo a ver com sexo.

Dizem haver uma crise de ética sexual, quem sabe pelo menos isso é verdade. Mas talvez nem isso seja real. O adultério, a promiscuidade, a prostituição, a fornicação, sempre existiram. A única diferença é que tudo isso era feito em maior segredo. Agora tudo é feito mais às claras porque há menos hipocrisia, o que é na verdade mais um progresso da ética que uma decadência. Hoje a sociedade é mais honesta consigo mesma e não esconde as suas práticas, e esse é um passo importante em direção da cura. Precisamos parar de falar em crise ética no sentido de crise dos costumes. Nada mudou, só há mais honestidade, mais franqueza, maior liberdade de expressão, mais abertura para se confessar o que se quer. O que nos cabe fazer não é ficar alardeando uma crise ética falsa como moralistas horrorizados. O que cabe à igreja fazer é parabenizar a sociedade por enfim mostrar a sua cara com honestidade, e agora explicar porque este comportamento não é bom, e propor uma cura.

Eu não estou defendendo, evidentemente, nenhuma espécie de liberação dos costumes, nem muito menos um relativismo ético. Pelo contrário, minha luta é pelo revigoramento da ética enquanto disciplina filosófico-teológica. Entretanto, não é apontando para

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versículos bíblicos que vamos convencer a sociedade a mudar suas práticas sexuais e práticas de violência, por exemplo. É preciso explicar o porquê das coisas, e esse é o árduo trabalho e o grande desafio para a teologia reformada no século 21. O que precisamos é proclamar uma revolução de princípios, um re-escalonamento dos valores (i.e., uma nova taxionomia axiológica), o que precisamos é abandonar o legalismo e uma ética vitoriana burguesa na forma de regras biblicamente defensáveis e estabelecer uma ética cristã de princípios biblicamente fundamentada que sirva para a realidade de nosso tempo.

Será somente a partir desse momento que teremos a instrumentação necessária para denunciar o pragmatismo ético que caracteriza a prática eclesiástica evangélica hoje, com igrejas praticando o proselitismo de modo descarado, com pastores dizendo literalmente que os fins justificam os meios e enganando as pessoas com falsos espetáculos de curas e milagres, com grupos fundamentalistas extremados praticando a sua guerra santa em prol da chamada sã doutrina, destruindo carreiras, perseguindo pessoas, arrasando famílias, matando indivíduos e explodindo bombas em nome de sua religiosidade, em nome de sua posição doutrinária.

E como carecemos de fazer essas denúncias! Mas para fazê-las, é preciso que não adotemos o mesmo pragmatismo ético de nossos adversários. É preciso que o façamos por meio de uma revolução na ética, deixando de lado uma ética legalista e moralista de acobertamento e utilitarismo e adotando uma ética de princípios bíblica e cristã que não tolere mais o acobertamento, o pragmatismo, a hipocrisia e a falsa moralidade burguesa, que insista nos verdadeiros fundamentos da ética cristã: o amor, a justiça e a verdade.

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11.          Palavras Finais

Eu sei que este programa é, com seus dez ítens, bastante ousado.

Eu sei que os obstáculos são imensos.

Eu sei que muito do que foi dito precisa ser repensado, reexaminado, recondicionado. Estou aberto às críticas construtivas. Nós precisamos de sua ajuda.

Eu quero convidá-lo a aliar-se a mim e a muitos outros pensadores cristãos brasileiros que pensam como eu e que querem reconstruir o evangelicalismo no Brasil a partir do genuíno espírito do protestantismo e, desta forma, promover o progresso da reforma protestante em nosso país.

A reforma não acabou! Há muito que fazer, há muito a reformar na sociedade e na igreja. Como diz o lema da reforma, somos igreja reformada e, conseqüentemente, sempre se reformando. Somos, portanto, mais que reformados; somos reformacionais.

Nossa proposta é clara: queremos uma nova via que preze a eqüidistância dos extremismos, que passe longe do carismatismo, do liberalismo e do fundamentalismo. Queremos uma igreja evangélica tolerante, anti-sectarista, aberta ao diálogo, aberta ao estudo e à pesquisa, irênica, anti-obscurantista, anti-dogmatista, humilde epistemologicamente falando, reconhecedora dos mistérios de Deus, pacífica, amorosa, que saiba valorizar tanto a sua unidade quanto a sua diversidade, sem medo de se expor, atuante na sociedade e eticamente sã.

Se essa é também a sua esperança, vamos trabalhar juntos em nome de Jesus Cristo, nosso Senhor e salvador, no poder do espírito Santo e para a glória única do Deus Triúno.

FIM