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ÉTICA EM SAÚDE

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ÉTICA EM SAÚDE

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ÉTICA EM SAÚDE

COMISSÃO

MARA DE SOUSA FREITAS REDATORA

PEDRO ANTAS

ANA MARTA CUNHA

BRUNO MACEDO ELSA PICÃO RESPONSÁVEL

DE COMUNICAÇÃO

INÊS CAMPOS COSTA

PRESIDENTE

JOÃO PEDRO VIEIRA

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SUMÁRIO EXECUTIVOEm Portugal há um vasto conjunto de dados de saúde cujo valor não está potenciado no sentido de poder contribuir para o melhor desenvolvimento social, científico e económico. Potenciar a informação de saúde, visando a sua utilização benéfica para a melhoria dos cuidados de saúde e do progresso científico, em proveito da sociedade atual e das gerações futuras, requer uma partilha de dados de saúde sob a égide de valores inerentes ao vínculo social: o respeito, a solidariedade, o altruísmo e o direito à saúde do início ao fim da vida.

Partilhar dados é uma dádiva que deve acolher o bem da pessoa e o bem comum, à luz do princípio da justiça, em prol do progresso dos cuidados de saúde e da evolução da ciência. Requer uma lei de dados de saúde, prevendo a ocultação de identidade e os limites à re-identificação como princípios, salvo razões de saúde pública; o consentimento para a informação ser usada com a finalidade adequada; ser dador de dados à partida, sempre que consensual; direito de saber qual o resultado benéfico do uso dos dados; supervisão do circuito e boa gestão dos pedidos de acesso à informação; sensibilizar todos para o potencial dos dados e realizar um estudo sobre a confiança dos cidadãos na segurança dos sistemas de informação em saúde.

A lei de dados de saúde deve constituir um guia moral que preserve os valores fundamentais da sociedade na era digital, sob pena de o potencial da informação se dissociar destes valores em consequência da velocidade da inovação, que habitualmente não acompanha a nossa capacidade de refletir, legislar e regulamentar. É necessária uma resposta proativa, inovadora, confiável, prudente e robusta do ponto de vista ético para os desafios e oportunidades da informação de saúde.

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O CONTRATO SOCIAL E O PROGRESSO EM SAÚDE

Ao longo de décadas os portugueses têm vivido uma evolução positiva da saúde 1. Contudo, continuam a existir desigualdades e lacunas na utilização da evidência gerada em contexto real que permita o planeamento, a execução e a avaliação de cada vez melhores políticas públicas em saúde 2. O cidadão continua a confrontar-se com assimetrias na tradução do fundamento ético dos cuidados de saúde: a capacidade para responder técnica, científica e humanamente às necessidades individuais e coletivas de saúde, numa abordagem integradora, holística, eficiente, eficaz e equitativa.

A informação de saúde é uma ferramenta essencial de apoio à decisão em saúde – fundamenta processos de deteção precoce, prevenção, tratamento e readaptação após a doença. O processo que visa assegurar uma partilha de informação estruturada, integrada, segura e confiável está longe de estar concluído. Tal facto coloca dificuldades de várias naturezas: aos prestadores de cuidados de saúde, que querem e devem prestar os melhores cuidados; aos gestores, que assumem a responsabilidade da implementação das medidas em saúde; aos decisores políticos, que têm de assegurar a eficiência e efetividade dos serviços à população, e à Ciência, que requer matéria-prima para investigar, evoluir e inovar as ciências da saúde e a prática clínica 3. A partilha de dados de saúde em Portugal é uma realidade, e, como tal, necessita de ser estruturada, regulada e potenciada. A interoperabilidade, a interconexão e a intercomunicabilidade dos dados em saúde pode ser transformada em informação de saúde com elevado valor e impacto no desenvolvimento social, científico e económico 3, 5.

PRINCÍPIOS ÉTICOS DA DÁDIVA E PARTILHA DE DADOS EM SAÚDE

A partilha de dados de saúde materializa o vínculo social, expressando os valores da solidariedade, do altruísmo, da proteção e promoção da saúde do início ao fim da vida. É uma dádiva pessoal e social que acolhe o bem da pessoa e o bem comum à luz do princípio da justiça: “A ética é a procura da vida boa, com e para com os outros, em instituições justas.” 6 A partilha de dados de saúde envolve, por um lado, a relação de cada pessoa consigo mesma, a “procura da vida boa” e de melhores cuidados para viver bem e, por outro, a relação com o outro, a “pluralidade” e as relações com os outros que definem a totalidade do existente 7. Esta partilha requer um ecossistema integrado e um consenso para um compromisso social alicerçado num pacto de confiança, assente nos princípios do respeito, transparência, integridade, clareza, segurança e privacidade, no rigor e na competência profissional (traduzida no cumprimento das boas práticas e no fortalecimento da relação entre profissionais de saúde e cidadãos).

Uma partilha baseada nos princípios enunciados poderá ajudar a promover o bom uso dos dados e da informação de saúde, tornando os resultados e os seus benefícios inequívocos, promovendo a sustentabilidade do SNS, a otimização dos recursos e assegurando o máximo potencial da informação dos cidadãos. A partilha de informação de saúde de qualidade, relevante, fidedigna, atualizada e atempada, onde e quando esta se revela essencial 8 e em benefício do cidadão e da comunidade em que este se insere, é uma forma superior de promoção da coesão social, que deve ser entendida e tratada como um bem de interesse público. Sem partilha de dados de saúde é colocado em causa o cumprimento do dever

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social individual e do EstadoN1. A partilha da informação de saúde representa conhecimento, progresso e, acima de tudo, uma cultura de responsabilidade ética e social – pela sociedade atual e pelas gerações futuras – e uma oportunidade de influenciar positivamente a vida e a saúde dos cidadãos. As principais questões éticas na partilha e dádiva de dados e informação de saúde que estão na base desta reflexão são:• O respeito pelo princípio da autonomia, da dignidade e da privacidade, assegurando a

“proteção legal contra quaisquer formas de discriminação” 9 e “garantias efetivas contra a obtenção e a utilização abusivas ou contrárias à dignidade humana” 9;

• O enquadramento necessário do consentimento da partilha e a garantia da autonomia através da participação consciente e informada dos cidadãos na decisão de partilhar os dados, respeitando os seus interesses, quando legítimos;

• O direito à informação, especialmente no que diz respeito à finalidade de utilização e do contributo da sua dádiva para o bem comum;

• O respeito pela intimidade e confidencialidade no que diz respeito à titularidade e custódia da informação de saúde, nomeadamente assegurar a sua proteção através dos direitos legais e deveres de responsabilidade;

• O valor social e científico da partilha e disponibilização da informação de saúde, em particular o exercício do direito “à proteção da saúde e o dever de a defender e promover” 9;

• O justo equilíbrio entre riscos e benefícios, a promoção da transparência dos processos e dos meios e o respeito pela vulnerabilidade da pessoa.

A DÁDIVA E O BEM COMUM

Apesar de ser relativamente unânime que o bem comum deve ser entendido à luz do princípio da justiça, é essencial reforçar que não pode ser confundido “nem com a soma aritmética dos bens individuais, nem com os bens da maioria das pessoas” 7. O bem pessoal não é necessariamente o bem de uma pessoa singular, mas é muitas vezes um bem partilhado por uma multiplicidade de pessoas. Assim, a autonomia do indivíduo consagra a possibilidade de escolher o que é, para si, o melhor bem e “a vida boa”. Contudo, a autonomia, enquanto princípio ético, vai além do livre-arbítrio, considerando-se como “livre disposição do poder de decisão que está em causa” 7, contemplando um sentido ético da existência e não apenas o mero capricho individual. Assim, “entre o bem pessoal, entendido no seu sentido ético, e o bem comum, governado pela instauração da justiça ética, não deve, em princípio, haver conflito” 7.

O CONSENTIMENTO NA PARTILHA DE DADOS EM SAÚDE

É necessário que cada cidadão, na expressão da sua autonomia, possa consentir, de forma consciente e informada, a partilha dos seus dados e informação de saúde através de uma relação de confiança entre cidadãos, sociedade e Estado 10 para determinada finalidade de uso. Regra geral, o consentimento deve traduzir uma “manifestação de vontade livre, específica, informada e inequívoca” 11. A importância do propósito ou finalidade, isto é, a garantia de que os dados doados serão usados de forma apropriada e sempre em resposta a necessidades concretas 11, tranquiliza os cidadãos, devolvendo-lhes segurança quanto à dádiva a que se propõem através do consentimento.

O Regulamento Geral sobre a Proteção de Dados (RGPD) confere aos Estados membros flexibilidade para determinar a finalidade do tratamento dos dados e o mecanismo de

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tratamento lícito dos mesmos, com base no consentimento do titular ou fundamento legítimo 11. O consentimento pode assumir um cariz explícito ou implícito, que deve acompanhar a maturidade social de acolhimento de qualquer uma das possibilidades no contexto apropriado. Em Portugal, o consentimento implícito é já uma via para a dádiva de órgãos. A opção pelo consentimento implícito pressupõe uma relação, do indivíduo com a sociedade, de confiança, de altruísmo, de solidariedade e, necessariamente, de resultados positivos e de informação que traduza uma simbiose entre o bem individual e o bem comum, entre os direitos e os deveres 12.

O modelo de acesso à informação pode ser classificado como “opt-in” – quando o cidadão tem de exercer de forma explícita a vontade de partilhar a informação – ou “opt-out” – quando a partilha começa na relação do cidadão com os cuidados de saúde, por razões de saúde e interesse públicos, e o exercício explícito do cidadão se prende com a vontade de deixar de partilhar determinada informação 13. O modelo “opt-out” – generalizado noutros países – não discrimina, é compatível com as bases de dados nacionais e responde aos critérios de casos especiais, ao abrigo do RGPD.

Este modelo ainda deve permitir ao cidadão, de forma simples e acessível, o “direito ao esquecimento” e a opção de não partilha em finalidades por si não desejadas, salvo em situações que impacte diretamente com a missão constitucional do direito à saúde e o dever de a promover, designadamente a segurança face a ameaças de saúde pública 11. Neste caso, estes direitos não deverão sobrepor-se como bem superior (ex., dados fundamentais para o planeamento de cuidados de saúde ou estatísticas oficiais). O enquadramento legislativo europeu 11 enquadra esta modalidade ao prever a partilha de dados fundamentais de saúde, sob pena de não ser possível assegurar os melhores cuidados de saúde aos cidadãos nem o planeamento de políticas públicas 3.

A PROPRIEDADE, A TITULARIDADE E A CUSTÓDIA DOS DADOS DE SAÚDE

Os conceitos de propriedade, titularidade e custódia pretendem dar resposta sobre os direitos e deveres da gestão dos dados de saúde (recolha, tratamento, armazenamento e difusão) e do indivíduo que os partilhaN2. A interação do indivíduo com os sistemas de informação produz informação que, devidamente processada, se traduz num fenótipo digital – resultado da nossa interação com tecnologias de informação e da interpretação da informação que caracteriza o estado de saúde 3. A informação individual, como os parâmetros biográficos, bioquímicos, imagiológicos, terapêuticos e outros que representem resultados do indivíduo, é da legítima titularidade do mesmo.

O conceito de custódia agrega a privacidade individual do cidadão em termos de informação de saúde. Este conceito encerra, em si mesmo, uma função de proteção consistente com as expectativas do público sobre práticas confidenciais que preservam a privacidade e a dignidade da pessoa. É ainda de referir que o consentimento garante a um fiel depositário uma autoridade privilegiada de exploração temporária para um determinado fim (finalidade), e não uma propriedade ou titularidade sobre a informação (utilização para os fins consentidos) 3.

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FINALIDADE DA UTILIZAÇÃO

A dádiva de dados deve ser considerada no sistema de saúde como um todo. A lei tem de garantir o melhor uso dos dados de saúde, seja através da salvaguarda dos cidadãos, protegendo-os dos maus usos ou usos indevidos, seja promovendo os bons usos e incentivando a investigação, o progresso científico e a promoção da melhoria contínua dos cuidados de saúde assistenciais. É importante recordar que os dados, em si, são axiologicamente neutros. O que determina a sua importância é o uso que lhes é dado, sobretudo o bom uso e o impacto desse bem de utilidade pública. Importa também sublinhar a importância de retribuir ao cidadão a transparência sobre o seu contributo individual para o bem comum, ou seja, através da rastreabilidade da utilidade benéfica dos seus dados e da necessária e devida capacidade de o indivíduo conhecer a relevância desse contributo, a bem da construção de um ciclo crescente de solidariedade, confiança, progresso e justiça.

VALOR DA INFORMAÇÃO

Cabe ao Estado assegurar uma definição clara do registo individual de saúde e da informação de saúde, no geral, à luz da Constituição da República Portuguesa e das normas legais em vigor. Um aspeto fundamental desta definição é o valor social e económico inerente aos registos de saúde individuais e agregados. No que respeita à regulação económica, não se vislumbram preceitos éticos que fundamentem o tratamento dos dados de saúde, sob custódia do Estado, enquanto bens transacionáveis de valor intrínseco e diferenciado, face ao propósito de interesse público dessa mesma agregação e ao ato de discriminação que estaria inerente a esse processo.

Assume-se uma legitimidade para, à semelhança de outros países, instituir um sistema de autorização de finalidades de uso de informação a terceiros, assente no princípio da autossustentabilidade, com emolumentos transparentes e equitativos, de cariz fidedigno e robusto para o processamento, a gestão e a auditoria dos processos de fornecimento, utilização e eliminação da informação de saúde, assim como da eliminação de assimetrias no acesso a essa informação. É um modelo utilizado noutros países que não discrimina, é compatível com as bases de dados nacionais e responde à ética, permitindo transparência na validação da finalidade do uso e dotando o Estado de uma capacidade de auditoria.

O ENVOLVIMENTO DA POPULAÇÃO E DOS PROFISSIONAIS DE SAÚDE

A partilha de dados é um gesto de altruísmo, uma manifestação de generosidade social, devendo ser feita de forma informada e esclarecida. O benefício coletivo apenas é possível através da cooperação individual de cada cidadão, e esta será tanto maior quanto o conhecimento existente sobre o balanço risco/privacidade/benefício real. A solidariedade – no presente contexto de generosidade, dádiva e benefício coletivo – exige um investimento permanente na literacia dos cidadãos, dos profissionais de saúde e das instituições que participam neste ecossistema, tendo em vista criar um clima de confiança e promoção da melhoria contínua das boas práticas.

A confiança gera-se quando há transparência de valores, comunicação aberta e implementação de medidas que legitimem as preocupações dos cidadãos e dos profissionais de saúde. É da

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responsabilidade do Estado, de todos os intervenientes neste processo e de cada um de nós criar um ambiente seguro, alicerçado em valores explicitamente promovidos e justificado no propósito das medidas tomadas, fomentando assim confiança num sistema que se propõe prezar sempre pelo bem comum, não colocando em causa o bem da pessoa, promovendo mais e melhor saúde para todos e dando resposta às legítimas preocupações dos cidadãos.

ENQUADRAMENTO LEGAL DA PRIVACIDADE E PARTILHA DE DADOS

A privacidade dos dados e da vida é um direito fundamental dos cidadãos. O ecossistema legislativo, em Portugal, será necessariamente adaptado a uma nova realidade que o RGPD introduz (portabilidade, direito ao esquecimento e valorização e reforço do consentimentoN3) 11. Importa utilizar esta oportunidade para incorporar os preceitos éticos no processo de obtenção do máximo benefício dos dados de saúde para a sociedade, respeitando os valores do nosso contrato social. A materialização dos princípios éticos já enumerados requer a implementação de uma lei de dados de saúde, cuja referência já se encontra prevista na Constituição da República Portuguesa e no RGPD.

AS RECOMENDAÇÕES DA COMISSÃO DE ÉTICA

O consenso social deverá surgir em torno de um instrumento democrático e consensual, uma lei de dados de saúde, que salvaguarde:#1. A autonomia, a dignidade e a privacidade, através de um consentimento necessário

e adaptado às situações, definindo como pressuposto geral da informação de saúde a ocultação de identidade e os limites à não re-identificação, mas prevendo, em simultâneo e em situações devidamente consensualizadas, a figura implícita e o modelo “opt-out” para informação de interesse público – a classificar em legislação específica, que fundamente os casos especiais (ex., Registo Oncológico Nacional) –, sob preceitos éticos universais condizentes com o nosso contrato social e tendo sempre em consideração a participação dos cidadãos na decisão – decisão partilhada;

#2. O bem comum, através da justiça intergeracional e da exigência clara e transparente das finalidades do uso e a retribuição justa ao cidadão, que assenta no direito a conhecer a utilidade benéfica da sua dádiva para o bem comum;

#3. O valor da informação, através de comissões de ética (incluindo peritos em privacidade de dados), com modelos de deliberação ética fundamentados e transparentes e de competências a atribuir a uma entidade reguladora que assegurem proporcionalidade, justiça, equidade, transparência, responsabilização e supervisão, com severas penalizações para o incumprimento e recomendações sobre incentivos às boas práticas;

#4. A titularidade e custódia dos dados de saúde assegurados através de competências atribuídas a uma entidade executora que garanta a custódia para a disponibilização e a proteção através dos direitos legais e deveres de responsabilidade;

#5. A promoção permanente da literacia dos dados de saúde, através de mecanismos obrigatórios, periódicos e generalizados de sensibilização e formação que permitam alcançar e promover o máximo potencial da informação, fomentar a confiança e as boas práticas e retribuir ao cidadão o conhecimento sobre a relevância e impacto da sua dádiva, como, por exemplo, um estudo sobre a confiança dos cidadãos na segurança dos sistemas de informação em saúde, permitindo balancear o investimento no reforço desta mesma confiança.

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CONCLUSÃOA evolução tecnológica e a digitalização da saúde, ao tempo em que trouxeram benefícios evidentes, encerram, em si, desafios éticos relacionados com a partilha de dados de saúde que requerem ações concretas de todos. Estas recomendações traduzem um caminho de futuro – a saúde pensa-se cedo – que permitirá potenciar o valor social e científico dos dados de saúde, quer através da materialização de uma lei que permita alargar a sua utilização benéfica para a melhoria dos cuidados, a otimização das políticas de saúde e o progresso científico, quer através da clarificação do papel do Estado e das suas instituições ao longo das diferentes fases do processo (recolha, tratamento, disponibilização de dados, regulação e auditoria).

Preconizamos um modelo de consentimento que se apresenta simultaneamente mais simples, abrangente e com maior potencial de utilização, ainda que represente um desafio maior de sensibilização, esclarecimento, envolvimento e acompanhamento dos cidadãos e dos profissionais de saúde em todo o processo. O que propomos protege a sociedade, sem esquecer o cidadão; simplifica, sem colocar em causa a segurança e a transparência; inclui, sem excluir o direito a sair ou a ser esquecido; promove a partilha, sem condicionar a privacidade e a confidencialidade; fomenta o bem comum, sem esquecer o individual; e defende o interesse público da informação coletiva, sem esquecer a titularidade da pessoa.

Este é o primeiro passo de um processo de discussão que se pretende alargado e de ação, que se quer e deverá ser participado. A todos caberá o seu papel: ao poder político, o de promover o debate e garantir um procedimento legislativo próximo, transparente e eficaz, que respeite os requisitos éticos, os direitos, liberdades e garantias de todos os cidadãos e seja simultaneamente capaz de garantir o bem comum; ao Estado e às suas instituições, o de operacionalizar e garantir a confiança de todos nas soluções encontradas, atestando a boa governança do sistema; aos profissionais de saúde, o de assegurar as melhores práticas em prol da proteção e promoção da saúde, do início ao fim de vida, sempre com dignidade, respeito e lealdade; e a todos os cidadãos, o da responsabilidade individual perante o bem social que a informação de saúde representa. Decidir em saúde implica rigor – ético, científico e político – e compromisso, com três pilares fundamentais: o poder individual do cidadão que decide; a sua responsabilidade perante o coletivo, e a justiça social que o Estado deve promover, garantindo a defesa dos interesses das gerações atuais e futuras. Foi a isso que nos propusemos e é isso que agora propomos ao país.

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REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS01 Simões, J. A., et al., Portugal Health system review, em Health Systems in Transition. 2017, European observatory

on health systems and policies.

02 Murray, C. J. L., et al., Healthcare Access and Quality Index based on mortality from causes amenable to personal health care in 195 countries and territories, 1990–2015: a novel analysis from the Global Burden of Disease Study 2015, Lancet, 2017.

03 Mittelstadt, B. D., e L. Floridi, The Ethics of Biomedical Big Data. Law, Governance and Technology. 2016: Springer.

0 4 Szócska, M., et al., Big data for better outcomes: supporting health care system transformation in europe, Eurohealth, 2017. 23(1).

05 Salcher, M., Connecting the dots: putting big data to work for health systems, Eurohealth, 2017. 23(1).

06 Ricoeur, P., Éthique et Morale. Revista Portuguesa de Filosofia, 1990. XLVI(1).

07 Renaud, M., O bem da pessoa e o bem comum. Bioética e Políticas Públicas. 2014: Conselho Nacional de Ética para as Ciências da Vida.

08 Administração Central do Sistema de Saúde R1: Registo de Saúde Electrónico. 2009, Administração Central do Sistema de Saúde, Ministério da Saúde.

0 9 Decreto de 10 de abril de 1976. Constituição da República Portuguesa na versão atual.

10 National Data Guardian for Health and Care: Review of Data Security, Consent and Opt-Outs. 2016, National Data Guardian for Health and Care.

11 Regulamento sobre a Proteção de Dados (UE) n.º 2016/679, do Parlamento Europeu e do Conselho, 2016, União Europeia.

12 Dalal, A. R., Philosophy of organ donation: Review of ethical facets. World J Transplant, 2015. 5(2): p. 44-51.

13 Saunders, B., Opt-out organ donation without presumptions. J Med Ethics, 2012. 38(2): p. 69.

NOTASN1 “A compreensão da informação de saúde como recurso para o próprio, enquanto instrumento para a tomada de

decisão, enquadra-se no respeito pela autonomia da pessoa, no respeito pelos seus con-cidadãos (familiares ou outros), e ainda na responsabilidade dos profissionais pela proteção dessa mesma informação”, Parecer nº 60 do Conselho Nacional de Ética para as Ciências da Vida (extrato).

N2 “A informação de saúde relevante de qualquer utente deve estar acessível, de forma controlada, ao profissional de saúde que lhe presta um qualquer serviço, independentemente do local, da origem e da prestação”, Parecer nº 60 do Conselho Nacional de Ética para as Ciências da Vida (extrato).

N3 “(40) Para que o tratamento seja lícito, os dados pessoais deverão ser tratados com base no consentimento da titular dos dados em causa ou noutro fundamento legítimo, previsto por lei, quer no presente regulamento quer noutro ato de direito da União ou de um Estado-Membro referido no presente regulamento (...)”