etica e moral

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ÉTICA E MORAL José Henrique Silveira de Brito. 1. É tradição iniciar os cursos de Ética chamando a atenção para o facto de o recurso à etimologia das palavras "ética" e "moral" nada orientar para a distinção do conteúdo dos dois termos.I Ética apresenta-se como uma formação nominal de origem grega, que se pode associar ao género feminino de dois adjectivos triformes, por um lado TJfhxós ("que diz respeito aos costumes", "relativo ao carácter e à moral"), e outro etJlxós ("usual", "habitual", "familiar"). O primeiro dos adjectivos, recuperado por Heidegger,2 é derivado do substantivo neutro Êthos (escrito com eta: TJfJos), já presente na mais antiga poesia grega, a significar "morada", "toca", "lugar onde vivemos", "estância"; a partir de Hesiodo, o termo assume uma evolução semântica particularizada, associada a um emprego psicológico e moral, passando a corresponder à significação "maneira de ser habitual", "disposição de espírito", "carácter", interioridade de que brotam os actos.) O segundo, fixado por Aristóteles,4 apresenta-se tam- . Faculdade de Filosofia da Universidade Católica Portuguesa, Braga. I Para uma introdução geral à Ética cf. VAZ, Henrique C. de Lima - Escritos de Filosofia IV. Introdução à Ética Filosófica I. São Paulo, Edi~ões Loyola, 1999, pp. 7-76. Cf. também, do mesmo autor, Escritos de Filosofia. 11 Etica e cultura. São Paulo, Edições Loyola, 1988. 2 Cf. HEIOEGGER, M. - «Lettre sur l'humanisme». In: 10 - Questions m. Paris: Gallimard. 1966,p. 138.Nas pp. 135-143o autor fala da Ética. Sobre toda esta problemática, em especial sobre a «dimensão moral» do agir humano, cf. LADRIERE, Jean - «Le concept de tldimension éthiquetl». 10 - L'éthique dans l'uni- vers de la rationalité. Saint-LaurentlNamur: FideslArtel, 1997, pp. 21-42. 3 Lima Vaz chama a atenção para o facto de T/()os, escrito com eta, ser «a transposição metafóricada significação original com que o vocábulo é empregado na língua usual grega e que denota a morada, covil ou abrigo dos animais. [00']A trans- posição metafórica para o humano de ethos para o mundo humano dos costumes é extremamente significativa e é fruto de uma intuição profunda sobre a natureza e sobre as condições do nosso agir (praxis), ao qual ficam confiadas a edificação e preservação de nossa verdadeira residência no mundo como seres inteligentes e livres: a morada do ethos cuja destruição significaria o fim de todo sentido para a

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Page 1: Etica e Moral

ÉTICA E MORAL

José Henrique Silveira de Brito.

1.É tradição iniciar os cursos de Ética chamando a atenção para o factode o recurso à etimologia das palavras "ética" e "moral" nada orientarpara a distinção do conteúdo dos dois termos.I Ética apresenta-se comouma formação nominal de origem grega, que se pode associar ao génerofeminino de dois adjectivos triformes, por um lado TJfhxós ("que dizrespeito aos costumes", "relativo ao carácter e à moral"), e outro etJlxós("usual", "habitual", "familiar"). O primeiro dos adjectivos, recuperadopor Heidegger,2 é derivado do substantivo neutro Êthos (escrito com eta:TJfJos),já presente na mais antiga poesia grega, a significar "morada","toca", "lugar onde vivemos", "estância"; a partir de Hesiodo, o termoassume uma evolução semântica particularizada, associada a um empregopsicológico e moral, passando a corresponder à significação "maneira deser habitual", "disposição de espírito", "carácter", interioridade de quebrotam os actos.) O segundo, fixado por Aristóteles,4 apresenta-se tam-

.Faculdade de Filosofia da Universidade Católica Portuguesa, Braga.I Para uma introdução geral à Ética cf. VAZ, Henrique C. de Lima - Escritos

de Filosofia IV. Introdução à Ética Filosófica I. São Paulo, Edi~ões Loyola, 1999,pp. 7-76. Cf. também, do mesmo autor, Escritos de Filosofia. 11Etica e cultura. SãoPaulo, Edições Loyola, 1988.

2 Cf. HEIOEGGER, M. - «Lettre sur l'humanisme». In: 10 - Questionsm.Paris: Gallimard. 1966,p. 138.Nas pp. 135-143o autor fala da Ética. Sobre toda estaproblemática, em especial sobre a «dimensão moral» do agir humano, cf.LADRIERE, Jean - «Le concept de tldimension éthiquetl». 10 - L'éthique dans l'uni-vers de la rationalité.Saint-LaurentlNamur: FideslArtel, 1997, pp. 21-42.

3 Lima Vaz chama a atenção para o facto de T/()os,escrito com eta, ser «atransposição metafóricada significação original com que o vocábulo é empregadonalíngua usual grega e que denota a morada, covil ou abrigo dos animais. [00']A trans-posição metafórica para o humano de ethos para o mundo humano dos costumes éextremamente significativae é fruto de uma intuição profunda sobre a natureza esobre as condições do nosso agir (praxis), ao qual ficam confiadas a edificação epreservação de nossa verdadeira residência no mundo como seres inteligentes elivres: a morada do ethos cuja destruição significaria o fim de todo sentido para a

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16 José Henrique Silve ira de Brilo ÉTICA E MORAL 17

bém como um derivado de outro substantivo neutro grego, Éthos (escrito

com épsilón: El?as), a significar "uso", "costume", "hábito", "carácter","modo de ser", que se adquire pela acção repetida, "hábito" no sentido deperfeição, actualização de si em que consiste o próprio homem.5 Ambasas formas nominais gregas, Tli}os e Ei}os, com uma provável origemindo-europeia comum, e associada, na língua grega, à forma verbal Ei}ro,"ter o costume", foram, desde a Antiguidade utilizadas para traduzir con-ceitos aproximados.6

O termo moral tem a sua origem no latim, mos - moris, e signi-fica "costume", "carácter", "módo de ser". Como é evidente, do ponto devista etimológico, a sinonímia dos termos "ética" e "moral" é perfeita, oque explica que no linguajar de todos os dias eles se apresentem comosinónimos. É por isso comum afirmar que determinado comportamento émoral ou ético, ou que determinada pessoa é do ponto de vista moral, oudo ponto de vista ético, irrepreensível.

que chama «ma petite éthique»,9 constatando que etimologicamente osdois termos são sinónimos, decide por convenção utilizar o termo "ética"para se referir à procura da vida boa, com e pelos outros em instituiçõesjustas, e "moral" para se referir ao conjunto de normas que regem emconcreto o agir que pretende atingir essa vida boa.loPosteriormente, numtexto de 2000, o autor, reconhecendo que os especialistas não se enten-dem sobre o sentido a dar a cada uma das duas palavras, mas que concor-dam «na necessidade de dispor de dois termos», propõe utilizar

«o conceito de moral para o termo fixo de referência e de lhe atribuir umadupla função, a de designar, por um lado, a região das normas, dito deoutro modo dos princípios do permitido e do proibido, por outro lado, oséntimento da obrigação enquanto face subjectiva da relação de um sujeitoa essas normas». I1

vida propriamente humana» [VAZ, 'Henrique C. de Lima - Escritos de Filosofia IV.Introdução à Ética Filosófica I, p 13].

4ARlSTÓTELES -Ética a Nicómaco, 1103a 17-19.5 Para uma explicação mais desenvolvida da etimologia destes termos, cf.

ARANGUREN, José Luis L. - Ética. Madrid: Alianza Editorial, 1994, (1958), pp.19-26; CABRAL, Roque - Temas de Ética. Braga: Publicações da Faculdade deFilosofia UCP, 2000, pp. 33 e 76 e NEVES, Maria do Céu Patrão - «Paideia eethos». Arquipélago. Série Filosofia nO6. 1998, pp. 89-90. Para uma apresentação daetimologia e desenvolvimento do ethos, do ethos à ética e desenvolvimento da éticacomosabercf. VAZ, HenriqueC. Lima- Escritos de Filosofia. II Ética e cultura.Col.: Filosofia n° 8, São Paulo, Edições Loyola, 1988. Para o tema do ethos, a cons-tituição da ética e uma perspectiva da ética em alguns autores fundamentais do pen-sar Ocidental cf. VAZ, Henrique C. de Lima - Escritos de Filosofia. IV. Introdução

à Ética Filosófica I. Col.: Filosofia. São Paulo, Edições Loyola, 1999.6 A redacção deste apartado deve muito às preciosas indicações da Professora

Ana Paula Pinto, da área de Línguas e Literaturas Clássicas do Curso de Humanida-des da Faculdade de Filosofiada Universidade Católica Portuguesa, em Braga.

7Cf. CABRAL, R. - Temasde Ética. Braga: Publicaçõesda Faculdade de Filo-sofia UCP, 2000, p. 78.

8 Para uma exposição sobre diversas acepçães ética e moral cf. LADRlERE,Jean - «Le concept de "dimensionéthique"». In: 10 - L'éthique dans l'univers de larationalité. Saint-LaurentlNamur: Fides/Artel, 1997,pp. 22-24.

Com o termo "ética" Ricoeur aponta em duas direcções; «a éticaanterior apontando para o enraizamento das normas na vida e no desejo, aética posterior visando inserir as normas nas situações concretas».12 Àética anterior chama-lhe «ética fundamental». 13

Estas distinções ricoeurianas evidenciam uma realidade aceitepelos especialistas da filosofia moral: por um lado, a vida moral é vividaem obediência a um conjunto de valores, princípios e normas que regem avida de uma comunidade.14 A este nível, julgar da moralidade do agir éverificar se ele está ou não conforme a norma moral, conforme o princí-pio moral. Está-se num primeiro nível em que se procuram esses princí-

2. Seguindo a sugestão dada pelo estudo etimológico dos termos queaponta para lhes atribuir o mesmo sentido, há autores que os utilizamindistintamente como Roque Cabral por vezes faz,7e outros que recorremaos dois termos para significar conceitos diferentes.8 Ricoeur, no texto

9 RICOEUR, Paul- «De la morale à I'éthique et aux éthiques». AA. VV. - Unsiecle de philosophie. 1900-2000. Paris: GallimardlCentre Pompidou, 2000, p. 103,nota I.

10Cf. RICOEUR, Paul- Soi-même comme un autre. Paris: Seuil, 1990, p. 200e ss. Sobre este tema cf. RlCOEUR, Paul - «Éthique et morale».Revista Portuguesade Filosofia. 46(1990), pp. 5-17 e RENAUD, Isabel Cannelo Rosa; MICHEL,Michel - «Moral».Logos.Vol3, cols. 959-960.Esteúltimotextoé uma excelenteintroduçãogeral à Ética.

11RICOEUR, Paul- «De la morale à l'éthique et aux éthiques», pp. 103-104.12Idem, p. 104.13Idem, p. 107.14Sobre a questão da comunidade ética, cf. OLIVETTI,Marco - «Le probleme

de la communauté éthique». Qu'est-ce que l'homme? Bruxelles: Facultés Universi-taires de Saint Louis, 1982, pp. 324-343. Sobre a situação contemporânea em que háuma civilização universal e a necessidade, impossivel de satisfazer, de uma comuni-dade ética universal, cf. VAZ, Henrique C. de Lima - Escritosde Filosofia. m. Filo-sofia e Cultura. São Paulo: Edições Loyola, 1997,pp. 139-151.

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18 José Henrique Silveira de Brito ÉTICA E MORAL 19

pios e regras. Por outro lado, há um segundo nível que é aquele em que seprocuram as características dessa!) normas e a sua justificação ou funda-mentação. Está-se então perante uma reflexão mais profunda que nor-malmente se designa com o termo "ética". É a distinção feita por JoséLuis Aranguren entre moral vivida e moral pensada:s Quanto à existên-cia deste dois níveis de reflexão, há acordo entre os filósofos da moral.Na utilização dos termos para os designar, é que o acordo desaparece,embora a distinção feita por Ricoeur seja bastante partilhada, tal como severifica com Adela Cortina.

Esta filósofa chama moral

à vivência da vida moral como expressão da humanidade do serhumano. 19

«[à]queles códigos e juízos ql,1epretendem regular as acções concretas doshomens, oferecendo normas de actuação com conteúdo à pergunta "quedevo, como homem, fazer?,,».16

3. Afirma Ricoeur que «há um problema moral, porque há coisasque é preciso fazer ou que vale mais fazer do que outras».20 Se o agirhumano fosse neutro, não haveria problema moral. O problema moralsurge porque as coisas, as acções não têm todas o mesmo valor. E porqueé que há coisas que têm de ser feitas ou que é bom que sejam feitas? Numtexto sobre a dimensão ética Jean Ladriere afirma que há um problemaética porque «a existência é constitucionalmente atravessada por um votofundarpental, por um querer profundo, que visa a sua própria realizaçãoautêritica, e que, correlativamente, ela tem o encargo de assegurar para simesma, na sua acção, esta mesma realização».21

A realização da existência leva à ponderação dos valores em pre-sença e à elaboração de uma escala de valores, o que hoje suscita grandesdificuldades. Há uma grande tentação de dizer que os valores não sãouniversais, que todas as morais têm o mesmo valor. Os antropólogos e ossociólogos apontam nessa direcção, mas é preciso não esquecer que aAntropologia e a Sociologia não são a Ética. É muito cómodo dizer quetodas as morais têm o mesmo valor, mas quando isso nos afecta, comodiz José António Marina, «é outro cantar»;22terá o mesmo valor a moraldos skins-heads e uma moral que respeita os outros? Se olharmos para ofuturo, melhor reconhecemos como seria bom criar uma moral universal.A primeira função da ética é precisamente clarificar, procurar os porquêsdesse que fazer ou fazer melhor. É esta tentativa de esclarecimento quemuitas vezes leva a descobrir que determinada norma que era vividacomo norma moral, se transformou em mera norma social, ou que deter-minado valor moral concretizado em determinado comportamento,devido a circunstâncias históricas, a descobertas científicas, deixou de seexpressar de determinada maneira, deixou de ser vivido na obediência adeterminadas normas e passou a ser concretizado numa conduta diferente.É esta reflexão ética que levará à descoberta de uma característica ftm-

A moral é aquele conjunto de regras, princípios e valores a que, naconcretude da vida quotidiana, o ser humano deve obedecer para viverhumanamente; a moral é imediatamente normativa. A ética, por sua vez,é a reflexão sobre a dimensão moral que caracteriza o humano e que éirredutível a qualquer outra dimensão do homem, seja ela psicológica,social ou histórica. A ética é uma reflexão crítica, filosófica sobre a moralna procura daquilo que a caracteriza e a justifica. Para Adela Cortina eEmilio Matínez, a ética tem três funções: (I) clarificar o que é o moral equais as suas. características específicas; (2) fundamentar a moralidade;(3) aplicar aos diversos âmbitos da vida humana o que se descobriu nosdois primeiros pontos. I?Xavier Etxeberria acrescenta que também é fun-ção da ética «precisar igualmente os bens supremos e/ou regras ou impe-rativos que se constituem como referente moral último das nossasacções».18Com Annemarie Pieper, acrescentarei mais uma função: incitar

15Para este autor, a moral filosófica parte da vida, da vida moral, que não foiinventada pelos filósofos, mas que faz parte da vida de cada homem enquantohomem; a ética é uma «moral pensada» que parte da «moral vivida». Cf.ARANGUREN, José Luis L. - Ética, p. 10.

16CORTINA, Adela - Ética minima. lntroducción a la filosofia prática. 4' ed.Madrid: Editorial Tecnos, 1994, p. 81.

17Cf. CORTINA, Adela; MARTÍNEZ, Emilio - Ética. Madrid: Ediciones

Akal,~. 23.8 ETXEBERRIA, Xavier - Temas Básicos de Ética. Col.: Ética de las

Profisiones. Bilbao: Desclée De Brouwer, 2002, p. 24.

19PIEPER, Annemarie - Ética y Moral. Una introducción a la filosofia prá-tica. Barcelona: EditorialCrítica, 1990, p. 10.

20RICOEUR,Paul- «De la morale à l'éthique et aux éthiques», p. 105.Sobre otema porque é que há hoje um problema moral hoje cf. LADRIERE, Jean - «Le

conce~t de "dimension éthique"», pp. 29-36.1LADRIERE, Jean - «Le concept de "dimension éthique"», p. 34.

22 MARINA, José António - Ética para náugrafos. 4' Ed. 1995 (1' 1995).Barcelona: EditorialAnagrama, p. 68. Sobre este tema cf. pp. 66-68. Há uma tradu-ção portuguesa destaobra publicada pela Caminho, 1996.

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20 José Henrique Silveira de BriloÉTICA E MORAL 21

damental da norma moral: a sua universalidade, que tantas questões sus-citará. É na tentativa de esclarecimento da vida moral que se há-deencontrar a articulação da noção de dever, tão presente na vida moral,com o desejo, tão constitutivo do ser humano quanto é o dever; será nestafunção de esclarecer que se deverá explicitar o lugar e alcance da razão eda sensibilidade na vida moral, e a sua articulação na razoabilidade, con-ceito fundamental para uma vida equilibrada, mas tão dificil de afinar.

Uma das funções da "ética anterior", para utilizar a denominação deRicoeur, é a da fundamentação da moral, da norma moral, do códigomoral. Por que razão a conduta humana não é axiologicamente neutra?Por que é que o ser humano deve viver moralmente? Por que é que a vidahumana bem vivida deve procurar o bem e evitar o mal? Por que é que odever moral deve ser obedecido? O que é que é o bem? O pluralismomoral implicará os incomensuráveis morais? Haverá estranhos moraiscomo os entende Engelhardt?23 Será possível e aceitável o relativismomoral? Será que a relatividade moral não levará necessariamente ao rela-tivismo?24Como conviver com o pluralismo moral e que critérios permi-tem hierarquizar os diversos códigos morais?

A terceira função da ética é "ética posterior". Aqui procura-sefazer o regresso da reflexão sobre a vida moral à moral prática, concreta;isto é, o objectivo dessa ética é partir da moral filosófica para a vivênciada moral. Trata-se de elaborar o que hoje se chamam "éticas aplicadas".A filosofia parte da vida para regressar à vida; a ética parte da experiênciamoral para, após uma reflexão de segundo grau, regressar à vida moral.Esta função pode confrontar-se com duas situações. Uma é a procura datradução na vida moral do que se encontrou na reflexão das outras duasfunções da ética. A segunda visa encontrar o modo de viver moralmentesituações que foram despoletadas por descobertas científicas, novos con-textos sociais, alterações de costumes. Dois bons exemplos de éticas apli-cadas são a Bioética e a Ética Empresarial. A primeira teve origem nasnovas circunstâncias criadas pela evolução vertiginosa da tecnociência e adescoberta da autonomia do doente, a tal ponto que um dos maiores espe-cialistas da matéria, o Prof. Luís Archer, diz que a Bioética é «avassala-dora»2s.

A Ética empresarial, que nasceu nos anos 70, teve a sua origemna crise de confiança gerada por uma série de escândalos que afectaram asociedade americana, quer na esfera política quer na esfera propriamenteeconómica26. Para além desta crise que levou ao aparecimento desta ética,hoje as empresas vêem-se perante problemas para os quais não há solu-ções feitas. Os especialistas consideram que o movimento de globaliza-ção é imparável e que poderá ser benéfico para os países menos desen-volvidos se for feita com regras. Que normas devem reger as relaçõesentre as empresas e a sociedade, as empresas e o estado, as empresas e anatureza?

A. Costuma apontar-se como ponto de partida da reflexão moral aexp~riência subjectiva do ditame da consciência moral, a existência denormas morais presentes em todas as culturas, a experiência do mal. Amoral não é, pois, estranha ao homem, não lhe é extrínseca, não é algumacoisa que se lhe acrescenta. Como afirma Jean Ladriere: «a ética impõe--se pela sua própria virtude, sem ter que se apoiar num fundamento exte-rior; ela pertence à constituição do humano».27 É vivendo moralmenteque o homem se realiza, atinge a plenitude. A moral não é um bloqueiopara a pessoa, um colete de forças, mas caminho para a sua realização. Énesta linha de pensamento que se devem entender as normas morais poisque, se é verdade que, como diz Ricoeur,

«a moral não pressupõe mais nada do que um sujeito capaz de se pôr pondourna norma que o põe corno sujeito. Neste sentido pode-se tomar a ordemmoral corno auto-referencial»,28

o certo é que esta norma tem as suas particularidades que suscitamvárias questões e uma delas, que vale a pena tratar, é a da sua distinçãoentre normas morais e normas jurídicas.

A Ética e o Direit029são dois sistemas normativos cuja distinção éde relevante importância. Os dois sistemas são constituídos por normas,

23 ENGELHARDT,Jr, H.Tristram- Fundamentosda bioética.São Paulo:Edições Loyola, 1998, p. 32.

24 Sobre a relatividade moral cf. ETXEBERRIA, Xavier - Temas Básicos de

Ética, ~p. 160ss.2 ARCHER, Luís - «Bioética: avassaladora, porquê?». Brotéria - cultura e

informação. 142(\996), pp. 449-472. Para urna visão global bastante completa da

Bioética, sua origem e evolução cf. o excelente livro de JONSEN, Albert R. - TheBirth of Bioethics. New York/Oxford:Oxford University Press, 1998.

26Cf. BRlTO, José Henrique Silveira de - «A Ética na vida da empresa». Re-vista Portuguesa de Filosofia. 55(1999), pp. 413-426

27 LADRIERE,Jean- «L'humanismecontemporain».ID. - Lafoi chrétienneet le Destin de la raison. Paris: Les Éditions du Cerf, 2004, p. 32.

28RICOEUR, Paul- «De la morale à I'éthique et aux éthiques», p. 107.29Esta parte do texto segue as distinções feitas por ETXEBERRlA, Xavier-

Temas Básicos de Ética, pp. 131-138. Sobre a noção de Direito cf. MACHADO, 1.

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22 José Henrique Silveira de Brito ÉTICA E MORAL 23

isto é, são sistemas prescritivos, embora o que caracteriza essa prescriti-vidade seja distinto. Uma primeira diferença reside na exigência de posi-tivação. As normas morais valem para a consciência moral, sendo o seuvalor independente da sua integração num sistema jurídico positivo. Asnormas jurídicas, pelo contrário, só valem depois de promulgadas pelopoder político competente.

Uma segunda diferença está no modo de coacção que a prescriti-vidade implica. As normas morais têm uma sanção interna, é a própriaconsciência moral que exerce a coacção. As normas jurídicas, por seuturno, têm mecanismos exteriores de coacção concretizados no poderrepressivo do Estado.

Uma terceira distinção pode fazer-se atendendo ao seu tipo deinstitucionalização. As normas morais remetem para mundos pessoais namedida em que valem para a pessoa enquanto ser moral. As normas jurí-dicas, por seu lado, estão institucionalizadas em códigos, o seu grau deinstitucionalização é total. Como afirma Simone Goyard-Fabre:

determinado sistema jurídico e determinado sistema ético normativo.Quanto à vinculação conceptual, a questão é mais complexa, havendoquatro posições sobre esta matéria. Há quem defenda uma vinculação ouintegração absoluta, quem argumente a favor de uma separação radical;quem considere que há uma separação relativa e quem afirme que apenasse deve verificar uma integração relativa.

«Longe [...] de designar, como se tende muitas vezes a acreditarhoje, as prerrogativas múltiplas dos indivíduos que se denomina."direitosdo homem", o direito é, quaisquer que sejam a diversidade dos sistemajurídicos e a variedade que a história lhe impõe, um instrumento da disci-plina social».30

5. As relações entre Ética e religião, que hoje se vivem numa tensãode variável intensidade mas -regrageral bastante baixa, passaram por umahistória de uma conflitualidade enorme devida fundamentalmente à não

clarificação dos conceitos. Há pois que clarificar o que é a moral e o queé uma 'religião para que a distinção permita ultrapassar velhos equívo-cos.3{

A ética filosófica foi aparecendo quando a ética se foi desvincu-lando da religião, o que se verificou através de um processo lento e queatingiu diversos graus de profundidade desde a defesa da separação radi-calou a separação com possibilidade de inter-relação. Em defesa da pri-meira posição foram apresentados vários argumentos desde a afirmaçãodo sem sentido do religioso ou a consideração de ele ser prejudicial, oupor se considerar que a ética é fundamentalmente ética pública que sedeve remeter exclusivamente para aquilo que se obtém por acordo racio-nal. Em defesa da separação com inter-relação entre a ética e a religiãofoi apresentado o argumento da distinção e inter-relação que necessaria-mente existe entre éticas de máximos e éticas de mínimos pois que nin-guém vive apenas uma ética de mínimos; cada um constrói a sua ética demáximos partindo da ética de mínimos da comunidade em que está inte-grado e a ética de máximos vivida por um crente atende às motivaçõesque a sua religião lhe apresenta.32

A moral e a religião distinguem-se, pois que a religião não se esgotana moral. É evidente que todas as religiões propõem um ideal de vida,mas a estrutura formal do fenómeno religioso é muito mais abarcante. Nocentro da experiência religiosa está "a confrontação do homem com a

Em quarto lugar, pode fazer-se a distinção entre normas morais enormas jurídicas atendendo à forma de as cumprir. No Direito, o queconta é o cumprimento material da norma; o desconhecimento da lei nãodesculpa o seu incumprimento. No campo moral, diferentemente, a inten-ção é decisiva no cumprimento da norma.

Por último, deve atender-se a que o Direito pode incorporar nor-mas morais, mas deve centrar-se nas normas básicas da convivência; oque ele visa especialmente é evitar danos a terceiros. As normas morais,pelo contrário, são mais globais, elas visam o bem moral: a realização dapessoa pela vivência das normas morais.

Pode perguntar-se se há vinculação do ponto de vista fáctico e con-ceptual entre Ética e Direito. Há, efectivamente, vinculação fáctica entre

Baptista - Introdução ao Direito e ao Discurso Legitimador. 10' impressão. Coim-bra: Livraria Almedina, 1997, pp. 31-62, em especial sobre a relação entre Direito e

Ética,EP.59-62. . .GOYARD-FABRE, Simone - «La philosophie du droit». JACOB, André

(dir.) - Encyclopédie philosophique universelle. I L'univers philosophique. Paris:Presses Universitaires de France, p. 179.

31Nesta parte do nosso texto daremos particular atenção ao tratamento que otema mereceu a Xavier Etxeberria (TemasBásicos de Ética. Col.: Ética de las Profi-siones. Bilbao: Desclée De Brouwer, 2002, pp. 65-72) e a Roque Cabral (<<Moralracional e moral evangélica». BRlTO,José Henrique Silveira de (Coord.) - Bioética.Questões em debate. Braga: Publicaçõesda Faculdade de Filosofia UCP, 2001, 85--92). Ao falar de religião teremos em mente fundamentalmente as religiões mono-teístas, particularmente o cristianismo.

32A problemática das relações entre éticas de máximos e de mínimos serádesenvolvida posteriormente.

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24 ÉTICA E MORAL 25José Henrique Silveira de Brito

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realidade essencial,,;33e essa experiência vive-se através do pensamento,pois que uma religião implica sempre um conjunto de crenças; através daacção, uma vez que todas as religiões implicam sempre um culto e umserviço; e através de uma comunidade, uma vez que uma religião implicasempre a existência de uma comunidade com as suas instituições concre-tas devidamente organizadas. Essa experiência tem o seu sentido e o seufundamento na cosmovisão religiosa global, oferecida às acções dos fiéis.Essa narrativa orienta a acção, motiva o crente, legitima o seu agir e é, decerto modo, uma sanção. Este esquema formal ganha conteúdo concretonas diversas religiões.

O religioso não se confunde, portanto, com o moral porque o queverdadeiramente caracteriza o religioso é a procura do transcendente quese manifesta na atitude de adoração e procura de salvação, pelo que areligião não se reduz à moralidade e, ao integrá-la, fá-lo de diversosmodos.

Os modos de inserção da moralidade na religião são diversos e,atendendo às diversas religiões, pode dizer-se que há três modelos domi-nantes. Um dos modelos, presente por exemplo na AntÍgona de Sófocles,considera que a rectidão está na conformidade das acções humanas comum princípio superior aos homens e aos deuses. Modelo diferente é o quefundamenta a validade da decisão ética na obediência a um mandamentodivino. Aqui o fundamental é o Senhor, cuja vontade deve ser obedecidapelo homem que, porque obedece, é santo como o Senhor. É um modeloque, de alguma maneira, pode encontrar-se na tradição judaica e mesmonuma certa concepção cristã, embora com pouca base evangélica. Umterceiro modo de inserção, prevalecente em religiões místicas, considera aobediência dos preceitos como via de acesso àqueles estados em que con-siste a libertação e salvação. Neste modelo a Ética é encarada comocaminho ascético que prepara para a iluminação e união em que consistea salvação. É um tipo de inserção da ética na religião que se encontra nasreligiões orientais.

Sempre houve tensões entre a moral e as outras dimensões da reli-gião. Assim no Judaísmo é conhecida a tensão entre a visão dos profetase a dos sacerdotes, em que os primeiros privilegiavam a moral em detri-mento do culto. Ainda no Judaísmo, no caso do sacrificio de Isaac, pareceque a moral se sacrifica à fé. Esta tensão acontece porque a proposta desalvação, como a da valorização moral, tendem a afirmar-se como abso-lutas. Ora há que harmonizar as duas propostas.

34 Cf., por exemplo,BENTOXVI- CartaEncíclica"Deusé amor".Braga:Editorial A.O, 2006, nOI.

3S KANT, I. - A religião dentro dos limites da razão. Lisboa: Edições 70,[1793] 1992, p. 11. Cf. KANT, I. - Metafisica dos costumes. Trad., apresentação enotas de José Lamego. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 2005, § 13 da "Dou-trina da virtude".

Se aplicarmos as considerações anteriores ao Cristianismo, veri-ficamos que, como todas as religiões, o Cristianismo não é primariamenteum sistema moral, mas um sistema religioso porque o seu âmbito de sen-tido é o Transcendente (fé) que se celebra (culto). Ele tem uma determi-nada concepção de Deus e da sua oferta de salvação através da pessoa emensagem de Jesus de Nazaré a que se acede por meio de uma experiên-cia e não por mera adesão intelectual.34 A adesão ao Cristianismo é aadesão à pessoa de Jesus Cristo. Essa adesão, não sendo uma moral,inclui uma moral como parte essencial da sua mensagem e suposto desalvação porque há no Cristianismo um privilégio da moral devido aolugar basilar que nele ocupa a praxis como é evidente na resposta deCris~' à pergunta sobre qual é o maior mandamento "Amarás ao Senhorteu Deus de todo o teu coração, de toda a tua alma e de todo o teu enten-dimento. Esse é o maior e o primeiro mandamento. O segundo é seme-lhante a esse: Amarás o teu próximo como a ti mesmo. Desses dois man-damentos depende toda a Lei e os Profetas" Mt 22,37-40) e na afirmaçãode São João na sua carta "quem não ama o seu irmão que vê, não podeamar a Deus a quem não vê" (110 4, 20-21) ou o chamado hino à caridadede São Paulo (tCor 13, 1-13). A chave da dimensão moral do cristia-nismo é o amor.

A separação da ética da religião, originando uma ética filosófica, foium fenómeno, como veremos mais adiante, vivido no Ocidente em queconfluíram dinâmicas sociais e desenvolvimento do pensamento, tendolevado a uma completa autonomia da ética relativamente à religião, che-gando mesmo Kant a afirmar que «a moral enquanto fundada no conceitodo homem como um ser livre que, justamente por isso, se vincula a simesmo pela razão a leis incondicionadas, não precisa nem da ideia deoutro ser acima do homem para conhecer o seu dever, nem de outromóbil diferente da própria lei para o observar»/5 verificando-se autono-mia total da "autonomia da ética".

Uma vez separadas, com sua autonomia e particularidades, convémperguntar se ética e religião se relacionem? A questão coloca-se a partirde três pontos de vista: social, pessoal, no caso dos crentes, e a nível.reflexivo com consequências práticas.

33 ETXEBERRIA, Xavier - Temas Básicos de Ética. Col.: Ética de lasProfisiones. Bilbao: Desclée De Brouwer, 2002, p. 67.

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«a moral é um sistema de normas, princípios e valores, de acordo com osquais se regulam as relações mútuas entre indivíduos, ou entre eles e acomunidade, de tal maneira que as ditas normas, que têm um carácter histó-rico e social, se acatam livre e conscientemente, por uma convicção íntima,e não deum modo mecânico,exteriore impessoal».37 .

moral está profundamente marcada pela dimensão histórica do viverhumano; para .utilizar uma expressão heideggeriana: a historicidade é umdos existenciais da norma moral.39Como diz Ladriere, a ética «faz valeruma exigência global, mas toma apenas o seu conteúdo na concretude dascircunstâncias particulares». 40

A consequência desta historicidade é o pluralismo moral hoje tãoevidente e que se começou à manifestar com toda a clareza com aReforma Protestante. Até ao eclodir deste movimento reformador, nasociedade europeia, para ficarmos com um exemplo que nos é familiar eem que esse pluralismo foi assumido em dimensões inimagináveis nou-tras culturas, havia uma homogeneidade cultural bastante acentuada e daía exisfência do que se podia designar por "código moral único". AEuropa cristã bebia a sua moral na tradição cristã; a Igreja, espalhada portodo o território, com a sua mensagem fundada na Revelação bíblica,caldeada com determinada leitura da Antiguidade Clássica, criara ocódigo moral universal vivido na cristandade.41 A partir do Renasci-mento, a situação mudou profundamente. A revolução científica, o con-tacto com outras culturas, as «Guerras de Religião», o aparecimento daImprensa, o colapso das cosmovisões tradicionais levaram a uma novaetapa na moral, em que se procuraram novas concepções para a orienta-ção dos diversos âmbitos da vida.

Com a Reforma Protestante e a revolução cultural sua contempo-rânea, a referida unidade cultural da Europa acabou e surgiu uma dificul-dade que teve de ser superada: a partir do momento em que a unidade daIgreja foi posta em causa, tornou-se indispensável encontrar uma moralque regesse o comportamento moral do cidadão no espaço público, inde-pendentemente da religião que professasse. A Reforma levou à necessi-

A nível social essa relação é importante porque no espaço públicodevem conviver crentes de diversas religiões, cuja moral remete para asua fé, e não crentes com autonomia relativa a qualquer crença, daí anecessidade de encontrar referências comuns partilhadas que não reme-tam para uma religião, porque poria em causa a liberdade de crença.

A nível pessoal aquela relação, no caso dos crentes, é fundamen-tal porque eles vivem uma dupla referência, ética e religiosa, e há queelaborar uma resolução harmoniosa das tensões. A este nível a questãoestá fundamentalmente nas referências últimas que levam ao agir porque,no que se refere ao conteúdo, cOQcretamenteno que diz respeito à moralcristã, há um consenso alargado de que neste aspecto as morais religiosase a morallaica não se distinguem. Normas morais como "não matar","ser solidários", etc. são válidas para crentes e não crentes. O que distin-gue uns e outros está essencialmente na motivação última do agir.36

A nível reflexivo, com consequências práticas, deve discutir-se se aética que aspira a ser referência comum da convivência deve estar à mar-gem de toda a referência religiosa.

6. As normas não são puras invenções de cada um; são realidadesque a pessoa encontra na sociedade onde vive. Diz Sanchéz Vázquez que

Cada ser humano é socializado numa comunidade que, fruto de umalonga história, encontrou um conjunto de regras, princípios e valores, emque a humanidade, Luís Archer chama-lhe humanitude,38 se exprime eque deve ser assumido para se viver humanamente. Isto significa que a

36Sobre esta problemática é muito esclarecedor o texto de Roque Cabral járeferido «Moral racional e moral evangélica». BRlTO, José Henrique Silveira de(Coord.) - Bioética.Questõesemdebate.Braga:PublicaçõesdaFaculdadede Filoso-fia UCP, 2001,85-92. .

31 SÁNCHEZ VÁZQUEZ, Adolfo - Ética. 4°Ed. (Ia é de 1969 do México).Barcelona: Editorial Crítica, 1984,p. 81. Sobre as relações entre ética e cultura, cf.VAZ, Henrique C. Lima - Escritos de Filosofia. 11Ética e cultura. Col.: Filosofia nO8, São Paulo, Edições Loyola, 1988.

38 ARCHER,Luís - «Profeciasdo Gene Ético: Confronto entre Tecnocosmos eHumanitude».Cadernos de Bioética. 12(2003),nO30, pp. 7-15.

39 Sobra a historicidade das normas morais, cf. RENAUD, Michel - «Ahistoricidade das normas morais». BRITO, José Henrique Silveira de (Coord.) -Temasfundamentais de ética. Actas do Colóquio de Homenagemao Prof. P. RoqueCabral, S.J. Braga: Publicações da Faculdade de Filosofia.UCP, 2001, pp. 17-29.Sobre esta historicidade, pluralismo, movimento da vida moral e sua compreensão,pode ler-se GÓMEZ-HERAS, José Maria García - Ética y hermenéutica. Ensayosobre la construcción moral dei "mundo de la vida" cotidiana. Madrid: EditorialBiblioteca Nueva, 2000. No que se refere ao pensamento de Habermas sobre estestemas, o 7° capítulo do livro é muito instrutivo, quer em termos de compreender opensamento do autor alemão quer em termos de compreender as questões em simesmas.

40 LADRlERE, Jean - «L'humanisme contemporain». ID. - La foi chrétienneet le Destin de la raison. Paris: Les Éditions du Cerf, 2004, p. 32.

41Tenha-se presente a obra de.Santo Agostinho e São Tomás de Aquino.

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dade de encontrar formas de expressão do humano independentes da reli-gião de cada um, embora compatíveis com a sua prática. Foi a Reformaque tomou necessário o aparecimento da moral civil. Em A Obra aoNegro de Marguerite Yourcenar42encontramos, a nível da literatura, adescrição das condições que tomaram indispensável o aparecimento damoral civil. Este caminho, como o romance mostra, não foi fácil; foinecessário, por exemplo, separar o altar e o trono que a laicização da vidapública permitiu, o que foi alcançado através de um processo longo edoloroso. A laicidade da sociedade foi muitas vezes utilizada para pro-mover um laicismo infrene, mais sectário como aquilo que procuravacombater. Na nossa história portuguesa, encontramos vários exemplosdestes fenómenos turbulentos, compreensíveis como acidentes de per-curso de uma caminhada que se dirigia para a saída de um código moralúnico, independente do que se poderia chamar "Código moral católico",muitas vezes defendido mais por razões políticas que religiosas. Sinto-maticamente, Pombal não acabou com a Inquisição; transformou-a naReal Mesa Censória.

Com a Reforma Protestante deu-se um sublinhar do lugar do indiví-duo em detrimento da instituição, sendo disso sinal evidente o ideal pro-testante consubstanciado na expressão Sola fides. sola Scriptura, solaGratia. Neste novo contexto, em que a unidade ideológica tinha sidoquebrada e o individualismo afirmado, havia que encontrar uma possibi-lidade de convivência no espaço público, cuja moral não podia ser nm-dada na religião que já não era factor de unidade.43 Havia que encontraruma moral de mínimos que permitisse a convivência de pessoas com cre-dos diferentes a partir dos quais cada um construiria a sua felicidade.

A moral civil44reconhece que, se é verdade que todos têm comoideal a felicidade, o modo de a entender é diferente de pessoa para pes-soa, pelo que um ideal de felicidade pode ser proposto, mas não imposto.Daí que a moral civil deixe a cada um espaço para realizar o seu ideal defelicidade, uma ambição privada, e exige que, no espaço público, sejamimpostas condições mínimas, exigidas a todos, a partir das quais cada um

viverá a procura da sua felicidade. O que a moral civil exige são osmínimosjustos a partir dos quais cada um se realiza. Estamos peranteuma distinçãofundamentalentremoral de mínimose moral de máximos.A moralcivil é pluralista.Emtermosde Adela Cortina,o

«Pluralismo moral significa [...] que os cidadãos dessa sociedade quesofreu o processo de modernização,partilham uns mínimos morais, aindaque não partilhema mesmaconcepçãocompletade vidaboa».45

As éticas teleológicas deram espaço às éticas deontológicas; oacento na vida boa deu lugar ao acento no dever. As éticas de mínimosnão prOpõem um ideal de vida a alcançar; apresentam uma moral vazia deconteúdo que será preenchida por cada um, desde que esse conteúdo nãoafecte os outros. Não se pense, contudo, que na sua vida a pessoa viveuma moral de mínimos; cada um procura a sua felicidade e esta implicauma moral de máximos.

O homem como ser moral, e não como ser natural, surge com aModemidade, época histórica em que a pessoa já não aparece comosubordinada a uma lei moral dita natural.46 Com o pluralismo, a moralnatural dá lugar a uma moral fundada na autonomia. Como ser autónomoe livre, a pessoa dá a si a sua lei, frente à natureza que lhe aparece comosubordinada. O «conquistai a terra» do Génesis adquire o seu pleno sen-tido na Modemidade na qual o homem não é encarado como ser natural esubmetido à lei natural, mas como ser moral, pertencente ao reino daliberdade. Na Modemidade, o homem deixa de andar à volta da naturezae é esta que passa a andar à volta do homem; é este, o homem, que pres-creve as leis à natureza.47Costuma dizer-se que com a Modemidade sepassa de uma moral heterónoma para uma moral autónoma, isto é quecom a Modemidade o homem passa de súbdito a soberano, senhor de si,que passou da menoridade à adultez.48Com a Modemidade passa-se dumjusnaturalismo da lei natural para um jusnaturalismo dos Direitos Huma-nos, dando-se a laicização do conceito de pessoa que tende a descristiani-

42Porto: Público Comunicação social, 2002.43 Sobre a mudança de paradigma moral da Idade Média para a Modernidade,

pode ler-se o excelente capitulo 4 da obra de GÓMEZ-HERAS, José Maria García -Ética y hermenéutica. Ensayo sobre la construcción moral dei "mundo de la vida"cotidiana.

44Sobre a moral de mínimos e a ética da discussão do espaço público, cf.RENAUD, Michel - «Ética de hoje, ética de amanhã». ARCHER, Luis; BISCAIA,Jorge; OSSWALD, Walter; RENAUD,Michel - Novos desafios à Bioética. Porto:Porto Editora, 200I, pp.13-19.

4SCORTINA, A. - Éticamínima, p. 50.46Sobre a noção de LeiNatural,cf. CABRAL, R. - Temasde ética, pp. 63-66.47KANT, I. -Prolegómenos a toda a metafisicafutura que queira apresentar-

-se como ciência. Lisboa: Edições70, 1982, p. 98.48 Sobre este tema pode ler-se com muito proveito KANT, I - «Resposta à per-

gunta: o que é o IIuminismo». 10 - A paz perpétua e outros opúsculos. Lisboa: Edi-ções 70,1988, pp. 173-179.

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zar este conceito e a fazer a transição de uma concepção segundo a qual avida da pessoa é sagrada para a afirmação da autonomia da pessoa.49

Estas últimas considerações mereciam uma reflexão aprofundadapara não darem aso a mal entendidos, mas não há oportunidade agorapara a fazer. 50

Apesar do surgimento da pluralidade moral, a verdade é que umadas principais inspirações das normas da moral pluralista continuou a sera religião, muitas normas morais se assemelham às apresentadas pelasreligiões. O que muda radicalmente é o modo de fundamentar as normasmorais. Pode dizer-se que a Modemidade traz como problema funda-mental da ética a sua justificação. Até à Modemidade a moral era umamoral religiosa, neste sentido: a~normas eram de inspiração religiosa e ajustificação última para lhes obedecer estava na sua origem religiosa.Com o fim da unidade religiosa e o movimento da Ilustraçã051 surgiu anecessidade de encontrar uma fundamentação da moral de outra naturezaque não a religiosa, uma vez que esta tinha deixado de ser aceite univer-salmente. Surge assim uma diversidade grande de fundamentações damoral, todas elas centradas no homem, uma vez que o lançar mão de umarealidade transcendente para fundamentar a moral se tomou impossívelno espaço público. Como primeira indicação de exemplos dessa diversi-dade, e, por outro lado unidade, encontramos Hume e Kant. O primeirofaz a justificação da norma moral no sentimento que ela desperta nohomem, na pessoa; Kant considera que a norma moral é a que o sujeitomoral dá a si mesmo. Um fica pelo sentimento e o outro pela razão prá-tica, mas em ambos é no homem que se centra a fundamentação da moral.Com a Modemidade passa-se a um antropocentrismo, a uma moral antro-pológica cuja diferença radica nas diferentes concepções de pessoa queestão em presença, mas mesmo assim procura-se uma unidade, uma con-cepção de pessoa que seja admitida por todos. Essa formulação que

mereceu, pelo menos numa primeira aproximação, aceitação unânime foiprimeiramente apresentada por Kant: o homem é um fim e não um meio etoda a norma que brote dessa concepção de pessoa como fim e não comomeio é uma norma moral.

É neste contexto que se compreende o aparecimento das várias Filo-sofias Morais, das várias Ética Fundamentais.52

49 Cf. JONSEN,AlbertR. - TheBirth of Bioethics,p. 337.Este autor afinnaque o princípio cristão da santidade da vida pela sua secularização,obra iniciada porPaul Ramsey passando por Eduard Shils, tennina em Daniel Callahan como princípiomoral da autonomia (p. 338).

50Sobre este tema da autonomia e heteronomia cf. CABRAL, Roque - «Liber-dade e ética: autonomia e heteronomia?» e «Lei ou legisladornaturab>. (ID. - Temasde Ética. Braga: Publicações da Faculdade de Filosofia UCP, 2000, pp. 201-208 e255-260, respectivamente); NEVES, Maria do Céu Patrão - «A problemática con-temporânea da autonomia moral». BRlTO, José Henrique Silveira de (Coord.) -Temasfundamentais de ética. Actas do Colóquio de Homenagem ao Prof. P. RoqueCabral, S.J. Braga: Publicações da Faculdade de Filosofia UCP, 2001, pp. 143-178.

51 Cf. CORTINA, A. -Ética mínima, pp. 141-268.

52Para uma análise da Ética na cultura contemporânea em que se encontra umapanorâmica geral desde o século XVII cf. VAZ, Henrique C. Lima - «Ética e razãomoderna».Síntese Nova Fase. 22(1995), pp. 53-85.