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1 ESTUDOS DECOLONIAIS: UMA ANÁLISE DO MOVIMENTO DO FEMINISMO AGROECOLÓGICO NAS COMUNIDADES QUILOMBOLAS DO VALE DO RIBEIRA (SP) Paula Simone Busko 1 RESUMO Esta comunicação é parte de uma pesquisa de doutoramento em educação científica e tecnológica e tem como seu principal objetivo estabelecer um diálogo entre a educação popular, agroecologia e o trabalho das mulheres do campo, caracterizados em um movimento chamado “feminismo agroecológico”. Ao se tratar de uma comunicação que dialoga com o fazer da mulher nos meios rurais, a pesquisa realizada no Vale do Ribeira (SP) comprova que os estudos da agroecologia não deixam de respeitar e contribuir para preservar e melhorar as condições naturais do solo, das reservas hídricas e dos recursos naturais por meio da educação popular. A metodologia decolonial proposta para este trabalho de pesquisa e detalhada mais adiante, sugere um mover-se junto ao grupo de interação. Isto significa participar do cotidiano daquelas mulheres em seus modos de viver o trabalho e nas relações familiares e com a comunidade. Os resultados iniciais desta pesquisa, a partir da imersão e observação, em meio aos quilombos e aldeias indígenas, trouxeram para as primeiras análises um conhecimento sobre os aspectos agroecológicos a partir da educação popular. Palavras-chave: Educação Popular; Agroecologia; Mulher; Relações étnico-raciais. ABSTRACT This communication is part of a doctoral research in scientific and technological education and its main objective is to establish a dialogue between popular education, agroecology and the work of rural women, characterized in a movement called "agroecological feminism". In the case of a communication that interacts with women in rural areas, the research carried out 1 Doutoranda em Educação Científica e Tecnológica (PPGECT-UFSC); Mestre em Educação e Formação - História, Política e Gestão das Instituições Escolares (UNISANTOS-SP); Graduação em Comunicação Social: ênfase Jornalismo (UniFMU-SP). E-mail: [email protected] / Orcid: http://orcid.org/0000-0002-6300- 8603

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ESTUDOS DECOLONIAIS: UMA ANÁLISE DO MOVIMENTO DO FEMINISMO

AGROECOLÓGICO NAS COMUNIDADES QUILOMBOLAS DO VALE DO

RIBEIRA (SP)

Paula Simone Busko1

RESUMO

Esta comunicação é parte de uma pesquisa de doutoramento em educação científica e

tecnológica e tem como seu principal objetivo estabelecer um diálogo entre a educação

popular, agroecologia e o trabalho das mulheres do campo, caracterizados em um movimento

chamado “feminismo agroecológico”. Ao se tratar de uma comunicação que dialoga com o

fazer da mulher nos meios rurais, a pesquisa realizada no Vale do Ribeira (SP) comprova que

os estudos da agroecologia não deixam de respeitar e contribuir para preservar e melhorar as

condições naturais do solo, das reservas hídricas e dos recursos naturais por meio da educação

popular. A metodologia decolonial proposta para este trabalho de pesquisa e detalhada mais

adiante, sugere um mover-se junto ao grupo de interação. Isto significa participar do cotidiano

daquelas mulheres em seus modos de viver o trabalho e nas relações familiares e com a

comunidade. Os resultados iniciais desta pesquisa, a partir da imersão e observação, em meio

aos quilombos e aldeias indígenas, trouxeram para as primeiras análises um conhecimento

sobre os aspectos agroecológicos a partir da educação popular.

Palavras-chave: Educação Popular; Agroecologia; Mulher; Relações étnico-raciais.

ABSTRACT

This communication is part of a doctoral research in scientific and technological education

and its main objective is to establish a dialogue between popular education, agroecology and

the work of rural women, characterized in a movement called "agroecological feminism". In

the case of a communication that interacts with women in rural areas, the research carried out

1 Doutoranda em Educação Científica e Tecnológica (PPGECT-UFSC); Mestre em Educação e Formação -

História, Política e Gestão das Instituições Escolares (UNISANTOS-SP); Graduação em Comunicação Social:

ênfase Jornalismo (UniFMU-SP). E-mail: [email protected] / Orcid: http://orcid.org/0000-0002-6300-

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in the Ribeira Valley (SP) confirms that the studies of agroecology do not fail to respect and

contribute to preserving and improving the natural conditions of the soil, water reserves and

natural resources through popular education. The decolonial methodology proposed for this

research work and detailed later, suggests a move along with the interaction group. This

means participating in the daily lives of those women in their ways of living their work and in

family and community relations. The initial results of this research, from the immersion and

observation, among the indigenous quilombos and villages, brought to the first analyzes a

knowledge about the agroecological aspects from popular education.

Palavras-chave: Popular Education; Agroecology; Woman; Ethnic-racial relations.

1. INTRODUÇÃO

Esta comunicação é parte de uma pesquisa de doutoramento em educação científica e

tecnológica e tem como seu principal objetivo estabelecer um diálogo entre a educação

popular, agroecologia e o trabalho das mulheres do campo, caracterizados em um movimento

chamado “feminismo agroecológico”. Evidencia-se também o trabalho das chamadas redes

de interação e cooperação no Vale do Ribeira, espaço onde este movimento tem sua origem,

além de apresentar como se manifesta um processo decolonial (WALSH, 2009; 2012) por

meio de uma ética comunitária (DUSSEL, 1995) e de preservação de culturas ancestrais.

Ao se tratar de uma comunicação que dialoga com o fazer da mulher nos meios rurais,

a pesquisa realizada no Vale do Ribeira (SP) comprova que os estudos da agroecologia não

deixam de respeitar e contribuir para preservar e melhorar as condições naturais do solo, das

reservas hídricas e dos recursos naturais por meio da educação popular. O aprendizado que as

mulheres obtêm e que repassam adiante por meio das lideranças comunitárias procura seguir

os passos da própria natureza que as orienta neste meio de “modo outro” de trabalho com a

terra, numa junção mulher-natureza, trazendo a estabilidade dos ecossistemas naturais

(MACHADO e MACHADO FILHO, 2014).

O feminismo agroecológico, que sinaliza para um protagonismo da mulher

trabalhadora rural, parte em busca de uma alteridade de fazer, dizer e ser (WALSH, 2012) que

eleva esta mulher a uma conscientização do estar no mundo. Desse modo, tem-se um dos

aspectos da formação do feminismo agroecológico que é o de compartilhar experiências em

seus modos de produção e comercialização em suas produções familiares (SILIPRANDI,

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2009). Somando-se a esse elemento, elas também representam a luta concreta nos territórios:

as feiras locais, as relações solidárias, os circuitos próximos de comercialização e os

encontros de educação popular em agroecologia são importantes para entender a relação

mulher-educação-agroecologia. Desse modo, acabam por não aceitar certos projetos de

economia verde que as mulheres consideram uma ilusão para as comunidades.

Diante destes elementos, pode-se dizer que a dinâmica deste movimento caminha em

busca de uma emancipação social e política daquelas mulheres, primeiro porque dialoga com

“a consciência transformada”, “crítica” e “reflexiva” (HABERMAS, 1987) do grupo

envolvido. Segundo, porque valoriza outros espaços de pesquisas e outras formas de

linguagens, interculturais e multilinguísticas, que promovem “metodologías’ otras’ en la

investigación social, humana y educativa” (OCAÑA et. al, 2018, p. 172).

Quanto à educação popular, Libâneo (2004) a define como “educação não-formal” e

em que nela “encontra-se os processos educativos que acontecem fora das unidades

escolares, abrangendo também movimentos sociais, organizações não-governamentais e

outras entidades que atuam na área social”. Segundo o autor, deve ficar claro que a educação

não-formal também pode ser dotada de uma certa intencionalidade, seja cultural ou política, e

a educação popular mais ainda, porque identifica o grupo àquela formação. Portanto, muitas

das práticas educativas encontradas no Vale acontece por um viés freireano, em que revela os

efeitos da aprendizagem através de temas geradores propostos por Paulo Freire (1967; 2005) e

que promoveu uma crítica ao sistema vigente da época e as formas tradicionais na educação

de adultos. Conforme Freire (2005): “a palavra tem o papel de pronunciar o mundo, de

problematizá-lo, de modificá-lo”.

A metodologia decolonial proposta para este trabalho de pesquisa e detalhada mais

adiante, sugere um mover-se junto ao grupo de interação. Isto significa participar do cotidiano

daquelas mulheres em seus modos de viver o trabalho e nas relações familiares e com a

comunidade. Isso significa não apontar, mas reconhecer-se nos sujeitos, portanto, não apenas

observar para julgar. Constata-se de uma metodologia de imersão, em que o processo é

dialógico e não monológico. Nesse sentido, é saber que mesmo sendo um processo

decolonizante, é político: “Todo processo decolonizante é político e ideológico” (OCAÑA,

2018, p. 182).

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Por meio da observação e da imersão junto aos grupos de interação no Vale, à

agricultura familiar e aos coletivos de resistências, pôde-se analisar os dados coletados

também a partir da luta pelo direito a terra e ao trabalho. Somaram-se a estas análises os

materiais didáticos como livros, cartilhas e impressos utilizados em encontros de formação de

mulheres, além de documentos, relatórios, fotografias e vídeos do acervo pertencentes à

Equipe de Articulação e Assessoria às Comunidades Negras do Vale do Ribeira (EAACONE)

e do Movimento dos Ameaçados por Barragens (MOAB), localizados em Eldorado (SP), que

viabilizaram tais práticas educativas.

Os resultados iniciais desta pesquisa, a partir da imersão e observação, em meio aos

quilombos e aldeias indígenas, trouxeram para as primeiras análises um conhecimento sobre

os aspectos agroecológicos a partir da educação popular.

2. AS MULHERES DO VALE DO RIBEIRA – O MOVIMENTO DO

FEMINISMO AGROECOLÓGICO

Conforme Gonçalves (2006), historicamente, desde o surgimento das

comunidades do Vale do Ribeira no século XVI, que seus povos originários: imigrantes

portugueses, espanhóis e negros, no primeiro ciclo de imigração, da exploração mineral, ao

sul do estado de São Paulo, mais próximos da divisa com o estado do Paraná, e de japoneses,

após a década de 1940, na região de Iguape, além de quilombolas, ribeirinhos e caiçaras que

vivem de acordo com a agricultura de subsistência e da venda de suas colheitas para as

cooperativas que vendem seus produtos. Estes moradores ainda pescam no Rio Ribeira de

Iguape, o principal rio formador da Bacia Hidrográfica do Ribeira e Litoral Sul, e o

consideram como uma riqueza que através da qual podem manter suas plantações, sua pesca

artesanal e sua diversidade cultural.

A vida da trabalhadora rural é extremamente dura. Enfrentando dupla jornada de

trabalho para suprir um orçamento doméstico e sem minimizar as dificuldades que enfrentam

nas condições de trabalho, é preciso reconhecer que a produção da vida vai apagando,

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rapidamente, a vida no corpo de todos os trabalhadores, em especial das trabalhadoras bóias-

frias. Aos quarenta anos, muitas aparentam sessenta. O sol, a chuva, o peso do facão, a

enxada, a postura corporal, tudo contribui para um desgaste acelerado e um envelhecimento

precoce. (SILVA, 1999, p.8)

No ano de 1998, a Sempreviva Organização Feminista2 lançou um caderno intitulado

Gênero e Agricultura Familiar no qual destacava a importância de uma reflexão em torno dos

conceitos descritivos de gênero, feminismo, soberania alimentar e agroecologia. A partir daí,

com a experiência da SOF, configuraram-se diversos projetos com base agroecológica em

treze municípios indígenas e quilombolas. A organização conseguiu formar cerca de quinze

grupos de mulheres no Vale do Ribeira. Essa experiência contou a participação de diversas

entidades, ao formarem uma rede de apoio, estudos e práticas educativas de iniciativa

popular. O desafio estava em vencer a opressão das mulheres do meio capital que as

explorava, de vencer as dificuldades de produção e consumo de seus produtos oriundos da

agricultura familiar e trazer-lhes o conhecimento de seus direitos enquanto produtoras rurais.

De acordo com a SOF o Vale do Ribeira, situado no extremo sul do estado de São

Paulo e nordeste do Paraná

é a maior área de remanescente contínuo de Mata Atlântica do Brasil. A

presença de inúmeras comunidades tradicionais tornou possível a

conservação destas áreas. Na região estão presentes 24 aldeias indígenas da

etnia guarani, 66 comunidades quilombolas e 7.037 estabelecimentos da

agricultura familiar que envolve camponeses tradicionais (os caipiras),

pescadores tradicionais (caiçaras) e migrantes oriundos das metrópoles

brasileiras, em geral, filhos de pais agricultores expulsos da terra no passado

e empurrados para áreas urbanas e que agora retornam à atividade rural.

(SOF, 2018, p. 8)

Neste cenário, há uma relação estreita entre a agroecologia e a agricultura realizada

pelas mulheres. Tradicionalmente, são as mulheres que selecionam, guardam e trocam as

2 A SOF Sempreviva Organização Feminista é uma organização não governamental com sede em São Paulo que

faz parte do movimento de mulheres no Brasil e em âmbito internacional. Promovem oficinas, seminários,

debates, palestras, boletins, cartilhas entre outros materiais voltados para questões de gênero, agroecologia,

economia solidária e feminismo.

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sementes. Os quintais e locais de plantio combinam horta, pomar, criação de pequenos

animais, plantas comestíveis, medicinais e decorativas. Como um tema novo, recentes

debates, propostos por lideranças femininas da região, consideram a agroecologia a partir da

“proteção ambiental”, de acordo com Machado e Machado Filho (2014, p. 194). Ao passo que

o sistema de produção de monoculturas provoca a contaminação da natureza, o manejo

correto do solo, por meio de técnicas agroecológicas, permite o aumento de matéria orgânica

(MACHADO e MACHADO FILHO, 2014) que contribui para as produções agrícolas locais.

O feminismo agroecológico evidencia a presença da mulher nos espaços agrícolas. Por

meio de diversos movimentos sociais no campo, percebe-se que as mulheres constituem uma

memória e uma ética comunitária capaz de alterar o cotidiano de tudo o que envolve seus

modos de viver. Logo, a “história da gente comum” (ROLIM, 1998) ganha uma força capaz

de resistir à influência de um sistema que reflete e refrata a miséria e o abandono de

comunidades mais distantes dos grandes centros urbanos. Portanto, se ganha força no

coletivo. E nesse coletivo, a dialética é um caminho fundamental dessa busca.

A interconexão entre educação popular, agroecologia e feminismo, que nesta pesquisa

traz uma perspectiva crítica, evidencia a importância do papel da mulher trabalhadora rural

nos estudos agroecológicos, apontando o feminismo que é atuante (sai de seus modelos

conceituais) como um novo movimento, nunca antes pesquisado na região do Vale do Ribeira

(SP), que interliga a agricultura familiar feita por e para as mulheres, destacando as lutas por

seus direitos enquanto trabalhadoras da terra e pela preservação de suas culturas.

Pressupõe-se que as mulheres, ao buscarem um aprendizado coletivo que as

fortaleçam e de vivenciar lutas e resistências, poderão usar melhor seu tempo e tomar decisões

que envolvem seu corpo, sua vida familiar e seu trabalho. Assim, participar mais ativamente

de questões sociais e políticas que as envolvem. Nesse sentido, “é a partir de ações coletivas

que nós, mulheres, teremos vigor para revolucionar a sociedade e construir novas relações

sociais, superando todos os mecanismos de manutenção da opressão” (SOF, 2018, p.16).

O feminismo agroecológico é um movimento formado por mulheres que compartilham

experiências em seus modos de produção e comercialização agroecológicas. Somando-se a

esses elementos, elas também representam a luta concreta nos territórios: as feiras locais, as

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relações solidárias, os circuitos próximos de comercialização e os encontros de educação

popular agroecologia são importantes para entender a relação mulher-agricultura e não aceitar

os projetos de economia verde que as mulheres consideram uma ilusão para as comunidades.

Para elas, as empresas que vem de longe para estudarem seus territórios, apenas querem usá-

lo, mais tarde expulsando as populações locais para trazer apenas o desenvolvimento para o

grande capital.

Diante desses apontamentos, o feminismo agroecológico é uma maneira de vivenciarem

e sentirem, no dia a dia, a resistência frente aos projetos ilusórios da economia verde proposto

por empresas mineradoras, madeireiras e do agronegócio. Tais empresas se utilizam de

discursos que promovem o desenvolvimento econômico aliado à preservação da natureza,

porém, vários problemas que colocam por terra certas falas nessa perspectiva já acorreram

como a contaminação de alguns rios e destruição da mata nativa. Portanto, a resistência que

parte das mulheres e da forma como se organizam demonstram que continuar existindo,

morando, transitando e ocupando o território é hoje uma maneira de resistir ao avanço da

financeirização da natureza.

3. A EDUCAÇÃO POPULAR NO VALE DO RIBEIRA E AS REDES DE

INTERAÇÃO

De acordo com a perspectiva de Fávero (2006), e educação popular só assim pode ser

chamada se realmente contribuir para a libertação de um determinado grupo social oprimido.

Trabalhar somente com educação para as camadas populares sem um caráter social, proposto

talvez por um movimento que atua como um pano de fundo, não tem caráter de educação

popular. Já Calvo (1982) evidencia que os processos de educação popular são diferentes em

cada cultura, de acordo com as necessidades de cada geração. Por isso, cada etnia ou grupo

social conhece suas necessidades durante um tempo histórico. Daí as necessidades se tornam

materiais pelos processos educativos instaurados, pelas novas metodologias, estratégias e

práticas educativas que visam à mudança de condutas, assim como os comportamentos

individuais e coletivos.

A educação popular realizada nestes espaços rurais reconhece os sujeitos que

compõem uma história de resistência, luta e sobrevivência. Nos chamados Encontros de

Formação e Encontro de Mulheres, a interculturalidade nas relações étnico-raciais também

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ficou evidente, o que contribuiu para salientar os aspectos culturais e sociais do Vale, além de

possibilitar o aprendizado de novos modelos de educação popular propostos para mulheres

trabalhadoras rurais. Com direito a conhecer e se reconhecer na história, os movimentos de

educação popular que ali se encontram procuram narrar por si próprios os acontecimentos e

suas consequências a partir dos que lutaram contra a opressão, o preconceito e o desprezo que

vem de um processo cultural bem antigo e que remete aos séculos de imigração e exploração

das riquezas daqueles espaços, portanto, advém de uma totalidade europeia colonial.

Quanto às redes de interação que compõem várias instituições e organizações não

governamentais temos, desde os anos 1980, a experiências das religiosas pertencentes à

Congregação Jesus Bom Pastor, que na região são conhecidas como As Pastorinhas. Esta

congregação tem ajudado na emancipação social e política daquelas populações empobrecidas

mais distantes dos meios urbanos. A proposta das religiosas em parceria com as Comunidades

Eclesiais de Base (CEBs), a Pastoral da Terra, o Movimento dos Trabalhadores sem Terra

(MST), o Instituto Socioambiental (ISA) e ao Movimento dos Ameaçados por Barragens

(MOAB), configurou práticas de ensino voltadas para a educação popular que apontam um

trabalho com vistas à decolonialidade, a serem explicitados mais adiante.

No acervo do EEACONE e do MOAB todo o material de estudo está relacionado à

preservação ambiental, luta de camponeses e valorização da mulher nos espaços rurais. Ali

também se encontram muitas cartilhas e panfletos enviados por sindicatos rurais da região que

estão relacionados à agroecologia e à educação em ciências. Consta materiais da Frente

Nacional dos Trabalhadores Rurais que tratam de movimentos populares, de educação

popular, da teologia da libertação e de igualdade nas relações etno-raciais.

Articulando o material às práticas educativas foram possíveis pequenas análises de

como se dão as experiências das mulheres agricultoras familiares nesta região. Nas reuniões e

encontros, nos materiais didáticos de apoio, manifestações e entrevistas com as mulheres

sobre seus modos de fazer - trabalho, família e coletivos, tornou-se possível evidenciar a

presença da mulher nestes espaços agrícolas. Ademais, viabiliza-se o potencial para o

aumento de uma rede de pesquisa nesta temática, sobretudo no ensino de ciências, num

campo que se abre para novas perspectivas sobre o estudo da agroecologia e da participação

feminina nestes espaços de interação, ao buscar novas técnicas e parcerias, com a possível

divulgação dos resultados de trabalho para expansão dos conhecimentos adquiridos.

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A atuação das instituições e ONGs citadas vão ao encontro da fala de Martinho (2004)

que traz alguns parâmetros que norteiam o trabalho das redes em que aponta os propósitos do

coletivo. São eles:

● Intencionalidade: Rede é uma comunidade e, como tal, deve possuir objetivos

claros e definidos. Ela mesma sugere um caminho a seguir com suas normas e

formas de controle.

● Objetivos e valores compartilhados: Ações, projetos e discursos devem estar em

sintonia com o conjunto.

● Participação: O funcionamento de uma rede se dá pela participação de todos

seus integrantes, afinal, uma rede só existe se está em constante movimento.

● Colaboração: A participação de todos de ocorrer de forma colaborativa. Por

meio de uma premissa de trabalho a rede se mantém viva e colaborativa.

● Horizontalidade e Multiliderança: Um projeto poderá ter diversos agentes que

são líderes em suas bases de apoio. As decisões também são compartilhadas.

● Conectividade: Como uma teia, uma costura, uma rede de interação é a

interconexão entre seus participantes. Um tipo de comunicação comum com

mídias a que todos têm acesso facilita a interatividade entre todos.

● Realimentação e Informação: A informação circula livremente, emitida de

pontos diversos, podendo ser encaminhada de maneira não linear a uma

infinidade de outros pontos, que também são emissores de informação

● Descentralização e Capilarização: Uma rede não tem centro definido. O centro

se dá por projetos, portanto, é variável.

● Dinamismo: Uma rede é uma estrutura plástica, dinâmica, cujo movimento

ultrapassa fronteiras físicas ou geográficas. As redes são multifacetadas.

Tais características de rede citadas acima poderão se sobressair de acordo com cada

ação. Atuando sob os princípios de uma pedagogia decolonial, conforme Walsh (2012), tais

redes ao atuarem dentro da própria cultura dos grupos envolvidos, “com ela e por meio dela”,

trazem novas possibilidades de compreender a importância do trabalho em conjunto e de

vincular os saberes coletivos, das memórias daquelas populações e da ciência agroecológica a

um projeto maior transformador daquelas gentes, em especial com o grupo feminino.

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De acordo com Freire:

[...] ensinar não é transferir conhecimento, mas criar as possibilidades para a

sua produção ou a sua construção [...]. Ensinar inexiste sem aprender e vice-

versa e foi aprendendo socialmente que, historicamente, mulheres e homens

descobriram que era possível ensinar. (FREIRE, 1996, p. 9)

De fato, redes sociais são redes de práticas sociais. Elas também possuem uma

linguagem e uma forma de comunicar, além de um comportamento e objetivos bem definidos

de trabalho. Por meio de uma educação popular em agroecologia, as redes que aqui chamo de

decoloniais se constituem em um fazer diferente diante das adversidades. momentos de

“práticas sociais” em que o sujeito é constituído de várias identidades contraditórias,

momentos sociais, em que ele se rearranja politicamente. Portanto, o sujeito é

necessariamente fragmentado, pós-moderno. Sobre isso, Hall argumenta: “uma vez que a

identidade muda de acordo com a forma como o sujeito é interpelado ou representado, a

identificação não é automática, mas pode ser ganhada ou perdida. Ela tornou-se politizada”

(HALL, 1998, p. 21).

Para Hall (1998, p. 7) e Fairclough (2006, p. 33) o sujeito pós-moderno está

constantemente em busca de uma auto-identidade. Essa busca está baseada na reflexão e na

busca pelo conhecimento. Ou seja, a classe social não pode mais determinar uma identidade

uma e fixa, conforme propunha Althusser. O sujeito para Hall e Fairclough é,

simultaneamente, constituído e constitutivo do social, das estruturas, da ideologia e da ordem

hegemônica. Não se trata de um sujeito autônomo e “senhor de seu dizer”, mas que pode

operar mudanças nos discursos por ser de natureza também política.

Sem dúvida, como objetivo principal da educação não formal está a cidadania e o

meio de aprendizagem é a própria prática social. Com a troca de experiências e com a

absorção de conteúdos sistematizados, o conhecimento é adquirido por meio de ações

interativas principalmente no plano da comunicação verbal e oral carregada de representações

e tradições culturais. Portanto,

o processo ocorre a partir de relações sociais, mediadas por agentes

assessores, e é profundamente marcado por elementos de intersubjetividade

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à medida que os mediadores desempenham o papel de comunicadores.

(GOHN, 2011, p. 111)

Dentro desta perspectiva, pode-se dizer que a educação popular compreende um

projeto político-pedagógico, assim como um projeto político-ideológico, que possui uma

intencionalidade e determina uma prática social. Ao contribuírem com o desenvolvimento

social e promoção humana de populações em meios rurais, muitas vezes pautados pela

resistência a um sistema capitalista que os consome, elas têm um papel fundamental de

romper com certos modelos dominantes de produção e consumo no campo.

3.1. Encontros de Formação e Encontro de Mulheres

O Encontro de Mulheres realizado no Vale por iniciativa de religiosas com a ajuda de

outros movimentos sociais realiza debates sobre os problemas que as mulheres ainda

enfrentam: preconceito, falta de oportunidades em educação, opressão dos homens, falta de

conhecimento que gera doenças, trato com crianças e religiosidades. Dussel citado por Grolli

(2004, p. 93) argumenta que “é na vida diária do pobre, da mulher, do velho e da criança, que

a justiça está ausente: a justiça que se constitui na exigência fundamental da dignidade

humana”.

Deve-se levar em conta que a libertação da mulher, conforme Dussel (1995),

considerada como emancipação em muitas passagens deste trabalho surge primeiramente em

sentido filosófico, ou seja, emancipação humana, de formação do ser social, cidadão, de valor

moral. Depois, em sentido coletivo, de formação social, de convivência familiar, na

participação ativa da mulher enquanto cidadã, visando, sem dúvida, uma participação política

em seu meio.

Paiva (1984) enfatiza que em uma tarefa pedagógica, o educador deve ir “junto com o

grupo”, acompanhando e intervindo o menos possível, como “um companheiro na

caminhada”: “A idéia de que o conhecimento não pode ser transmitido, mas resulta de uma

“vivência” da qual é extraído através do trabalho de grupo perpassa todo este movimento”

(PAIVA, 1984, p. 229). A partir dos encontros realizados os educadores das instituições

envolvidas e citadas anteriormente, procuraram criar um ambiente propício para estabelecer

estas relações dialógicas. Ao estabelecerem essas relações, os educadores instigaram a

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vontade do saber mais, mas que antes de tudo era preciso um engajamento político e social, e

isto só poderia ocorrer através de uma educação popular.

Os Encontros de Formação pauta-se em questões políticas. Ao romper com o papel

feminino tradicional, as mulheres que formam o movimento do feminismo agroecológico, que

antes se limitavam à esfera familiar, começam a conhecer e a “se construir” nos espaços

públicos – que sejam os bairros distantes do meio urbano mais próximo - e também em suas

relações com a família, no âmbito da qual elas assumem as responsabilidades da manutenção

de seus lares, ainda que dando continuidade às relações tradicionais de submissão para com os

maridos.

A mulher, ao participar dos Encontros e ao se tornar consciente de sua condição passa

pelo chamado “espanto”, conforme Dussel (1995) e começa seu processo de libertação.

Indícios de práxis libertadora, conforme Dussel (1995) que propõe a valorização e a

emancipação do ser antes oprimido pelo meio. Algumas delas, ao serem colocadas como

líderes rurais de suas comunidades começaram a perceber que há outros valores do quais

poderiam trazer ara suas vidas, como respeito pelo seu trabalho na lavoura e dignidade diante

da opressão do meio. Nesse caminho já sem volta poderiam suscitar desejos e conquistá-los,

pela ação, pela práxis.

O Instituto Socioambiental (ISA) cedeu cartilha para os Encontros de Formação

intitulada Olhares Cruzados: o Vale do Ribeira segundo seus habitantes (1999), uma cartilha

com informações sobre a vida das pessoas nesta região, dos pescadores e dos lavradores,

argumentando sobre os perigos das construções das barragens e da necessidade de se resgatar

a história dessas populações, além de seus aspectos culturais e históricos. A cartilha acima

citada dá sugestões de atividades para aprofundar os debates dos temas abordados segundo

seus próprios habitantes. Segue abaixo algumas destas atividades realizadas nos Encontros da

Mulher e nos Encontros de Formação com participação de alunos do ensino superior:

1) Resgatando nossa história: são exibidas algumas imagens do Vale, de moradores

antigos, de locais que ainda não foram habitados, de cachoeiras e cavernas, da exploração dos

minérios e do Rio Ribeira. Após a exibição, cada participante aponta a imagem que mais lhe

chamou atenção e o porquê; alguém vai anotando na lousa as ideias expostas em tópicos

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(formato chuva de ideias). Os apontamentos são separados os temas e debatidos um a um.

Ainda pode ser usada uma linha do tempo imaginária, onde se reconstrói os momentos

históricos da história do Vale. Cada participante ainda poderá contar um pouco a história de

sua família e suas dificuldades e como fazem para combater estes enfrentamentos.

2) A população do Vale: A atividade é realizada em dois momentos. Realiza-se uma

colheita de ideias sobre o que significam populações tradicionais para as alunas e divide-se a

lousa em duas partes (antes e depois) na qual são anotadas as opiniões na primeira parte.

Após os comentários, faz a passagem de um vídeo sobre as populações do Vale.

Depois de assistido, volta-se a colher opiniões através das perguntas: “E agora, quais destes

grupos podem ser considerados tradicionais? Por quê?” Utilizando a segunda parte da lousa,

anota as ideias principais que forem surgindo nas discussões. Depois confronta as ideias

expostas na primeira etapa, anotadas na parte do “antes” na lousa. Fazem-se as seguintes

perguntas: “Quem são os caiçaras? Quem são os pescadores, os quilombos, os guaranis?

Vocês têm alguma relação com populações tradicionais? Por que será que as populações

tradicionais tem forte relação com o ambiente?” Na segunda parte da atividade surge a

questão: Para vocês, quais são os problemas que estas populações tradicionais enfrentam? A

educadora poderá levantar os principais conflitos e associá-los a atores locais (pescadores,

índios, quilombolas). Depois desta discussão, a sala é dividida em alguns grupos: caiçaras,

quilombolas e índios guaranis (origem das populações da região) e propõem uma lista de tudo

o que envolve estas populações e seus costumes: comida típica, música, dança, artesanato,

linguagem ou apresentação oral. Há também nesses encontros vídeos a respeito do meio

ambiente e sobre o que seriam as “unidades de conservação”, falando um pouco sobre as

barragens que ameaçam a vida dos moradores. A educadora cria uma discussão a respeito do

tema: Que são as unidades de conservação? Alguém já visitou uma? Existem pessoas

morando dentro de alguma destas unidades? Como é a vida destas pessoas? Um exemplo é

apresentar um mapa com os limites do município e do estado e escolher uma das cidades do

Vale para aprofundar a discussão. Com a localização da construção das barragens do Rio

Ribeira de Iguape e sobre as terras dos quilombos, tem a possibilidade de apresentar uma aula

detalhando o que são barragens e as consequências da construção destas para o meio

ambiente.

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Diferentemente do passado, quando então o interesse maior da mulher poderia ser o

casamento, o bordar, o cozinhar, o cuidar da casa e do marido, muito respeitado e bem

ensinado pela Assistência ao Litoral de Anchieta3, onde religiosas que chegaram ao Vale do

Ribeira nos anos 1930, as mulheres desta região agora precisavam de emprego e de dinheiro

para ajudar a construir seus lares: “O mundo mudou”, conforme disse Ir. Liz em entrevista,

“ainda bem”, disse, “já pensou se tudo permanecesse igual”? (ROLIM, 1998). Agora as

mulheres dessa região precisavam se sentir mais úteis, as profissionais da agricultura não

precisavam sentir vergonha de serem chamadas “mulheres do campo” (FIG.1).

Figura 1 – Cartilha Trabalhadora Rural

Fonte: Articulação Nacional de Mulheres Trabalhadoras Rurais ANMTR (1997)

Constituindo-se como trabalhadoras rurais, conquistando respeito social e até o direito

digno de uma aposentadoria, as educandas começaram a participar ativamente dos encontros

sindicais. Essa ideia de “mulher da roça” que remete a uma ideia de “desleixo” precisava ser

combatida, e assim as religiosas juntamente com as entidades assistenciais passaram a

valorizar os ensinamentos que empregavam. Gustavo Gutierrez escreveu que precisamos

“conceber a história como um caminho para a libertação de homens e mulheres no qual este

vão assumindo conscientemente seu próprio destino.” (ALENCASTRO, 2000 p. 95). Partindo

3Conhecida como ALA e citada em BUSKO, P. S. Revista de Educação Popular, UFU, v. 10, p. 31-37,

jan./dez. 2011. Disponível em:

<http://www.seer.ufu.br/index.php/reveducpop/article/view/20208/10787>Acesso em 04 de ago. 2018.

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dos próprios interesses das classes populares, o trabalho de educação emprega múltiplas

formas de atingir seus objetivos, seja de conscientização ou de emancipação política (FIG.2).

Figura 2 – Cartilha Trabalhadora Rural.

Fonte: Articulação Nacional de Mulheres Trabalhadoras Rurais ANMTR (1997)

Outro exemplo de material educativo é o da Associação Difusora de Treinamentos e

Projetos Pedagógicos (Aditepp) localizada em Curitiba-PR. Esse material trabalha com

relações de gênero, exclusivamente com educadores populares. Na cartilha intitulada Somos

Iguais... e Diferentes (1995), os textos e as mensagens retratam as diferenças entre homens e

mulheres e trabalha a conscientização da mulher como ser social que tem seu lugar no mundo,

suas expectativas e sua participação política. Abaixo segue informações veiculadas em alguns

capítulos o texto da cartilha da Aditepp (1995) citada abaixo define bem esta busca:

Ser Homem & Ser Mulher:

“Homem não chora!” Bobagem, todo mundo chora quando está triste e chorar faz

bem.

“Mulher minha só põe o pé na rua quando a casa pega fogo”. Ora bolas, a mulher tem

todo direito de trabalhar fora e conhecer novas pessoas. Apesar de terem corpos diferentes,

homens e mulheres têm as mesmas capacidades de realizar os mesmo trabalhos. E como todo

ser humano devem ter os mesmos direitos. O que você pensa disso?

Diferenças & Costumes:

“A filha de seu Onofre trabalhava de dia e queria estudar à noite, mas ele não deixou:

“Estudar à noite pra quê”? Estudar é coisa pra homem, mulher só precisa saber fazer o serviço

de casa”.

Este costume interferiu no relacionamento de seu Onofre com sua filha...

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Masculino & Feminino:

“Entre ser homem e ser mulher existem muitas diferenças. Mas a única diferença

natural é a diferença do corpo. As outras diferenças são criadas pelos costumes. Essas

características de masculino e feminino são o que chamamos representações de gênero”.

(Aditepp, 1995)

A importância das três cartilhas apresentadas no artigo: Do Instituto Socioambiental

(ISA) do ano de 1999, da Articulação Nacional de Mulheres Trabalhadoras Rurais (ANMTR)

do ano de 1997 e da Associação Difusora de Treinamentos e Projetos Pedagógicos (Aditepp)

de 1995 demonstram a discussão do papel da mulher nos espaços rurais porque são espaços

de cidadania. A partir do reconhecimento da mulher como sujeito de direitos - que possuem

condições iguais a dos homens - todos passaram a respeitar as diferenças para dar novas

oportunidades da participação da mulher nestes espaços. Entretanto, pode-se perceber que

ainda existe uma grande distância entre os direitos conquistados e a aplicação destes direitos

na vida prática das mulheres. Por isso, tais debates se fazem importantes, tanto pela busca da

igualdade em todas as esferas sociais, quanto pela denúncia de violações dos direitos humanos

dessas mulheres.

Nessa linha de pensamento, Lobo (1991) ressalta a participação mais ativa das

mulheres nos movimentos sociais. Elas acabam por construir a identidade dos movimentos

sociais ou coletivos a partir das necessidades, experiências e visões de mundo das mulheres, o

que favorece o processo da construção da cidadania.

Pode-se considerar a construção de um sujeito coletivo, mas que, atuando localmente

poderiam vencer as barreiras impostas pelas esferas mais altas. Somente através da

participação e da conscientização nos grupos é que se vencem as dificuldades, impondo suas

vozes. A participação das mulheres em movimentos coletivos privilegia as reivindicações e

abre espaços para a prática política. O lugar destas mulheres na esfera política é algo

crescente, por isso deve ser valorizado por instituições que atuam diretamente nas decisões da

população. Sader (1988) utiliza-se do conceito de sujeito coletivo:

no sentido de uma coletividade onde se elabora uma identidade e se

organizam práticas através das quais seus membros pretendem defender seus

interesses e expressar suas vontades construindo-se nessas lutas. Trata-se

sim de pluralidades de sujeitos, cujas identidades são resultados de suas

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interações em processo de reconhecimento recíproco, e cujas posições são

mutáveis e intercambiáveis. As posições dos diferentes sujeitos são desiguais

e hierarquizáveis, mas essa ordenação não é anterior aos acontecimentos,

mas resultados deles. E, sobretudo, a racionalidade da situação não se

encontra na consciência de um ator privilegiado, mas é, também, resultado

do encontro das várias estratégias. (SADER, 1988, p. 55).

Os movimentos sociais tratados aqui correspondem ao que Dussel (1986) chama de

ética comunitária. Portanto, Dussel argumenta que o que faz a ética é a formação de um

pensamento coletivo direcionado que se transforma em ação.

4. METODOLOGIA DE IMERSÃO E OBSERVAÇÃO

A partir de experiências de imersão onde são realizados os processos de agricultura

familiar, quilombos e aldeias indígenas e observação dos modos de ser e das narrativas das

mulheres do Vale, além dos Encontros de Formação e dos Encontros de Mulheres podem ser

analisados os modos como se dá o movimento do feminismo agroecológico nestes espaços.

Proposta por Ocaña (2018) tal metodologia segue um modelo decolonial que significa

mover-se junto ao grupo de interação, participar não apontar, reconhecer-se nos sujeitos e não

julgá-los. Um processo dialógico e não monológico, sobretudo, político: “Todo processo

decolonizante é político e ideológico” (OCAÑA, 2018, p. 182). Diante dessas considerações,

uma metodologia decolonial consiste em criticar a ciência clássica, moderna. Criticar seus

modos do fazer pesquisa colonial, das práticas impostas como certos modelos de observação

sem a imersão necessária para uma coleta de dados condizente com os modos de vida de um

grupo pesquisado.

O apontar, julgar, não respeitar os sujeitos e suas ações ou falas caracteriza, segundo

Ocaña (2018), pensamentos obsoletos e conservadores que não ajudam os pesquisadores em

suas próprias pesquisas, pois colocam uma visão fechada em torno de uma realidade. Para ser

decolonial em pesquisa é necessário ser: “democrático, procurar ser justo, compartilhar e

solidarizar-se” (OCAÑA, 2018, p. 183). Além disso, trata-se de acompanhar o dia-a-dia dessa

mulher, elemento essencial do movimento apontado, seu cotidiano, como se percebe enquanto

ser mulher. Observar como interage com a natureza à sua volta, além de como é representada

pelo coletivo. Portanto, ao acompanhar e coletar as narrativas daquelas populações, do

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movimento promovido pelas redes de interação que apontam para um feminismo

agroecológico e como se organizam nas lutas sociais, nas resistências, nas formas de interação

e cooperação, de acordo com a metodologia decolonial, têm-se as análises que caracterizam

os modos de ser, dizer e fazer do movimento de mulheres que configuraram a temática desse

artigo.

5. RESULTADOS

De acordo com a metodologia aplicada percebeu-se que os Encontros realizados

trouxe para o movimento do feminismo agroecológico uma nova forma de pensar sobre o

acesso ou a falta de direitos ao trabalho, saúde, educação, etc. Não tardou para que a

necessidade de mudança fosse entendida como um ato de libertação e emancipação delas

próprias, e no debater suas experiências se conscientizaram que poderiam ir além de suas

casas e comunidades. Portanto, está aí a formação do movimento do feminismo

agroecológico, que une o aprendizado pela educação popular e respeito à natureza por meio

das resistências de preservação do meio ambiente e correto uso dos recursos naturais para

suas lavouras.

Imprescindível que exista uma articulação entre teoria e práxis, sobretudo pelos

processos educativos, para que haja movimentos de ações humanizantes, preenchendo as

sementes da libertação. Esta libertação, que muitas vezes no decorrer deste estudo o termo foi

utilizado como um sinônimo de emancipação, ocorrer de diversas formas, conforme os

movimentos de educadores aqui propostos, mas que abre novas perspectivas através de

pesquisas, tanto no campo histórico quanto das ciências sociais.

No que tange à educação popular aponta-se que a possibilidade de expandir certas

práticas educativas com viés freireano nas comunidades mais distantes dos centros urbanos.

Atualmente, muitos encontros estão sendo projetados, num trabalho em conjunto entre

comunidades e instituições de apoio citadas ao longo desta comunicação.

Nas comunidades as mulheres que participaram dos processos educativos e que antes

se consideravam socialmente marginalizadas passaram a constituir um novo pensamento: que

as necessidades são diversas, mas ainda assim muitas causadas pelas desigualdades sociais.

Ao conhecerem a razão destas desigualdades começaram a enfrentar mais os elementos de

resistência que a educação popular trouxe como um incentivo aos desejos de sobrevivência

daquela gente. Outro fator importante é que a Igreja católica, juntamente com outras

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organizações de classe, a exemplo da Pastoral da Terra, de Comunidades Eclesiais de Base

(CEBs) e de organizações não governamentais, muitas vezes se tornam responsáveis por

projetos de alfabetização no campo e de formação cidadã de jovens carentes.

As mulheres começaram a perceber que coletivamente aprenderiam sobre seus direitos

e se fortaleceriam. Nesse sentido, o artigo procurou evidenciar as redes de interação e os

sujeitos envolvidos nesses processos educativos e, em seguida, de como foram trabalhadas

algumas das práticas pedagógicas em favor de ações sociais que emanciparam a mulher

dentro de comunidades carentes onde viviam.

Faz-se, portanto, necessário conhecer tais estudos do saber empregado e das práticas

utilizadas propostas no sentido de conscientizar e libertar a mulher que ali se encontrava. Mas

não para tirá-la de seu meio de origem a princípio, mas antes afastá-la de uma consciência

restrita e oprimida que a conserva, talvez por gerações, possivelmente identificando as lutas e

as vitórias alcançadas pelo aprendizado popular como resultado desta libertação.

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