estudar, filosofia

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1 Estudar, Filosofia? Introdução Filosofia é uma interrogação? Ou a interrogação vale sobre o Estudo? Supondo-se que seja sobre ambos, devemos saber o que é Filosofia e o que é Estudo. Mas, se estudar Filosofia não é propriamente saber sobre o que é, mas filosofar 1 , então esse filosofar não mais seria saber sobre Filosofia nem sobre Estudo, mas apenas questão 2 . Na questão interrogar não é para responder e resolver um problema, mas abrir-se à disposição da jovialidade incondicional da busca. Filosofia nos é dada como disciplina escolar. Ao lado das outras disciplinas da aprendizagem e do ensino. Como ciência. Como mundividência. Muitas vezes, como conjunto de doutrinas ideológicas. Como informações culturais e métodos, normas, como coleção de ensinamentos profundos da Vida e da História como sabedoria. Como matérias de estudo, com provas e notas de aprovação ou reprovação. Com ‘ranking’ do saber acadêmico, como promoção de graduação, pós-graduação, mestrado, doutorado, pós-doutorado, no empenho e desempenho do trabalho intelectual. E como qualquer outra matéria de estudo escolar, a Filosofia está sujeita a variegadas e diferentes apreciações dos que a 1 Filosofia é filosofar. Cfr. Heidegger, Martin, Os conceitos fundamentais da Metafisica. Mundo-finitude-solidão, Tradução de Marco Antônio Casanova. –Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2003. p. 5. 2 Questão vem do verbo latino quaerere (quaero, quaesivi, quaestum ou quaesitum, quaerere) que significa buscar, procurar.

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1

Estudar, Filosofia?

Introdução

Filosofia é uma interrogação? Ou a interrogação vale sobre o Estudo? Supondo-se

que seja sobre ambos, devemos saber o que é Filosofia e o que é Estudo. Mas, se estudar

Filosofia não é propriamente saber sobre o que é, mas filosofar1, então esse filosofar

não mais seria saber sobre Filosofia nem sobre Estudo, mas apenas questão2. Na

questão interrogar não é para responder e resolver um problema, mas abrir-se à

disposição da jovialidade incondicional da busca.

Filosofia nos é dada como disciplina escolar. Ao lado das outras disciplinas da

aprendizagem e do ensino. Como ciência. Como mundividência. Muitas vezes, como

conjunto de doutrinas ideológicas. Como informações culturais e métodos, normas,

como coleção de ensinamentos profundos da Vida e da História como sabedoria. Como

matérias de estudo, com provas e notas de aprovação ou reprovação. Com ‘ranking’ do

saber acadêmico, como promoção de graduação, pós-graduação, mestrado, doutorado,

pós-doutorado, no empenho e desempenho do trabalho intelectual. E como qualquer

outra matéria de estudo escolar, a Filosofia está sujeita a variegadas e diferentes

apreciações dos que a estudam. Mas usualmente, a Filosofia como mundividência,

ciência, ideologia, cultura, sabedoria, disciplina de ensino e aprendizagem escolar, de

grau superior, seja o que for e como for, é considerada como uma das manifestações e

expressões do espírito humano, do espírito europeu-ocidental.

Filosofia, porém, não é boa para indicar a profissão de uma pessoa, a não ser como

professor de Filosofia. Soa estranho chamar alguém de filósofo, como se costuma

classificar, chamando alguém de engenheiro, mecânico, lixeiro, advogado, operário,

médico, historiador. Filósofo soa assim, não como alguém que tem uma função social,

um status, uma tarefa ou trabalho bem definido, mas como alguém solitário, todo

próprio, digamos particular e singular, algo diferente, de alguma forma afim com

excêntrico, alienado, excepcional, estranho, sábio quem sabe, de vez em quando até

1 Filosofia é filosofar. Cfr. Heidegger, Martin, Os conceitos fundamentais da Metafisica. Mundo-finitude-solidão, Tradução de Marco Antônio Casanova. –Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2003. p. 5.2 Questão vem do verbo latino quaerere (quaero, quaesivi, quaestum ou quaesitum, quaerere) que significa buscar, procurar.

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santo, mas em todo o caso não oficial, não comum, e sempre como privativo, próprio,

singular. Nesse sentido, se, em vez de dizer, filósofo é aquele que estudou Filosofia, é a

pessoa que é formada na especialização Filosofia, disser é aquele que filosofa, pensa,

matuta, ‘crania’, a gente se sente melhor, mais familiarizado com a qualificação. Mas

pensar, matutar, ‘craniar’ não é de toda gente, de todo mundo? O que há de especial no

filosofar? O que quer dizer a famosa expressão: Filosofia é filosofar?

Filosofia é filosofar.

Formalmente a formulação Filosofia é filosofar quer dizer: o substantivo

Filosofia tem como substância ser um verbo. Filosofia não é isso ou aquilo, não é algo

ali pré-jacente, dado de antemão, mas uma ação bem ‘encorpada’, um verbo. Mas não

um verbo, uma ação que ocorre, mas sim o ter que ser, o ter que se perfazer. Nesse

sentido Filosofia é só em filosofando. Ser Filosofia é: ser como em sendo. Filosofia

como filosofar está responsabilizada, é responsável de cabo a rabo, em todas as

articulações e fibras de sua estruturação, no seu método e no seu modo de ser e não ser,

na sua gênese, no seu crescimento e na sua consumação: em, por e para ser (verbo) ela

mesma, em sendo. Ser assim não é sujeito, não é agente, não é um quê, que age, que tem

a ação, mas é o próprio, em sendo, a pura-, plena- e total-mente inteiriço “verbo”, ser.

Em assim sendo, ser é pura ação, anterior à atividade e passividade, um ato, “em si”, a

partir de si nele mesmo, de todo e plenamente próprio, ele mesmo, na soltura, na

autonomia da auto-identidade. É, pois, ser ab-soluto. Esse caráter de ser ab-soluta

liberdade de si, da pura ação se diz em latim studium, e em grego scholé3, que se diz em

português estudo, empenho e desempenho, o zelo. Esse caráter típico de se ser próprio

se chama hermético. Enquanto propriedade de se ser, na ab-solutidade, na ab-soltura da

liberdade de autonomia, absoluto não significa propriamente fixidez da imutabilidade;

nem hermético trancamento e fechamento; mas pelo contrário franca abertura na

imensidão, profundidade e criatividade da jovialidade de ser, no seu perfazer-se, no seu

3 Scholé, em latim schola, em portugues escola significa ócio, repouso, tempo livre de lazer. Ócio, aqui, porém, não quer dizer dolce far niente. Antes indica um modo de ser e de agir, uma modalidade de trabalho todo próprio, caracterizado como labor livre, gratuito, assumido cordialmente por causa dele mesmo, e por isso, isento de remuneração seja ela prêmio ou castigo, por ele ser querido voluntariamente, como realização da vocação de uma pessoa. Por isso scholé significava estar livre dos negócios (=ne ou non+otium = negotium = trabalho forçado do escravo ou empregado); atividade da formação de ensino e aprendizagem escolar, conferência, diálogo, conversação erudita e filosófica. (Cfr. Menge, Hermann, Langenscheidts Grosswörterbuch Griechsch, Teil 1 Griechisch-deutsch, Editora Langenscheidt, Berlin-München-Zürich, 1970, p. 670. Essa compreensão do trabalho livre é a mesma das assim chamadas profissões liberais.

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consumar-se per-feito. Em vez de na sua consumação perfeita podemos também dizer

na sua bom-dade.

Quando em português dizemos ‘bom!’ significamos um ente, um em sendo que

está no ponto, ou melhor, no seu ponto. No ponto aqui quer dizer no seu próprio, na

sua. Para indicar esse ‘na sua’, ‘no seu próprio’ apertamos de leve a ponta, o lóbulo da

orelha, lá onde se é fofo, redondo, pleno, solto, digamos na sua ‘identidade’, na sua

coerência, na sua auto-adesão. Ser assim solto na coerência, como uma gota de água,

redondinha, tinindo na sua contenção plena é ser, no acima insinuado sentido verbal da

bom-dade.

Quando a Filosofia é filosofar, na sua caracterização de ser ela mesma, de estar

na sua, ‘em casa’, no tinir da sua coerência, i. é, na sua scholé (leia-se: em casa na

escola), para quem não consegue ‘ver’ o ser como verbo, mas apenas como

“substância” deslocada no seu sentido do ser para uma coisa-bloqueada como algo, a

tênue vibração do tinir da contenção da bom-dade perfeita, o ponto nevrálgico da

plenitude consumada de ser não é percebida, como também não se percebe a dinâmica

da densidade de ser de uma turbina em plena rotação a não ser como estaticamente

parada; e a soltura absoluta da autonomia da identidade é vista como fechamento,

trancamento, como superfície dura de um espaço ou de uma coisa hermeticamente

fechada.

A Filosofia enquanto filosofar sofre da ambigüidade da ‘hermeticidade’ acima

mencionada, deslocada da sua dinâmica interna, quando vista de fora. É nesse sentido

que se costuma dizer que a Filosofia é hermética. Ou dito de outro modo, numa

constatação banal: Filosofia é dura, difícil de se estudar, pois não há, a partir de fora,

nenhuma entrada de acesso.

O hermético da Filosofia

Tentemos verificar esse pretenso fechamento da Filosofia para dentro dela mesma,

mencionando algumas de suas características, destacadas por Heinrich Rombach,

quando analisa o modo de ser da Filosofia Moderna no seu livro Substanz System,

Struktur4.4 O que segue é resumo e citação da exposição de Rombach das páginas mencionadas a baixo. As citações estão no itálico. Cfr. Rombach, Heinrich, Substanz System, Struktur, Die Ontologie des Funktionalismus und der philosophische Hintergrund der modernen Wissenschaft, (Substância, Sistema Estrutura. A ontologia do funcinalismo e o fundo de trás da ciência moderna) Freiburg/München: Verlag Karl Alber, 1965, pp. 349-354.

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1. Filosofia como filosofar é auto-constituição. Como tal ela não recebe nenhuma

causação, ordenação, nenhum apoio ou subsídio de fora. Enquanto tal não há da

parte de fora nenhum ponto de referência que nos possibilitasse ou facilitasse

entrar nela. Não resta, pois, a não ser entrar em contato direto, corpo a corpo

com ela, a partir dela e nela mesma; ou deixar que ela fale, dite a sua lei. Por

isso: “ela pode ser definida como o pensar que se coloca a si mesmo sobre si

mesmo e empreende tomar todas as suas soluções e fundamentações, de si

mesmo, e todo o empréstimo de outras fontes, sejam elas experiência,

autoridade, revelação, é rejeitado; e isto, não porque elas lhe pareçam

incredíveis, mas porque elas estão sob as leis de um outro âmbito. Não somente

é rejeitada a condução, mas também todo e qualquer conteúdo de pensamento

de fora”. Aqui não se trata de reação de movimento de emancipação contra

autoridade, seja ela qual for e donde vier, mas da precisão de uma busca, na qual

se procura manter a coerência e limpidez do ser próprio de cada dimensão.

2. Porque a Filosofia como filosofar cria o seu médium próprio, vive, se move e é

nele e a partir dele, não se acha mais na ordenação do mundo que lhe é dado fora

da sua auto-constituição. “Assim a Filosofia não assume nenhuma posição

visível e distinta em referência à sociedade do seu tempo”. Assim, ela não

possui nenhuma familiaridade e credibilidade simples no meio da sociedade, não

lhe é acessível de imediato, não encontra receptividade junto dos seus

contemporâneos. Nesse sentido “ela não mais fala para fora, mas fala ainda

apenas para si mesma; ela é coisa de especialista para especialista. Ao filósofo

não mais lhe interessa ocupar uma posição educativa no todo do seu mundo

circundante, ou demonstrar através da forma de sua existência a forma a mais

sublime e excelente da existência humana, mas ele se retrai, se torna invisível

para a sociedade e não possui nenhum característico que tivesse para com o

povo a significação e importância de um perfil exemplar do humano numa

configuração prenhe de significação. Assim, o filósofo parece qualquer um, age

como todo mundo, e não faz da sua filosofia um objeto doutrinário

transmissível”. Isto quer dizer: ele não possui nenhuma posição oficial, não é da

oficialidade, não é clérigo nem público. O Filósofo não é aquele que é chamado

para uma tarefa humanitária pela vocação, o político, o educador, professor,

alguém como teólogo, juiz ou médico. Ele in-porta apenas a si mesmo, por e

para si, e vive no seu pensamento como o eremita na sua cela.

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3. Já que a Filosofia como filosofar está de pé somente sobre si mesma, e fala

somente por e para si; para as décadas e os séculos futuros ela fica fora das

escolas. “Todos os pensadores decisivos da nova Filosofia, Descartes, Hobbes,

Arnauld, Pascal, Espinosa, Locke, Leibniz e Hume são mestres não funcionários

e não possuem nenhuma conexão digna de menção com a universidade. Eles

trabalham e pensam como pessoas privativas e se relacionam com os colegas

somente na forma privativa. A universidade e os estudos gerais permanecem,

por longo tempo, intocados por esse pensar”.

4. A Filosofia como filosofar não ocupa nem assume um determinado lugar

descritível e visível dentro do mundo espiritual. Pois, ela implica, contém em si

todo o mundo do espírito, ou melhor, ele é todo o mundo do espírito. E assim,

“ela agora somente pode apelar a isso que surgir nela mesma e é nela pensada.

Ela é pensar sem pré-suposição. Ela não pode tomar da outra forma nem

axiomas, nem princípios, nem verdades primeiras, nem os dados, mas deve tudo

pro-duzir, gerar de si mesma. Agora sim, somente agora, a Filosofia se torna

“fundante”, “fundamental” de modo que ela tem que fundamentar tudo que ela

usa como meios do pensar nela mesma”. Desse modo a Filosofia é acossada em

direção ao fundo e fundamentação do fundo, de tal modo que uma vez a

caminho, não lhe resta mais nenhuma outra orientação a não ser a ausculta e

sondagem do abismo insondável e sem fundo da possibilidade de ser. Assim,

não se pensa em expandir, estender a extensão do saber, não se está mais na

tarefa do pensar enciclopédico, da vasta erudição, mas toda a tarefa consiste em

se concentrar na questão do início, do toque de origem e retorno a ela na busca

do outro início. “Não mais os summa, não mais um speculum universale é a

tarefa, a missão da Filosofia; não o processamento e a propagação do saber

‘substancialista’ sobre mundo e vida podem ser para ela tarefa, mas apenas

ainda a questão de fundo da sua própria facticidade”. Essa concentração na

questão do início faz surgir diferenciados e variegados estilos nas manifestações

literárias na causa da Filosofia. Temos assim p.ex., tratados, ensaios, discursos,

correspondências, fragmentos, anotações, diários etc., que por sua vez mais do

que estilos, gêneros ou obras literárias, são vestígios do pensar como caminhos,

sendas, trilhas que acenam. Não visam, pois, o quantum do saber, o seu

resultado, mas somente se trata do toque do início, do retorno ao início de

fundamentações.

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O como dos diálogos entre filosofias não é mais o de confronto argumentativo

de pressuposições, usadas na fundamentação das teses principais de cada

filosofia. As pré-suposições são mantidas intactas, intocadas, ou até

compreendidas da melhor maneira possível dentro da lógica do todo da

colocação. No entanto, o todo da colocação de cada filosofia em contacto mútuo

entre si sofre uma espécie de escavação de sapa, na qual a posição de fundo do

todo de cada colocação é interrogado no seu ser e este no sentido do ser,

subsumido operativamente por cada uma dessas filosofias em ‘confronto’, ao

‘construir’ o conjunto visível exotérico da sua aparição. Aqui no ‘confronto’ não

estão em jogo posições particulares dentro do todo da colocação, mas sim o

toque inicial da abordagem do todo da colocação. “Confira-se nessa perspectiva

a controvérsia p. ex., de um Locke contra Descartes, então de novo de um

Leibniz contra Locke, de um Kant contra Leibniz etc.” Aqui cada oponente se

conserva mutuamente protegido nas suas afirmações internas, esotéricas. Mas ao

mesmo tempo, cada uma das abordagens do todo de colocação de cada oponente

é colocada em questão, i. é, na busca, como ainda uma posição, portanto, não

suficientemente no fundo, onde se possa vislumbrar um abismo sem fundo do

pensar de origem.

5. “Na medida em que a Filosofia não mais é mantida, determinada e esclarecida

através e por meio de um mundo do ser e do sentido do ser extra-filosóficos, ela

deve não somente pensar ela mesma, mas também deve determinar todas as

suas particularidades e posições fundamentais. Por isso ela começa cada vez

com uma auto-colocação, auto-exame e auto-consideração. O pensador, antes

de ele adentrar os problemas intra-filosóficos, deve antes de tudo clarear como

tal o seu conceito de Filosofia. Cada Filosofia tem como seu primeiro e

fundamental tema a possibilidade do próprio filosofar ele mesmo. Com isso

cada uma Filosofia se torna a Filosofia. Ela se torna uma nova fundação do

filosofar como tal e deve tudo pensar novo de novo no seu reino”. Isso faz com

que o pensador é considerado como isolado e apenas ligado na referência ao seu

próprio espírito. Assim começa cada qual, consigo mesmo. Aqui, cada qual é

descobridor do campo o mais próprio da Filosofia. Cada pensador se

compreende uma nova erupção, uma nova eclosão, uma retomada, como o início

de toda uma época do pensar e não apenas como uma nova tese dentro de uma

moldura que permanece igual, do filosofar como tal. “Somente agora o pensar

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se torna num modo destacado historial. Filosofia se torna epocal. Ela se

adentra cada vez de tal maneira na História que com ela (Filosofia) inicia um

novo tempo. Cada Filosofia se compreende como a incisão epocal entre as eras

do universo temporal”. Assim a interpretação dos outros filósofos se torna volta

às e retomada das pressuposições como sondagem e ausculta do que elas

ocultam da possibilidade de ser. Nenhuma Filosofia pode se estabelecer, sem dar

ao mesmo tempo a sua própria apresentação e exposição da História da

Filosofia. A História da Filosofia não é mais apresentação das diferentes

opiniões sobre as mesmas perguntas, mas é entendida agora como uma História

da questão do sentido do ser que contém cada vez diferentes possibilidades

fundamentais da compreensão do Mundo, Homem e Deus, que projeta nessas

possibilidades, diferentes perguntas e modos de perguntar.

Nessa perspectiva, “não existe uma base comum para discussão direta entre as

filosofias. Com a criação nova do conceito de Filosofia surge também cada vez

uma nova, própria e i-repetível terminologia do pensar. Essa ‘terminologia’,

quiçá, esclarece esse pensar em si, mas não o deixa mais se referir ao outro

pensar e a teses em outro pensar. Cada Filosofia deve ser concebida a partir da

sua própria terminologia, e por isso mesmo suas enunciações não podem ser

ditas para fora dela, portanto não mais no sentido usual como “diálogo” entre

os filósofos. Os pensadores se isolam na absoluta solidão do seu mundo

conceptual cada vez seu. Todas as categorias como essência, substância, ser,

verdade, pensar, fundo e fundamento, causa, matéria, forma, assumem

diferentes significações, sim até conteúdos contrários, na medida em que se

atêm a diferentes círculos de pensamento”. Diante disso, não se pode mais falar

na Filosofia de “Introdução geral da Filosofia”, já que cada Filosofia por e para

si mesma é introdução, o adentrar-se no filosofar.

6. Do que até agora dissemos, a Filosofia como filosofar se assenta sobre e em si

mesma e não é propriamente uma forma específica de espírito como tal. Assim,

ela possui uma impostação e implicância toda própria, totalmente irredutível

para com a sua tarefa. Ela é um modo de pensar que difere totalmente do modo

de pensar do usual cotidiano, quer na ciência, quer na vida. Por isso a Filosofia é

difícil para a gente. Ela se torna assim inacessível e des-natural, artificial para

quem se acha fora dela.

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Esse resumo da exposição muito mais detalhada das características da Filosofia

como filosofar, feita por Rombach, nos pode induzir a tirarmos conclusões

precipitadas. Falemos, pois, brevemente somente sobre uma dessas conclusões

equivocadas que mais ocorrem, desviando-nos de um questionamento adequado

da questão.

Evitando, uma conclusão apressada

Acima mencionada conclusão precipitada em questão consiste em tirarmos de

tudo quanto dissemos até aqui, caracterizando o modo de ser próprio da Filosofia como

filosofar, a conclusão de que tal estudar Filosofia é um puro fechamento para dentro do

solipsismo subjetivo-existencialista.

Admitindo a possibilidade de tal conclusão, sem entrar no questionamento das

pressuposições ali pré-jacentes não analisadas, queremos aqui apenas apontar um item

que poderia insinuar uma conclusão diferente, conclusão que longe de ser uma solução,

é antes uma questão mais exigente.

O termo hermético, como já foi mencionado bem no início, conota fechamento,

trancamento completo para dentro de si.

Nos supermercados encontramos e compramos à beça produtos alimentícios

embalados e fechados em sacos de plástico resistente, de cujo interior se retirou de todo

o ar, de modo que os alimentos estão totalmente blindados contra o contato com o ar

exterior. É esse tipo de fechamento que nos vem à mente de imediato, quando ouvimos

ou lemos a palavra ‘hermético’. Assim, para nós hoje, o adjetivo ‘hermético’ se refere

de imediato ao fechamento, é relativo ao fato de se estar trancado por e para dentro. No

entanto, ‘hermético’ contém o nome Hermes, um dos deuses principais e mais influentes

da mitologia grega. O que tem deus Hermes a ver com trancamento por e para dentro,

com o fechado hermeticamente? Talvez, segundo Aurélio, porque ‘hermético’ significa

também “encimado por um Hermes”. Hermes ou herma é um bloco quadrilátero

quadrangular de pedra, cuja parte de cima é um busto esculpido de Hermes, em que o

peito, as costas e os ombros são cortados por planos verticais, formando a parte inferior

do bloco a modo de um pedestal quadrangular; ou é um meio-busto esculpido ou estátua

de Hermes aplicada a um plinto. Essa peça quadrilátero quadrangular de pedra, quando

era usada para tampar um espaço aberto, o fechava de tal modo que de fora, ali nada

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mais entrava. Daí, num sentido figurado, algo cuja compreensão nos é fechada,

inacessível ou muito difícil e obscura, é qualificado de hermético.

Mas a referência do ‘hermético’, ao fechamento pode ter uma acepção mais

profunda do que o simples fato de uma abertura ser fechada com um plinto encimado

por busto de Hermes. É o que se insinua na ligação que a palavra ‘hermética’ tem para

com ‘ciência’ oculta de mutação e transmutação das forças elementares das profundezas

da matéria, da alquimia. ‘Hermético’ agora se refere diretamente a deus Hermes,

enquanto relacionado com as forças ocultas das profundezas obscuras da matéria. A

referência da palavra ‘hermético’ com fechamento, não poderia vir da sua direta

referência a deus Hermes? Deus Hermes no seu modo de ser, nas suas propriedades, não

nos poderia levar a uma interpretação da Filosofia como filosofar, e que na exposição

acima do item “O hermético da Filosofia” parecia se caracterizar como hermeticamente

fechada em, por e para dentro do solipsismo subjetivo-existencialista?

A Filosofia como filosofar está fechada com deus Hermes

Fechar em português pode significar trancar, cerrar, tapar a abertura etc. Mas

pode também em tudo isso significar concluir, levar ao cabo, consumar, perfazer.

Nesse sentido é que dizemos: fechei um negócio, fechei um contrato. E no Brasil a

expressão fechar com pode significar estar a favor ou ao lado de; concordar com. Não

é assim que na mesma direção vai também a acepção da expressão: estou contigo e não

abro?

Fechamento hermético da Filosofia como filosofar não poderia significa então

que a Filosofia esteja declarando a deus Hermes: Estou contigo e não abro? Ou melhor,

que a Filosofia no seu filosofar não é outra coisa do que ser simplesmente, totalmente

inserção no “estar na sua” da divindade de Hermes, no entusiasmo de Hermes? Em que

consiste o estar “na sua”, no próprio divino de Hermes, no seu entusiasmo? Hermes é

deus, uma divindade. E deus na sua divindade é representação da excelência do ser,

concentrada num ente, i.é, em um “em sendo”. Essa concentração muitas vezes na

‘mitologia’ é entendida como personificação, subjetivação ou hipostatização,

gramaticalmente substantivação do adjetivo ou verbo, de tal sorte que Hermes deus se

transforma num sujeito-pessoa, num substantivo que indica um algo substancial, um quê

ocorrente em si, que por sua vez possui qualidades ocorrentes e acrescentadas a ele

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como seus atributos e ações. Se ‘des-mitologizamos5 o mito dos deuses gregos dessa

personificação e os consideramos na dinâmica do seu ser próprio como divindade, como

o divino, então ‘deus’ ou ‘divindade’ como excelência do ser, concentrada num ente, i.é,

em um “em sendo” não deve mais ser entendida como fixação num ponto como centro,

mas como onipresença cujo centro está cada vez em toda a parte, sem ocupar lugar, mas

cada vez em cada momento de todo o “em sendo”, como plenitude, como alegria, como

vitalidade de ser. O quê, aqui qualificado como concentração do ser, não é um quê

ponto, um núcleo subjacente a propriedades e atuações, mas vigência qual difusão a

modo de claridade ou afinação. A modo de claridade ou afinação é tal que instante,

momento, vigência ali é cada vez instante do instante, momento do momento, vigência

da vigência em crescimento e decrescimento da densidade de liberação da auto-

identidade de cada “em sendo”. Esse modo de ser da vigência, do momento, do instante

difusão no crescimento e decrescimento da liberação da auto-identidade é insinuado

pelas expressões afins entre si como: o próprio, na sua, cada vez seu e expressa a

excelência de ser que personificada e qualificada em suas diversificadas aparições

recebe o nome de deus, deuses ou o divino.

Hermes, diferindo do seu irmão Apolo que é deus do sol meridiano, deus da luz

do dia, é deus da luz sombreada do lusco fusco do despertar da manhã; e é deus da luz

sombria da noite, das trevas incandescentes. O seu elemento, a sua ambiência familiar, o

seu “em casa” é vigência das forças ocultas das profundezas do mistério do ser, do

abismo insondável e inesgotável das possibilidades de ser. Ele é assim o mensageiro, o

arauto dos enigmas dos deuses, é condutor das almas para dentro do desconhecido,

inesperado, e inaudito do mistério da origem e do seu toque. O seu reinado começa a se

sentir em casa lá onde todas as nossas possibilidades do ser e pensar aparentemente

estabelecidas sobre certeza do saber, exatidão do cálculo e controle, sobre firmeza do

querer do poder, colocadas, padronizadas e classificadas, nas suas posições e

pressuposições afundam nas nuvens do não saber, do não poder, do não ser,

impulsionadas na paixão da busca hermética do sentido do ser.

O fechamento hermético! O que, à primeira vista, sob a luz gélida e neutra e ao mesmo

tempo tórrida e causticante da interpelação produtiva do auto-asseguramento de um

cientificismo objetivante exacerbado, aparece como fechamento em, por e para dentro

do solipsismo subjetivo-existencialista da Filosofia como filosofar, não seria antes

5 Desmitologizar aqui não significa desmascarar o mito de suas interpretações defasadas e supersticiosas, não objetivas factuais, mas sim desbloquear o mito, de amarras de perspectivas a ele inadequadas, para deixá-lo ser ele mesmo na sua liberdade própria.

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tentação e tentativa de uma boa aventurança, na busca da disposição, da prontidão

atenta da espera do inesperado, trabalhada, renovada, buscada tenazmente sempre de

novo pela existência “acadêmica” que de todo fecha com a paixão de Hermes e não

abre?

Mas, e a Filosofia institucionalizada no ensino e na aprendizagem escolar com

todas as suas exigências formais e de conteúdo, monitoradas pela sociedade acadêmico-

científica? Nelas e através delas assumir o empenho e desempenho de nos exercitarmos

em infindas tentativas de resolver os problemas e as dificuldades provenientes de suas

determinadas posições e pressuposições; e nessas tentativas aguçar, ampliar, questionar

a precisão e a cordialidade da busca na mira da única questão do fundo de todas as

pressuposições, para dentro do abismo hermético de uma espera, inteiramente nova e

jovial da possibilidade do ser, seja talvez a tarefa hodierna do Estudo da Filosofia.

Conclusão

O Estudo? A Filosofia? Filosofia é filosofar? O que vale, porém em tudo isso, é

não esquecer o aceno da recordação, a mais necessária dos tempos de urgência:

“Pois odeia

O deus sensato

Crescimento intempestivo”.

Hölderlin, Do motivo dos Titãs (IV, 218)6.

6 Cfr. Heidegger, Martin, Intordução à Metafísica, apresentação e tradução de Emmanuel Carneiro Leão, Rio de Janeiro, Tempo Brasileiro: 1987, p. 227.