estudar, filosofia
TRANSCRIPT
1
Estudar, Filosofia?
Introdução
Filosofia é uma interrogação? Ou a interrogação vale sobre o Estudo? Supondo-se
que seja sobre ambos, devemos saber o que é Filosofia e o que é Estudo. Mas, se estudar
Filosofia não é propriamente saber sobre o que é, mas filosofar1, então esse filosofar
não mais seria saber sobre Filosofia nem sobre Estudo, mas apenas questão2. Na
questão interrogar não é para responder e resolver um problema, mas abrir-se à
disposição da jovialidade incondicional da busca.
Filosofia nos é dada como disciplina escolar. Ao lado das outras disciplinas da
aprendizagem e do ensino. Como ciência. Como mundividência. Muitas vezes, como
conjunto de doutrinas ideológicas. Como informações culturais e métodos, normas,
como coleção de ensinamentos profundos da Vida e da História como sabedoria. Como
matérias de estudo, com provas e notas de aprovação ou reprovação. Com ‘ranking’ do
saber acadêmico, como promoção de graduação, pós-graduação, mestrado, doutorado,
pós-doutorado, no empenho e desempenho do trabalho intelectual. E como qualquer
outra matéria de estudo escolar, a Filosofia está sujeita a variegadas e diferentes
apreciações dos que a estudam. Mas usualmente, a Filosofia como mundividência,
ciência, ideologia, cultura, sabedoria, disciplina de ensino e aprendizagem escolar, de
grau superior, seja o que for e como for, é considerada como uma das manifestações e
expressões do espírito humano, do espírito europeu-ocidental.
Filosofia, porém, não é boa para indicar a profissão de uma pessoa, a não ser como
professor de Filosofia. Soa estranho chamar alguém de filósofo, como se costuma
classificar, chamando alguém de engenheiro, mecânico, lixeiro, advogado, operário,
médico, historiador. Filósofo soa assim, não como alguém que tem uma função social,
um status, uma tarefa ou trabalho bem definido, mas como alguém solitário, todo
próprio, digamos particular e singular, algo diferente, de alguma forma afim com
excêntrico, alienado, excepcional, estranho, sábio quem sabe, de vez em quando até
1 Filosofia é filosofar. Cfr. Heidegger, Martin, Os conceitos fundamentais da Metafisica. Mundo-finitude-solidão, Tradução de Marco Antônio Casanova. –Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2003. p. 5.2 Questão vem do verbo latino quaerere (quaero, quaesivi, quaestum ou quaesitum, quaerere) que significa buscar, procurar.
2
santo, mas em todo o caso não oficial, não comum, e sempre como privativo, próprio,
singular. Nesse sentido, se, em vez de dizer, filósofo é aquele que estudou Filosofia, é a
pessoa que é formada na especialização Filosofia, disser é aquele que filosofa, pensa,
matuta, ‘crania’, a gente se sente melhor, mais familiarizado com a qualificação. Mas
pensar, matutar, ‘craniar’ não é de toda gente, de todo mundo? O que há de especial no
filosofar? O que quer dizer a famosa expressão: Filosofia é filosofar?
Filosofia é filosofar.
Formalmente a formulação Filosofia é filosofar quer dizer: o substantivo
Filosofia tem como substância ser um verbo. Filosofia não é isso ou aquilo, não é algo
ali pré-jacente, dado de antemão, mas uma ação bem ‘encorpada’, um verbo. Mas não
um verbo, uma ação que ocorre, mas sim o ter que ser, o ter que se perfazer. Nesse
sentido Filosofia é só em filosofando. Ser Filosofia é: ser como em sendo. Filosofia
como filosofar está responsabilizada, é responsável de cabo a rabo, em todas as
articulações e fibras de sua estruturação, no seu método e no seu modo de ser e não ser,
na sua gênese, no seu crescimento e na sua consumação: em, por e para ser (verbo) ela
mesma, em sendo. Ser assim não é sujeito, não é agente, não é um quê, que age, que tem
a ação, mas é o próprio, em sendo, a pura-, plena- e total-mente inteiriço “verbo”, ser.
Em assim sendo, ser é pura ação, anterior à atividade e passividade, um ato, “em si”, a
partir de si nele mesmo, de todo e plenamente próprio, ele mesmo, na soltura, na
autonomia da auto-identidade. É, pois, ser ab-soluto. Esse caráter de ser ab-soluta
liberdade de si, da pura ação se diz em latim studium, e em grego scholé3, que se diz em
português estudo, empenho e desempenho, o zelo. Esse caráter típico de se ser próprio
se chama hermético. Enquanto propriedade de se ser, na ab-solutidade, na ab-soltura da
liberdade de autonomia, absoluto não significa propriamente fixidez da imutabilidade;
nem hermético trancamento e fechamento; mas pelo contrário franca abertura na
imensidão, profundidade e criatividade da jovialidade de ser, no seu perfazer-se, no seu
3 Scholé, em latim schola, em portugues escola significa ócio, repouso, tempo livre de lazer. Ócio, aqui, porém, não quer dizer dolce far niente. Antes indica um modo de ser e de agir, uma modalidade de trabalho todo próprio, caracterizado como labor livre, gratuito, assumido cordialmente por causa dele mesmo, e por isso, isento de remuneração seja ela prêmio ou castigo, por ele ser querido voluntariamente, como realização da vocação de uma pessoa. Por isso scholé significava estar livre dos negócios (=ne ou non+otium = negotium = trabalho forçado do escravo ou empregado); atividade da formação de ensino e aprendizagem escolar, conferência, diálogo, conversação erudita e filosófica. (Cfr. Menge, Hermann, Langenscheidts Grosswörterbuch Griechsch, Teil 1 Griechisch-deutsch, Editora Langenscheidt, Berlin-München-Zürich, 1970, p. 670. Essa compreensão do trabalho livre é a mesma das assim chamadas profissões liberais.
3
consumar-se per-feito. Em vez de na sua consumação perfeita podemos também dizer
na sua bom-dade.
Quando em português dizemos ‘bom!’ significamos um ente, um em sendo que
está no ponto, ou melhor, no seu ponto. No ponto aqui quer dizer no seu próprio, na
sua. Para indicar esse ‘na sua’, ‘no seu próprio’ apertamos de leve a ponta, o lóbulo da
orelha, lá onde se é fofo, redondo, pleno, solto, digamos na sua ‘identidade’, na sua
coerência, na sua auto-adesão. Ser assim solto na coerência, como uma gota de água,
redondinha, tinindo na sua contenção plena é ser, no acima insinuado sentido verbal da
bom-dade.
Quando a Filosofia é filosofar, na sua caracterização de ser ela mesma, de estar
na sua, ‘em casa’, no tinir da sua coerência, i. é, na sua scholé (leia-se: em casa na
escola), para quem não consegue ‘ver’ o ser como verbo, mas apenas como
“substância” deslocada no seu sentido do ser para uma coisa-bloqueada como algo, a
tênue vibração do tinir da contenção da bom-dade perfeita, o ponto nevrálgico da
plenitude consumada de ser não é percebida, como também não se percebe a dinâmica
da densidade de ser de uma turbina em plena rotação a não ser como estaticamente
parada; e a soltura absoluta da autonomia da identidade é vista como fechamento,
trancamento, como superfície dura de um espaço ou de uma coisa hermeticamente
fechada.
A Filosofia enquanto filosofar sofre da ambigüidade da ‘hermeticidade’ acima
mencionada, deslocada da sua dinâmica interna, quando vista de fora. É nesse sentido
que se costuma dizer que a Filosofia é hermética. Ou dito de outro modo, numa
constatação banal: Filosofia é dura, difícil de se estudar, pois não há, a partir de fora,
nenhuma entrada de acesso.
O hermético da Filosofia
Tentemos verificar esse pretenso fechamento da Filosofia para dentro dela mesma,
mencionando algumas de suas características, destacadas por Heinrich Rombach,
quando analisa o modo de ser da Filosofia Moderna no seu livro Substanz System,
Struktur4.4 O que segue é resumo e citação da exposição de Rombach das páginas mencionadas a baixo. As citações estão no itálico. Cfr. Rombach, Heinrich, Substanz System, Struktur, Die Ontologie des Funktionalismus und der philosophische Hintergrund der modernen Wissenschaft, (Substância, Sistema Estrutura. A ontologia do funcinalismo e o fundo de trás da ciência moderna) Freiburg/München: Verlag Karl Alber, 1965, pp. 349-354.
4
1. Filosofia como filosofar é auto-constituição. Como tal ela não recebe nenhuma
causação, ordenação, nenhum apoio ou subsídio de fora. Enquanto tal não há da
parte de fora nenhum ponto de referência que nos possibilitasse ou facilitasse
entrar nela. Não resta, pois, a não ser entrar em contato direto, corpo a corpo
com ela, a partir dela e nela mesma; ou deixar que ela fale, dite a sua lei. Por
isso: “ela pode ser definida como o pensar que se coloca a si mesmo sobre si
mesmo e empreende tomar todas as suas soluções e fundamentações, de si
mesmo, e todo o empréstimo de outras fontes, sejam elas experiência,
autoridade, revelação, é rejeitado; e isto, não porque elas lhe pareçam
incredíveis, mas porque elas estão sob as leis de um outro âmbito. Não somente
é rejeitada a condução, mas também todo e qualquer conteúdo de pensamento
de fora”. Aqui não se trata de reação de movimento de emancipação contra
autoridade, seja ela qual for e donde vier, mas da precisão de uma busca, na qual
se procura manter a coerência e limpidez do ser próprio de cada dimensão.
2. Porque a Filosofia como filosofar cria o seu médium próprio, vive, se move e é
nele e a partir dele, não se acha mais na ordenação do mundo que lhe é dado fora
da sua auto-constituição. “Assim a Filosofia não assume nenhuma posição
visível e distinta em referência à sociedade do seu tempo”. Assim, ela não
possui nenhuma familiaridade e credibilidade simples no meio da sociedade, não
lhe é acessível de imediato, não encontra receptividade junto dos seus
contemporâneos. Nesse sentido “ela não mais fala para fora, mas fala ainda
apenas para si mesma; ela é coisa de especialista para especialista. Ao filósofo
não mais lhe interessa ocupar uma posição educativa no todo do seu mundo
circundante, ou demonstrar através da forma de sua existência a forma a mais
sublime e excelente da existência humana, mas ele se retrai, se torna invisível
para a sociedade e não possui nenhum característico que tivesse para com o
povo a significação e importância de um perfil exemplar do humano numa
configuração prenhe de significação. Assim, o filósofo parece qualquer um, age
como todo mundo, e não faz da sua filosofia um objeto doutrinário
transmissível”. Isto quer dizer: ele não possui nenhuma posição oficial, não é da
oficialidade, não é clérigo nem público. O Filósofo não é aquele que é chamado
para uma tarefa humanitária pela vocação, o político, o educador, professor,
alguém como teólogo, juiz ou médico. Ele in-porta apenas a si mesmo, por e
para si, e vive no seu pensamento como o eremita na sua cela.
5
3. Já que a Filosofia como filosofar está de pé somente sobre si mesma, e fala
somente por e para si; para as décadas e os séculos futuros ela fica fora das
escolas. “Todos os pensadores decisivos da nova Filosofia, Descartes, Hobbes,
Arnauld, Pascal, Espinosa, Locke, Leibniz e Hume são mestres não funcionários
e não possuem nenhuma conexão digna de menção com a universidade. Eles
trabalham e pensam como pessoas privativas e se relacionam com os colegas
somente na forma privativa. A universidade e os estudos gerais permanecem,
por longo tempo, intocados por esse pensar”.
4. A Filosofia como filosofar não ocupa nem assume um determinado lugar
descritível e visível dentro do mundo espiritual. Pois, ela implica, contém em si
todo o mundo do espírito, ou melhor, ele é todo o mundo do espírito. E assim,
“ela agora somente pode apelar a isso que surgir nela mesma e é nela pensada.
Ela é pensar sem pré-suposição. Ela não pode tomar da outra forma nem
axiomas, nem princípios, nem verdades primeiras, nem os dados, mas deve tudo
pro-duzir, gerar de si mesma. Agora sim, somente agora, a Filosofia se torna
“fundante”, “fundamental” de modo que ela tem que fundamentar tudo que ela
usa como meios do pensar nela mesma”. Desse modo a Filosofia é acossada em
direção ao fundo e fundamentação do fundo, de tal modo que uma vez a
caminho, não lhe resta mais nenhuma outra orientação a não ser a ausculta e
sondagem do abismo insondável e sem fundo da possibilidade de ser. Assim,
não se pensa em expandir, estender a extensão do saber, não se está mais na
tarefa do pensar enciclopédico, da vasta erudição, mas toda a tarefa consiste em
se concentrar na questão do início, do toque de origem e retorno a ela na busca
do outro início. “Não mais os summa, não mais um speculum universale é a
tarefa, a missão da Filosofia; não o processamento e a propagação do saber
‘substancialista’ sobre mundo e vida podem ser para ela tarefa, mas apenas
ainda a questão de fundo da sua própria facticidade”. Essa concentração na
questão do início faz surgir diferenciados e variegados estilos nas manifestações
literárias na causa da Filosofia. Temos assim p.ex., tratados, ensaios, discursos,
correspondências, fragmentos, anotações, diários etc., que por sua vez mais do
que estilos, gêneros ou obras literárias, são vestígios do pensar como caminhos,
sendas, trilhas que acenam. Não visam, pois, o quantum do saber, o seu
resultado, mas somente se trata do toque do início, do retorno ao início de
fundamentações.
6
O como dos diálogos entre filosofias não é mais o de confronto argumentativo
de pressuposições, usadas na fundamentação das teses principais de cada
filosofia. As pré-suposições são mantidas intactas, intocadas, ou até
compreendidas da melhor maneira possível dentro da lógica do todo da
colocação. No entanto, o todo da colocação de cada filosofia em contacto mútuo
entre si sofre uma espécie de escavação de sapa, na qual a posição de fundo do
todo de cada colocação é interrogado no seu ser e este no sentido do ser,
subsumido operativamente por cada uma dessas filosofias em ‘confronto’, ao
‘construir’ o conjunto visível exotérico da sua aparição. Aqui no ‘confronto’ não
estão em jogo posições particulares dentro do todo da colocação, mas sim o
toque inicial da abordagem do todo da colocação. “Confira-se nessa perspectiva
a controvérsia p. ex., de um Locke contra Descartes, então de novo de um
Leibniz contra Locke, de um Kant contra Leibniz etc.” Aqui cada oponente se
conserva mutuamente protegido nas suas afirmações internas, esotéricas. Mas ao
mesmo tempo, cada uma das abordagens do todo de colocação de cada oponente
é colocada em questão, i. é, na busca, como ainda uma posição, portanto, não
suficientemente no fundo, onde se possa vislumbrar um abismo sem fundo do
pensar de origem.
5. “Na medida em que a Filosofia não mais é mantida, determinada e esclarecida
através e por meio de um mundo do ser e do sentido do ser extra-filosóficos, ela
deve não somente pensar ela mesma, mas também deve determinar todas as
suas particularidades e posições fundamentais. Por isso ela começa cada vez
com uma auto-colocação, auto-exame e auto-consideração. O pensador, antes
de ele adentrar os problemas intra-filosóficos, deve antes de tudo clarear como
tal o seu conceito de Filosofia. Cada Filosofia tem como seu primeiro e
fundamental tema a possibilidade do próprio filosofar ele mesmo. Com isso
cada uma Filosofia se torna a Filosofia. Ela se torna uma nova fundação do
filosofar como tal e deve tudo pensar novo de novo no seu reino”. Isso faz com
que o pensador é considerado como isolado e apenas ligado na referência ao seu
próprio espírito. Assim começa cada qual, consigo mesmo. Aqui, cada qual é
descobridor do campo o mais próprio da Filosofia. Cada pensador se
compreende uma nova erupção, uma nova eclosão, uma retomada, como o início
de toda uma época do pensar e não apenas como uma nova tese dentro de uma
moldura que permanece igual, do filosofar como tal. “Somente agora o pensar
7
se torna num modo destacado historial. Filosofia se torna epocal. Ela se
adentra cada vez de tal maneira na História que com ela (Filosofia) inicia um
novo tempo. Cada Filosofia se compreende como a incisão epocal entre as eras
do universo temporal”. Assim a interpretação dos outros filósofos se torna volta
às e retomada das pressuposições como sondagem e ausculta do que elas
ocultam da possibilidade de ser. Nenhuma Filosofia pode se estabelecer, sem dar
ao mesmo tempo a sua própria apresentação e exposição da História da
Filosofia. A História da Filosofia não é mais apresentação das diferentes
opiniões sobre as mesmas perguntas, mas é entendida agora como uma História
da questão do sentido do ser que contém cada vez diferentes possibilidades
fundamentais da compreensão do Mundo, Homem e Deus, que projeta nessas
possibilidades, diferentes perguntas e modos de perguntar.
Nessa perspectiva, “não existe uma base comum para discussão direta entre as
filosofias. Com a criação nova do conceito de Filosofia surge também cada vez
uma nova, própria e i-repetível terminologia do pensar. Essa ‘terminologia’,
quiçá, esclarece esse pensar em si, mas não o deixa mais se referir ao outro
pensar e a teses em outro pensar. Cada Filosofia deve ser concebida a partir da
sua própria terminologia, e por isso mesmo suas enunciações não podem ser
ditas para fora dela, portanto não mais no sentido usual como “diálogo” entre
os filósofos. Os pensadores se isolam na absoluta solidão do seu mundo
conceptual cada vez seu. Todas as categorias como essência, substância, ser,
verdade, pensar, fundo e fundamento, causa, matéria, forma, assumem
diferentes significações, sim até conteúdos contrários, na medida em que se
atêm a diferentes círculos de pensamento”. Diante disso, não se pode mais falar
na Filosofia de “Introdução geral da Filosofia”, já que cada Filosofia por e para
si mesma é introdução, o adentrar-se no filosofar.
6. Do que até agora dissemos, a Filosofia como filosofar se assenta sobre e em si
mesma e não é propriamente uma forma específica de espírito como tal. Assim,
ela possui uma impostação e implicância toda própria, totalmente irredutível
para com a sua tarefa. Ela é um modo de pensar que difere totalmente do modo
de pensar do usual cotidiano, quer na ciência, quer na vida. Por isso a Filosofia é
difícil para a gente. Ela se torna assim inacessível e des-natural, artificial para
quem se acha fora dela.
8
Esse resumo da exposição muito mais detalhada das características da Filosofia
como filosofar, feita por Rombach, nos pode induzir a tirarmos conclusões
precipitadas. Falemos, pois, brevemente somente sobre uma dessas conclusões
equivocadas que mais ocorrem, desviando-nos de um questionamento adequado
da questão.
Evitando, uma conclusão apressada
Acima mencionada conclusão precipitada em questão consiste em tirarmos de
tudo quanto dissemos até aqui, caracterizando o modo de ser próprio da Filosofia como
filosofar, a conclusão de que tal estudar Filosofia é um puro fechamento para dentro do
solipsismo subjetivo-existencialista.
Admitindo a possibilidade de tal conclusão, sem entrar no questionamento das
pressuposições ali pré-jacentes não analisadas, queremos aqui apenas apontar um item
que poderia insinuar uma conclusão diferente, conclusão que longe de ser uma solução,
é antes uma questão mais exigente.
O termo hermético, como já foi mencionado bem no início, conota fechamento,
trancamento completo para dentro de si.
Nos supermercados encontramos e compramos à beça produtos alimentícios
embalados e fechados em sacos de plástico resistente, de cujo interior se retirou de todo
o ar, de modo que os alimentos estão totalmente blindados contra o contato com o ar
exterior. É esse tipo de fechamento que nos vem à mente de imediato, quando ouvimos
ou lemos a palavra ‘hermético’. Assim, para nós hoje, o adjetivo ‘hermético’ se refere
de imediato ao fechamento, é relativo ao fato de se estar trancado por e para dentro. No
entanto, ‘hermético’ contém o nome Hermes, um dos deuses principais e mais influentes
da mitologia grega. O que tem deus Hermes a ver com trancamento por e para dentro,
com o fechado hermeticamente? Talvez, segundo Aurélio, porque ‘hermético’ significa
também “encimado por um Hermes”. Hermes ou herma é um bloco quadrilátero
quadrangular de pedra, cuja parte de cima é um busto esculpido de Hermes, em que o
peito, as costas e os ombros são cortados por planos verticais, formando a parte inferior
do bloco a modo de um pedestal quadrangular; ou é um meio-busto esculpido ou estátua
de Hermes aplicada a um plinto. Essa peça quadrilátero quadrangular de pedra, quando
era usada para tampar um espaço aberto, o fechava de tal modo que de fora, ali nada
9
mais entrava. Daí, num sentido figurado, algo cuja compreensão nos é fechada,
inacessível ou muito difícil e obscura, é qualificado de hermético.
Mas a referência do ‘hermético’, ao fechamento pode ter uma acepção mais
profunda do que o simples fato de uma abertura ser fechada com um plinto encimado
por busto de Hermes. É o que se insinua na ligação que a palavra ‘hermética’ tem para
com ‘ciência’ oculta de mutação e transmutação das forças elementares das profundezas
da matéria, da alquimia. ‘Hermético’ agora se refere diretamente a deus Hermes,
enquanto relacionado com as forças ocultas das profundezas obscuras da matéria. A
referência da palavra ‘hermético’ com fechamento, não poderia vir da sua direta
referência a deus Hermes? Deus Hermes no seu modo de ser, nas suas propriedades, não
nos poderia levar a uma interpretação da Filosofia como filosofar, e que na exposição
acima do item “O hermético da Filosofia” parecia se caracterizar como hermeticamente
fechada em, por e para dentro do solipsismo subjetivo-existencialista?
A Filosofia como filosofar está fechada com deus Hermes
Fechar em português pode significar trancar, cerrar, tapar a abertura etc. Mas
pode também em tudo isso significar concluir, levar ao cabo, consumar, perfazer.
Nesse sentido é que dizemos: fechei um negócio, fechei um contrato. E no Brasil a
expressão fechar com pode significar estar a favor ou ao lado de; concordar com. Não
é assim que na mesma direção vai também a acepção da expressão: estou contigo e não
abro?
Fechamento hermético da Filosofia como filosofar não poderia significa então
que a Filosofia esteja declarando a deus Hermes: Estou contigo e não abro? Ou melhor,
que a Filosofia no seu filosofar não é outra coisa do que ser simplesmente, totalmente
inserção no “estar na sua” da divindade de Hermes, no entusiasmo de Hermes? Em que
consiste o estar “na sua”, no próprio divino de Hermes, no seu entusiasmo? Hermes é
deus, uma divindade. E deus na sua divindade é representação da excelência do ser,
concentrada num ente, i.é, em um “em sendo”. Essa concentração muitas vezes na
‘mitologia’ é entendida como personificação, subjetivação ou hipostatização,
gramaticalmente substantivação do adjetivo ou verbo, de tal sorte que Hermes deus se
transforma num sujeito-pessoa, num substantivo que indica um algo substancial, um quê
ocorrente em si, que por sua vez possui qualidades ocorrentes e acrescentadas a ele
10
como seus atributos e ações. Se ‘des-mitologizamos5 o mito dos deuses gregos dessa
personificação e os consideramos na dinâmica do seu ser próprio como divindade, como
o divino, então ‘deus’ ou ‘divindade’ como excelência do ser, concentrada num ente, i.é,
em um “em sendo” não deve mais ser entendida como fixação num ponto como centro,
mas como onipresença cujo centro está cada vez em toda a parte, sem ocupar lugar, mas
cada vez em cada momento de todo o “em sendo”, como plenitude, como alegria, como
vitalidade de ser. O quê, aqui qualificado como concentração do ser, não é um quê
ponto, um núcleo subjacente a propriedades e atuações, mas vigência qual difusão a
modo de claridade ou afinação. A modo de claridade ou afinação é tal que instante,
momento, vigência ali é cada vez instante do instante, momento do momento, vigência
da vigência em crescimento e decrescimento da densidade de liberação da auto-
identidade de cada “em sendo”. Esse modo de ser da vigência, do momento, do instante
difusão no crescimento e decrescimento da liberação da auto-identidade é insinuado
pelas expressões afins entre si como: o próprio, na sua, cada vez seu e expressa a
excelência de ser que personificada e qualificada em suas diversificadas aparições
recebe o nome de deus, deuses ou o divino.
Hermes, diferindo do seu irmão Apolo que é deus do sol meridiano, deus da luz
do dia, é deus da luz sombreada do lusco fusco do despertar da manhã; e é deus da luz
sombria da noite, das trevas incandescentes. O seu elemento, a sua ambiência familiar, o
seu “em casa” é vigência das forças ocultas das profundezas do mistério do ser, do
abismo insondável e inesgotável das possibilidades de ser. Ele é assim o mensageiro, o
arauto dos enigmas dos deuses, é condutor das almas para dentro do desconhecido,
inesperado, e inaudito do mistério da origem e do seu toque. O seu reinado começa a se
sentir em casa lá onde todas as nossas possibilidades do ser e pensar aparentemente
estabelecidas sobre certeza do saber, exatidão do cálculo e controle, sobre firmeza do
querer do poder, colocadas, padronizadas e classificadas, nas suas posições e
pressuposições afundam nas nuvens do não saber, do não poder, do não ser,
impulsionadas na paixão da busca hermética do sentido do ser.
O fechamento hermético! O que, à primeira vista, sob a luz gélida e neutra e ao mesmo
tempo tórrida e causticante da interpelação produtiva do auto-asseguramento de um
cientificismo objetivante exacerbado, aparece como fechamento em, por e para dentro
do solipsismo subjetivo-existencialista da Filosofia como filosofar, não seria antes
5 Desmitologizar aqui não significa desmascarar o mito de suas interpretações defasadas e supersticiosas, não objetivas factuais, mas sim desbloquear o mito, de amarras de perspectivas a ele inadequadas, para deixá-lo ser ele mesmo na sua liberdade própria.
11
tentação e tentativa de uma boa aventurança, na busca da disposição, da prontidão
atenta da espera do inesperado, trabalhada, renovada, buscada tenazmente sempre de
novo pela existência “acadêmica” que de todo fecha com a paixão de Hermes e não
abre?
Mas, e a Filosofia institucionalizada no ensino e na aprendizagem escolar com
todas as suas exigências formais e de conteúdo, monitoradas pela sociedade acadêmico-
científica? Nelas e através delas assumir o empenho e desempenho de nos exercitarmos
em infindas tentativas de resolver os problemas e as dificuldades provenientes de suas
determinadas posições e pressuposições; e nessas tentativas aguçar, ampliar, questionar
a precisão e a cordialidade da busca na mira da única questão do fundo de todas as
pressuposições, para dentro do abismo hermético de uma espera, inteiramente nova e
jovial da possibilidade do ser, seja talvez a tarefa hodierna do Estudo da Filosofia.
Conclusão
O Estudo? A Filosofia? Filosofia é filosofar? O que vale, porém em tudo isso, é
não esquecer o aceno da recordação, a mais necessária dos tempos de urgência:
“Pois odeia
O deus sensato
Crescimento intempestivo”.
Hölderlin, Do motivo dos Titãs (IV, 218)6.
6 Cfr. Heidegger, Martin, Intordução à Metafísica, apresentação e tradução de Emmanuel Carneiro Leão, Rio de Janeiro, Tempo Brasileiro: 1987, p. 227.