estratégias de proteção e valorização das paisagens ...6cieta.org/arquivos-anais/eixo5/kelly...
TRANSCRIPT
http://6cieta.org São Paulo, 8 a 12 de setembro de 2014.ISBN: 978-85-7506-232-6
ESTRATÉGIAS DE PROTEÇÃO E VALORIZAÇÃODAS PAISAGENS CULTURAIS NO BRASIL.
Kelly Cristina de Melo
Departamento de Geografia – FFLCH – USP
INTRODUÇÃO
A categoria Paisagem Cultural conferiu uma nova leitura ao patrimônio,
sobretudo ao natural, buscando uma integração entre o que foi construído pelo homem e,
portanto, informado pela cultura, com os componentes naturais do meio. A Paisagem é
portadora de representações na memória social, na memória coletiva, na identidade e no
patrimônio de um determinado grupo social (CLAVAL, 2001), deste modo têm-se muitas
formas de representação e apreensão desta: política, turística, imobiliária, mercadológica,
etc.
A relação das condições naturais e culturais, dos fatores físicos relacionados aos
históricos, com suas estruturas econômicas e sociais permitiriam a organização e utilização
do espaço, desta forma, a análise integrada dos atributos da natureza e da cultura passa
antes pela formulação e análise do conceito de unidade, que permite uma percepção
importante de que a natureza é, constituída de processos ao invés de objetos e esses
processos relacionados são sempre eventos dentro da esfera da ação de um observador.
Por outro lado, a cultura pode ser constituída por objetos, revelando a experiência do vivido
daquele que se pode observar e do espaço deste observador.
Segundo Almeida (2007), o reconhecimento de alguns sítios como Paisagem
Cultural surge no contexto internacional para responder à crescente complexidade da
sociedade contemporânea e a velocidade cada vez maior dos processos sociais e
econômicos. Essa dinâmica exige não apenas a utilização de um conjunto maior de
instrumentos ambientais, culturais, sociais, urbanísticos e jurídicos para preservar bens,
sítios e manifestações culturais, mas também demandaria um novo perfil de
comportamento de gestores e cidadãos em relação aos mesmos.
4662
http://6cieta.org São Paulo, 8 a 12 de setembro de 2014.ISBN: 978-85-7506-232-6
A criação da categoria de Paisagem Cultural dentro da Lista do Patrimônio
Mundial levou, consequentemente, à remoção dos critérios naturais e culturais que se
referem à interação entre homem e meio ambiente, e atualmente, os critérios que devem
reger a análise da inscrição dos bens na Lista figuram em uma relação única, que envolve
características naturais e culturais, rompendo a visão bipartida de patrimônio que dominou
por muito tempo as análises patrimoniais.
A Paisagem como categoria científica de caráter transdisciplinar, é concebida,
dentro deste enfoque, como um sistema espaço-temporal, complexo e aberto, que se
origina e evolui justamente na interface natureza-sociedade, em um constante estado de
intercâmbio de energia, matéria e informação ou como o definiu a Convenção Europeia da
Paisagem, qualquer parte do território tal como é percebido pelas populações, cujo caráter
resulta de fatores naturais e/ou humanos e de suas inter-relações (CONSELHO DA EUROPA,
2000).
A identidade da Paisagem pode ser dada não somente pela forma, mas também
pela maneira como as populações a apreendem, ou seja, pela ideia de pertencimento,
conforme estabelece a Convenção Europeia de Paisagem (IPHAN, 2009). A Paisagem não é
somente o visível, ela incorpora valores humanos e pode ser interpretada a partir de seu
conteúdo simbólico ou da relação íntima e afetiva que os grupos sociais estabelecem com os
lugares onde a vida humana se reproduz (RIBEIRO, 2007).
A criação da categoria Paisagem Cultural dentro da Lista do Patrimônio Mundial,
sob supervisão da UNESCO, na década de 1990, levou a construção de novos critérios que
regem a análise da inscrição dos bens na lista, abordando-os em uma relação única, que
envolve características naturais e culturais, rompendo a visão bipartida de patrimônio que
dominou por muito tempo as análises patrimoniais.
No Brasil, as paisagens naturais consideradas relevantes até então tinham o
instrumento da proteção vinculado ao tombamento, passando por um processo técnico,
legal e administrativo até ser inserido no Livro de Tombo Arqueológico, Etnográfico e
Paisagístico. Com o advento da categoria Paisagem Cultural, inclusive pela Chancela da
Paisagem Cultural Brasileira, publicada em 30 de abril de 2009, sob a Portaria IPHAN nº 127,
amplia-se a possibilidade de proteção e valorização destas paisagens reconhecidas por suas
peculiaridades de integração entre o meio natural e cultural.
Os grupos humanos manejam uma ambiguidade estrutural para construir suas
4663
http://6cieta.org São Paulo, 8 a 12 de setembro de 2014.ISBN: 978-85-7506-232-6
identidades, suas economias e seus processos de transformação política, porque nela reside
grande parte das expectativas dos grupos, numa tentativa de assegurar sua sobrevivência.
Por identidade cultural, dentro desta perspectiva, entende-se o processo configurativo de
práticas e manifestações culturais, presentes nos grupos humanos, que procuram uma
cristalização de transcendência ligada à sua permanência e reprodução e é, na Paisagem,
que estes aspectos encontram sua materialidade, através de sua
apropriação/transformação.
A atribuição do adjetivo “cultural” à Paisagem pode parecer uma redundância
uma vez que admitimos que qualquer Paisagem só tem, de fato, um significado quando há
intervenção humana, seja na alteração da dinâmica do meio seja na observação e na
classificação como tal. Assim, a construção do conceito de Paisagem Cultural, segundo
Ribeiro (2007), seria fruto do agenciamento do homem sobre o seu espaço, o cultural
atribuiria valor à Paisagem permitindo que esta seja adotada como categoria de
preservação.
PAISAGENS E PATRIMÔNIOS
O significado do patrimônio está relacionado à herança de bens, ao legado,
portanto, o patrimônio histórico, cultural e paisagístico de uma dada região apresenta-se
originalmente como expressão concreta e espacial dos ecossistemas que o compunham e
se modificaram ao longo do tempo. A Paisagem herdada, apesar de incorporar a história da
sociedade que a transformou, encontra-se modificada nas suas características originais.
Esses arranjos permanecem no imaginário dos povos e adquirem um valor que é da
conjugação dos usos a partir de potencialidades da Paisagem. Essa situação reforça a
necessidade de utilizar o conceito de Paisagem como forma de buscar a preservação e
valorização do espaço contínuo, detentor de símbolos e significados próprios. A noção de
memória e da identidade permite incluir tanto o cultural quanto o natural na abordagem do
patrimônio, visando a preservação dos símbolos, dos significados, dos monumentos e da
biodiversidade.
A Convenção da UNESCO sobre a Proteção do Patrimônio Mundial, Cultural e
Natural, de 1972, ressalta o interesse de bens do patrimônio cultural e natural e a
necessidade de sua preservação enquanto componentes do patrimônio mundial da
humanidade. A Comissão Mundial de Cultura e Desenvolvimento da UNESCO, em relatório
de 1996, ao distinguir a importância da cultura como instrumento do processo de
4664
http://6cieta.org São Paulo, 8 a 12 de setembro de 2014.ISBN: 978-85-7506-232-6
desenvolvimento, privilegia a relação intrínseca cultura-natureza, assim a Paisagem começa
a afirmar-se dentro do discurso internacional da valorização dos patrimônios numa visão
integradora.
A interação ente o cultural e o natural apresenta também importância prática e
significativa na construção da valorização do patrimônio, seja da humanidade, da
comunidade, seja natural, cultural ou combinado, atribuindo-lhe novo papel no cenário
contemporâneo. Na dimensão da Paisagem o ambiente é acrescido das marcas da cultura,
dos modos de ser, viver e trabalhar que representam fatos do ajustamento entre o natural e
o cultural. Em sua dimensão cultural, o patrimônio relaciona-se com o ambiente, base de
atividades, que o influencia e o condiciona; o patrimônio requer um ambiente de qualidade
para poder existir e subsistir, ser valorizado e representativo dos saberes, práticas, hábitos e
modos de fazer de um determinado grupo em recortes do tempo histórico.
No Brasil, segundo Lanna (2004), a temática do ambiente natural está presente
desde as primeiras discussões acerca do patrimônio cultural, realizadas na década de 1930 e
que levaram a criação do Serviço do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (SPHAN). A
década de 1980 marca uma inflexão nestas reflexões, especificamente em São Paulo, onde o
Conselho de Defesa do Patrimônio Histórico, Arqueológico, Artístico e Turístico
(CONDEPHAAT) participava ativamente das alterações dos critérios de valorização dos bens
culturais e alguns pedidos de tombamento começavam a apresentar argumentos referentes
à memoria de um grupo social ou à memoria local e também à importância de manutenção
das condições ambientais. É neste contexto que também a paisagem passa figurar nos
tombamentos paulistas.
A figura do Tombamento de áreas naturais passa a ser adotada como proteção
ao meio ambiente e por extensão do patrimônio cultural nele contido. A relação entre
patrimônio cultural e natural apontava para as alterações dos conteúdos da noção de bem
cultural e afirmava que a defesa do patrimônio, sua proteção e preservação tem na essência
um só e mesmo ponto de partida, dependendo da relação que a sociedade com ele
estabelece e quais são os seus significados. A reflexão sobre o patrimônio, sob o enfoque
ambiental, implica a incorporação da dimensão da cultura entendida como duplo registro de
invenção coletiva e temporal de práticas, símbolos e ideias que marcam a ruptura do
humano em face das coisas naturais e do trabalho como o movimento pelo qual os
humanos são capazes de criar o novo (SCIFONI, 2006).
A partir do final do século XIX e inicio do século XX, a figura do monumento surge
4665
http://6cieta.org São Paulo, 8 a 12 de setembro de 2014.ISBN: 978-85-7506-232-6
como uma adjetivação para além do histórico, com o monumento natural inserido dentro
do universo das questões culturais e assim aparece nas primeiras legislações federais que
tratavam do assunto. Segundo Scifoni (2006) países como Suíça, Japão, França e Brasil se
destacaram no assunto e nos EUA e alguns países europeus já existia legislação neste
sentido, de proteção da natureza de maneira indissociável ao monumento histórico.
A compreensão da natureza como parte do legado cultural a ser deixado às
futuras gerações foi produto da evolução do próprio conceito de patrimônio cultural,
processo centrado em muitos casos, ainda, no bem edificado. O patrimônio natural não
representa, assim, apenas os testemunhos de uma vegetação nativa, intocada ou
ecossistemas pouco transformados pelo homem; na medida em que faz parte da memória
social, ele incorpora paisagens que são objeto da ação cultural pela qual a vida humana se
produz e se reproduz e principalmente, por destacar uma Paisagem que sofreu intensas
modificações, se atribui um significado de sociabilidade e pertencimento àqueles que a
modificaram.
TOMBAMENTO E PAISAGEM
O Tombamento, figura jurídica concebida originalmente para a proteção de bens
imóveis (igrejas, esculturas e casarões coloniais, etc) mantêm o padrão definido em 1937 por
Mário de Andrade, trata-se de um ato administrativo. Na década de 1980 ele passa a ser
aplicado também em áreas naturais e bairros urbanos considerados pouco protegidos por
órgãos ambientais. Um marco importante neste contexto foi o tombamento da Serra do Mar
no Estado de São Paulo, instituído na década de 1980 para fazer frente a urbanização
acelerada da faixa litorânea, provocada pela expansão do turismo assentado principalmente
na constituição da segunda residência e também pelas ameaças a grandes projetos viários
de interligação entre o planalto e as regiões litorâneas. O Tombamento de áreas naturais
como figura jurídica de proteção se desenvolveu diante das discussões sobre patrimônio,
preservação e paisagem.
No caso da Serra do Mar, segundo Scifoni (2006) o processo incidiu em uma área
de aproximadamente 1,3 milhão de hectares, englobando parcelas de território de 44
municípios paulistas. Em outros estados como Paraná, Rio de Janeiro e Espirito Santo a
mesma ação se reproduziu. A iniciativa de proteção de uma paisagem tão extensa foi um
fato sem precedentes em todo o território nacional. Tem-se assim um extenso território
tombado desde 1985 (Resolução nº40-CONDEPHAAT) e submetido a determinadas normas,
4666
http://6cieta.org São Paulo, 8 a 12 de setembro de 2014.ISBN: 978-85-7506-232-6
o que pode ser considerado um fator de restrição à dinâmica territorial dos municípios
envolvidos. O papel do tombamento impôs novas diretrizes para a ocupação da terra,
restringindo as atividades por um lado, e, fomentando novos usos de outro, podendo ser
vetor, ou não, de uma compatibilização de políticas territoriais regionais e locais (SCIFONI,
2006).
Em São Paulo a Secretaria de Cultura começa a estudar o tombamento de áreas
naturais, em meados de 1970, Aziz Ab’Saber formulou a argumentação em relação a
necessidade do tombamento da Serra do Mar, em toda a sua extensão no território paulista.
Em 1982 o CONDEPHAAT abre oficialmente o processo de tombamento da Serra do Mar,
mesmo sem concluir a delimitação da área a ser preservada. Em 1984 através de Decreto, o
governo do estado de São Paulo declara a Área de Proteção Ambiental – APA da Serra do
Mar, completando com os parques já existentes uma faixa da serra com delimitação de
preservação contínua, da divisa com o Rio de Janeiro a divisa do Paraná.
Em 1985, o novo presidente do CONDEPHAAT, Modesto Carvalhosa, define o
tombamento como prioritário, dando sequência a delimitação espacial para o tombamento,
incluindo morros isolados do litoral, também vulneráveis aos escorregamentos, as bacias
hidrográficas que drenam para a serra, para garantir a qualidade das águas que adentram
os parques e reservas da região, são incluídas as ilhas do litoral, pela importância e
fragilidade de seus ecossistemas. Em maio de 1985, é publicado o edital de tombamento da
serra, em 06 de junho ela é oficialmente tombada (Costa, 1985).
Uma consulta ao Livro de Tombo no qual se registram os monumentos naturais,
os sítios e as paisagens declaradas como patrimônio no país, revela um pequeno número de
bens naturais tombados, isto devido a limitação da legislação de tombamento, que só
contempla bens considerados excepcionais, demonstrando que mesmo com as novas
formas de abordagem propostas, a divisão do natural e do cultural, a necessidade da
monumentalidade, ainda permanece no processo de reconhecimento das paisagens como
representantes de um patrimônio coletivo.
O tombamento revela uma parcela das bases conceituais sobre as quais foi
estabelecida uma estreita relação entre patrimônio cultural, enquanto identidade cultural e
memoria social, e, Paisagem, trata-se de um atributo que se dá ao bem cultural escolhido,
separando-o dos demais, para que ele garanta a perpetuação da memoria (LEMOS, 2006).
O processo de tombamento tem por objeto a Paisagem em si, considerada no
4667
http://6cieta.org São Paulo, 8 a 12 de setembro de 2014.ISBN: 978-85-7506-232-6
tempo presente, enquanto resultado material dos processos históricos ocorridos no lugar,
desta forma ela se configura enquanto artefato e expressão característica da cultura. Além
do simples recorte cenográfico, a Paisagem constitui-se em elo fundamental entre o espaço
e a memoria social, dando ao tombamento o papel mais de congelamento formal, produto
para apropriação turística do que um processo de real recuperação e preservação da
memoria social.
O tombamento de um patrimônio natural exige qualificações muito especiais,
em termos de coleta de conhecimentos, organização de estratégias, diretrizes e ações
culturais, além disso, os espaços mais indicados para tombamento situam-se próximos de
áreas altamente humanizadas, sujeitas a uma forte especulação imobiliária, justamente
como forma de protegê-las.
Em relação aos bens tombados hoje no país, em nível federal, sob a tutela do
IPHAN, temos mais de 45 mil bens imóveis inseridos em 97 núcleos históricos protegidos
(IPHAN, 2012). Nesta contagem apresentada pelo IPHAN, recentemente foi incorporada a
figura da Paisagem Cultural, que por meio de uma Chancela passa a compor o quadro dos
bens sob proteção/supervisão do Instituto. A estrutura de apresentação dos bens culturais
distribuídos pelo Brasil manteve-se a partir dos diferentes estados da Federação, elencados
alfabeticamente, existem as indicações dos municípios onde se localizam os bens culturais
protegidos pelo IPHAN através do tombamento.
TODA PAISAGEM É CULTURAL
A categoria Paisagem Cultural só se efetivaria no campo da conservação a partir
de 1992, em âmbito internacional, mesmo com as discussões anteriormente surgidas sobre
esse tema. O desenvolvimento dessa categoria só permitiria a conservação efetiva das
Paisagens Culturais do Patrimônio Mundial a partir das revisões e da publicação, pela
UNESCO, das “Orientações para a implementação da Convenção do Patrimônio Mundial”,
em 1992. Nesta reunião de especialistas do mundo inteiro, que aconteceu na França,
reconheceu-se a necessidade do reconhecimento dos valores associativos das paisagens, da
importância da proteção da diversidade biológica através da diversidade cultural e das
paisagens culturais.
A inclusão das Paisagens Culturais na Lista do Patrimônio Mundial se justificaria
pelo reconhecimento da interação entre as pessoas e o ambiente natural. Na Figura 1 a
seguir são apresentados os critérios de enquadramento de uma Paisagem Cultural:
4668
http://6cieta.org São Paulo, 8 a 12 de setembro de 2014.ISBN: 978-85-7506-232-6
Figura 1 – Critérios de enquadramento das paisagens culturais.
Fonte: www.unesco.org
Os limites entre a Paisagem Natural e a Paisagem resultante da ação humana,
ou Cultural, tornam-se cada vez menos evidentes, paisagens tidas como produto da
natureza depois de determinados estudos revelam-se consequência de ações de grupos
históricas de humanos. A Paisagem é testemunho e também preserva dados de épocas
passadas, sob os pontos de vista geográficos, geológicos, paleontológicos, arqueológicos e
históricos.
Em algumas situações, a Paisagem é o único testemunho e meio de transmissão
de uma cultura. Neste sentido, corroboramos o posicionamento de Ab’Saber (2003) em
relação ao papel da Paisagem como uma herança em todo o sentido da palavra: herança de
processos fisiográficos e biológicos e, também, patrimônio coletivo dos povos que
historicamente as herdaram como território de atuação de suas comunidades. Sob a mesma
abordagem, Luchiari (2007), afirma que a natureza, tornada patrimônio, herança e memória
é materialidade que se expressa na Paisagem. Podemos pensar na Paisagem como um
patrimônio, unificador de uma herança coletiva proclamada pelas formas e usos atribuídos
4669
http://6cieta.org São Paulo, 8 a 12 de setembro de 2014.ISBN: 978-85-7506-232-6
aos lugares, sobretudo quando relacionados ao sentimento de pertencimento e afetividade
daqueles que com ela se relacionam.
Pensar na conservação da natureza de forma mais abrangente, com foco nas
paisagens e na sua patrimonialização envolve saberes, interesses e valores advindos das
esferas politicas, econômicas e socioculturais dos diversos grupos humanos que habitam o
planeta. A natureza, ou de forma mais abrangente, a Paisagem, como patrimônio comum da
humanidade deve ser legitimada por um estatuto jurídico, fundamentado pela necessidade
de preservação e conservação não só dos fatores físicos e biológicos do meio, mas,
sobretudo das diversas maneiras pelas quais estes fatores foram utilizados e modificados
durante anos e anos, resultando em alguns casos em processos de ampla conservação e
manutenção da biodiversidade.
A explicação cultural da Paisagem busca sua substância na relação entre
objetividade e subjetividade, materialidade e representação, Paisagem e imaginário coletivo.
De acordo com Berque “a paisagem é uma marca, pois expressa uma civilização, mas é
também uma matriz porque participa dos esquemas de percepção, de concepção e de ação
– ou seja, da cultura (...)” (Berque, 1998, p.84).
Sua função como marca a submete a inúmeros processos analíticos, sendo que
alguns olhares disciplinares ainda a tornam apenas uma marca, como é o caso da descrição
de vertentes em uma bacia hidrográfica, do inventário dos tipos de solos, a objetivação
analítica do tipo positivista a qual a Paisagem está exposta se dá justamente pelo seu
caráter concreto, ou seja, passível de ser descrita, classificada, quantificada sem elaborações
subjetivas.
Como matriz ela seria a expressão dinâmica da cultura, portadora de significado
social e cultural que não se revela na análise estrita das formas, que transcende os aspectos
fisiográficos e aproxima o olhar, a percepção, a afetividade e o uso do trabalho. Sua
interpretação a partir de uma serie de paisagens que se sucedem no tempo nos revela o
tempo passado, o presente e as principais determinações politicas, econômicas, religiosas,
culturais, naturais, tecnológicas que azeitaram a estrutura sócio espacial de cada tempo
histórico (BERQUE, 1998). O autor ainda chama a atenção para o fato de que não seria
suficiente revelar o processo de produção da Paisagem, no sentido de processo histórico, é
necessário que se leve em conta os princípios de percepção e atribuição de valor de caráter
estético, moral ou politico, tanto em relação ao seu passado quanto em relação ao presente.
4670
http://6cieta.org São Paulo, 8 a 12 de setembro de 2014.ISBN: 978-85-7506-232-6
A introdução de variáveis como a cultura e, posteriormente, o tempo,
representam avanços na compreensão da Paisagem, na medida em que toda mudança
reflete o momento vivenciado por um determinado grupo social, é possível investigar a
composição da Paisagem a partir dos marcos históricos, reconhecer a importância dos
processos que a consolidaram e, fazer assim, a ligação entre o espaço e o tempo
(COSGROVE, 1998).
Como influência internacional, o Brasil tornou-se signatário da Convenção para a
Proteção do Patrimônio Mundial Cultural e Natural de 1972, assumindo o compromisso de
preservar os bens inscritos na lista do Patrimônio Mundial. Em 1992 houve a
institucionalização do conceito e reconhecimento das Paisagens Culturais e os critérios para
sua inclusão na lista de patrimônio mundial. Decorridos 22 anos, a UNESCO conta com o
reconhecimento de 46 bens como Paisagem Cultural. Destes, 22 estão na Europa, 06 na
África, 04 na América do Sul e os demais na Ásia e Oceania.
No caso especifico das Paisagens Culturais, o Brasil passou a contar com o
recente instrumento da Chancela, definida pelo IPHAN, em 2009 . Entretanto, há duas
formas de conservação em uso até então, Paisagens com funções preponderantemente
ecológicas são protegidas pela legislação ambiental, sob a atribuição dos órgãos ambientais;
e, Paisagens de valor preponderantemente histórico e cultural, adotam a mesma legislação
utilizada na proteção dos bens móveis edificados e de centros históricos urbanos.
O objetivo do instrumento da Chancela da Paisagem Cultural seria o de conferir
um selo de reconhecimento de porções singulares dos territórios onde a inter-relação entre
a cultura humana e o ambiente natural conferem à Paisagem uma identidade singular. O
interesse é definir normas para uso e gestão da Paisagem tendo em vista sua conservação,
cuidando para que sua qualidade seja sempre melhorada, o mecanismo funciona de
maneira diferenciada ao instrumento do tombamento.
De acordo com a instauração do processo de Chancela da Paisagem Cultural
toda pessoa física ou jurídica poderá provocar, mediante requerimento, a instauração deste
tipo de processo. O requerimento para a Chancela com a documentação adequada deve ser
encaminhado à Superintendência Regional do IPHAN ou ao gabinete do ministro da Cultura,
daí ocorrem procedimentos internos para a instrução do processo administrativo,
celebração de um pacto de gestão da Paisagem Cultural e a publicação no Diário Oficial.
As iniciativas de preservação relativas ao patrimônio paisagístico, de forma geral,
4671
http://6cieta.org São Paulo, 8 a 12 de setembro de 2014.ISBN: 978-85-7506-232-6
buscam uma correspondência e uma coerência entre o significado histórico da Paisagem e
sua respectiva imagem, guardando uma relação clara entre processo e produto; por meio
do exame do grau de convergência destes dois fatores é que se podem obter parâmetros
para avaliar a eficácia de quaisquer medidas de preservação. Deve-se considerar o conceito
de Paisagem sob estes dois enfoques simultâneos: imagem e processo histórico.
A Chancela da Paisagem Cultural Brasileira é um instrumento novo de
preservação do patrimônio cultural, diferente do tombamento, segundo a Portaria IPHAN
127/09, que a instituiu, a paisagem cultural trata-se de uma porção peculiar do território
nacional, representativa do processo de interação do homem com o meio natural, à qual a
vida e a ciência humana imprimiram marcas ou atribuíram valores. Em termos legais, o
significado de Chancela está representado pelo ato de chancelar, uma maneira de atribuir
um selo, um sinal gravado que seja representativo de uma assinatura oficial.
O Conselho Consultivo do Patrimônio Cultural aprovou em 03 de maio de 2011 a
primeira chancela de Paisagem Cultural Brasileira, a proposta de proteção encaminhou o
tombamento de 61 bens referentes ao processo de imigração em Santa Catarina, que entre
meados do século XIX e do século XX, trouxe imigrantes especialmente da Alemanha, Itália,
Polônia e Ucrânia, além do reconhecimento, como Paisagem Cultural Brasileira, dos núcleos
rurais de Testo Alto, em Pomerode, e Rio da Luz, em Jaraguá do Sul, no estado de Santa
Catarina.
A decisão de chancelar a primeira Paisagem Cultural Brasileira foi vista como um
marco para as políticas públicas de patrimônio cultural: desde a sua instituição foi a primeira
vez que se utilizou o instrumento da chancela. Em seus artigos 4º e 5º a Chancela da
Paisagem Cultural Brasileira trata do estabelecimento de pacto que pode envolver o poder
público, a sociedade civil e a iniciativa privada, visando a gestão compartilhada da porção do
território nacional assim reconhecida; o pacto convencionado para proteção da Paisagem
Cultural Brasileira chancelada poderá ser integrado de Plano de Gestão a ser acordado
entre as diversas entidades, órgãos e agentes públicos e privados envolvidos, o qual será
acompanhado pelo IPHAN, o principal articulador de ações de valorização, planejamento e
gestão desse tipo de patrimônio.
A Paisagem chancelada pode usufruir do título desde que mantenha as
características que a fizeram merecer esta classificação, sendo, por isso necessário
desenvolver um Plano de Gestão, onde devem estar planejadas todas as ações voltadas à
preservação dos valores que levaram determinado lugar a ser reconhecido como uma
4672
http://6cieta.org São Paulo, 8 a 12 de setembro de 2014.ISBN: 978-85-7506-232-6
Paisagem Cultural Brasileira. Caso os integrantes não cumpram com as determinações, e se
as características da Paisagem forem degradadas ou perdidas, o órgão responsável, no caso
o IPHAN, tem a função de cancelar a chancela.
Não existe uma lista de bens chancelados como Paisagem Cultural Brasileira,
embora vários sítios candidatos já se encontrem em processo de estudo (parte da cidade do
Rio de Janeiro, Pantanal Mato-grossense, considerado Patrimônio Nacional e Patrimônio
Mundial pela UNESCO, o Vale do Ribeira em São Paulo e o rio São Francisco). Na lista de
bens materiais com reconhecimento de Patrimônio Mundial no Brasil, sob a categoria da
Paisagem Cultural, temos um setor da cidade do Rio de Janeiro, sob o titulo “Paisagens
cariocas entre a montanha e o mar”, reconhecido pela UNESCO em 2012, entretanto, esta
paisagem não recebeu ainda a chancela do IPHAN.
A importância da proteção ao patrimônio não está apenas na consideração
material e na valorização econômica dos recursos naturais, mas na relevância cultural dos
processos adaptativos dos grupos sociais ao seu meio ambiente.
Ao olhar a Paisagem por estes aspectos processuais evolutivos e culturais e por
suas vinculações com os processos identitários, de reconhecimento e sociabilidade, ela
passa a ser também vinculada a construção imaginária da nação, figurando, assim, entre os
componentes do Patrimônio Cultural. Tudo o que é cultural, tem como fundamento o
natural, e tudo o que é natural, por sua vez, somente pode ser percebido pelo homem por
meio do que é classificado obra humana, ou como sua cultura.
REFERÊNCIAS
AB'SABER, A.N. O tombamento da Serra do Mar noestado de São Paulo. Revista do PatrimônioHistórico e Artístico Nacional, Rio de Janeiro, n.21, p. 7-20, 1986.
AB'SABER, A.N. Os domínios de natureza no Brasil:potencialidades paisagísticas. São Paulo. AteliêEditora. 2003.
ANDRADE, A.L.D. O tombamento da preservaçãodas áreas naturais. Revista do PatrimônioHistórico e Artístico Nacional, Brasília, p. 41-44,1984.
ALMEIDA, L.F. O Futuro é a Paisagem. In.:Jornal/Revista O Globo – 10/06/2007.
Disponível emhttp://www.cultura.gov.br/site/2007/06/11/opiniao-o-futuro-e-a-paisagem. Acesso em20.04.14.
BERQUE, A. Paisagem-marca, Paisagem-matriz.Elementos da problemática para umageografia cultural. In: Paisagem, Tempo eCultura. Org. Corrêa, R.L., Rosendhal, Z. Rio deJaneiro. Ed. UERJ, 1998.
CLAVAL, P. As abordagens da Geografia Cultural.In: Explorações geográficas. Org: Castro, et ali,Rio de Janeiro; Bertrand do Brasil, 1997.
COSGROVE, D. A geografia está em toda parte. In:
4673
http://6cieta.org São Paulo, 8 a 12 de setembro de 2014.ISBN: 978-85-7506-232-6
Paisagem, Tempo e Cultura. Org. Corrêa, R.L.,Rosendhal, Z. Rio de Janeiro. Ed. UERJ, 1998.
COSTA, J.P.O. Patrimônio cultural e estatuto detombamento : reflexões sobre a estratégia depreservação. Revista do Patrimônio Histórico eArtístico Nacional, n.21, p.21-5, 1985.
LANNA, A.L.D. Os desafios do patrimônioambiental como bem cultural no âmbito daUSP. In: LANNA, A.L.D. Meio Ambiente:Patrimônio Cultural da USP. São Paulo,EDUSP/Imprensa Oficial. 2004.
LEMOS, C. O que é patrimônio histórico. São Paulo.Ed. Brasiliense. 5a edição. 2006.
LEONHARDT, R.R. Percursos da leitura entrehomem e cultura. Guarapuava: Unicentro,200p. 2008.
MENESES, U.B. O patrimônio cultural entre opúblico e o privado. In: O direito à memória.São Paulo: DPH/Sec. Municipal da Cultura deSão Paulo, 1992.
NOBRE, P.J.L. Patrimônio-Paisagem: função socialda cidade. Estudos e pesquisas em psicologia,Rio de Janeiro. UERJ, RJ, Ano 7, nº 2. 2007.
LUCHIARI, M.T.D. Turismo e patrimônio natural nouso do território. In: Luchiari, Bruhns e Serrano(org). Patrimônio, Natureza e Cultural. Editora
Papirus, Campinas, São Paulo. 2007.
REISEWITZ, L. Direito ambiental e patrimôniocultural: direito à preservação da memória,ação e identidade do povo brasileiro. 1ª edição.São Paulo, Editora Juarez de Oliveira, 2004.
RIBEIRO, R. W. Paisagem cultural e patrimônio.Brasília: Iphan, 2007.
RODRIGUES, M. Imagens do passado: a instituiçãodo patrimônio em São Paulo 1969-1987. SãoPaulo: Imprensa Oficial do Estado, 2000.
SAHAR, C. L. (org). A Paisagem como patrimôniocultural. Campos Gerais e Matas com Araucáriano Paraná. Ponta Grossa. Editora UEPG. 221p.2010.
SANTOS, M. Metamorfoses do espaço habitado.São Paulo; Hucitec, 1997.
SAUER, C. A morfologia da Paisagem. In: Paisagem,Tempo e Cultura. Org. Corrêa, R.L., Rosendhal,Z. Rio de Janeiro. Ed. UERJ, 1998.
SCIFONI, S. A construção do patrimônio natural.São Paulo, FFLCH-USP, Tese de Doutorado.2006.
ZANIRATO, S.H.; RIBEIRO, W.C. Patrimônio cultural:a percepção da natureza como um bem nãorenovável. Revista Brasileira de História. SãoPaulo, v. 26, nº 51, p. 251-262. 2006
4674
http://6cieta.org São Paulo, 8 a 12 de setembro de 2014.ISBN: 978-85-7506-232-6
ESTRATÉGIAS DE PROTEÇÃO E VALORIZAÇÃO DAS PAISAGENS CULTURAIS NO BRASIL.
EIXO 5 – Meio ambiente, recursos e ordenamento territorial
RESUMO
A categoria Paisagem Cultural conferiu uma nova leitura ao patrimônio, buscando uma leitura
integrada daquilo que foi construído pelo homem com os componentes naturais do meio. A
pesquisa desenvolvida buscou abordar os instrumentos de proteção das paisagens culturais,
avaliando a figura consagrada do Tombamento e a mais recente Chancela da Paisagem Cultural. A
pesquisa baseou-se na avaliação de documentos vinculados ao processo de tombamento da
Serra do Mar em São Paulo e na discussão sobre os novos instrumentos de proteção da
paisagem, com foco no instrumento da Chancela e seu significado. O Tombamento é o mais antigo
instrumento de proteção do patrimônio cultural brasileiro, foi instituído, em nível federal, em 1937.
No processo de Tombamento, a abordagem sobre a Paisagem se dá pela análise de aspectos
relacionados ao uso e ocupação da terra em três momentos distintos - antes do inicio do processo
de tombamento, no inicio do processo de tombamento e no momento atual, ou posterior ao
tombamento. Na busca de novos instrumentos de gestão da paisagem, recentemente foi
incorporada a figura da Chancela da Paisagem Cultural Brasileira, instituída pela Portaria 127 de
30/04/2009 do Instituto de Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (IPHAN). A Chancela da
Paisagem Cultural Brasileira, diferente do tombamento, pois trata de setores peculiares do
território que sejam representativos do processo de interação do homem com o meio natural. Em
seus artigos 4º e 5º a Chancela trata do estabelecimento de um pacto que envolve o poder
público, a sociedade civil e a iniciativa privada, visando a gestão compartilhada da porção do
território nacional assim reconhecida; a paisagem chancelada pode usufruir do título desde que
mantenha as características que a fizeram merecer esta classificação, sendo, por isso, necessário
desenvolver um Plano de Gestão, onde devem estar planejadas todas as ações voltadas à
preservação dos valores que levaram determinado lugar a ser reconhecido como uma Paisagem
Cultural Brasileira.
Palavras-chave: paisagem cultural; ordenamento; gestão do território.
4675