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  • 8/17/2019 Estratégias Da Finitude e a Lógica Da Representação Na Teoria Política de Carl Schmitt - Deyvison Lima

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    Estratégias da finitude e a lógica da representação na teoria política de Carl

    Schmitt

    Resumo Neste artigo investigo a relação entre racionalidade e ação política na obra de Carl Schmitt. Proponho que asanálises schmittianas sugerem uma solução ao paradoxo transcendência–imanência através do argumento dafinitude em teoria política. A ação política é analisada através da distinção entre político e política como crítica àmetafísica e da compreensão do conceito do político como antagonismo e diferença. A conclusão da pesquisademonstra a dissolução da semântica política moderna, inclusive do conceito de representação. Palavras -chaves: ação política; violência; norma; representação; antagonismo; político.

    AbstractIn this paper I examine the connection between rationality and political action in the work of Carl Schmitt. I propose that Schmittian reflections suggest a solution to the paradox transcendence-immanence from theargument of finitude in political theory. The political action is examined through the distinction between politicaland politics and understanding of concept of the political as antagonism and difference. The conclusion of the

    research shows the dissolution of semantics modern politics including the concept of representation. Key - words: political action; violence; norm; representation; antagonism; political.

    Introdução

    As dificuldades encontradas ao tratar da relação entre poder e violência são asmesmas referentes ao lugar da racionalidade na ação política. A questão é a seguinte: comodistinguir entre violência e autoridade? Nesta análise, propõe-se uma interpretação da teoriatardo-weimariana de Carl Schmitt como uma teoria finitista, isto é, afirma-se que as condiçõesde justificação da ação não são exteriores à própria ação, pois assumem uma validadein re erejeitam a estrutura política baseada na distinção metafísica entre ser e aparecer. Tanto a permanência ou estabilização (unidade) quanto a separação ou verticalização (ordem) do poder são criticadas como uma produção teológico- política a partir da separação entreimanência e transcendência. Para demonstrar esta leitura, apresentam-se algumas nuances dasolução schmittiana ao problema da legitimidade através da passagem do seu peculiarnormativismo de 1914 no texto Der Wert des Staates und die Bedeutung des Einzelnen (Ovalor do Estado e o significado do indivíduo) para o decisionismo ou, mais especificamente,

    para o realismo fraco expresso nos textos Die Diktatur (A ditadura) de 1921 e PolitischeTheologie (Teologia Política) de 1922. Neste ponto, o conceito a ser considerado é o demediação ou representação, pressuposto metafísico que retira a autonomia do político eassegura a articulação entre racionalidade e ação através da cisão entre transcendência eimanência. Após isso, demonstra-se a compreensão do político como crítica à metafísica edesconstrução da lógica da representação e da transcendência da política moderna, bem comoa relação entre político e política e a tese da diferença como antagonismo em Der Begriff des

    Politischen (O conceito do político) de 1927-1932. Os termos “normativismo”, “realismofraco” e “realismo forte” são utilizados para apontar os deslocamentos na obra de Schmitt que

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    se atribui à intensificação do argumento finitista. A estratégia finitista na relação entre ação política e racionalidade é uma chave de leitura que evita os equívocos na interpretação doautor e permite uma releitura do seu pensamento.

    (I) A tese do Der Wert des Staates pode ser exposta na afirmação de que “o direito como

    norma pura possui valor independentemente de qualquer justificação fática” (SCHMITT,2004a, p. 10). Nesta perspectiva, há o primado do direito sobre o Estado, pois este ao semanifestar na esfera fática do poder necessita qualificar -se como legítimo a partir dareferência àquele, alcançando sua justificação ( Rechtfertigung ) (SCHMITT, 2004a, p. 57).Desde o texto de 1910Über Schuld und Schuldarten (Sobre a culpa e tipos de culpa), onde

    afirma que a culpa na sua concretude não se submete à dedução normativa, e do texto de 1912Gesetz und Urteil (Lei e Julgamento), no qual sustenta que o problema central do direito é arelação entre norma e caso concreto, cuja ligação não é estabelecida de imediato, Schmitt seaproxima da antítese kantiana entreSein e Sollen através da reflexão sobre o significado dadecisão judiciária como uma superação dialética no ato da práxis jurídica. Entretanto, oargumento da Rechtspraxis contido no escrito de 1910 passa ao centro em Der Wert desStaates sob a denominação da Rechtsverwirklichung (normas de realização do direito) para

    demonstrar a articulação entre direito e Estado. A partir disso, Schmitt desenvolve a distinçãoentre Rechtsnorm (normas de direito) e Rechtsverwirklichung com o intuito de umalegitimação racional do poder na qual o Estado como instância concreta possui a tarefa decaptar a ideia de direito e torná-la efetiva na realidade do mundo empírico. Na série deelementos proposta em Der Wert des Staates – Direito, Estado e Indivíduo – omedium estatalarticula o ideal jurídico e o empírico individual , porém o autor ainda sustenta a tese do primado do direito sobre o Estado ao definir esta instância – isto é, justificá-lo – se e somente

    se estiver em relação com a norma pura que o precede. Desse modo, logo no ponto de partida,Schmitt assume as problemáticas teses e dualismos neokantianos do início do século XX,inclusive ao afirmar, por exemplo, que “entre cada concreto e cada abstrato há um abismoinsuperável” (SCHMITT, 2004a, p. 80), entre norma pura e realização da norma, entre direitoe poder ou transcendência e imanência: esta é a cisão que estrutura a ordem política moderna, pois mesmo como mediação realizadora do direito, o Estado seria uma mera organização daforça que carecea priori da autorização (validade) da esfera jurídica. Consequentemente, nafase pré-weimariana, há uma tese lógico-normativa segundo a qual não há Estado que não seconfigure como Estado de direito, pois “ao conceito de Estado pertence o conceito de poder

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    (die Macht ), assim como apenas o fenômeno empírico (empirische Erscheinung ) pode vir acomprovar tal poder (…) a autoridade do Estado reside, porém, não no poder, mas sim nodireito, que o traz e o realiza ( Ausführung )” (SCHMITT, 2004a, p. 71). Assim, por conta da

    necessidade de adequação entre estas instâncias, a tarefa do poder de realizar a norma dedireito consiste em uma representação, mesmo que a forma de direito ideal nunca sejarealizada por completo e, por isso mesmo, haja uma impossibilidade, em última instância, darealização da justiça. A tese da separação entre a universalidade da norma e a particularidadeda realidade empírica expõe um meio, o Estado, que põe em marcha a secularização nosentido de uma mediação entre um elemento transcendente e o saeculum ao operar aintrodução da ideia no mundo, isto é, a estrutura metafísica entre ser e aparecer que serve de

    paradigma formal da legitimação da ação política. Este é o teorema da secularização paraSchmitt: busca-se efetivar a forma ou ideia de direito. Por meio desta função legitimadora daordem, o positivismo é rejeitado como mera autoafirmação dos fatos, da subjetividade ou doarbítrio, ou seja, como uma instância da contingência e, por isso, mostra sua incapacidade devalidação da ação política, embora se reconheça que a separação pressuposta entre ideal eempírico é resolvida apenas parcialmente pela representação da forma através do Estado dedireito. Esta é uma tese dualista (não há efetivação do ideal no concreto) e normativista

    (anterioridade e superioridade da forma) que, numa primeira leitura – da ação racionallegitimadora entre normas de direito e normas de realização de direito e primazia daquelas –mostra-se estranha ao desenvolvimento posterior do realismo schmittiano, mas que prepara ocontexto inicial para a compreensão dos argumentos da exceção, decisão, político, etc., poisapresenta as questões trazidas pela separação assumida entre imanência e transcendência.

    Entretanto, neste texto de 1914, apesar de normativista, Schmitt já desenvolve umaestratégia finitista. A tese racionalista possui como contrapartida uma proposta de corruptela

    do jusnaturalismo que altera significativamente a concepção de direito pressuposta. Trata-sede um peculiar Naturrecht ohne Naturalismus (direito natural sem naturalismo), isto é, odireito seria uma estrutura formal carente de poder para a determinação do seu conteúdo. Emoutras palavras, haveria apenas a exigência da forma de direito, mas não um conteúdo pré-determinado. Assim, embora a organização do poder fático se justifique através da vinculaçãoà forma do direito pré-estatal, a determinação do conteúdo é concreta e, por isso, contingente.Esta estrutura seria um desvio em relação ao normativismo ou à limitação do poder sejaatravés do direito natural seja através do constitucionalismo moderno: uma espécie de Razãode Estado racionalista, uma vez que apesar da representação da ideia de direito, qualquer

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    conteúdo poderia ser posto. O argumento de Schmitt segundo o qual a ordem sejadeterminada pelo Estado que teria a prerrogativa de efetivar seus conteúdos desde que osconstituísse como ordem jurídica também se diferenciava do positivismo jurídico já que

    conservava uma instância não empírica como fundamento da validade estatal. Apesar dodecisionismo precoce e da necessidade de distinguir -se do positivismo, o pressupostoschmittiano do direito natural força o autor a reconhecer em Der Wert des Staates uma ordemracional superior e anterior ao poder. Esta transcendência ao poder caracteriza umnormativismo ou, na melhor das hipóteses, um tipo de realismo fraco, pois a estrutura damediação moderna exige a compreensão da ação política vinculada à cisão transcendência-imanência da razão e do poder, isto é, a legitimidade ainda é compreendida como adequação

    entre ação e direito que Schmitt assume como pressuposto: ordem e unidade da representação por meio de um princípio normativo1.

    Apesar disso, ainda na teoria pré-weimariana, surge uma concepção de ação políticadeslocada do paradigma da transcendência. A solução da mediação racionalista asseguraapenas formalmente a legitimidade e a unidade da ordem a partir da representação de umainstância externa ou configuração de uma forma na realidade concreta, mas não dá conta dacisão entre instância da validade e da faticidade: mantém-se o problema da indeterminação

    entre universal e particular. Schmitt assume a diferença entre as instâncias, o ideal comoseparação do real e neste, ausência e perda irrecuperáveis – aliás, este diagnóstico do hiatoinsolúvel entre as esferas será um dos argumentos centrais na transição de sua teoria e, posteriormente, afirmação do político como finitude. A particularidade da ação não guardacontinuidade necessária com a racionalidade; pelo contrário, a ideia de direito demonstra erealça a contingência e descontinuidade entre transcendência e imanência. A contingência davalidade da ordem política vincula a ação política (quantidade de força) à exigência de ordem

    para ser considerada autoridade e justiça (qualidade do direito). No entanto, cada vez quetenta aproximar estas instâncias mais se arrisca a dissolução da segurança jurídica e daestabilidade institucional ao perceber a diferença entre direito e decisão política ou entreracionalidade e ação como distintas da lógica da subsunção. Neste contexto, Schmitt sacrificao conceito de político e lança mão de uma solução normativa diferente segundo a qual oEstado seria, necessariamente, uma função da secularização, ou seja, o único meio pelo qual odireito pode ser realizado e, ao realizá-lo, transforma ordem em ordem jurídica através da

    1 Neste trecho, assumo em parte a interpretação de Alexandre Sá (SÁ, 2003). Embora o scholar português tenhauma leitura original ao perceber um decisionismo já no Der Wert des Staates justificado racionalmente, acreditoque a matriz normativa ainda é fundamental na fase pré-weimariana. Sobre isso, HOFMANN, 2002, pp. 34-77.

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    mediação racional como processo legitimador do poder que passa a ser revestido com oatributo de soberania: afinal, surge o argumento da progressiva concretização da matrizteológica que desempenhará papel importante na sua teoria política.

    A partir disso, o jurista alerta para o perigo de determinação da ordem fora do direito,isto é, determinação a partir da imanência, contra a “força normativa do fático” característicado positivismo. Para ele, ao afirmar a secularização, a ação exige a distinção entre forma eexperiência, através da qual consegue o critério da racionalidade do poder. Assim, ao manter adistinção entre universal e particular, Schmitt por um lado justifica o Estado a partir da ideiade direito mesmo ao preço de uma cisão irrecuperável entre as instâncias; por outro, cai numaarmadilha incômoda, pois considera a força ou a violência (a ação política) – portanto um

    modo da faticidade – como determinante na realização da ideia e, ao concretizá-la, forçalegítima. O critério para validade se dá quando a força nega-se como faticidade e representana experiência a dimensão ideal ao realizar o direito. Esta forma abstrata, no entanto, dependede uma força contingente que se impõe para realização do direito, porém prossegue, mesmolegitimada, ainda como força ou violência autorizada: não soluciona, antes alarga ainda mais aseparação entre realidade e ideia. Não há identidade entre ser e aparecer, nem a pressuposiçãode que a violência seria apenas o início externo ou fenomenal dos Estados e não seu princípio

    substancial, pois, diferentemente de Hegel, a mediação do Estado não soluciona o carátercontingencial da realidade, a cisão entre ideal e real continua para Schmitt uma vez que amera quantidade de poder não se torna legitimidade: há separação entre poder e direito que amediação racionalista não soluciona. Daí a importância da estrutura representativa e dasecularização como relação entre metafísica e política: a transcendência garante unidade elegitimidade à ação estatal que ordena e representa o universal no particular, enquanto arealidade prossegue marcada pela negatividade, pois o direito é contrafático e o político um

    modo de instituição e representação da ideia. Este argumento do finitismo ou da separaçãoentre transcendência e imanência desempenhará um papel cada vez maior na argumentaçãoschmittiana; bem como, a noção de ausência (normativa) será retomada em outro nível: aindeterminação entre as instâncias demonstra a impossibilidade da decisão a partir da normae, posteriormente, é tratada através do argumento da decisão fora da lei ou exceção. Mesmocom o esforço de uma justificativa racional para a ação e autoridade do Estado, o argumentofinitista problematiza a relação entre imanência e transcendência e instaura um ceticismoquanto às teorias políticas normativas que explica, sob a hipótese proposta, a ruptura dasobras seguintes no final da década de 1920.

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    (II) Após a elaboração de um normativismo fraco nos primeiros escritos, Schmitt propõe

    uma teoria da decisão em Die Diktatur e Politische Theologie, porém ainda no contexto da

    mediação entre ideia de direito e realidade concreta: sustenta a tese da mediação do poder político pela instanciação do direito e, por conseguinte, a separação entre validade efaticidade. O que está em jogo para Schmitt durante a década de 1910 não é tanto a resoluçãodo gap entrequaestio facti e quaestio iuris, mas sim a proposta de uma mediação que torne possível a organização do poder como ordem racionalmente legítima. ATrennungsthese apresentada acima caracteriza a realidade empírica por um desamparo normativo originário,isto é, pelo domínio da contingência e da não- juridicidade ao mesmo tempo que a considera,

    paradoxalmente, como a instância determinante da ordem. Neste momento, apesar de aindaconservar a categoria da representação da ideia de direito que garante a legitimidade daordem, sobretudo a partir do argumento teológico- político, o autor acentua o papel da finitudena determinação da ação. Assim, algumas modificações marcam a passagem do normativismomitigado de 1914 para outro paradigma político: o argumento da finitude desloca ainvestigação da norma de direito e da norma de realização do direito (pré-weimariana) para aconsideração das situações fáticas que possibilitam tal realização, apoiando-se em uma

    concepção voltada ao contexto da ação e apenas posteriormente ao contexto da justificação(weimariana). Esta, todavia, refere-se ainda à estrutura normativa que, afinal, empresta sualegitimidade à ação empírica, constituindo uma tese denominada aqui como realismo fraco oumoderado ao apostar em uma validade ou perspectiva externa (ante rem) da ordem como aseguir se expõe.

    O problema da relação entre normas de direito e normas de realização de direito estána necessidade uma situação fática propícia à concretização estatal daquelas normas, caso

    contrário, se houvesse uma situação de necessidade ou de exceção, então não seria possívelseguir nenhuma regra. Neste sentido, Schmitt investiga o problema da ordem jurídica e daação política em situações deste tipo. Segundo Die Diktatur , desde a República romana até oséculo XVIII, a ditadura era um mecanismo legítimo para o reestabelecimento ou preservaçãoda ordem, tendo em vista o exercício do poder excepcional autorizado pelas instituições emapuros. Se a tese levantada no texto Der Wert des Staates expõe a relação entre normas dedireito e normas de realização de direito, o texto Die Diktatur avança sobre esta tese ao perceber o pressuposto fático primário da efetivação do direito e demonstrar a contingênciaoriginária da ordem. Schmitt transforma a contraposição entre normas de direito e normas de

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    realização de direito em outra: normas estatais de realização do direito e normas de açãotécnica ( sachtechnische Aktionsregel ). Segundo Schmitt, a ditadura é o conceito jurídico que permite reconhecer uma Aktionskommissionque consiste numa autorização limitada para

    executar aquilo que for necessário desde que se alcance determinado fim na realidadeempírica (SCHMITT, 2006, p. XVIII). Em geral, o ditador tem a autorização de infringir aslimitações que são postas pela ordem jurídica desde que sua ação seja dirigida para restaurar aordem pública e tornar a realidade empírica estável e, dessa forma, o direito seja efetivadoquando do afastamento do perigo, por exemplo, uma guerra ou crise econômica que coloqueem risco a ordem. A partir de então, a ação no caso concreto orientada por um determinadoobjetivo empírico (a reconstituição da ordem fática) é assumida como o efetivo pressuposto

    da ordem jurídica. Esta,a contrario sensu, prevê sua suspensão mediante a ação técnica doditador para ser conservada e reestabelecida posteriormente (SCHMITT, 2006, pp. XVIII-XIX). A eliminação dos obstáculos para a realização do direito é o objetivo a que se presta aditadura, porém a ação do ditador não é, por si, fundamentada por nenhuma norma, mas sim pela necessidade do caso concreto. Desta argumentação decorre o paradoxo da exceção: paraa realização das normas de direito exige-se ação soberana na realidade empírica que suspendeas normas de direito para torná-las efetivas em um momento posterior ao reestabelecimento

    da ordem fática. “O problema da ditadura torna-se o problema da exceção concreta”(SCHMITT, 2006, p. XVII) e o argumento da finitude aplicado à relação entre ação eracionalidade mostra-se outra vez importante.

    A ditadura não se confunde com despotismo ou tirania: os poderes extraordináriosexercidos objetivam a criação da situação fática onde o direito possua vigência. Apesar dacaracterística de não possuir circunscrição legal – não há determinação jurídica das ações doditador já que a ditadura é uma comissão de ação ( Aktionskommission) determinada pela

    situação das coisas (Sachlage) (SCHMITT, 2006, p. 134) – a ditadura recebe uma tarefa: aconstrução das condições nas quais o direito possa ser efetivado. Por isso, a ação do ditador édeterminada pela natureza das coisas e não por normas de direito, ou seja, regra-se pelanecessidade imediata que encontra para eliminar o obstáculo à realização do direito. Qualquerrecurso ou meio pode ser utilizado para afastar a perturbação da ordem fática, pressuposto dasnormas de direito. Esta tese schmittiana expressa sem dúvida um tipo de realismo político, pois enfatiza a instância de ação e de poder fáticos. Nela a ditadura é compreendida, paradoxalmente, como um instituto de direito público constituído pela necessidade eemergência dos fatos, ou seja, através da noção de ação política concreta tal como a “noção de

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    um adversário concreto, cuja eliminação é o que há de mais próximo de uma delimitação doobjetivo da ação” (SCHMITT, 2006, p. 132) ou, como o autor reforça, “a delimitação de quese trata aqui não é uma apreensão dos fatos através dos conceitos de direito, mas uma

    determinação puramente fática” (SCHMITT, 2006, p. 132). Ao contrário de uma origemnormativa ou racionalista, Schmitt revela o finitismo que a questão da ordem implica, mesmoque ainda persistindo a distinção entre transcendência e imanência, embora, desta vez, afaticidade como mais originária. Aliás, a distinção entre ordem fática e ordem institucional –revista posteriormente entre político e política e, em seguida, entrenomos e lei – expõe oaspecto de primazia do não normativo, histórico e finito, pois na ditadura há uma suspensãodo direito com o intuito de garantir os pressupostos fáticos da validade do próprio direito: a

    ditadura faz referência apenas à realidade concreta, aos fatos que determinam a autoridade nasmedidas marcadas pela necessidade.

    No entanto, o significado da ditadura sofreu transformações a partir da Revoluçãofrancesa e da teoria marxista-leninista, uma vez que passou a designar o fundamento da únicaordem legítima. Neste mesmo texto, atento às transformações semânticas, Schmitt utiliza umadistinção fundamental entre ditadura comissária e ditadura soberana (kommissarischer und souveräner Diktatur ). Enquanto a ditadura comissária recebe a tarefa de restituir a ordem

    pública existente diante de um caso de ameaça interna ou externa e provoca a suspensão daordem jurídica além de conceder poderes extraordinários ao ditador para a proteção da ordem,a ditadura soberana obedece outra lógica: é sua finalidade a constituição de uma nova ordem, pois se, por um lado, a ditadura comissária é uma instituição, depende de uma constituição jáexistente e, por conseguinte, é estabelecida a partir da ordem pré-existente, embora dela nãoreceba legalidade, mas apenas a previsão ou reconhecimento legal de que a norma é incapazde agir no caso concreto e, por isso mesmo, autoriza a ação ditatorial para sanar a situação

    problemática; por outro, a ditadura soberana possui plena liberdade de proceder de maneiraefetiva na criação de um novo ordenamento constitucional tal como um pouvoir constituant .O ditador soberano dita as leis sem vinculação a limites normativos e mesmo assim nãocarece de legitimidade, pois esta é engendrada a partir da sua ação na situação concreta. Emambos dispositivos, a decisão se revela como elemento constitutivo da ordem: a exceção estávinculada ao momento da realização do direito e, dessa forma, a tese de que uma norma paraser válida deve assumir um caráter geral e juridificar a realidade empírica pressupõe a paradoxal necessidade de que a situação a ser qualificada tenha previsibilidade garantida, emúltima instância, pela ação empírica destituída de direito, pois:

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    se, em tempos normais, o meio para alcançar um resultado concreto pode sercalculado com uma certa regularidade, no caso de necessidade, pode-se apenas dizerque o ditador está autorizado a fazer precisamente tudo (daß der Diktator eben allestun darf ) o que é necessário conforme a situação das coisas (nach Lage der Sacheerforderlich ist ). Aqui não importam mais as considerações jurídicas, mas apenas omeio adequado para um resultado concreto no caso concreto (...) Aqui também o procedimento pode ser falso ou correto, mas essa apreciação refere-se apenas ao fatode se as medidas ( Maßnahme) são corretas em um sentido técnico-objetivo( sachtechnischen), isto é, se elas são adequadas ao fim ( zweckmäßig ). (SCHMITT,2006, p. 11)

    Schmitt ressalta a noção de ação concreta determinada pela circunstância ounecessidade desvinculada da racionalidade jurídica: no primeiro caso, a exceção funcionacomo o mecanismo que suspende a ordem jurídica até então vigente, porém mesmo aoexecutar as ações necessárias e extirpar os obstáculos para o reestabelecimento da

    normalidade e, por conseguinte, a posterior realização do direito, o ditador comissário não pode revogar nem as normas vigentes nem os poderes constituídos; no segundo, a ditadurasoberana não é encarregada da salvação da ordem, mas da criação da nova constituição. Nestecaso, exceção significa ab-rogação e não apenas suspensão da ordem jurídica, uma vez que

    a ditadura soberana vê no conjunto da ordem existente a situação que ela quereliminar através da sua ação (durch ihre Aktion beseitigen will ). Ela não suspende uma constituição existente graças a um direito fundado nela – portanto, graças a umdireito constitucional –, mas busca criar uma situação, em que seja possível umaconstituição que ela considera como verdadeira constituição. Não invoca uma

    constituição existente, mas uma constituição a implementar. (SCHMITT, 2006, p.134)

    A ditadura soberana é a expressão mais radical do poder que constitui uma novaconfiguração fática e torna o estado de exceção como olocus onde é constituída a ordem jurídica. Nesta perspectiva, o poder constituinte é, na verdade, uma espécie de força originária(Urkraft ) da ordem jurídica, porém que não é constituído, nem pode ser configurado comouma instância organizada ou orientado por uma representação. Assim, mesmo que Schmittnão seja defensor da arbitrariedade e do domínio da força bruta sobre o direito, reconhece a

    existência de um elemento não racional que se mostra como pressuposto da norma: aracionalidade de uma ordem normativa necessita de algo não normativo, o pressupostoconcreto da ordem que demonstra ainda a preocupação com a relação entre imanência etranscendência, ação e racionalidade embora já de maneira alterada, pois apesar de separados,mostram-se como dependentes entre si. O problema da ditadura revela o fundamento concretoda ordem, as condições efetivas pressupostas pela representação e libera parcialmente a ação política da carga normativa: “a ditadura ignora o direito para realizá-lo” (SCHMITT, 2006, p.

    XVIII). Na ditadura, portanto, há o paradoxo de que a validade da ordem jurídica pressupõeuma situação de fato na qual regras de direito não se aplicam e, sobretudo, é esta exceção que

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    dá a possibilidade de efetivação concreta do direito: Schmitt demonstra a dependênciafuncional do direito em relação àquilo que o nega. Se for correto que a ditadura soberana provoca ruptura e criação da ordem, uma vez que ignora o direito, mas apenas para realizá-lo;

    então esta situação não é propriamente a- jurídica, pois “a ditadura é um problema da realidadeconcreta sem deixar de ser um problema jurídico” (SCHMITT, 2006, pp. 133-134). Assim, aação do ditador é legitimada através da própria interrupção do direito e estabelecimento daexceção concreta por uma grandeza política e não por uma norma, pois a dimensão política dafinitude assume a função de condição de possibilidade da ordem jurídica. Entretanto, comoesse poder constituinte é ininstitucionalizável e, por conseguinte, irrepresentável – isto é, aoinvés de apenas estabelecer e fundar a ordem, ele permanece na ordem criada como uma

    abertura ou potência constituinte inesgotável – torna-a instável e contingente em sua matrizoriginária mesmo que se refira em última instância à criação ou manutenção da ordem erealização do direito.

    A origem da ordem levantou a questão da negatividade do político e deslocou ateoria schmittiana do normativismo: a relação entre forma e violência é assumida como aorigem não normativa e a abertura da ordem que resulta na afirmação paradoxal de que ordeme representação exigem a ação contra o direito, pois a realização do direito pressupõe sua

    própria negação/suspensão. Neste ponto, as relações estritamente jurídicas (por exemplo, acrítica à relação entre direito e decisão nos textos de 1910 e 1912), tornam-se relações políticas, pois no texto de 1921, a exceção e a ditadura referem-se a conflitos que inviabilizamqualquer contexto normativo prévio uma vez que se referem à ausência de direito. Acompreensão da ordem a partir da necessidade e finitude faz Schmitt abandonar critériosnormativos para ação política. Entretanto, mesmo arriscando a relação entre político eimanência, ele ainda mantém a ideia de direito como horizonte de legitimação (posterior),

    bem como as noções de secularização e mediação: a relação da violência com o direito pressupõe olocus da ação estatal. Esta estrutura teológico-metafísica serve de critério racional – embora apenas metodológico – para a validade da ação política e mantém a diferença entreser e dever -ser, imanência e transcendência, apesar da virada finitista em curso2.

    (III)

    2 Esta virada finitista de Schmitt pode ser compreendida a partir da influência de HansVaihinger, por exemplo,Hasso Hofmann capta isso ao afirmar que“Er war entschlossen, sich der vom Neukantianismus als bloßeFaktizität zurückgelassenen zu stellen und die Wirklichkeit selbst als Rechtswirklichkeit zu konstruieren”(HOFMANN, 2002, p. 87).

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    Das seções anteriores, demonstra-se a relação entre a legitimidade normativa doEstado em Der Wert des Staatese a organização do poder em Die Diktatur . Na verdade,demonstra-se a passagem da ênfase na validade normativa para o problema da estabilidade

    empírica a partir da qual se dá qualquer representação normativa. Esta relação dá origem na Politische Theologie (1922) à teoria da soberania como decisão sobre o estado de exceção, porém ainda sob um viés normativista, pois sustenta uma validade ou perspectiva externa daordem que caracteriza um realismo moderado trazido por sua peculiar teologia políticacompreendida como secularização e não articulação entre bem e poder. O texto de 1922 possui duas teses complementares: (i) a relação que se estabelece entre abertura do estado deexceção (decisão) e forma (ordem normativa) através do conceito de soberania com o objetivo

    de solucionar o problema da ordem: “Soberano é aquele que decide sobre o estado deexceção” (SCHMITT, 2004b, p. 13) e (ii) a tese que relativiza este realismo ao estabelecer seuhorizonte normativo: “todos os principais conceitos da teoria do Estado moderna sãoconceitos teológicos secularizados” (SCHMITT, 2004b, p. 43). Assim, a teoria da soberania édesenvolvida como outra estratégia na solução do problema da mediação: estabelece umacisão entre determinação concreta e justificação normativa, ação e racionalidade acerca daestrutura e origem da ordem a partir da decisão. Esta concepção decisionista ressalta o aspecto

    fático da exceção, paradoxalmente fora da ordem jurídica, mas constitutiva, pois desempenhaa função originária de mediação entre forma e realidade. Há aqui outra intensificação dofinitismo, apesar da proposta do vínculo teológico- político e da diferença entre mediação eimediação: a exceção torna-se condição de possibilidade da ordem jurídica, ainda maisnecessária do que a ação do ditador do texto de 1921, uma vez que a ação do soberano é aexpressão da ação como instaurador da ordem na faticidade a partir da qual possam valernormas jurídicas, ou seja, o jurídico é constituído pela ação política que assume seu papel

    fundamental de mediação: capta o universal a partir do particular, o excesso a partir daexceção.

    Para Schmitt, a figura da exceção contrapõe-se à universalidade abstrata e formal,refere-se à situação de fato que nem subsumível nem previsível perturba a unidade e a ordemdo esquema racionalista. A abertura da exceção é o argumento finitista que o autor traz contrao normativismo, pois mesmo tratada como conceito jurídico é o aspecto não normativo que passa a determinar a ação política. O conceito de exceção desempenha um papel central comoo pressuposto fático da ordem: Schmitt propõe introduzir na ordem jurídica a figura daexceção não como algo apenas referido à noção de necessidade – como no caso do texto de

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    1921 sobre a ditadura – mas sim como algo mais originário: a relação entre racionalidade(excesso ou transcendência) e ação política (exceção ou imanência) é considerada da outramargem que afirma, ao invés da forma (ideia), a contingência e ausência como origem: “A

    exceção não é subsumível; ela se exclui da concepção geral, mas, ao mesmo tempo, revela umelemento formal jurídico específico, a decisão (...) O estado de exceção surge quando adecisão deva ser criada e quando tem validade nos princípios jurídicos” (SCHMITT, 2004b, p. 19). Dessa maneira, na origem, não haveria uma norma, mas sim uma decisão. Esteargumento de finitude provoca outro deslocamento: a constituição da ordem refere-se ao casoconcreto ao invés da relação de adequação ou representação de um paradigma racional.Paradoxalmente, se a vigência do direito está vinculada às condições concretas, então o

    fundamento de validade da ordem jurídica consiste nestas condições fáticas a partir das quaisa decisão – que deixa de ser meramente instituto jurídico para tornar -se a condição políticaconcreta – cria a ordem a partir de um grau zero de direito, ou seja, no estado de exceção aordem jurídica (abstrata e formal) não se aplica devido à relação sui generis entrenormatividade abstrata e normalidade fática que exige a decisão soberana como fatorordenativo3. A tese pode ser resumida no seguinte: a decisão que abre o estado de exceçãoconstitui a ordem a partir da situação concreta necessária para que o jurídico possa ser

    aplicado, visto que a normatividade pressupõe uma normalidade fática, pois nenhumavalidade normativa se faz valer a si mesma, mas depende de instâncias concretas para serefetivada. Além de não normativo, outro atributo da ação política soberana é ser uma vontadeque se torna a condição de validade da ordem. Diante da impossibilidade da validade de umaordem normativa a partir de si mesma ou de uma racionalidade intrínseca, a derradeira opçãoque se apresenta para Schmitt ao rejeitar critérios normativos e universalistas ou qualquer tipode consenso sobre valores e normas é adotar o argumento finitista do decisionismo como ação

    política constituidora da ordem:

    3 Ao contrário de Schmitt, Walter Benjamin compreende o soberano barroco na indecisão, mais especificamente,na teoria da oposição entre símbolo e alegoria, ao inserir a melancolia como momento da soberania que postergaa ação, pois indecidível, e que põe em questão seu próprio status. Antes, porém, sua preocupação, no clássicotexto Zur Kritik der Gewalt , era distinguir entre violência que põe e violência que depõe o direito e buscar outrotipo de violência (divina) que não cria nem conserva a ordem e, por isso, desfaz a articulação tradicional entreviolência e direito que justificaria aquela através deste. Sobre esse debate em teoria da soberania, imprescindível,AGAMBEN, 2004, pp. 83-98. Entretanto, Agamben analisa parcialmente argumentação schmittiana: se a decisãoaté o início do período weimariano tem a função de determinar o soberano e a violência no âmbito do direito; em Der Begriff des Politischen, a decisão não desempenha o papel central das obras anteriores e o político é

    compreendido como relação concreta através dos antagonismos não mediados pela forma direito ou do Estado.Apesar de distintas, as interpretações de Benjamin e Schmitt questionam a fundamentação racional do poder eassumem a noção de violência como ponto de partida para criticar a relação entre soberania, direito e Estado. Afonte comum é, evidentemente, Georges Sorel.

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    Toda norma geral exige uma configuração normal das condições de vida nas quaisela deve encontrar aplicação segundo os pressupostos legais, e os quais ela submeteà sua regulação normativa. A norma necessita de um meio homogêneo. Essanormalidade fática não é somente um “mero pressuposto” que o jurista pode ignorar;ao contrário, pertence à sua validade imanente (SCHMITT, 2004b, p. 19).

    A superioridade fática da ordem diante do direito é reconhecida através de uma paradoxal “validade imanente”, isto é, uma espécie de direito de autopreservação “sendo oestado de exceção algo diferente da anarquia e do caos, subsiste, em sentido jurídico, umaordem, mesmo que não uma ordem jurídica. A existência do Estado mantém aqui umasupremacia sobre a validade da forma jurídica” (SCHMITT, 2004b, p. 18) que serve de justificação racional do poder ilimitado. A normalidade possui um caráter ordenativo viaexceção que representa ao mesmo tempo supressão do direito e condição de validade. Na

    exceção, ocorre uma ação na qual se dá a criação das condições para a realização do direito, pois “não existe norma que seja aplicável ao caos. A ordem (Ordnung ) deve ser estabelecida para que a ordem jurídica ( Rechtsordnung ) tenha um sentido (...) soberano é aquele quedecide sobre se tal situação normal existe. Todo direito é direito situacional” (SCHMITT,2004b, p. 19). Esta afirmação mostra a inversão que o argumento da finitude opera na teoriaschmittiana e a consideração de uma validadein re: ao invés da relação de adequaçãonormativa de onde derivaria sua legitimidade; desde Die Diktatur , ele aposta em uma ordem

    fática mais originária, sem vínculos normativos e explicita, enfim, seu pressuposto mais potente, o ato anterior à ordem normativa. Além da consideração da origem como um nadanormativo, a ordem a ser criada depende de umaviolência originária que ao ordenar arealidade cria o direito mesmo sem autorização: a violência escapa da qualificação jurídica,mas por pouco tempo. A relação entre ação política e violência é o aspecto mais importante dorealismo schmittiano e servirá de modelo para o desenvolvimento da sua teoria do políticoquando se desvencilha do teorema da secularização.

    No que importa destacar, esta argumentação realista implicaria uma ação políticasem referencial legitimador, isto é, não existiria critérioa priori, mas apenas a própria ação nadeterminação da ordem, como uma recusa, nos termos de Eric Voegelin, dotranscendentalismo e aceitação do imanentismo. Entretanto, esta consequência típica de umrealismo político não é aceita plenamente neste momento por Schmitt, que enfraquece seurealismo, pois a ação ainda teria uma matriz normativa: a exceção pressupõe um excesso,referindo-se à outra tese estrutural do texto Politische Theologie. Isto significa que a decisão precisa ainda de uma metafísica da legitimidade ou de uma teologia política tal como nomecanismo de representação, pois Schmitt ainda não conseguira livrar -se da problemática

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    filosofia da história, que Schmitt dispensa, mas sim por seu valor metodológico de evidenciara mediação racional. Esta mediação política e institucional do teológico assegura autoridadeao poder. Dessa forma, o teorema da secularização mantém a cisão entre imanência e

    transcendência, configurando ainda umrealismo fraco ao adotar, neste resquício normativo,umavalidade externa ouante rem do poder.

    No entanto, o conceito de representação em Schmitt pode ser analisadoexemplarmente no texto Römischer Katholizismus und politische Form (Catolicismo romanoe forma política) de 1923 como a última defesa do político como mediação, tendo comoexemplo o modelo institucional e jurídico da Igreja Católica. A pretensão é buscar transcendero imediato ao propor uma racionalidade normativo-institucional que estabeleça uma ordem

    que não seja meramente imanente, a rigor, contrapondo-se às despolitizações da economia e ada técnica modernas. Em todo caso, uma exigência de dar forma à vida, de uma razãoordenadora. Assim, a teologia católica carregaria uma lógica jurídica, uma espécie deracionalismo jurídico romano, uma função sacerdotal universalizada que se caracterizaria pelarepresentação: esta é a forma ou ideia do direito que paradigmaticamente a Igreja realiza. A pessoa do sacerdote é interligada via concreta por uma cadeia de mediações infinitas erepresenta a pessoa de Cristo que lhe concede a capacidade de criar direito novo, isto é,

    forneceauctoritas e jurisdictio. A mediação seria para Schmitt a principal característica deRoma e, precisamente, o que possibilita a decisão da autoridade. A função do político érealizar esta mediação da forma de direito via argumento da secularização tendo a igreja comomodelo para o Estado: o político como mediação é a tese reafirmada da teologia política. Arelação entre decisão e ideia (ordem), poder e autoridade é uma bipolaridade típica docatolicismo que se opõe ao pensamento imanentista ou não representativo, pois como Schmittafirma “nenhum sistema político pode durar, nem sequer uma geração, através de uma mera

    técnica da conservação do poder. A ideia é inerente ao político, dado que não há política semautoridade, nem há autoridade sem umethos da convicção” (SCHMITT, 2008, p. 28). Oordogeométrico em forma de cruz da Igreja de Roma estrutura-se como uma espécie de extensãohorizontal governada por uma decisão vertical: não há realismo politico aqui. A concepçãocatólica dacomplexio enquanto diferença horizontal e a transcendência da ideia enquantodiferença vertical expressam a bipolaridade típica da representação politica católica. Além dorepresentante e do representado, porém, é necessário segundo Schmitt um terceiro elementotranscendente a ambos, este é a ideia, novamente como horizonte normativo. Ao afirmar queao político é inerente a ideia, ele afasta-se de um pensamento não-representativo que reduz o

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    conceito de autoridade ao conceito de poder e conserva tanto a diferença-horizontal(pluralidade) quanto a diferença-vertical (transcendência). Esta diferença é crucial, pois se a bipolaridade se romper, o transcendente for esquecido ou o real compreendido a partir de sua

    própria nervura, então o conceito de representação política com suaVeritas é dissolvido. ParaRoberto Esposito, numa exegese precisa, a paradoxal posição de Schmitt demonstra que “ofim da bipolaridade metafísica assinala o fim da representação; o fim da representação, o fimda política” (ESPOSITO, 1999, p. 76). No final da década de 1920, Schmitt elide a dimensãoda transcendência e propõe uma alternativa imanentista do político, ela mesma pós- política e pós-estatal: aVeritas é desautorizada, a secularização é, por fim, acabada e ainda conformeinterpretação de Roberto Esposito:

    ambos os termos – unidade e oposição – se tornam absolutos ao extremo de perder,(...) o significado conferido a eles pelo princípio bipolar, no sentido de que a unidadetende a saturar a diferença metafísica em direção a um monismo completo, enquantoa oposição, transferida ao nível de imanência tende, reciprocamente, a transformar adiferenciação na antítese, também absoluta, amigo/inimigo” (ESPOSITO, 1999, p.56).

    Schmitt se desfaz a bipolaridade imanência-transcendência e critica ao modernocomo cisão e descontinuidade. Se Hobbes inaugura, então Schmitt fecha o pensamento político moderno e nesse percurso a transcendência se perdeu e o conceito de representação

    sofreu transformações até sua dissolução no jurista alemão. O desinflacionamento da teoria política de Schmitt, porém, só ocorrerá na fase posterior, quando a questão da validade seráconsiderada a partir da afirmação do caráter não normativo (não representativo ou mediador)do político como condição da ação por meio da diferença como antagonismo. Em Der Begriffdes Politischen, o político irrompe os paradigmas normativistas, teológico- político e asecularização, prescinde das justificações externas e alcança autonomia. Para isso, preparaoutro paradigma cuja validade é imanente à ação. O que está em jogo é a autonomia do político e o fim da representação-mediação racionalista. Algo que poderia ser descrito comoum political turn, rejeitando a distinção metafísica entre ser e aparecer ao revelar asingularidade do negativo incodificável e o múltiplo na constituição da unidade do corpo político que passa a ser enfatizado como diferença imanente entre político e política.

    (IV)

    A secularização ao mesmo tempo em que explica também expõe a diferença entreforma política e realidade contingente: a indeterminação entre ação e racionalidade torna oargumento do finitismo ou da validadein re a solução mais coerente. Daí o argumento paracompreender a transição entre os textos do início da República de Weimar e os do final da

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    década de 1920. Como a decisão do soberano enquanto decisão pela realização de um ideal eda ordem é descartada no final da década de 1920 pelo politische Existentialismus, acontingência da realidade, exposta por esta mesma decisão, passa a ser considerada olocus da

    ação política, afastando-se do teorema da secularização ou do caráter transcendente davalidade. O problema é retomado sob a forma da desestatalização do político, ou melhor, acompreensão de que a instituição é assumida como um fenômeno posterior ao político. Se oargumento do finitismo recusa a relação entre transcendência e ação política, então torna-senecessário demonstrar como a instância não normativa, irracional, tecida por relações deconflito, precária e contingente conseguiria determinar o corpo político sem apelar para umameta- política ou fundamentação racional. Schmitt não estaria propondo um “estado de

    natureza”, algo pré- política e pré-estatal? No final, a questão passa a ser a compreensão dacondição da ação política a partir do finitismo e, para isso, ele assume uma postura pragmáticana qual sustenta a tese de que a constituição do político é determinada como diferença eantagonismo ininstitucionalizável. O desafio é não reduzir a imanência da relação (político) àmera funcionalidade ou faticidade nem recorrer a uma metafísica política.

    Em Der Begriff des Politischen, a questão que se põe não é acerca da legitimidadenormativa ou da justificação racional da violência pelo direito, mas sim: como é possível ação

    política sem critérios racionais? Aliás, a teoria do político é um sintoma da crise daestatalidade e da ausência de fundamento ou, como gostaria de enfatizar, um deslocamento daquestão do sujeito (da decisão) para a relação como diferença. A ação política é singular, dá-se na negatividade e daí assume uma característica desestabilizadora. Ao compreender osdualismos e cisões schmittianas num grau crescente de concretude e contingência percebe-seque aquilo que possibilita a ação política não é alheio à própria ação. Segundo Flickinger,

    em e através do agir político, não submisso à determinação prévia de normasracionalmente fundadas dentro da ordem estabelecida (...) o ponto crucial da

    argumentação schmittiana é precisamente apontar à impossibilidade de encontrar umúltimo fundamento de legitimação dentro da racionalidade política moderna (...) ofascínio maior da teoria schmittiana consiste na descoberta de um abismo, ou seja,de um momento constitutivo do político, sem que este seja deduzível porargumentos inerentes à própria razão política”(FLICKINGER, 1992, p.18 e p.25).

    Este abismo revela-se como aquilo que é irrepresentável, incodificável e denomina-se aqui como o político (das Politische) em contradição com a política (die Politik ): enquantoeste se refere ao poder institucionalizado, aquele é marcado pelo contingente, conflito, precariedade, heterogeneidade e pluralidade de relações. O político não se esgota no Estado,

    embora este tenha sido na modernidade seu status ou modo de aparecer hegemônico, mas é precisamente um curto-circuito entre ser e aparecer que a teoria schmittiana provoca. Ao

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    afirmar que “o conceito do Estado pressupõe o conceito do político” (SCHMITT, 2002, p.20), o autor expressa esta anterioridade e autonomia do político que não se refere àrepresentação ou mediação da forma de direito, mas à determinação fenomenológica mais

    próxima às práticas do que aos conceitos universais ou critérios abstratos da mediaçãoracionalista4. Assim, não se trata de uma definição de essência, mas “um estado ( Zustand ) quefornece a medida em caso de decisão” (SCHMITT, 2002, p. 20), porém esta decisão se refereà medida do status, da relação e do sentido concreto e existencial e não mais da medidatranscendente da ideia de direito ou ao arbítrio de um sujeito. Daí, a distinção entre política e político: por aquela, há delimitação do âmbito da institucionalização; por este, rejeição dainstitucionalização, pois se retrai à tentativa de estabilização uma vez que o político é o

    arcano voluntariamente esquecido, ou melhor, neutralizado pela filosofia política. Estasrelações ou modos do político devem ser compreendidos como uma espécie de transcendentalhistórico, ou seja, como a condição ou transcendental político (não metafísico) da política.

    Se a questão tradicional da metafísica “por que o ser e não o nada” pressupõe adialética metafísica do ser e aparecer e a lógica dareductio ad unum , então a questão clássicaem filosofia política “por que ordem e não o caos”, da mesma forma, pressupõe a dialética darepresentação entre transcendência e da imanência implicada pela teologia política. Isto

    problematiza a questão entre racionalidade e político, isto é, a referência do político (ação) àrazão e sobre a necessária (legítima) manifestação do político a partir de uma estruturaontológica anterior. A teoria do político como finitude desconstroi a metafísica política erecoloca a questão do sentido da ação, tomando o político no seu caráter concreto. Pode-sedizer que ser é aparecer, isto é, o acontecer do político afasta a disjunção entre o ser eaparecer e qualquer dualismo teológico ou gnóstico, além de assumir a ação no contextoexistencial de formas de vida e provoca a perda da autoridade ou soberania como fundamento

    transcendente. A crítica contra as políticas da transcendência desempenha a mesma função dacrítica à metafísica, sobretudo, quanto à relação entre racionalidade e ação, desconstruídaatravés da compreensão da ação política na diferença como imanência e não como cisão deinstâncias ou identidades essenciais: a pergunta sobre a validade da ação, afinal, é metafísica enão se põe mais. O argumento do político rejeita, portanto, o processo de secularização entretranscendência e imanência, pois não se distingue da própria ação constitutiva: diferença e

    4 Schmitt realiza uma provocativa inversão na tradição jurídico- política alemã que sustentava, conforme Georg

    Jellinek em 1914 que “‚Politisch‘ heißt ‚staatlich‘; im Begriff des Politischen hat man bereits den Begriff desStaates gedacht” (JELLINEK, 1929, p. 180). Apesar daabertura para uma política não estatal e a dissolução dosconceitos de representação e soberania, Schmitt ainda hesita em uma circularidade ou ambiguidade entre Estadoe político, sobre isso, cf. SCHÖMBERG, 2003.

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    relação é sua medida. Esta ausência de substância ou essência da ação torna o políticoindeterminado, inclusive, ao tratamento do direito ou da ciência política. Compreendido comoabertura e pluralidade, o argumento repara a dialética tradicional entre ser e aparecer por

    outra: política e político. Nesta distinção, ação e validade se confundem, pois este movimentoou diferença política é distinto da mera criação ou manutenção da ordem uma vez que passa acompreendê-lo como a diferença em si mesmo, ou seja, ao invés de perguntar-se sobre o papelde instância constituidora de um fundamento, torna-se necessário pensar a diferença enquantodiferença política imanente. Para Schmitt, a ação política é orientada pelo afeto ou pathos do polêmico, tem em vista a pergunta pela diferença do político enquanto originária existencial( seinsmäßige Ursprünglichkeit ) e não a pergunta por uma instância universal (norma) ou

    particular (decisão). No entanto, a proposta da diferença ontológica entre político e política,insere Schmitt noutro espectro de autores: ao invés de pensá-lo como um teórico da políticainstitucional, por exemplo, numa concepção jurídica-política de Estado, é possível interpretá-lo como o autor que inaugura a diferença política e pensa o político não apenas como relaçãoco-instituinte, mas também como uma abertura constante, poisrelação “incomensurável”, istoé, não institucionalizável e, por isso, portador de uma validadein re ao pensar o singular domúltiplo5. Ele leva adiante sua lógica imanente ao afirmarque “permanece constitutivo para o

    conceito do político um antagonismo e contraposição no interior do Estado”(SCHMITT,2002, p. 30).

    Essa dialética negativa entre político e política, pode ser levada adiante contra aimunização do poder, o fechamento da política através da transcendentalização da unidade eda ordem. O argumento da finitude remete seu pensamento para a relação: esta é a questão do político como antagonismo. Quando se tem em vista a relação finita dos homens, surge acontradição que atravessa a política – o direito, a autoridade, o Estado, etc. – que se mostra

    como sua origem esquecida e inconfessável. Além disso, apresenta-se como relação e nãocomo substância, por conseguinte, o político expressa ainda outra característica: sua

    5 Em artigo recente, Oliver Marchart desenvolve o tema da diferença ontológica como diferença política aoelaborar um paralelo entreontisch-ontologische Differenz e politik-politisch Differenz e sustenta a distinçãoconceitual entre político e política desde Schmitt até o Linksheideggerianismus de Jean-Luc Nancy. Embora oautor reconheça a originalidade da distinção em Schmitt, argumenta que o jurista não tenha percebido a diferençaentre os níveis como diferença e, por isso, teria se fixado no papel de uma instância constituidora de fundamentoou “in der Suche nach dem Sein des Seienden (die Substanz, die Subjekt)”. A Grundfragen não seria sobre o“ontologische Sein” ou sobre o “ontisch Seiende”, mas sim “auf die Differenz zwischen beiden als Differenz”(MARCHART, 2010, p. 147). Ao se tratar de outra forma a diferença, dá-se um “Ent-Zug des Grund”. A

    despeito da inspiração heideggeriana, o autor apenas repete o gesto já tradicional de simplesmente rejeitar a obraschmittiana. Eledesconsidera que Schmitt não toma “keine partikulare Domäne oder Spezies des ontischSeiende” (MARCHART, 2010, p. 150), mas o contrário: em Der Begriff des Politischen , Schmitt sustenta adiferença (e não cada polo) ou relação e antagonismo como aquilo que determina o político.

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    ilimitabilidade. Ao alcançar o“ Intensitätsgrad ” do conflito, qualquer relação social torna-serelação política, pois “como o político não tem substância própria, o ponto do político podeser atingido por qualquer domínio” (SCHMITT, 1994, pp. 159-160). Isso torna o político

    perigoso: dá-se por contágio da relação que ao ponto extremo de intensidade, isto é, ao tornar-se polêmica, transfigura-se. O caráter viral e desestabilizador surge como algo inaceitável pelateoria política, por isso a tentativa de imunização ou ordenação normativa, isto é, arepresentação contra o risco do político.

    A diferença entre político e política tem em vista, porém, esta relação e diferençacomo antagonismo. No lugar da lógica da representação, é estabelecida a lógica da imanênciaque impede a formação de uma totalidade ou significante transcendente. Assumida esta

    política da imanência, percebe-se a fundamentação da lei atravessada por contradição eviolência, que em Schmitt revela-se como antagonismo incodifícável e irrepresentável pelodireito ou ordem. Estes servem como ficção na manutenção do poder, mas assumidos comoficção não podem desempenhar a pretensão universalista: funcionam como narrativashegemônicas provisórias. O finitismo transforma-se aqui em imanência e traz consigo aGrundlosigkeit . O Estado não é o mediador do universal ou racional, mas uma consequênciado político e, dessa forma, a tradição política oblitera o sentido do político ao pensar apenas a

    política enquanto instituição, justiça, igualdade, liberdade, etc. esquecendo sua condição política não-metafísica, qual seja, a diferença e o antagonismo. Definitivamente, não está em jogo a busca de fundamento a partir do qual a ação pode ser válida ou não, mas sim a própriaação. É desta perspectiva que se recoloca a pergunta acerca do político. A concepção deausência normativa, ação na contingência, na descontinuidade e quebras, quase um abandonoda ação, rejeita a concepção anterior da secularização como mediação via decisão querepresenta a ideia na realidade concreta6. Sem forma e ideiaa priori da teologia política, a

    decisão é meramente declaratória e não constitutiva do político uma vez que não se refere àvalidade como adequação normativa, mas sim na existência da diferença do antagonismo, noqual não há uma vontade ou um sujeito, mas um afeto que determina o corpo político.

    Schmitt sustenta a diferença como medida para o político:“a oposição política é aoposição mais intensa e mais extrema e qualquer situação de oposição concreta é tão mais política quanto mais se aproxima do ponto extremo que é o agrupamento entre amigos e

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    Benjamin Arditi traz a mesma compreensão ao afirmar sobre Schmitt: “He is advancing a claim that in a waymirrors the ontological difference in Heidegger and brings to mind Claude Lefort’s claim that we should notconfuse the political with its historical modes of appearance (…) the political in Schmitt will always beexcessive vis-à-vis its concrete manifestations” (ARDITI, 2008, pp. 13-14).

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    inimigos” (SCHMITT, 2002, p. 30). Neste momento, ele tem em vista a transformação dovolume da oposição existencial em relação política. A categoria do político como oantagonismo e heterogeneidade de formas de vida deve ser interpretada como diferença e não

    como um simples critério amigo-inimigo, ou melhor, como uma espécie de achatamento da bipolaridade entre transcendência e imanência. O critério do político como o grau deintensidade do polémos refere-se ao antagonismo ou conflito anterior às cisões e instituições,inclusive às identidades de amigo e inimigo, pois o pólemos é compreendido comomultiplicidade e de formas de vida. Afinal, provoca-se um curto-circuito no léxico políticomoderno e a pergunta sobre um princípio normativo ou fonte de autoridade da ação políticatorna-se sem sentido. Estas oposições fáticas constituem a totalidade das relações e não

    deixam espaço algum para distinções como anterior e exterior, exceção e norma, decisão eordem, muito menos para a política compreendida como técnica administrativa. Oantagonismo refere-se à relação, por isso é como diferença que o político mantém-se aberto aoconsiderar a relação em sua especificidade: co-instituinte e afetiva. O que interessa nestainterpretação é perceber que o argumento finitista em Schmitt não forma substâncias ouidentidades abstratas, mas se refere à relação mais intensa, qual seja, ao antagonismoimanente que põe em questão a existência dos corpos que se unem ou se afastam através da

    lógica do externo e do extremo: não há umaSelbstbehauptung dos indivíduos, mas uma teseque sustenta o antagonismo do político como oquantum de força da própria existência, emoutras palavras, o político evita o aspecto metafísico ao considerar a faticidade comototalidade da multiplicidade de forças que encontra aqui e acolá uma forma predominante,hegemônica, precária, pois tem nas posições oquantum de força que compõe o corpo político.O político é relacional, surge em qualquer lugar e sua forma de aparecer não é pré-determinada ou institucionalizada: o excesso que antes se referia à cisão entre ação (exceção

    ou imanência) e teologia política (excesso ou transcendência) – resolvido pela mediaçãoracionalista (representação) e ordem jurídica – é retomado como o incessante modo da relaçãoe do conflito. Este é modo principal do corpo político, cuja ação não pressupõenormatividades ou de-cisões metafísicas: não existe um princípio ou vontade fundantesoberana, mas qualquer instituição deve levar em conta este fato bruto do conflitoineliminável, pois Schmitt tem em vista uma politische Unterscheidung e não uma politische

    Entscheidung .Conclusão

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    A tese do político como antagonismo provoca uma profunda revisão da políticatradicional: ao invés de uma substância ou qualidade partilhada, o que agrega o corpo políticoé a ausência de uma identidade metafísica, uma ausência originária ou déficit normativo. A

    ação na contingência revela esta diferença como antagonismo e a partir disso o político passaa ser marcado pela compreensão da imanência como a perda do ideal da representação, poisao invés da unidade ou da ordem, depara-se com a multiplicidade e antagonismo, numa palavra, diferença. Este argumento finitista, por um lado, evidencia a indeterminação dodireito, a impossibilidade da representação; por outro, a tessitura de contradições e pluralidades do corpo político expressa aquele afeto mais forte que põe o político no limiar davida e da morte, em Schmitt denominado por antagonismo. Esta é uma interpretação mais

    interessante do autor, embora heterodoxa: a imanência da relação, na estrutura dos afetos docorpo político, que se dá fora do paradigma das políticas da transcendência, considera o político como conflito (para Schmitt, a origem da polis não é a linguagem ou consenso) eausência (não háGründung ou uma substância, mas apenas contradição, isto é, o referencialconstitutivo não é a forma de direito abstrato), esta é a diferença proposta na qual ocorre aação política.

    Nesta relação, a cada instauração de ordem política parece que o político se retira

    como se fosse o mais originário do que a forma, pois ele não é sequestrado ou localizávelalém ou aquém, mas sempre como relação que, paradoxalmente, é lembrada não dentro comoum fundamento, mas a partirdo outro como conflito e perda: “o inimigo é a nossa própria pergunta como enquanto forma e ele arrasta-nos, e nós a ele, para o mesmo fim” (SCHMITT,1991, p. 213). O Estado (um modo de aparição do político) é apenas uma forma dehegemonia: as relações não são estabilizadas, pois Schmitt inseriu no princípio da ordem algomuito perigoso, o excesso do político como uma relação de imanente ao corpo. O político

    schmittiano deflagra uma força centrífuga e uma desterritorialização que impossibilita ofechamento e a unidade transcendental da ordem e, sobretudo, uma representação comolegitimidade. Apesar disso, ele não assume por inteiro algumas destas consequências e o político guarda uma tensão entre desagregador e ordenativo não desenvolvida pelo jurista.Entretanto, é precisamente este ponto que interessa: pensar o politico como imanência econflito. O que as estratégias da finitude permitem, finamente, é elaborar algumas críticas às políticas da transcendência e liberar a ação política de modelos normativos, inclusive contra oCarl Schmitt mesmo.

  • 8/17/2019 Estratégias Da Finitude e a Lógica Da Representação Na Teoria Política de Carl Schmitt - Deyvison Lima

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