estórias com sabor a nordeste

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Regina Gouveia Estórias com sabor a Nordeste

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Regina Gouveia

Estórias com sabor a Nordeste

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Estórias com sabor a Nordeste Regina Gouveia

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Prefácio

No Prefácio de “O Fogo e as Cinzas” Manuel da Fonseca diz: Ficção constrói-se com o

que fica do passado. Revive-o.

É um pouco esse reviver do passado, de uma vida de mais de meio século, que emerge

em Estórias com sabor a Nordeste. As personagens podem ter sido inspiradas por

personagens reais que conheci no Nordeste Transmontano, mas também em tantos

outros lugares por onde tenho passado e /ou viajado, por personagens reais ou

imaginárias de que ouvi falar à volta da lareira, nos serões ainda iluminados à luz do

petromax, ou simplesmente por personagens que entram em nossas casa através dos

jornais, do ecrã da televisão, dos livros que lemos.

Também os cenários, embora virtuais, são inspirados em locais reais. Não será difícil

reconhecer no Rio, o rio Sabor, que Stº Estêvão teve como inspiração o Stº Antão da

Barca, que a Terra nos transporta para a freguesia de Parada e que a Vila teve como

inspiração Alfândega da Fé. Com cenários e personagens fui construindo estórias, ou

melhor, recriando histórias e estórias que foram passando, algumas de geração em

geração, quem sabe, “assopradas” pelo vento cieiro….

Mas porquê esse reviver do passado?

Um dos meus passatempos favoritos é, desde criança, a leitura O gosto pela leitura foi-

me incutido principalmente pelo meu pai. Desde sempre me lembro de o ouvir ler-me

excertos de textos ou poesias (Camões, Guerra Junqueiro, Júlio Dinis, Camilo, Victor

Hugo…) . Não sei se lia bem ou mal, sei que ouvi-lo me fascinava e comovia ao mesmo

tempo. Um dia decidi aventurar-me na escrita, que foi secreta até há cerca de três

anos. Em 2000 tinha sido editado, pela mão da Areal Editores, um livro da minha autoria

“ Se eu não fosse professora de Física. Algumas reflexões sobre prática lectivas” Um dia,

a Drª Maria do Carmo Cruz, em conversa, disse-me que já tinha oferecido o meu livro a

várias pessoas. Fiquei um pouco intrigada. Por que razão uma pessoa licenciada em

Germânicas, oferecia um livro que falava do percurso e da experiência de uma

professora de Física? A resposta vou buscá - la directamente a um texto seu: 1

E uma obra sua explicando como se tinha tornado professora, entretanto publicada,

mostrava como a sua prosa era igualmente poética. Não podia deixar de lhe perguntar

por que não escrevia Poesia…..:" E quem lhe disse que não escrevo? " Tinha que a ler e

em breve tive o prazer e a honra de ter em mãos os seus escritos. Li-os com um certo

1 (Extractos do texto de apresentação da autoria da Drª Maria do Carmo Cruz e que consta da colectânea Tempera(Mental),

na qual foram incluídos seis poemas meus)

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espanto: eram tão reais, falavam das coisas de todos os dias e, ao mesmo tempo,

mostravam-nas de uma forma que nos permitia vê-las como se pela primeira vez.

É, pois, em primeiro lugar, à Drª Maria do Carmo Cruz que devo o ter ganho coragem

para dar a conhecer a minha escrita. Comecei por participar em duas colectâneas de

poesia e por fim decidi-me a publicar sozinha. Foi assim que surgiu, em 2002, o meu

primeiro livro de poemas “Reflexões e Interferências”, em co-edição com a Editora

Palavra em Mutação.

Incentivada pela aceitação que os meus poemas tiveram, muito para além daquilo que

eu esperava, ganhei coragem para continuar a escrever/publicar poesia e dar a conhecer

a prosa. È assim que surgem Estórias com sabor a Nordeste. Poderá parecer estranho

que tendo começado a publicar tão tardiamente, surjam agora várias publicações

próximas no tempo A explicação, se é que existe, talvez possa ser encontrada num

poema de Manuel Alegre.

…. E no entanto o tempo agora é de corrida

contra o tempo se corre contra o tempo

contra o tempo se corre e assim se morre

em frente ao mar olhando a desmedida

distância entre a tão curta vida e o amor dela…..

e todo o tempo agora é contra o tempo

e mesmo sem correr só há corrida.

(Canção do tempo que passa, in Alegre, A.(2001), Livro do Português Errante, D.

Quixote)

Porto, 12 de Abril de 2004

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À memória:

• de meus pais, muito em particular à de minha mãe,

• dos meus tios Cândida, António e Júlio.

Ao Fernando, a minha segunda memória, ao Miguel, ao Nuno, à Teresa e à Rita.

Ainda aos meus irmãos e à memória duma nossa antepassada castelhana que inspirou

uma das personagens que atravessam estas estórias

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Debaixo dos sobreiros

Embora muitas pessoas digam que não, sempre houve

e haverá reinos maravilhosos neste mundo. O que é

preciso, para os ver, é que os olhos não percam a

virgindade original diante da realidade e o coração,

depois, não hesite.

Miguel Torga , em “ Um Reino Maravilhoso”

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Esta é a estória de uma família. Dela existem vários testemunhos. Alguns são tão

simples como um lenço bordado, um hissope ou uma luva desgarrada, mas há dois que

se destacam: a CASA e o chão debaixo dos sobreiros. Chamo-lhe estória porque as

personagens são fruto da imaginação. Isso não impede, porém, que esta família tenha a

sua árvore genealógica.

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Meu pai tinha fama de aventureiro. Quando novo, viajara por três continentes, em

situações por vezes rocambolescas. No entanto não foi esse aventureiro que eu conheci

mas sim um homem sem a mínima vontade de sair para qualquer lado. Era lá na TERRA

que ele se sentia bem. E acontecia o mesmo com os seus irmãos. Referiam-se sempre à

aldeia como a TERRA e quando falavam dela era de uma forma tão enlevada que me

confundia. Apercebia-me quando o meu pai tinha que se ausentar por uns dias; ficava

ansioso, tenso e no seu olhar, sempre expressivo, eu notava inquietude que por vezes

me parecia insegurança. Quando regressava a nossa casa, a tranquilidade regressava ao

seu olhar e dizia:

� Há lá dinheiro que pague esta paz. Lembra-me a CASA.

Sempre que o meu pai ou os meus tios se referiam à casa que tinha sido dos avós e

depois dos pais, chamavam-lhe a CASA. Por vezes o meu pai acrescentava:

� Daqui só para debaixo dos sobreiros.

Referia-se deste modo ao cemitério, que está rodeado de sobreiros.

Também os meus tios tinham uma relação singular com o cemitério. O TIO, que

vivia em Lisboa, sempre que vinha à TERRA dizia:

� Não se esqueçam que eu depois quero vir para debaixo dos sobreiros.

Creio ter entendido esta relação com o cemitério muitos anos mais tarde. A sepultura da

família ficava mesmo em frente ao portão. Quando o cemitério se tornou demasiado

pequeno, foi preciso ampliá-lo. Nas obras de ampliação foi incluída a criação de uma

“alameda” central, pelo que o jazigo teve que ser mudado. Nessa altura já o meu pai e o

TIO estavam suficientemente esclerosados para poderem tomar qualquer decisão; coube

à TIA escolher o local para onde a campa deveria ser mudada. Achou que era

importante consultar-me bem como aos meus primos, filhos do TIO. Para nós era

indiferente a nova localização da campa, mas a TIA queria a nossa opinião. A seu

pedido, acabei por me deslocar à TERRA. Indicou-me os lugares por que poderíamos

optar e quando sugeri um deles a TIA disse:

� Não. Os vizinhos do lado direito não são lá muito boa gente.

A uma outra sugestão, ripostou:

� Aí ? Tão ensombrado ? Não, tem que ser um lugar mais soalheiro.

Percebi então que a TIA tinha uma concepção muito própria sobre a vida depois da

morte e admiti que essa concepção seria comum aos irmãos. Para eles, “debaixo dos

sobreiros”, deveria representar em morte, o mesmo que a CASA representara em vida.

Debaixo dos sobreiros está toda a família: os meus avós Álvaro e Marta, os irmãos desta,

os meus tios Clara, Pedro e Adélia, os meus pais, o TIO, a TIA e o marido - o tio Justino.

A tia Laura, mulher do TIO, alfacinha de quatro costados, essa quis ser sepultada no

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jazigo da família, no Alto de S. João. Debaixo dos sobreiros estão também os meus

bisavós: Isabel Castelhana e Luís Engrácio. Foram eles os primeiros a ocupar o jazigo.

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Nunca conheci os meus bisavós mas a sua história sempre me fascinou. A minha bisavó

terá chegado a Portugal, juntamente com um irmão, por volta de 1865. Eram refugiados

políticos. Durante quase todo o século XIX a Espanha viveu uma terrível convulsão

política muitas vezes caracterizada pela brutalidade. Por volta de 1830 opõem-se duas

facções rivais- cristinistas e carlistas. Os primeiros apoiam a terceira esposa de D.

Fernando, Maria Cristina, regente do Reino em nome de sua filha Isabel II; os segundos

apoiam D. Carlos, irmão do rei. As guerrilhas carlistas prolongar-se-iam até quase finais

do século XIX. Não sei qual das facções a minha bisavó e o irmão apoiavam, apenas sei

que se chamavam Isabel e Diego e tinham como apelido, Rodriguez. Parece que terão

vindo de Castela, pelo que a minha bisavó foi sempre conhecida por Isabel Castelhana.

Os dois irmãos ter-se-ão disfarçado de sombreireiros. Como da arte não percebiam

nada, sempre que em alguma terra por onde passavam alguém lhes pedia para consertar

um sombreiro eles alegavam ter pressa pois tinham de chegar ainda com dia ao lugar do

destino. Num dia frio de Dezembro, terão chegado famintos e cansados às margens do

Rio, precisamente quando Luís Engrácio varejava uma das quatro únicas oliveiras que

tinha herdado de seus pais, numa nesga de terra, junto ao Rio, num local designado por

Zimbro. Luís Engrácio era ainda jovem (23 anos), mas já marcado por uma vida de

trabalho. Ficara órfão de mãe aos 6 anos e de pai aos 10. Dos seus pais herdara apenas

a nesga de terra no Zimbro, o casebre onde vivia e a alcunha por que era conhecido. O

seu nome era Luís Pereira, mas como a mãe se chamava Engrácia, foi sempre conhecido

pelo Luís Engrácio.

Luís Engrácio tinha as mãos engaranhadas com o frio pelo que resolveu acender uns

guissos para as aquecer. Foi nesse momento que viu surgir Isabel e Diego.

� Boas tardes nos dê Deus. Queçam-se aí - terá dito.

Foram estas as primeiras palavras que aquele que seria o meu bisavô Luís Engrácio

dirigiu àqueles que viriam a ser a minha bisavó Isabel Castelhana e o meu tio bisavô

Diego Rodriguez. O frio, o cansaço e a fome eram tantos que Isabel e Diego devem ter

esquecido o pavor que sempre os assaltou pelo caminho - serem identificados,

denunciados e apanhados pelas hostes da facção rival. Em silêncio chegaram-se à beira

do simulacro de fogueira. Comeram ainda da parca merenda que Luís Engrácio levara

com ele- um cibo de pão com azeitonas e cebola.

Casebre que chega p´ra um, chega p´ra três. Passados tantos dias, Isabel e Diego

tiveram algo parecido com um tecto para se acolherem, numa aldeia transmontana que

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nunca tinham sonhado conhecer e a que mais tarde os seus netos chamariam a TERRA. A

presença dos dois irmãos, falando arrevesado, levantou uma onda de curiosidade na

aldeia à mistura com alguma suspeita. Seguiu-se-lhes mais tarde um misto de admiração

e respeito, em boa parte graças à estima que todo o povo tinha por Luís Engrácio. Mas

ao povo, não parecia bem Isabel estar a viver no casebre de Luís. Isabel, decidida dizia:

� Hombre, que hay! Yo no estoy haciendo nada de malo.

Não sei se para calar as bocas do povo, se para arranjar quem lhe fizesse o caldo, se por

amor, ou se por ter descoberto que Isabel e Diego tinham conseguido trazer com eles

ouro e dinheiro, Luís Engrácio resolveu casar com Isabel. Na época, um homem para

casar deveria envergar um capote, mas Luís Engrácio não tinha dinheiro para comprá-lo.

Isabel pretendeu oferecer-lho mas Luís não aceitou.

� Enquanto não casarmos o dinheiro é só teu.

Foi assim que o Padre Pimentel casou Isabel Rodriguez com Luís Engrácio, este de capote

emprestado. Os padrinhos foram Diego Rodriguez e Maria Clemente que mais tarde viria

a casar com Diego.

Luís Engrácio era um homem habituado ao trabalho; o ouro e o dinheiro de Isabel

deram uma ajuda. A nesga de terra no Zimbro começou a aumentar, por compra das

terras vizinhas. O número de oliveiras crescia. Juntavam-se-lhe agora amendoeiras,

sobreiros, laranjeiras, vinha, terras de pão, hortas e lameiros. Isabel cria bichos da seda

e Luís Engrácio abelhas. São agora um casal de lavradores abastados. Engrácio fala com

orgulho de Isabel.

� É uma mulher sabida- referia, querendo significar que a mulher não era

analfabeta.

Nunca passara pela cabeça de Luís Engrácio, analfabeto, ter um dia uma mulher que tão

bem soubesse ler, escrever, e fazer contas.

O casebre, esse já há muito que dera lugar à CASA.

3

A transformação do casebre em casa foi gradual. Disso são bem evidentes as escadas

que sobem e descem para os mais variados compartimentos e o passadiço sobre a

canelha. Também não restam dúvidas que a primeira parte da casa a ser construída foi

a cozinha. Trata-se de um compartimento muito amplo a que se tem acesso da rua, por

umas escadas de xisto, com corrimão de madeira. Ao cimo das escadas existe o balcão a

que se segue uma porta com um postigo. Num dos cantos da cozinha tínhamos o lar.

Ao lar tinha-se acesso por uma portinha de madeira que se prolongava por um conjunto

de escanos que rodeavam a lareira propriamente dita. Em dois dos escanos havia

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preguiças2. Um dos escanos estava encostado a uma parede e em frente a ele existia um

outro, de costas muito altas, por trás das quais funcionava, por baixo a cantareira onde

se colocavam os cântaros da água e por cima o louceiro.

Provavelmente terá sido esta a primeira versão da CASA. Posteriormente o meu bisavô

terá comprado alguns casebres contíguos e a casa foi crescendo. Num dos lados da

cozinha abriram-se duas portas que dão acesso a um quarto e a uma sala com varanda

para a rua; construíram-se ainda duas escadas: uma que dá lugar ao forro - designação

dada ao sótão- e outra que dá acesso a um quarto a um nível ligeiramente inferior e que

foi, durante muito tempo, o quarto dos bichos da seda. Mais tarde, do outro lado da

cozinha construíram-se umas escadas que davam acesso a três quartos, a um nível

ligeiramente superior. Um desses quartos constitui o passadiço sobre a canelha debaixo

do qual ficavam a lenha e os carros. Em baixo, a loja (dos bois, dos machos, do cavalo e

do burro), a adega, o pio do vinho, o cortelho dos porcos, o forno e o galinheiro.

Não sei ao certo quantos anos mediaram entre o casamento dos meus bisavós e o

nascimento da primeira filha- a minha avó Marta, mas quando a minha avó nasceu o

casebre já tinha dado lugar à CASA, provavelmente não na sua versão final, mas pelo

menos na sua primeira etapa de construção. A seguir à avó Marta nasceram mais três

filhos - o João que morreu ainda menino, e de quem o meu pai viria a herdar o nome, a

Matilde e o Afonso.

O meu pai foi o primeiro neto dos meus bisavós. Com eles viveu em criança. Com eles,

com a tia Matilde, o tio Afonso e os criados Pepe, António e Artúrio, que substituiu

António quando este morreu. Pepe e António eram galegos e se alguém quisesse ver a

minha bisavó zangada era dizer-lhe que os criados eram da sua terra.

� Hombre, yo soy castellana, no gallega.

Pepe fumava muito e tinha com o tabaco uma relação quase sensual. O meu pai ficava

fascinado ao vê-lo enrolar a mortalha para fazer um cigarro. Uma vez deu um a fumar

a meu pai, tinha ele oito anos. Ficou tão mal disposto que tossiu e vomitou o dia inteiro.

Ficou vacinado para toda a vida. Nunca fumou. Por isso dizia que tinha ficado a dever

um favor a Pepe. Artúrio era da TERRA e o seu nome era Artur. Foi a mãe, por não

saber dizer o nome, que lhe criou a alcunha. O Artúrio fazia os piões com que o meu pai

brincava. O Artúrio e também o tio Afonso com quem o meu pai sempre manteve uma

relação no mínimo, ambivalente. Penso que o meu pai via o tio Afonso mais como um

companheiro mais velho, do que como tio. Lembro-me de discutirem muitas vezes, a

ponto de ficarem incompatibilizados temporariamente. O tema podia ser política, futebol,

religião, agricultura, ou qualquer outro, mas se era dia de dar para o torto, tínhamos

discussão pela certa. Por vezes o tio Afonso terminava aos berros.

2 tábuas que giram em torno de um eixo e podem funcionar como mesas de apoio

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� Lembra-te de que eu sou teu tio.

O fascínio do meu pai pela CASA e pela TERRA vinha desde aquela fase da sua vida,

quando menino.

Gostava de recordar os cheiros, as cores, os gostos: do pão acabado de fazer, do mel,

das compotas no Outono, das torradas (de unto e de azeite, no lagar), do fumeiro (as

alheiras, os salpicões, os bulhos, as chouriças, os chouriços doces com mel e amêndoa),

das sanchas, das rocas e dos roquelhos guisados, dos míscaros assados na brasa, dos

espargos fritos com ovos, das doçarias de Natal (as rabanadas, as filhoses, os milhos, o

arroz doce, a aletria, os fritos de jerimum), dos folares na Páscoa (os de carne e os

doces), das sopas de tomate da tia Matilde, das casulas com bulho, do leite das cabras

acabadas de ordenhar, do queijo, do soro, da coalhada e dos requeijões, das “tortillas”,

das “empanadas”, dos “gaspachos” e das “yemas bentas” da avó, das frutas ao longo de

todo o ano (no Outono as peras, as maçãs, as romãs, os diospiros, os medronhos; no

Inverno e na Primavera, as laranjas; em Junho as amoras de amoreira, as cerejas, as

ginjas, os figos lampos, os pêssegos de S. João, as malapas; no Verão as amoras de

silva, os melões, as melancias, os figos, as uvas).

Gostava de recordar os sons: do toque a rezar3, da escacha da amêndoa, do crepitar da

lenha na lareira, do chiar dos carros de bois e do passar dos machos na rua, dos homens

a pisar o vinho, do ferrador a ferrar os machos, do ferreiro a malhar o ferro, dos sinos da

Igreja na Páscoa e nos casamentos, das vozes na rua ao lusco- fusco, do azeite a estalar

nas sopas de xis, do chiar do porco na matança, do cantar do cuco na primavera.

Gostava de recordar os animais: os bois (o castanho e o manso), os machos (o carriço e

o amarelo que faziam brrrrrrrrrr na loja, por baixo do seu quarto), os porcos e os leitões

no cortelho, as galinhas, os perús e os galos no galinheiro, o gato Simeão e a gata

Baronesa, o cão preto e o cão grande, as andorinhas que faziam os ninhos debaixo da

varanda da sala.

Gostava de recordar as suas brincadeiras de menino: pendurado nas engarelas dos

carros, jogando ao pião, à rodinca e ao espiche, trepando às árvores para apanhar os

ninhos, apanhando formigas de asa para montar as costelas aos pássaros, trincando o

carambelo nos dias de muito frio, correndo atrás das canas dos foguetes na festa de Sto

Estevão.

Gostava de recordar os rituais, particularmente o da matança do porco.

Gostava de recordar a feitura do pão, do fumeiro, dos folares, do queijo, do azeite, do

vinho, da aguardente e do sabão com soda e borras de azeite.

O seu amor à TERRA foi-lhe incutido, antes de tudo, pelo avô que ele adorava. Nunca ia

ao Zimbro que não dissesse com os olhos rasos de lágrimas:

3 toque das Trindades

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� Quantas vezes vim aqui com ele. Aos doze anos eu já sabia podar, enxertar,

crestar.

A sua relação com a avó era mais distante. Quando lhe perguntava por que razão tinha

vindo de Espanha ela, que nunca se acostumou a dizer o seu nome em português,

respondia:

� Juan, no me gusta hablar de eso.

Dela lembrava essencialmente que lhe ensinou as primeiras letras e que era quem o

castigava quando fazia tolices. Quando era castigado, o avô sofria mais que ele. Quantas

vezes, ao sair para o campo voltava atrás e dizia:

� Isabel, tu não ralhes com o menino.

Quando o meu pai tinha doze anos, morreu o meu bisavô e logo depois a minha bisavó.

Dizia o meu pai que morreram de desgosto com a morte da tia Matilde. A tia Matilde era,

no dizer de meu pai, a rapariga mais bonita das redondezas, mas era doente. Tinha um

problema de coração. Aos 19 anos começou a namorar com Luciano Almeida, um jovem

da aldeia. Consciente da sua doença, resolveu ir consultar um médico ao Porto, onde

minha avó Marta vivia com o meu avô Álvaro, ajudante de escrivão de Finanças. A

viagem era penosa. O meu bisavô levou a tia Matilde, a cavalo, até ao Pocinho para

apanhar o combóio. No Porto, era suposto estar o meu avô na estação, à espera da

cunhada. O meu avô não pôde ir pelo que pediu a um colega que lhe fizesse esse favor.

A tia Matilde ficou muito aflita quando não viu o cunhado e mais ainda quando se viu

acompanhada por um desconhecido numa terra, que só pelo tamanho já era de si

assustadora.

Fosse pelo cansaço da viagem, fosse pela angústia da chegada, no dia seguinte à

mesma, a tia Matilde faleceu com um ataque cardíaco. A avó Marta, que estava grávida

pela quinta vez, perdeu a criança e a tia Matilde, em vida, não chegou a regressar à

aldeia para casar com Luciano Almeida.

4

A avó Marta casou com o avô Álvaro Matias em 1898. O avô Álvaro era de uma aldeia

vizinha. Filho de um sapateiro analfabeto, teria sido um continuador do pai se o Padre

Pimentel, pároco de várias aldeias, entre elas as dos meus avós, não se tivesse

apercebido que o rapaz era muito inteligente e não tivesse convencido o meu bisavô a

deixá-lo ir à escola. A aldeia de Álvaro não tinha escola pelo que percorria a pé todos os

dias os 5 km que separavam a sua aldeia da TERRA. Fez com distinção o exame de

segundo grau, que era assim que se chamava a quarta classe. A sua paixão era a

leitura. À falta de qualquer livro em casa, um dia em que acompanhou o pai à feira, na

Vila, com os poucos trocados que tinha amealhado, comprou um Borda d´ Água. De

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tanto ler e reler as antevisões do tempo, os conselhos aos lavradores, as anedotas, já

sabia de cor, quer os conteúdos, quer as páginas onde se encontravam.

Cedo o pai se apercebeu de que o filho não tinha grande queda nem para a lavoura nem

para a arte de sapateiro. Aos 15 anos mandou-o para o Porto. Aí tinha um primo que lhe

arranjou o emprego de marçano numa loja de fazendas. Mais tarde, um cliente da loja,

secretário de finanças, apercebeu-se das capacidades do rapaz e arranjou-lhe o

emprego de ajudante de escrivão. Aos 28 anos o ajudante de escrivão de Finanças,

regressou pela primeira vez a casa em gozo de férias. Resolveu ir à TERRA visitar o

Padre Pimentel, agora já muito surdo e trôpego. Foi o Padre Pimentel que lhe sugeriu

para esposa a minha avó Marta. Foi ainda o Padre Pimentel quem os casou, seis meses

depois. O casamento foi por procuração pois o meu avô tinha regressado ao Porto e não

era fácil deslocar-se à TERRA para casar. Passados dois meses a minha avó,

aproveitando a companhia do farmacêutico da Vila que tinha que deslocar-se ao Porto,

foi ter com o marido. No Porto nasceram os 4 primeiros filhos do casal - João, José, Clara

e Pedro. Teriam sido cinco não fosse o aborto na sequência da morte da tia Matilde. A

minha avó ficou grávida do tio José pouco tempo depois de meu pai nascer. Por isso,

desde pequenino, e até à morte dos meus bisavós, o meu pai viveu com eles na TERRA.

Após a morte dos meus bisavós, o meu tio avô Afonso continuou a morar na CASA,

acompanhado do Artúrio que entretanto casara e vivia lá com a mulher, Zefa, e os dois

filhos: o António Joaquim e a Germana. Quando o tio Afonso casou com a tia Teresa,

filha única, os pais impuseram-lhe ir viver com eles. Mas Artúrio continuou a viver na

CASA com a sua família, que entretanto cresceu com o nascimento da Balbina. Os meus

avós raramente ali iam, pois naquele tempo a viagem do Porto à TERRA era difícil,

especialmente com filhos pequenos.

O meu avô sempre desejara aproximar-se da TERRA. Em 1915 conseguiu ser transferido

para a Vila (era assim que era conhecida a sede do Concelho), onde nasceram Adélia e

Matilde. A transferência do meu avô para a Vila permitia-lhe ir com frequência à TERRA.

Na época da caça sempre que podia, lá estava caído. O meu avô era um grande

caçador. O que ele gostava era de ir à perdiz mas também ia ao coelho, à lebre, às rolas,

aos tordos. A minha avó, no Outono, por altura de fazer as compotas, no Inverno, por

altura de fazer o fumeiro e na Páscoa, época de folares, mudava-se de armas e bagagens

par a CASA e aí permanecia por um tempo cada vez mais dilatado. Por esse tempo já a

CASA pertencia aos meus avós.

Com a reforma do meu avô em 1932, a família regressa definitivamente à CASA que vai

continuar a partilhar com os filhos do Artúrio, o António Joaquim, a Germana e a Balbina

que se encarregam fundamentalmente das lides do campo. Nesta altura, apenas a TIA

vivia com os pais. O TIO, que entretanto tinha cumprido o serviço militar, ingressara na

força aérea e casara com uma jovem de Lisboa. O meu pai, dedicava-se a explorar o

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mundo. Isso até 1934. Em 1935 a TIA casa com o tio Justino, rapaz da aldeia que era

funcionário público em Viana do Castelo.

Todos os Natais, quase sempre na Páscoa, e na altura das vindimas, a TIA e o tio

Justino regressavam à CASA. O TIO, nem sempre, e quando ia, ia só. A tia Laura foi

apenas três vezes à TERRA, duas delas para dar a conhecer aos avós os meus primos

Afonso e Gonçalo e a terceira no casamento da TIA.

Dos meus tios só conheci a tia Matilde e o tio José, a quem sempre chamei simplesmente

TIA e TIO, e os respectivos cônjuges. Os outros morreram cedo: o tio Pedro, em menino,

com a pneumónica, a tia Clara e a tia Adélia, na flor da idade, tuberculosas. Também não

conheci os meus avós. A minha avó faleceu em 1936 e o meu avô em 1938. Deixaram

aos filhos a CASA praticamente como a tinham recebido dos meus bisavós. Apenas lhe

tinham sido introduzidas três pequenas alterações: uma delas consistia numa espécie

de quarto de banho, com uma sanita em madeira que dava directamente para a loja dos

machos; as outras duas consistiam em dois nichos (a que na CASA chamavam pilheiras),

um grande e um pequeno, numa das paredes da varanda e quatro cabides, um pouco

toscos, numa das paredes da cozinha. O nicho maior destinava-se a colocar o jornal e o

livro que o meu avô estivesse a ler, o outro destinava-se à caixinha do rapé. Soube da

função dos nichos pelo António Joaquim, que mantendo a tradição de família viveu

sempre na CASA. Foi também por ele que soube da função dos cabides.

� Cada cabide era para seu capote. O do seu avô, o do seu pai, o do seu tio e o do

Sr. Padre Marcos que vinha todas as noites para conversar com o avô. O do seu

pai, pouco usado por ele, foi depois destinado ao seu tio Justino.

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O casamento da TIA com o Tio Justino não foi, de início, motivo de grande alegria para

os meus avós. Não que não gostassem do tio Justino. Antes pelo contrário.

� Se há homem bom está ali- dizia a minha avó.

Mas o casamento iria implicar longas separações e a CASA já estava muito vazia. Talvez

pressentindo isso, a TIA, após o casamento, foi adiando sucessivamente a sua ida para

Viana. O tio Justino vivia numa pensão e vinha à Terra sempre que lhe era possível. Com

a morte da minha avó, em 1936, a ida da TIA para Viana ficou ainda mais complicada.

Como deixar o pai, para mais tão combalido depois da morte da mãe? O tio Justino lá se

ia resignando a continuar a viver no quarto da pensão, vindo à TERRA sempre que

podia. E foi assim até à morte do meu avô em 1938. Só então a TIA se decidiu a

acompanhar o marido.

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Estórias com sabor a Nordeste Regina Gouveia

16

O tio Justino era de facto um homem bom. Coxeava um pouco de uma perna na

sequência de uma tuberculose óssea, mal curada em menino. Por vezes tinha muitas

dores mas não se impacientava. Nunca o vi zangado. O meu pai comentava:

� Só mesmo a paciência do Justino para aturar a ranzinza da minha irmã.

A paciência do tio Justino manifestava-se nas mais pequenas coisas. Era sempre ele que

deitava a canela no arroz doce. Começava por fazer, num papel, um estudo do desenho

que queria fazer no prato. Depois colocava a canela na ponta do cabo de um garfo ou

colher que segurava com a mão esquerda, enquanto, com a mão direita dava pequeninos

toques nesse mesmo cabo. Era um trabalho de minúcia mas cujo efeito era

surpreendente. Nunca vi pratos de arroz doce mais bem decorados, e quem diz arroz

doce diz aletria ou milhos. Foi ainda o tio Justino quem me ensinou a nadar no Rio. E que

paciência ele teve que ter! Ainda hoje está dependurado de uma das traves da adega, o

colete de placas de cortiça, ligadas entre si por tiras de pano, que ele construiu para as

minhas lições. Eu adorava-o.

A TIA era uma boa pessoa, sempre pronta a ajudar, mas o que ela dissesse era lei e ai

de quem a contrariasse. Vivia sempre preocupada com a opinião dos outros.

� Cuidado que isso parece mal; o povo pode falar.

Muito religiosa, explicava todos os factos invocando a intervenção divina. Se uma pessoa

bondosa morria de repente, praticamente sem sofrimento, a TIA comentava:

� É que Deus não dorme e sabe muito bem quem merece a Sua protecção.

Mas se outra boa alma morria depois de um longo sofrimento a TIA justificava:

� O Senhor escolhe os bons para os pôr à prova.

A sua maior fé era em Sto Estevão para todos apenas o Santo- o padroeiro da Terra. A

festa do Santo ocorre no primeiro domingo de Setembro, pelo que genericamente o dia

é de Sol, geralmente intenso. Todos os anos a TIA comentava:

� Sto Estevão fez o milagre. Esteve um dia lindo.

Só me lembro de ter chovido uma vez, na festa do Santo. Também dessa vez a TIA

achou que tinha sido milagre.

� Foi um milagre e dos grandes. Aquela chuvinha serviu para assentar o pó.

Creio que a TIA, após sair da escola, nunca leu qualquer outra coisa que não fossem

missais, bíblias ou pagelas religiosas, que coleccionava, bem como terços. Já a colecção

do tio Justino era de outra natureza. Coleccionava objectos relacionados com as lides do

linho. Eram cardas, espadelas, maças, rocas, fusos, dobadoiras. Até o jipe teve que

compartilhar o seu lugar na garagem, por baixo do passadiço da CASA, agora fechado,

com um tear que comprou numa aldeia vizinha. Também coleccionava termos usados na

TERRA, pelo que andava sempre com um bloquinho no bolso e sempre que ouvia uma

palavra já em desuso ou mal pronunciada, lá ia ele anotá-la. Esta mania de procurar

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Estórias com sabor a Nordeste Regina Gouveia

17

coisas, fossem elas objectos ou palavras, levou a que o TIO lhe chamasse por

brincadeira, o procurador.

O TIO gostava de chamar as pessoas por alcunhas, algumas que só ele usava. A um filho

do António Joaquim, que em criança passava a vida dentro de uma espécie de gaiola

improvisada, idêntica ao que costumamos chamar de parques, chamou sempre Afonso

VI. À TIA chamava-a de agulhinha porque o seu passatempo preferido era fazer renda,

muito particularmente os panos de cinco agulhas. A mim, por ser um pouco irrequieta,

chamava-me piãozinho. Mas a par destas alcunhas carregadas de ternura, havia as que,

pela forma como eram ditas, faziam transparecer um sentimento bem diferente. Uma

delas era “O Botas”, quando se referia a Salazar.

Lembro-me das grandes discussões que havia entre o meu pai e o TIO, sempre por causa

da política. O meu pai era salazarista e para se justificar invocava sempre o mesmo

argumento.

� Eu saí daqui em 1919 e sei bem a bagunça que se vivia. Agora está tudo calmo.

O TIO respondia-lhe então:

� Especialmente em Peniche e em Caxias.

E a partir daqui a conversa subia habitualmente de tom e acabava quase sempre do

mesmo modo. O TIO dizia-lhe:

� Não há pior cego que aquele que não quer ver.

Ao que o meu pai respondia:

� Sim, sim tu falas, mas cagas no prato onde comes. Tenho vergonha de ser teu

irmão.

Isto tudo era da boca para fora pois se havia sentimento que o meu pai nutria pelo

irmão não era o de vergonha mas o de orgulho, particularmente na sua bela carreira

militar.

As opções políticas do meu pai começaram a ficar um pouco abaladas após as eleições de

1958. O TIO conhecia Humberto Delgado com quem tinha trabalhado, e tinha por ele

uma grande consideração que se reflectia na imagem com que o descrevia. Talvez por

isso, o meu pai nutria alguma simpatia pelo General. Mas o seu voto foi, naturalmente,

para o Almirante. No dia 14 de Maio de 1958, dia em que o general passou pelo Porto em

campanha, o meu pai estava lá casualmente e viu. Por isso, quando foram anunciados os

resultados das eleições de 8 de Junho, terá comentado:

� Aqui houve marosca.

Isso, no entanto, não o impediu de continuar a elogiar o homem de S. Bento e a ter em

lugar de destaque, na sua estante, o livro “Salazar na Intimidade”. Em 1960 o TIO é

passado à reserva compulsivamente. Fui eu quem entregou ao meu pai a carta do TIO

que trazia a notícia. O meu pai começou a ler a carta e eu fiquei ali à espera daquele

trecho habitual: “Como vai o piãozinho ? Diz-lhe que já estou com saudades”.

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18

Mas não foi isso que ouvi. Vi o rosto do meu pai crispar-se e pela primeira vez ouvi-o

dizer um palavrão na minha frente.

� Grandes filhos da puta.

Não entendi a quem se referia, mas se usou o plural não se refere ao TIO, pensei, e saí

de imediato sem que o meu pai desse conta. Creio, no entanto, que o maior golpe nas

suas convicções políticas foi dado em 1965, quando o General foi assassinado. O TIO

passava agora mais tempo na TERRA. Um dia, na varanda da CASA, pegou num jornal

que se referia à morte do general, como tendo sido obra dos seus correligionários.

Comentou em voz alta:

� A quem eles pensam que enganam? Quem o matou foi a “Pevide”.

Como visse o meu olhar atónito o TIO achou que era tempo de eu abrir os olhos. Foi essa

a primeira sessão de esclarecimento político que tive na vida. À noite, talvez um pouco

para provocar o meu pai, comentei que fora a Pide a responsável pela morte do General.

Esperava uma reacção violenta mas fiquei surpreendida quando ouvi o meu pai comentar

com algum desalento :

� Já não digo nada.

Não posso localizar a data em que “Salazar na Intimidade” deixou de ocupar a estante do

meu pai, nem sei que sumiço o livro levou. O certo é que no espólio nunca apareceu.

6

Após a morte dos meus bisavós, o meu pai, com 12 anos, foi viver para o Porto com os

pais e os irmãos (à data José, Pedro e Clara). Tinha feito o exame do primeiro grau com

distinção, mas como o professor Bernardo tinha falecido, a TERRA ficara sem escola e os

seus estudos tinham terminado aí. Era uma criança um pouco selvagem pois os cuidados

disciplinadores da avó não tinham surtido o efeito desejado, face à complacência do avô

aliada à cumplicidade do Pepe, do António, do Artúrio e da Zefa. A casa dos pais era uma

casa cheia de regras. Horas para levantar, horas para deitar, horas para comer, horas

para rezar, horas para ler, regras para estar à mesa. Tudo isto era demais para uma

criança que nem sabia pegar nos talheres. A sua vida, até aí despreocupada,

transformou-se num inferno. Por um lado os castigos do pai quando alguma regra era

infringida, por outro a chacota dos irmãos para quem era praticamente um estranho. Só

a mãe parecia apoiá-lo. Para agravar tudo isto o pai achou que ele devia completar a

instrução primária. O irmão José frequentava o segundo grau e tinha um professor

conhecido pelo seu elevado grau de exigência mas também pela sua barbaridade. Foi aos

cuidados desse professor - Germano Vicente Dias - que o meu avô entregou o meu pai.

O meu pai era inteligente pelo que em breve se tornou o melhor aluno da classe. Isso

valeu-lhe a consideração do irmão, em quem passou a ter um aliado. Parecia assim mais

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fácil de suportar a disciplina do pai. As coisas ter-se-iam arranjado se o professor

Germano não tivesse dado um golpe de misericórdia em toda a situação.

O professor passou uma prova para os alunos fazerem e o meu pai foi o único que

resolveu tudo correctamente. Então Germano Vicente Dias passou-lhe a palmatória para

a mão e disse-lhe:

� Hoje és tu que vais castigar os colegas ; o primeiro será o teu irmão a quem terás

que aplicar dez palmatoadas, cinco em cada mão - duas por cada erro, mais

quatro por cada conta mal feita.

O irmão estendeu cada uma das mãos e o meu pai aplicou-lhe os 10 “bolos” com

bastante suavidade, não fosse ele o seu irmão. Então, o professor tirou-lhe a palmatória

das mãos.

� Eu vou mostrar-te como se usa a palmatória.

As mãos do meu pai jorraram sangue mas não chorou. À noite, enquanto a mãe com

lágrimas nos olhos lhe tratava as mãos, o pai comentava :

� Só assim te farás homem.

No dia seguinte de manhã o meu pai não estava na cama. Tinha saído, pé ante pé,

direito à estação, onde se meteu no combóio do Douro. Expulso do combóio sempre que

era descoberta a sua clandestinidade, fazia troços do percurso a pé, sempre junto à linha

férrea, comendo o que encontrava pelos campos onde passava e assim, ao fim de vários

dias, cheio de fome, sujo e exausto chegou à Vila. Procurou o boticário a quem se

identificou e em casa de quem dormiu, depois de uma boa ceia. Nesse mesmo dia, um

mensageiro levou a notícia ao meu tio avô Afonso que, no dia seguinte, em pessoa, foi

buscar o sobrinho. Aproveitou para telegrafar para o Porto a sossegar a família

desesperada, que já imaginava o filho afogado no mar ou vítima de qualquer outra

fatalidade.

Passa então a viver na CASA com o tio Afonso, o Artúrio e a família deste. Ajuda nas

lides do campo e tem como principal divertimento acompanhar o tio nas peixadas que

faziam no Rio. Aprende a deitar as redes e as chumbeiras e a pôr o embude nas locas ,

para obrigar os peixes a sair. Os homens metiam-se no Rio, todos nus, mesmo em

pleno inverno. Ele ainda quase menino, um pouco envergonhado, lá ia também. Peixes

apanhados, era preparar a fogueira para os assar. Para ele sobrava ir buscar a lenha e

atiçar o lume. Os peixes, assados pelos homens, eram acompanhados com aquele pão

que ninguém fazia tão bem como a Zefa, e servidos com aquele molho que, só de

lembrar, fazia crescer água na boca. Guarda dessa altura recordações felizes.

Quando, após a transferência do meu avô, os meus avós foram viver para a Vila, o meu

pai foi viver com eles, mas não conseguiu adaptar-se, apesar de cada vez serem mais

fortes os laços com os irmãos, particularmente com José. Por isso passava a maior parte

do tempo na CASA, mesmo depois do casamento do tio Afonso. O Artúrio proporciona-lhe

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20

alguns encontros com raparigas e mulheres da TERRA e assim se faz a sua iniciação. Aos

18 anos apaixona-se por Luísa, com 16, de quem toda a vida guardará um lenço

bordado. Mas Luisa morre com a gripe pneumónica. Não houve uma só família na TERRA

que não tivesse ficado de luto devido à pneumónica. O meu tio Pedro, ainda menino,

morre também vítima da epidemia.

Estava-se no rescaldo da Grande Guerra e em Portugal vivia-se uma tremenda

instabilidade política. A pneumónica tinha espalhado dor e luto à sua volta.

Provavelmente tudo isto, aliado às marcas deixadas pela morte dos avós e à dificuldade

de relacionamento com o pai, terá pesado na decisão que o meu pai tomou. Decidiu

partir, mas nem ele próprio sabia concretamente porque partia tal como não sabia muito

bem para onde ia. Tinha então 19 anos de idade.

A viagem era, de si, uma história fantástica; infelizmente não consegui guardar a maior

parte dos pormenores pois o meu pai não gostava muito de recordá-la. Saiu de casa

ainda noite escura. Num pequeno saco levava a pouca bagagem que tinha e, numa

taleiga, a merenda que Zefa lhe tinha arranjado, convencida que o meu pai ia para uma

festa, numa aldeia um pouco distante. Só levava uma intenção, atravessar a fronteira.

Subiu e desceu ladeiras até chegar ao Douro, que atravessou a nado. Ao fim de alguns

dias foi ter a Medina Del Campo onde foi acolhido por uma família de lavradores, muito

hospitaleira, para quem trabalhou durante cerca de um ano e meio. Mas o seu espírito

inquieto não o deixou parar por lá mais tempo. Conhece Denis, um jovem francês que se

tinha acolhido em Espanha durante a Grande Guerra e que vai regressar a casa em

Bedous, nos Pirinéus, relativamente perto de Lourdes. Parte com ele. Vai a Lourdes com

Denis. Reza pela primeira vez, depois de tanto tempo. Nas suas orações, num misto de

português e castelhano, pois fora assim que as aprendera, lembra os mortos, os vivos, a

TERRA e a CASA. No regresso a Bedous, passam por Pau onde Denis lhe apresenta a

sua prima Monique. Monique parece-se imenso com Luisa, o que perturba o meu pai.

Nasce assim a segunda grande paixão da sua vida. Disposto a remover montanhas e

com a ajuda de Denis o meu pai aproxima-se da família de Monique. O pai, Mr. Dupont, é

marceneiro e tem uma oficina em Pau. O meu pai vai trabalhar com ele. Aprende o ofício

e trabalha empenhadamente, por um lado para impressionar o pai de Monique, por

outro porque o trabalho lhe dá prazer. Gostava de usar as plainas, as garlopas, as enxós.

Gostava do cheiro da madeira e do serrim, da resina da madeira de pinho ainda verde.

Com Monique limita-se a trocar olhares que são correspondidos. Parecia que finalmente

iria reencontrar a paz há tanto perdida. Espera toda a semana pelo domingo. Ao entrar

na Igreja faz por entrar logo a seguir a Monique para receber das mãos dela o hissope de

água-benta. E assim passa mais de um ano. Quando Mr. Dupont se apercebe das

intenções do meu pai chama-o e diz-lhe:

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21

� Meu rapaz, não tenhas ilusões. A Monique está prometida a um primo que

presentemente vive na Argélia. Logo que regresse casar-se-ão.

Nessa mesma noite o meu pai arruma as trouxas e prepara-se para partir. Por baixo da

porta da marcenaria deixa um envelope dirigido a Mademoiselle Monique. Lá dentro uma

mensagem curta, aliás a única mensagem de amor que trocou com ela, para além dos

olhares e da passagem do hissope.

� Il faut que je parte mais je t´aimerai toujours.

Passa pela igreja. Entra e pede perdão a Deus pela falta que irá cometer. Passa junto da

pia de água-benta e rouba o hissope. Não sabe bem porquê, leva um destino- Marselha

- de que Denis lhe falara. Está-se em 1921, depois da guerra, e arranjar trabalho não é

fácil. Consegue uns biscates na estiva do porto. Conhece marinheiros e com a ajuda de

um deles consegue partir como clandestino para Dakar, no Senegal. Não faz a mínima

ideia de onde fica o Senegal, mas ao consultar o mapa, apercebe-se que é perto da

Guiné, a colónia portuguesa de que ouvira falar nos tempos de escola. Durante a viagem

decide que não ficará em Dakar. Decide que é para a Guiné que há-de ir. Pensava que

uma vez no Senegal seria fácil chegar à Guiné, pois dominava razoavelmente a língua

francesa. Só que ignorava que a maior parte da população falava nas suas línguas

nativas e o francês de pouco lhe serviria. Atravessou parte do Senegal com Infali, um

gila4 guineense. Foi assim que conseguiu chegar à Guiné. Durante a viagem com Infali

toma corpo a ideia de montar um pequeno comércio, com o pouco dinheiro que

conseguira juntar ao longo dos últimos três anos. Estabelece-se em Bafatá. Pela sua

vida passam várias mulheres, uma delas a crioula Cesária. Pela primeira vez escreve

para casa, depois de quase três anos e meio sem dar notícias. A carta encontrou-a por

acaso a TIA, esquecida no meio de umas peças de linho que herdou da mãe. Achou que

eu devia ser a sua depositária e por isso veio parar às minhas mãos.

Bafatá, 2 de Dezembro de 1922

Querida Mãe:

Escrevo-lhe da Guiné, em África. Não é tão longe como Angola ou Moçambique,

mas mesmo assim demoram-se muitos dias a cá chegar, de barco. Imagino

quantas aflições não terão passado por minha causa. Mas, como coisa ruim não

tem perigo, encontro-me são e salvo. Quando saí de Portugal fui para Espanha, e

daí para França. Não imagina as saudades que tive da CASA e de todos, e o

número de vezes que pensei em voltar. Eu sei que a mãe não consegue entender

por que razão parti. Se calhar nem eu sei. Mas eu sou assim. Só estou bem onde

não estou. Na CASA sinto-me bem, mas a mãe sabe que eu e o pai não nos

4 contrabandista que faz o comércio transfronteiriço

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22

conseguimos entender. Sei que a culpa é minha que sou rebelde. Acredite mãe,

eu gostava de mudar, mas não consigo. Tanto só estou bem onde não estou, que

da França vim para aqui, sem eu mesmo saber porquê. Acho que alguém guia os

meus passos, mesmo sem eu querer, mas também não sei quem. Mas não se

preocupe. Estou bem. Aqui é tudo muito diferente. As pessoas são pretas, como a

mãe deve saber, mas mesmo assim diferentes. Há assim como que uma espécie

de raças dentro da raça. Há os manjacos, os balantas, os mandingas, os fulas, os

futa-fulas, os saracolés, os papéis e muitos outros. Não falam português e cada

uma dessa espécie de raças fala uma língua diferente das outras. Mas há uma

língua que muitos falam -o crioulo. É nessa língua que eu lhes falo. É engraçado

o crioulo, mãe. Bó quer dizer tu, cá, quer dizer não, jubi é ver, obi é ouvir. Vivem

numa espécie de aldeias a que chamamos tabancas. Os homens geralmente

vivem com mais que uma mulher, todos na mesma casa. As casas são redondas,

com um só compartimento e cobertas de palha. Alguns, principalmente os fulas,

criam gado, umas vacas muito magrinhas, mas grande parte vive da agricultura.

O que mais cultivam é o arroz mas também um pouco de milho e mancarrra

(amendoim). No amanho da terra não usam arados, nem charruas mas sim uma

espécie de sachos de madeira. O arroz é cultivado nas bolanhas (uma espécie de

charcos) e o trabalho é essencialmente feito por mulheres que, enquanto

trabalham, carregam os filhos ás costas presos com um pano. Aqui faz sempre

calor. De Novembro a Maio quase que não chove. Nos outros meses cai cada

aguaceiro, que de repente a água nos dá pelos joelhos. Mas não molhamos as

calças porque aqui andamos de calções - os brancos, porque os pretos andam

com uns balandraus até aos pés. Isso os homens, porque as mulheres andam com

o peito destapado e usam uns panos compridos coloridos, enrolados na cintura e

que vão quase até ao chão. Andam todos descalços e as mulheres usam muitos

penduricalhos, geralmente ao pescoço e nos tornozelos. São muito boa gente

mas têm costumes muito diferentes dos nossos a começar pela religião Não são

da nossa religião e a maior parte são muçulmanos. Também acreditam em Deus,

só que Lhe chamam Alá. Moisés é um profeta e Jesus Cristo também. Dizem que o

último profeta foi Maomé, que deixou as leis sagradas que respeitam, e que estão

no Alcorão, que é assim como a Bíblia para nós. Não comem carne de porco nem

bebem vinho. O seu dia Santo não é o domingo, mas a sexta. Às igrejas, que são

diferentes das nossas, chamam mesquitas, mas em muitas tabancas não há

mesquitas. Mas eles rezam sempre cinco vezes ao dia. Lavam-se antes de rezar e

rezam de joelhos ,com a cabeça encostada ao chão, virados para Meca que é a

terra onde nasceu Maomé, e que fica muito longe daqui. Todos os anos, durante

um mês fazem jejum total do nascer ao pôr- do- sol. Chamam-lhe o mês do

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Estórias com sabor a Nordeste Regina Gouveia

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Ramadão. A música deles também é muito diferente da nossa, e os instrumentos

também. Usam muitos, feitos por eles com cabaças, peles de macaco, troncos de

árvores - são tambores, uma espécie de bandolins, e muitos outros que não lhe

sei explicar. Eu gosto muito de ver as danças que fazem ao som dessa música.

Como nem todos são muçulmanos, há quem beba vinho, mas é vinho de palma.

Não se faz com uvas mas com seiva de palmeiras que são umas árvores muito

altas. Aqui há árvores muito esquisitas. Há umas muito grandes que parecem ter

ratos pendurados, mas não são - são uns frutos que não comemos. E por falar em

frutos há aqui alguns que eu nunca tinha visto. O que mais estranhei foram uns

que sabem a resina. Agora já me estou a acostumar ao gosto, mas foi custoso.

Também não comem batatas e couves como nós. Quase só comem arroz. A terra

também não é como a nossa. É vermelha e não há serras. Há rios muito cheios de

curvas e maiores que o nosso. Há peixes, mas também não sabem como os

nossos. Um animal que às vezes aparece nos rios é o crocodilo. Já ouviu falar

mãe? É como um lagarto muito grande e que come animais grandes, mesmo

pessoas. Por falar em animais, há aqui muitos macacos que trepam pelas árvores,

lagartos, pássaros, alguns muito bonitos, e muitos morcegos, tantos, que à noite

urinam em cima da gente. Há muitas moscas, muito mais que aí. São tantas que

a gente já as não enxota. Habitua-se e anda com elas pela cara, pelos braços,

pelas pernas. Há também muito mosquito, osgas, e baratas- grandes que eu sei

lá. Os cheiros aqui são muito diferentes, mas gosto deles. Não tanto como dos

nossos, já se vê. Aqui há poucos portugueses mas os poucos que somos juntamo-

nos de vez em quando, para jogar uma suecada e lembrar as nossas terras. Eu

tenho um pequeno soto onde vendo de tudo. Quando preciso de comprar coisas,

por vezes vou de barco a Bolama que é a terra mais importante, e que fica junto

do mar. Mas também tenho um amigo, o Infali, que é uma espécie de

contrabandista e que me abastece. Os nomes, como vê, também são diferentes -

Infali, Mamadu, Bonco, Sajuma, Kumba, Braima, Binta. Pus-me para aqui a contar

tudo e nem perguntei por todos. Como estão ? O Pai continua a caçar? O José já

fez a tropa? A Clara já tem namorado ? E as meninas? Já devem estar grandes. E

o tio Afonso ? O Artúrio e a Zefa estão bem ? Diga-lhes que, quando for

Fevereiro, colham uns galhos de amendoeira em flor e os ponham na sepultura

dos avós. Ou eles ou os filhos.

Mãe, vou-me despedir. Como o Natal se aproxima desejo-lhes um Santo Natal.

Aqui não tem grande graça. Para mim é triste porque me lembro muito dos Natais

na CASA.

Recomende-me a todos, que eu qualquer dia volto.

A sua benção, mãe

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Estórias com sabor a Nordeste Regina Gouveia

24

João

Quando a minha avó recebeu esta carta, já a tia Clara não fazia parte do rol dos vivos;

tinha falecido vítima de tuberculose. A carta está um pouco esborratada. Dizia a TIA que

já tinha chegado assim e que a minha avó reconhecera nela duas lágrimas de meu pai.

Talvez essas duas se tenham misturado com outras, vertidas pela minha avó que durante

aqueles três anos e meio tinha sofrido calada. Ao marido não podia falar da sua dor pois

ele, indignado com a partida do filho, nem sequer no seu nome queria ouvir falar.

O meu pai manter-se-ia em Bafatá por mais uns anos e escreveria mais cartas para casa,

mas delas não ficou qualquer registo. Da sua passagem pela Guiné, para além desta

carta, resta apenas uma foto desbotada ao lado da Cesária, em frente a uma palhota,

possivelmente aquela onde viviam. Durante esse tempo morrerão a sua irmã Adélia, o

Artúrio e a Zefa, José cumprirá o serviço militar, ingressará na força aérea, casará e

terá dois filhos, e Matilde ficará noiva do tio Justino. A sua estada na Guiné foi

bruscamente interrompida quando, em 1934, adoece gravemente com tifo. Regressa à

TERRA, segundo ele, para morrer. Mas não era esse o seu destino.

7

Quando o barco atraca no cais o TIO aguarda ansioso o irmão. Recebera a carta que lhe

escrevera, já com muita dificuldade, num dos momentos em que a febre abrandara um

pouco. Em poucas linhas, com uma letra tremida dizia que estava muito doente e

embarcava para Portugal onde esperava chegar ainda com vida para depois ser

sepultado debaixo dos sobreiros. O TIO receava já não reconhecer o irmão pois tinham

passado 15 anos. Mas quando viu descer um homem envelhecido, com aspecto

cadavérico, amparado e muito trémulo, teve como que uma intuição. Quando chegou

perto dele perguntou:

� És o João ?

O meu pai já não respondeu. Caiu inanimado nos braços do irmão. Por isso, quando

naquele dia abriu os olhos, não conseguiu perceber onde estava. Não identificou o quarto

nem o rosto da mulher que o fitava.

� Sou a sua cunhada Laura , mulher do José.

Teve alguma dificuldade em apreender o significado daquelas palavras. Durante um mês

não dera conta do que se passava à sua volta. Nos seus delírios frequentes chamara pelo

avô, pela mãe, pela avó, por Luisa e por Monique. Um dia, alagado em suor grita aflito:

� José perdoa-me mas foi o Sr. Professor que me obrigou.

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Estórias com sabor a Nordeste Regina Gouveia

25

Após o incidente no desembarque, o TIO levou o meu pai para sua casa e chamou o

Doutor Silveira, médico da família, que o examinou cuidadosamente.

� Então Doutor? Perguntou o TIO.

� Só por milagre se salvará- respondeu o Doutor Silveira.

O TIO comunicou então para a TERRA o estado em que estava o irmão. As notícias não

os apanharam de surpresa pois já anteriormente tinha escrito a dar conta do conteúdo

da carta do meu pai. Desde esse dia que a minha avó e a TIA passavam a maior parte

do tempo na igreja, onde as velas não se apagavam. Na CASA, todos faziam promessas

a todos os Santos, particularmente a Sto Estevão. Voltas de joelhos à capela, uma toalha

de linho bordada para cada altar, razões de trigo, dias de jejum. Até o meu avô fez uma

promessa, ele que não era muito para essas coisas. Como já de há muito se falava na

necessidade de construir um coreto par as festas em honra de Sto Estevão, o meu avô

prometeu que se o filho se salvasse mandaria construir não um, mas dois coretos junto

da capela do Santo.

Fosse pelas promessas e rezas, fosse pelos cuidados que o TIO e a tia Laura tiveram,

fosse por obra dos medicamentos receitados pelo Dr. Silveira, pouco a pouco o meu pai

foi-se libertando das garras da morte. No primeiro dia em que se levantou para se sentar

numa cadeira de braços no pequeno jardim da casa, foi amparado pela tia Laura e pelo

TIO. Só nesse dia é que reparou nos rostos daqueles seus companheiros dos últimos

tempos. O irmão era uma bela figura- alto e garboso, quando estava fardado ficava com

um aspecto imponente. A cunhada não era bonita mas tinha uma presença agradável.

Reparou então em duas crianças pequenas que brincavam num cavalinho de pau- os

sobrinhos Afonso e Gonçalo que não conhecia, mas de quem o irmão já lhe falara por

carta. Como era possível que durante todo este tempo não se tivesse apercebido das

crianças ? O TIO e a tia Laura tinham-nas posto em casa dos avós maternos durante a

doença do tio. Abraçou o irmão e chorou. Lembrou-se então que o pai dizia que um

homem não chora, mas essa lembrança fê-lo chorar ainda mais.

Passara-se mais um mês e o meu pai ia poder, finalmente, regressar à CASA.

Interrogava-se várias vezes sobre como iria ser a sua relação com o pai e partiu com

uma certa apreensão. O TIO acompanhou-o pois o seu estado de saúde era ainda

precário. A viagem entre a Vila e a TERRA foi feita num carro de machos, todo enfeitado

com ramos de árvores, e tocado pelo António Joaquim. Quando chegou ao fundo das

escadas da CASA foi penetrado pelos cheiros que jamais esquecera. Mas o que mais lhe

ficou na memória dos cheiros desse dia foi o dos milhos doces polvilhados com canela.

No balcão, e continuando pela cozinha, estavam todos- o pai, a mãe, o tio Afonso, a irmã

Matilde, o António Joaquim, a Germana e a Balbina. Estes últimos eram ainda muito

novos quando partira pelo que já não os conhecia, embora desde logo tivesse adivinhado

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Estórias com sabor a Nordeste Regina Gouveia

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quem eram. Estavam também muitos vizinhos, entre eles um jovem que também não

reconheceu.

Começou por abraçar a mãe; preparava-se para cumprimentar o pai na forma habitual,

uma vénia com o pedido da bênção. Mas o pai, com os olhos rasos de lágrimas

estreitou-o nos braços. Seguiram-se os cumprimentos a todos os outros, uns mais

efusivos que outros. Para o fim ficou o jovem que não reconhecera. Era Justino. O

casamento da TIA com o tio Justino já tivera data marcada, mas logo que se soube do

estado de saúde do meu pai a TIA disse-lhe:

� Temos que desmarcar o casamento por agora. O meu irmão João está muito mal

e as esperanças são poucas. Não vou casar nestas condições.

O meu pai recupera agora rapidamente. Passa a maior parte do tempo sentado na

varanda. No nicho maior da parede há sempre o jornal e um ou outro livro. Não lhe

apetece ler mas o pai vai-lhe dando conta dos principais acontecimentos. Por vezes, ao

fim da tarde, os dois vão até à Fraga. De lá avista-se o Santo, onde já se iniciaram as

obras dos coretos. Pai e filho aprendem a gostar-se mutuamente, tal qual são um e

outro. Vai, com os pais e a irmã, conhecer Fátima. Vai também a Viana a e ao Bom

Jesus em Braga. Os pais podem assim rever sítios que já não viam há muito, enquanto

que ele e a irmã os conhecem pela primeira vez.

Tudo parece ter voltado ao normal e a TIA casa finalmente com o tio Justino, no dia 5 de

Agosto de 1935. O casamento foi na capela de Sto Estevão, já rodeada de dois belos

coretos. A Capela de Sto Estevão não fica propriamente na TERRA. Fica à beira do Rio, no

fundo de uma ladeira. Chegar lá não é muito difícil. O pior é regressar, pois a ladeira é

muito íngreme. Vem-se de macho, é certo, mas para os animais a subida também não

é fácil. O casamento foi celebrado pelo Padre Marcos e os padrinhos foram o TIO e a tia

Laura. No fim da cerimónia religiosa e antes de se iniciar o almoço, a ti Idalina cantou as

loas. Possivelmente como ainda as cantava, quando eu a conheci muitos anos mais

tarde.

“Biba o noibo mai-la noiba

Bibam os pais que a criaram

Bibam também os padrinhos

que à igreja os lubaram”

Seguiu-se o almoço. Peixes do rio, vitela, borrego e peru assados, arroz de vitela,

presunto, folar de carne, bolo moreno, pão de ló, arroz doce, aletria, milhos doces,

súplicas, económicos, e vinho à descrição. Também não podiam faltar o “vinho fino” e os

tremoços, adoçados no Rio.

Após o casamento da TIA todos estranharam a avó, mas atribuíram o seu ar abatido à

apreensão que lhe causava a partida da filha, que supunha para breve. Infelizmente não

era só isso. A Avó estava doente. Já passara por muito. A morte da irmã, dos pais e dos

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Estórias com sabor a Nordeste Regina Gouveia

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três filhos foram-na minando por dentro. A juntar a tudo isso, as aflições que passara

por causa do meu pai. A doença que quase o levara, foi a gota de água. Morre em 1936,

vítima de ataque cardíaco.

A morte da avó abalou muito toda a família. Mas a vida não para. Na CASA vivem agora

o avô, a TIA, o meu pai e o António Joaquim com as irmãs. O tio Justino está a trabalhar

em Viana, mas sempre que pode aparece. Quando o meu pai partiu em 1919, a TIA tinha

apenas dois anos pelo que praticamente não se conheciam. É nesta altura que se vão

criar laços. Com a TIA e com o tio Justino, de quem o meu pai sempre dirá, tal como o

dissera a mãe:

� Se há homem bom, está ali.

Agora restabelecido, o meu pai assume-se pela primeira vez como lavrador. É ele que

trata de todos os problemas da CASA, ajudado pela TIA. Quando é preciso contratar os

ranchos para apanha da amêndoa e da azeitona, contratar os jeireiros para as diferentes

tarefas, vender a amêndoa, o azeite ou o vinho é ele quem vai, depois de ouvir a opinião

do pai, da TIA e do António Joaquim. Participa em todos os trabalhos sejam eles a lavra,

a limpa, ou qualquer outro. Mas os que lhe dão especial prazer são a poda e a enxertia,

que aprendeu em menino com o avô.

Sempre que parece estar a restabelecer-se o equilíbrio na vida emocional do meu pai,

surge algo desestabilizador. Em 1938, o meu avô morre. Para o meu pai,

estranhamente, a morte do pai foi um golpe mais duro do que a morte da mãe. Talvez

por se terem encontrado tão tarde, talvez porque mais um laço se rompia. A TIA vai

finalmente para Viana. O meu pai decide partir, desta vez para o Brasil, onde vive o tio

Filipe. O tio Filipe não era propriamente tio. Era um primo da minha avó, filho de Diego

Rodriguez e Maria Clemente. Tendo ficado órfão bastante cedo, decidiu vender a

herança e partir para o Brasil. A vida correu-lhe bem e tinha em S. Paulo uma firma,

relativamente importante, de venda por grosso - a firma Rodriguez. Manteve sempre

algum contacto com a família pelo que o meu pai partiu ao seu encontro, mas sem disso

o prevenir. De tal modo se sentia que disse aos irmãos que desta vez partia para não

voltar. Antes de partir vendeu ao TIO a sua parte na CASA. Entre a parca bagagem que

levou iam um lenço bordado e um hissope.

8

Apesar da sua vida errante, uma das maiores cidades que o meu pai já tinha visto era

Lisboa, que conhecia mal. Estivera lá apenas duas vezes. A primeira quando regressara

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Estórias com sabor a Nordeste Regina Gouveia

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doente da Guiné, e dessa vez pouco ou nada tinha visto. A segunda foi antes do

embarque para o Brasil. Durante uma semana, com o irmão, tinha visitado os

Jerónimos, a torre de Belém, o castelo de S. Jorge, tinha passeado pela Baixa, tinha

entrado no Grandela e no Chiado. Quando chegou a S. Paulo, ficou um pouco assustado

com o tamanho da cidade e teve alguma dificuldade em dar com a morada do tio Filipe.

Quando chegou a casa do tio ficou estarrecido. Era uma bela casa, rodeada de um

jardim. Tocou a campainha e apareceu uma empregada a quem se identificou. O tio

Filipe não estava, mas estava a mulher, a tia Carlota, uma senhora brasileira,

descendente de italianos, ainda nova. A tia Carlota, recebeu-o numa sala ricamente

mobilada, cheia de cristais e pratas. Nunca o meu pai vira nada parecido. Na CASA não

havia cristais nem pratas, à excepção da caixinha de rapé do pai, no nicho pequeno da

varanda, e quanto aos móveis, eram muito simples- camas de ferro, várias arcas, dois

roupeiros em mogno onde se acomodava a roupa de toda a família e na sala uma mesa

com 12 cadeiras e um louceiro, também em mogno. As outras casas por onde tinha

passado, eram ainda mais simples, à excepção da casa do irmão José em Lisboa, que

em nada se comparava à casa do tio Filipe. Parecia assim confirmada a ideia de que o

tio Filipe estava muito bem de vida. O tio Filipe não estava, mas não devia demorar.

Esperou.

Quando o tio chegou, acompanhado do primo Júlio, 10 anos mais novo que meu pai, este

apresentou-se como o João, o filho mais velho da prima Marta. O tio Filipe nunca

conhecera o João, pois saíra rapaz da Terra, ainda a prima Marta era solteira, mas com

ela trocara sempre correspondência, pelo que estava um pouco a par da vida da família.

O meu pai já não saiu dali. Ficou a viver em casa do tio e a trabalhar na firma

Rodriguez, de início fazendo um pouco de tudo, mas logo depois como caixeiro viajante.

O tio Filipe lembrava-lhe um pouco o pai, pois também pautava a sua vida por muitas

regras. A sua e a dos que trabalhavam com ele. Uma das regras que lhe impôs foi:

� Aqui sou o tio Filipe, mas na firma sou o Sr. Rodriguez.

Não sei se ao escolher para o meu pai a vida de viajante, o tio Filipe teve em conta a

vida errante que ele até aí levara. Mas a escolha não poderia ter sido melhor. O meu pai

representava a firma do tio nas principais povoações ao longo da Estrada de Ferro da

Sorocabana: Avaré, Botucatu, Ourinhos, Presidente Prudente. Adorava a sua vida de

viajante. Era muito responsável no seu trabalho, mas totalmente irresponsável no que

dizia respeito à sua vida privada. Tinha uma mulher em cada uma das localidades por

onde passava e gastava quanto ganhava, com carros, orgias e mulheres. Isto até

conhecer Nair.

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Estórias com sabor a Nordeste Regina Gouveia

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Foi no Brasil que o meu pai teve uma vida social mais intensa. Torna-se sócio da

ARCESP5, relacionando-se com muitos outros comerciantes, alguns deles portugueses

(patrícios, como sempre lhes chamava). Juntamente com seu primo Júlio é sócio de

várias associações culturais e recreativas, entre elas o clube de regatas Tietê. É

precisamente nesse clube que ambos conhecem Nair. Desde logo Nair impressiona o meu

pai. Lembra-lhe Luisa e Monique. Não sabe bem porquê. Estas eram relativamente altas,

tinham lábios finos e cabelos castanhos. Nair é relativamente baixa, tem lábios grossos

e olhos e cabelos negros.

Nair não só impressionou o meu pai, como também o seu primo Júlio, mas foi este quem

conquistou o coração de Nair. Não houve disputa entre os dois. Quando o meu pai se

apercebeu de que Júlio gostava de Nair, retirou-se simplesmente de cena. Não seria

justo roubar a mulher ao primo, filho do tio que tão bem o tinha acolhido. Durante anos

viveu uma paixão em silêncio. Nair casou com Júlio em 1942. Meu pai foi, não só

padrinho de casamento, como também padrinho dos dois filhos do casal- uma menina

nascida em 1943 e um rapaz nascido em 1944. Júlio, partilhando uma mania comum a

muitos brasileiros, de darem a todos os filhos nomes começados pela mesma letra, deu

a ambos um nome começado por R: Renata e Ricardo. Renata e Ricardo irão sempre

representar papel importante na vida afectiva do meu pai. De Nair guardará sempre,

sem o primo e ela saberem, uma luva que um dia deixou esquecida no clube. Afinal,

omitir este facto ao primo não deveria ser tão grave como roubar um hissope numa

igreja de Pau.

A partir do dia em que conheceu Nair, passou a levar uma vida mais regrada. Para isso

também terá contribuído o fim da sua vida de viajante. Efectivamente o tio Filipe, cedo

se apercebeu que meu pai tinha muito mais jeito para o negócio do que Júlio. Pensou,

então, que a melhor maneira de garantir o futuro da firma após a sua morte, seria dar-

lhe sociedade. O meu pai tornou-se então sócio minoritário da firma que passou a

chamar-se Rodriguez e Matias. O que o tio Filipe nunca imaginou foi que, uns anos

mais tarde, o meu pai venderia a sua quota ao primo Júlio, para regressar

definitivamente à TERRA. Mas isso foi depois de conhecer Mariana.

9

Durante todo este tempo o meu pai raramente escreve aos irmãos que se queixam dos

seus silêncios prolongados. Esses escrevem com mais frequência. Nas cartas, dão-lhe

conta do que se vai passando. Numa delas o TIO fala-lhe entusiasticamente da festa de

Sto Estevão em que ele, e mais alguns camaradas, acompanharam a procissão

5 Associação dos Representantes Comerciais do Estado de S. Paulo

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Estórias com sabor a Nordeste Regina Gouveia

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sobrevoando-a em aviões. Fala-lhe também de Majores e Coronéis que leva à TERRA e

de uma homenagem que lhe prestaram na Vila. Conta-lhe vários episódios divertidos

como aquele que aconteceu com a Germana, uma das vezes em que foi à TERRA com

dois oficiais seus colegas, e a viúva de um outro, uma senhora suíça, a quem chamavam

Madame Junqueira, por ser este o nome de família do falecido marido, e que já por

várias vezes manifestara o desejo de conhecer a TERRA. Segundo ela, as descrições do

TIO traziam-lhe à mente recordações da sua Suíça distante. Madame Junqueira não

conseguiu conquistar a simpatia da Germana:

� “A Senhora D. Madama debe ser uma desabergonhada. Bem de Lisboa, só, com

os homes, e fuma como eis”.

Mas o meu pai tenta esquecer a TERRA, a CASA e tudo o que com elas se relaciona.

Também durante todo este tempo só entrou três vezes numa igreja, aliás sempre a

mesma, a Igreja de N. Sr.ª da Consolação, em S. Paulo. Foi no casamento de Júlio e nos

baptizados de Renata e Ricardo. O coro da igreja acompanhou a cerimónia religiosa do

baptizado de Ricardo. O meu pai reparou particularmente na solista, com uma linda voz

de soprano. Estava decidido a conhecê-la. Seguiu-a várias vezes sem que ela desse por

isso. Soube onde morava. Na rua havia uma estabelecimento de um patrício, “Seu”

Antero, com o qual foi metendo conversa até saber pormenores da sua vida. Era uma

jovem, descendente de italianos, de uma família simples, que vivia ali perto com os pais

e os irmãos. O pai era contabilista na farmo-química Baldacci. A jovem, que se chamava

Mariana, vivera até há pouco tempo com uns tios, numa fazenda do interior do estado.

Foi “Seu” Antero quem apresentou Mariana ao meu pai. Quando o meu pai começou a

fazer a corte a Mariana, ela comentou com a irmã mais velha.

� Aquele “Seu” João é bobo. Podia ser meu pai.

Mas o meu pai, apesar de 20 anos mais velho que Mariana, era ainda um homem

cativante. Muito vivo, bom contador de histórias, com uma vida social relativamente

intensa e, na altura, com uma boa situação económica. Tudo isto terá contribuído para

que a resistência de Mariana fosse progressivamente diminuindo. Casaram em 1945,

mas só civilmente. Não sei se a iniciativa foi de ambos, ou de algum deles em particular,

mas creio que os dois tinham a consciência que naquela relação havia grande

probabilidade de insucesso.

Mariana revelou-se uma caixinha de surpresas. Não só era uma mulher muito bonita

como tinha uma série de predicados, para além daquele que tinha chamado a atenção do

meu pai, no dia em que a conheceu - a sua bela voz de soprano. Bordava com mãos de

fada e cozinhava divinamente. Nos primeiros anos de casamento tudo correu bem.

Tinham uma vida despreocupada. Em casa havia de tudo e podiam divertir-se. Iam à

ópera, ao cinema, ao clube, à praia; viajavam no Chevrolet que o meu pai tinha

comprado, conviviam muito com amigos. Quando Mariana manifestou a vontade de ter

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Estórias com sabor a Nordeste Regina Gouveia

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um filho, aí as coisas complicaram-se. O meu pai disse frontalmente que não queria

filhos. Já não tinha idade para ser pai e além disso era um homem que não gostava de

amarras. Para crianças já tinha os afilhados a quem queria como filhos. Perante a

insistência de minha mãe começam as desavenças no casal seguidas de curtas ausências

de meu pai, cada vez mais frequentes. Quando em 1949 a minha mãe lhe anuncia que

está grávida o meu pai propôs-lhe desfazer-se da criança, o que a minha mãe não aceita.

O meu pai terá feito um ultimato à minha mãe:

� Ou ela, ou eu.

Ao que a minha mãe terá respondido:

� Ela.

As ausências do meu pai tornam-se agora prolongadas, para além de frequentes.

A minha mãe sabe que voltou à vida desregrada que tinha quando era viajante. Mas está

decidida. A criança irá nascer. Quando eu nasci em 10 de Janeiro de 1950, num dia de

calor sufocante, o meu pai estava ausente já há uns dias. Regressou, por acaso, no dia

15 depois de ter passado por casa do primo Júlio onde lhe deram a notícia do meu

nascimento. Quando soube que era uma menina terá apenas comentado:

� Um azar nunca vem só.

Quando entrou em casa eu dormia no berço. Parece que nem para mim olhou. Sentou-se

na sala onde eu e minha mãe nos encontrávamos. Foi a minha mãe quem falou

primeiro.

� Vens para ficar?

� Ainda não sei- respondeu o meu pai.

A minha mãe saiu por instantes e o meu pai aproximou-se do berço, creio que mais por

curiosidade do que por qualquer outro sentimento. Olhou para mim e voltou a sentar-se.

Quando a minha mãe regressou e após alguns minutos de silêncio, o meu pai perguntou-

lhe:

� Já tem nome?

� Estava a pensar em Gabriela- respondeu a minha mãe

Então o meu pai disse:

� Eu preferia que fosse Marta.

Foi assim que nasceu o meu nome.

Embora o meu pai não tivesse decidido ficar, agora são os períodos de presença que

passam a ser cada vez mais frequentes e prolongados. Um dia, tinha eu já cinco meses,

decidiu-se a ficar definitivamente. Nesse mesmo dia levou lá a casa os afilhados, Ricardo

e Renata. Ter-nos-á apresentado assim:

� Esta menina chama-se Marta e é como se fosse vossa irmã.

E para mim, que do mundo tinha começado a descobrir as minhas mãos, terá dito:

� Estes são a Renata e o Ricardo que são como teus irmãos.

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32

O meu pai tinha decidido aprender a gostar de mim, como em tempos tivera que

aprender a gostar do pai.

Até essa altura o meu pai praticamente nunca falara da TERRA nem da CASA com a

minha mãe. Será a partir daqui que ele começará a fazê-lo criando na minha mãe uma

imagem que só para ele era real. A CASA era o lugar mais acolhedor que alguma vez

tivera conhecido. A TERRA era um lugar paradisíaco, com cheiros, cores, sons e sabores

como não existiam em qualquer outra parte do mundo. Falava-lhe de estevas, urzes,

arçãs, papoilas, alecrim; de andorinhas, melros, calhandras, cotovias, poupas, cucos,

gaios. Descrevia as encostas do Rio, no fim do Inverno, com as amendoeiras em flor,

como parecendo véus de noiva, em Junho com os seus tons de castanho, amarelo, verde

e roxo, e em Outubro com os tons dados pelas folhas secas das árvores e das vinhas,

lembrando telas dos melhores pintores. Falava-lhe das oliveiras no inverno, geladas,

como lembrando árvores de prata, dos pingarelhos de gelo caindo dos beirais como

lembrando peças de cristal. Falava-lhe também da capelinha de Sto Estevão, lá junto ao

Rio, que corria preguiçoso nos dias cálidos de Verão e tumultuoso nos dias de invernia,

como que ciumento da beleza das encostas que o ladeavam. Descrevia os vários tons do

céu, cinza quase branco anunciando neve, cinza quase negro anunciando trovoada, azul

sem igual, nos dias límpidos ou, em outros dias, azul manchado de branco pelos castelos

de nuvens cuja sombra, nas encostas, se misturava com todos os seus tons tornando a

paisagem ainda mais deslumbrante. O meu pai falava de tudo isto, mas omitia quão

duras são a apanha da amêndoa sob um sol abrasador e a da azeitona, sob um frio de

rachar, tal como omitia a inexistência de estrada entre a vila e a TERRA, a falta de luz

eléctrica, de água canalizada, o pouco conforto da CASA. Creio que nestas omissões não

havia intenção deliberada de enganar a minha mãe. Não, o meu pai via de facto a TERRA

como o paraíso e a CASA como um palácio.

A firma não vai lá muito bem desde a morte do tio Filipe em 1951. O primo Júlio,

decididamente não tem jeito para o negócio. Também a situação política no Brasil vai

de mal a pior. Todos estes factores aliados à saudade da TERRA e da CASA devem ter

levado o meu pai a fixar o regresso como objectivo. Consegue convencer a minha mãe,

inicialmente muito renitente. Nessa altura vende a sua quota ao primo. Felizmente o tio

Filipe já cá não estava para ver. Regressa. Desta vez será definitivamente. Estávamos

em 1954, o ano em que o presidente Getúlio Vargas se suicida. Parte para Portugal,

apenas com uma mágoa- não poder levar consigo Renata e Ricardo.

10

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Estórias com sabor a Nordeste Regina Gouveia

33

A viagem é feita de barco. Viemos em primeira classe. Eu sou a principal companhia do

meu pai pois a minha mãe vem enjoada quase todo o tempo. O meu pai, sempre que

contava a viagem, comentava com orgulho:

� Algumas vezes, a única “senhora” presente na sala de refeições era a Marta.

Sei que fizemos escala nas Canárias. Não que me lembre, mas ainda guardo uma boneca

que o meu pai lá me comprou. Ao chegar a Lisboa lá estava o TIO, no cais, para receber

o irmão. Desta vez o irmão não vinha para morrer. Há muito que não amava tanto a

vida.

Logo que conheceu a minha mãe, o TIO apercebeu-se que a adaptação à TERRA e à

CASA seria no mínimo difícil, senão impossível. Tenta convencer o meu pai a adiar a ida,

e a procurar um modo de vida em Lisboa. Mas o meu pai estava decidido. Queria ir ver a

TERRA e a CASA e o mais rapidamente possível. É certo que a CASA já não lhe

pertencia. Vendera a sua parte ao irmão antes de partir, mas ele desde logo lhe dissera:

� É como se continuasse a ser tua.

Fomos no Austin A40 que o TIO tinha recentemente comprado. Mas só até à Vila pois

para a TERRA ainda não havia estrada. Na Vila aguardava-nos o António Joaquim com

um carro de machos ricamente engalanado com galhos de amendoeira em flor.

Estávamos em Março. Os bancos para nos sentarmos estavam cobertos com colchas de

linho impecavelmente lavadas. Todos estes cuidados tinham estado a cargo da TIA e do

tio Justino que tirou uns dias de licença par nos poder receber. A TIA, já uma semana

antes da chegada fora com a Germana e a Balbina para o Rio, tratar da lavagem das

colchas. Em sua opinião, só no Rio uma roupa podia ficar bem lavada. No dia da

chegada o António Joaquim foi colher os ramos de amendoeira e depois, foi o trabalho

de engalanar o carro. A imagem do carro impressionou a minha mãe mas não conseguiu

tornar a viagem confortável. Quando entrou na TERRA a minha mãe estava maçada.

Para além disso, sentia frio como nunca tinha sentido, mesmo quando, em menina,

vivia na fazenda dos tios, onde por vezes as temperaturas chegavam aos 80C.

Fosse por ter chegado ao lusco- fusco, fosse pelas vestes das pessoas, todas muito

escuras, fosse porque, para além da CASA poucas casas eram caiadas, a minha mãe não

conseguiu ver as tais cores fascinantes de que o meu pai lhe falara. Via tudo cinzento e

triste. E quanto aos cheiros os que ela identificava não os achava agradáveis- o do

estrume e o dos excrementos dos animais, nas ruas. Quando chegou à CASA, as

desilusões continuaram. Ao entrar na cozinha o cheiro que mais identificou foi o de fumo,

fumo esse que lhe fazia arder os olhos. A iluminação da CASA era feita através das mais

variadas formas- candeias, lampiões, candeeiros de petróleo, gasómetros e um

petromax. Por azar, nessa noite ninguém conseguiu pôr o petromax a funcionar e o

cheiro do carboneto no gasómetro, incomodava a minha mãe. Tiveram que comer à luz

de um candeeiro de petróleo.

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34

O jantar estava divino, mas Mariana já está demasiado confusa para percepcionar os

gostos e os cheiros. À sobremesa come uma compota de ginja na qual parece detectar

qualquer coisa estranha. Dizem-lhe que é assim mesmo. Mas no dia seguinte, à luz do

dia, Mariana descobre que a ginjada está coberta de moscas que morreram coladas ao

doce, vítimas da sua gula. A CASA tem andado de facto um pouco desleixada. Se a TIA

ainda estivesse para controlar tudo, tal nunca teria acontecido. Mas a Germana e a

Balbina, duas boas criaturas, dão pouca importância a certos aspectos de higiene. O meu

pai, esse está deliciado com tudo. Parece ter regressado aos seus dias de menino. Nessa

noite Mariana chora copiosamente e no dia seguinte decide não sair da cama. Nem no

seguinte, nem nos vários que se lhe seguiram. Ignora-me, mas eu tenho muito quem

cuide de mim- a TIA, a Germana, a Balbina e todas as vizinhas, particularmente a Sr.ª

Felismina e a sua filha, Mininha. De tal modo eu ando de mão em mão que a Sr.ª

Felismina me chamará sempre a pombinha da Catrina. A TIA e o tio Justino têm que

regressar. A TIA ainda pensa ficar mas o tio Justino acha que o meu pai e a minha mãe

têm um problema que tem que ser resolvido por eles e que qualquer interferência

estranha pode ser negativa.

O estado depressivo da minha mãe agrava-se de dia para dia e o TIO acha que a minha

mãe tem que ser vista por um médico. Regressamos a Lisboa, mas já durante a viagem

o meu pai vai arquitectando uma solução para o problema. Construir uma casa, com

mais conforto, no palheiro que existe no cimo da aldeia. Fala nesta ideia ao irmão que o

apoia. Com esta ideia em mente o meu pai quer voltar à TERRA o mais cedo que lhe for

possível. O médico acha que a minha mãe está como que em estado de choque pelo que

nem pensar em regressar. O meu pai pensa então em regressar só comigo, enquanto a

minha mãe fica internada numa clínica. O TIO acha que é um disparate pois, embora a

Balbina e a Germana sejam muito extremosas, não saberão cuidar duma criança com

hábitos muito diferentes dos delas. Mas o meu pai é inflexível.

� Eu levo a Marta comigo.

Não sei se ao tomar esta decisão, o meu pai já estava a contar com a colaboração da

Sr.ª Felismina e da Mininha. A Sr.ª Felismina morava paredes meias com a CASA. Ela, o

Sr. Pedro e a Mininha. O casal era já idoso e a Mininha, teria na altura os seus 35 anos.

Foi com esta família que eu passei a maior parte daquele tempo. De início estranhei

muito a falta de minha mãe (a mamãe, como eu dizia) mas pouco a pouco a sua

imagem foi-se diluindo. Desses tempos guardo muito boas recordações. Nunca tinha

brincado com um gato, nunca tinha feito festas a um cordeiro, nunca tinha pegado num

pintainho ao colo e agora tinha um só para mim, que a Mininha me tinha dado e de que

eu cuidava, com a sua ajuda. Também nunca tinha cozinhado. Mas a Srª Felismina

arranjou-me uma panelinha de ferro de três pés, idêntica ás que ela punha ao lume, e

eu fingia que cozinhava. Para não estragar a roupa que eu trazia, toda ela muito cuidada,

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alguma bordada pela minha mãe, fazem-me umas peças de roupa simples para eu usar

lá em casa.

O meu pai anda preocupado com os projectos para a casa de cima, que é assim que ele

lhe começa a chamar. Não me pode dar grande atenção, mas todos os dias me conta

histórias e de vez em quando leva-me ao palheiro para me explicar como será a nova

casa. Claro que eu não consigo imaginar nada. Fico apenas com a ideia de que irá ser

bonita. Uma das vezes leva-me até ao ribeiro para onde estavam a ser conduzidas as

canalizações para os esgotos. Não sei bem quanto tempo decorreu entre essa ida e a

minha crise de paludismo. Na TERRA, e em tempos mais remotos, era relativamente

frequente as pessoas adoecerem com paludismo- sezões, como lhe chamavam. Por vezes

bastava uma ida ao rio ou a um dos vários ribeiros, onde deveriam existir mosquitos do

género “anopheles”. Quando comecei com muitas tremuras e períodos de muita febre, o

meu pai mandou o António Joaquim à Vila falar com o Dr. Sebastião, um homem

extremamente generoso, um autêntico João Semana. Em face das explicações do

António Joaquim, o Dr. Sebastião imaginou logo do que se tratava. Apareceu munido

com quinino e preparado para fazer uma recolha de sangue para análise. Comecei logo a

tomar o quinino. Posteriormente a análise confirmou que eu estava com paludismo. Não

sei quanto tempo estive doente. Passei todo o tempo na casa da Sr.ª Felismina. Lembro-

me de que sempre que abria os olhos via à cabeceira da cama, o meu pai, a Mininha e a

Sr.ª Felismina. A Germana e a Balbina passavam os dias a chorar.

� Ai que se “bai” o nosso anjinho.

Pediram licença ao meu pai para fazer uma promessa a Sto Estevão. Se eu curasse, iria

vestida de anjo na procissão da festa de Maio. É que Sto Estevão tem duas festas - a de

Setembro e a de Maio, apenas com a parte religiosa. O meu pai anuiu. Faria tudo para

me ver boa. As vestes foram alugadas em Viana. Foi assim que eu “fui de anjo”. A

minha mãe só soube de tudo isto, tempos mais tarde. A TIA e o tio Justino souberam

mais cedo porque apareciam com frequência. Aliás foram eles que trataram de alugar as

vestimentas. O TIO também vinha à TERRA de vez em quando tal como eu e o meu pai

íamos por vezes a Lisboa. A minha mãe é que não viria à TERRA durante mais de um

ano, precisamente o tempo de construir a casa de cima.

11

A minha mãe regressou à TERRA em Agosto de 1955. O tio Justino estava de férias pelo

que se pôde contar com o apoio da TIA na difícil tarefa de criar condições para a

adaptação da minha mãe. Desta vez, ao chegar, o choque não foi tão grande. Para isso

contribuíram vários factores. Um deles foi a viagem. O meu pai tinha comprado um

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automóvel, um Sinca em segunda mão e, à sua custa, mandado dar um jeito ao

caminho entre a Vila e a TERRA. Foi de automóvel, e não de carro de machos, que a

viagem foi feita desta vez. Por outro lado, a minha mãe já sabia com o que contava.

Sabia ainda que existia a casa de cima com outro conforto.

Para a casa de cima, que confina com duas ruas, entra-se por uns grandes portões em

ferro que dão acesso a um pátio descoberto- o pátio de cima- mais tarde coberto por

uma ramada. Esse pátio dá acesso a um outro, fechado- o pátio de baixo- que

comunica com a outra rua. Este pátio, por cima do qual está um terraço, dá para a

adega que tem uma outra porta, para a rua. O pátio de cima dá ainda acesso ao quarto

da costura, ao pio do vinho, também este com um outro acesso a partir da rua, e às

escadas para o piso superior. Neste há uma cozinha grande (se bem que muito menor

que a da Casa) com uma lareira, uma sala, dois quartos, o escritório do meu pai e uma

casa de banho. Por cima da cozinha há um depósito para onde era elevada a água. Esta

era transportada, desde a fonte, em cântaros dentro das cangalhas no dorso dos

machos. No pátio de baixo foi colocado um pequeno gerador de energia eléctrica. Não

havia nem forno, nem galinheiro, nem cortelho de porcos, nem loja para os animais. O

meu pai sabia que, nessa áreas, jamais iria poder contar com a minha mãe. Quando a

minha mãe chegou não havia móveis, à excepção de duas camas de ferro. O meu pai

iria deixar a tarefa da decoração para a minha mãe, na esperança de que isso lhe

criasse um envolvimento com a casa. As ordens médicas eram no sentido de a ocupar

em tarefas, nas quais se sentisse envolvida.

Como a casa de cima não tinha móveis, apenas lá dormíamos. O dia passávamo-lo na

CASA. Eu adorava. A CASA com todas aquelas escadas, com o Lar e o forro, com os

escanos e as preguiças exercia sobre mim grande fascínio. As refeições eram

confeccionadas sob a supervisão da TIA. A minha mãe ia assistindo e aprendendo. Ainda

hoje acho estranho como é que sendo a TIA tão intolerante com certas práticas, tão

conservadora, aceitou tão bem a minha mãe, apesar de casada apenas civilmente. Nunca

se referia a isso, embora a situação a desgostasse. Quando alguma pessoa levantava o

problema ela limitava-se a dizer:

� São outras terras com outros usos. Que lhe havemos de fazer?

Já no que respeita aos problemas decorrentes da dificuldade de adaptação da minha

mãe, aí era totalmente sincera quando dizia:

� Não me admiro nada. Para quem vem duma terra onde há de tudo, deve ser

muito difícil gostar disto. Isso é para nós que temos aqui as nossas raízes.

Quando a minha mãe manifestou a intenção de começar a bordar, a TIA pôs-lhe à

disposição peças de linho, que ainda estavam intactas nos baús, linhas, agulhas, dedais

e bastidores.

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Estórias com sabor a Nordeste Regina Gouveia

37

À tarde, a Mininha vinha fazer companhia à minha mãe enquanto eu ia fazer companhia

à Sr.ª Felismina, o que me dava sempre imenso prazer. Já ensaiava uns pontos de

meia, que ela me tinha ensinado. Eu tinha como objectivo fazer uns meiotes para o Sr.

Pedro, obra que nunca concluí, não sei se devido à minha inabilidade se à morte do Sr.

Pedro dois anos depois. A Mininha, tal como a TIA, ficava admirada porque a minha mãe

bordava sem “risco”. Imaginava o que ia bordar e a partir daí as mãos trabalhavam com

as agulhas e as linhas. Também os motivos bordados nada tinham a ver com aquilo a

que a TIA e a Mininha estavam habituadas- eram araras, tucanos, colibris, sabiás,

papagaios, catatuas, tatus; eram goiabas, jaboticabas, caquis, mangas, mamões. E tudo

isto envolvido num colorido que me encantava.

Os encontros da minha mãe com a Mininha, em que participava a TIA sempre que estava

na TERRA, ficariam sempre marcados na minha memória, especialmente a partir do

momento em que a minha mãe recomeçou a cantar. Também aí houve aprendizagem

dos dois lados: enquanto a minha mãe aprendia as modinhas da Terra, a TIA e a

Mininha aprendiam modinhas brasileiras, que a minha mãe cantaria sempre com

sotaque, mesmo depois de praticamente o perder. Eu gostava muito das que falavam

daquele outro mundo de além-mar, que eu já quase esquecera. Uma delas era uma

canção com que a minha mãe me embalara .

Bicho Tatu

saia do telhado

deixe o “minino “

dormir sossegado

Dorme neném

que a cuca vem “pegá”

mamãe foi na roça

papai no “cafezá”.

Eu crescia assim entre dois mundos. Mas a adaptação da minha mãe não estava a ser

fácil. De vez em quando ficava muito triste e com o olhar muito distante como daquela

vez em que ensinava à Mininha uma canção da sua terra que dizia:

Minha terra tem palmeiras onde canta o sabiá

As aves que aqui gorjeiam não gorjeiam como lá.

Não conseguiu a acabar o último verso. Começou a chorar. Acho que a canção traduzia o

que lhe ia na alma. Mas fazia sempre por reagir, ocupando-se. Empenhou-se na

decoração da casa. Os móveis, escolhidos por ela, eram simples mas com a marca do

seu bom gosto. Foi ela quem depois confeccionou as cortinas com o linho da CASA que

bordou, muitas vezes com a ajuda da Mininha. Agora passávamos a maior parte do

tempo na casa de cima e outra das suas ocupações foi ensinar-me a ler, mesmo antes

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Estórias com sabor a Nordeste Regina Gouveia

38

de ir para a escola. Tentou também ensinar a ler a Germana e a Balbina que não

passaram da escrita do nome. Comigo teve mais sucesso. Quando cheguei à escola, em

Outubro de 1956, já sabia ler, escrever e fazer contas de somar e subtrair. Entrei

directamente para a segunda classe. A aritmética foi-me ensinada pelo meu pai. Não sei

se por isso, quando mais tarde chegou a hora de decidir qual o curso a seguir, a minha

mãe sugeria- me as Letras e o meu pai, as Ciências.

12

Guardo algumas recordações da escola mas nenhuma do meu primeiro dia de aulas.

Também guardo muito poucas recordações da professora que tive nesse ano- a D.

Cremilde. Curiosamente lembro-me mais dos seus três filhos, duas meninas e um

menino, com idades entre os dois e os cinco anos, e do marido que recordo sempre

montado num fogoso cavalo branco. A D. Cremilde vivia na casa da escola, se é que casa

se lhe podia chamar. Na verdade a escola era um edifício muito velho, um pouco em

ruínas, onde já tinha estudado o meu avô Álvaro. Consistia em duas salas- uma era a

sala de aulas que albergava simultaneamente as quatro classes e a outra era a casa da

professora, onde a D. Cremilde criou dois compartimentos, improvisando uma separação

com uns cortinados de chita. Eu, tal como os outros alunos, conhecia a casa porque a D.

Cremilde, como tinha as crianças pequenas, ia muitas vezes a essa zona. Por isso

deslocávamo-nos lá, com frequência, para mostrar a conta, a cópia ou qualquer outro

trabalho. Toda a gente sabia que a D. Cremilde detestava estar na TERRA; há muito que

almejava ser colocada na sua aldeia que distava mais de 20 km. Era lá que vivia o

marido que, de vez em quando, a vinha visitar. No meu segundo ano de escola, ou seja,

na terceira classe, a escola passou a posto escolar, segundo se dizia à boca cheia, por

influência da D. Cremilde, que assim conseguiu ser colocada mais próximo da sua aldeia.

Passámos então a ter como professora uma regente escolar- a menina Celeste- de quem

também me lembro pouco. Lembro-me no entanto de que a menina Celeste trocava os

bês pelos vês. Assim dizia-nos:

� Meninos vamos ao “travalho”.

Creio que estas gafes da menina Celeste resultavam da sua extrema preocupação em

não trocar os vês pelos bês como acontece ainda hoje na TERRA. Quando um dia o meu

pai comentava este episódio com o TIO este aproveitou logo para dizer:

� Mais uma bela obra do “Botas”. Fecha as Escolas Normais, cria os postos

escolares. Quanto mais ignorantes formos, melhor.

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Estórias com sabor a Nordeste Regina Gouveia

39

Claro que o meu pai foi logo em defesa do homem de S. Bento e mais uma discussão se

gerou.

Uma das vezes, na escola, aprendemos o hino nacional. A minha mãe disse-me:

� Esse não é o teu hino.

Ensinou-me o hino brasileiro e eu, confesso, achava-o bem mais bonito pois falava de

flores e estrelas enquanto o que me haviam ensinado na escola falava de armas. Soube

que falava de estrelas porque, à medida que me ia ensinando a letra, a minha mãe ia-

me explicando o significado. Assim, a propósito do verso que diz em teu formoso céu

risonho e límpido a imagem do cruzeiro resplandece, eu aprendi o que era o Cruzeiro do

Sul. O meu pai já me ensinara a reconhecer no Céu a Ursa Maior, a Ursa Menor, a Estrela

Polar e a estrela da tarde, que não era estrela, mas planeta. E eu tinha pena de não

poder ver também o Cruzeiro do Sul.

Mas o que eu mais recordo do meu tempo de escola são alguns colegas, a Conceição, o

Zé, a Beatriz, a Pureza, a Lucinda, o Manuel, a Rosa, nem todos da minha classe, e os

jogos e brincadeiras que fazíamos. Havia brincadeiras consideradas masculinas e

brincadeiras consideradas femininas. Eu gostava de brincar a qualquer delas. Assim

jogava ao pião, ao espiche, à rodinca, à macaca, ao esconde-esconde, ao dá-me lume,

ao minha mãe dá licença, à corda, aos ganhotes, ao caça, aos jogos de roda, ás

casinhas. Tinha pena de não brincar descalça como a maior parte das crianças, mas para

além de saber que a minha mãe me castigaria se o fizesse, tinha tido uma má

experiência- uma das vezes que tinha experimentado, tinha espetado uma brocha num

pé. O ferimento infectou e como não queria que a minha mãe soubesse, ia todos os dias,

às escondidas, fazer o tratamento a casa da Sr.ª Felismina.

A minha aprendizagem na escola, que penso ter sido pequena, era complementada em

casa pelos meus pais, mantendo-se na generalidade a distinção- o pai para a aritmética,

a mãe para a leitura, as cópias e os ditados. Por essa altura fazia eu também outra

aprendizagem- a da “doutrina”. A catequista, uma senhora já de idade a quem

chamávamos a menina Amelinha, lá nos ia ensinando um conjunto de coisas tais como “

Deus é um Ser Omnipotente, Omnisciente e Misericordioso Criador e Senhor do Céu e da

Terra” às quais não sei que significado eu atribuía na altura. Sempre que mostrávamos

saber bem a lição, a menina Amelinha dava-nos um “santinho”. Eu gostava de

coleccionar santinhos e tinha vários. No meu segundo ano de catequese a menina

Amelinha achou que eu já podia ir catequizando os mais novos, cinco crianças muito

pequenas a quem eu também deveria ensinar que Deus era um ser omnipotente e

omnisciente. O problema é que eu não tinha santinhos para distribuir. Aí tive uma ideia

luminosa. Recortava, no Comércio do Porto que o meu pai assinava, os quadradinhos da

banda desenhada Ferdinand. Eram esses os santinhos que eu distribuía. Quando a

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menina Amelinha descobriu ficou muito escandalizada. Segundo contaram mais tarde à

minha mãe, a menina Amelinha contava o episódio a toda a gente comentando:

� Filha de uns hereges, o que é que se havia de esperar?

Neste comentário estava implicitamente contida a referência ao casamento civil de meus

pais.

No fim da catequese ou da escola eu ia sempre a casa da Sr.ª Felismina, tivesse ou não

tivesse motivo. Aí e à CASA, que tinha ganho um novo encanto. O António Joaquim, que

entretanto casara, tinha agora um filho bébé. A casa de cima, essa crescia, não em

tamanho mas em cores, sons, cheiros e sabores.

13

A casa de cima parecia ligada à CASA por um cordão umbilical. Muitos dos cheiros,

sabores cores e sons começavam agora a penetrá-la. Não todos, claro está. Não havia a

capoeira das galinhas, nem o cortelho dos porcos, nem a loja dos machos. Também na

casa de cima não se faria fumeiro, nem folares. Tudo isso se continuaria a fazer na

CASA. Seria ainda a CASA que nos abasteceria de queijo, galinhas, perus, carne de

porco- fresca logo após a matança, da salgadeira, depois. Mas na casa de cima far-se-

iam as compotas, o vinho, a aguardente, as doçarias de Natal, as sopas de tomate e

tantos outros cozinhados que a minha mãe aprendera a fazer. Aos cheiros e sabores

importados da CASA juntavam-se agora os das coxinhas de galinha, do pirão, da

macarronada à italiana, do nhoqui, da couve à mineira, da pamonha de milho, do bolo

de fubá, do bom bocado, dos quindins, do “pé de moleque”, dos canudinhos recheados

com creme, dos gelados (a que a minha mãe sempre chamaria sorvetes).

À exuberância das cortinas bordadas pela minha mãe, associava-se a cor das dálias,

das malvas, dos amores perfeitos, dos lírios, das açucenas, dos goivos, que na CASA

ornamentavam as escadas e a varanda e que agora, num canteiro criado no pátio de

cima, conferiam o mesmo colorido à nova casa. Os sons, esses tinham vindo quase

todos, inclusive o do chilrear das andorinhas que começaram a fazer o ninho num dos

beirais da casa. De todos os sons, o que mais recordo é o da escacha da amêndoa. Foi

sempre a tarefa que mais me seduziu. Talvez porque eu tomava parte activa nela. Ainda

hoje guardo o meu escachador. Era pequenino, cilíndrico e mais perfeito que qualquer

outro. A escacha da amêndoa era feita no pátio de baixo. Previamente a amêndoa era

escabulhada no mesmo pátio e ensacada. Era dos sacos que as escachadeiras (neste

trabalho havia essencialmente mulheres) tiravam punhados de amêndoas que

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Estórias com sabor a Nordeste Regina Gouveia

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mantinham na mão esquerda. Essas amêndoas eram colocadas, uma de cada vez, sobre

uma cova numa pedra, e fixadas entre o polegar e o indicador da referida mão. Com o

escachador, usado com a mão direita, partia-se a casca da amêndoa deixando o grão,

umas vezes intacto, outras vezes com pequenas mazelas. O grão ia sendo deitado,

primeiro para o avental e, posteriormente, para sacos. Era bonito ouvir o som dos vários

escachadores, umas vezes em uníssono, outras vezes não. Mas o que eu mais gostava

de ouvir, eram as conversas, as histórias, as adivinhas, os provérbios, as cantigas com

que se iam preenchendo os serões da escacha. Lembro-me de uma noite em que, ao

desafio, se iam dizendo provérbios encadeados.

� No poupar é que vai o ganho .......Grão a grão enche a galinha o papo....... Há

quem poupe no farelo e esbanje na farinha.....Vale mais quem Deus ajuda do

quem cedo madruga, .....Deitar cedo e cedo erguer dá saúde e faz crescer....A

conversa é como as cerejas...... Que se comem em Maio ao borralho.

Lembro-me também das adivinhas:

� Alto está, alto mora, todos o vêem, ninguém o adora....Verde foi meu

nascimento, mas de luto me vesti, para dar a luz ao mundo mil tormentos

padeci.... Destas e de muitas outras.

Lembro-me ainda de certas conversas e histórias de uma ingenuidade comovedora mas a

que na altura achava imensa graça, como uma contada pelo ti Geraldo. O ti Geraldo

era um homem que trabalhava muitas vezes lá para casa. Quando, por qualquer razão

aparecia, a minha mãe perguntava, como é habitual na TERRA:

� Quer uma pinguinha?

Ao que ti Geraldo respondia, de imediato, sempre da mesma maneira:

� Já que tanto insiste, minha senhora.

Ora a história que o ti Geraldo contou numa sessão da escacha, e que por certo era fruto

da sua imaginação, tinha a ver com a festa da Vila. O ti Geraldo contava que para a festa

tinham convidado o Bispo. No momento em que o Bispo entrava na Vila, o presidente

da comissão das festas disse para o mestre da Banda de Música:

� Toque qualquer coisa homem, não vê que o Sr. Bispo está a chegar.

� E o que é que quer que toque ?

� Qualquer coisa.

Então ouve-se a banda a tocar uma modinha da altura, que começava assim: “A mim

não me enganas tu, a mim não me enganas tu”. Comentava o ti Geraldo:

� Coitado do “home”. “Pori” na altura “num” se l´ atinou outra.

Os termos usados eram estes e muitos outros. Por isso o tio Justino gostava de

acompanhar a escacha. De vez em quando pegava no seu bloquinho e fazia as suas

anotações, como daquela vez em que a tia Maria apareceu com uma ligadura na mão.

� Então que lhe aconteceu tia Maria?

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� Andei a “esgodar” as escaleiras. “Esbarei”, caí e “esmochilei-me” toda.

Também gostava de ouvir as modinhas que se cantavam na escacha, especialmente se

minha mãe acompanhava.

A minha mãe adorava cantar, especialmente árias de ópera. E assim, um novo som se

juntava aos importados da CASA. O meu pai cantava razoavelmente, embora nada que

se comparasse com a ex-soprano do coro da igreja de N. Sra. da Consolação. Cantavam

muitas vezes em conjunto e eu adorava ouvi-los. As suas árias preferidas eram da

Traviata (Brindisi), do Rigoletto (como eu gostava de ouvir La donnna é mobile), do

Nabucco (Va pensiero), das Bodas de Fígaro (Non piú andrai), da Carmen (Habanera e a

marcha do toreador), da Madame Butterfly (Un bel di vedremo, que eu achava muito

triste), do Barbeiro de Sevilha (Largo al factotum). Nessas alturas a minha mãe parecia

feliz. Acontecia o mesmo quando, com o meu pai, recordava filmes que ambos tinham

visto. Lembro-me essencialmente de dois títulos: “Casablanca” e “E tudo o vento levou“.

Lembro-me também de falarem de actores, cujos nomes só muito mais tarde eu

aprenderia a dizer: Humphrey Bogart, Ingrid Bergman, Clark Gable, Vivien Leigh, Fred

Astaire, Ginger Rogers.

Um outro som podia também ser ouvido agora na casa de cima- o da máquina de costura

da minha mãe, comprada numa das últimas idas a Lisboa. A minha mãe costurava bem

e sabia bordar à máquina. Por isso, agora alternava os bordados à mão, mais finos mas

mais lentos, com os feitos à máquina, um pouco mais grosseiros mas indubitavelmente

mais rápidos. Ensinou a Mininha a bordar à máquina. E não só a Mininha. Muitas

raparigas da terra por ali passaram, entre elas a Rosa, a Lurdes, a Etelvina. O seu

esforço de adaptação continuava. Ás vezes parecia integrada, outras vezes ficava com

um ar muito triste e dizia:

� Onde havia eu de vir parar, neste fim de mundo.

Ás vezes sugeria ao meu pai.

� E se fôssemos ao Brasil? Aproveitavas para ver os teus afilhados.

� Talvez um dia- era sempre a resposta do meu pai.

Eu percebia que a minha mãe tinha muitas saudades da sua terra. Talvez por isso e

também porque gostava muito de a ouvir, pedia-lhe muitas vezes para contar histórias

da sua vida além-mar. Então falava-me da fazenda onde vivera em criança, das boiadas

e dos boiadeiros, das plantações de cana do açúcar, dos cafezais, das bananeiras, das

goiabeiras, dos pássaros, das modinhas que se cantavam ao serão ao som dos violões.

Falava-me também de S. Paulo, que eu já mal recordava, e da sua vida ainda solteira,

indo às praias de Santos com os irmãos, andando de bicicleta, comendo pé de moleque e

sorvete e bebendo garapa e água de coco. Falava-me da vida depois de casada, dos

cinemas, das óperas, das festas. Falava-me dos amigos- da Olga Stein, descendente de

alemães, da Paola Pistilli, descendente de italianos tal como a minha mãe, da Hilda

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Estórias com sabor a Nordeste Regina Gouveia

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Sanharib, de origem síria, do Takahashi, descendente de japoneses, e da sua maior

amiga, a negra Benedita. Eu achava que devia ser muito bonita uma terra onde

conviviam gentes de todo o mundo. Essa terra era, para mim, a terra da minha mãe. Eu

sabia que também era a minha mas, talvez por já me lembrar pouco dela, eu achava que

a minha terra era a TERRA. Isso não impedia que em alguns casos eu gostasse mais das

coisas do lado de lá. Era o caso do hino. Já com o Natal era diferente.

14

O Natal brasileiro de que a minha mãe me falava, com as indispensáveis idas à praia,

nunca me entusiasmou. Ao falar desse natal, a minha mãe não falava das idas ao

musgo, da fogueira da praça nem do cantar dos Reis. E disso eu gostava muito.

Começava a pensar nele muito tempo antes, não sei bem quanto, mas só quando

chegavam a TIA e o tio Justino é que o Natal começava realmente para mim. No dia

seguinte à sua chegada, eu, o meu pai e o tio Justino íamos ao musgo. Às vezes tinha

pena de arrancá-lo, tão verde e tão fofo ele estava, agarrado às paredes. Parecia

veludo. Arrancado o musgo começava a construção do presépio, essencialmente a

cargo do tio Justino e da minha mãe. Eu colaborava activamente. Também os meus

colegas de escola vinham muitas vezes ajudar. Fazia-se no pátio de baixo. O tio Justino

começava por empilhar várias cortiças de modo a criar uma estrutura em relevo. Depois

cobríamo-las com o musgo. Em seguida, com areia fazíamos uns carreirinhos ao longo

dos quais iríamos colocar várias figuras. Estas eram de barro pintado e tinham sido

trazidas de Viana pelo tio Justino. Também foi ele quem fez a cabana do Menino Jesus,

com uma cortiça virgem. Para além das figuras, da cabana e dos carreirinhos, havia no

presépio um lago, feito com um espelho envolvido de musgo, ao qual dava acesso um

regato que serpenteava ao longo da cascata e era feito com papel prateado. Havia ainda

uma fogueira feita com papel celofane vermelho, coberto com galhinhos de lenha, e por

baixo do qual se colocava uma lanterna acesa. Era à volta desta fogueira que se

colocavam os pastores. Presa do tecto havia uma estrela que iluminava os reis magos.

Era de cartão coberta com papel dourado.

Para além do presépio havia lá em casa uma árvore de Natal, e creio que seria a casa de

cima a única casa da TERRA onde tal acontecia. A ideia da árvore de Natal tinha vindo

com a minha mãe. Era feita com um zimbrinho que era colhido no mesmo dia em que

íamos ao musgo. Os enfeites eram pompons de lã, coloridos, que eu fazia com a ajuda

da Mininha, e pequenos biscoitos que a minha mãe fazia com vários formatos- de

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Estórias com sabor a Nordeste Regina Gouveia

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estrela, de meia lua, de sino, de árvore. Na parte superior da árvore havia um grande

laço de seda arranjado pela minha mãe.

Mas o Natal era muito mais que o presépio e a árvore. Era a ceia, sempre na CASA, até à

morte da TIA. Comíamos todos à mesa- os meus pais, a TIA e o tio Justino, a Germana,

a Balbina, o António Joaquim e a família. A ceia constava de bacalhau, polvo e pescada

cozidos com batatas e couves da TERRA que têm um sabor diferente de todas as outras

que eu conheço. E tudo isto era regado com o azeite dourado das oliveiras, também da

TERRA. Eu, na altura, não apreciava muito essa comida mas sabia que depois vinham as

sobremesas. E dessas eu gostava. Eram as rabanadas, as filhós, os milhos doces, o arroz

doce, a aletria, os fritos de jerimum, os rochedos de amêndoa. No dia de Natal o almoço

era na casa de cima. Invariavelmente era peru recheado com farofa acompanhado de

arroz com amêndoas, passas e nozes. À sobremesa eram doçarias brasileiras- quindins,

bom bocado, docinhos de amêndoa, pudim de laranja. Eu gostava de ajudar a fazer estas

doçarias, particularmente os docinhos de amêndoa. Eram feitos de véspera com uma

pasta de açúcar, gemas e amêndoa, que era introduzida dentro de cascas de nozes

para ali secar. No dia de Natal saíam das cascas docinhos de amêndoa com o formato de

noz.

Depois do almoço eu ia sempre com o meu pai e o tio Justino ver a fogueira na praça.

Ainda hoje se faz a fogueira. Antes do Natal os rapazes da TERRA vão pelas casas mais

abastadas pedir lenha. As pessoas indicam-lhe onde a podem ir buscar. Na véspera de

Natal lá vão eles. Após a ceia de Natal, lá pelas 10 h da noite, a lenha, grandes toros e

raízes, começa ser empilhada na praça, em frente à igreja. Em seguida acende-se a

fogueira. Levam-se umas chouriças para assar e assim, entre conversas, comendo

chouriça assada, os homens vão passando a noite. Se há Missa do Galo, vai-se à Missa.

Caso contrário por ali se fica até passar da meia-noite. A fogueira manter-se-á acesa por

vários dias, enquanto a lenha durar. As mulheres não participam deste evento. Podem ir

ver, passar algum tempo, mas é uma prática essencialmente masculina.

Outra boa recordação que tenho da época natalícia é o cantar dos Reis6. Aí participam

crianças e jovens que vão de porta em porta cantando. Lembro-me particularmente de

alguns excertos de duas canções de Reis. Uma delas era:

Dai-nos leitão e cabrito,

arroz doce e marmelada,

dai-nos vinho de há cem anos

já não vos queremos mais nada.

Trigo e nozes e marmelada,

lombo de porco, vitela assada,

6 assim são designadas as Janeiras

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Estórias com sabor a Nordeste Regina Gouveia

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pão com manteiga, chá ou café

e o Deus Menino nascido é.

A outra, era a última a ser cantada:

Ao carrasco de Lisboa já lhe caiu a bolota

Se nos querem dar os Reis venham-nos abrir a porta

E as portas abriam-se e lá vinham as nozes, a marmelada, os figos, as chouriças. Eu

gostava muito de cantar os Reis em todas as casas mas, muito em especial, na casa de

cima. A minha mãe preparava uma cesta com uns embrulhos feitos em papel de seda

com uns grandes laços. Cada um de retirava da cesta um embrulho. Era bonito, pela

surpresa. Lá dentro podia haver caramelos de leite (que ela fazia tão bem), biscoitos

iguais aos da árvores, docinhos recheados com amêndoa, pé de moleque. Eu ficava

muito feliz até porque me parecia que a minha mãe também estava feliz.

Mas por vezes aquela sua tristeza voltava, como daquela vez em que uma irmã se

lembrou de lhe mandar a primeira “Manchete”. Lembro-me bem da capa. Trazia uma

mulher bonita, vestida de azul e tinha como título: O beijo que o protocolo proibiu. Mais

tarde soube que a mulher bonita era a princesa Grace Kelly. Eu não sabia o que queria

dizer protocolo, por isso também não entendia que relação poderia haver entre

protocolos e beijos mas, acima de tudo, eu não percebia porque razão uma revista com

uma mulher tão bonita na capa, poderia ter deixado a minha mãe tão triste.

Os períodos de tristeza da minha mãe, punham o meu pai muito desorientado. Por vezes

reagia trabalhando até à exaustão (cavando, lavrando, podando, levantando muros nas

propriedades). Outras vezes voltava à vida desregrada que em outros tempos levara,

gastando muito para além das suas possibilidades.

Os gastos com a construção da casa, os tratamentos da minha mãe, os desvarios

episódicos do meu pai, aliados à crise que se inicia na agricultura, fundamentalmente

devida à emigração para a Europa, levam a que a nossa situação económica não seja

invejável. E isto, precisamente na altura em que vão começar os gastos com a minha

educação.

15

Vou para a cidade, estudar para o Liceu. Fico instalada em casa de um casal conhecido

dos meus pais. Os primeiros tempos foram muito difíceis. Tinha muitas saudades da

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Estórias com sabor a Nordeste Regina Gouveia

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família, da TERRA, da CASA e da casa de cima. Só de tempos a tempos os meus pais

apareciam pois não havia estrada para a TERRA; apenas o caminho que o meu pai tinha

mandado arranjar e que no Inverno era geralmente intransitável. Como nessa altura não

havia telefone na TERRA, o correio era a única forma de comunicação. Todos os dias

esperava o carteiro com imensa ansiedade e não conseguia conter as lágrimas, quando

não tinha correspondência. Encontrei na leitura uma forma de compensar as saudades

que eu sentia. Na biblioteca do Liceu requisitava tudo quanto encontrava desde Luisa

Alcott, Condessa de Ségur, Selma Lagerlof, Hans Christian Andersen, Trindade Coelho,

a Júlio Verne e Emílio Salgari.

No dia que cheguei à cidade comecei a contar os meses que faltavam para as férias de

Natal. Depois passei a contar os dias, os minutos e até os segundos. Não consigo sequer

descrever a alegria que tive ao chegar. Lá estavam todos os da CASA e os da casa de

cima. Estavam ainda a Sr.ª Felismina e a Mininha. Difícil foi o regresso à cidade, depois

das férias. Mas a partir do segundo período lectivo comecei a adaptar-me melhor. Em

meados de 1962, foi inaugurada a estrada entre TERRA e a Vila e a partir daí as visitas

dos meus pais passaram a ser mais frequentes, o que também facilitou a minha

adaptação. Uma das vezes em que os meus pais me foram visitar, a minha mãe

ofereceu à senhora da casa onde eu vivia, um pano bordado. A senhora tê-lo-á mostrado

às amigas e uma delas encomendou uma colcha bordada à minha mãe. Com a ajuda da

Mininha a minha mãe iria satisfazer essa encomenda bem como outras que se

seguiriam. Além de a ocupar, esta nova actividade constituía uma ajuda económica que

não se podia rejeitar. Para a Mininha também era bom, pois estava agora muito só.

Tinha morrido a Sr.ª Felismina. Também morrera a Germana que já há muito se

queixava de dores no peito. Estas duas mortes foram as primeiras que eu senti

realmente. Nunca mais a Germana me faria meiinhas rendadas, nem voltaria a ouvir a

Sr.ª Felismina dizer, logo que me sentia puxar a aldraba da porta:

� Aí vem a pombinha da Catrina.

É também por esta altura que a TIA vende ao TIO a sua parte na Casa. A TIA nunca

teve filhos pelo que o TIO quis assegurar que a CASA continuasse na família. Pertence

agora apenas ao TIO mas todos continuaremos a considerá-la como nossa. Tudo se

passa como se agora tivéssemos duas casas, uma filha da outra. Em 1963 chega à

TERRA a luz eléctrica e consequentemente a televisão. Em 1964 chega o telefone.

Durante todo este período ocorreram factos que recordo, uns mais que outros. Uns foram

de carácter mundial ou nacional; outros, ainda, foram estritamente pessoais. Assim em

1961 a nave Vostok 1 efectua o primeiro voo orbital em volta da terra, levando a bordo

Yuri Gagarine. Nesse mesmo ano, Jânio Quadros sucede a Kubitschek de Oliveira na

Presidência da República do Brasil, dá-se o assalto ao S.ta Maria, Portugal perde os

territórios da Índia e inicia-se a guerra colonial. A perda dos territórios da Índia lembra-

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Estórias com sabor a Nordeste Regina Gouveia

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me um episódio, que hoje, volvidos tantos anos, acho perfeitamente bizarro. No entanto,

não sei que significado lhe atribuí na altura. Creio que foi nas férias da Páscoa. Na missa

dominical, os habituais cânticos foram substituídos por um que tinha a ver com a

situação vivida no território. Se bem me lembro, a letra era assim:

Ah,Ah,Ah, heróis de Dadrá

Eh,Eh,Eh, lutai pela fé

Ih,Ih,Ih, Nagar-Avely

Oh,Oh,Oh, Goa não está só

Uh,Uh,Uh, convertei Nehru

Em 1962 teme-se a eclosão de uma nova guerra mundial na sequência da instalação dos

mísseis soviéticos em Cuba. Em 1963 Paulo VI sucede a João XXIII, e Kennedy é

assassinado. Em 1964 recebo a primeira carta de amor, que ainda hoje guardo. Reza

assim:

Minha gentil menina

Quando a vejo passar na praça da Sé, ao ir para o Liceu, o meu coração bate com

tanta força que penso que vai sair do peito. O seu sorriso, que lembra o de Helena

de Tróia, é para mim um bálsamo. Serei eu correspondido?

Diga-me que sim, senão eu morro de desgosto.

António

Como não trazia qualquer outra identificação ainda hoje não sei quem era esse António,

mas por certo não morreu de desgosto. A cidade era grande comparada com a TERRA,

mas não tão grande que uma tal tragédia não desse que falar por muito tempo. Também

nunca vi qualquer outra referência ao sorriso da Helena de Tróia, pelo que não sei se

seria muito galanteador ou não.

É também em 1964 que recebo como prendas de anos dois livros que me irão

acompanhar sempre: O Pequeno Príncipe de Saint- Exupéry e Platero e Eu de Juan

Ramón de Jiménez. O meu gosto pela leitura é cada vez maior. Quando estou na TERRA,

grande parte do tempo passo-o no escritório, a ler.

16

O meu pai também se refugiava agora muito no escritório. Era a parte da casa com mais

cor, que provinha essencialmente das cortinas bordadas pela minha mãe,

complementadas agora por uma colcha, também bordada, que tapava um divã. Este não

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Estórias com sabor a Nordeste Regina Gouveia

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existia inicialmente, mas após a morte da Sr.ª Felismina, a Mininha passava muito tempo

com a minha mãe e, no Inverno, por vezes ficava a dormir lá em casa. No escritório,

para além do divã, havia a secretária e a cadeira do meu pai, ambas em castanho, uma

estante, também em castanho, ao longo de uma das paredes, e um pequeno sofá de

couro. Era um compartimento cheio de fotografias. Nas paredes, as dos meus bisavós

Isabel e Luís Engrácio, com os filhos Matilde, Afonso e Marta, as dos meus avós Marta e

Álvaro, uma do tio Filipe e da tia Carlota com o filho Júlio ainda pequeno, uma outra da

TIA e do tio Justino. Havia também duas fotografias aéreas tiradas pelo TIO- uma da

TERRA e outra do Santo. Em cima da secretária estava apenas a foto da minha mãe. Na

estante encontravam-se vários romances, peças de teatro e alguns livros de poesia.

Eram essencialmente de autores portugueses- Camilo, Eça, Júlio Dinis, Guerra Junqueiro,

Almeida Garret, Abel Botelho, António Nobre, Trindade Coelho. Havia também alguns

autores brasileiros- Juracy Camargo, Machado de Assis, José de Alencar- e um autor

francês, Victor Hugo. Havia ainda na estante uma monografia do concelho, alguns

volumes das memórias Arqueológico- Históricas do Distrito, e os Estatutos da Confraria

de Sto Estevão. Podiam ver-se também uma meia dúzia de livros antigos, alguns que

meu pai herdara do meu avô, outros que comprou em alfarrabistas- Os Lusíadas,

publicação de 1879 da Typographia e Lithografia E. Guyot, em Bruxelas, uma Bíblia

Sagrada, de 1842, edição aprovada pela Rainha D. Maria II, o Dicionário Encyclopedico

da Lingua Portugueza, de Simões da Fonseca, sem data de edição, o Manual

Encyclopedico para uso das Escolas de Instrução Primária de Achilles Monteverde, datado

de 1879, um Formulário e Guia medico do autor Pedro Chernoviz, datado de 1892, 15 ª

edição e que contém a descripção dos medicamentos, as doses, as molestias em que

são empregados, as plantas medicinaes indigenas do Brazil, o Compendio alphabetico

das aguas mineraes, a escolha das melhores formulas, um memorial therapeutico e

muitas informações úteis. Durante muito tempo, ocupou lugar de destaque na estante, o

livro “Salazar na intimidade”, mas um dia desapareceu sem deixar rasto. Para além dos

livros havia arquivos com correspondência, todos eles identificados na capa:

Correspondência com meus irmãos (1938- 1954); (1954- )

Correspondência com primo Júlio e afilhados (1954- )

Correspondência diversa

Havia também várias revistas- alguns números do Seringador, da Ilustração

Portuguesa, da Vida Mundial Ilustrada, da revista Je sais tout ( datados de 1921), um

Borda- d´Água que tinha sido comprado há muitos anos pelo avô Álvaro, e algumas

Manchete. Após a crise da minha mãe, quando a irmã lhe mandou a primeira, o meu pai

pediu-lhe que não voltasse a mandar nenhuma. Mas mais tarde, foi a minha mãe quem

quis recebê-las. Assim existiam várias. Havia ainda vários álbuns de fotografias, alguns

de pessoas que já ninguém identificava, outros mais recentes. Todos eles eram um

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Estórias com sabor a Nordeste Regina Gouveia

49

pouco desorganizados, excepto um que ia sendo construído pela minha mãe

exclusivamente com as fotos que a família lhe enviava do Brasil. Todas as fotos estavam

dispostas por ordem cronológica e em baixo tinham vários dados de identificação. Assim,

sempre que um dos irmãos lhe mandava a fotografia de um novo filho a minha mãe

escrevia por baixo o nome, a data de nascimento, a filiação. Mais tarde a minha mãe

esclareceu-me quanto à intenção destas anotações.

� Assim poderás conhecer melhor a tua família do Brasil, que infelizmente ou nunca

viste, ou já esqueceste.

Disputando o lugar com os livros podiam ver-se, na estante, várias fotos. Uma era do

TIO, ainda novo, fardado; as restantes eram minhas e dos afilhados de meu pai- Renata

e Ricardo. Os afilhados do meu pai sempre fizeram parte do meu imaginário. Escreviam

com alguma frequência ao padrinho e nas cartas vinham sempre umas letras que me

eram particularmente dedicadas. Em compensação, sempre que o meu pai lhes escrevia,

eu também escrevia algumas letras. Às vezes as cartas eram acompanhadas de

desenhos, mas isso quando éramos crianças. Em 1965, escreveram ao meu pai uma

carta que o deixou particularmente feliz. Vinham visitá-lo. Chegaram em fins de Março.

Fomos esperá-los ao Aeroporto da Portela. Nós, o TIO e a tia Laura. O meu pai

reapresentou-nos tal como o fizera há quinze anos:

� Esta é a Marta; é como vossa irmã.

� Estes são a Renata e o Ricardo; são como teus irmãos.

Só que desta vez eu entendi a mensagem. Eles e o meu pai ficaram dois dias em Lisboa

para o TIO lhes mostrar a cidade, e só depois foram para a TERRA. Eu e a minha mãe

regressámos primeiro, pois o meu pai fez questão que tivessem uma recepção à altura. A

TIA e o tio Justino (este de licença por uns dias) ajudaram-nos a criar o ambiente que o

meu pai queria. A nossa casa estava toda ela enfeitada com alecrim e galhos de urze e

giesta floridas. Para o dia da chegada, a minha mãe, com a ajuda da TIA, preparou uma

série de iguarias (quitutes, como ela dizia) fazendo uma miscelânea entra a cozinha

brasileira e a portuguesa, o que encheu a casa dos melhores cheiros e sabores. Foram

dias óptimos. Nunca me lembro de ver o meu pai tão feliz. Eu também me sentia muito

bem com os afilhados do meu pai; na verdade eram para mim os irmãos que eu nunca

tivera. A minha mãe também parecia feliz. Tinha oportunidade de falar da sua terra. Com

Renata e Ricardo retomara o sotaque, que já pouco mantinha. Lembro-me que falavam

muito de Santos, dos seus canais, dos seus morros, o do José Menino, o de S.ta

Teresinha, o da Penha, o Monte Serrat com o seu bondinho, da ilha Porchat, das praias,

a do Gonzaga e a do Itararé. A minha mãe já me falara muitas vezes de todos estes

sítios e havia uma fotografia dela, em fato de banho (em maillot, como ela dizia), com o

meu pai, na praia do Gonzaga.

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Estórias com sabor a Nordeste Regina Gouveia

50

O meu pai fez questão de mostrar o Zimbro aos afilhados. Mas ao Zimbro só chega quem

estiver habituado a andar pelas ladeiras. Por isso, fomos só até à Fraga, de onde se

avista o rio, a capela de Sto Estevão e o Zimbro. O meu pai disse então :

� Foi ali que tudo começou.

Quando Renata e Ricardo partiram de regresso, o meu pai não conseguiu evitar que as

lágrimas lhe corressem pelo rosto enquanto dizia:

� A felicidade é um mito que o homem persegue incessantemente, mas que nunca

atinge.

A década de 60 aproximava-se agora do fim. Em 65 Humberto Delgado fora assassinado

e em 67 é assassinado Che Guevara. Em 68 Salazar cai da cadeira e sucede-lhe Marcelo

Caetano; começa a evolução na continuidade. Ainda em 68 é assassinado M. Luther King

e surge a fugaz Primavera de Praga. Em 69 Neil Amstrong e Edwin Aldrin pisam o solo

lunar e em Portugal vive-se a crise académica, no rescaldo do Maio de 68. Toda esta

década, é indissociável da guerra no Ultramar, da guerra no Vietname, dos “hippies” e

dos Beatles. Por esta altura eu ouvia-os, necessariamente, mas também Chico Buarque,

Manuel Freire, Zé Afonso, Yves Montand, Aznavour, Jacques Brel, Bob Dylan, Joan Baez.

Lia Vinicius, Manuel Bandeira, Fernando Pessoa, Gedeão, Manuel da Fonseca, Torga,

Eça, Namora, Abelaira, Sebastião da Gama, Jorge Amado, Erico Veríssimo, Hemingway,

Steinbeck, Camus, Françoise Sagan. Também por esta altura, eu começava a pôr em

causa muita coisa.

Após a saída da TERRA e com o decorrer do tempo fui começando a ficar deslumbrada

por um mundo que até aí não conhecia- um mundo em que havia verbenas, montras,

cafés, cinemas, bailes, tertúlias, televisão. Comecei a entender a dificuldade de

adaptação da minha mãe. Como tinha sido cruel afastá-la da família, dos amigos e

daquele mundo que sobre ela exercia tanto fascínio? Mas só em 1969, viria a tomar

verdadeira consciência do drama que foi a sua vinda para Portugal.

17

Em 1969 vêm a Portugal as duas irmãs da minha mãe, acompanhadas dos respectivos

maridos. Quando chegaram à TERRA a comoção da minha mãe foi enorme. Chorou

copiosamente abraçada a cada um deles. Depois quis saber tudo sobre os pais, os outros

irmãos, os sobrinhos, a restante família, os amigos, sobre S. Paulo, sobre Santos, sobre

a fazenda do tio e sobre o Brasil em geral. Desde logo notei que os meus tios olhavam o

meu pai com alguma frieza mas na altura não dei grande importância ao facto. Os meus

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Estórias com sabor a Nordeste Regina Gouveia

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tios passaram quase um mês na TERRA. Eu estive presente nos primeiros dias mas tive

que regressar ao Porto, onde me encontrava a estudar. Passado cerca de um mês os

meus tios passaram pelo Porto, já a caminho do Brasil. Foi só nessa altura que me

apercebi realmente de quão dolorosa tinha sido a vida da minha mãe desde que viera do

Brasil.

Desde a sua chegada em 1954 e durante cerca de um ano, a minha mãe nunca escreveu

à família; encontrava-se em tratamento debaixo da grande depressão que se seguiu à

sua chegada. Durante esse tempo foi o meu pai quem escreveu dizendo que estava tudo

bem, apenas a minha mãe um pouco adoentada por ter tido dificuldades de adaptação

ao clima. Em Julho de 1955 a minha mãe escreve pela primeira vez. Uma das cartas é

dirigida aos pais, e nela fala essencialmente de mim, mas também de banalidades. De

modo algum dá a entender o seu verdadeiro estado de espírito. Esse só será dado a

conhecer aos irmãos, com o pedido que nada seja transmitido aos pais. Os meus tios

fizeram questão que eu lesse algumas dessas cartas. Nelas existem trechos altamente

perturbadores. Assim, na primeira carta que escreveu pode ler-se:

� Tentei regressar com a Marta, mas a lei deste país não permite que eu parta sem

autorização do João; sei que ele nunca ma dará. Adora a filha e jamais irá

consentir que eu parta com ela. Eu, sem ela, também não consigo partir, embora

sinta cada dia o coração mais dilacerado. Não consigo viver nesta terra. Sinto que

morro aos poucos, aos 35 anos de idade. Sinto falta de tudo: de todos vocês, do

Sol, do calor, do mar, dos amigos, das pessoas, do sotaque, do bulício da cidade,

de ir ao cinema, à ópera. Se não fosse a Marta nem sei o que eu já teria feito.

Sinto-me como que prisioneira da minha própria vida e sem ter com quem

desabafar. A família do João tem sido muito carinhosa comigo mas não poderia

confidenciar-lhe nada disto. É por isso que desabafo convosco embora saiba que

vos vou fazer sofrer. Mas eu não aguento mais tempo sozinha todo este fardo.

E numa outra, escrita em 1961:

� A Marta está a estudar na cidade a 80 km daqui e não é fácil a deslocação entre a

TERRA e a cidade. Agora que eu começava a habituar-me a viver neste lugar,

surge esta separação. Para mim tudo isto é muito doloroso. Tentei convencer o

João a irmos viver para a cidade, mas ele só se sente bem aqui. Para ele isto é o

paraíso e foi nessa ilusão que eu vim aqui parar. Mas o que encontrei, se não foi

o inferno, foi pelo menos um lugar a meio caminho entre o inferno e o purgatório.

Ainda numa terceira pode ler-se:

� Nunca neguei que a situação económica, muito confortável, do João, contribuiu,

em parte, para a minha decisão de casar com ele. Hoje até isso desapareceu. A

nossa situação económica é muito precária. Houve gastos com a construção da

casa e com a minha doença; há despesas constantes com o arranjo do caminho

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Estórias com sabor a Nordeste Regina Gouveia

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que ele usa como estrada, com os frequentes consertos do carro que não está

preparado para tais pisos, com os estudos da Marta. Para agravar tudo isto, a

agricultura está em crise. Trabalho bastante para ajudar a aguentar o barco. De

tanto bordar, para satisfazer as encomendas que me fazem, sinto que estou a

perder a vista a um ritmo assustador.

Quando acabei de ler as cartas, cuja leitura tive que interromper várias vezes com a

comoção, uma das minhas tias disse:

� Minha querida, seu pai não foi legal com sua mãe; nós estamos muito magoados.

Percebi então a frieza com que os meus tios o olhavam.

Entretanto, havia já algum tempo que eu me questionava:

� Como podia eu gostar de um lugar que tanto tinha feito sofrer a minha mãe?

Agora sentia-me muito confusa. Em certos momentos era envolvida por um sentimento

que não conseguia controlar e que me arrepiava - detestava o meu pai. Comparava-o a

um mercador de escravos. Falava-lhe muitas vezes com agressividade e sentia que o

fazia sofrer. Ele envelhecia e começava a ser perseguido por uma angústia que não

conseguia disfarçar. Um dia, disse-me:

� Quando eu for para baixo dos sobreiros esta casa será vendida. Eu sinto-o.

A minha primeira tentação foi responder-lhe: Não tenha dúvidas.

Mas com uma hipocrisia que ele por certo entendeu, disse-lhe que nem pensasse nisso.

No íntimo eu achava que ele estava certo. A minha mãe, não ia querer continuar a viver

na TERRA e eu também acreditava que tinha acabado a sedução que em tempos a

TERRA tinha exercido sobre mim. Como que numa tentativa de vingar a vida da minha

mãe, lutava por me desapegar da TERRA e das casas, quer da CASA, quer da casa de

cima. Tudo isto acontecia ao mesmo tempo que se iniciavam novas relações, enquanto

outras se começavam a degradar.

18

Quando da estada do TIO na TERRA, no Verão de 1969, todos nos apercebemos de que

ele não estava bem. Muito calado, ele que gostava imenso de falar, parecia um pouco

ausente e desinteressado de tudo. A tia Laura dizia que tinha começado a notar algumas

alterações no seu comportamento, logo após a passagem à reserva, de forma

compulsiva, mas nós ainda não nos tínhamos apercebido. Em 1970, vem pela última

vez à TERRA, em vida. Fez questão de ir ao Santo- à capela de Sto Estevão, lá junto ao

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Estórias com sabor a Nordeste Regina Gouveia

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rio. Fomos todos. Eu, os meus pais, o TIO, a TIA e o tio Justino. O TIO estava muito

acabrunhado. Sentou-se nas escadas de um dos coretos e perguntou ao meu pai:

� Lembras- te?

Como não se havia de lembrar? Aqueles coretos estavam ali para lhe recordar aquele ano

em que estivera às portas da morte.

Levámos uma merenda, daquelas que a Tia fazia e que davam para um regimento. Dela

constavam peixes fritos, folar, milhos, pão, presunto, salpicão, fruta. A minha mãe

colaborara com coxinhas de galinha e quindins. O meu pai e o tio Justino fizeram

questão de deitar a rede e pescar uns peixes que assaram ali mesmo, na hora, e

temperaram como só eles sabiam fazer. Comemos à beira do rio, à sombra de um

salgueiro. Estávamos precisamente a começar a merenda quando chegou um grupo de

jovens de mochila às costas. Vinham acampar. O meu pai e o tio Justino meteram

conversa com os jovens. Quem eram? Donde vinham? Um deles falou:

� Vimos do Porto e resolvemos acampar aqui porque tínhamos curiosidade em

conhecer esta zona. Eu chamo-me Carlos Almeida e o meu avô nasceu numa

aldeia aqui perto. Chamava-se Luciano Almeida.

A TIA ficou um pouco excitada com esta apresentação de Carlos. Falou com o seu

sotaque sibilante:

� Ai sim! Olhe que esse senhor esteve para casar com uma tia minha de quem

herdei o nome- a minha tia Matilde.

E teve que contar com todos os pormenores a história da tia Matilde, não sem que antes

tivesse convencido os jovens a sentarem-se e a comerem da nossa merenda. Adoraram

os peixes, principalmente os que tinham acabado de ser assados ali. Carlos quis saber

pormenores da pesca e do amanho dos peixes. O meu pai e o tio Justino disputaram

entre si as explicações. O tio Justino descreveu pormenores da pesca- como se lançavam

as redes e as chumbeiras, o que era o embude- e do amanho dos peixes, nomeadamente

a receita do molho. O meu pai contou a Carlos que no Rio havia bogas e barbos. Havia

também rasquetas- uns bivalves que poucas pessoas apreciavam, e nos últimos tempos

tinham começado a aparecer uns lagostins, esses sim, bastante apreciados, embora

raros. Em outros tempos, tinha havido enguias e lampreias. Mas isso tinha sido no tempo

em que ele, ainda menino, acompanhava nas peixadas seu tio Afonso bem como outros

homens, entre eles o avô de Carlos, Luciano Almeida. O meu pai e o tio Justino falaram

ainda do Rio, das suas cheias, da barca que ali houvera para passar para o outro lado,

das gentes “dalém do Rio” e da TERRA. Mostraram como a sua história era indissociável

da do Rio, não só pelas peixadas que sempre ali se fizeram mas também porque ali se

adoçavam os tremoços para qualquer acto festivo, e se lavava não só a roupa, como as

tripas para os enchidos, na altura das matanças. Falaram também da festa de Sto

Estevão, da fé das gentes daquém e dalém do Rio, dos milagres que constavam, e de

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alguns episódios divertidos. Um deles tinha ocorrido na festa do ano anterior quando o

pregador, vindo de fora, começou assim o sermão :

� Caros cristãos e mulheres!

Lembraram também aquela vez em que um filho do António Joaquim, o Chico, ia na

procissão vestido de Menino Jesus. A procissão seguia com os seus cânticos, quando se

ouve uma voz de criança:

� “Ulha” os “mous” machos.

Era o Chico que tinha identificado, entre os vários animais na encosta, os seus machos

presos a uma oliveira.

Finda a merenda, o meu pai e o tio Justino fizeram questão de mostrar aos jovens, a

fonte de mergulho, cuja água se diz ser milagrosa, a capela de Sto Estevão com os seus

belos altares em talha dourada e a casa dos milagres que contem testemunhos dos

mesmos, nomeadamente ex-votos- pequenos quadros pintados por gente simples onde

se relata o milagre feito. Num deles, datado de 1780, pode ver-se um homem deitado

num catre e uma luz vinda do Céu. Por baixo pode ler-se: M. ~q fez em hum ~q estive

cuaze muorto i milhoro.

Os jovens ficaram ainda uns dias ali acampados e depois passaram pela TERRA que meu

pai fez questão de lhes mostrar. Foi assim que eu conheci Carlos com quem viria a casar

dois anos depois. Para a TIA era desígnio de Deus e tinha havido ali a intercessão do Sto

Estevão e a mediação da minha tia avó Matilde. Como explicar, doutro modo, que o

nosso encontro tivesse sido ali junto à Capela do Santo?

19

Quando no Verão de 1970, o TIO manifestou vontade de ir ao Santo, a TIA ficou

entusiasmadíssima com a ideia.

� Pode ser que Sto Estevão faça o milagre e cure o meu irmão.

Mas o Santo não fez o milagre. A partir daí, o TIO irá começar a perder a razão num

processo de degradação progressiva que o levará à morte em 1976. Nessa altura já o tio

Justino e a TIA viviam permanentemente na TERRA e na CASA, apesar de já não lhes

pertencer. O TIO não vê o 25 de Abril. Ver vê, mas com outros olhos. Quando ouviu

todo aquele barulho pelas ruas, saiu em pijama. Quando o encontraram dizia que era a

festa do Santo e ele ia apanhar as canas dos foguetes.

Também, em 1973, o meu pai iria entrar num processo de demência senil. Durante a

doença passou a maior parte do tempo em minha casa no Porto. De vez em quando

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ficava muito perturbado e dizia que tinha que ir ter com o avô ao Zimbro. Doutras vezes

tinha que ir ver os filhos que deixara no Brasil. Uma das vezes urinou na estante da sala.

Quando a minha mãe lhe chamou a atenção disse:

� E que mal há em urinar ao toro de uma oliveira?

Eu ficava revoltada com tudo isto. Não bastara o que já fizera sofrer a minha mãe?

Pensava que só ficaria bem com a minha consciência no dia em que me libertasse

totalmente de TERRA. Talvez fosse isso que o meu pai intuía e que o levava, em

momentos de lucidez, a repetir com frequência:

� Quando eu for para baixo dos sobreiros a casa de cima será vendida. Eu sinto-o.

No início da doença tinha vários momentos de lucidez. Às vezes dizia-me constrangido:

� Eu não devia ter levado a tua mãe para a TERRA. Ela nunca se habituou. Sabes?

Este apego à TERRA é como que uma gripe. Nem todos a apanham. E esta, quem

a apanha não se livra mais dela.

Com o avançar da doença deixou de me conhecer, a mim e a todos os que o rodeavam, à

excepção da minha mãe. Mas poucos meses antes de morrer, teve um momento de

lucidez quando estávamos de férias na TERRA. Era Setembro. Andorinhas esvoaçavam

entrando e saindo dos seus ninhos. Sentado no terraço, olhando a ladeira, declamou,

quase na íntegra, uma poesia de Júlio Dinis dedicada às andorinhas. Terminou assim:

Eu morro! Na chama do sol que declina

Bem sinto o presságio de um próximo fim

Se um dia voltardes à vossa colina

Oh doces amigas, lembrai-vos de mim.

Passou o último mês internado num hospital. Eu e a minha mãe íamos todos os dias

visitá-lo, à excepção do dia anterior à sua morte. Nesse dia fui apenas eu. O meu pai

esteve inquieto todo o tempo da visita, chamando:

� Mariana, Mariana.

Talvez a ausência da minha mãe, naquele dia, tenha apressado a sua morte.

Quando organizávamos as coisas que tinham sido dele em vida, numa das gavetas da

sua secretária fomos encontrar uma caixa com uma fita de seda à volta e que continha

dentro um lenço bordado, um hissope e uma luva. Na mesma caixa colocámos os

arquivos da correspondência e voltámos a fechá-la. Talvez um dia, as gerações

vindouras, que já o não conheceram, venham a ler aquela correspondência. Para nós,

lê-la seria como que violar a sua privacidade.

Após a morte do meu pai fui invadida por um imenso sentimento de culpa.

Responsabilizei-o pelo sofrimento da minha mãe sem nunca tentar ouvir o seu lado, sem

lhe dar qualquer oportunidade de defesa. Talvez por tudo isso, senti bastante a sua

morte. No entanto não pus luto, tal como o não pusera pelo TIO nem o viria a pôr pelos

que faleceram depois. Isso preocupava a TIA:

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� O que vai dizer o povo ?

Em compensação a TIA nunca mais tiraria o luto após a morte do TIO. Passa os seus dias

entre orações e rendas enquanto o tio Justino continua com as suas colecções. Em 1984,

depois de travar uma luta terrível com a morte, o tio Justino deixa-nos. O Senhor quis

pô-lo à prova, no entender da TIA. Dele herdei o bloquinho onde coleccionava termos.

Com a sua letra miudinha tem seis folhas escritas onde podemos ler:

À confita Sem contar

Abondar Chegar qualquer coisa

Acarrar Transportar

Adrede De propósito

Alaeiro Preguiçoso

Amanhar Cuidar

Amarrar Agachar

Amerigada Romã

Ameroso Macio

Angoreta Recipiente para transporte de líquidos

Arramar Verter

Arrecadar Guardar

Arrimar Encostar, Apoiar-se

Assomar Espreitar, aparecer à janela

Atreita Exposta a ….

Axe Dor

Belouro Hematoma

Bem me eu finto Não acredito

Benairo Trapo, vestido mal amanhado

Bilhó Castanha cozida ou assada,depois de descascada

Botelha Abóbora

Botar Deitar algo em…

Bruncho/sorricho Pequena quantidade de líquido(um copo com um

pouquinho de vinho tem só um sorrichinho)

Bulir Mexer

Bô Sinal de exclamação, de incredibilidade,…

Cacha Metade de um fruto (maçã, pêra, etc)

Caçoar Troçar

Cadoixa Mal-estar

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Estórias com sabor a Nordeste Regina Gouveia

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Canalha Criançada

Canhona Ovelha

Canoco Grande pedaço de pão cortado á mão

Carambelo Gelo sob a forma de estalactites

Casulas Vagens

Carraspudo Áspero

Catatau Mulher sensual

Chanatos Sapatos velhos

Chavasqueira Propriedade rural que não presta

Cibo/cibinho Pedaço/pedacinho

Comer à sobreposse Ser alarve

Corucho Cabelo apanhado e enrolado na nuca (penteado

usado antigamente pelas mulheres)

Couracho Nu

Crocada Pancada na cabeça

Dar o panagueiro a

alguém

Morrer

Delambida Com a resposta na ponta da língua

Delido Puído

Delingar Pendurar

Deslarada Esfomeada

Deu-me a risa Deu-me vontade de rir

Dondinho Macio

Em mentes Enquanto

Embarrar Dependurar; chocar com...

Endoujar Agitar um líquido

Engaliados Engalfinhados

Engaranhado Enregelado

Esbarar Escorregar

Escachar Partir

Esgodar Esfregar

Esmouchar Esmoucar, danificar

Fachoqueiro Ramo mal amanhado

Fingir Amassar o pão depois de levedado

Foleca Flocos de neve

Galelo Pequeno cacho de uvas

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Estórias com sabor a Nordeste Regina Gouveia

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Ganhotes Pedrinhas para jogar jogo infantil

Gricha Pequena nascente de água

Grime Medo

Guissos Gravetos

Impontar Expulsar

Lambada Bofetada

Lambisqueiro Petisqueiro

Langueira Preguiça

Limboses Beiços sujos

Manchinha Pequena quantidade

Marrafa Franja de cabelo

Medrar Crescer

Mofa Faúlha

Moucho Triste

Muquir/Murquir/Munq

uir

Mastigar

Nacho Nariz

Patassola Joaninha

Pichorra Cantarinha de barro

Pigarço Ruço

Pilheira Nicho na parede para guardar coisas

Pori Talvez

Proenta Vaidosa

Prosmeira Pantomineira

Pultriqueiro Saltimbanco

Relamposo Brilhante

Relouquear Enlouquecer

Remeia Recipiente de lata com a capacidade de 6 litros

Remocar Rezingar

Resura Quentura

Retaços Restos de comida para alimentar os porcos

Rodilho Trapo

Só Fundo (da panela, da agulha...)

Soteiro Dono de um soto

Soto Loja onde se vende de tudo

Taleiga/saquita Saco pequeno e largo

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Estórias com sabor a Nordeste Regina Gouveia

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Talho Banco pequeno e tosco, em geral de cortiça

Talhote Talha pequena

Zangalho Coisa velha, sem préstimo

Em 1986 morre a TIA, mas foi uma “morte santa”. Fomos dar com ela, morta, sentada

na varanda da CASA, com um terço nas mãos.

Quando a TIA e o tio Justino morreram eu já tinha dois filhos. O terceiro nasceria dois

anos depois. Após a morte da TIA, os meus primos Gonçalo e Afonso vêm à TERRA para

vender o que era do pai. A CASA foi comprada pelo António Joaquim que sempre lá

vivera. Foi assim um pouco como se continuasse na família. A partir desse dia foi

definitivamente cortado o cordão umbilical que unia a casa de cima à CASA.

20

Após a morte do meu pai, a minha mãe foi viver connosco para o Porto, mas ia

frequentemente à TERRA. De início justificava as idas com a necessidade de resolver

problemas pendentes, depois dizia que ia fazer um pouco de companhia à TIA, ao tio

Justino e à Mininha. Volvido um ano, foi visitar a família ao Brasil, onde ficou por um

período de seis meses. Quando regressou vinha com um ar muito tranquilo. No seu olhar

eu notava um brilho diferente e o seu sorriso que eu sempre achara muito bonito, era-o

ainda mais pois tinha perdido aquele leve traço de amargura. Esperava eu que a minha

mãe me falasse em vender a casa de cima. Pensei até que uma ideia seria comprar um

andar no Porto, perto de nós. Só que a minha mãe nunca me falaria no assunto.

Continuava a passar longos períodos na TERRA, mesmo depois da morte dos meus tios.

De vez em quando levava com ela um dos netos, que adoravam estas idas. Os meus

filhos adoravam a avó e as suas histórias fantásticas. Agora não contava só as histórias

do mundo de além-mar. Essas alternavam, muitas vezes fundiam-se, com as do lado de

cá. O mesmo acontecia com as canções. A minha mãe embalava os netos tanto ao som

do “Bicho Tatu” como do “Dorme, dorme, meu menino”.

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Estórias com sabor a Nordeste Regina Gouveia

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Nas férias de Verão íamos todos à TERRA: a minha mãe, Carlos, os filhos e eu, nem

sempre de boa vontade, porque continuava sem resolver o meu conflito. Quando

estávamos lá todos, a minha mãe parecia muito feliz. Eu não conseguia entender. Em

1988 a minha mãe adoece com doença incurável e morre em 1990. Um dia, já próximo

do fim disse-me:

� Vou fazer-te dois pedidos que vais achar estranhos. Se não quiseres não os

satisfaças. Gostaria de ser enterrada debaixo dos sobreiros e gostaria que não

vendesses a casa de cima.

Eu estava estupefacta. Não podia acreditar no que ouvia. Então ela disse:

� É verdade. Também apanhei a doença. Sabes, foi muito bom ter ido ao Brasil.

Matei saudades, mas acima de tudo pude reflectir à distância, no espaço, e até no

tempo. Durante os primeiros tempos nunca me lembrei da TERRA. Lembrava-me

da família, particularmente de ti, do Carlos e dos meninos, mas sabia que

estavam bem, pelo que eu, apesar das saudades, também estava bem. Mas tal

como aqui tinha muitas saudades de lá, quando estava lá comecei a ter muitas

saudades daqui. Com o passar do tempo, comecei a sentir saudades da TERRA, da

CASA, da casa de cima. Lembrava-me das cores das folhas no Outono, das flores

das amendoeiras e das estevas, das encostas em Junho com os seus vários tons

de castanho, amarelo, verde, roxo, lembrando trabalhos em patchwork, dos

cheiros, dos sons, muito em particular dos da escacha, dos sabores (que

saudades eu tive das alheiras da TIA!). Imagina que até senti saudades do frio no

Inverno! Sentia também muitas saudades das pessoas, algumas já falecidas.

Lembrava-me do carinho com que o António Joaquim, a Germana e a Balbina

sempre me trataram, tal como se eu fosse uma rainha. Lembrava-me da Sr.ª

Felismina e da Mininha, mas também de tanta outra gente quase anónima que

sempre que tinha um “mimo” de horta ou qualquer outro, fazia questão de o levar

“à Sr D. Mariana”. E claro está, lembrava-me muito dos teus tios que me

trataram sempre como se eu fosse uma irmã. Reflecti muito sobre a vinda para

Portugal e perdoei ao teu pai. O trazer-me para Portugal foi uma prova de amor,

egoísta, é certo, mas nem por isso deixou de ser amor. Queria que eu partilhasse

com ele tudo aquilo de que ele tanto gostava. Muitas das suas loucuras deviam

advir do desgosto que sentia por eu não conseguir entrar no seu mundo.

A morte da minha mãe abalou-me muito. Recordava todo o drama que fora a sua

adaptação e sentia um misto de indignação para com o meu pai, de revolta contra ela

por se ter acomodado, de desprezo por mim por só muito tarde ter compreendido a

situação, e de saudade. Acima de tudo, muita saudade. Fiquei dois anos sem ir à

TERRA. Foi Carlos quem me convenceu a ir pela primeira vez. Ele gosta muito da TERRA

e da nossa casa. Ele e os meus filhos, especialmente o mais novo que é ainda

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pequeno. Fomos no Verão de 1992. Ao entrar na casa de cima só senti desolação,

parecia-me que estava a entrar num túmulo. Mas pouco a pouco comecei a sentir que

voltavam os cheiros, os sabores, as cores, os sons. Um dia, sentada na secretária do

meu pai, vi nitidamente a minha mãe sair da fotografia, sorrindo e perguntando:

� Satisfizeste um dos meus pedidos. E o outro?

Hesitei algum tempo e disse em voz alta:

� Não vou deixar esta casa. Prometo.

Nesse momento entrou no escritório o meu filho mais novo.

� Prometes o quê?

� Que vou voltar muitas vezes.

� Com quem estavas a falar, mãe?

Mas já não esperou pela resposta. Foi a correr contar aos irmãos.

Dias depois, vou com Carlos e os meus filhos visitar a CASA que é agora habitada por um

filho do António Joaquim. Quando entro na cozinha, sinto uma angústia terrível. O Lar

tinha dado lugar a uma moderna cozinha forrada a azulejos. Já não consigo ver mais

nada. Ao sair vejo, junto da lenha, um dos escanos. Pergunto pelos outros.

� Já foram queimados e esse está à espera.

Peço-lhe que mo venda.

� Leve-o que eu só o quero p´ra lenha.

Está agora na cozinha da casa de cima, ou simplesmente da CASA. Sim, porque agora já

não tem sentido falar da outra. A CASA é definitivamente esta. O cordão umbilical já

tinha sido cortado. Agora recebera a herança da casa mãe.

21

Em Fevereiro de 1993 volto à TERRA. Após ter feito a promessa à minha mãe sentia-me

tranquila. Faltava-me ainda ir ao cemitério selá-la com todos. Está sol e sento-me à

sombra de um sobreiro. Começo a revê-los: uns que imagino, outros que conheci e ainda

outros que não conheci e que me aparecem saídos das molduras das fotos que herdei.

Debaixo dos sobreiros, nalguns casos sabe-se lá onde, estão Diego Rodriguez, Maria

Clemente, o tio Afonso, a tia Teresa, o Pepe, o António, o Artúrio, a Zefa, a Germana, a

Balbina, o António Joaquim, o Sr. Pedro, a Sra. Felismina, a Luísa. No jazigo estão

Isabel Castelhana, Luís Engrácio, João, Matilde, Marta, Álvaro, Pedro, Clara, Adélia, o

TIO, a TIA, o tio Justino, o meu pai, a minha mãe. Coloco lá um ramo de amendoeira em

flor. Ouço nitidamente uma criança a correr e uma voz ríspida de mulher ralhando.

� Juan!

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E logo uma outra voz, meiga, arrastada:

� Isabel, não ralhes com o menino.

Talvez um dia seja eu a pedir aos meus filhos o mesmo que a minha mãe me pediu.

Talvez eles satisfaçam os meus pedidos, ou talvez não. Mas sei que mais geração menos

geração, a CASA deixará de o ser. Quantos estarão então debaixo dos sobreiros? Que

relações manterão com os vizinhos? Que farão nos dias soalheiros ?

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O diário de Sara

Dei-te a solidão do dia inteiro.

Na praia deserta, brincando com a areia

No silêncio que apenas quebra a maré cheia

A gritar o seu eterno insulto

Longamente esperei que o teu vulto

Rompesse o nevoeiro

Sophia de Mello Breyner, “Espera”

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Amanhã é o grande dia- o lançamento do meu primeiro (e provavelmente último) livro.

O telefone não para de tocar. Estou particularmente angustiado, tenso. Sinto que a

qualquer momento qualquer coisa em mim pode quebrar. Não é propriamente pelo

lançamento do livro embora não negue que isso me causa alguma ansiedade e

apreensão. Mas a minha angústia advém, quase exclusivamente, de não saber se Rute

aprovaria ou não o destino que dei ao seu diário. A culpa foi dela. Várias vezes tentei

ouvir a sua opinião a esse respeito. Mas ela resolveu divertir-se á minha custa. Ora me

aparecia criança, com o seu ar muito gaiato e como resposta dava uma das suas

gargalhadas cristalinas, desaparecendo em seguida sem deixar rasto, ora me aparecia,

adolescente, com um ar um pouco petulante para me dizer: Não achas que já és

suficientemente crescido para decidires o que deves fazer sem teres que me consultar? E

dando uma piscadela de olho, desaparecia de novo, rindo do meu ar perplexo. Várias

vezes a interpelei directamente, mas nunca apareceu com o ar sério com que enfrentava

os grandes problemas, para me ajudar a decidir. É provável que ela me dissesse: É

óbvio que não concordo; a maior parte do que está aí dentro só a mim e a ti diz

respeito; não tens nada que andar a apregoá - lo aos quatro ventos. Se tivesse sido essa

a sua resposta, obviamente não teria sido este o destino do diário. Em contrapartida, se

a sua resposta tivesse sido: Claro que concordo. Foi para isso que eu te deixei o diário,

para tu dares a conhecer aos outros um amor tão grande que não coube na vida, eu

estaria agora tranquilo, com a sensação de “missão cumprida”. Mas não. Creio que Rute

decidiu vingar-se, possivelmente da minha ausência de tantos anos ou da minha

intromissão na sua vida. Mas também neste ponto a culpa foi sua. Entrei apenas pela sua

mão, pois nunca tive coragem de entrar por minha livre iniciativa. Se foi um acto de

retaliação, Rute exagerou na sua vingança. Primeiro, partiu sem pensar nos danos que

me causava, depois, abandonou-me num momento em que tanto precisava da sua

ajuda. Será que eu mereço, Rute?

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1

Conheci Sara em Outubro de 1955. Eu tinha dez anos e ela ia fazê-los em Dezembro. Os

pais tinham-se mudado para a cidade por causa da continuação dos seus estudos. Um

casal, amigo comum dos nossos pais, pediu aos meus que tentassem arranjar uma casa

na cidade, para os pais de Sara. Foi assim que ela veio viver no n.º 26 da minha rua.

Alguns dias após a sua chegada, os seus pais foram a minha casa, agradecer aos meus.

Foi precisamente nesse dia que a conheci. Ruiva, com sardas, usava um grande laço no

cabelo. Os meus pais fizeram questão de oferecer um chá. À mesa olhámo-nos de soslaio

com alguma rivalidade. Não trocámos praticamente uma palavra para além do Olá,

quando fomos apresentados. Quando foram embora, a minha mãe perguntou-me:

� Então, gostaste da Sara?

� Uma parva, como todas as raparigas, e ainda para mais sardenta.

Soube, mais tarde, que também não causei melhor impressão. Aos pais terá comentado:

� Armado em parvo, como todos os rapazes.

Cruzávamo-nos todos os dias nos trajectos casa - liceu, liceu - casa. Fingíamos que não

nos conhecíamos. Voltei a ter que a defrontar, logo após o Natal. Os pais de Sara

convidaram-nos para almoçar. Protestei, não queria ir, mas não consegui fazer ouvir os

meus protestos. Para cúmulo, a minha mãe obrigou-me a ir de laço- um laço azul às

bolinhas brancas. Pensava na figura ridícula que ia fazer perante a minha rival. Mas ao

entrar senti-me vingado. Ela, para além do laço no cabelo, vestia um vestido com uns

coelhinhos bordados. O almoço nunca mais acabava. Enquanto os nossos pais

conversavam nós permanecíamos em silêncio, cortado apenas quando tínhamos que

responder a perguntas dos adultos:

� Então estás a gostar do Liceu? Quais são as disciplinas de que mais gostas?

E outras perguntas do género...

Após a sobremesa e enquanto os adultos aguardavam o café, a mãe de Sara sugeriu que

fôssemos até à saleta, jogar qualquer jogo. Quase em uníssono dissemos que não, que

estávamos bem ali. Mas perante a insistência da mãe de Sara, agora acompanhada pela

minha mãe, acabámos por ir. Sentámo-nos numa mesa camila, com uma braseira por

baixo e eu fiquei mesmo em frente a uma estante com livros. Permanecíamos em

silêncio, quando de repente eu pergunto:

� Gostas de Júlio Verne?

Arrependi-me de imediato da pergunta mas ela surgiu inconscientemente quando vi na

estante o livro “20000 léguas submarinas”. Foi através de Júlio Verne que começou a

nossa amizade. A partir daí era frequente estarmos juntos. Passávamos por vezes longas

horas a montar construções que vinham desenhadas em folhas de cartolina. Eram casas

das várias regiões do país, castelos, torres, palácios. Lembro-me, como se fosse hoje, de

termos levado toda uma tarde a montar o Mosteiro dos Jerónimos. Vendia-se também

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um outro tipo de folhas de cartolina, que em vez de construções para montar traziam,

desenhados, bonecos e várias peças de roupa para recortar. Sara gostava muito de

fazer esses recortes. Geralmente recortava só os bonecos e desenhava, ela mesma, as

respectivas roupas que depois adaptava aos bonecos. E, reflectindo a sociedade em que

vivia, Sara tinha bonecos que eram os meninas e as meninas e outros que eram as

respectivas criadas, assim chamadas na época as empregadas domésticas. Para estas,

fazia toucas brancas e aventais da mesma cor, para colocar sobre os vestidos aos

quadradinhos, geralmente azuis. Eu gostava de ver Sara desenhar, recortar, e montar

estas peças e gostaria até de imaginar peças de roupa para os bonecos, mas recusava-

me a colaborar pois sabia que não era tarefa para rapaz. Também eu tinha brincadeiras

que não eram consideradas próprias para Sara como, por exemplo, o meu carro de

rolamentos, que eu mesmo construíra com uma tábua larga para me sentar e duas

tábuas mais estreitas. A primeira formava como que o chassis do carro e as outras

formavam os eixos das rodas, o de trás fixo, e o da frente móvel em torno de um eixo

fixado ao chassis. As rodas, feitas com engrenagens de rolamentos retiradas de peças

velhas de automóveis, eram fixadas nos extremos dos eixos. Colocando os pés no eixo

da frente, dirigia o meu carro e descia a rua, que era relativamente íngreme. Para ajudar

usava um cordel, preso aos extremos do eixo da frente, e que eu manobrava com as

mãos. Uma vez Sara andou no meu carro de rolamentos o que foi comentado em toda a

rua- uma menina não devia ter tais brincadeiras. Por isso não a repetiu. Mas jogávamos

badmington na rua, porque na altura quase não passavam carros e tal jogo não era

considerado impróprio para qualquer um de nós. Também jogávamos dominó, damas,

cartas (só me lembro de jogar ao burro, deitado e em pé) e o rapa. Sara amuava

sempre que perdia, fosse qual fosse a natureza do prémio (pinhões, amêndoas, figos

secos, feijões). Noutras alturas falávamos de livros e dos poucos filmes que víamos. Por

vezes estudávamos juntos. Ela ensinava-me matemática e eu dava-lhe sugestões para os

seus desenhos. Do meu quintal via-se o quintal de casa dela e ás vezes comunicávamos

de um quintal para o outro. Nessa altura ainda o ruído não se apoderara da cidade e as

palavras eram inteligíveis, mesmo àquela distância. Com o tempo fomos descobrindo

que tínhamos muito em comum, nomeadamente a origem dos nossos nomes. Ambos o

tínhamos herdado de avós de origem judaica. Também tínhamos ambos fascínio pelo

mar que tínhamos conhecido na mesma altura - em Agosto de 1955, antes de entrarmos

para o Liceu. Ambos fôramos passar férias com uns tios: eu à Ericeira e ela à Foz do

Arelho. Eu ficara fascinado, tal como ainda hoje fico, com todo aquele fervilhar de seres

que me surgiam quando perscrutava as poças de água nos rochedos. Eram anémonas,

estrelas, ouriços, paguros, caranguejos. Sara tinha ficado encantada com toda aquela

imensidão, com as gaivotas voando, com o som das vagas, com o cheiro a maresia.

Como eu trouxera um búzio, ofereci-lho. Pude testemunhar que tinha apreciado muito a

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oferta pois, do meu quintal, via-a com frequência com o búzio encostado ao ouvido,

sentada debaixo da figueira que existia no seu quintal e que diziam ser secular.

Possivelmente estaria a olhar para longe, muito longe, como fazia tantas vezes. Os olhos

de Sara tinham uma cor indefinida que eu confundia sempre com os locais para onde ela

olhava, nessas alturas em que parecia olhar para muito longe, mesmo quando olhava

para o que estava perto. Foi assim que um dia os seus olhos me pareceram

extremamente verdes, quando olhava fixamente a figueira enquanto dizia:

� Já viste esta figueira? Quantas pessoas se terão sentado à sua sombra? Como

terão sido as suas vidas ?

Sara era uma sonhadora, mas a par disso era alegre e irrequieta. Com ela aprendi a

fazer sapatos de folha de figueira. Assentávamos o pé em cima da folha, de modo a que

os recortes ficassem livres para posteriormente serem dobrados sobre o peito do pé.

Com uns pequenos pauzinhos uníamos os 3 recortes. Estavam feitos os sapatos que

para mim eram mais chinelos que sapatos. Foi também com ela que aprendi a fazer

gaitas com a palha verde da cevada e que soube o que eram pepinos de S. Gregório que

ambos adorávamos fazer explodir. Mais tarde, quando soubemos que o nosso acto

contribuía para a disseminação das sementes, Sara sentia-se feliz por de algum modo

contribuir para a pujança da natureza, ao mesmo tempo que comovida porque a mesma

natureza encontrava formas geniais de perpetuar a vida. A nossa amizade era feita de

todas estas pequenas coisas que hoje, à distância de quase quarenta anos, recordo, por

vezes, nos mais ínfimos pormenores. No dia 10 de Junho de 1956, estávamos os dois no

quintal de sua casa quando ela me perguntou:

� Não tens pena de não ter irmãos? Eu tenho muita.

Quando era mais pequeno também sonhava ter um irmão, mas na altura já me tinha

passado a ideia. Quando vi o ar triste com que ela me falou na mágoa de ser filha única,

propus-lhe :

� E se combinássemos ser irmãos? Era um segredo que ficava só entre nós.

Ela mostrou-se muito contente com a ideia e disse:

� Vamos assinar um papel com esse compromisso.

Eu então sugeri que o assinássemos com sangue. Ela foi buscar duas folhas de um

pequeno bloco, uma caneta, uma agulha de costura e uma canetinha de aparo, usada na

disciplina de desenho. Em cada uma das folhas ficou escrito:

� Hoje, no dia 10 de Junho de 1956, nós, Sara Ramos e David Oliveira, juramos

que toda a vida, iremos ser como irmãos.

Achei que deveria ser o primeiro a evidenciar coragem. Por isso, de seguida, eu que sou

esquerdino, piquei o indicador direito com a agulha. Quando a primeira gota de sangue

aflorou molhei nela o aparo da canetinha e, em cada uma das folhas, escrevi o meu

nome com sangue. Sara fez o mesmo, mas picando o seu indicador esquerdo. Ficou

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assim selada a nossa amizade que iria perdurar para sempre, embora, com muitos

percalços de permeio.

Creio que foi nesse ano que lhe dei um diário, no dia dos seus anos. Não sei como tive

aquela ideia, mas creio que foi de ter lido ou ouvido falar no diário de Anne Frank.

Quando abriu a prenda, sorriu e agradeceu, mas não me pareceu muito entusiasmada.

Fiquei um pouco triste e sem saber que destino lhe ia dar. Não imaginava na altura que

esse diário iria, muito mais tarde, colocar-me perante um terrível dilema. Durante os

sete anos de Liceu Sara foi a minha confidente. Foi-se tornando uma rapariga

interessante, apesar, segundo ela, do cabelo ruivo e das sardas que a desgostavam

muito. De vez em quando falava-me das suas paixonetas de adolescente, tal como eu lhe

falava das minhas. Até ao 5º ano7, dentro do Liceu quase não nos encontrávamos. O

Liceu era misto mas as turmas eram genericamente masculinas ou femininas e havia

também entradas e recreios separados. No 5º ano, criaram uma turma mista; eu e Sara

fomos parar à mesma turma. Os colegas metiam-se connosco pensando que éramos

namorados, mas nós mantínhamos o nosso compromisso. No 6º ano Sara foi para a

alínea f e eu para a alínea g8. A disciplina de matemática era comum às duas alíneas, e

tínhamos essas aulas em conjunto. Não sei que razão me levou a pensar em semelhante

alínea. Nunca gostara de matemática e fui escolher economia. Se não fosse a ajuda e a

paciência de Sara que me explicava a álgebra, a geometria, a trigonometria, a aritmética

racional, eu nunca teria concluído o 7º ano. Durante o 6º e o 7º ano, ambos participámos

activamente em actividades da Escola, nomeadamente nas festividades do primeiro de

Dezembro. Entrávamos nas peças de teatro, participávamos no grupo de danças

regionais onde Sara era sempre o meu par, fazíamos parte da Comissão de Festas.

Concluído o ensino secundário os pais da Sara regressaram à aldeia e ela foi estudar para

o Porto. Eu fui para Lisboa, onde o meu pai tinha um irmão. Víamo-nos pouco.

Geralmente apenas nos dias em que eu passava no Porto, a caminho de Lisboa ou a

caminho de casa. No entanto, escrevíamo-nos com frequência. No fim do meu primeiro

ano de faculdade, em que reprovei a todas as disciplinas, Sara tentou convencer-me a

tirar o curso de que realmente gostava- pintura- mas os meus pais nem queriam ouvir

falar no assunto. Estive mais um ano em economia, sem qualquer sucesso. No fim desse

segundo ano, com o incentivo de Sara e sem os meus pais saberem, fiz exame de

admissão à ESBAL9. Foi assim que entrei no curso de pintura. Nessa altura comecei a

deslocar-me ao Porto mais frequentemente, pois um colega mais adiantado, cujos pais aí

viviam, tinha-me recomendado uma casa, perto da Biblioteca Municipal, onde se podiam

7 Equivalente ao actual 9º ano 8 Até 1975 a partir do 5º ano do Liceu os alunos que desejassem prosseguir estudos com vista a ingressar na Universidade matriculavam-se no 6 ºano onde existiam várias alíneas entre elas a f que dava acesso aos cursos de Ciências e a g que dava acesso ao curso de Economia 9 Escola Superior de Belas Artes de Lisboa

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adquirir artigos de boa qualidade para pintura- telas, óleos, acrílicos, aguarelas, pincéis.

Sempre que ia ao Porto encontrava-me com Sara. Muitas vezes, particularmente quando

estava bom tempo, aproveitava e ficava no fim de semana. Geralmente íamos até à

Boa Nova, junto ao mar. Ali, sentados na areia, eu desenhava, conversávamos,

ouvíamos música, um pouco roufenha, no meu rádio de pilhas, líamos, ou simplesmente

olhávamos e ouvíamos o mar. Como ela adorava chegar muito cedo à praia, quando a

areia, ainda virgem, estava apenas marcada pelas patitas das gaivotas! A praia da Boa

Nova era um lugar de eleição para Sara. Não só a praia mas a capela e o rochedo onde

esta se situa. Dizia que se um dia viesse a casar, seria ali, na capela da Boa Nova.

Na sequência da mudança de curso, dois anos depois fui chamado a cumprir o serviço

militar e, passado cerca de ano e meio, fui mobilizado para a Guiné. Estávamos em

1968. Várias vezes tinha conversado com Sara sobre a estupidez e a inutilidade daquela

guerra, pelo que parti com uma terrível revolta. De início escrevi, troquei

correspondência com Sara, cartas, aerogramas, postais. Nessas cartas falava-lhe do

fascínio de África, das suas cores e dos seus cheiros. Falava-lhe também das pessoas,

da forma como se vestiam, da sua música, dos seus costumes, e dos animais, dos

mamíferos aos insectos, passando pelas aves multicolores. Mas, por vezes também lhe

falava dos horrores de uma guerra estúpida sem qualquer significado. No dia em que

tive que matar, fiquei de tal modo perturbado, que lhe escrevi uma carta em que deixava

transparecer toda essa perturbação. A partir daí, e durante muitos anos, não lhe voltaria

a escrever. Consegui evadir-me da Guiné para o Senegal e daí para França donde só

regressaria em 1976. Por que razão deixei eu de me corresponder com Sara? Bem, essa

é uma longa história.

No dia em que tive que matar fiquei de tal modo perturbado, que as ideias atropelavam-

se na minha mente e eu não conseguia coordená-las nem um pouco. Misturava imagens

de infância, com outras da adolescência, com outras já da idade adulta, umas reais,

outras imaginárias, tudo num turbilhão que tocava os limites da loucura. Nesse turbilhão

de ideias e imagens, apenas uma era nítida: a imagem de Sara. Sara surgia-me ora em

criança, com o seu laçarote na cabeça, ora adolescente com as formas do corpo a

despontar, ora mulher feita com um pouco de sensualidade e ingenuidade à mistura.

Esta imagem ora me apaziguava um pouco, ora me atormentava porque me imaginava

apertando-a nos meus braços num gesto que nada tinha a ver com a amizade

desinteressada que até aí nos unira. Estaria eu apaixonado por Sara? Seria apenas

uma terrível confusão de sentimentos decorrentes do meu estado perturbado? Quando

em França comecei a pintar, todas as figuras femininas eram, inconscientemente,

inspiradas por Sara. Por vezes, rasgava os trabalhos como que numa tentativa de tirar

Sara da minha cabeça. Outras vezes guardava-os só para mim, não permitindo que

outros olhos os profanassem. Com esta confusão de ideias na cabeça, não conseguia

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Estórias com sabor a Nordeste Regina Gouveia

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escrever-lhe. Que dizer-lhe? Falar-lhe da dúvida que me atormentava? Como iria ela

reagir? Esperava no entanto que ela mandasse notícias. Muito provavelmente, quando as

notícias tardassem ela escreveria aos meus pais e ficaria a saber a minha direcção em

França. Por que razão não escrevia ela? Numa tentativa de passar uma esponja em tudo

isto comecei por entrar no álcool. Depois foi a vez das drogas. Depois foram as

desintoxicações. Isto tudo misturado com uma constante variação de companheira. Não

sei quantas mulheres passaram então pela minha vida. Em 1974, um pouco antes da

Revolução dos Cravos, conheci Ana, uma exilada que também se encontrava em França.

Ana trouxe alguma paz à minha vida. Com Ana deixei de beber e abandonei a droga.

Mas pela minha parte, a minha relação com Ana não era honesta. Eu continuava a

pensar em Sara e Ana não merecia isso. Esta ideia atormentava-me, embora tentasse a

todo o custo esquecer. Em 1976 eu e Ana regressámos a Portugal. Fomos viver para

Porto Covo, no Alentejo, onde ainda hoje vivo. Não sei se escolhi viver ao pé do mar, só

porque este me seduz, ou se inconscientemente o fiz para assim me sentir, em espírito,

mais próximo de Sara. Recordava as vezes que junto ao mar, lá na Boa Nova, em Leça,

conversávamos, trocávamos impressões sobre filmes e músicas, líamos e reflectíamos

sobre o que estávamos a ler (lembro-me de conversarmos sobre livros como “ O

Estrangeiro”, “Mar Morto”, “O Velho e o mar”, “O Inverno do nosso descontentamento”,

“A 25ª hora”). Talvez por isso ainda hoje eu passe horas, lendo, junto ao mar. Embora

vivendo no Sul, deslocava-me por vezes ao Porto para, mantendo um velho hábito,

comprar material de pintura. Ana perguntava-me:

� Mas porque hás-de ir tu ao Porto, tão longe, comprar material?

Eu respondia-lhe que tinha sido um hábito que me tinha ficado mas, no fundo, eu achava

que estava a mentir a Ana, o que me perturbava. Eu sabia que Sara vivia no Porto e

penso que me deslocava lá, na esperança subconsciente de a encontrar. Um dia, em

1985, passava eu na R. de S.ta Catarina, quando ouço:

� Desculpa, não és o David ?

Era Sara mas, estranhamente, de imediato não a reconheci apesar dos seus cabelos

ruivos e das sardas. Ainda hoje não percebo se efectivamente a não reconheci ou se não

tive coragem de a reconhecer tal como nunca tivera coragem de lhe escrever, após a

minha fuga da Guiné. É verdade que todas as colegas do tempo de estudante, que tinha

encontrado, não lembravam em nada a imagem que delas tinha: tinham engordado

bastante, vestiam tailleur, usavam sapatos altos, peles e apresentavam um ar muito

burguês, enquanto que a pessoa que me interpelara era magra, usava os cabelos soltos,

uma saia longa rodada, uns botins e um casacão de malha, por sinal muito bonito. Mas,

embora mais velha, os traços característicos, bem como o seu ar gaiato, mantinham-se.

� Com que então já não reconheces a tua irmã de jura ?

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Estórias com sabor a Nordeste Regina Gouveia

71

Não queria acreditar que na minha frente estava Sara. Fomos até ao Majestic e aí ambos

fomos dando conta de algumas coisas que se tinham passado durante aquele longo

interregno. Falei-lhe da minha fuga para França, da minha estada naquele país, de Ana,

do regresso a Portugal, de Porto Covo, de como tinha concluído o curso depois de

regressar, da minha vida de professor e da minha pintura. Também lhe falei dos

percursos obscuros da minha vida, do álcool, da droga, mas justifiquei-os com o meu

stress de guerra. Não menti, apenas omiti que essa não fora a única causa. Sara, por

sua vez, falou-me da sua vida profissional como engenheira química, dos pais que agora

viviam no Porto, da sua aldeia em Trás - os – Montes, que eu tempos visitara e onde

Sara ia religiosamente várias vezes por ano, de viagens que tinha feito, de Júlia, uma

colega nossa de Liceu com quem Sara mantinha uma grande amizade e de cujo filho,

David (David II como ela lhe chamava para o distinguir de mim, que passei a ser David

I) era madrinha. Parecia que ambos tentávamos reatar a nossa amizade, no ponto onde

havia sido deixada. Mas agora eu não tinha dúvidas. Tentei dissimular a minha

perturbação mas o sentimento que eu nutria por Sara era muito mais que a pura

amizade de outros tempos. Não ousava demonstrar-lho, com receio da sua reacção. Ela

parecia não o pressentir. O mesmo não aconteceria com Ana.

Desde sempre Ana pressentiu algo. Com a nossa vinda para Portugal as suas suspeitas

cresceram. Um dia em que estávamos junto ao mar e eu lia um livro ela disse-me:

� Já por várias vezes notei que quando estás aí sentado a ler, ficas com um ar feliz,

mas simultaneamente muito distante.

Respondi-lhe que recordava o tempo em que era mais jovem. Assim não mentia a Ana,

apenas omitia que nessas minhas recordações, Sara estava sempre presente.

De outra vez disse-me:

� Estás com ar de quem está a ouvir música.

Respondi-lhe que efectivamente ouvia Brahms em pensamento

� Porquê Brahms? Perguntou Ana

� Porque gosto muito.

Também desta vez não menti, apenas omiti que fora Sara quem me ensinara a gostar

de música clássica em geral e de Brahms em particular.

De uma vez em que eu acariciava o tronco de um sobreiro Ana perguntou-me porque o

fazia. Disse-lhe que achava muito bonitos os troncos dos sobreiros, o que era verdade,

mas não lhe disse que também Sara os achava soberbos e que era a lembrança de Sara

que eu procurava naquela carícia.

Quando reencontrei Sara, Ana pressentiu-o. A outra, que até aí era imaginária, surgia

agora bem real. O nosso casamento também já estava por um fio há muito tempo. Cerca

de dois anos depois do meu reencontro com Sara, eu e Ana separámo-nos. Felizmente

não tivemos filhos pelo que foi tudo mais fácil. Sara continuava solteira e não ousei saber

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Estórias com sabor a Nordeste Regina Gouveia

72

mais da sua vida afectiva. Escrevíamo-nos com alguma frequência, mas as cartas eram

um pouco ocas. Eu, por receio de me expor, ela, pensava eu, porque não podia

responder com profundidade a algo tão superficial. E assim foi passando o tempo. Por

vezes encontrávamo-nos no Porto, quando eu aí me deslocava, ou em Lisboa, quando

era ela que tinha que se deslocar lá. Eram encontros breves e tão ocos como as cartas

que trocávamos. Uma vez, foi com os pais passear pelo Alentejo e visitou-me. Foi

também um encontro breve. Em 1988 o pai de Sara adoeceu gravemente. Foram

tempos muito difíceis para Sara. Eu fui o ombro amigo onde Sara podia chorar. Passámos

a visitar-nos e a escrever-nos com frequência mas a nossa relação, agora cada vez mais

profunda, girava à volta do problema de Sara. Foi ainda assim, quando o pai morreu em

1990. A partir daí, a nossa relação tornou-se mais rica; tal como noutros tempos,

falávamos muito de filmes, de discos e de livros que ambos tivéssemos visto, ouvido ou

lido. Falávamos também dos acontecimentos que de momento mais afectavam o país,

ou qualquer outra região do mundo. Talvez devido á sua formação Sara preocupava-se

particularmente com os problemas do ambiente- a destruição dos recursos naturais, as

chuvas ácidas, a destruição da camada de ozono, o efeito de estufa, a poluição sonora,

os resíduos nucleares. Procurava estar o mais informada possível, participava em

iniciativas com vista à defesa do ambiente e tentava actuar em consonância. Para

percorrer os 2 km que separavam a sua casa do local de trabalho deslocava-se a pé, de

bicicleta, de autocarro, raramente de carro. Seleccionava genericamente o que

comprava, fossem detergentes, lacas, electrodomésticos, tendo como principal critério os

aspectos ambientais. Preocupava-se também muito com as guerras, com a fome, com a

droga, com o subdesenvolvimento mas tinha fé nos jovens e acreditava que o mundo de

amanhã iria ser melhor. Talvez por isso, participava em inúmeras acções de

sensibilização, particularmente junto dos jovens. Sara acreditava que as iniciativas de

ordem governamental e não governamental de pouco serviriam se não se investisse

seriamente numa educação para a cidadania. De tudo Sara me falava com paixão e

entusiasmo. Era ainda com o mesmo entusiasmo que Sara me falava das viagens que

fizera, em particular ao Egipto, a Marrocos e ao Brasil. No Egipto, mais que os marcos

das eras faraónicas, foi a cidade de Assuão que a fascinou. Falava-me da cidade, junto

ao Nilo, com inúmeras feloukas10 cortando as suas águas serenas, que confinavam logo

ali com deserto, com palmares, com colinas; falava-me do seu mercado onde burros

caminhavam no meio de uma mole de pessoas - egípcios de pele escura que se

confundiam com sudaneses de pele negra, com mulheres vestidas de negro de rosto

tapado a par de outras, de vestes e lenços coloridos, com os pés e as mãos

minuciosamente pintados, com homens transportando cordeiros mortos nas costas,

10

embarcações tradicionais egípcias

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Estórias com sabor a Nordeste Regina Gouveia

73

cobertas com vestes manchadas de sangue, com crianças lindíssimas de olhos negros

como azeviche. Falava-me ainda dos cheiros e dos sons- as frases ininteligíveis por

europeus que se misturavam com os sons das cabras, das galinhas, da música árabe

cujas cassetes se vendiam por todo o lado. Em Marrocos foram Marrakech e a região do

Tafraoute com as suas montanhas rosadas, que mais a fascinaram - a primeira pelos

seus palácios, mas fundamentalmente pela sua praça Jemaa el Fna, no coração da

medina. Ao fim da tarde, aí se misturam vendedores (de especiarias, de frutos, de ervas

raras, de amuletos), arrancadores de dentes, escribas, encantadores de serpentes,

acrobatas, dançarinos, músicos. É um espectáculo inesquecível. A região do Trafaoute

encantara Sara, fundamentalmente pela paisagem. É uma região pré-saariana, onde

emergem povoações diversas- umas com casas de tom róseo, dispersas entre palmeiras

e oliveiras, outras no tom da terra, confundindo-se com as próprias encostas onde estão

encravadas.

No Brasil, o maior fascínio encontrou-o Sara em Parati. No litoral, entre Santos e o Rio de

Janeiro é uma cidade colonial, preservada, com as suas casas com motivos pintados,

geralmente em azul e amarelo, e as ruas empedradas. Mas também aqui, o maior

fascínio não o encontrou na cidade mas no mar que a rodeia. Alugou um barco, onde um

velho marinheiro, Eli, a levou mar fora e onde ela se sentiu transportada ao paraíso. Aí,

Sara que sempre teve medo do mar, saiu do barco e nadou, lá longe da costa; via os

peixes nadar á sua volta, naquele mar tão sereno e tão belo como nunca imaginara

poder ver. Pararam numa praia deserta, rodeada de palmeiras, com um mar azul e verde

indescritível. Ao regressarem a Parati, a cidade apareceu recortada num céu negro,

anunciando tempestade, mas a beleza dessa visão, era no dizer de Sara, uma visão

fantástica.

Sobre tudo isto nós conversávamos, mas eu mantinha o meu escudo. Durante a doença

do pai e após a sua morte, quando Sara chorava no meu ombro, muitas vezes tive a

tentação de lhe declarar o meu amor. Mas receava que ela interpretasse o meu gesto

como uma atitude de comiseração, ou pior ainda, como um oportunismo face á

fragilidade do momento. Por isso fui adiando “sine die”. Em 1992 Sara adoeceu

gravemente. Um dia, em que foi a Lisboa em serviço, telefonou-me e eu fui ter com ela.

Almoçámos juntos. No fim do almoço, tirou da sua bolsa um embrulho e disse-me:

� Aí dentro está um diário que tu me ofereceste há muito tempo. Estou bastante

doente mas ainda espero lutar o suficiente para vencer esta guerra. No entanto,

pelo sim, pelo não, quero dar-te o diário. Faz dele o que quiseres.

A revelação da doença de Sara foi um golpe muito duro. Travei uma luta terrível entre o

desejo imenso da sua cura e a falta de fé na mesma. E no entanto sabia como era

importante eu acreditar, para dar a Sara a força de que ela tanto necessitava. Mas Sara

foi sempre uma mulher surpreendente. Em vez de ser eu a encorajá-la era ela que me

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Estórias com sabor a Nordeste Regina Gouveia

74

encorajava. Lutou, com toda a coragem do mundo, sofreu estoicamente. Conseguiu

vencer algumas batalhas, mas acabou por não vencer a guerra. Tal como havia pedido,

foi cremada e as suas cinzas lançadas ao mar, no local que para ela era quase sagrado,

junto à capela da Boa Nova em Leça, onde fôramos tantas vezes juntos. Acompanhei a

mãe de Sara. Ajudei-a a descer até junto da rocha onde está gravado um poema de

António Nobre. Daí lançámos as suas cinzas. A mãe manteve a extrema dignidade que

lhe era habitual. Mas não resistiu à morte de Sara; morreu 6 meses depois. Antes de

morrer chamou-me e deu-me os livros e discos que tinham sido de Sara, bem como um

álbum, apenas com fotos suas desde criança. Percebi, então, que a mãe de Sara

compreendera tudo o que eu sentia pela filha.

Após a morte de Sara e durante quase dois anos, não consegui abrir o diário. Mas se

ela mo deu, devia querer que o lesse. Resolvi-me então a abri-lo. Colada na contracapa,

tem uma folhinha de papel- a nossa jura de fraternidade. Nas duas últimas páginas tem

colados dois envelopes com cartas dentro: umas que eu lhe escrevi da Guiné e outras

que ela nunca terminou nem me enviou. O resto é o diário.

2

10/12/56

Hoje fiz anos e o David deu-me como presente este diário. Que ideia a do David!

Para que quero eu um diário? Nunca tive muita paciência para escrever. O mais certo é

ser esta a única página a ser escrita. Gostei bem mais do búzio que me deu no Verão.

Esse sim. Gosto de encostá-lo ao ouvido e ficar a ouvir o mar. Porque será que o mar se

ouve num búzio? Será que só o ouvem pessoas que gostam muito do mar? Devia haver

um búzio para todos os sons de que gostamos. Assim, devia haver um búzio que,

encostado ao ouvido reproduzisse os sons da casa da madrinha, outro que reproduzisse

o chiar dos carros de machos bem de manhãzinha, outro que reproduzisse o som do

vento quando bate mansinho nas folhas das árvores. Se houvesse esses búzios, sempre

que nos apetecesse ouvir um som de que gostamos, bastava escolher o búzio certo e

encostá-lo ao ouvido.

4/1/57

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Estórias com sabor a Nordeste Regina Gouveia

75

Chegámos ontem da aldeia. A Maria Cândida está muito doente. Foi criada dos

meus avós e foi sempre muito dedicada à nossa família. Quando estamos na aldeia, se

coze pão, faz sempre uma bolinha de azeite e ovos para mim. Também me faz meias

rendadas e súplicas, de que eu gosto muito. Já com a irmã, a Augusta, era a mesma

coisa, embora eu já me lembre pouco. Foram elas que me ensinaram a fazer sapatinhos

de folha de figueira, lá no quintal da casa da avó, onde hoje vive a madrinha. Quando me

fui despedir da Maria Cândida agarrou-me muito a mão e disse:

� Deixe-me olhá-la bem pois sei que a não volto a ver. Nunca se esqueça de mim.

Fiquei muito triste. Quando a Augusta morreu eu tinha sete anos; não me lembro de ter

ficado assim triste, apesar de gostar muito dela. Crescer dói. Não estou a falar daquelas

dores nas pernas que o médico diz serem dores de crescimento. Estou a falar de uma dor

por dentro. Amanhã tenho que desabafar com o David.

2/2/57

Morreu a Maria Cândida. Fiquei muito triste. O David deu-me uma receita para

quando temos um grande desgosto. Devemos pensar em alguém que tenha uma vida

muito pior que a nossa. Lembrou-me aquela menina que mora na nossa rua que anda

numa cadeira de rodas, toda deformada, que fala, mas é difícil de entender. Quando dei

por mim estava a pensar na menina da cadeira de rodas Será que ela já viu e ouviu o

mar? Será que gostaria de encostar o meu búzio ao ouvido? Alguém teria que a ajudar

pois ela tem muita dificuldade em movimentar os braços. De momento esqueci a morte

da Maria Cândida. O David diz que se pensarmos em situações muito piores que a nossa

vemos que, apesar de tudo, não temos o direito de achar que somos infelizes. Não sei

onde o David foi buscar estas ideias, mas não deixa de ter razão.

15/5/57

Hoje estou com raiva de mim mesma. A professora de português ralhou muito

com a Júlia porque não estuda, não faz os deveres, tem o caderno sujo. Para cúmulo

disse-lhe :

� Olha para a Sara que é dois anos mais nova que tu e é a melhor aluna.

Todos sabemos que a Júlia antes de ir para o Liceu ajuda a mãe a distribuir o leite e

depois das aulas ajuda mãe a lavar e a passar a roupa das freguesas, a fazer o jantar, a

cuidar dos irmãos. Eu queria ver se eu também seria boa aluna se tivesse que fazer tudo

o que a faz a Júlia. Mas porque razão não disse eu isto à professora? Fiquei corada e

indignada, é certo, mas mantive-me calada. No fim da aula fui ter com a Júlia e a única

coisa que me saiu foi:

� Se quiseres posso ajudar-te todos os dias a fazer os deveres.

Ela, um pouco seca, respondeu-me:

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Estórias com sabor a Nordeste Regina Gouveia

76

� E eu tenho lá tempo para pensar em deveres?

Quando contei isto ao David ele disse-me que quando não concordamos com as

coisas devemos dizê-lo. Se o não fazemos somos cobardes. Fiquei furiosa, porque acho

que o David não tem o direito de me chamar cobarde. Mas no fundo eu acho que ele tem

razão.

1/6/57

Hoje fizemos um desenho livre. Eu desenhei uma paisagem. Havia umas casas

com fumo a sair das chaminés, umas árvores de rama verde numa encosta com searas

amarelas, um céu azul com nuvens brancas onde se recortavam montes roxos, que é

assim que eu vejo a ladeira da minha casa na aldeia, em Junho, Os montes são roxos

no cimo e ao longo das encostas há manchas de vários tons: castanho da terra, verde

das árvores e amarelo das searas. Pois o professor, que é também o professor de

matemática, resolveu mostrar o desenho a toda a turma e gozar com ele.

� Já alguém viu montes roxos?

Eu insisti que os montes que eu vejo da minha janela são roxos e ele comentou:

� Estás a precisar de óculos.

Fiquei furiosa. Não mudei a cor dos montes e tive sofrível, no desenho. Não sei se

conte esta história ao David.

10/12/57

Hoje fazes um ano, diário, sabias? Apesar de conversar pouco contigo, há um ano

não pensava vir a escrever tanto. Mas descobri que por vezes me faz bem descarregar a

minha raiva, nem sei se é contra ti se é contra mim mesma. Eu também faço anos,

como sabes. Uma dúzia. Hoje o dia amanheceu lindo. Tudo coberto de neve. Convidei

para passar a tarde comigo quatro colegas de turma e o David. Fomos jogar á pelotada

no quintal. Gosto de jogar á pelotada, mas faz-me pena destruir aquele tapete branco

tão fofo. À hora do lanche abri os presentes. Os meus pais deram-me uma caneta de

tinta permanente. É uma Pelikan bonita, verde e preta. Deram-me ainda o livro “ Os

meus amores “ de Trindade Coelho. O David deu-me também um livro- “O raio verde”,

de Júlio Verne. As minhas colegas, em conjunto, ofereceram-me uma caixinha em

madeira com umas decorações em prata, na tampa. A minha madrinha mandou-me uma

camisola de malha, feita por ela, trabalhada em várias cores. Depois do lanche as minhas

colegas foram embora pois já estava a começar a ficar escuro. O que mais me entristece

no Inverno é anoitecer tão cedo. O David ficou mais um pouco pois mora aqui ao lado.

Ainda jogámos uma partida de damas. Eu ganhei, mas tenho a certeza que o David me

deixou ganhar por ser o meu dia de anos. Ele joga muito melhor que eu.

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Estórias com sabor a Nordeste Regina Gouveia

77

5/2/58

Hoje andei à bulha na escola. Há tempos a Delfina, uma menina da turma, um

pouco parva, chamou zorra à Júlia. A Júlia chorou pelo que percebi que deveria ter sido

um nome feio. Ao chegar a casa perguntei o significado à minha mãe e contei-lhe a

história. A minha mãe explicou-me que zorra quer dizer bastarda e tudo isto quer dizer

que a Júlia não tem pai, ou melhor, tem, mas não assume as suas responsabilidades. A

minha mãe disse-me que o que a Delfina fez foi muito feio pois a Júlia não tem qualquer

culpa da irresponsabilidade dos pais. Então eu jurei para mim mesma que, se alguma vez

alguém tornasse a chamar zorra à Júlia, eu agiria. E foi isso o que aconteceu hoje. No

recreio a Delfina voltou a insultar a Júlia e eu dei-lhe um murro. Pegámo-nos à pancada

e por isso fomos ambas chamadas à Directora da Secção Feminina. Depois de contar o

sucedido mandou-me sair e aguardar fora da sala, enquanto conversava com a Delfina.

Passado algum tempo saiu a Delfina e voltei a entrar. A Directora disse-me que eu tinha

razão em ficar chocada com a atitude da Delfina, mas não era assim que se agia. Se

voltasse a andar à pancada com alguma menina o caso seria mais sério.

Não sei se conte este episódio ao David. Talvez já não me ache cobarde.

20/5/58

Hoje, a propósito de uma conversa com a professora de matemática, lembrei-me

muito de um livro que me deram no Natal e de que gostei muito- O Principezinho. Logo

na primeira página tem um desenho, que os adultos interpretam como sendo um

chapéu, mas é uma jibóia que engoliu um elefante. O autor não tinha grande opinião

sobre os adultos em geral; diz que quando queria testar um adulto mostrava-lhe o

desenho. Se a pessoa via nele um chapéu, o que geralmente acontecia, então não valia

a pena falar-lhe de estrelas, de florestas nem de jibóias. Falava-se de política, de

gravatas e de coisas do género.

A professora de matemática disse-me que no fim da aula queria falar comigo. Esperei e

qual não foi o meu espanto quando ela me vem com este discurso:

� Já me apercebi que namoras com um colega do 3º D. Não te parece que és ainda

muito novinha para namorar? És uma belíssima aluna e isso pode prejudicar-te.

O colega do 3º D é o David. Ainda pensei em falar-lhe da nossa jura, mas lembrei-me

por um lado de que era segredo e por outro lembrei-me do livro. Pensei que seria

totalmente inútil tentar explicar a minha relação com David. Ela deve ter continuado

convencida de que namoramos. Eu, pela minha parte, reforço a opinião que Saint-

Exupéry tem dos adultos em geral.

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Estórias com sabor a Nordeste Regina Gouveia

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11/12/ 58

Ontem fizemos anos. Eu 13 e tu dois. Se fosses pessoa, com essa idade, eras

quase bébé, mas como és diário, converso contigo como com um amigo que tivesse

precisamente a minha idade, como por exemplo o David. É bom ter amigos. Mas ser

amigo de alguém não é fácil. Eu tenho várias colegas no Liceu e tive também vários

colegas na escola. Alguns destes colegas, embora goste deles, não os considero

propriamente amigos. Para mim ser amigo implica, acima de tudo, ser sincero. Por isso é

que eu considero que o David é o meu maior amigo. É tão sincero, que às vezes não

gosto de algumas coisas que me diz mas, geralmente, acabo por reconhecer que tem

razão.

Mas estava a contar-te o meu dia de anos. Os amigos do costume vieram passar a

tarde comigo. Jogámos ao ringue na rua e depois lanchámos. Recebi várias prendas,

entre elas vários livros, uma pasta nova e uma caixa de bombons. A madrinha mandou-

me mais uma camisola muito bonita.

31/3/59

Estou de férias. O campo está muito bonito. As encostas, com os arbustos

coloridos, as searas verdes e os lameiros cheios de flores roxas, azuis, brancas,

amarelas. Gosto muito do tom arroxeado das urzes e das arçãs, misturado com o branco

das estevas e o amarelo das giestas. As flores das estevas são lindas, particularmente

aquelas cujo centro é escuro. É pena que as folhas sejam tão pegajosas. Há também

muitas árvores em flor. Como são bonitas as flores das macieiras, dos pessegueiros, dos

marmeleiros! Cheira a Primavera e ouve-se o cuco cantar. As raparigas perguntam ao

cuco: Cuco da Ribeira, quantos anos me dás de solteira? E contam os cu-cu do cuco. A

mim deu-me um ano. Devia ser engraçado eu casar com 14 anos... No domingo de

Ramos, foi bonita a missa com a benção dos ramos de oliveira e alecrim, que toda a

gente levava. Depois da missa, fui dar o ramo à minha madrinha que me deu o folar. Dá-

me sempre algo que tenha pertencido á minha avó- um lenço das mãos bordado, uma

medalhinha, uma chávena. Este ano deu-me uma toalha de rosto, em linho, bordada. É

pena as férias estarem quase a acabar. Mas também já estou com saudades do Liceu, da

cidade, do David, da Júlia. Hoje lembrei-me muito dela. O meu pai foi à feira na Vila. Foi

a cavalo. Eu fui esperá-lo ao caminho, ao fim da tarde. Quando nos encontrámos,

sentou-me à sua frente, no cavalo e envolveu-me no seu capote. Senti que nada de mau

me poderia acontecer naquele momento. Lembrei-me da Júlia. Como deve ser triste

saber que o pai não faz caso dela. E novamente dei comigo a pensar que não deixa de

ser estranho o que nos ensinam desde a catequese. Deus vê tudo o que se passa aqui na

Terra, Deus é justo e bom. Então por que razão permite situações como a da Júlia?

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Estórias com sabor a Nordeste Regina Gouveia

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Lembrei-me daquela poesia de Augusto Gil: Mas as crianças Senhor, porque lhes dais

tanta dor, porque padecem assim? É certo que a Júlia já não é uma criança mas sofre,

por certo desde criança, com esta atitude do pai.

4/5/59

Ontem foi a feira das cantarinhas. É bonita. As ruas principais cheias de tendas

com cantarinhas de barro castanho, umas simples outras com flores pintadas. Há-as de

todos os tamanhos mas das que eu mais gosto são aquelas pequeninas, que cabem

dentro da mão. Passeei pelas ruas apinhadas de gente e parei em quase todas as tendas.

Também comi cerejas; é nesta data que aparecem pela primeira vez, enfiadas num

galhinho. Ainda estão pouco doces, mas são tão bonitas. O David ofereceu- me um

galhinho de cerejas que comemos juntos. Também me ofereceu uma cantarinha

pequenina, das que cabem dentro da mão, e lá no fundo, não sei como conseguiu,

escreveu: Do teu irmão David.

14/10/59

Este ano mudaram-me de turma, sem eu saber porquê. Sempre fui da turma A e

este ano mudaram-me para a B que é uma turma mista. As raparigas são mais velhas;

já quase todas repetiram um ano por isso mal as conheço. Dos rapazes só conheço o

David. Nos intervalos os rapazes vão para o recreio masculino e as raparigas vão para o

feminino. Nessa altura encontro-me com as colegas da turma A e é com elas que brinco

e converso. Os colegas da turma B são todos simpáticos comigo, mas eu preferia a turma

A. Já fui falar com o professor de Física, que é o vice-reitor. Disse-me que vai ver se é

possível a mudança

7/1/60

Nas férias recebi um cartão de Boas-Festas do Vasco, que foi meu colega na

turma B, antes de eu mudar de turma. É bonito. Tem uma paisagem coberta de neve e

por trás, a meio, em letras douradas diz: Boas Festas e Feliz Ano- Novo. O Vasco

acrescentou. Depois de teres deixado a turma B , esta, para mim, ficou mais triste que a

paisagem deste postal de Boas-Festas. Achei estranho porque enquanto estive na turma,

poucas vezes falei com o Vasco. Mas gostei de sentir que era importante para ele.

Hoje preocupei-me mais com a roupa que ia levar para o Liceu; eu sei que sou vaidosa,

mas quando dei por mim, estava a pensar no Vasco. Será que estou apaixonada?

Não vou falar disto com o David senão ele goza-me.

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15/3/60

Hoje o Vasco pediu-me um livro de exercícios de Inglês O pior é que eu não o

tenho. Vou pedi-lo ao David, que sei que o tem, mas não lhe vou dizer que é para

emprestar ao Vasco. Faço de conta que é para mim. Acho que não estou a proceder bem

com o David, mas não vou pensar muito nisso.

17/5/60

Já por várias vezes encontrei o Vasco quando saio das lições de piano. Hoje

encontrei-o mais uma vez e resolveu acompanhar-me a casa. Acho que tacitamente

começámos a namorar. Tenho que contar ao David.

10/6/60

Hoje foram as comemorações do 10 de Junho no Liceu. Como sempre, participei

nos festivais de ginástica, nas danças regionais e por fim num recital de piano.

Também acabei o meu namoro com o Vasco. Encontrámo-nos depois do festival. Falámos

sobre os cursos que pensamos tirar. Quando eu lhe falei em engenharia química, disse-

me que não era curso para uma mulher. Discutimos e ao longo da discussão disse-me

ainda que não achava graça nenhuma a que uma rapariga participasse em festivais de

ginástica e coisas idênticas. Para ele, a função das raparigas é casar, ter filhos e cuidar

deles, do marido e da casa. Eu acho que vou gostar muito de ter filhos, mas não acho

que a mulher sirva só para isso. Discutimos muito e acabámos com tudo. Se o David

pensasse como o Vasco, acho que a nossa amizade já tinha acabado há muito.

14/10/60

Estou no 6º ano. O David também, mas estamos em alíneas diferentes. Não sei

porquê tenho a sensação que sou muito mais velha do que no ano passado. A única

turma da alínea f é mista. Aliás nem sequer posso dizer que seja a turma da alínea f pois

em certa disciplinas têm aula connosco alunos de outras alíneas. O David e um colega

que também está na alínea g têm matemática em comum connosco. Um colega que está

na alínea h11 tem connosco Física, Matemática e Desenho. Em Filosofia e Organização

Política há duas turmas: uma feminina com as alunas de todas as alíneas e uma

masculina formada de modo idêntico, com rapazes. É engraçado porque acabo por ter

mais de cinquenta colegas de turma. Alguns dos rapazes já os conhecia da minha curta

passagem pelo 5º B, no ano passado. Outros nunca os tinha visto. As raparigas vieram

praticamente todas da minha turma. Claro que pelo caminho já ficaram várias. Umas

foram para a escola do magistério, outras foram para enfermagem ou arranjaram um

11

a alínea h dava acesso ao curso de arquitectura

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Estórias com sabor a Nordeste Regina Gouveia

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emprego. A Júlia nem chegou a acabar o 5º ano; trabalha arduamente para ajudar a

mãe.

28/12/60

Já passou o Natal. Antes ando muito contente com os preparativos; depois fico

triste. Não sei bem porquê mas penso que é por me lembrar das pessoas que já faltam á

mesa. Para além das ausências da Maria Cândida e da Augusta, também já é raro

aparecerem os tios de Beja e os meus primos. Eles são muito mais velhos que eu e já

casaram. Agora passam o Natal no Sul com as novas famílias e os meus tios ficam

também por lá. Era tão bonito quando estávamos todos. À noite, quando ainda não havia

luz eléctrica, à luz do petromax contavam-se histórias, muitas delas, dizia-se, tinham

sido vividas por antepassados, alguns dos quais já ninguém entre os presentes

conhecera. Um deles tinha estado na Rússia e trouxera o samovar de prata que hoje

está em nossa casa. Depois, nas invasões francesas, escondera-o numa parede da

cozinha. Quando os meus avós fizeram obras, lá apareceu o samovar. Também se falava

daquele antepassado que morreu na mais completa miséria porque tinha o vício do jogo.

Um dia, sem mais dinheiro para jogar, jogou todos os bens que tinha e perdeu. Homem

de palavra, no dia seguinte escreveu um documento entregando todos os bens ao seu

credor. Também se contava a de um outro que nunca tinha saído da aldeia e emigrou

para o Brasil. Ao chegar a S. Paulo, ficou perfeitamente perdido. A única referência que

levava era dum primo que se chamava João Silva e ele acreditava que mal saísse do

barco, em Santos, à primeira pessoa que encontrasse, perguntava onde morava o primo

João Silva e qualquer um o saberia informar. Parece que lá se conseguiu governar pelo

Brasil, mesmo sem ter chegado a encontrar o primo. Uma vez contei estas histórias ao

David que achou muita graça a esta última. Mas, em boa verdade, não é só pelas

ausências que fico triste depois do Natal. Até lá ando ocupada mas depois sinto falta dos

amigos e do bulício da cidade.

6/5/61

Já há bastante tempo que não converso contigo, amigo diário. Amigo tens sido,

pois tens-me aturado, diário é que nunca foste. Nem mensário, quanto mais diário.

Estive a rever as vezes que resolvi conversar contigo e concluí que, até à data, foram

muito poucas. Neste ano, pelo caminho que as coisas levam, não será melhor. Mas

sabem-me bem, de vez em quando, estas conversas. Hoje não tenho nada de especial

para te contar, a não ser que estou ansiosa pelas férias. Está previsto que este ano, em

Agosto, irei novamente passar 15 dias à Foz do Arelho, na colónia de férias da FNAT,

com os meus tios. Nunca mais voltei a ver o mar desde 1955, em que o vi pela primeira

vez, também lá na Foz do Arelho. Já estou com muitas saudades do mar. É pena ter

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Estórias com sabor a Nordeste Regina Gouveia

82

medo de me aventurar nele. O David também gosta muito do mar, mas parece que é

mais afoito que eu.

15/11/61

A senhora que lavava a nossa roupa faleceu há um ano. Nessa altura sugeri à

minha mãe que contratasse a mãe da Júlia e, hoje, é ela a nossa lavadeira. A princípio

sentia-me um pouco mal quando era a Júlia que vinha buscar a roupa, mas agora

sempre que ela vem aproveito para conversar e acho que nos estamos a tornar amigas.

Hoje falou-me dos irmãos, do padrasto que a maltrata e disse-me que logo que possa,

vai tentar ir para Angola onde tem um tio, ou então casar para sair de casa. Fiquei um

pouco chocada com esta última ideia. Até agora quando pensava em casamento,

associava-o a amor, a felicidade, a tudo aquilo que nos é apresentado nos contos de

fadas. A Júlia vê- o como uma saída. Ela tem apenas 18 anos e já vê a vida duma forma

tão azeda. Gostava de a poder ajudar. Mas que sei eu da vida? Criada numa redoma,

sem problemas, mais nova dois anos que ela que poderei eu fazer? Tentei dar-lhe a

receita do David:

� Quando pensares que tens razão par estar triste pensa em quem tenha mais

razões que tu.

Mas ela respondeu-me:

� E em quem queres tu que eu pense? Em ti, em qualquer das colegas do Liceu, em

quem?

Vou comprar o Diário de Anne Frank e vou oferecer-lho, mas não sei como ela reagirá.

5/2/62

No Natal ofereci o diário de Anne Frank à Júlia. Não lhe falei mais no assunto. Mas

hoje fiquei muito satisfeita. Quando veio trazer a roupa disse-me que o tinha lido e que

tinha percebido por que razão lho oferecera. Disse-me também que ia tentar arranjar um

emprego, embora continuasse a ajudar a mãe. Falou-me da dificuldade de alguns dos

irmãos na escola e eu vou ajudar a Maria e a Lurdes que estão ambas no 4º ano e têm

muitas dificuldades a matemática e a física. Vou pedir ao David que também colabore.

Ele pode ajudá- las em Desenho; ambas tiveram negativa.

21/6/62

Hoje estava particularmente feliz. As irmãs da Júlia passaram para o 5º ano. Fui

contar ao David que também ficou satisfeito. Mas comentou de imediato:

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Estórias com sabor a Nordeste Regina Gouveia

83

� Aí está o nosso modesto contributo para melhorar o mundo. Será que não

conseguimos fazer melhor?

Às vezes o David enerva-me. Eu estava contente e ele acabou por me fazer sentir um

pouco mesquinha.

30/6/62

Hoje a Júlia apareceu cá em casa. Trazia um pequeno embrulho e disse-me:

� Quero agradecer-te o teres ajudado as minhas irmãs. Não te posso dar grande

coisa mas no pouco tempo que tenho livre fiz estes paninhos de renda. São para

ti. Também tenho uma lembrança para o David. Comprei um lenço e bordei nele

um D.

Conversámos muito e lanchámos juntas. Pedi-lhe que ficasse para jantar, mas ela tinha

que ir trabalhar. Quase à saída disse-me:

� Sabes, eu acho que entre ti e o David há mais que uma simples amizade, mas

parece-me que nenhum de vocês quer reconhecer isso.

Até a Júlia! Por que razão as pessoas têm dificuldade em acreditar numa simples

amizade, embora profunda, entre um rapaz e uma rapariga?

À despedida abraçámo-nos. Um abraço apertado. Ela chorou e disse.

� Estás a acabar o 7º ano, para o ano vais embora e nunca mais te vais lembrar de

mim.

Prometi que não, que vou escrever-lhe e que gostarei sempre de saber notícias dela.

7/2/84

Pois é. Há vinte e dois anos que não converso contigo. Quando acabei o 7 ºano,

os meus pais regressaram à aldeia e eu fui para a faculdade. Na mudança das tralhas

para a aldeia, perdi-te, meu caro diário. A princípio fiquei muito aborrecida, não porque

me fizesses muita falta- sabes bem que não era uma confidente assídua- mas

preocupava-me pensar que alguém te pudesse encontrar e ler um conjunto de coisas que

não interessam a ninguém mais, senão a mim, se é que a mim interessam. O que te

valeu foi a neve buraqueira. Caiu um nevão enorme lá na aldeia e a neve, tocada a

vento, entrou pelas casas. O ti Custódio, que morava num casebre, foi encontrado

morto, enregelado, coberto de neve. Pobre homem! Porque é que coisas destas

acontecem? O ti Custódio era um velho de barbas grisalhas e olhos da mesma cor, que

vivia sozinho. Durante muitos anos, pensei que era mudo. Nunca o ouvi falar. Se passava

por ele e lhe dava as ”boas-horas” ele apenas acenava com a cabeça. Um dia o meu pai

contou-me que em jovem era um rapaz bonito, alegre e muito ágil. Montava um cavalo

em pelo como ninguém. Era criado numa das casas ricas da aldeia e apaixonou-se pela

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Estórias com sabor a Nordeste Regina Gouveia

84

filha do patrão. Quando este se apercebeu, despediu- o. A partir daí o Custódio começou

a ficar cada dia mais triste, mais metido consigo e por fim deixou de falar. Foi assim que

se transformou no ti Custódio que eu conhecera. Em nossa casa a neve também entrou,

mas ficou pelo vão do telhado e pelo sótão. Foi preciso ir lá removê-la. Foi a forma de

arejar uma série de coisas de que já ninguém se lembrava. No meio de toda aquela

tralha, muito cheio de pó estavas tu, com um ar tão abandonado que me fizeste pena.

Comecei por reler-te. Foi como se o meu final de infância e a adolescência tivessem

regressado de um momento para o outro. Revi-me no meu crescer por dentro, um tanto

desajeitado, preocupada com o meu pequeno mundo, com os meus pequenos dramas

que eu julgava imensos e ignorando os verdadeiros problemas da humanidade. Revi

também aqueles tempos mesquinhos de preconceitos balofos e de convenções estéreis.

Mas foi bonito rever como, a par de tudo isso, foram ganhando raízes e crescendo

amizades, de início frágeis, mas que foram ganhando vigor adubadas com afecto, com

verdade, com ternura.

Pois é, caro diário, temos muito que conversar para pôr a conversa em dia. Não

sei por onde começar. Quando te deixei fui para a Faculdade, como já te disse.

Aconteceram várias coisas, muitas com o seu lado bom e o seu lado mau. A primeira foi

a minha separação dos meus pais. De início custou-me muito, mas sinto que me ajudou

a crescer. Tornei-me muito mais autónoma pois tinha que resolver sozinha os meus

problemas. Também me tornei mais consciente de muita coisa e nisso o David ajudou-

me muito. Ele foi estudar para Lisboa, mas correspondíamo-nos e víamo-nos de vez em

quando, pelo menos sempre que passava pelo Porto a caminho de Lisboa ou de casa. Na

época, em Lisboa o movimento estudantil era mais activo que no Porto, ou se o não era,

eu no Porto não me apercebi muito dele; por isso o David foi, mais cedo que eu,

tomando consciência de muita coisa que até ali ignorávamos. Logo nesse ano, no meu

aniversário, ofereceu-me um livro que na altura me fez reflectir muito. Chama-se “O

Lodo e as Estrelas” e o autor12, simultaneamente editor, diz na dedicatória: “A todos os

que trabalharam em túneis de minas ou barragens e hoje têm silicose... O produto deste

livro é para eles” O autor conviveu muito com trabalhadores de barragens onde foi

capelão e descreve, de uma forma extremamente bela e triste o drama daquelas gentes,

em trechos como este: “No dorso das albufeiras, uma barquinha negra, carregada de

pulmões esfarrapados, segue a sua rota”. Eu ia tomando consciência de como os meus

pequenos problemas eram insignificantes; comecei a perceber que as injustiças que eu

conhecia eram pequeníssimas quando comparadas com outras muitos maiores: o

desrespeito pelos mais elementares direitos humanos, particularmente no nosso país- a

exploração do homem pelo homem, a escravatura que continuava e continua a existir

12

Telmo Ferraz

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Estórias com sabor a Nordeste Regina Gouveia

85

muitas vezes sob uma capa sofisticada, a guerra, a fome, a ganância que tudo justifica,

enfim. De tudo isso conversava também com alguns novos colegas, embora à cautela,

que os tempos não eram para estas reflexões. Naquele tempo reinava a desconfiança

entre as pessoas. A PIDE tinha informadores infiltrados por todo o lado pelo que nunca se

tinha a certeza se um dos que pensávamos “nossos” não era afinal um “deles”. Por isso e

também por causa da nossa longa amizade, era com o David que eu gostava mesmo de

conversar. Gostávamos muito de passear junto ao mar, lá na praia da Boa Nova,

enquanto conversávamos. A nossa amizade que já era grande, cresceu um pouco mais, à

medida que nós crescíamos interiormente. Depois, ele foi para a Guiné, por causa

daquela maldita guerra, ele que tanto a odiava. Também odiava a morte e matou. E foi

essa a última vez em que me escreveu, muito perturbado pelo que tinha feito. Foi em

1969. Pobre David! Guardo todas as cartas, postais e aerogramas que me escreveu e por

vezes releio-os embora isso me faça sofrer. Nunca mais o vi. Soube que conseguiu fugir

da Guiné e foi para França. Escrevi-lhe várias cartas que nunca terminei e que te vou

confiar. Estão comigo, porque nunca tive coragem de as enviar. Porque as escrevi então?

A resposta está nelas mesmas.

3

Não consegui ler de seguida todo o diário de Sara. Até 62 gostei de o ler e li sem parar.

Fiquei contente ao ver que consto de todas as suas conversas. Ao ler o que escreveu em

7/2/84 parei. Decidi que antes de continuar a leitura do diário iria começar por ler as

cartas, mas demorei cerca de dois meses a retomar a leitura. Ganhava coragem para as

ler. Comecei por ler as que lhe enviei. São cartas geralmente pequenas pois lembro-me

que me era penoso escrever, tal como era penoso receber correspondência, embora a

desejasse tanto como o ar que respirava. E era penoso porque eu tentava, a todo o

custo, não pensar em nada.

1/6/68

Sara

Escrevo-te a caminho da Guiné, a bordo do navio Ana Mafalda. Não disse a ninguém a

data da partida, pois acho que não iria suportar ver, ou melhor, pressentir aqueles de

quem gosto, entre aquela multidão que se apinhava na varandas da gare marítima,

acenando com lenços e chorando. Fugi disso tudo, refugiando-me no camarote. Só de lá

saí, já em mar alto. Da coberta, onde passo a maior parte do tempo deitado, por causa

do enjoo, só vejo mar. Sabes bem como eu gosto do mar, por isso, esta imensidão

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Estórias com sabor a Nordeste Regina Gouveia

86

repousa-me. Por vezes vêem-se peixes voadores. São fantásticos. Vão a planar, talvez

uns 50 m. Também já vi tubarões, alguns com cerca de 2m. Por vezes, vêem-se ao longe

alguns navios- cargueiros e petroleiros. Perto das Canárias vimos uma grande barco à

vela. Somos cerca de 400 militares e tentamos disfarçar as nossas tristezas e

apreensões, jogando ás cartas, conversando, ouvindo música. Mas o olhar de alguns não

engana. Há um alferes que deixou aí mulher e três filhos. Já por várias vezes vi os seus

olhos rasos de lágrimas, mesmo quando parece rir. Eu tento ficar vazio e não pensar,

pois se penso em tudo o que deixei sinto uma tristeza tão profunda que não a consigo

descrever. Se, por outro lado, penso no que vou encontrar, então sinto aquela revolta

que me provoca náuseas. Não sei se irei aguentar.

Escreve sempre que possas.

Um abraço

David

10/8/68

Sara

Escrevo-te de Nova Lamego (a que os naturais daqui chamam Gabu) e que fica num

planalto com o mesmo nome. O terreno da Guiné, cortado por alguns rios muito

sinuosos, (Geba, Corubal, Cacheu, Mansoa, Buba e Cacine) alguns dos quais são mais

braços de mar que rios, não apresenta grandes elevações- apenas dois planaltos, o do

Gabu e o de Bafatá e as colinas do Boé. A vegetação no litoral e nas margens dos rios é

mata densa, como na zona do Morés, uma das zonas onde se escondem os guerrilheiros

(turras como são chamados pela tropa), cercada por pântanos- as bolanhas onde se

cultiva o arroz; no interior, como aqui, é savana. Agora estamos na época das chuvas; o

calor é sufocante. De vez em quando caem enormes bátegas de água, que transformam

as ruas em autênticos rios. Na época seca, de Novembro a Maio, o clima é um pouco

mais ameno, dizem. A terra aqui é avermelhada, cortada pela vegetação, por vezes

exuberante, por palhotas, geralmente de planta circular e por morros de baga-baga.

Trata-se de morros feitos por uma espécie de formiga, a formiga baga-baga , com barro

e material segregado por elas. São bonitos- uns altos, muito maiores que uma pessoa,

de terra vermelha e com a forma de morro, outros, mais pequenos, negros, com a forma

de cogumelos. Tenho feito vários desenhos destas paisagens, que espero mostrar-te um

dia. Tenho também algumas fotografias e slides. Quanto à fauna, pensei que fosse mais

rica. Para além dos animais domésticos há macacos, manguços, e uma ou outra gazela.

Dizem que há também crocodilos e hipopótamos no rio Corubal, mas por aqui não se

vêem. Há é muitos morcegos e pássaros muito bonitos, multicoloridos. O que há também

é muita bicharada- baratas enormes, mosquitos, grilos com uns 6 cm de comprimento,

sapos, uma espécie de vermes, com 2 cm de comprimento- os cáusticos- que ao passar

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Estórias com sabor a Nordeste Regina Gouveia

87

no corpo de uma pessoa deixam uma chaga como se ali se tivesse deitado ácido sulfúrico

concentrado. Ao fim do dia sento-me na varanda do quartel e fico a olhar o pôr do Sol.

Tenho visto alguns fantásticos que tenho fotografado. Nunca tinha visto nada igual.

Também os cheiros assumem aqui uma força que não te sei descrever. São ao mesmo

tempo quentes e exóticos, como se resultassem de uma mistura de terra quente e

molhada com frutos, incenso e outras especiarias. Quanto à guerra, para já só a sinto

ao longe através do obus de Piche, uma zona muito flagelada a que, por isso mesmo, se

chama Dien Bien Piche, comparando-a assim a Dien Bien Phu, no Vietname. Mas não

consigo esquecer que ela existe e quão bárbara é.

Escreve. O meu endereço é o que vai no aerograma.

Um abraço

David

8/10/68

Sara

Já recebi três cartas tuas e só agora arranjo coragem para te responder. Hoje sinto-me

razoavelmente bem. Acabei de ver um espectáculo bonito, mas assustador- uma

trovoada acompanhada de tornado. Estamos a chegar ao fim da época das chuvas. Nesta

época, penso que já te disse, caem terríveis trombas de água, geralmente precedidas de

vento. Grande parte dessas trombas de água estão

associadas a fortes trovoadas Às vezes olhamos para o céu e está sem nuvens, mas

passada meia hora pode surgir uma trovoada terrível. Os naturais daqui pressentem-nas

um pouco antes e é curioso ver como eles começam a andar muito mais depressa, ainda

nós não nos apercebemos da aproximação da borrasca. Hoje, aí uns 15 minutos antes

de começar a chover com trovoada, surgiu uma ventania que se prolongou durante a

trovoada e que parecia levar tudo pelos ares. O céu estava belo, cortado pelo zig-zag de

inúmeros relâmpagos. No fim, cerca de meia hora depois, o céu ficou outra vez sem

nuvens mas o calor continua abrasador e a humidade insuportável. Sinto saudades do

frio. Do frio e de tudo o resto, mas tento não pensar. É por isso que me limito a falar

daqui. Mas pode ser que aí agora as coisas mudem e mudando aí, mudarão por certo

aqui. Gostava de ser suficientemente optimista para acreditar nisso. Comecei a falar daí

e já estou a entrar na fossa. É melhor terminar.

Um abraço

David

11/10 /68

Sara

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Estórias com sabor a Nordeste Regina Gouveia

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Já contactei muito de perto com os estragos da guerra. Uma coluna que seguia para

Piche foi atacada. Morreram alguns camaradas e outros ficaram muito estropiados.

Alguns foram evacuados para aí. Porque nos matamos uns aos outros?. Esta gente é boa,

tem um olhar doce. Porquê tanto ódio, de parte a parte? Soube há dias que foi torturado

um guerrilheiro que foi apanhado. O militar que o torturou descrevia tudo com uma tal

frieza que eu senti arrepios como quando se está com febre. Dizem-me que ao fim de

algum tempo, todos ficamos assim. Dizem-me ainda que até há alguns que passam a

sentir prazer em matar. Será que me vou transformar num monstro, Sara? Será que

algum dia eu vou aprovar esta guerra?

Hoje não consigo escrever mais. A minha cabeça parece estourar.

Escreve sempre

Um abraço

David

20/12/68

Sara

Esqueci-me do teu aniversário. Desculpa. Dias antes andei com a preocupação de te

escrever e de te arranjar uma prenda de que gostasses. Comprei uma bilha de barro da

região de Teixeira Pinto, ao norte de Bissau. Acho que vais gostar. Talvez ta não envie,

pois tenho medo que se parta. Levo-ta quando for de férias( irei eu alguma vez de férias

? sairei eu deste inferno ? e depois conseguirei regressar?). Depois de a comprar, andei

ali uns dias muito em baixo e esqueci-me completamente da data dos teus anos. Vês

agora como eu estou ? Às vezes ando que nem sonâmbulo, perdido, sem pensar, com a

cabeça vazia. E, no fundo, é nessas alturas que me sinto melhor, porque não me sinto.

Escreve

David

28/12/68

Sara

Começo por te agradecer o que mandaste, nomeadamente o contributo para a nossa

ceia de natal. Foi no quartel. Estive de serviço, o que foi muito bom, pois assim não tive

tento tempo para pensar. Juntámos tudo aquilo que nos mandaram daí (polvo, bacalhau,

enchidos, bolo-rei, frutos secos, vinho do Porto). Todos estávamos tristes mas tentámos

esconder. A nossa vida aqui é muito “finge que está tudo bem”. No dia de Natal, ao fim

da tarde, passeei pelas ruas de Nova Lamego. Lembrei-me que ainda te não tinha falado

das árvores daqui (ou será que já falei?). Há aqui árvores fabulosas- os poilões que eu

creio serem os baobás do “Pequeno Príncipe”, os bissilãos (ou bissilões, não sei) que dão

uma espécie de flor (que creio ser um fruto aberto) muito bonita. Já arranjei algumas

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89

para te levar quando for de férias que, em princípio deve ser em Março. Também não sei

se já te falei das pessoas. Há aqui mulheres lindíssimas Algumas são velhas, muito

enrugadas, mas as suas expressões são fantásticas. Já fotografei algumas. Vestem de

forma muito colorida, com muitos colares e pulseiras. Gosto muito de as ver passar; a

cor vermelha da terra mistura-se com o colorido das suas vestes, com o escuro da sua

pele, com o verde da vegetação e com o azul do céu, num festival de cor que embriaga.

Um dia, hei-de pintar estas mulheres. Nas festas (roncos) vestem trajes de festa, à base

de rendas e tecidos muito leves que lembram, por vezes, cortinados. Imagina como seria

fantástico viver aqui em paz! Mas todos os dias, o obus de Piche nos lembra a realidade.

E pior que isso são os mortos e estropiados de ambas as partes. Se um dia esta guerra

acabar ainda havemos de vir aqui para eu te mostrar como esta terra e esta gente são

maravilhosos. Que sonhador que eu estou....

Um abraço

David

25/1/69

Querida irmã de jura

Hoje lembrei-me muito de ti e das nossas brincadeiras de criança. Isso reflecte-se na

forma como começo a carta. Talvez seja porque hoje recebi vários aerogramas teus. Que

bom! Também hoje aprendi a jogar uri com uns soldados africanos. É um jogo tradicional

e que se joga numa espécie de tabuleiro de madeira (aquele em que eu joguei tinha a

forma de barco) onde são feitas várias divisões nas quais se colocam várias peças que

neste caso eram pequenas sementes de coconote. Pedi para me arranjarem um, que

espero levar para aí a fim de poder jogar contigo tal como outrora jogávamos às damas,

ao dominó, às cartas, ao rapa. Já estou a imaginar-te amuada quando perderes. Mas vou

deixar-te ganhar algumas vezes... Também já encomendei uma guitarra tradicional (

“Corá”) para levar. Talvez depois tu me acompanhes ao piano....Hoje foi de facto um

bom dia. Quase não pensei na guerra. Quando jogava iuri, vi passar uma série de burros,

todos carregados de mancarra (amendoim), tocados por homens com as suas túnicas

geralmente brancas, com a cabeça coberta com gorros, uns brancos rendados, outros em

lã (é estranho, como usam gorros de lã neste clima). Já comprei um destes gorros de lã.

É bonito, em tons de castanho. Há-os também em tons de azul, de cinza e de magenta.

Por vezes, em vez de gorros os homens usam turbantes, alguns muito bonitos. Como

devia ser bom viver aqui sem guerra (já devo ter feito este comentário várias vezes)! Há

dias assisti a um batuque de casamento. Fantástico. O som da música, misturado com a

dança, com o colorido dos trajes. Na dança, as mulheres fazem uma espécie de gingado

e os homens fazem verdadeiras acrobacias, saltando, dando mortais, enfim, um

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Estórias com sabor a Nordeste Regina Gouveia

90

espectáculo arrebatador. Fora da palhota foram expostas os presentes de casamento.

Panos em azul (um espécie de batik), meias cabaças de vários tamanhos e que fazem a

função de tachos, alguidares, etc. Outro espectáculo bonito é o que ocorre à hora das

orações. Curiosamente nunca vi mulheres nestas orações; talvez rezem dentro das

palhotas. Vejo apenas homens, que se descalçam para rezar; ajoelham-se virados para

Meca e encostam a cabeça no chão. É bonito ver aquele conjunto de corpos deitados,

onde o branco das vestes predomina e se mistura com o vermelho da terra. Que belas

telas se poderiam pintar aqui. Um dia, sem guerra, hei-de voltar. Talvez venha para aqui

viver. Mas chegarão alguma vez, os tais dias sem guerra? Aqui ouve-se a Rádio Portugal

Livre de Argel. É a única maneira de sabermos o que realmente se passa no país e de

termos alguma esperança que um dia isto há-de acabar. Gosto de a ouvir, não só por

isso, mas também porque passa música de Zeca Afonso, em todas as emissões. Já não

sei quantas vezes ouvi as canções “Vampiros” e “Menino do bairro negro”. Um dia destes

mando-te as letras. Será que alguma vez vamos poder ouvir aí, livremente, estas e

tantas outras músicas? Chegarão alguma vez os dias da Liberdade? É melhor não

pensar, por isso termino aqui.

Um abraço

David

10/2/69

Sara

Hoje nem devia escrever-te. A minha resistência psicológica está a chegar ao fim. Aí já

deve ter chegado a notícia, porque esta será difícil de esconder. Morreram 47 militares

na travessia do Corubal quando a barcaça em que seguiam se virou. Dizem que depois

do acidente, os crocodilos que só existiam muito mais a jusante, subiram o rio atraídos

pelo cheiro o que impossibilitou, em parte, a recuperação dos corpos. Foi horrível e tanto

mais horrível se pensarmos que aqueles desgraçados estavam há meses numa das

piores zonas, em que praticamente se vive todo o tempo dentro dos abrigos, e agora que

iam sair dali, a saída foi a saída para a morte. Eu tenho que sair daqui pois tudo isto é

enlouquecedor. Para quê esta guerra?

Escreve

David

20/2/69

Sara

Tenho as mãos manchadas de sangue. Matei, Sara, e o pior, é que na altura não me

custou. Foi uma emboscada que nos fizeram. A dada altura, surpreendi um guerrilheiro

em cima duma árvore com a arma apontada para mim. Peguei na bazuca do soldado que

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Estórias com sabor a Nordeste Regina Gouveia

91

estava a meu lado virei-a para ele e à “queima roupa” disparei-a. Ficou desfeito. Eu

nunca mais vou esquecer esta imagem. Eu sou um monstro. E não me venhas dizer que

há camaradas meus que tiveram que matar muito mais gente. Com a vida humana não

se pode pensar assim. Matar uma pessoa ou várias é hediondo do mesmo modo. Matei

para não morrer, mas estou morto por dentro. Preferia ter morrido, mas agora já é

tarde. Por que razão não foi ele mais rápido e não me matou ? Assim não estaria a

passar pelo que estou a passar e que não desejo a ninguém. Mas na altura não me

custou nada. E isso é o que mais me repugna. Eu estou mesmo a transformar-me num

monstro. O que esta guerra ignóbil pode fazer dum homem! Tenho náuseas. Tenho nojo

de mim. Não podes imaginar como me sinto. Ajuda-me Sara ou melhor, esquece que eu

existo pois agora, o teu amigo, irmão de jura é um ASSASSINO.

David

A leitura das cartas, particularmente da última, fez sangrar velhas feridas. Todo aquele

drama que estava guardado no subconsciente, veio à tona. Voltaram as insónias, as

alucinações. Mas desta vez custou menos. Talvez porque o tempo tudo apaga mas

também porque havia uma outra dor, que se sobrepunha - a da perda de Sara. Lembro-

me quando Sara, que sofria muito de enxaquecas, apertava vigorosamente com a mão

direita a mão esquerda, entre o polegar e o indicador. Dizia que a dor que ela própria

provocava em si mesma, a ajudava a minorar a outra. Mas apesar de tudo gostei de ler

as cartas e de recordar todas aquelas imagens de África, que na altura tanto me

fascinaram. Se Sara fosse viva, havíamos de lá ir.

Nunca pude mostrar a Sara as fotos, os slides e os desenhos que prometi, tal como não

lhe pude trazer a bilha de Teixeira Pinto, o uri, o corá, o gorro de lã, as flores de

bissilão. Antes de partir queimei desenhos, cartas, fotos. O resto deixei ficar.

4

Após a leitura das cartas que enviara a Sara, não passei de imediato à leitura das que ela

não me enviou nem terminou. Tinha um pressentimento que o que viria a seguir me

poderia perturbar muito. Estive uns tempos a ganhar coragem e só depois iniciei a sua

leitura.

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1ª carta

4/8/69

David:

Há já cerca de meio ano que não recebo notícias tuas. Escrevi cartas, aerogramas,

telefonei. Foi então que soube que tinhas desertado, mas ninguém sabia de ti. Liguei

para os teus pais. Foi por eles que soube que estavas em França e que continuavas a

lutar para esquecer os horrores da guerra. Só não consigo perceber porque razão

deixaste de escrever. Quando acabei de ler a tua última carta, datada de Fevereiro de

69 fiquei muito perturbada. Dizias que eu não podia imaginar como te sentias. A tua

dor, não sei se pude percebê-la em toda a sua extensão, mas sei que deve ter sido

muito, muito grande. Tu que foste sempre pela defesa da vida, contra a guerra, contra a

morte, tu que ficavas indignado quando eu dizia que para certos crimes só a pena de

morte. Por isso dizias na carta- matei para não morrer, mas estou morto por dentro.

Preferia ter morrido, mas agora já é tarde. Não morreste mas tentaste fugir de tudo.

Como pode alguém ajudar-te se tu foges? Tu mataste um homem que tentava matar-te.

Outros têm sido obrigados a matar homens, mulheres e crianças que nada têm a ver

com a guerra, são mortos apenas como forma de pressão. Lembra-te da receita que em

tempos me deste. Pensa nesses que estão pior que tu.

Aí, em França, acompanhas por certo o que se passa aqui no país pelo que deves ter

tomado conhecimento das lutas estudantis que se iniciaram em 17 de Abril passado.

Também em Maio se realizou, em Aveiro, o II Congresso da Oposição. O regime

respondeu com a repressão que o caracteriza. Onde está a primavera marcelista? Mas

isto tem que mudar. E quando mudar, a guerra colonial acaba, por certo. Nessa altura tu

poderás voltar e aqui, no meio das pessoas que te são queridas, todas as feridas hão-de

sarar mais depressa. Se não tivesses fugido, talvez eu tivesse coragem para te falar de

algo que me tem perturbado muito. Acho que estou apaixonada por ti. De início pensei

que era apenas confusão de sentimentos resultante da impressão que me causou a tua

última carta, mas depois comecei a sentir a tua falta de uma forma diferente. Sonhava

em ter-te perto, gostava de imaginar que me estreitavas nos braços. Como pode isto

estar a acontecer? Será que eu teria coragem de te falar disto se estivesse contigo ?

Talvez não, tal como não vou ter coragem de te enviar esta carta. Receio a tua reacção.

Nós jurámos ser irmãos, por isso este sentimento perturba-me porque me parece

incestuoso. Luto contra ele, mas não consigo vencê-lo. Ai, David, como estou confusa. Se

ao menos tu escrevesses.

2ª carta

4/1/70

David:

Page 93: Estórias com  sabor a nordeste

Estórias com sabor a Nordeste Regina Gouveia

93

Continuo ansiosamente á espera que tu escrevas. O que se passa contigo? Por aqui, o

descontentamento das pessoas paira pelo ar. Sente-se. Mas para já tudo continua na

mesma. A única mudança foi que a PIDE mudou de nome, e só de nome. Agora chama-

se DGS. Mas também acontecem coisas bonitas. A Júlia escreveu-me hoje. Comunica-

me que vai ser mãe e que gostava que eu e tu fôssemos os padrinhos da criança, tu por

procuração, é claro. No entanto receia que isso não seja possível. Escreveu-te para a

morada que tinhas em França, mas a carta foi devolvida. E nem que queira saber a nova

morada os teus pais foram viver para Lisboa e ninguém sabe a sua direcção. A Júlia

parece ter finalmente adquirido o direito à felicidade. Casou há um ano, com um rapaz

da aldeia dos avós. Parece-me um óptimo rapaz. Trabalha no campo, numas terras que

tem e em outras que arrenda. Parece sempre bem disposto, é alegre, sempre disponível,

apoia a Júlia na ajuda que ela continua a dar à mãe e aos irmãos. Esta carta, com o

convite para ser madrinha da criança, deixou-me muito feliz. Mas como não há bela sem

senão, o facto de recear ter perdido definitivamente o teu rasto, deixa-me muito triste.

3ªcarta

10/1/71

David:

No dia 1 de Janeiro foi o baptizado do David. A Júlia quis dar-lhe o nome do

homem que queria para seu padrinho. Se visses como está feliz. Quando me vinha

embora disse-me:

� Tive pena que o padrinho não fosse o David, mas acho que foi melhor assim. A

minha mãe sempre me disse que se um rapaz e uma rapariga são padrinhos de

uma criança, uma relação entre eles fica comprometida; ou nunca casam, ou

então não são felizes. Ora apesar de tu dizeres que não, eu continuo a achar que

tu e o David nasceram um para o outro e embora não acredite muito nestas

coisas, podia dar azar serem ambos padrinhos do meu filho.

Não tive coragem para falar à Júlia no amor que sinto por ti. Acho que se um dia alguém

souber, serás tu, em primeiro lugar.

Aproveitei para passar na nossa antiga rua. Vi algumas crianças a brincar e lembrei-me

do tempo em que as crianças éramos nós. Revi as fachadas da tua e da minha casa.

Estão cinzentas e tristes como este país, que tarda em mudar. Já sabes por certo que

Salazar morreu em Julho passado. Mas isso não trouxe qualquer alteração significativa à

política seguida. As esperanças que se chegaram a depositar em Marcelo Caetano

caíram todas por terra.

4ª carta

6/2/72

Page 94: Estórias com  sabor a nordeste

Estórias com sabor a Nordeste Regina Gouveia

94

David:

Sinto-me terrivelmente em baixo. Porque razão não escreves? Eu sei que podes

perguntar o mesmo, mas foste tu que decidiste cortar. Porquê? Eu sei que por vezes

quando algo nos magoa muito tentamos cortar com tudo, à espera que o tempo faça o

resto. Lembras-te que no no filme “ O Cardeal” este dizia para a irmã: “O amor faz

passar o tempo e o tempo faz passar o amor”. Talvez o tempo faça passar a dor,

embora a dor não faça passar o tempo.

Hoje lembrei-me particularmente de ti porque fui para a Boa Nova e sentei-me junto ao

mar. Levei um livro que me deste- “Primeiros Versos” de António Nobre. Lembras-te

como eu gostei particularmente daquele poema que diz:

Senhora da Boa Nova!

Capelinha à beira-mar!

Ando a abrir a minha cova

para nela vir morar ?

Tem um sabor popular que traduz, de uma forma cândida, a sua paixão por aquele

lugar. Eu não ando a abrir a minha cova, mas gostaria de um dia me casar lá, contigo.

Como seria bom se hoje tivesses estado lá comigo! Lembras-te das vezes que lá nos

sentámos e ficámos horas esquecidas a falar de tanta coisa. Uma das vezes, recordo-me

perfeitamente, a nossa conversa foi centrada no Estrangeiro, de Camus. Hoje para além

dos Primeiros Versos, também levei um livro que, como sabes, já me acompanha há

muito tempo- Platero e eu. Apeteceu-me relê-lo. E ali, junto ao mar lembrei-me quando

Jimenez, a propósito do poço diz: Ouve, Platero; se um dia eu me deitar a este poço,

não será para me matar, acredita, mas para agarrar mais depressa as estrelas.

PS- Ao reler a carta, pareceu-me um pouco mórbida, com a presença da morte a pairar.

Mas amo demasiado a vida para querer morrer. Simplesmente hoje, não sei porquê,

estou particularmente triste.

5ª carta

25/4/73

David:

Encontro-me na aldeia onde vim passar uns dias. Sabes como eu gosto da aldeia nesta

altura. Ou melhor, eu gosto sempre da aldeia. No Inverno, com os seus tons cinzentos

que se confundem com o fumo das chaminés, e aquele frio cortante que torna delicioso

estar à lareira; em Fevereiro/ Março com as amendoeiras em flor, em Junho com o

amarelo das searas, em Agosto com as noites quentes de luar, no Outono, com toda a

exuberância dos tons das folhas secas. Mas agora, predominam as árvores e os arbustos

floridos. Como são bonitas as flores das silvas, umas brancas, outras cor de rosa! Como

Page 95: Estórias com  sabor a nordeste

Estórias com sabor a Nordeste Regina Gouveia

95

é que uma planta tão cheia de espinhos pode dar flores tão bonitas? Lembrei-me da flor

do pequeno príncipe, lá no seu planeta, possivelmente o asteróide B 612... Mas não são

só as flores das silvas. São as do marmeleiro, das estevas, das arçãs! Tudo reflecte a

pujança da vida. Que pena eu tenho que não estejas aqui comigo.... Ao longo destes

anos, em que continuo sem ter notícias tuas, tenho lutado com todas as minhas forças

para destruir este sentimento que sinto por ti. Já comecei várias relações mas têm sido

todas um fracasso. Quando dou por mim estou a fazer comparações: O que faria o

David nestas circunstâncias? E quando isto me sucede, pura e simplesmente acabo a

relação. Não quero construir a minha vida sobre uma mentira.

Tenho a certeza que a minha mãe já se apercebeu. Há dias, falando da guerra, disse-me:

� Esta guerra há-de acabar. Tanta dor, tantos sonhos por realizar...

Afagou-me a cabeça e nesse afago eu acho que ela me queria dizer: Quando a guerra

acabar, ele volta.

6ª carta

30/10/73

David

Cada vez acredito mais que isto tem que mudar. Todos os dias ouço a BBC. A opinião

internacional é tão desfavorável a tudo o que se passa que eu creio que o regime não se

pode aguentar muito mais. Há uns meses Marcelo Caetano foi a Londres e nessa altura a

imprensa britânica denunciou um massacre terrível que foi feito em Moçambique contra

populações civis. Aqui, obviamente, tinha sido abafado. Também, em primeira mão pela

BBC, soube que o PAIGC proclamou unilateralmente a independência da Guiné. Pena

que Amílcar Cabral não tenha assistido. Como deves saber, foi assassinado em Janeiro

último.

No passado fim de semana fui a Trás-os- Montes. Os campos estão tão lindos, com

todos aqueles tons de Outono! A cor das folhas- umas avermelhadas, outras

acastanhadas, outras amareladas, mistura- se com o verde cinza da copa das árvores e

com o castanho multicor dos seus troncos (os troncos dos sobreiros, são soberbos!). Os

ouriços, nos castanheiros, deixam antever as castanhas brilhantes. Lembras-te dos

magustos que fazíamos quando éramos crianças ?

7ª carta

5/3/74

David

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Estórias com sabor a Nordeste Regina Gouveia

96

O país está ao rubro. O General Spínola, com o aval do seu superior hierárquico,

publicou um livro em que defende uma solução política para o problema das colónias (ia-

me esquecendo que já há muito deixaram de ser colónias para passarem a ser

“províncias ultramarinas”...). A censura, não se sabe como, deixou passar. Agora que o

regime se apercebeu, os dois militares foram demitidos, mas tarde demais. O livro tem

tido um sucesso enorme. Talvez porque gostava de viver estes momentos contigo, hoje

precisava de ti. Tenho imensas saudades tuas. Lembras-te como eu gosto do Sol? Pois

sinto a tua falta como sinto a falta do Sol nos dias cinzentos. Às vezes penso que vou

tentar por todos os meios saber o teu endereço e ganhar coragem para te enviar as

cartas que escrevo. Mas logo de seguida acho que isso seria uma traição ao nosso

juramento, uma fraqueza minha, e acima de tudo receio perder-te como amigo. Assim

pelo menos, senão tenho o teu amor, tenho ainda a tua amizade, penso eu.

8ª carta

2/5/74

David:

Sabes por certo o que aconteceu. O regime caiu. E sem derramamento de sangue á

excepção de quatro vítimas da Pide, que até ao fim teve que fazer estragos. Já há

tempos, no dia 16 de Março, tinha havido uma tentativa de derrube, mas falhou e vários

militares foram presos. Agora foi tudo melhor programado. Por volta das 23 h do dia 24

do mês passado, pelos Emissores Associados de Lisboa foi dada a primeira senha- a

canção que ganhou o festival. Depois, houve uma outra, com a transmissão da canção

“Grândola Vila Morena” de José Afonso, que eu não sei se conheces. É uma canção

muito bonita. A partir daí, e durante quase todo o dia 25 foram sendo ocupados vários

lugares chave: RTP, Emissora Nacional, Rádio Clube, Aeroporto de Lisboa, Quartel

General de Lisboa e Porto, Banco de Portugal, etc. O Marcelo Caetano que se tinha

refugiado no quartel do Carmo, rendeu-se ás 19,30. Agora é uma Junta Militar, presidida

pelo Spínola quem governa. Eu soube na manhã do dia 25 quando cheguei ao serviço,

mas na altura ainda não se sabia que forças estavam por detrás do golpe. Chegou a

admitir-se que fossem os ultras. Mas quando se teve a certeza que não, foi uma explosão

de alegria tão grande que é indescritível. Que bonitos têm sido estes dias! Os presos

políticos foram libertados. Vive-se um ambiente de euforia. As pessoas ostentam cravos

vermelhos, inclusivamente os soldados, nos canos das espingardas. Por isso a revolução

é conhecida pela Revolução dos Cravos. Os exilados políticos regressaram. Ontem foi o

1º de Maio. Uma multidão saiu às ruas. Em Lisboa parece que nas manifestações do dia

do trabalhador, estiveram 500000 pessoas. Eu tenho-me misturado com todo este povo

eufórico, nesta alegria contagiante (claro que no meio desta gente há os democratas de

última hora que ainda ontem estavam com o regime mas que agora dizem tê-lo sempre

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Estórias com sabor a Nordeste Regina Gouveia

97

repudiado...). Por todo o lado se ouve o slogan “O povo unido jamais será vencido” e

“Grândola Vila Morena”. Pode ser que já cá estejas mas se não estiveres, por certo tens

visto tudo pela Televisão. A guerra que tanto odiávamos, vai acabar. Uma das palavras

de ordem é “ Nem mais um soldado para o Ultramar”. Que pena não poder viver isto

tudo contigo.

9ª carta

8/6/1974

David :

Estamos a saber de coisas que embora imaginássemos, talvez não imaginássemos

tão horríveis. Tanto sofrimento, tantas pessoas que sacrificaram as suas vidas a lutar

contra um regime opressor e despótico. Mas que contributos dei para alterar a situação?

Nenhuns. Como estava em baixo, resolvi ir até à Boa Nova e levei a 25ª Hora. Lembras-

te da ingenuidade comovente de Iohann Moritz? Li um pouco mas senti-me ainda pior

porque não fiz nada para merecer o 25 de Abril. Limitava-me a indignar-me. Agora,

enquanto escrevo, ouço José Afonso. Que bom poder ouvi-lo em liberdade....

10ª carta

15/10/74

David

O Governo reconheceu a Guiné- Bissau como país independente. Para o caso das outras

colónias tentam estabelecer-se acordos entre os vários movimentos de libertação. Tanta

vida perdida para nada! Por que razão não se enveredou desde o início pela via do

diálogo? O que pode levar os homens a um tal estado de cegueira? Tudo isto me deixa

triste. Talvez por isso, ontem à noite resolvi olhar o céu (tu sabes que eu gosto muito de

olhar o céu). Talvez procurasse o asteróide do principezinho. Mas este céu da cidade não

é céu. Guardo a memória do céu da aldeia negro como breu onde as estrelas brilham

como não brilham aqui. Aqui parece tudo desbotado; o céu e as estrelas. Até Marte, que

eu lá distingo pelo seu tom mais avermelhado, aqui parece-me igual às estrelas.

11ª carta

6/10/75

David

Ouço Chico Buarque e lembro-me de ti. Uma das canções do disco chama-se “Tanto

mar”. É uma canção que ele dedica à Revolução dos Cravos. Conheces?

Sei que estás em festa, pá

Fico contente

Enquanto estou ausente

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Estórias com sabor a Nordeste Regina Gouveia

98

Guarda um cravo para mim

Eu continuo a guardar um cravo para ti, enquanto estás ausente. Sim, porque espero

que agora regresses. Ou será que já regressaste? Também guardo jornais, revistas, tudo

o que se relaciona com o acontecimento. Será bom lê-los novamente, contigo. Onde

andas tu David?

12ª carta

25/12/76

David:

Hoje é dia de Natal. Lembro-me dos Natais em criança. Lembro-me dos cheiros,

do frio, do fumo da lareira e acima de tudo dos afectos. Leio o poema “Dia de Natal” do

poeta António Gedeão de que não resisto a dizer-te excertos:

Hoje é dia de ser bom.

É dia de passar a mão pelo rosto das crianças,

de falar e de ouvir com mavioso tom, de abraçar toda a gente e de oferecer

lembranças.

.......

Comove tanta fraternidade universal.

É só abrir o rádio e logo um coro de anjos,

como se de anjos fosse, numa toada doce, de violas e banjos,

entoa gravemente um hino ao Criador.

E mal se extinguem os clamores plangentes, a voz do locutor

anuncia o melhor dos detergentes.

..............

Acho que a revolução não operou algumas mudanças que eram essenciais e em

contrapartida operou outras que me desgostam. Uma delas é um consumismo

desenfreado. Talvez porque o poema de Gedeão põe o dedo nesta ferida, eu goste tanto

dele.

13ª carta

7/9/ 79

David:

Que é feito de ti David? Por certo já regressaste há muito mas não disseste nada. Não

consigo entender. Hoje, particularmente, precisava de estar contigo. Aconteceu uma

coisa muito triste: a morte da minha madrinha. Recordei tudo: os afectos, os ralhos

(que apesar de ralhos eram também carregados de afecto), o que ela me foi dando pela

Páscoa, ao longo dos tempos. Dava-me sempre uma lembrança da minha avó. Nesta

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Estórias com sabor a Nordeste Regina Gouveia

99

última Páscoa, deu-me o cordão de ouro, que era a peça da avó que ela mais estimava.

Parece que adivinhava que o fim estava próximo. Tinha adoecido em 1975, pouco depois

da revolução dos cravos. Estes também já murcharam. Tantas esperanças num mundo

melhor, mas mudou tudo tão pouco... Chico Buarque tem agora uma nova letra para o

“Tanto mar”:

Já murcharam tua festa, pá

mas, certamente,

esqueceram uma semente

n´algum canto de jardim...

14ªCarta

6/9/82

David

Tenho comigo o meu afilhado, David II. É assim que eu lhe chamo para o distinguir de ti-

David I. Veio passar 15 dias ao Porto antes de começarem as aulas. Comecei por levá- lo

à Serra do Pilar, de onde avistou o Porto. Achou- o muito grande. Depois levei-o à

Torre dos Clérigos, que ele achou muito alta, á Avenida dos Aliados que achou muito

bonita, à Ribeira que achou que não tinha ar de grande cidade, à Sé, que achou muito

escura, ao centro comercial Brasília que achou divertido, essencialmente por causa das

escadas rolantes que o deixaram extasiado. Não sei quantas vezes as desceu e subiu.

Mas o que lhe causou mesmo maior sensação foi o mar. Levei-o à Boa Nova. Ficou com

os olhos, muito abertos, e calado durante bastante tempo. Depois disse:

� Nunca pensei que fosse tão bonito, madrinha.

Depois foi para os rochedos e não queria mais sair dali. Quis saber o nome de todos

aqueles seres que ali via. Quis meter alguns numa garrafa com água e quis levá-los para

casa para depois mostrar aos pais. Expliquei-lhe que não aguentariam até lá, mas rendi-

me quando vi duas lágrimas aflorar ao canto dos seus olhos que entre o azul e o verde

se confundem com o mar. Comprometi-me a arranjar um aquário no dia seguinte. Depois

iríamos novamente ao mar buscar as anémonas, as estrelas, os ouriços, os peixes.

Agora tenho em casa um aquário de água salgada, lindíssimo, com anémonas azuis,

brancas, verdes, cor de rosa, com peixinhos e camarões cinzentos, com estrelas rosadas

que se deslocam encostadas ao vidro, com mexilhões que são comidos pelas estrelas,

com ouriços acastanhados, com paguros que mudam de concha, com caranguejos.

Tenho a certeza que tu irias gostar do aquário tanto como David II. Bastar-me-ia isso

para o ter entretido todo o tempo. Fica com o narizito esmagado contra o vidro, os olhos

muito abertos, ás vezes parecendo suster a respiração, como que receando perder

alguma parte de todo aquele espectáculo de vida. É uma criança extraordinariamente

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Estórias com sabor a Nordeste Regina Gouveia

100

sensível. Há dias eu ouvia Brahms, quando dei por ele sentado na sala a ouvir também.

Depois disse-me:

� Essa música é muito bonita. Eu nunca tinha ouvido nenhuma parecida.

É também uma criança muito intuitiva. Há dias perguntou-me:

� Esse David I é o teu namorado?

Respondi-lhe que era apenas um grande amigo que eu já não via há muito tempo. Aí, ele

comentou:

� Mas eu acho que gostavas que ele fosse teu namorado. Quando falas dele ficas

diferente. Umas vezes ficas contente mas outras vezes ficas triste.

Afaguei-o na cabeça e falei-lhe de Fernando Pessoa e dos versos do seu poema

Liberdade:

Grande é a poesia, a bondade e as danças...

Mas o melhor do mundo são as crianças,

Flores, música, o luar, e o sol, que peca

Só quando, em vez de criar, seca.

E acabámos a falar de livros. De repente senti-me transportada no tempo quando, há

mais de 25 anos, conversava sobre livros com David I, então da idade que hoje tem

David II.

Reli a carta e perguntei a mim mesma porque te escrevo, não te escrevendo. Só

encontrei uma explicação: escrevo para ver se escrevendo esgoto este sentimento.

15ª carta

10/12/83

David :

Hoje faço anos e talvez por isso me tenha lembrado mais de ti. Já há muito que não

escrevo. Começo a acreditar que já nem te lembras que existo. Por que escrevo então?

Porque me custa muito a aceitar que isso seja verdade. Tento enganar-me a mim

própria e pensar que um dia vais aparecer e explicar esta tão longa ausência. Soube há

tempos que tinhas regressado, mas ninguém me soube dizer onde estás. Tenho andado

a ler um livro de que ias gostar com certeza. Possivelmente já o leste. Chama-se

Levantado do Chão e o nome do autor é José Saramago. Como gostava de conversar

contigo sobre este livro. Mas já não tenho esperanças.

Li a primeira a carta, num dia chuvoso e frio de Inverno. Após a leitura senti-me em

estado de choque. Teria eu lido aquela carta? Seriam as alucinações que voltavam? Sara

ter-me-ia amado? Teria eu amado Sara? Não passaria tudo de um pesadelo que iria

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Estórias com sabor a Nordeste Regina Gouveia

101

terminar logo que eu acordasse ? Fui até ao mar e sentei-me na areia molhada. Não sei

quanto tempo ali estive, com a chuva caindo em todo o meu corpo, num estado de

prostração terrível. Foi um pescador que me tirou daquele estado de torpor.

� Então amigo, o que lhe passa pela cabeça?

Mas naquele momento não me passava absolutamente nada. O pescador levou-me até

sua casa e foi ao calor da sua lareira que eu me sequei. Creio que ele falou todo o tempo,

mas não me lembro de uma só palavra que ele tenha dito. Era já noite cerrada quando

me deixou em casa. Lembro-me apenas das palavras que me disse à despedida:

� Coragem, homem.

Também não me lembro do que se passou nos dias que se seguiram, mas sei que a dada

altura retomei a leitura das cartas. Cada carta que lia era como se uma farpa pontiaguda

penetrasse todo o meu ser. No entanto não resisti a lê-las. Era muito cruel saber que

também Sara me amara, mas era ao mesmo tempo maravilhoso. Quando li a última

carta atirei com o diário para um canto; decidi que não leria mais nada. Nesse momento

odiei- o e odiei Sara e tudo que ela representava para mim.

6

Contrariando a decisão que tomara uns dias antes, resolvi acabar de ler o diário,

mesmo sabendo que isso me iria fazer sofrer mais. Não foi por masoquismo, mas

porque o ódio que então me cegara, dava novamente lugar ao amor. Ler o diário iria

trazer-me Sara um pouco de volta.

6/5/1985

Meu caro diário:

Já há mais de um ano que tens estado esquecido aí para um canto. Para te ser franca,

não pensava voltar a usar-te. Mas hoje aconteceu-me uma coisa fantástica. Passeava na

R. de S.ta Catarina quando vi um homem que me pareceu ser o David. E era. É certo

que eu já não via o David desde 1968, já lá vão quase 20 anos, mas as feições e a

expressão mantinham-se. Ele não me reconheceu apesar das sardas e do cabelo ruivo.

Fomos até ao Majestic e ali nos perdemos a conversar, tentando partir do ponto onde

tínhamos ficado. Eu sentia-me um pouco constrangida porque não quero de modo

algum que ele perceba o que eu sinto por ele. Até por que ele é casado. Falou-me da

Ana, a mulher que o ajudou muito a superar todas as marcas que a guerra deixou. Os

pais dele já morreram e ele vive no Alentejo. A pintura continua a ser a sua paixão mas

não lhe permite sobreviver Por isso dá aulas. Falou-me com paixão do seu trabalho,

quer como professor, quer como pintor. Foi também com paixão que me falou do

Alentejo. De Ana falou com muito respeito, mas não me pareceu que falasse com paixão.

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102

12/ 6/87

O David, que de vez em quando telefona ou aparece, mas sempre de fugida,

escreveu-me ontem uma carta muito breve, bem diferente daquelas que escrevíamos em

tempos. Tão breve que achei que não valia a pena guardá-la como fiz com as outras. Ele

e Ana separaram-se. Não explica porquê mas eu sempre achara que ali não havia

paixão, pelo menos da parte dele. Mas isso não vai significar que eu lhe fale dos meus

sentimentos. Pelo menos para já. Por um lado, poderia interpretá-lo como comiseração,

ou ainda pior, como oportunismo. Será importante que ele volte a sentir muito a falta da

minha amizade. O resto virá depois. Se me precipito, arrisco-me a perdê-lo como amigo.

Isto, admitindo que alguma vez vou ter coragem de lhe contar o que sinto.

4/1/88

O meu pai está muito doente. Foi-lhe diagnosticado um linfoma. Já há muito que

andava um pouco alquebrado, ele que foi sempre um homem muito dinâmico. Dizem que

eu me pareço com ele, essencialmente porque sou muito emotiva. Logo a seguir ao 25

de Abril tivemos discussões terríveis, porque ambos nos deixávamos arrastar pelas

emoções. A mãe diz que nós temos o coração ao pé da boca. Mas a mãe é uma pessoa

muito serena e ponderada e mede cada palavra antes de a dizer. Por isso, é incapaz de

magoar alguém. O pai, por vezes não mede o que diz, mas é um homem muito

generoso. Não suporto a ideia de perdê-lo.

6/3/91

Hoje estou desolada. O meu pai faleceu. A minha mãe está inconsolável. Foram

tempos horríveis para todos. Tanta quimioterapia, tantas idas a Villejuif, tanto

sofrimento. Todo o tempo o meu pai insistiu que não valia a pena tanto sacrifício, que o

deixássemos morrer. No entanto, já quase no fim, quando nos mandaram de Villejuif

sem qualquer esperança, foi ele que sugeriu: E se tentassem a radioterapia? Pobre pai!

O David ajudou-me muito. Veio visitar-nos quase semanalmente. Emprestou-me

imensos livros e discos que me ajudaram a pensar em outra coisa, pelo menos por

instantes. Todo este período teve apenas uma vantagem. Não pensava nos meus

sentimentos em relação ao David, pelo que não me angustiava por causa disso.

10/11/ 92

Caro diário:

Da última vez que desabafei contigo, jurei para mim mesma que só voltaria a fazê-lo

quando tivesse ganho coragem para dizer a David o quanto o amo. Só que o tempo foi

passando e a coragem nunca chegou. Agora é tarde. Não sei que partida a vida me

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Estórias com sabor a Nordeste Regina Gouveia

103

quer pregar desta vez mas estou muito doente. Hoje é a minha despedida. Obrigada

pela tua paciência de me aturares ao longo de todos estes anos. Não deve ser fácil ser

diário. Vou fazer-te a última confidência: Vou pregar uma partida ao David. Vou oferecer-

te a ele. Assim, será através de ti que ele ficará a saber do meu amor. Como vês, caro

diário, fui muito injusta para contigo: Achei que não me ias servir para nada e afinal irás

fazer -me um grande favor- serás tu a dizer ao David aquilo que eu nunca tive coragem

de lhe dizer. Obrigada, amigo, mais uma vez.

7

Acabei de ler o diário. Já há muito, desde que li as cartas que Sara não me enviou, que

me sinto estranho como pertencendo a outra galáxia. Por que razão tudo isto

aconteceu? Por causa de uma estúpida jura de criança? Sara, ao menos, não soube o

quanto eu a amei. A não ser que tenha entendido o que lhe disse na véspera da sua

morte. Segundo o médico já não estaria consciente. Sussurrei-lhe ao ouvido o quanto a

amava. Estive a seu lado até ao último momento, como que à espera de um milagre, eu

que já há muito não acredito neles. Lembrei-me então da “Oração a Nossa Senhora da

Boa Morte”, de Manuel Bandeira:

Fiz versos a Teresinha...

versos tão tristes nunca se viu!

Pedi-lhe coisas. O que eu pedia

era tão pouco! Não era glória...

Nem era amores....Nem foi dinheiro...

Pedia apenas mais alegria:

Santa Teresa nunca me ouviu.

Mesmo assim rezei, eu que me tinha por agnóstico.

Na capela onde esteve em câmara ardente, apareceu muita gente, incluindo Júlia e o

filho David. Júlia abraçou-se a mim e chorou sentidamente. Também David não

conseguia conter as lágrimas.

� Foi uma segunda mãe para mim, disse-me.

Quando da morte de Sara, e posteriormente com as revelações das suas cartas entrei

numa fase de grande perturbação, senão pior, pelo menos igual à que se seguiu à minha

participação na morte de um homem. Mas agora tentei esquecer de outro modo. Pintava

exaustivamente, muitas vezes durante dias seguidos, dormitando de vez em quando e

mastigando qualquer coisa de forma quase inconsciente. De início descurei as aulas.

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104

Faltava imenso. Depois recomecei lentamente a minha tarefa de professor, de que gosto

muito. A dor foi-se tornando mais doce, mas não menos aguda. Nunca mais voltei à Boa

Nova. Mas agora, que acabei de ler o seu diário, uma força me impele para lá ir. Lembro-

me que as suas flores preferidas eram tulipas brancas Vou providenciar um ramo e vou

deitá - lo ao mar, lá onde foram lançadas as suas cinzas. A florista disse-me que nesta

época vai ser muito difícil arranjar tulipas brancas, e ainda para mais cem, mas eu

insisto na cor e no número. Peço-lhe que não olhe a custos e mas arranje. De tal modo

eu lhe faço o pedido que ela atreve-se a dizer:

� Devem ser para uma mulher muito amada.

Mas eu não consigo comentar. Faço um esforço enorme para que as lágrimas não

comecem a brotar dos meus olhos. Deixo-lhe o meu número de telefone e saio.

Passados cinco dias da minha ida á florista, ela telefonou. Conseguiu as tulipas. Fui levá-

las a Sara. Porquê cem? Lembro-me que em tempos conversámos sobre um livro de que

ambos tínhamos gostado bastante- “Cem anos de solidão”. Falámos dos vários Buendia,

de Melquíades, bem como de muitas outras personagens do livro. Mas a dada altura a

conversa derivou para o número cem. Disse-me Sara:

� Sabes que quando eu era muito pequena o número 100 era uma espécie de

número mágico para mim? Creio que o achava quase inatingível. Lembro-me de

atribuir o número cem à altura do monte mais alto que via, e do cimo do qual eu

imaginava que conseguiria tocar o céu, à luz da estrela mais brilhante, à

felicidade que sentia quando os meus pais me estreitavam contra o seu peito.

Senti alguma desilusão quando, mais tarde, pensei que era um número pequeno;

voltei a reabilitá-lo quando percebi que só por si o número poderia dizer pouco

porque o ser grande ou pequeno dependeria da unidade que o acompanhasse.

Cem nanómetros pode ser o comprimento de uma pequena bactéria, enquanto

que 100 anos luz é a distância a uma estrela que está 6,5 milhões de vezes mais

longe que o Sol.

Os enigmas do Universo eram muitas vezes temas de conversa. Extasiavam Sara.

Quantas vezes fitando o céu me dizia:

� Já pensaste que aquela estrela que vês, pode já não existir há muitos milhões de

anos? A luz que nos enviou está agora a chegar e isso é tanto mais fantástico

quanto sabemos que a luz se propaga a uma velocidade enorme, que se supõe

inultrapassável. Daí que o meu maior fascínio não seja nem pelo número cem

nem pela velocidade da luz, mas pelo infinito.

Eu gostava de falar de todas estas coisas com Sara, e especialmente daquelas que

constituíam temas comuns na nossa formação. Era o caso da cor. Enquanto que eu como

artista, falava de cores quentes e frias, Sara falava–me de absorções, refracções e

reflexões da luz, da interacção da luz com a matéria, da estrutura das moléculas. Uma

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Estórias com sabor a Nordeste Regina Gouveia

105

vez mantivemos uma discussão acalorada a propósito das cores primárias. Deveríamos

considerar como primárias a amarela, a vermelha e a azul, dado que combinando

adequadamente pigmentos dessas cores podíamos obter as outras? Ou devíamos

considerar primárias a azul, a vermelha e a verde, dado que uma combinação adequada

de feixes de luz dessas cores, permite obter todo o espectro visível? E acabámos a

discussão, recordando o “Raio Verde” de Júlio Verne. Era assim, conversando, que nos

perdíamos tantas vezes no tempo.

Ontem, também conversei com Sara enquanto lançava ao mar as tulipas. Mentalmente

dizia-lhe:

� Sara, não posso trazer-te um número infinito de tulipas brancas; acredita que

trazia se isso fosse possível, mas para infinito tens o meu amor. Trago-te cem, o

teu primeiro número mágico e espero que lá onde estiveres, na estrela mais

longínqua, a não sei quantos anos luz de distância, este meu gesto chegue a uma

velocidade maior que a da luz .

Fiquei a olhar a água na esperança de ver surgir Sara. Mas não. Vou voltar ali muitas

vezes. Quem sabe um dia, ela não aguenta as saudades e aparece?

8

Os fantasmas que tanto me perseguiram quando fugi da Guiné, voltaram de novo. Tal

como acontecia nessa altura, a minha mente é povoada por Sara: Sara criança, Sara

adolescente, Sara mulher. Sonho inúmeras vezes com ela. Num desses sonhos

estreitava-a nos meus braços, quando de repente vi um guerrilheiro em cima de uma

árvore; no sonho atirei-me para cima dela para a proteger com o meu corpo. Acordei

aflito. Doutra vez, quando passeávamos de mãos dadas junto ao mar, apareceu um

arauto lendo a nossa jura de fraternidade. Mas, apesar de tudo isto, agora não tento tirar

Sara da minha cabeça. Pelo contrário, tento recordá-la nos mais ínfimos pormenores.

Tento saber tudo sobre ela. Já me desloquei à sua aldeia nas várias épocas do ano – em

Março, para ver as amendoeiras em flor, no Inverno, em Junho, em Agosto, no Outono.

Já sei distinguir Marte das estrelas, naquele céu escuro. Já sei o que são arçãs, giestas,

estevas, tal como já conheço as flores do marmeleiro, da amendoeira, do pessegueiro.

Em criança tinha estado por duas vezes na aldeia de Sara. Uma das vezes na Primavera,

quando aprendi a fazer gaitas com caules de cevada, outra no Verão em que fiquei a

conhecer os pepinos de S. Gregório. Mas foram estas as principais memórias que eu

retive dessa altura. Agora, vi tudo com outros olhos; os meus, agora já cansados,

ajudados pelos de Sara que me tinha descrito tudo em pormenor. Não sei quantas vezes

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Estórias com sabor a Nordeste Regina Gouveia

106

já folheei o álbum com as suas fotos. De cada foto ela parece surgir tal como a conheci

na época. Parece-me ouvir as suas gargalhadas cristalinas de menina, a sua voz

apaixonada de adolescente, a sua voz apressada e ao mesmo tempo serena de mulher.

Parece-me ver o seu rosto amuado depois de perder às damas, afogueado depois de uma

partida de badmington, sonhador caminhando pela praia. Gosto de recordá-la, mas

recuso-me a ouvir a sua voz cansada de doente, tal como me recuso a recordar a sua

palidez no leito da morte.

Já contactei com pessoas que se lembram dela em criança, antes de eu a conhecer, e

tentei saber como era. Era muito viva, mas ao mesmo tempo muito sensível- é a imagem

que me é transmitida. E ao ouvir isto parece-me que a sinto ao pé de mim, quando em

criança fazia sapatos de folha de figueira sob cuja sombra se interrogava sobre as vidas

das pessoas que antes dela ali se tinham protegido do Sol.

Também já visitei aqueles lugares que mais a fascinaram. Quando passeava no mercado

de Assuão, parecia-me que Sara me acompanhava dizendo: repara naquele sudanês ali,

naquela criança acolá. Quando passeei de felouka no Nilo, era ainda a voz dela que eu

ouvia mostrando-me o deserto, os palmares, ou as colinas ali ao lado. O mesmo me

aconteceu em Marrakech ou no Trafaoute. Em Parati, consegui encontrar o velho

marinheiro Eli e foi com ele que fiz a minha volta pelo mar, no seu barquito- Avenida

Paulista. Falei-lhe de Sara. Lembrava-se dela e dos pais que a acompanhavam. Falou-me

dos seus cabelos ruivos, da sua vivacidade contagiante e da emoção que teve ao nadar

longe da praia. Contou-me que ao regressar ao barco dizia, emocionada: “Eu nunca tinha

nadado num sítio sem pé. Como foi possível? Isto é lugar de encantamento.”

Em todos estes lugares tirei inúmeras fotografias que enchem as paredes de minha casa.

Revejo- as várias vezes e parece-me ouvir Sara tecendo comentários naquela sua fala

apressada. Que depressa falava Sara! Depressa mas de uma forma suave e ao mesmo

tempo frágil. A lembrança de Sara dói muito, mas é agora uma dor ao mesmo tempo

aguda e serena. A pintura tem sido a minha tábua de salvação. Nunca pintei tanto em

toda a minha vida, como desde a sua morte. E a pintura traz-me serenidade. Uns colegas

convenceram-me a fazer uma exposição. Teve bastante sucesso, em particular a tela

“Evocação do amor” . Mas essa não a vendo. É uma tela de fundo essencialmente azul

em vários tons- o azul/verde do mar interpenetrando o azul/cinza do céu. Na parte

central há uma silhueta difusa em que sobressai, também de forma difusa, uma vasta

cabeleira acobreada. Do lado esquerdo, sensivelmente a meio, uma mancha cinza- a ilha

do Pessegueiro. Não diz a lenda que foi em Porto Covo que um rei por amor se matou

novo? Também a leitura e a música me confortam. Estou a reler todos os livros que

lemos e sobre os quais conversámos. Às vezes tenho a nítida sensação que a ouço,

comentando-os, tal como tenho a sensação que ela está por perto, quando ouço música,

particularmente Brhams.

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Estórias com sabor a Nordeste Regina Gouveia

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De vez em quando encontro-me com Júlia e David II. Peço-lhe que me falem dela,

naquele tempo em que eu estive ausente. Quero que toda a sua vida faça parte da

minha. David II disse-me há dias.

� Nunca vi amor tão bonito como o teu por Sara e o dela por ti. Era demasiado

bonito para poder ser vivido realmente.

Apercebo-me que todos os que nos eram próximos percepcionaram o nosso sentimento

mútuo, todos menos eu e Sara que nos obstinámos em não querer ver.

9

Ontem fez cinco anos que Sara morreu. Desloquei-me a Leça com um ramo de

cem tulipas brancas que lancei ao mar, na Boa- Nova. Um pescador aproximou-se de

mim e disse-me:

� Curioso, hoje já é a segunda vez que vejo um homem chegar aqui e lançar flores

ao mar. O outro era bastante mais novo que o senhor e vinha acompanhado de

uma senhora mais velha. Devia ter os seus vinte e tal anos.

Sorrio. Só podem ter sido David e Júlia. David vive no Porto, onde exerce Medicina. Sei

o quanto sentiu a perda da madrinha. Só pode ter sido ele. A mãe acompanhou-o, por

certo.

Olho todos os dias para o diário de Sara. Por vezes releio-o. Não sei o que fazer com ele.

Pensei em queimá-lo, mas acho que nunca vou ter coragem. Mas se o não queimar, o

que lhe acontecerá um dia, depois da minha morte? Talvez o deixe como legado ao meu

homónimo- afilhado de Sara. Não sei ainda. Lá está, em cima da minha secretária, a

aguardar a minha decisão.

Epílogo

Foi ontem o lançamento do livro. Não gosto muito da palavra lançamento. Gosto mais de

apresentação. Lançamento lembra-me o disco, o dardo, o martelo ou o peso. Um livro

não se atira, apresenta-se, expõe-se. E a partir desse momento já não é ele, mas a

imagem que dele fazem os outros. A leitura de qualquer um interfere com o livro, daí que

cada leitura do livro que até agora era meu, irá ser uma nova leitura. Por isso senti-me

só e indefeso, apesar dos abraços calorosos dos amigos e dos sorrisos circunstanciais de

conhecidos e desconhecidos. Apercebi-me várias vezes da presença fugidia de Rute, tão

fugidia que não consegui apreender qualquer mensagem no seu olhar. Teria ela algo para

me dizer? Não consegui falar-lhe. Havia sempre um livro a autografar, a chegada ou a

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Estórias com sabor a Nordeste Regina Gouveia

108

despedida de um amigo. Quando acabou a cerimónia (onde fui eu buscar esta palavra

tão pomposa para um acontecimento tão falho de importância?) vim para casa e deixei-

me cair em cima do sofá. Exausto, fechei os olhos. Senti Rute que chegava, mas não

consegui dizer-lhe nada, nem sequer abrir os olhos. Ouço a sua voz suave e frágil, mas

curiosamente, desta vez Rute fala devagar. Talvez queira enfatizar bem o que diz:

� Gostei do que fizeste com o meu diário. Eu não teria encontrado melhor solução

para ele. Escreveste o nosso livro (reparo que destaca a palavra nosso, dizendo-a

ainda mais pausadamente, marcando bem as sílabas). Gostei inclusivamente do

nome que lhe deste, bem como do nome que encontraste para nós- as principais

personagens. É certo que num ponto ou noutro eu talvez tivesse contado a

história de um outro modo. Mas gostei. Foi o fruto que saiu de nós. Que melhor

epílogo para o nosso amor?

Abro os olhos, e procuro Rute, mas já se foi. Que saudades eu tenho de ti, Rute!

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Estórias com sabor a Nordeste Regina Gouveia

109

Flor de laranjeira

…….

Não há Inverno rigoroso que te impeça

de rematar esse trabalho que começa

na primeira folha que nos braços te desponta

…..

Ruy Belo, “ Árvore rumorosa”

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Estórias com sabor a Nordeste Regina Gouveia

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5/1/85

� Agora sinto que posso partir tranquilo. Parto em paz.

Francisco fechou o seu diário e caminhou lentamente em direcção à janela. Olhou,

embevecido, para o seu pomar de laranjeiras.

Quando começou ele a escrever o diário? Não sabia ao certo o dia, nem o ano; sabia

apenas a razão que o levara, naquele dia, era ele ainda muito criança, a escrever:

� Eu vi-os mas ninguém acreditou. Foi lá, no sítio onde se afogaram. Olhei para a

água e vi a minha imagem ; por detrás dela vi as deles; ela, bonita como a

senhora professora, ele parecido com o avô Francisco, mas muito mais bonito .

Na altura não sabia o que era um diário, mas naquele dia, a mágoa e a raiva eram tantas

que tinha que as descarregar de qualquer forma. Ao ver o caderno e o lápis ali por perto

escreveu com tanto vigor que quase rasgou o papel.

Por que razão ninguém acreditou? Nem o avô Francisco, de quem ele herdou o nome.

Mas não era o avô Francisco que lhe dizia que eles estavam no Céu. Ora se estavam no

Céu por que razão não poderiam ser vistos na água como ele se via a si próprio, tal como

se estivesse em frente a um espelho? Menos nítido, é certo, mas via-se bem...Ora se

eles espreitassem lá numa nesguinha do céu, por cima do rio, deveriam poder ver-se

menos nítidos ainda, pois estavam muito longe. Mas foi precisamente isso o que ele viu.

É certo que ele tinha dúvidas se estariam no Céu ou lá no fundo do Rio. Mas se fosse

esse o caso, poderiam ter nadado um pouco para mais perto da superfície de modo a

serem vistos. Estariam eles no fundo do rio? Era por causa dessa incerteza que ele tanto

queria aprender a mergulhar. Se conseguisse ir lá bem ao fundo, talvez conseguisse

encontrá-los.

Doutra vez, lá no mesmo sítio, dissera o responso a Stº António, como tantas vezes vira

fazer à avó quando queria encontrar algo que supunha perdido. Afinal de contas, nunca

ninguém encontrou os corpos. Poderia ser que o rio os tivesse levado para longe e lá

andassem perdidos...

Se milagres desejais recorrei a Stº António, vereis fugir o demónio e as tentações

infernais. Foge o erro, a peste, a morte, o fraco torna-se forte, torna-se o enfermo

são, recupera-se o perdido, rompe-se a dura prisão e no auge do furacão cede o

mar embravecido. Todos os males humanos se moderam, se retiram, digam-no

aqueles que o viram e digam-no os paduanos.

Mas dessa vez não viu a imagem deles no Rio. Possivelmente não rezou bem o responso

ou talvez fosse por ter falado nos paduanos. Lembrava-se que uma vez o Sr. Padre se

tinha referido a isso na homilia. Parece que os tais paduanos diziam que Stº António era

de Pádua e isso era falso; tinha lá vivido, é certo, mas Stº António era o nobre Fernando

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Estórias com sabor a Nordeste Regina Gouveia

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de Bulhões, natural de Lisboa. Naquela altura Francisco não fazia a mínima ideia onde

ficava Pádua e não via por que razão Stº António haveria de dar tanta importância a esse

pormenor. Além disso, era assim que a avó rezava o responso e resultava. Ele já muitas

vezes tinha sido testemunha. Por exemplo daquela vez em que a avó perdera o cordão

de ouro. Tanta aflição passada... Já pensava, inclusivamente, que alguém lho roubara.

Mas quem? Foi quando lhe pediu para a acompanhar na reza do responso. E não é que o

cordão apareceu, caído atrás do baú, onde a avó já o tinha procurado?

Francisco emergiu destas recordações tão longínquas e fixou de novo o olhar nas suas

laranjeiras. Se o avô Francisco as pudesse ver... O avô Francisco e a avó Laura... A avó

com o lenço puxado sobre o rosto, rosto marcado por sulcos muito fundos, parecendo

rios a correr para o mar. E os leitos dos rios não se foram cavando devido à erosão, pela

água a correr? Ora pelos sulcos do rosto da avó Laura também correu muita, muita água,

pela morte do seu filho, filho único, engolido por outras águas, as daquele rio que é ao

mesmo tempo pai e padrasto. E os sulcos no rosto do avô Francisco? Esses não deviam

ter sido feitos por lágrimas porque o avô Francisco não chorava. Um homem nunca

chora, dizia ele. Mas Francisco lembra-se perfeitamente de uma vez, lá junto ao Rio, no

sítio onde eles desaparecerem, ter visto duas lágrimas a rolar pelo rosto do avô

Francisco.

� Está a chorar avô?

� Não, meu rapaz, um homem não chora. Acontece que me entrou um argueiro

para o olho.

Era assim o avô Francisco. Manso como um cordeiro, terno como um menino, mas

revestido de uma forte carapaça como um cágado.

O avô Francisco e a avó Laura foram mais que os seus avós, foram também os seus pais.

Sim, porque os verdadeiros, esses não os conheceu. Morreram afogados no rio, num dia

em que se dispunham a atravessá-lo para ir cuidar de terras lá na outra margem. O céu

negro anunciava uma trovoada a montante. De repente o rio engrossou e engoliu tudo, a

eles e à montada em que seguiam. Nunca foram encontrados. Não é que Francisco se

lembre de nada disto. Era criança de berço quando tudo aconteceu. Desde que guarda

memória das coisas, só se lembra de viver com o avô Francisco e a avó Laura. Dos pais,

nem uma foto. Se fosse hoje, havia a fotografia do baptizado, do casamento, e tantas,

tantas outras. Mas naquela altura só a gente rica tinha por hábito tirar fotografias. Por

isso, nem uma. Se ao menos houvesse uma imagem a que se agarrar. Do pai, diziam-lhe

que era parecido com o avô Francisco, mas o avô Francisco já era velho, tinha o rosto

sulcado de rugas e ele não conseguia imaginar o avô Francisco, com a idade que teria o

pai se o rio não o tivesse engolido.

Da mãe diziam-lhe que era muito bonita. Ora bonita, bonita, era a Srª Professora. Será

que a mãe era assim bonita? O avô Francisco dizia que era muito mais bonita, mas

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Francisco tinha dificuldade em imaginar uma mãe mais bonita que a senhora professora,

para ele a mulher mais bonita que conhecia.

A Srª professora... Ainda se ao menos ela os tivesse conhecido. Ela explicava tudo tão

bem, que por certo os descreveria de tal forma que era como se Francisco os pudesse

ver. Mas não. Chegara à aldeia cinco anos depois do acidente.

Uma vez falara-lhe da sua vontade de aprender a mergulhar para ir lá ao fundo ver se

eles lá estavam. Ainda hoje recorda as palavras da senhora professora.

� E se fores e não os encontrares? Deixas de poder sonhar com isso. A vida é um

pouco cheia de sonhos e ilusões. Tu assim podes imaginar os teus pais, muito

bonitos tal como me dizes . Podes imaginá-los lá no fundo do rio, ou em qualquer

outro lado. Mas se fores procurá-los e não os encontrares essa parte do sonho

esfuma-se e desaparece. A vida é tanto mais bela, quanto mais povoada de

sonhos estiver.

Por isso, mesmo depois de aprender a mergulhar, Francisco não tentou ir lá ao fundo

ver se os via, de início, porque temia perder o seu sonho, mais tarde porque talvez

tivesse deixado de sonhar.

Em boa verdade Francisco nunca deixou de sonhar. Tinha sempre um sonho a que se

agarrar.

Porque razão resolvera recordar tudo aquilo? Por um lado era bom recordar mas, por

outro, ficava com aquele nó na garganta. Ao menos tinha as fotografias do avô Francisco

e da avó Laura que podia rever sempre que a sua memória o quisesse trair num ou

noutro ponto.

Foi num dia de feira. Teria ele os seus 12 anos. Tinha ido com os avós à feira vender um

cevado. Viu o fotógrafo com a máquina e tanto pediu aos avós que tirassem o retrato

que eles acabaram por lhe fazer a vontade. Lá estão os dois e ele no meio. Os avós com

o traje domingueiro; a avó com o xaile de merino e as arrecadas nas orelhas; o avô com

o seu capote. E ele ? Com o seu boné de abas sobre as orelhas, por causa das frieiras.

Foi também nessa feira que conheceu Luísa.

Nesse dia escreveu no seu diário:

� Hoje o avô e a avó tiraram o retrato na vila. Quando eu for grande, se eles já

tiverem morrido, mostro o retrato aos meus filhos. Lá na feira, vi uma menina

muito bonita; sei que se chama Luísa porque ouvi os pais chamarem por ela. Se

calhar a minha mãe, quando era pequenina era assim bonita como ela. Quando

for grande hei-de casar com a Luísa..

E assim começou mais um sonho de Francisco.

Depois do dia daquele primeiro encontro, de que ficou o retrato para a história,

Francisco encontrou outras vezes Luísa na feira. Mas foi só alguns anos mais tarde que

lá, junto ao Rio, com a Lua por cúmplice, viveram a sua primeira noite de amor que ele

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jamais esqueceria. Nessa altura, do avô Francisco e da avó Laura só já restavam a foto,

as lembranças e a herança que lhe deixaram- meia dúzia de terras e a casa com a

cortinha.

Como o avô adorava aquela cortinha! Pequenina, mas nela havia de tudo, até o pomar

de laranjeiras de que o avô tanto gostava.

� Nunca te desfaças da casa e da cortinha, pedira o avô pouco antes de morrer .

Mas a vida por vezes é tirana e obriga-nos a trair a nossa vontade.

Depois daquela noite de amor junto ao Rio, Francisco foi falar com o Sr. Padre que

aceitou casá-los. Mas não consentiu que Luísa fosse vestida de noiva, nem tão pouco

com flor de laranjeira. Casou-os bem cedo, num altar lateral da Igreja; não no altar-mor

como casava as raparigas supostas ainda virgens. E essa mágoa, Luísa guardou-a até ao

fim da vida.

Não tiveram viagem de núpcias nem tão pouco sabiam na altura o que isso era, mas

Luísa teve aliança e, naquele tempo, nem todas as mulheres se poderiam orgulhar de ter

uma.

Depois vieram os filhos e as dificuldades. Francisco sabia que ficando na terra só poderia

proporcionar aos filhos uma vida de trabalho e pobreza. Um dia, encheu-se de coragem,

vendeu tudo, incluindo a casa e a cortinha e foi para a cidade para assim poder educar

os filhos. Trabalharam arduamente e conseguiram alcançar o objectivo mas Francisco

não conseguia eliminar do peito aquela dor imensa de não ter satisfeito a última e única

vontade do avô. E as suas palavras ressoavam continuamente na cabeça de Francisco.

� Nunca te desfaças da casa e da cortinha.

Por isso, mesmo após o filho mais novo ter acabado o curso, Francisco e Luísa

continuaram a trabalhar, por vezes para além do limite das próprias forças. Os filhos não

conseguiam entender toda esta labuta, mas Francisco perseguia mais um sonho -

conseguir reaver a casa e a cortinha, fosse por que preço fosse. E agora ali está ele, à

janela da casa, deliciando o olhar no seu pomar de laranjeiras. Os filhos aparecem por

vezes mas é no neto mais novo, que herdou o nome do avô, que Francisco deposita

todas as suas esperanças. Desde bem pequenino, que para ele não existe melhor

prémio que uns dias passados com os avós. Agora só com o avô, porque a avó, partiu

há um ano, vencida por tantos anos de luta e sem que Francisco pudesse ter

concretizado mais um dos seus sonhos- partir com Luísa numa viagem inesquecível que

seria como que uma viagem de núpcias adiada 50 anos...

Que falta eu sinto de ti Luísa, murmura Francisco. A tua morte abalou-me muito. Já

antes as dos meus avós, mas essas já lá vai muito tempo, embora ainda hoje me façam

doer a alma. E houve aquelas que não senti como perdas, porque não se pode perder

aquilo que não nos lembramos de ter tido. Senti-as doutro modo, precisamente pela

falta de algo que nunca soube verdadeiramente o que era. Não que os meus avós não

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Estórias com sabor a Nordeste Regina Gouveia

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me tivessem dado todo o afecto do mundo, mas tive sempre muita pena de não ter

conhecido os meus pais.

Francisco emerge destes pensamentos e olha de novo as laranjeiras carregadas de

frutos. Decide ir até à cortinha. Senta-se no banco de pedra, onde tantas vezes se

sentara ao lado do avô. É Inverno, mas faz Sol; aquele Sol que não aquece o corpo, mas

aquece a alma. Francisco sabe que é Sol traiçoeiro. A Avó bem lhe dizia:

� Acautela-te com o Sol de Inverno que traz o diabo na alma .

Mas Francisco esquece as recomendações da avó e deixa-se enredar nas teias do demo.

Quando dá por si, lá estão eles, a seu lado no banco. O avô, a avó e Luísa, vestida de

noiva. Francisco vê que lhe falta a flor de laranjeira e vai cortar um ramo ali mesmo, no

pomar. Mas o Sr. Padre aparece e diz que assim não os pode casar. Luísa fica muito

triste. E é o Sol, que afinal não é o demo mas Nosso Senhor em pessoa, quem aparece e

diz: Caso-vos eu que tenho mais poder que todos na Terra, e há-de ser no altar-mor. E

Luísa fica muito feliz, com o seu ramo de laranjeira. Então Francisco dá-se conta da

presença da Srª Professora. Curioso, não se lembra de a ter convidado, mas fica muito

satisfeito com a sua presença. E aparece o fotógrafo. Monta a máquina mas Francisco

diz para ele esperar pois eles ainda não chegaram. E pede à avó Laura que reze com ele

o responso a Stº António

Se milagres desejais recorrei a Stº António, vereis fugir o demónio e as tentações

infernais. Foge o erro, a peste, a morte, o fraco torna-se forte, torna-se o enfermo

são, recupera-se o perdido, rompe-se a dura prisão e no auge do furacão cede o

mar embravecido. Todos os males humanos se moderam, se retiram, digam-no

aqueles que o viram e digam-no os …….

Nesse momento o Sr. Padre lembra-lhe que não pode falar nos paduanos, não vá

Santo António não gostar. Sto António não é de Pádua, é de Lisboa. Francisco tem que

acabar o responso mas não tem sentido dizer lisboanos, e por um momento fica aflito.

Se não acaba o responso, StºAntónio não pode fazer o milagre. Mas de repente a

solução surge e o responso termina.

E digam-no os que aqui estamos.

E nesse mesmo instante ouve-se o marulhar das águas no rio, que estava ali mesmo ao

lado e em que ninguém tinha ainda reparado. Então Francisco mergulha e vai lá bem ao

fundo e ao emergir todos vêem que atrás de Francisco vêm dois vultos que se

aproximam a nadar. E Francisco no seu diário escreve simplesmente.

� Tal como eu suspeitava , eles estavam lá no fundo, bastava mergulhar para os

encontrar. E são ainda mais bonitos do que eu imaginava.

E agora todos se apertam um pouco mais no banco, para dar lugar aos que chegam de

novo. E o banco parece que cresce. Dá para todos. E então o fotógrafo já pode tirar a

fotografia. E nesse momento passa um veleiro no rio. Que estranho, Francisco nunca

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115

tinha visto um veleiro no rio, e vai cheio de gente que canta e Francisco fixa os olhos,

que pena a vista já falhar tanto, mas agora não tem dúvidas são eles, os filhos, os netos

os genros, as noras e lá vão eles ao sabor da vida que não pára tal como as águas do rio

não param de correr. Ao longe e apesar da falta de ouvido, ainda consegue distinguir a

voz do neto Francisco.

� Podes ir viajar com a avó Luísa, fazer a viagem de núpcias que sempre desejaste

fazer. Vai tranquilo que eu cá fico a cuidar da casa e da cortinha.

Prefácio ......................................................................................... 2

Debaixo dos sobreiros ................................................................... 5

O diário de Sara........................................................................... 63

Flor de laranjeira ....................................................................... 109