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Poder, código e comunicação * João Pissarra Esteves Universidade Nova de Lisboa Índice 1 O poder como código funcional 2 2 Limites de uma teoria funcional do poder 5 3 A dimensão moral do poder e a força simbólica da comunicação 8 4 Bibliografia 14 A questão comunicacional mereceu, desde sempre, atenção por parte do pensamento sociológico e, nos últimos anos, com o desenvolvimento das sociedades modernas, a sua importância tem vindo progressiva- mente a reforçar-se. É hoje uma preocupa- ção partilhada tanto pela Sociologia empí- rica como pela Sociologia teórica (passe o simplismo das designações), o que significa que a comunicação é encarada, ao mesmo tempo, como objecto de estudo (ou campo de pesquisa) e, noutro plano e com outro re- levo epistemológico, como importante ins- trumento teórico-analítico deste tipo de pen- samento científico. Por este motivo, a Sociologia conquis- tou um lugar próprio no estudo da moderna problemática comunicacional; e um aspecto onde o seu contributo está presente diz res- * in, Revista de Comunicação e Linguagens ,n o .s 17/18, Lisboa, Ed. Cosmos, 1993. peito à comunicação não-verbal - problemá- tica que é comum também a outras discipli- nas do conhecimento centradas na questão comunicacional. Em geral, as discussões em torno da co- municação não-verbal identificam e explo- ram uma contradição entre este tipo de co- municação e a comunicação dita "normal", isto é, a comunicação verbal. Reconhecem a existência de uma tensão, de uma articula- ção problemática ou, eventualmente, confli- tual entre estes dois tipos de comunicação. A propósito de um tema central da So- ciologia - o poder -, alguns autores, cono- tados com a chamada teoria sistémica, pro- puseram uma solução inteiramente original para este problema. Uma solução que passa, do seu ponto de vista, pela constatação de que nas sociedades desenvolvidas dos nossos dias surgem novas formas de comunicação que não podem já ser identificadas com ne- nhuma das formas convencionais, de ordem verbal ou de qualquer outro tipo. Estas novas formas de comunicação, de que o poder seria um exemplo, apresentam-se como uma espé- cie de sínteses formais entre o verbal e o não- verbal, mas com uma lógica constituinte in- teiramente original: obedecem apenas a um critério funcional. O presente artigo tem como objectivo pas- sar em revista os passos essenciais desta pro-

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Poder, código e comunicação∗

João Pissarra EstevesUniversidade Nova de Lisboa

Índice

1 O poder como código funcional 22 Limites de uma teoria funcional do

poder 53 A dimensão moral do poder e a força

simbólica da comunicação 84 Bibliografia 14

A questão comunicacional mereceu, desdesempre, atenção por parte do pensamentosociológico e, nos últimos anos, com odesenvolvimento das sociedades modernas,a sua importância tem vindo progressiva-mente a reforçar-se. É hoje uma preocupa-ção partilhada tanto pela Sociologia empí-rica como pela Sociologia teórica (passe osimplismo das designações), o que significaque a comunicação é encarada, ao mesmotempo, como objecto de estudo (ou campode pesquisa) e, noutro plano e com outro re-levo epistemológico, como importante ins-trumento teórico-analítico deste tipo de pen-samento científico.

Por este motivo, a Sociologia conquis-tou um lugar próprio no estudo da modernaproblemática comunicacional; e um aspectoonde o seu contributo está presente diz res-

∗in, Revista de Comunicação e Linguagens, no.s17/18, Lisboa, Ed. Cosmos, 1993.

peito à comunicação não-verbal - problemá-tica que é comum também a outras discipli-nas do conhecimento centradas na questãocomunicacional.

Em geral, as discussões em torno da co-municação não-verbal identificam e explo-ram uma contradição entre este tipo de co-municação e a comunicação dita "normal",isto é, a comunicação verbal. Reconhecema existência de uma tensão, de uma articula-ção problemática ou, eventualmente, confli-tual entre estes dois tipos de comunicação.

A propósito de um tema central da So-ciologia - o poder -, alguns autores, cono-tados com a chamada teoria sistémica, pro-puseram uma solução inteiramente originalpara este problema. Uma solução que passa,do seu ponto de vista, pela constatação deque nas sociedades desenvolvidas dos nossosdias surgem novas formas de comunicaçãoque não podem já ser identificadas com ne-nhuma das formas convencionais, de ordemverbal ou de qualquer outro tipo. Estas novasformas de comunicação, de que o poder seriaum exemplo, apresentam-se como uma espé-cie de sínteses formais entre o verbal e o não-verbal, mas com uma lógica constituinte in-teiramente original: obedecem apenas a umcritério funcional.

O presente artigo tem como objectivo pas-sar em revista os passos essenciais desta pro-

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posta sociológica e avaliar, em termos críti-cos, os limites da mesma, designadamentea partir da discussão da teoria do poder eda sua articulação com a comunicação, e se-gundo um quadro de referência aceitável dascondições da vida moderna.

1 O poder como código funcional

A Teoria dos Sistemas designou as novasformas de comunicação das sociedades de-senvolvidas, "media simbolicamente genera-lizados". Eles consistem, basicamente, emmecanismos de regulação/normalização dosfluxos comunicacionais presentes neste tipode sociedades - as sociedades complexas, ca-racterizadas por uma progressiva diferencia-ção estrutural e especificação funcional dosprocessos sociais básicos: a adaptação, a re-alização de fins, a integração e a manutençãodo padrão (cultural).

A especificação funcional dá lugar à for-mação de sistemas sociais autónomos, ori-entados, precisamente, a responder de modomais eficaz às necessidades funcionais entre-tanto individualizadas. Este desiderato en-volve um problema de comunicação crucial:para satisfazer as necessidades funcionais,para reforçar a autonomia e a performativi-dade dos sub-sistemas é necessário que daparte destes exista uma particular capacidadede gerir os múltiplos fluxos que os atraves-sam. E isso eles conseguem graças aos "me-dia simbolicamente generalizados- conceitopela primeira vez proposto por Parsons ebastante aperfeiçoado, mais tarde, por Luh-mann, ao distinguir este tipo de media dosmeios de comunicação em geral, em virtudedo elevado grau de probabilidades de êxitoque garantem à realização da comunicação.

Em que condições radicam as vantagens

deste tipo de mecanismos? Essencialmenteno facto de eles sintetizarem, no seu própriointerior, a comunicação e, assim, serviremde dispositivo ordenador das múltiplas "for-mas"que reveste o processo comunicacionalgeral (cf. Izuzquiza, 1990: 221).

O funcionamento dos media simbolica-mente generalizados encontra-se directa-mente comprometido com a lógica dos sis-temas sociais. À multiplicação e aceleraçãodos fluxos da experiência social, eles respon-dem com a imposição de uma determinadaordem, criam uma certa unidade: definem oslimites do sentido e, deste modo, têm umainfluência determinante sobre a dinâmica daevolução social.

Directamente associados aos sistemas so-ciais, estes media distinguem-se pela sua ele-vada performatividade, que tem por base asseguintes características: são media de cir-culação, que na aceleração das trocas encon-tram a condição da sua própria reprodução;tem um carácter simbólico - à semelhançade qualquer outra linguagem, eles não pos-suem valor em si, valem em função daquilopor que podem ser trocados, de acordo comum código institucionalizado próprio; por úl-timo, revestem-se de generalidade, no sen-tido em que a sua validade não se restringea uma relação particular (cf. Parsons, 1977:204-28).

A sua performatividade está também re-lacionada com o elevado grau de confiançaque eles introduzem nas relações sociais -consequência das características acima refe-ridas. No fluxo aparentemente caótico dasexperiências vivênciais, os media simbolica-mente generalizados estabilizam as expec-tativas sociais e possibilitam a formação deidentidades.

O dinheiro foi o primeiro exemplo apre-

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sentado de um medium com estas caracte-rísticas (Parsons e Smelser, 1956: 70-1), epermanece ainda hoje como o exemplo maisindiscutível. O próprio autor do conceitoapresentou outros exemplos, casos do podere da influência; e, mais tarde, outros auto-res acrescentaram a verdade, o amor e dei-xaram subentendidas novas possibilidades -dada a sua estreita articulação com a evolu-ção social e o facto desta promover uma pro-gressiva diferenciação e autonomização desub-sistemas funcionais, o elenco deste tipode media encontra-se permanentemente emaberto.

Para percebermos melhor o funciona-mento destas novas formas de comunicação,tomarei como exemplo concreto de análise,o poder. A discussão que se segue não pre-tende apenas ilustrar um caso particular demedium de troca das sociedades complexas,mas acima de tudo avaliar os limites destateoria do poder, a partir da análise crítica doconceito de comunicação subjacente.

Há que referir, em primeiro lugar, que estaproposta não se assume como uma teoria ge-ral do poder. A sua especificidade diz res-peito a uma forma particular de poder, soci-almente o mais relevante nas sociedades mo-dernas: o poder político.

Dentro destes limites, Parsons começoupor enquadrar o poder nas tipologias das san-ções e das funções sociais (esta, reconhe-cida sob a signa "AGIL"): o poder define-sepela sua orientação para objectivos colecti-vos e recorre a uma sanção de tipo negativo( cf. Parsons, 1963: 237). A partir daqui,chega rapidamente à caracterização do podercomo medium simbolicamente generalizado,de acordo com as seguintes características:simbolicidade - o seu valor é definido pelosobjectivos colectivos que permite atingir, o

que lhe confere, por outro lado, uma obriga-ção com carácter legal (legitimada por orien-tações sociais comuns); capacidade de inter-venção generalizada; permanente circulação;e a segurança que transmite à acção (sempreque necessário, a obrigatoriedade legal podeser secundade pela coerção).

Na Sociologia estrutural-funcional de Par-sons, a teoria dos sistemas era ainda poucomais que uma intuição. Isso traduziu-se naconstatação de diversas lacunas que, entreoutros factores, viriam a dar lugar a uma in-tensa discussão do pensamento deste autorao longo dos últimos anos. No centro daspolémicas encontra-se a sua teoria do po-der: define o poder como medium, mas temda comunicação uma ideia muito simplista- por um lado, entende-a como uma espé-cie de dispositivo tecnológico de transmis-são e, nessa medida, sem articulação muitoexplícita com a acção e a linguagem; por ou-tro lado, considera a comunicação subordi-nada a uma lógica relacional pretensamenteexacta (signo/referente) e a um princípio nor-mativo unidimensional do sentido (no exte-rior do sentido constituído apenas há lugarpara a sanção).Como, mais tarde, vários autores demonstra-ram, desta concepção da comunicação (e dopoder) resulta, inevitavelmente, um fecha-mento drástico da dinâmica social: a opo-sição símbolo-sanção sobrevaloriza o carác-ter consensual das avaliações institucionaise "cria a sensação que a sociedade é consti-tuída apenas com opções bipolares (...) qual-quer desvio do status quo é visto como pres-ságio de uma sentença de morte em vez deuma oportunidade para investigar e adoptaralternativas estruturais"(Cartwright e War-ner, 1976: 654-5). Parsons associa o poderà dinâmica dos sistemas sociais, mas, para-

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doxalmente, procura preservar a ideia de su-bordinação à teoria da acção (e, em últimaanálise, à vontade individual).

Só quando o ponto de referência deixa deser o indivíduo (a acção humana) e passa aser o sistema político, estas incongruênciasda teoria do poder são superadas; mas, en-tão, outros problemas surgem - estes de or-dem mais profunda, pois põem em causa apertinência da aplicação do paradigma sisté-mico à realidade social.

Com este recentramento e clarificado o es-tatuto do poder como mecanismo de selec-ção no quadro de uma teoria sistémica da so-ciedade, o poder não pode já ser consideradoapenas como uma réplica da linguagem, masapresenta-se antes como complemento ou,até, alternativa à própria linguagem. À se-melhança dos outros media funcionais, o po-der garante critérios seguros de escolha que alinguagem, só por si, não permite (Luhmann,1982: 169).

Trata-se de uma capacidade selectiva cujaeficácia está directamente relacionada com asanção que o poder incorpora: confere-lhecapacidade de concretização efectiva e torna-o performativo, na medida em que favoreceuma determinada combinação de alternativas(quanto aos comportamentos dos indivíduos)num contexto social complexo, no qual, aspossibilidades de selecção parecem, à par-tida, ilimitadas.

É a sanção, em última análise, que permitea transição do poder enquanto virtualidadeao poder concreto; e isto mesmo nas socie-dades modernas, onde a sanção assume, porregra, um carácter virtual, isto é, a selecção ea redução da complexidade neste tipo de so-ciedades não ocorre por ruptura das expec-tativas sociais dos participantes, mas antes

pela neutralização a priori ("voluntária") davontade do "Outro".

Em termos comunicacionais, esta dupladimensão do poder - virtual/real - está con-sagrada na distinção entre código e processo:o primeiro gera as potencialidades do me-dium (objecto de generalização simbólica),o segundo dá lugar a concretizações (rea-liza apenas as possibilidades favoráveis). Écom base na especificidade do seu códigoe do seu processo que o poder é conside-rado uma forma de comunicação especiali-zada (distinta da linguagem): forma de co-municação com uma modulação e uma me-cânica próprias, que ditam as condições con-cretas de administração do poder e de forma-ção das "cadeias de dominação".

Sob influência, mais ou menos discutível,da realidade política norte americana, Par-sons considerou que o código do poder éde tipo binário, constituído pelos pólos go-verno/oposição; e é desta pretensa simplici-dade que faz depender a capacidade perfor-mativa do medium poder: a partir dessa di-cotomia elementar, muitas outras diferençaspodem ser articuladas por forma a garantir aestruturação regular da acção e do discursopolítico.

O código do poder, segundo a sua lógicainterna e forma de funcionamento, é conce-bido como uma técnica, subordinada ao cri-tério da eficácia: a fundamentação ou sim-ples justificação moral do poder cede lugara um tipo de racionalidade de ordem estri-tamente técnico-funcional - a performativi-dade dos sistemas. Neste sentido, não só opoder se apresenta como o medium especí-fico de um determinado sistema social - opolítico -, como toda a sua existência e fun-cionamento passam a ser orientada pelas ne-cessidades deste mesmo sistema. Em ter-

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mos sociais globais, a vantagem que daquidecorre consiste na capacidade que o podertem de reduzir a complexidade do mundo.Deste ponto de vista, é esta a sua supremautilidade.

A tecnicidade do código do poder apre-senta ainda como vantagem, em termos sisté-micos, uma economia geral de meios/custosna concretização dos seus objectivos. Asimplicidade do código binário permite umaapreensão muito rápida das alternativas se-lectivas - economia de tempo; permite umafácil articulação de universalismo e especi-ficidade(abertura/fechamento) - plasticidadedo poder; e permite desenvolver um perfeitosentido de totalidade - a lógica binária nor-maliza as múltiplas alternativas e contemplaa totalidade das hipóteses (auto-suficiência).

Será mesmo caso para falarmos não sóda tecnicidade do poder, mas de uma ver-dadeira lógica maquínica - espécie de tec-nologia totalizante, de elevado rendimento ecapacidades performativas inesgotáveis. Umcaso muito particular daquilo que alguns au-tores designam por logotécnicas (Rodrigues,1990: 91-4), na medida em que o poder, as-sim concebido, é não apenas uma técnica,mas também uma forma de comunicação,cuja principal originalidade consiste, justa-mente, em apresentar-se como uma alterna-tiva à linguagem convencional.

É certo que o poder, como todos os outrosmedia funcionais, utiliza os recursos da lin-guagem, como sejam os diferentes tipos desímbolos linguísticos ou para-linguísticos.Mas o que lhe confere especificidade é o seumodo próprio de funcionamento. O poderé, em si, uma forma sintética de linguagem,que sedimenta, aglutina e reconverte formassimbólicas muito diversas. Simplifica as ar-ticulações de sentido, o que lhe permite des-

congestionar o plano da comunicação. Ofe-rece automatismos de resposta, acelera osprocessos de escolha e simplifica a participa-ção dos sujeitos (em termos de exigências deintersubjectividade): é como se os processosde sentido se encontrassem antecipadamenteformados, cristalizados, e aos sujeitos ape-nas restasse pô-los em circulação de acordocom conveniências circunstanciais. A confi-ança ilimitada que os teóricos dos sistemasdepositam nesta funcionalização (e tecnolo-gização) da comunicação leva-os mesmo aconsiderar que "a comunicação explícita fi-cará assim restrita a uma função residual ine-vitável"(Luhmann, 1975: 31).

2 Limites de uma teoriafuncional do poder

Entre as muitas críticas a que o paradigmasistémico tem sido sujeito, sobressai a crí-tica política da teoria do poder que põe emcausa a perspectiva positivista da legitimi-dade (cf. Gouldner, 1970: 293 e sgs.). Comofacilmente se compreende, a ideia limitadade democracia que aqui está subjacente não époliticamente aceitável, sob diferentes pers-pectivas - a democracia como espécie de pro-grama de regulação de um sub-sistema funci-onal da sociedade, mero dispositivo decisio-nal, sem outros investimentos, aspirações ouconteúdos simbólicos que não sejam a boagestão das performances do poder (cf. Izuz-quiza, 1990: 30-1).

Mas a par desta crítica política, parece-metambém necessária uma crítica em termoscomunicacionais da teoria do poder comomedium funcional, para pôr em evidênciaa arbitrariedade intelectual que transformaa eficácia sistémica em imperativo soberano

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das sociedades complexas e no único critérioda evolução social. A análise rigorosa dospressuspostos comunicacionais desta teoriados media permitirá legitimamente questio-nar a excessiva confiança numa tecnologiza-ção generalizada do social, na marginaliza-ção das estruturas da comunicação e da raci-onalidade (que não as sistémico-funcionais)e, por último, na desarticulação moral davida humana.

A possibilidade de o poder constituir umalinguagem em si é tanto mais extraordiná-ria dado ele utilizar os recursos da lingua-gem comum - as formas simbólicas, verbaise não-verbais, presentes na linguagem quo-tidiana. É como se o poder efectuasse umaapropriação particular destes recursos e, as-sim, os esvaziasse da sua simbolicidade in-trínseca, eliminando todas as tensões e con-tradições que lhe são próprias.

A par das expressãoes linguísticas, o po-der recorre a um vasto leque de outras formassimbólicas, como sejam os símbolos propri-amente ditos - insígnias, distintivos, mar-cas que estão um pouco por todo o ladoonde o poder circula (nas roupas, nos luga-res, nos corpos); o próprio espaço tem umasimbolicidade própria, objecto da refuncio-nalização que resulta da circulação do po-der; ou, ainda, os investimentos do podernos planos mais imperceptíveis da gestuali-dade e da aparência - tanto mais importanteshoje em dia com a massmediatização da po-lítica. Desde o aprecimento dos modernosmeios de comunicação audiovisual que es-tes aspectos marcam uma forte presença, aoponto de muitas vezes serem mesmo consi-derados mais importantes que a linguagemverbal; e se no início, por exemplo, a ento-ação radiofónica de Roosevelt pôde ser con-siderada uma espécie de "dom natural"deste

político (cf. Lazarsfeld, Berelson e Gau-det, 1944: 186), hoje em dia a situaçãoé bem diferente: dicção, entoação, guarda-roupa, controlo mímico e gestual, etc. sãoobjecto de uma preocupação sistemática, deuma aprendizagem e de um controlo cui-dadosos por parte dos políticos, com vistaa dar maior "credibilidade"às suas posições(e aspirações) de poder. Bourdieu refere-se à "hexis corporal"como a marca distin-tiva mais profunda de um determinado "ha-bitus"(cf. Bourdieu, 1982: 89-90) - verdadeque parece plenamente confirmada pela pre-ocupação crescente demonstrada pelos polí-ticos com a sua "imagem"(ao ponto de, mui-tas vezes, se transformar em pura obsessão):é a esse nível que se jogam as "primeiras im-pressões", essenciais para definir o quadrode qualquer interacção ( cf. Goffman, 1959:20).

Como extensão do gestual, podemos tam-bém falar de uma para-linguagem do po-der relacionada com os comportamentos. E,ainda, a simbolicidade associada ao própriotempo: o poder impõe ritmos, pontuações,acelerações, etc. à vida das instituições e or-ganizações, e ao próprio quotidiano de cadaagente social.

A existência de um código binário do po-der leva-nos a supor que todas estas formassimbólicas passariam a estar ordenadas sobuma lógica unitária, um "quadro de expe-riência"radicalmente diferente daqueles queas relações sociais quotidianas geram. Istoequivale a imaginar a possibilidade de umaperfeita normalização da actividade simbó-lica, com vista à sua adequação funcional àsnecessidades de uma organização política dasociedade concebida em termos sistémicos.Seria como se o sentido da acção política es-tivesse fixado à partida, segundo uma codi-

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ficação elementar orientada exclusivamentepara responder às necessidades do sistemapolítico, e as formas simbólicas surgissemdestituídas de qualquer autonomia, destina-das apenas a revestir um conteúdo previa-mente fixado e que lhes é estranho.

Não faltam, por certo, exemplos na vidapolítica dos nossos dias que parecem cor-roborar semelhante possibilidade. E isso étanto mais evidente nas sociedades mais de-senvolvidas e complexas, com a estereoti-pização e rotinização da actividade política,com a imposição de uma lógica unificadorae homogeneizante das marcas simbólicas dasordens do discursivo, do gestual, do icono-gráfico e, até, do espaço e do tempo.

No plano da comunicação, esta lógica defuncionamento do sistema político significaa imposição de uma articulação específica(funcional) a todos os domínios simbólicos:uma "solução"violenta do problema do sen-tido que elimina as relações, dependênciase tensões variáveis entre as diversas formassimbólicas, por força da imposição de umalógica que lhes é exterior.

Tomada como solução absoluta (da ques-tão política, do poder e do sentido), esta hi-pótese tem tanto de fantástico como de inve-rosímil, pois a sua aceitação equivale ao re-conhecimento que a doação do sentido não éjá um atributo do espírito humano, da sua ac-tividade simbólica, mas uma mera condiçãofuncional dos sistemas.

A actividade simbólica consiste no actode doação de sentido ao mundo, com o qualo homem torna significante tudo aquilo queo rodeia e se torna a si próprio significante(para si e para os outros). É neste sentidoque falamos de uma construção social da re-alidade, na medida em que a nossa relaçãocom o mundo é sempre uma relação media-

tizada (Berger e Luckmann, 1966: 35 e sgs.).Isto equivale a dizer que a fonte primeira dosentido é o próprio homem: o sentido nascede uma relação, mas o acto de doação é sem-pre do homem para o mundo e não o inverso.

A hipótese sustentada pela teoria geral dossistemas é precisamente inversa. Aceita a es-pecificidade simbólica da espécie, mas con-sidera que, em resultado da evolução social,não é já o homem a fonte do sentido, masa sociedade - os sistemas sociais, a partirdos seus dispositivos funcionais que são osmedia simbolicamente generalizados. Con-sidera a simbolicidade do mundo um resul-tado de relações funcionais e não um produtoda reflexividade do espírito humano.

A refutação desta hipótese passa, desdelogo, pela contestação da sua pretensão abso-lutista: definir limites de validade mais res-tritos que impessam a sua transformação emimperativo supremo da vida social. Não setrata, pois, de uma refutação liminar da vali-dade da lógica sistémica, mas de considerá-la apenas como uma tendência, entre outras,da vida social e da evolução; tendência que,aliás, nada indica ser a determinante. Em ter-mos comunicacionais, isto significa a neces-sidade de desenvolver uma concepção maisabrangente do fenómeno da comunicação enão a reduzir ao protótipo informacional, es-pécie de dispositivo mecânico-behavioristade transmissão de complexidade reduzida.

O poder enquanto fenómeno de sentido éobjecto de uma permanente elaboração sim-bólica por parte do homem: um trabalho sis-temático, mas também contingente, fruto datensão, do confronto e do choque de inte-resses humanos muito diversos. É um pro-cesso simbólico sujeito à heteronímia, dadaa natureza própria das diferentes formas sim-bólicas, da tensão que entre si mantêm, por

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exemplo, as formas verbais e não-verbais (cf. Watzlawick et all, 1967: 49-52 e 57-65).

A emergência do sentido ocorre a partirda estruturação das diferentes formas sim-bólicas, onde há que ter em conta não ape-nas a especificidade de cada uma delas, mastambém as suas relações de dependência -atente-se, por exemplo, nas simbolizações dotempo e do espaço, que dão lugar aos díti-cos do discurso e têm um efeito estruturantesobre a generalidade dos quadros simbólicosda experiência.

A noção do poder como medium simboli-camente generalizado não é falsa, mas é li-mitada: não contempla a totalidade das di-mensões simbólicas do poder, e tem da polí-tica uma ideia muito restrita.

Sobre os despojos da velha Filosofia doSujeito, a teoria sistémica preconiza umasolução radical da tensão sociedade/homem(cultura), mas por anulação do segundotermo (cf. Marramao, 1983: 155): a assimi-lação do universo simbólico pelos sistemassociais. No limite, os processos sistémicosde reprodução deveriam substituir os pro-cessos culturais de reprodução, de integra-ção social e de socialização; e a integraçãosistémica (político-administrativa) absorve-ria tanto as relações de produção como as re-lações de comunicação (cf. Habermas, 1985:417-20).

É, no entanto, uma superação da Filosofiado Sujeito apenas aparente. Tudo se resume,afinal, a substituir a noção de sujeito pela desistema, a relação sujeito-mundo pela rela-ção sistema-meio e a autoconsciência do in-divíduo pela autoregulação (cibernética) dossistemas.

3 A dimensão moral do poder e aforça simbólica dacomunicação

A crítica da teoria sistémica não põe emcausa a articulação comunicacional do po-der, mas tem da comunicação um enten-dimento muito diverso - segundo o princí-pio básico de que "a regulação e a inter-compreensão representam fontes que não po-dem substituir-se infinitamente entre si; o di-nheiro e o poder não podem comprar, nemobter pela força, tanto a solidariedade comoo sentido"(Habermas, 1985: 429).

A tradição ocidental desenvolveu, desdea Antiguidade Clássica, uma concepção quecontradiz o ponto de vista mais comum, noqual a teoria sistémica se inscreve, que en-cara o poder em termos instrumentais e tele-ológicos (cf. Weber, 1956: 56). A concep-ção alternativa considera o poder uma directaemanação do apoio que um povo atribui àsinstituições e às normas que regulam a suavida colectiva (cf. Arendt, 1970: 22): não sereduz a uma mera prerrogativa da acção, masé a própria expressão da condição humana -exprime o que há de mais genuíno na vidados homens, a convivência, a união, a urgên-cia de uma vida colectiva, em comunidade.

É com base nesta concepção do poder quea legitimidade surge directamente relacio-nada com o espaço público, entendido, emtermos genéricos, como espaço social de en-contro, no qual os homens definem colec-tivamente, pela palavra e pela acção, a suavontade.

Este sentido colectivo do poder, expres-são da vida em comum, é uma nova formade conceber a relação entre o poder e a lin-guagem: "o poder só é actualizado onde a

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palavra e a acção não se separaram, ondeas palavras não são utilizadas para velar in-tenções mas para revelar realidades, e os ac-tos não são usados para violar e destruir maspara estabelecer relações e criar novas reali-dades"(Arendt, 1958: 200).

Para que a partir daqui se possa desen-volver uma concepção do poder verdadei-ramente alternativa e ajustada às condiçõesdo mundo moderno, é indispensável evitara tentação de uma ontologização do pensa-mento. Interessa-nos o poder concreto quese materializa objectivamente na vida de to-dos os dias, não o poder como categoria on-tológica, abstracto, espécie de essência re-mota e escondida da "condição humana". Domesmo modo, a comunicação não deve seridealizada e reificada, no sonho de uma pra-xis pura, em termos aristotélicos, totalmenteautónoma, sem relação nem compromisso dequalquer espécie quer com o pensamento (osinteresses), quer com o domínio da produção(o trabalho).

O poder nas sociedades modernas é, emsi, heterogeneidade racional: "a racionali-dade moral-comunicacional coexiste com aracionalidade técnico-instrumental e estraté-gica"(Ferry, 1987: 91); e é a partir da tensãoentre estas duas dimensões da política que sepoderá definir, ao nível das práticas sociaisquotidianas, um critério consistente de co-municação, bem como a sua relação com opoder.

Falar em termos genéricos e abstractosde "comunicação"é insuficiente, pois a lin-guagem é um recurso demasiado geral quepode servir tipos de acção muito diferentes.Para pensarmos a linguagem na sua plenaforça simbólica é necessário um critério deRazão que dê conta das diferentes dimen-sões da vida social e dos interesses humanos:

uma racionalidade pluridimensional, poten-cialmente aberta tanto em termos temáticoscomo de participantes, que poderá ser ape-lidada, justamente, "razão comunicacional".A razão que deu lugar à emergência do es-paço público moderno e, apesar das muitascontrariedades, o manteve vivo até aos nos-sos dias.

Além de racional, a comunicação assimdefinida assume também um carácter crítico.É uma comunicação que procura ser rigorosana formulação dos enunciados e exigente nojuízo. "Crítica"tem aqui o sentido de con-trolo pragmático da verdade exercido ao ní-vel do discurso e que se estende à próprialinguagem (auto-reflexividade).

É, ainda, uma comunicação que se de-senvolve segundo o modelo argumentativo,do debate e da discussão das diferentes opi-niões, através do qual aspira a definir umacordo (consenso racional) que exprime avontade colectiva.

Embora todos estes critérios sejam emlarga medida de carácter formal, eles são,mesmo assim, suficientemente precisos paradefinir uma base normativa da comunicaçãoque, por sua vez, torna mais explícita a suarelação com o poder: a comunicação comobase de legitimação do poder.

A caracterização da comunicação em ter-mos críticos poderá sugerir, à primeira vista,um afastamento da realidade concreta, poisas formas fáticas do poder só por excepçãoapresentam a pureza moral sugerida nestemodelo ideal. Mas é justamente o carác-ter contra-factual da comunicação assim de-finida que torna mais urgente a abertura à re-alidade, para que se possa constatar como navida concreta, ao nível objectivo das práticassociais, o poder e a comunicação se consti-tuem, quais as contingências que os condici-

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onam, as possibilidades que os favorecem eas contrariedades que os limitam.

Definir um modelo ideal de comunicaçãosó tem, pois, sentido, se puder contribuirnão para "normalizar"a realidade, mas, pelocontrário, para dar conta da sua diversidadee complexidade; incorporando um princípiocrítico capaz de problematizar não só a rea-lidade da comunicação, mas também, sem-pre que necessário, o "dispositivo de legibi-lidade"que ele próprio constitui.

Este é também o melhor caminho parauma correcta aproximação ao fenómeno dopoder. Não o poder como dispositivo unitá-rio, propriedade exclusiva de uma única ins-tância social, mas o poder subjacente à acçãopolítica em geral, que diz respeito à comu-nidade e à sociedade no seu conjunto. Dei-xamos, por conseguinte, de perseguir a enti-dade abstracta e ilusória que é o "discurso dopoder", para nos confrontarmos com o dis-curso político, as diversas práticas discursi-vas da linguagem quotidiana que mediatizama relação dos indivíduos com a política e dãoforma a relações de poder específicas.

Este ponto de vista adopta os princípios deuma análise pragmática da linguagem e temcomo primeira consequência a crítica de al-guns dos instrumentos científicos convencio-nais utilizados para estudar este tipo de pro-blemas - os inquéritos de opinião e as entre-vistas mais ou menos dirigidas. Estas téc-nicas revelam uma extrema dificuldade emcompreender a noção de "público", dado pre-tenderem objectivá-lo como somatório (oumédia) das opiniões individuais isoladas ( cf.Bourdieu, 1984: 231). Em termos de análisediscursiva, estas técnicas ignoram por com-pleto o contexto real de produção das opi-niões e a forma concreta da sua apresenta-ção - os elementos para-linguísticos, como

sejam, a entoação, a gestualidade, a estiliza-ção, a ironia, etc., que são um factor essen-cial da produção do sentido.

É necessária, portanto, uma nova atitudecientífica, empenhada em reatar a noçãode "público"e o discurso político entendidocomo discussão pública (cf. Eliasoph, 1990:489). Um novo ponto de vista acerca da rela-ção do poder com a comunicação, que tem ohomem como principal elemento de referên-cia, o indivíduo enquanto membro de umacomunidade política e participante de um pú-blico.

O discurso político considerado ao níveldas práticas sociais quotidianas constitui ummedium de afirmação da individualidade,através do qual os agentes sociais constroema sua identidade. O quadro de referênciadeste tipo de comunicação, que mediatiza asrelações políticas e as formas de poder, é,pois, balizado pelos processos de socializa-ção e de integração social.

Ao pensarmos o discurso político en-quanto discussão pública descobrimos novasáreas de interesse para o estudo da comuni-cação. A par da interrogação convencionalquanto ao conteúdo, surge agora também apreocupação com outros aspectos, à primeiravista marginais, como sejam o modo de apre-sentação dos discursos e as circunstânciasem que eles são apresentados. Como refe-riu Goffman, a "apresentação do eu"envolvesempre um certo exercício de teatralização,através do qual o indivíduo se expõe peranteos outros, recorrendo a uma "expressão ex-plícita- basicamente construída com símbo-los verbais - e a uma "expressão indirecta- os"signos sintomáticos"das diferentes formasde comportamento (cf. Goffman, 1959: 12).

A aplicação realizada por Nina Eliasophdeste método de investigação é particular-

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mente reveladora do modo como os indi-víduos definem as suas atitudes políticas.Além de ter permitido estabelecer uma tipo-logia das atitudes políticas observadas ( cf.Eliasoph, 1990: 473-86), este trabalho tor-nou também muito claro como a produçãodo sentido no discurso político é sempre o re-sultado contingente de uma determinada ar-ticulação entre o conteúdo e a forma comoesse conteúdo é apresentado. O sentido nãoobedece a uma codificação a priori, é antes oproduto contingente de uma articulação comregras variáveis de elementos significantesmuito diversos.

Mesmo que aceitemos a existência de umbinarismo sistémico ao nível dos discursospolíticos, o seu efeito "normalizador"cessaa partir do momento que os discursos to-mam forma concreta, isto é, quando são as-sumidos por interlocutores e se tornam ob-jecto dos seus investimentos pessoais. Nãoé uma comunicação em função do sistemaque organiza politicamente as pessoas, masa comunicação de pessoas que constróem asua identidade social com base numa deter-minada atitude política assumida discursiva-mente perante outros interlocutores.

Este nível de relação do poder com a co-municação pode ser designado como dimen-são dinâmica da política: quando o discursopolítico não é apenas sintomático de uma es-trutura definida, de uma instituição imutável,mas antes se apresenta como investimentosimbólico de expectativas sociais que aspi-ram permanentemente reconstruir a políticaà imagem das aspirações dos homens. É umadimensão da política já não funcional, masessencialmente moral - os problemas éticose da justiça ao nível da organização geral dasociedade são determinantes.

Isto equivale a dizer que o discurso polí-

tico não é apenas um dispositivo de transmis-são do poder - de "marcação"dos indivíduos(ou outras entidades sociais) consoante o seumaior ou menor poder -, é antes o mediumpor excelência de formação do próprio po-der. Em termos comunicacionais, é ao nívelda participação de cada um no discurso pú-blico que, reflexivamente, os agentes sociaisadquirem consciência da sua situação polí-tica, da sua posição perante o poder, definemexpectativas e aspirações em relação a essemesmo poder.

Velhos temas da Sociologia e da TeoriaPolíticas, como são a "consciência política"ea "mobilização política", dão conta destaspreocupações, e o quadro comunicacionalaqui delineado pode trazer novos contributosà sua compreensão.Gramsci propôs o conceito de "hegemoniaideológica"para contestar o modelo marxistade uma relação causal linear entre a domi-nação económica e a ideológica. O conceitoé de extrema utilidade para definir a "cons-ciência política"já que põe em relevo o pa-pel das estruturas não-explícitas da domina-ção, relacionadas não tanto já com o "mundoobjectivo", mas com o universo simbólico,os modelos culturais e as formas de subjec-tividade - o "senso comum da vida quoti-diana", sem o qual nenhuma transformaçãoda situação política pode ser concebida ( cf.Gramsci, 1971: 424).

Procurando uma aproximação deste ra-ciocínio aos problemas da comunicação, a"frame analysis"proposta por Goffman é ex-tremamente útil.

Por "frames- quadros de experiência - po-demos entender uma determinada definiçãodas premissas da acção. Têm, por um lado,uma função estruturante dos fluxos comuni-cacionais: investem as situações de um sen-

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tido geral que antecede/condiciona os enun-ciados/discursos produzidos a partir dessasmesmas situações - "auxiliam o seu uti-lizador a localizar, perceber, identificar eclassificar um número infinito de ocorrên-cias aparentemente semelhantes"(Goffman,1974: 21). Por outro lado, a "frame"temuma influência determinante na formaçãodas identidades sociais, na internalização deuma determinada consciência das situações:"todas as frames implicam expectativas detipo normativo que revelam como o indiví-duo está implicado de modo profundo e totalna actividade organizada pela própria frame"(Ibid.: 345).

É de acordo com esta dupla dimensão da"frame"que podemos utilizar esta noção noâmbito da análise política (embora Goffmannunca tenha explorado consistentemente estavia). O mundo político apresenta-se a cadaagente social organizado segundo um deter-minado quadro de experiência, mas, simulta-neamente, os próprios agentes sociais efec-tuam apropriações específicas deste quadro(cf. Gamson, 1985: 615). Os quadros da ex-periência definem as situações mas são tam-bém objecto de permanente definição e re-formulação - operações que resultam de umtrabalho simbólico sistemático sobre as pró-prias situações concretas de interacção, de-senvolvido por todos aqueles que nelas par-ticipam.

Este trabalho, Goffman designa "refra-ming act"e significa, em termos políticos, apreservação de um espaço aberto à partici-pação individual, à capacidade de inovaçãoque cada um pode transportar ao universopolítico, através do discurso e das diferentesformas da sua apresentação pública. Trata-se, portanto, de um trabalho simbólico, aonível das trocas comunicacionais (verbais e

não-verbais), através do qual os interlocuto-res confrontam o poder e procuram melhoradequá-lo às suas expectativas e aspirações.

A definição de um novo quadro de expe-riência nestes termos tem sempre uma deter-minada consistência ao nível da "consciênciapolítica". Mas o seu resultado é contingente,depende da dinâmica da interacção, das per-formances individuais que não são fixadas apriori. Só assim se pode constituir um qua-dro de experiência partilhado. Ele resultatanto da comunicação intencional, assumidageralmente sob a forma verbal, como da co-municação implícita, que flui imperceptivel-mente nos gestos, nas entoações, nas expres-sões, nos comportamentos. Esta é, aliás, umacomunicação menos controlada e, por issomesmo, com um significado mais profundoe maior capacidade de estruturação das situ-ações (cf. Watzlawick et all., 1967: 60).

Mas o efeito estruturante que a comuni-cação tem sobre a política e o poder resulta,também, da sua especial capacidade de moti-vação dos indivíduos - que poderemos tradu-zir por capacidade de "mobilização política".

A mobilização é aqui encarada em termosmicro-sociológicos: radica na forma maiselementar das relações sociais, a interacçãoface-a-face. E também aqui deparamos coma mesma enorme diversidade de formas sig-nificantes, que na multiplicidade das suas re-lações formam os universos simbólicos dosdiferentes "encontros sociais".

Estes "encontros"são de extrema impor-tância para a afirmação da identidade de to-dos aqueles que neles participam, pois dãolugar a uma relação social intensa, em que aconsciência do outro é mais aguda e, por issomesmo, atraem um investimento social maisforte por parte dos interlocutores, com vistaà produção de uma determinada "imagem de

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si"(cf. Goffman, 1964: 64). Criam, conse-quentemente, uma "micromobilização", queé a forma mais elementar de motivação paraqualquer tipo de actividade social, como sejaa acção política.

Nesta perspectiva, a relação com o poderjoga-se sempre a este nível fundamental dasrelações sociais: "o poder que se exerce con-cretamente e em detalhe, com a sua especifi-cidade, as suas técnicas e as suas táticas [... opoder que circula] de forma ao mesmo tempocontínua, ininterrupta e adaptada e ’indivi-dualizada’ em todo o corpo social"(Foucault,1979: 6-8).

É da própria natureza dos encontros soci-ais em geral, a restrição da conflitualidade.Entre os participantes prevalece um "con-senso operacional"(working consensus ), oqual está na base de todas as definições desituação e caracteriza o envolimento peculiardos interlocutores no processo de comunica-ção - segundo uma atitude moral de respeitomútuo e aceitação, à partida, do outro (cf.Goffman, 1959: 18 e 21).

Esta característica dos encontros sociaistem uma directa consequência na questão dopoder: revela a sua forte propensão estática,a tendência para criar formas cristalizadas eestigmatizar todas as forças de "transgres-são". Evitar o conflito, não criar "cenas"écondição de uma relação com o poder queé geralmente de submissão e de acatamentoda ordem instituída; por outro lado, esta leitem também um especial significado quantoao modo como se organiza o fluxo comuni-cacional: apesar da diversidade das fontes,dos controlos e da extrema complexidade dasrelações simbólicas , prevalece uma forçaintegradora e de homogeneização, apostadaem fixar um sentido geral coerente com asregras de propriedade definidas pelas pró-

prias situações sociais. Mas esta tendêncianão está garantida à partida e incondicional-mente. É um objectivo da interacção que osparticipantes devem perseguir e, por conse-guinte, exige-lhes uma atenção e empenha-mento especiais no que diz respeito à orga-nização do seu discurso e do comportamentosignificante em geral.

A dinâmica do poder, que se joga nos en-contros sociais, sugere determinados limitesàs práticas comunicacionais, mas a orienta-ção definitiva destas práticas é sempre umresultado concreto do empenhamento dos in-divíduos, da dinâmica da acção que adequacom algum grau de liberdade e criatividadeo quadro simbólico estabelecido.

Isto equivale a dizer que o "consenso ope-racional"não é, apesar de tudo, um dado ir-revogável: os quadros de poder definidossão sempre passíveis de questionamento e detransformação, embora sob condições espe-ciais.

A relação do poder com a comunicaçãoinicia-se, pois, antes ainda de tocar a de-finição do próprio poder (ao fixar discur-sivamente as formas legítimas de domina-ção): na criação das condições que permi-tem pôr em causa uma determinada formade poder. Contrariar o "consenso operaci-onal"(ou o poder instituído) é um trabalhode "reframing"que envolve especiais cuida-dos com as práticas comunicacionais: plane-amento e desenvolvimento progressivo, con-trolado, uma hermenêutica da recepção pers-picaz e rigorosa, por forma a que se possaefectuar uma avaliação regular da reacçãodos outros. Existem formas de comunica-ção especialmente apropriadas para estas cir-cunstâncias: a exploração criteriosa da dife-rença entre o papel e o indivíduo ("role dis-tance"), a "evasão"como forma de despistar

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possíveis sanções (e evitar "cenas"), as con-versas à margem ("rim talk"), que permitemsubtilmente deslocar as fronteiras da interac-ção sem assumir com frontalidade um actode violação (cf. Gamson, 1985: 610-3).

Todas estas técnicas de condução da in-teracção são práticas comunicacionais cujoêxito está dependente, em primeiro lugar, domodo como é conseguida uma articulaçãoapropriada entre os diferentes recursos sim-bólicos.

A refutação da teoria do poder comomedium simbolicamente generalizado de-corre, como procurei demonstrar, da crí-tica dos pressupostos comunicacionais destamesma teoria, designadamente do seu prin-cípio, pouco credível, de existência de umcódigo funcional de poder que substitui acomunicação convencional como mediumsimbólico. Nesta crítica, a análise da co-municação acaba por partilhar uma preocu-pação política muito marcante: a relaçãopoder-comunicação só adquire pleno sentidoquando o poder tem dimensão humana e pro-jecta um quadro simbólico da experiênciadefinido em termos discursivos e permanen-temente aberto a novas definições de situa-ção.

A dimensão humana do poder é a ima-gem da sua grandiosidade, mas também dasua extrema fragilidade: o poder permanen-temente em jogo nas relações sociais, no ím-peto dos desejos e das expectativas dos ho-mens, na imponderabilidade da vontade co-lectiva - as incertezas que dão forma ao uni-verso simbólico, que impregnam a comuni-cação humana e a tornam irredutível a qual-quer tipo de "normalização"unidimensional.

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