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ESTÉTICA E INDÚSTRIA CULTURAL EM ADORNO Dilmar Santos de Miranda' RESUMO o artigo analisa um dos aspectos mais rele- vantes da Teoria Crítica (desenvolvida por integran- tes da chamada Escola de Frankfurt) procurando estabelecer uma estreita ligação entre a estética de Theodor Adorno e sua acirrada crítica 'a indústria cultural, termo por ele criado, juntamente com Max Horkheimer, na obra Dialética do Esclarecimento. RESUMÉE L 'auteur établie une étroite liaison entre Ia théorie esthétique de Theodor Adorno, essentielment auprês de Ia cathégorie de médiation, três precieuse pour lui, et sa critique radicale par rapport aux produits de I 'industrie culturele, expression crée par Adorno et Max Horkheimer, dans leur livre "Dialektik der Aufklãrung". I Professor Assistente do Departamento de Ciências Sociais e Filo- sofia da UFC cursando, atualmente, o doutorado em Sociologia da USP, na área de concentração de Sociologia da música. O texto-resumo sobre a indústria cultural (Adorno, 1986, Gran- des Cientistas Sociais, organizada por Gabriel Cohn), base deste artigo, é fruto das conferências radiofonizadas, proferidas por Adorno na Alemanha, em 1962. Muitas de suas concepções criticas, que seriam posteriormente tematizadas de forma mais aprofundada na Dia/ética do Esclarecimento, já se encontravam antecipadas em ensaios sobre o panorama musical de sua época, escritos na década de 30, sobretudo no "Über Jazz" (Sobre o Jazz) de 1936/37 e o famoso Fetichismo na Música e a Regressão naAudição, de 1938, em resposta ao não menos famoso ensaio A Obra de Arte na Época de suas Técnicas de Reprodução, de Walter Benjamim. INTRODUÇÃO A reflexão feita pela Teoria Crítica sobre a in- dústria cultural I, especialmente a de Adorno, insere- e-se no solo da análise da decadência da cultura da sociedade burguesa, na era do capitalismo mono- polista tardio, conforme a formulação dos próprios frankfurteanos. A concepção de arte autêntica, tão valiosa para os frankfurteanos, como promesse de bonheur-, num mundo administrado pela raciona- lidade instrumental, constitui-se num contraponto inseparável para a análise realizada por Adorno so- bre a indústria cultural, com vistas a uma compreen- são mais adequada deste fenômeno. A expressão indústria cultural foi cunhada por Adorno e Horkheimer em A Dialética do Esclareci- mento, de 1947. Recusando estabelecer um sinal de igualdade entre cultura de massa, expressão já em voga, e democratização da cultura, Adorno expressa decididamente sua descrença no aspecto popular e espontâneo que a expressão cultura de massa pode- ria aludir. No limite, não é cultura, nem vem das mas- sas. Para Adorno, a noção de massa, por múltiplas razões, é ideologia. A indústria cultural nos provê de uma cultura reificada, sem espontaneidade. "A indús- tria cultural é a integração deliberada, a partir do alto, de seus consumidores" (ADORNO, 1986:92). A tra- 2 Para os frankfurteanos, a arte autêntica representa a derradeira trincheira das aspirações humanas por um novo tipo de sociedade. "A arte, desde que se tornou autônoma, conservou a utopia que a religião não mais portava" (Horkheimer, apud Jay, 1977 :211). "A arte, para utilizar uma fórmula de Stendhal que o Instituto gosta- va especialmente de citar, oferece une promesse de bonheur "'. (Jay, 1977:211). A expressão também era do agrado de Niestzche, para se opor à gratuidade da concepção kantiana de arte, que via o belo objeto de um desejo desinteressado (Cfr. Jay, op. cit.: 368, nota n" 33). Educação em Debate - Fortaleza - ANO 20 - N° 35 - 1998 - p. 23-28 rn ", ...

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ESTÉTICA E INDÚSTRIA CULTURAL EM ADORNO

Dilmar Santos de Miranda'

RESUMO

o artigo analisa um dos aspectos mais rele-vantes da Teoria Crítica (desenvolvida por integran-tes da chamada Escola de Frankfurt) procurandoestabelecer uma estreita ligação entre a estética deTheodor Adorno e sua acirrada crítica 'a indústriacultural, termo por ele criado, juntamente com MaxHorkheimer, na obra Dialética do Esclarecimento.

RESUMÉE

L 'auteur établie une étroite liaison entre Iathéorie esthétique de Theodor Adorno, essentielmentauprês de Ia cathégorie de médiation, três precieusepour lui, et sa critique radicale par rapport auxproduits de I 'industrie culturele, expression crée parAdorno et Max Horkheimer, dans leur livre"Dialektik der Aufklãrung".

I Professor Assistente do Departamento de Ciências Sociais e Filo-sofia da UFC cursando, atualmente, o doutorado em Sociologia daUSP, na área de concentração de Sociologia da música.O texto-resumo sobre a indústria cultural (Adorno, 1986, Gran-des Cientistas Sociais, organizada por Gabriel Cohn), base desteartigo, é fruto das conferências radiofonizadas, proferidas porAdorno na Alemanha, em 1962. Muitas de suas concepçõescriticas, que seriam posteriormente tematizadas de forma maisaprofundada na Dia/ética do Esclarecimento, já se encontravamantecipadas em ensaios sobre o panorama musical de sua época,escritos na década de 30, sobretudo no "Über Jazz" (Sobre oJazz) de 1936/37 e o famoso Fetichismo na Música e a RegressãonaAudição, de 1938, em resposta ao não menos famoso ensaio AObra de Arte na Época de suas Técnicas de Reprodução, de WalterBenjamim.

INTRODUÇÃO

A reflexão feita pela Teoria Crítica sobre a in-dústria cultural I, especialmente a de Adorno, insere-e-se no solo da análise da decadência da cultura da

sociedade burguesa, na era do capitalismo mono-polista tardio, conforme a formulação dos própriosfrankfurteanos. A concepção de arte autêntica, tãovaliosa para os frankfurteanos, como promesse debonheur-, num mundo administrado pela raciona-lidade instrumental, constitui-se num contrapontoinseparável para a análise realizada por Adorno so-bre a indústria cultural, com vistas a uma compreen-são mais adequada deste fenômeno.

A expressão indústria cultural foi cunhada porAdorno e Horkheimer em A Dialética do Esclareci-mento, de 1947. Recusando estabelecer um sinal deigualdade entre cultura de massa, expressão já emvoga, e democratização da cultura, Adorno expressadecididamente sua descrença no aspecto popular eespontâneo que a expressão cultura de massa pode-ria aludir. No limite, não é cultura, nem vem das mas-sas. Para Adorno, a noção de massa, por múltiplasrazões, é ideologia. A indústria cultural nos provê deuma cultura reificada, sem espontaneidade. "A indús-tria cultural é a integração deliberada, a partir do alto,de seus consumidores" (ADORNO, 1986:92). A tra-

2 Para os frankfurteanos, a arte autêntica representa a derradeiratrincheira das aspirações humanas por um novo tipo de sociedade."A arte, desde que se tornou autônoma, conservou a utopia que areligião não mais portava" (Horkheimer, apud Jay, 1977 :211). "Aarte, para utilizar uma fórmula de Stendhal que o Instituto gosta-va especialmente de citar, oferece une promesse de bonheur "'.(Jay, 1977:211). A expressão também era do agrado de Niestzche,para se opor à gratuidade da concepção kantiana de arte, que via obelo objeto de um desejo desinteressado (Cfr. Jay, op. cit.: 368,nota n" 33).

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dicional distinção entre arte superior e inferior se dissolvenum novo estilo unificado, para atender a um possívelgosto médio, um sistema de "não-cultura", uma espéciede "barbárie estilizada", na expressão de Nietzsche, àqual os autores da Dialética do Esclarecimento aderem(ADORNOIHORKHEIMER, 1991:121).

Essa nova estilização compulsória, ao desejar aintegração vertical, obedece à racional idade tecnológicada concentração econômica e administrativa do grandecapital. A indústria cultural traz no seu bojo as marcastípicas do mundo industrial moderno.

"[...] o terreno no qual a técnica con-quista seu poder sobre a sociedade é opoder que os economicamente mais for-tes exercem sobre a sociedade. Aracionalidade técnica hoje é a racio-nalidade da própria dominação [...]. Osautomóveis, as bombas e o cinema man-tém coeso o todo.. Por enquanto, a téc-nica da indústria cultural levou apenasà padronização e à produção em série,sacrificando o que jazia a diferença[alteridade negativa] entre a lógica daobra [código interno da obra de arte]e a do sistema social [lógica externa]"(ADORNOIHORKHEIMER, 1991 :114).

Ao adaptar seus produtos "culturais" ao consu-mo das massas, determinada pela lógica do mercado, aindústria provoca perdas, tanto nas formas culturais su-periores quanto inferiores. Na arte superior, perde-se aseriedade, na inferior sua rudeza espontânea que resis-te ao controle social. Na sociedade administrada, a men-sagem implícita de uma arte autônoma autêntica, outroraprotesto, nada mais é do que conformismo e resigna-ção. A arte, como expressão da negatividade do exis-tente, como promesse de bonheur, espécie de utopiaestética, a ser realizada numa sociedade "outra", torna-se consolo. A música popular, expressão da autentici-dade do Volkgeist (espírito de um povo), é destruída porum processo que faz dela, como de resto de toda artepopular, objeto de manipulação e difusão impostas porcima. Em certa medida, elementos culturais autênticose espontâneos do Volkgeist, travestem-se em culturavõlkisch, muito comum nas sociedades totalitárias, ondevelhas formas e hábitos culturais são reacionariamenterecuperados e reciclados para atender novas necessi-dades da racionalidade instrumentalizadora.

Ao eleger o primado do efeito, como caracterís-tica fundamental e imediata das mercadorias culturais,

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isto é, O princípio de seu valor de troca e não o do seupróprio conteúdo e de sua figuração adequada, os pro-motores da indústria cultural abolem um atributo essenci-al da arte autêntica - sua autonomia. Na verdade, umaautonomia pura na arte, nem o próprio Adorno admitia.

No "milagre estético" da Grécia antiga, predomi-nava um princípio utilitário na concepção da arte entreos clássicos. A teoria geral da arte na filosofia da épo-ca, encontrava subordinada à sua teoria sobre a técnicaenquanto manufatura. Segundo Sócrates, es bello 10que es útil y no /0 es más que en cuanto útil. (apudBAYER, 1993 :32). Platão, no Hippias Maior, propõe adefinição de beleza como "eficácia para algum bom pro-pósito" (apudOSBORNE, 1993:31). A tragédia desem-penhava função social fundamental, na educação docidadão livre da e para a pólis. Na verdade, o idealgrego do kalon kai agathon, belo e bom, apontava paraa primazia do belo da bios theoretikos, da vidacontemplativa e da práxis, do fazer ético. Num planoderradeiro, encontra a-se o belo utilitário, inferior porestar preso ao mundo sensível das coisas. "Para os gre-gos do 50 século, a fórmula /'art pour l'art teria sidomonstruosa ou simplesmente ininteligível" (SIKES, apudORBORNE, 1993 :31). A idéia contemporânea de artecomo "expressão" sensí el da pulsão criativa do artistaseria igualmente estranha à mentalidade clássica grega.

Na idade média, a grosso modo, a manifestaçãoartística expressa na música, pintura e escultura, alémde sua subsunção total à religião romana, enquanto for-ma e fundo, desempenhou papel crucial na propagaçãoe educação da fé cristã.

É na modernidade renascentista que a arte en-ceta sua trajetória rumo à autonomia e que terá seuapogeu no século XVIII, com a concepção de BeauxArts, ao se consumar o divórcio entre o artista e osartífices e oficiais, nos campos utilitários. Aliada à con-cepção de belas artes, desenvolveu-se a concepçãode prazer estético, ou seja, a sensação de gozo estéti-co na fruição da obra de arte, num clima de interioridadecontemplativa.

Para ADORNO, é na fase do capitalismo liberalque a arte, no horizonte do projeto civilizatório da Ilus-tração visando ao processo de autonomização dos ho-mens, aí também incluindo a Aufklãrung estética,constitui-se como promessa de autonomia, o que lhe éfrustrado com o advento da racionalidade do mundoinstrumentalizado. Antes, até a perda total de sua auto-nomia, a arte poderia ser secundariamente mercadoria,ao preservar o primado do seu valor-de-uso. Agora, osprodutos da indústria cultural são integralmente merca-dorias - é o império do seu valor-de-troca.

Adorno faz um julgamento mais nuançado sobrea indústria cultural, ao alertar que "não se deve tomarliteralmente o termo indústria" (ADORNO, 1986:94).O termo, de preferência, deve ser aplicado à estandar-dização do produto (característica por diversas vezesreiterada em outros ensaios) e à racionalização das téc-nicas de distribuição. Quanto ao processo de produção,por exemplo, no cinema, ao mesmo tempo que se pre-sencia procedimentos avançados de uma divisão técni-ca do trabalho, da introdução de máquinas e da separaçãodos trabalhadores dos meios de produção (configuran-do assim conflitos de classe típicos da sociedade bur-guesa moderna), conservam-se também formas deprodução artesanal, característica do período pré-bur-guês ou burguês liberal da produção artística autônoma.Com isso configura-se uma falsa idéia da existência deuma subjetividade individual criadora e mediatizadorana confecção do produto cultural, refúgio do imediatismoda vida. Essa ambivalência presente na indústria cultu-ral - estandardização x individuação (de preferênciapseudo-individuação, segundo ADORNO), desempenha,portanto, importante jogo ideológico, onde o estandar-dizado e o coisificado aparenta ser produto de umacriatividade individualizada. Tal mecanismo é reforçadopelo uso constante do star system. "Essa ideologia apelasobretudo para o sistema de 'estrelas' emprestado daarte individualista e da sua exploração comercial"(ADORNO, 1986:94). Essa ambivalência é tambémtematizada por MORIN (1984), no seu livro A Culturade Massa no Século XX - o espírito do tempo.

A compreensão mais adequada das críticasmais radicais que ADORNO dirige aos produtos daindústria cultural, exige uma reflexão mais acuradado seu conceito de mediação, categoria-chave na suateoria estética.

"O que eu, na Introdução à Sociologiada Música chamei de 'mediação' nãoé, como Silbermann3 supõe, o mesmoque 'comunicação ', ... De acordo com[o sentido hegeliano do conceito), amediação está na própria coisa [grifonosso), não sendo algo que seja acres-cido entre a coisa e aquelas às quaisela é aproximada ... algo que não se li-mita a perguntar como a arte se situana sociedade, como nela atua, mas que

3Alfons Silbermann, com quem polemizou sobre questões te6ri-co-metodológicas que, a seu ver, devem orientar pesquisas daSociologia da arte e damúsica.

queira reconhecer como a sociedade seobjetiva nas obras de arte" (ADORNO,1986:114).

Na introdução do livro da coletânea Grandes Ci-entistas Sociais dedicada a ADORNO, Gabriel COHN(1986:20) reafirma a central idade que o conceito demediação desfruta na estética adorniana: "Há media-ção da sociedade na obra de arte. Vale dizer, compo-nentes fundamentais do processo histórico-social nointerior do qual a obra é produzida estão incorporadosnela, naforma da obra".

Numa passagem da Teoria Estética, ADORNOé bastante enfático:

Os antagonismos não resolvidos da re-alidade retomam às obras de arte comoos problemas imanentes da sua forma.É isto, e não a trama dos momentosobjetivos, que define a relação da arteà sociedade. As relações de tensão nasobras de arte cristalizam-se unicamentenestas e através da sua emancipação arespeito da fachada fática do exterior,atingem a essência real (ADORNO,1988:16).

Esta é a chave-mestra para a compreensão donúcleo central da estética adorniana e de sua críticacultural. Adorno estabelece uma relação mediata entrea arte e a realidade histórico-social onde foi engendra-da. Como forma sensível particular, a arte autêntica eautônoma não é mero reflexo reiterativo das condiçõesextra-estéticas inscritas na realidade social que a possi-bilitou. Enquanto forma particular, diferencia do todo,para negá-lo. Não negação formal, mas determinada,segundo expressão do próprio autor (Cfr. ADORNO,1988:51).

A alteridade negativa da obra de arte se carac-teriza pela sua figuração como objeto sensível que, paraser percebido esteticamente, tem que negar uma reali-dade anterior. Essa alteridade também caracteriza a obrade arte no processo histórico de sua constituição e desua apreciação, na medida em que, ao superar os limi-tes da expectativa de uma tradição, ela rompe com asnormas sociais existentes. A arte, segundo ADORNO,na sua trajetória rumo à autonomia, tomou parte no pro-cesso de emancipação social, configurado pela suanegatividade, sob um duplo ponto de vista: tanto em re-lação à sua realidade social que a condiciona, como emrelação à sua origem, que a tradição histórica lhe atri-

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bui. Somente quando a arte renuncia a todo servilismo,quando entra em conflito com o poder social e seu pro-longamento na cultura e nos "mores", quando se desco-la do mundo fático, considerando como o seu outro, emanifestando que o mero existente deveria ser de ou-tra forma, uma sociedade "outra", realizando assim suautopia estética de promesse de bonheur, encontramoso verdadeiro sentido social da arte".

"A arte é a antítese social da sociedade, e nãodeve imediatamente deduzir-se desta" (ADORNO,1988: 19). A arte põe, enquanto momento sensível (di-mensão de sua positividade) e expõe a realidade, aomesmo tempo, a nega pela transfiguração recriadorado real. Condicionada pelo seu tempo, e por ser suaforma sensível de expressão, objetivada em obra artísti-ca, a arte internaliza as contradições sociais externas,negando e rompendo os limites que a constrangem.

A concepção de MARCUSE guarda estreita afi-nidade com a estética adorniana:

Podemos tentar definir a forma estéti-ca' como o resultado da transformaçãode um dado conteúdo (fato atual ou his-tórico, pessoal ou social) num todo inde-pendente: um poema, peça, romance, ele.A obra é assim 'extraída' do processoconstante da realidade e assume um sig-nificado e uma verdade autônoma. { ..] Aobra de arte re-presenta assim a realida-de, ao mesmo tempo que a denuncia. { ..]A forma estética constitui a autonomia daarte relativamente ao 'dado' { ..] Formaestética, autonomia e verdade encontram-se interligadas. Constituem fenômenossociohistóricos, transcendendo cada uma arena sociohistórica. Embora esta últi-ma limite a autonomia da arte, fá-lo seminvalidar as verdades trans-histôrica» ex-pressas na obra. A verdade da arte resideno seu poder de cindir o monopólio darealidade estabelecida (i. é, dos que a es-tabeleceram para definir o que é real).Nesta ruptura, que é a realização da for-ma estética, o mundo fictício da arte apa-rece como a verdadeira realidade"(MARCUSE, 1986:21s)5.

4 É no livro póstumo Teoria Estética (1970) onde o conceito denegatividade e sua importância ganham sua mais decidida expres-são no interior da obra adomiana.

5 Os grifos são do próprio autor.

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Em síntese, na concepção frankfurteana, a arteparece provocar um processo de interversão, onde, arealidade fática que aparenta ser verdadeira, é falsa; aarte que a nega, é a verdadeira realidade. À vida falsaou "prejudicada" de que fala ADORNO na MinimaMoralia, se opõe a arte com sua promesse de bonheur,de verdade e liberdade a ser realizada numa sociedade"outra".

Reside aqui, a distinção fundamental entre a ló-gica interna da obra de arte - a mediação da negativi-dade constituidora da arte autônoma - e a lógicainterna da indústria cultural, totalmente subsumida àlógica externa do sistema social que a engendra. Osprodutos da indústria cultural possuem uma relação ime-diata e de dependência com suas condições de produ-ção e as exigências da lógica do mercado. Ao duplicarseu conteúdo social imediato, toma-se pura ideologia.Na obra de arte existe mediação negadora; na indústriacultural, não. Tal imediaticidade presentifica uma espé-cie de saturação do social nos produtos culturais, hiper-reificando-os "[ ... ] as injunções sociais [... ] estãopresentes demais, aderidos a ela [indústria cultural] di-retamente, sem passarem pelo trabalho de sua conver-são para a forma da obra" (COHN, op. cit.:20). Aimediaticidade da indústria cultural é o império dapositi idade. ada é negado. Tudo é reiterado. Ao ana-lisar o efeito da imediaticidade provocado pelo cinema,ADO~ '0 profere que

quanto maior a perfeição com que suastécnicas duplicam os objetos empiricos,mais fácil se torna hoje obter a ilusãode que o mundo exterior é o prolonga-mento sem ruptura do mundo que sedescobre no filme ( ..] o filme adestra oespectador entregue a ele para se iden-tificar imediatamente com a realidade(ADORNO,1991:118s).

A indústria cultural é parasitária, tanto no apro-veitamento das técnicas extra-artísticas, fruto do desen-volvimento das forças produtivas, sem negá-Ias no seucódigo intra-artístico, bem como pela incapacidade deapresentar um substitutivo da aura, aquela "presençade um não-presente" único de que falava WalterBENJAMIM, dela servindo-se oportunisticamente, comouma bruma em decomposição.

Qualquer motivo, seja proveniente da arte supe-rior auratizada, como uma sonata de Beethoven, seja daarte inferior, como um conto do imaginário popular, so-fre a lógica da estética da "fórmula substituindo a for-

ma", ou mesmo da "fórmula antecedendo a forma", an-tecedendo a invenção ou mesmo a própria criação doautor. Estandardização, pseudo-individuação, repetição defórmulas exitosas, eis os ingredientes da receita da lógicamercantil. Um sucesso sucede a um outro, um hit subs-titui a um outro, uma novela copia a outra, em cadeia,numa ética de consumo que absolve o plágio, visto nãomais como delito, mas como unidade estilística exigi dapela lógica do mercado. Na verdade, a receita só alcan-ça êxito repetindo os clichês estereotipados. Uma dascaracterísticas do produto de consumo é sua serventiamenos para esclarecer do que para divertir, menos paranos revelar algo de novo do que "repetir-nos o que jásabíamos, o que esperávamos ouvir e repetir e que é aúnica coisa que nos diverte" (ECO, 1993:298).

ADORNO não nega importância à indústria cul-tural, como fenômeno de peso na cultura contemporâ-nea dominante, desde que a problematize com seriedade,questionando suas qualidades, seu conteúdo de verda-de ou de ausência de verdade, a estética de suas men-sagens reprimidas, etc. "A importância da indústriacultural na economia psíquica das massas não dispensaa reflexão sobre sua legitimação objetiva, sobre seu serem si, mas, ao contrário, a isso obriga" (ADORNO,1986:96). Ao analista não cabe qualquer indulgência irô-nica ou conformismo diante do fenômeno da indústriacultural. A relevância e seriedade dos estudos sobre otema se revelam quando a análise se desloca para aesfera psicológica, para as motivações e o comporta-mento dos consumidores. Onde a indústria cultural semostra mais eficaz nos seus propósitos evasistas, é notempo livre dos consumidores. No capitalismo tardio, otempo de não-trabalho é o prolongamento do mundo dotrabalho, por outros meios. A diversão escapista ofere-cida às massas, por meios tecnológicos, para fugir doquotidiano do trabalho, as coloca novamente em condi-ções de se submeterem a ele. °desenvolvimento técni-co-científico conquistou tamanho poder sobre as massas,durante o seu tempo livre e sobre a sua felicidade, de-terminando tão completamente a fabricação dos produ-tos para o seu entretenimento, que elas não têm acessosenão a cópias e reprodução do seu próprio trabalho.Para escapar do tédio e do sofrimento do processo detrabalho, versão burguesa-tardia do destino trágico deSísifo, "na fábrica e no escritório só se pode escaparadaptando-se a ele durante o ócio" (ADORNO,1991: 128). Adeptos do princípio me engana que eugosto, "os homens caem no logro [...], desde que issolhes dê satisfação por mais fugaz que seja, como tam-bém desejam essa impostura que eles próprio entrevê-em" (ADORNO, 1986:96).

A inclusão do autor nas fileiras dos apocalípticos,conforme a antinomia conceitual de UMBERTO ECO,éjustificada pela crítica demolidora à indústria cultural,denunciando, univocamente, seu caráter ideológico con-fonnista: "As idéias de ordem que ela inculca são sem-pre as do status quo ...Através da ideologia da indústriacultural, o conformismo substitui a consciência; jamaisa ordem por ela transmitida é confrontada com o queela pretende ser ou com os reais interesses dos homens"(idem: 97).

A condição de possibilidade da existência daindústria cultural, deve-se, principalmente, ao encoraja-mento e a exploração da debilidade do eu, consubs-tanciada nos processos regressivos da consciência doshomens, expressos na infantilização dos consumidores.Para ADORNO, reside aí o sucesso maior de umasociedade totalmente administrada, onde a indústria cul-tural desempenha um papel decisivo, onde a dessubli-mação repressiva, na expressão de Marcuse, substituia sublimação da estética autêntica. A indústria culturalé a versão contemporânea do suplício de Tântalo. Pro-meter e, ao mesmo tempo, não cumprir; oferecer e,imediatamente, privar, são uma única e mesma intençãoda indústria cultural.

Eis aí o segredo da sublimação estéti-ca: apresentar a satisfação como a pro-messa rompida. A indústria cultural nãosublima, mas reprime. Expondo repeti-damente o objeto do desejo, [...], elaapenas excita o prazer preliminar nãosublimado que o hábito da renúncia hámuito mutilou e reduziu ao masoquismo...A produção em série do objeto sexualproduz automaticamente seu recalca-mento (ADORNO, 1991, p.131).

A debilidade do eu imposta pela ideologia instru-mental implica a renúncia do direito de julgar o mundo,da possibilidade de julgar °agir dos homens. A marcamaior dessa debilidade implica a perda da subjetividade.° sujeito deixa de ser a sede da articulação daquelasubjetividade, dos valores da cultura. A subjetividade,outrora autônoma, agora subsumida à racionalidade deuma sociedade instrumentalizada, toma-se heterodi-rigida. Nas palavras do próprio autor "ela [indústriacultural] impede a formação de indivíduos autônomosindependentes, capazes de julgar e de decidir conscien-temente" (ADORNO, 1986:99).° projeto civilizatório da Aufklârung, que haviaprometido uma razão emancipadora, libertando os ho-

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mens do medo e da superstição, pelo desenvolvimentotécnico-científico, se frustra. A desmitificação do pró-prio mito é o último dos mitos. O resultado daqueledesenvolvimento provoca o uso pervertido da ciênciae da técnica, com vistas à dominação e instrumen-talização das massas. Progresso científico-tecnológicotraveste-se em antiiluminismo e antidesmitificação, ouseja, " ... a dominação técnica progressiva, se trans-forma em engodo das massas, em meio de tolher a suaconsciência" (idem: 99), impossibilitando assim, a cons-trução de uma sociedade democrática, pois é sua con-dição de possibilidade iniludível, a existência de sujeitosnão tutelados, enfim, de sujeitos autônomos.

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