estereoisomeria_ a interface da tecnologia industrial de medicamentos e da racionalização...

9
Estereoisomeria: A Interface Da Tecnologia Industrial De Medicamentos E Da Racionalização Terapêutica* . REV. BRAS. ANESTESIOL 1998; 48: 5: 390399 ARTIGO DIVERSO Maria P. B. Simonetti, TSA** , Rita Aires Batista*** , Flávio Mauá Chaves Ferreira**** Correspondência para Dra. Maria P. B. Simonetti Alameda Franca, 1436/161 01422001 São Paulo, SP Apresentado em 05 de fevereiro de 1998 Aceito para publicação em 16 de março de 1998 Estereoisomerism: Drug Technology And Therapy Streamlining Interface Unitermos: Anestésicos: Local, Bupivacaína, SBupivacaína; Química: Estereoisomeria Key Words: Anesthetics: Local, Bupivacaine, SBupivacaine; Chemistry: Stereoisomerism Paulatinamente, o anestesiologista vem se apercebendo da volta de uma velha terminologia permeando a literatura especializada moderna. Tratase da incorporação a nosso vocabulário de expressões tais como: carbono assimétrico; enantiômeros, enantiomorfos, antípodas, isômeros ópticos; composto quiral, aquiral; misturas racêmicas, racemado, ou notações como: S(+), S(), RS(±). Na verdade, não são neologismos ou simbologias cabalísticas. Ao contrário, representam a retomada das lições básicas da bioquímica tridimensional, a estereoquímica, necessárias para o entendimento dos mecanismos de ação de medicamentos utilizados na medicina em geral e na anestesiologia, em particular. O Lapso Estereoquímico No Ensino Da Farmacologia Dos Anestésicos Locais O ensino da farmacologia dos anestésicos locais está começando a resgatar um lapso estereoquímico pois se limitava à descrição da geometria estática da molécula e das propriedades físicas decorrentes. Mesmo com a introdução do grupo aminoamida com natureza quirálica (exceção da lidocaína), pode se constatar que houve uma ocultação (premeditada ou não?) da geometria tridimensional da molécula dos anestésicos locais. Neste sentido, a existência de isômeros ópticos nas apresentações comerciais, as quais contêm estes dois compostos na proporção equimolar de 50:50, passou desapercebida. Desapercebida também foi a conseqüência de seu uso que implica na administração ao paciente de dois compostos diferentes, sob o ponto de vista farmacológico. Com a eclosão da controvérsia da bupivacaína, motivada por sua inerente cardiotoxicidade, a respeitabilidade cardiotóxica deste agente permaneceu como um tabu desde sua introdução há 30 anos, muito embora Luduena e col1 e Äberg2 , em 1972, já tivessem descoberto o responsável principal para esta cardiotoxicidade que é um de seus isômeros, o componente dextrógiro. A Que Se Deveu Esse Lapso Estereoquímico? Dizse que foi por falta de tecnologia industrial farmacêutica que justificasse o custo/benefício para a separação de compostos racêmicos3,4 . Pesquisa Básica Versus Tecnologia Farmacêutica Industrial O desenvolvimento tecnológico da indústria farmacêutica deveuse à contribuição da farmacologia básica ao desvendar os mistérios da biologia, particularmente aqueles atinentes à estereoisomeria. Em razão disso, vem se formando uma parceria da indústria de medicamentos com a medicina, pela qual compostos de última geração estão sendo desenvolvidos, propiciando eficácia e segurança para o melhor desempenho clínico. Nesta década, a estereoisomeria está despontando como um imperativo para a racionalização terapêutica5,6 . Existe ainda a globalização, que vem desempenhando um papel preponderante na aproximação da ciência com a tecnologia. E esta proximidade seguramente reformulará o ensino da anestesiologia, particularmente dos anestésicos locais, no que tange à bioquímica tridimensional. Estereoisomeria: Da Tragédia Da Talidomida À Cardiotoxicidade Da Bupivacaína Nos anos 60, um composto sintético racêmico, a talidomida, comercializada como sedativo e utilizado em gestantes para combater os enjôos da gravidez, foi responsabilizado pelo aparecimento de deformidades nos recémnascidos. Este fato levantou o fenômeno da estereoisomeria, ao se demonstrar que um dos isômeros, o levógiro, é o que produz efeitos teratogênicos, conforme demonstrado em embriões de coelhos7 (Figura 1).

Upload: prof-alexsandro-ferreira

Post on 16-Dec-2015

235 views

Category:

Documents


10 download

DESCRIPTION

Estereoisomeria: A Interface Da Tecnologia Industrial De Medicamentos E DaRacionalização Terapêutica

TRANSCRIPT

  • Estereoisomeria:AInterfaceDaTecnologiaIndustrialDeMedicamentosEDaRacionalizaoTeraputica*.

    REV.BRAS.ANESTESIOL199848:5:390399ARTIGODIVERSOMariaP.B.Simonetti,TSA**,RitaAiresBatista***,FlvioMauChavesFerreira****

    Correspondncia para Dra. Maria P. B. Simonetti Alameda Franca, 1436/161 01422001 So Paulo, SP Apresentado em 05 defevereirode1998Aceitoparapublicaoem16demarode1998Estereoisomerism:DrugTechnologyAndTherapyStreamliningInterfaceUnitermos:Anestsicos:Local,Bupivacana,SBupivacanaQumica:EstereoisomeriaKeyWords:Anesthetics:Local,Bupivacaine,SBupivacaineChemistry:StereoisomerismPaulatinamente, o anestesiologista vem se apercebendo da volta de uma velha terminologiapermeandoaliteraturaespecializadamoderna.Tratase da incorporao a nosso vocabulrio de expresses tais como: carbono assimtricoenantimeros, enantiomorfos, antpodas, ismeros pticos composto quiral, aquiral misturasracmicas, racemado, ou notaes como: S(+), S(), RS(). Na verdade, no so neologismos ousimbologias cabalsticas. Ao contrrio, representam a retomada das lies bsicas da bioqumicatridimensional, a estereoqumica, necessrias para o entendimento dos mecanismos de ao demedicamentosutilizadosnamedicinaemgeralenaanestesiologia,emparticular.OLapsoEstereoqumicoNoEnsinoDaFarmacologiaDosAnestsicosLocaisOensinodafarmacologiadosanestsicoslocaisestcomeandoaresgatarumlapsoestereoqumicopoisselimitavadescriodageometriaestticadamolculaedaspropriedadesfsicasdecorrentes.Mesmocomaintroduodogrupoaminoamidacomnaturezaquirlica(exceodalidocana),podeseconstatarquehouveumaocultao(premeditadaouno?)dageometriatridimensionaldamolculadosanestsicoslocais.Nestesentido,aexistnciadeismerospticosnasapresentaescomerciais,as quais contm estes dois compostos na proporo equimolar de 50:50, passou desapercebida.Desapercebidatambmfoiaconseqnciadeseuusoqueimplicanaadministraoaopacientededoiscompostosdiferentes,sobopontodevistafarmacolgico.Com a ecloso da controvrsia da bupivacana, motivada por sua inerente cardiotoxicidade, arespeitabilidadecardiotxica deste agente permaneceu como um tabu desde sua introduo h 30anos, muito embora Luduena e col1 e berg2, em 1972, j tivessem descoberto o responsvelprincipalparaestacardiotoxicidadequeumdeseusismeros,ocomponentedextrgiro.AQueSeDeveuEsseLapsoEstereoqumico?Dizsequefoiporfaltadetecnologiaindustrialfarmacuticaquejustificasseocusto/benefcioparaaseparaodecompostosracmicos3,4.PesquisaBsicaVersusTecnologiaFarmacuticaIndustrialO desenvolvimento tecnolgico da indstria farmacutica deveuse contribuio da farmacologiabsicaaodesvendarosmistriosdabiologia,particularmenteaquelesatinentesestereoisomeria.Emrazodisso,vemseformandoumaparceriadaindstriademedicamentoscomamedicina,pelaqualcompostosde ltima gerao esto sendo desenvolvidos, propiciando eficcia e segurana para omelhordesempenhoclnico.Nestadcada,aestereoisomeriaestdespontandocomoumimperativoparaaracionalizaoteraputica5,6.Existeaindaaglobalizao,quevemdesempenhandoumpapelpreponderante na aproximao da cincia com a tecnologia. E esta proximidade seguramentereformular o ensino da anestesiologia, particularmente dos anestsicos locais, no que tange bioqumicatridimensional.Estereoisomeria:DaTragdiaDaTalidomidaCardiotoxicidadeDaBupivacanaNosanos60,umcompostosintticoracmico,atalidomida,comercializadacomosedativoeutilizadoem gestantes para combater os enjos da gravidez, foi responsabilizado pelo aparecimento dedeformidades nos recmnascidos. Este fato levantou o fenmeno da estereoisomeria, ao sedemonstrar que um dos ismeros, o levgiro, o que produz efeitos teratognicos, conformedemonstradoemembriesdecoelhos7(Figura1).

  • MalformaoFetaldevidoaoUsodeTalidomida(compostoracmico)emPacienteGrvida25Em1979,Albright8denunciou a toxicidade da bupivacana e da etidocana.Embora a bupivacanatenhasidoreconhecidacomoisomrica,nosefezcorrelaoentresuacardiotoxicidadepeculiareanaturezaestereoisomricadesteanestsico local,mesmosobo impactoproduzidopela tragdiadatalidomida.Defato,depoisquemuitosmilhesdedlaresforamgastosempesquisasnatentativadedesvendar a cardiotoxicidade da bupivacana e os meios teraputicos para sua reverso, surgiu oderivadopipecolidilxilidida,a(p)ropivacanaapenascomoalternativaparaabupivacana.Naverdade,esteanestsico localnasceucomomisturaracmica(LEA103),ealgunsensaiosprclnicos foramrealizadossobestaapresentao9.Coincidentemente,comoadventodatecnologiadeseparaodecompostos isomricos em escala industrial, o agente (p) ropivacana foi separado e avaliadoclinicamente,destavezcomoismerolevgiropuro,aropivacana.Estereoisomeria:AIlaoEntreOsSculos19E21Abioqumicatridimensional,aestereoqumica,nasceunocomeodosculopassado,naFrana,comEtienneLouisMalus,quedemonstrouem1808quealuzordinria,vibraeseletromagnticasdeumconjuntodediferentescomprimentosdeondasequevibramemdiferentesplanos,aoatravessarumcristal de quartzo, polarizava essas vibraes em um s plano, resultando na luz polarizada10. Aobservaodestefenmenolevouaconstruodopolarmetro(Figura2).

    RepresentaoEsquemticadaLuzPolarizadaedoPolarmetro(18081815)Com base nessas evidncias, o fsico Jean Baptist Biot, em 1915, desenvolveu a estereoqumicaorgnicaaoobservarqueassoluesdecompostosnaturais(cnfora,acar,cidotartrico)giravamoplanodaluzpolarizada,quandoanalisadosatravsdopolarmetro10.Dissymtrie:AGenialidadeDePasteurLouisPasteurestavainteressadoemcristalografiaeestudavaoscristaisdocidotartricoencontradonasuvas,umproduto secundrio da indstria vincola e abundante naquele pas.Neste passo dosacontecimentos,umfatocircunstancialfavoreceuaformaodacadeiaquelevouaograndefeitodePasteur.AteoriadaatividadepticadeBiotcomeavaacairnodescrditoporqueoprodutodacristalizaodocido tartrico, encontrado nas fases avanadas da fermentao do vinho, o cido racmico deBerzelius, descrito em 1831, o sal sdicoamnico do cido racmico (racemus, em Latin, significacachodeuva),nodemonstravaatividadeptica.EntoPasteurfoidesafiadoadesvendaraausncia

  • deatividadepticadestecomposto,desdequeocidodeBerzeliuseraocidotartricocristalizado,omesmoquePasteurhaviademonstradoseropticamenteativo(Figura3).

    SeparaodosCristaisdoTartaratoSdicoAmnico(cidoRacmicodeBerzelius)Pasteur,1846Contaahistria10quePasteur,compacinciabeneditina,munidodeumplodevacaespecialmenteafiadoeumalente,separouoscristaisdocidoracmicoemdoisconjuntos:umdelescontinhacristaisfacetados direita e o outro, cristais facetados esquerda. (Pasteur j havia demonstrado que oscristaiseramhemidricosefacetadosdistintamente).Emseguida,Pasteurdissolveucadaconjuntodecristaisemgua,realizandoanlisesindividuaisnopolarmetro.Observouqueoconjuntocomcristaisfacetadosparaaesquerdadesviavaa luzparaaesquerda (Lcido tartrico)enquantoqueopostoaconteciacomoconjuntodecristais facetadosparaadireita, isto,odesvioda luzse faziaparaadireita (dtartrico). Cabe mencionar que a dissoluo dos cristais fazia desaparecer a formageomtrica(cristalina),oquefezPasteurpressuporqueapropriedadepticaerainerentemolcula.Curiosamente, quando ambos os conjuntos eram misturados desaparecia a atividade ptica, poissendoosdoiscompostosopticamenteativos,estaatividadeseanulava.AgenialidadedePasteurfoi,contudo,anteveraexistnciadadissymtriedamolcula,antecipandoasteoriasdeKekulem1858(docarbonode4valncias)edevantHoffeLeBelem1874,(docarbonotetradico),pelasquaisasvalnciasdocarbonoeramocupadasportomosougrupodetomosedirecionadosparaabasedeumapirmide.Adissymetriemolecular,foiassociadaporPasteuraoquetemosmaisprximodens:nossas mos, que so imagens de espelho e que no se sobrepem. (O termo dissymtrie foitraduzidoimprecisamenteparaassimetria).Ocarbonoassimtricopermitiria,portanto,aexistnciadedois compostos, os enantimeros, enantiomorfos, (enantio, em Grego, significa oposto). Osenantimerosapresentamasmesmaspropriedadesfsicoqumicas,comexceodaatividadeptica,pormtmpropriedadesfarmacolgicasdiferentes.(Figura4).

    Imagem do Carbono Assimtrico no Espelho, Mostrando a Existncia de Enntimeros e da Ausncia deSobreponibilidadeQuiralidade,ConfiguraoMolecularERegrasDeSeqnciasEm 1956, Lord Kelvin cunhou a palavra quiral (do Grego, cheir, mo) para designar o carbonoassimtrico.O termopassouadefinir todasubstnciaque temumoumais carbonos,aosquais se

  • ligamtomosougruposdetomosdiferentes11.Conhecida a atividade ptica, que uma propriedade fsica resultante da interao da luz com aspartculascarregadasdamolcula, restava identificaraconfiguraoabsolutadamolcula, isto,adisposioespacialdostomosouconjuntosdetomosligadosaocarbonoquiral.Istosfoipossveldepois da introduo de um mtodo especializado de difrao de raios X em 1951, capaz dedeterminaro verdadeiroarranjoespacial dostomos de um composto opticamente ativo, isto , asdiferentes posies que ocupam no espao11. Curiosamente, o composto analisado foi o dcidotartrico, omesmoquePasteur quase exatamente 100 anos antes usou para descobrir a isomeriaptica.ComoSeDispemOstomosEmTornoDoCarbonoQuiralOuQuemQuemNumaMisturaRacmica?Adisposiodostomosemtornodocarbonoassimtricoconstituisuaconfiguraoabsoluta.Paraanormalizao da configurao absoluta, desde que a quiralidade confere a existncia de doiscompostos que so imagens de espelho, sem sobreponibilidade, foram criadas as Regras deSeqncias,porCahn,IngoldePrelog,em1951.Emlinhasgeraisestasregrasestabelecemqueocomposto tem configurao direita quando o tomo ou grupo de tomos demaior massa atmicacomandaaorientaodosoutros(commenormassaatmica).Seafavordosponteirosdorelgioaconfigurao direita, se o comando se faz no sentido contrrio aos ponteiros do relgio aconfiguraoditaesquerda11(Figura5).

    ConfiguraoMolecularAbsolutaExs:S() bupivacana,R(+) bupivacana,S(+)mepivacana, R()mepivacana, S(+)cetamina,R()cetamina*Cahn,IngoldePrelog,1956Em razo disto, os compostos quirlicos receberam uma nova nomenclatura: R (em Latin rectus,direito)eS(emLatin,sinister,esquerdo),acrescidodosinal (+)ou(),deacordocomseupoderdedesviaroraiode luzpolarizada.Estasduasnotaes:aconfiguraomoleculareaatividadepticasoindependentes,esuascombinaessecomportamcomosefossemaimpressodigitaldeumdosenantimerosdocompostoquirlico,postoqueestascaractersticassoimutveis.Assim, o composto quirlico mepivacana, que contm dois enantimeros, um deles desvia a luzpolarizada para direita enquanto sua configurao absoluta esquerda e viceversa para o outroenantimero.[S(+)mepivacanaR()mepivacana].Enquantoqueabupivacanatemumdosismeroscujaconfiguraomoleculardireita,desviandoaluz polarizada para a direita, o contrrio ocorre com seu antpoda. [R(+) bupivacana e S()bupivacana].Outros agentes, como a cetamina, cetorolaco, obedecem a estasmesmas regras de seqncias eestosendodesignadoscomestanovanomenclatura,queadotadauniversalmente.Seocomposto racmicoanotaoseraseguinte:RS(), representandoamisturasdosdoisenantimeroseosinal () representa a ausncia de atividade ptica, seguido do nome do composto. [RS ()bupivacana,RS()prilocana].Existem,contudo,anomenclaturaantigaqueseconsagrouepelaqualsoconhecidas,aLdopa,aDtubocurarina,aLarginina.InteraoTridimensionalEntreQuiralidades:DrogaReceptorOorganismoummeioquiralporqueanaturezaescolheumolculascomumaquiralidadeparticularparaconstruir suaestruturabiologicamenteativa:osaminocidos (Laminocidos) que formamasprotenaseoDNA.Soquirlicos:receptores,enzimasesistemastransportadores12.Porisso,muitassubstncias naturais (derivadas de plantas e sintetizadas pelo organismo) so estereosseletivas,obtidasatravsdasnteseenzimticaquespodeproduzirumenantimero.Comoexemplodesubstncianaturaistemos,aLcocana,aLmorfina,aDtubocurarina,anorepinefrinaeaepinefrina.

  • Em contrapartida, na sntese industrial de compostos quirlicos, invariavelmente obtmse ambosenantimeros,resultandoemcompostosracmicos.A interao drogareceptor se faz tridimensionalmente entre o composto quirlico e o receptorquirlico.Desta tridimensionalidade resultamas diferenas significativas na afinidade e na atividadeintrnseca de cada enantimero com o receptor13. Para facilitar o entendimento desta interaocostumasefazerumaanalogiacomamoealuva.Porexemplo:oreceptorsendoumaluvadireita,estaluvasvestirconfortavelmenteumamodireita(droga).Amesmaanalogiasefazparaaluvaesquerda, (receptor)que tambmsvestir confortavelmente amoesquerda (drogas).Quando oreceptoraquiral,aanalogiafeitacomasmeiasquevestemindistintamentequalquerumdosps12(Figuras6e7).

    Analogia da Luva e das Mos Utilizadas para o Entendimento da Ligao Estereosseletiva entre o Receptor e oCompostoEstereoisomrico

    Analogia do P das Meias para explicar a Ausncia de Quiralidade do Receptor na Ligao com CompostosEstereoisomricosDestemodo,oefeitofarmacolgicodifereemconformidadecomambasquiralidades:doreceptoredocomposto. Estas diferenas tambm so encontradas na interao dos compostos quirlicos comenzimas e sistemas transportadores, de modo a interferir na farmacocintica de uma droga(biotransformao,ligaoaprotenasplasmticas).Quiralidade:ImportnciaParaOsAnestsicosLocaisAs diferenas biolgicas entre os enantimeros da cocana foram descritas porMaier, em 1920. Acocana um produto natural levgiro e no incio deste sculo foi obtida sinteticamente a formadextrgira,quelheatriburammenortoxicidade.Em1920aCompanhiaMerckcomercializouoacetatoda pseudocana, a cocana dextrgira com o nome de Psicana. As pesquisas recentes e maissofisticadas,contudo,demonstraramquealigaococanadextrgiracanaldesdio50vezesmaisestereoespecficaparaocanaldesdio,doquedacocana levgira14,deJong15 refereseaestaestereoespecificidade e comenta: esta evidncia no foi seriamente explorada at que acardiotoxicidadedabupivacanatornouseumproblemadesadepblica.

  • CardiotoxicidadeDaBupivacana:UmaControvrsiaAalta incidnciadeparadacardacasbitaassociadabupivacanaeetidocana,denunciadaporAlbright,foirecebidacomceticismoouatdescrdito.Mesmoassim,ensejouinvestigaesbsicasasquaisdemonstraramqueomecanismodacardiotoxicidadecomplexo.Oefeitocardiotxicoocorreporaodiretanocoraoouindiretamentedevidoaobloqueiodainervaosimpticacardaca16ouporaomediadapelosistemanervosocentralinduzindodisritmiasfatais17.Estacardiotoxicidadefoiconsiderada ser de origem eletrofisiolgica (alargamento do complexo QRS, disritmias e fibrilaoventricular),muitoemboraalgunsestudosdemonstrassemqueamortedosanimais(ces)intoxicadoseradevidaaocolapsocardiocircultorio,mesmonaausnciadedistrbiosderitmo18.ComosestudoseletrofisiolgicosdeClarksoneHondeghem19 foi possvel estabelecero tempodepermannciadabupivacanaedalidocananoscanaisdesdio,tendosidocunhadaasexpresses:fastinslowoutefastinfastout,comasquaisestesanestsicoslocaispassaramaserrotulados,respectivamente.EstereisomeriaEMecanismoDaCardiotoxicidadeDaBupivacanaAs investigaes bsicas iniciais com a bupivacana foram conduzidas com mistura racmica. Em1991, Vanhoutte et al20 foram os primeiros a realizar estudos eletrofisiolgicos com a bupivacanaresolvida(separadaemseusenantimeros).EstesautoresdemonstraramatividadedepressoramenorcomaS()bupivacanaemrelaoR(+)bupivacanasobreavelocidademximadedespolarizao(Vmax),nomsculopapilardecobaia.EsteestudosucedeuostrabalhosiniciaisdeLuduenaetal1ebergetal2, que observarammenor toxicidade (30%a 40%) coma bupivacana levgira, quandoadministradanaveiadeanimais,comparativamentebupivacanadextrgira.Desta maneira, uma vez reconhecida a natureza estereoisomrica da bupivacana e portanto aexistncia de duas molculas gmeas na composio comercial deste agente, as pesquisasprosseguiram sob esta tica. O grupo de Denson21 encontrou diferena entre os efeitos dosenantimeros nos neurnios do ncleo do trato solitrio, os quais exercem um papel modulatrioassociadocardiotoxicidadedabupivacana, o quepermitiu inferir a existncia de um componenteestereoespecfico que seria responsvel pelo aparecimento de disritmias e alteraescardiovasculares.Domesmomodo,Mazoitetal22encontraramefeitodepressormenos intensoemcorao isolado e em nossomeio Simonetti23,demonstrou a menor potncia cardiodepressora dalevobupivacana em relao bupivacana racmica (comercialmente disponvel), em ratos. Estasinvestigaesforamconduzidasnomarcapassoatrial(cronotropismo)enaforadecontraodotrioesquerdoestimuladoeletricamente(inotropismo),confirmandoosresultadosdaliteratura(Figuras8e9).

    Efeito da Levobupivacana Comparada Bupivacana Racmica na Fora de Contrao (inotropismo) de triosEsquerdosEstimuladosEletricamente.PercentagemdaDiminuiodaForadeContraoAtrialcomConcentraesCrescentesdosDoisAnestsicos

  • Efeito da Levobupivacana Comparada Bupivacana Racmica no Marcapasso Atrial Direito (cronotropismo).PercentagemdaParadaAtrialcomConcentraesCrescentesdosDoisAnestsicosLocaisAEstereoisomeriaEATecnologiaIndustrialDeSeparaoDaBupivacanaNoMundoComoadventodatecnologiaderesoluo(separaodosismerospticosnumamisturaracmica)em escala industrial, foi possvel a comercializao do primeiro anestsico local ismerico, aropivacana.Porsuaspropriedadesfsicoqumicas,conferidaspeloradicalpropilligadoaoesqueletopipecolilxilidida, este anestsico local exibe caractersticas farmacolgicas prprias. Em termos deatividadebloqueadoradenervo,avaliadacomdosesequipotentes,aropivacanamostrousermenospotente que a bupivacana racmica, porm significativamente menos depressora quanto cardiotoxicidadepotencial9.Emrazodesteperfilfarmacolgicoecomembasamentonos resultadosobtidoscomoismerolevgirodabupivacanaatravsdaexperimentaoprclnica(queevidenciamuma menor propenso para a toxicidade cardaca mas com potncia bloqueadora de nervosemelhante a forma racmica), a industria farmacutica se lanou na estratgia de preparao dalevobupivacana, descontaminandoa do componente cardiodepressor, o ismero dextrgiro24. OReino Unido e o Brasil esto adotando esta tecnologia de ltima gerao, individualmente, e aspesquisasestonasfasesavanadasdainvestigaoclnicanestespases(Figuras10e11).

    Enantimeros

  • BupivacanaRacmicaEstereisomeria:OEstadoDaArteA primeira e a mais contundente advertncia para a importncia da estereoisomeria foi feito porriens5,aoalertarospesquisadoresdequeadesconsideraocomaestereoisomerianapesquisamdicaseriaumasofisticadafaltadesensona farmacologiaclnicae farmacocintica.Ruffolo6,porsuavez,vemconclamandoosrgosgovernamentaisreguladores (noBra,SecretariadeVigilnciaSanitriadoMinistrio daSade) a no permitir o licenciamento demedicamentos novos que nosejammolculas isomricas puras, amenos que razesmdicas justifiquem a existncia da formaracmica.Paripassocomesta conscientizaoestereoisomrica, comeouase formaraparceriada indstriafarmacuticacomamedicinaemgeraleaanestesiologiaemparticular.Cerca de 82% dos medicamentos utilizados na Teraputica Clnica, so compostos quirlicos eapresentados sob a forma racmica, segundo Manson24, enquanto Calvey13 listou os agentesquirlicoseaquirlicosutilizadosnaprticaanestesiolgica13(QuadroI).

    QUADROIAgentesAquirlicoseQuirlicosusadosnaAnestesiologia

    Aquirlicos Quirlicos1)Ismero

    Quirlicos2)Ismerosracmicos

    Propofol Etomidato TiopentalxidoNitroso Ropivacana MetohexitalCloprocana Tubocurarina CetaminaLidocana Morfina HalotanoTetracana Hioscina EnfluranoGalamina Alcurnio IsofluranoFentanil PrilocanaPetidina Mepivacana

    Neostigmina BupivacanaEdofrnio EtidocanaDopamina AtropinaSevoflurano Dobutamina

    GlicopirrolatoA relao custo/benefcio favorvel na obteno de ismeros puros se baseia nas vantagensexpressivas que esta tecnologia de separao de irmos gmeos trar para a racionalizaoteraputica.Senovejamos:ropivacana,levobupivacana(jdiscutidas)prilocana,cujoenantimeroR()maisrapidamentemetabolizado,produzindoumaconcentraoplasmticamaisaltadeambas:

  • otoludinaemetahemoglobina)cetamina:ainduodareaodeemergnciapsquicamanifestadacomesteagentesedeveaoismeroR()cetaminaverapamil:queseencontranafasederesoluovisandoaeliminaodadepressodavelocidadedeconduocardaca,promoveesteefeitocolateralindesejveldevidoaoismerolevgiro13.ConcluindoeparafraseandoManson25que invocoua filosofiadosMestresZen, (baterpalmascomumanicamo,associandoaestereoisomeria), este conceito figurativo,mereceser visto comoomodelo para a sntese industrial de novos compostos medicamentosos, e que seguramente seconstituirnumarealidadeparaestesegundomilnio,emtermosderacionalizaoteraputica.REFERNCIAS

    1. LuduenaFP,BogadoEF,TullarBFOpticalisomersofmepivacaineandbupivacaine.ArchIntPharmacodynTher,1972200:359369.

    2. AbergGToxicologicalandlocalanaestheticeffectsofopticallyactiveisomersoftwolocalanaestheticcompounds.ActaPharmacolToxicol,197231:273286.

    3. ReynoldsFRopivacaine.Anaesthesia,199146:339340.4. EganTDStereochemistryandanestheticpharmacology:joininghandswithmedicinalchemists.AnesthAnalg,199683:447450.5. Ariens EJStereochemistry, a basis for sophisticated nonsense in pharmacokinetics and clinical pharmacology, Eur J Clin

    Pharmacol,198426:663668.6. RuffoloJrRRGenericnamesneedstereochemicalinformation.Signsofsupport.TrendsPharmacolSci,199011:61.7. BowmanWC,RandMJReproductivesystemanddrugsaffectingthereproductivesystem,em:BowmanRR,RandMJTextbook

    ofPharmacology,Melbourne,BackwellScientificPublication,198420.120.62.8. AlbrightGACardiacarrestfollowingregionalanesthesiawithetidocaineorbupivacaine,Anesthesiology,197951:285286.9. McClureJHRopivacaine.BrJAnaesth,199676:300307.

    10. Fieser LF,Fieser MStereochemistry, em: Fieser LF, Fisier MAdvanced organic chemistry, New York, Reinhold PublishingCorporation,1961:66104.

    11. MorrisonRT,BoydRNStereoisomers,em:MorrisonRT,BoydRNStereochemistry.NewYork,OmegaScientific, 198712341263.

    12. Tucker GTChirality and its relevances to local anaesthetics, em: Tucker GT.150 Years on 11th World Congress ofAnaesthesiologists,199697101.

    13. CalveyTNChiralityinanaesthesia.Anaesthesia,199247:9394.14. WangGKBindingaffinityandstereoselectivityof localanesthetics insinglebatrachotoxinactivatedNa+channels.JGenPhysiol,

    199096:11051127.15. DeJongRHCardiovascularsystemeffects,em:deJongRHLocalanesthetics,2thEd,Boston,Mosby,1994304344.16. HotvedtR,RefsunH,HelgessenKGCardiacelectrophysiologicandhemodynamiceffectsrelatedtoplasmalevelsofbupivacaine

    inthedog.AnesthAnalg,198564:388394.17. ThomasRD,BehbehaniMM,CoyleDEetalCardiovasculartoxicityoflocalanesthetics:analternativehypothesis.AnesthAnalg,

    198665:444450.18. LiuP,FeldmanHS,CovinoBMetalAcutecardiovasculartoxicityofintravenousamidelocalanestheticsinanesthetizedventilated

    dogs.AnesthAnalg,198261:317322.19. ClarksonCW,HondeghemLM.Mechanismforbupivacainedepressionofcardiacconduction:fastblockofsodiumchannelsduring

    theactionpotentialwithslowrecoveryfromblockduringdiastole.Anesthesiology,198562:396405.20. Vanhoutte F, Verreecke J, Verbeck N et alStereoselective effects of enantiomers of bupivacaine on the electrophysiologic

    propertiesoftheguineapigpapillarymuscle.BrJPharmacol,1991103:12751281.21. Denson DD, BehberhaniMM,Gregg RVEnantiomerspecifc effects of an intravenously administered arrhythmogenic dose of

    bupivacaine on neurons of the nucleus tractus solitarius and the cardiovascular system in the anesthetized rat. Reg Anesth,199217:311316.

    22. Mazoit JX, Boico O, Samii KMiocardial uptake of bupivacaine:II Phamacokineties and pharmacodynamics of bupivacaineenantiomersonisolatedperfusedrabbitheart.AnesthAnalg,199377:477482

    23. Simonetti MPBS() bupivacaine and RS()bupivacaine:a comparison of effects on the right and left atria of the rat. RegAnesth,.199722(Supp)2S:58.

    24. SimonettiMPBAcontribuiodaquiralidadenaqualidadetotalnaAnestesiaRegional.RevBrasAnestesiol,199747:86.25. MasonSThelefthandofnature.NewScientist.19841393:1014.