racionalização subversiva: tecnologia, poder e democracia1

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Racionalização Subversiva: Tecnologia, Poder e Democracia 1 Andrew Feenberg I.Os Limites da Teoria Democrática A tecnologia é uma das maiores fontes de poder nas sociedades modernas. Quando as decisões que afetam nosso dia-a-dia são discutidas, a democracia política é inteiramente obscurecida pelo enorme poder exercido pelos senhores dos sistemas técnicos: líderes de corporações, militares e associações profissionais de grupos como médicos e engenheiros. Eles possuem muito mais controle sobre os padrões de crescimento urbano, o desenho das habitações e dos sistemas de transporte, a seleção das inovações, nossa experiência como empregados, pacientes e consumidores do que o conjunto de todas as instituições governamentais de nossa sociedade. Marx constatou o início desta situação no meio do século XIX. Ele argumentava que a tradiconal teoria democrática teria errado ao tratar a economia como um domínio extra-político, regido por leis naturais como a lei da oferta e da demanda. Afirmava que permaneceremos alienados e sem uma verdadeira cidadania enquanto não tivermos vóz ativa no processo das decisões industriais. A democracia deve ser estendida do domínio político para o mundo do trabalho. Esta é a demanda fundamental por detrás da idéia de socialismo. As sociedades modernas foram desafiadas por esta demanda pôr mais de um século. A teoria da política democrática não oferece nenhuma razão convincente de princípios que possas rejeitar a mesma. De fato, muitos teóricos democráticos a endossam. 2 Além disso, em muitos países, as vitórias parlamentares ou as revoluções levaram ao poder partidos voltados para o seu alcance. Porém, ainda hoje, parece que não estamos mais perto da democratização industrial do que nos tempos de Marx. Este estado de coisas é explicado por uma entre as duas seguintes formas. Por um lado, o ponto de vista do senso comum considera que a tecnologia moderna é incompatível com a democracia no mercado trabalho. A teoria democrática não pode pressionar, de forma consistente, por reformas que poderiam destruír as fundações econômicas da sociedade. Para provar isto basta considerar o caso soviético: embora fossem socialistas, os comunistas não democratizaram a indústria, e a democracia atual da sociedade soviética só vai até ao portão da fábrica. Pelo menos, na ex-União Soviética, todo mundo concordava com a necessidade de uma administração industrial autoritária.

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Racionalização Subversiva: Tecnologia, Poder e Democracia1

Andrew Feenberg

I.Os Limites da Teoria Democrática

A tecnologia é uma das maiores fontes de poder nas sociedades modernas. Quando as decisões que afetam nosso dia-a-dia são discutidas, a democracia política é inteiramente obscurecida pelo enorme poder exercido pelos senhores dos sistemas técnicos: líderes de corporações, militares e associações profissionais de grupos como médicos e engenheiros. Eles possuem muito mais controle sobre os padrões de crescimento urbano, o desenho das habitações e dos sistemas de transporte, a seleção das inovações, nossa experiência como empregados, pacientes e consumidores do que o conjunto de todas as instituições governamentais de nossa sociedade.

Marx constatou o início desta situação no meio do século XIX. Ele argumentava que a tradiconal teoria democrática teria errado ao tratar a economia como um domínio extra-político, regido por leis naturais como a lei da oferta e da demanda. Afirmava que permaneceremos alienados e sem uma verdadeira cidadania enquanto não tivermos vóz ativa no processo das decisões industriais. A democracia deve ser estendida do domínio político para o mundo do trabalho. Esta é a demanda fundamental por detrás da idéia de socialismo.

As sociedades modernas foram desafiadas por esta demanda pôr mais de um século. A teoria da política democrática não oferece nenhuma razão convincente de princípios que possas rejeitar a mesma. De fato, muitos teóricos democráticos a endossam.2 Além disso, em muitos países, as vitórias parlamentares ou as revoluções levaram ao poder partidos voltados para o seu alcance. Porém, ainda hoje, parece que não estamos mais perto da democratização industrial do que nos tempos de Marx.

Este estado de coisas é explicado por uma entre as duas seguintes formas. Por um lado, o ponto de vista do senso comum considera que a tecnologia moderna é incompatível com a democracia no mercado trabalho. A teoria democrática não pode pressionar, de forma consistente, por reformas que poderiam destruír as fundações econômicas da sociedade. Para provar isto basta considerar o caso soviético: embora fossem socialistas, os comunistas não democratizaram a indústria, e a democracia atual da sociedade soviética só vai até ao portão da fábrica. Pelo menos, na ex-União Soviética, todo mundo concordava com a necessidade de uma administração industrial autoritária.

Por outro lado, uma minoria de teóricos radicais afirma que tecnologia não é a responsável pela concentração do poder industrial. Esta é uma questão política que está relacionada à vitória do capitalismo e das elites comunistas nas lutas com o povo. Sem nenhuma dúvida, a tecnologia moderna tem contribuido para a administração autoritária, mas em um contexto social diferente poderia muito bem, ser operacionalizada democraticamente.

A seguir, argumentarei por uma versão qualificada desta segunda posição, um pouco diferente da versão marxista habitual e das formulações social-democráticas. Essa qualificação se preocupa com o papel da tecnologia que eu vejo nem como determinante, nem como neutro. Argumentarei que as modernas formas de hegemonia estão baseadas na mediação técnica de uma variedade de atividades sociais, seja na produção ou na medicina; na educação ou no

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exército e que, conseqüentemente, a democratização de nossa sociedade requer tanto mudanças técnicas radicais quanto mudanças políticas.

Esta é uma posição controvertida. A tecnologia, na visão do senso comum, limita a democracia ao poder do estado. Em oposição, acredito que, a menos que a democracia possa ser estendida além de seus limites tradicionais para dentro dos domínios tecnicamente mediados da vida social, seu valor de uso continuará declinando, sua participação vai se esvanecer e as instituições que identificamos como sendo parte de uma sociedade livre desaparecerão gradualmente.

Volto, agora, para o background do meu argumento. Começarei apresentando um sumário das várias teorias que afirmam que, na medidada que as sociedades modernas dependem da tecnologia, elas requerem uma hierarquia autoritária. Estas teorias pressupõem uma forma de determinismo tecnológico que é refutado através de argumentos históricos e sociológicos, que resumirei brevemente. Apresentarei então um esboço de uma teoria não-determinista da sociedade moderna que chamo de "teoria crítica da tecnologia." Este approach alternativo enfatiza aspectos contextuais da tecnologia ignorados pela visão dominante. Argumentarei que a tecnologia não é só o controle racional da natureza; tanto o seu desenvolvimento como seu impacto são intrinsicamente sociais. Mostrarei, então, que esta minha perspectiva enfraquece substancialmente a confiança habitual na questão da eficiência como critério de desenvolvimento tecnológico. Tal conclusão, por sua vêz, abre largas possibilidades de mudanças que foram excluídas pela compreensão habitual que se tem da tecnologia.

II.Modernidade Distópica

A famosa teoria de Max Weber sobre a racionalização é o argumento original contra a democracia industrial. O título deste ensaio insinua uma reversão provocativa nas conclusões de Weber. Ele definiu racionalização como o papel crescente do controle da vida social, uma tendência que conduzia ao que ele chamou de a 'gaiola de ferro' da burocracia3. Racionalização "subversiva" é,assim, uma contradição de termos.

Once traditionalist struggle against rationalization has been defeated, further resistance in a Weberian universe can only reaffirm irrational life forces against routine and drab predictability

Com o fracasso da luta do tradicionalismo contra a racionalização , uma maior resistência no universo weberiano pode somente reafirmar os impulsos irracionais contra a rotina e a enfadonha previsibilidade. Este não é um sistema democrático, mas um sistema romântico distópico que já tinha sido previsto nas "Memórias do Subterrâneo" de Dostoievsky1 e em várias ideologias naturalistas.

Meu título significa a rejeitação à dicotomia entre hierarquia racional e o protesto irracional implícito na posição de Weber. Se a hierarquia social autoritária é verdadeiramente uma dimensão contingente do progresso técnico, como acredito, e não uma necessidade técnica, então deve haver um modo alternativo de racionalizar a sociedade que leve à democracia ao

1 Nota do tradutor: a única referência a este texto, em português, foi encontrada na edição de 1963, Vol .II

das Obras Completas de Dostoievsky - Obras de Transição: Humilhados e Ofendidos (1861), Memórias da Casa dos Mortos (1860), Uma História Aborrecida (1862), Notas de Inverno sobre Impressões de Verão (1862-1863), Memórias do Subterrâneo (1864) - Romances da Maturidade: Crime e Castigo (1867) - Ed. Aguilar - Rio de Janeiro - Brasil - 1.238 p.

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lugar de formas centralizadas de controle. Nós não precisamos voltar às cavernas ou ao mundo indígena para preservar valores ameaçados como a liberdade e a individualidade.

Mas as críticas mais contudentes à sociedade tecnológica moderna seguem diretamente os passos de Weber, rejeitando a possibilidade que apresentamos. Quando afirmo tal ponto, estou colocando em foco a formulação de Heidegger sobre 'a questão da tecnologia' e a teoria de Ellul sobre "o fenômeno técnico".4 De acordo com estas teorias, nós nos tornamos pouco mais que objetos da técnica, incorporados em um mecanismo que nós mesmos criamos. Como Marshall McLuhan afirmou, certa vêz, a tecnologia nos reduziu a "órgãos sexuais das máquinas." A única esperança é uma vaga renovação espiritual que é muito abstrata para dar forma a uma nova prática técnica.

Estas são teorias interessantes, mas apenas tenho tempo para pagar tributo à principal contribuição delas, ao abrir o espaço de reflexão sobre a tecnologia moderna. Ao lugar disto, para aprofundar meu argumento, irei me concentrar na sua falha principal: a identificação da tecnologia em geral com as tecnologias específicas que se desenvolveram no último século no Ocidente. Estas são tecnologias de conquista que aparentam ter uma autonomia sem precedentes; suas origens sociais e impactos estão escondidos. Discutirei que este tipo de tecnologia é uma característica particular de nossa sociedade e não uma dimensão universal da 'modernidade' como tal.

III.Determinismo Tecnológico

O determinismo se baseia na suposição de que as tecnologias têm uma lógica funcional autônoma que pode ser explicada sem se fazer referência à sociedade. Presumivelmente a tecnologia é só social apenas em relação ao propósito ao qual serve, e propósitos estão na mente do observador. A tecnologia se assemelharia assim à ciência e à matemática devido sua intrínsica independência do mundo social.

No entanto, diferentemente, da ciência e da matemática, a tecnologia tem impactos sociais imediatos e poderosos. Poderia parecer que o destino sociedade é, pelo menos, parcialmente dependente de um fator não-social que influencia isto sem, no entanto, sofrer uma influência recíproca. Isto é o que significa "determinismo tecnológico."

As visões distópicas da modernidade que eu tenho descrito são deterministas. Se nós quisermos afirmar as potencialidades democráticas da indústria moderna, então teremos que desafiar as premissas do seu determinismo. Chamarei estas premissas de tese do progresso unilinear e a tese de determinação pela base. Eis um breve resumo destas duas posições:

1. O progresso técnico aparece seguir um curso unilinear, um curso fixo, de configurações menos avançadas para as mais avançadas. Embora esta conclusão possa parecer óbvia a partir de um olhar retrospectivo sobre o desenvolvimento técnico que qualquer objeto que nos seja familiar, de fato, tal conclusão se baseia em duas asserções de plausibilidade desigual: primeiro, que o progresso técnico procede a partir de níveis mais baixos de desenvolvimento para os mais altos; em segundo, que este desenvolvimento segue uma única sucessão de fases necessárias. Como veremos, a primeira asserção o é independente da segunda e não é necessariamente determinista.

2. O determinismo tecnológico também afirma que as instituições sociais têm se adaptar aos "imperativos” da base tecnológica. Esta visão que, sem nenhuma dúvida, tem sua fonte em uma certa leitura de Marx, é agora parte do senso comum das ciências sociais. 5 Abaixo,

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discutirei em detalhes uma de suas implicações: o suposto “trade-off” 2 entre prosperidade e ideologia ambiental.

Estas duas teses do determinismo tecnológico apresentam uma versão descontextualizada, onde a tecnologia é auto-geradora e o único fundamento da sociedade moderna. O determinismo assim insinua que nossa tecnologia e suas estruturas institucionais correspondentes são universais, na verdade planetárias, em objetivo. Pode haver muitas formas de sociedade tribal, muitos feudalismos, até mesmo muitas formas de capitalismo primitivo, mas há só uma modernidade e ela é exemplificada em nossa sociedade, para o bem ou para o mal. As sociedades em desenvolvimento deveriam perceber: como Marx uma vez disse, chamando a atenção de seus compatriotas alemães que tinham ficado para trás dos avanços britânicos: 'De te fabula narratur' - é de vocês que esta história se refere.6

IV.Construtivismo

As implicações do determinismo aparecem tão óbvias que é surpreendente descobrir que nenhuma de suas duas teses pode resistir a um escrutínio mais próximo. Desta maneira, a sociologia contemporânea da tecnologia desqualifica a primeira tese sobre o progresso unilinear, enquanto que precedentes históricos mostram a inadequação da segunda tese de determinação pela base.

A recente sociologia construtivista da tecnologia desponta a a partir dos novos estudos sociais da ciência. Estes estudos questionam nossa tendência de isentar teorias científicas da mesma forma que submetemos ao exame sociológico as crenças não-científicas. Estes estudos afirmam o 'princípio de simetria' de acordo com qual todas as crenças em disputa estão sujeitas ao mesmo tipo de explicação social, não importando se as mesmas são verdadeiras ou falsas.7 Uma aproximação semelhante para a questão da tecnologia rejeita a suposição habitual de que as tecnologias sucedem de bases puramente funcionais.

O construtivismo defende que as teorias e as tecnologias não são determinadas ou fixadas a partir de critérios científicos e técnicos. Concretamente, isto significa duas coisas: em primeiro lugar, geralmente há diversas soluções possíveis para um determinado problema, e que os atores sociais fazem a escolha final entre um grupo de opções tecnicamente viáveis; e em segundo, a definição do problema muda freqüentemente durante o curso de sua solução. O último ponto é o mais conclusivo, mas também o mais difícil dos dois.

Dois sociólogos da tecnologia, Pinch e Bijker, ilustram este fato com os primóridos da história da bicicleta.8 O objeto que hoje nós consideramos como sendo uma evidente "black-box"3

começou através de dois dispositivos muito diferentes: como veículo de corrida para prática esportiva e como utilitário de transporte. A roda dianteira mais alta da bicicleta para prática esportiva era, na ocasião, necessária para se atingir altas velocidades, mas isto também causava instabilidade. Rodas de igual tamanho foram feitas para uma corrida mais segura, mas menos excitante. Estes dois modelos satisfizeram diferentes necessidades e eram, na realidade, tecnologias diferentes com muitos elementos compartilhados. Pinch e Bijker chamam esta ambigüidade original do objeto designado como uma "bicicleta", de "flexibilidade interpretativa".

2 Nota do tradutor: preferimos deixar a expressão “trade-off”, no seu original. Segundo o Merrriam-Webster Collegiate Dictionary significa “desistir de algo em retorno de outra” . Troca de algo por outro, especialmente quando há desistência,abandono de um benefício ou vantagem em favor de outro considerado mais desejável.3 Nota do tradutor: o termo “black box” significa, segundo o American Heritage Dictionary “um instrumento ou construto teórico onde suas características de performance são conhecidas ou especificadas, mas seus constituentes e meios de operação são desconhecidos e näo especificados”

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No fim das contas, o desenho “seguro” ganhou, e beneficiou-se de todos os avanços posteriores que aconteceram no campo. Em retrospecto, parece que as bicicletas com as rodas maiores representavam uma fase tosca e menos eficiente em um desenvolvimento progressivo que resultou da velha bicicleta segura até aos modelos atuais. Na verdade, a bicicleta com rodas maiores e a mais segura compartilharam o mesmo campo durante anos, e nenhuma delas pode ser considerada como fase do desenvolvimento da outra. As bicicletas com rodas maiores representam um possível caminho alternativo de desenvolvimento de uma bicicleta direcionada para diferentes finalidades, na sua origem.

O determinismo é uma espécie de história Whig4, onde o fim da história seria inevitável desde o seu começo, ao projetar, como a causa do desenvolvimento da lógica técnica e abstrata do objeto acabado, no passado. Este enfoque confunde nossa compreensão do passado e sufoca a imaginação de um futuro diferente. O construtivismo pode abrir este futuro, embora seus seguidores tenham hesitado em se engajar nas questões sociais mais amplas, implicadas em seu método.9

V.Indeterminismo

Se a tese do progresso de unilinear perde sentido, o colapso da noção de determinismo tecnológico não pode estar muito atrás. Porém, ele ainda é freqüentemente invocada em debates políticos contemporâneos.

Eu voltarei a estes debates neste capítulo, mais tarde. Agora, vamos considerar a remarcável l antecipação dos movimentos na luta sobre a extensão do trabalho diário e da mão-de-obra infantil, no decorrer do século XIX, na Inglaterra. Os donos de fábrica e os economistas denunciavam tal regulamentação como inflacionária; a produção industrial supostamente exigiria trabalho infantil e longa jornada de trabalho. Um membro do parlamento chegou a declarar tal regulamentação seria "um falso princípio de humanidade, que certamente, ao fim, seria derrotado por si próprio". Prosseguiu argumentando que as novas regras eram tão radicais que poderiam se constituir "em princípio, um argumento para eliminar completamente o sistema de trabalho nas fábricas".10 Protestos semelhantes são ouvidos atualmente por parte das indústrias ameaçadas pelo que elas chamam de "Ludismo” ambiental.

Porém, o que de fato aconteceu, ainda que os legisladores tenham tido sucesso ao impôr limites na duração na jornada de trabalho e tirando as crianças da fábrica? Será que os imperativos violados da tecnologia voltaram atrás para os assombrar? De forma alguma. A regulamentação conduziu a uma intensificação do trabalho nas fábricas que era, de de outra maneira, incompatível com as condições anteriores. As crianças deixaram de trabalhar e foram socialmente redefinidas como aprendizes e consumidores. Consequentemente, elas entraram no mercado de trabalho com maiores níveis de habilidades e disciplina que passaram a ser pressupostos do modelo tecnológico. Como resultado, ninguém ficou nostálgico pelo retorno aos bons velhos tempos quando inflação era mantida bem baixa, como conseqüência da mão-de-obra infantil. Isso não é simplesmente uma opção.

4 Nota do tradutor: o autor se refere, com o têrmo “Whig History”, a um estilo enviesado de pesquisar e descrever história. O estilo do historiador Whig lê o passado com a finalidade de encontrar fatos, personagens que estão de acôrdo com as idéias e valores promovidos pelo autor, no presentes, e vê os bons personagens como opostos aos maus personagens os quais, por ignorância ou viés supostamente se opunham às idéias do historiador, no presente. Desta forma, a Whig history distorce a realidade dos fatos, idéias, objetivos e pontos de vista de pessoas do passado, ao recusar em tomar o passado das pessoas e os eventos em seus contextos sociais e culturais próprios, e no lugar disto, classificando os mesmos contra um conjunto mais moderna de idéias e valores, considerados como “bons”, pelo autor “whiggish” . Cf. Schuster, J. A. inThe Scientific Revolution: An Introduction to the History & Philosophy of Science,1995

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Este exemplo nos mostra a tremenda flexibilidade do sistema técnico. Ele não é rigidamente limitado mas, pelo contrário, pode adaptar-se a uma variedade de demandas sociais. Esta conclusão não deveria ser surpreendente dada a capacidade de resposta da tecnologia à redefinição social, previamente discutida. Isso significa que tecnologia é apenas mais uma variável social dependente e, embora ela esteja crescendo de importância, não é a chave para o enigma da história.

O determinismo, como já argumentei, é caracterizado pelos princípios de progresso unilinear e de determinação pela base; se o determinismo estiver errado, então a pesquisa sobre a tecnologia deve ser guiada pelos dois seguintes princípios contrários. Em primeiro lugar, o desenvolvimento tecnológico não é unilinear mas se ramifica em muitas direções e poderia alcançar níveis geralmente mais altos ao longo de mais de um caminho diferente. E, segundo, o desenvolvimento tecnológico não é determinante para sociedade mas é sobredeterminado por fatores técnicos e sociais.

O significado político desta posição, agora, também deveria ser esclarecido. Em uma sociedade onde o determinismo monta a guarda nas fronteiras da democracia, o indeterminismo não pode deixar de ser um fato político. Se a tecnologia tem muitas potencialidades inexploradas, os chamdos imperativos tecnológico n ão podem impôr a hierarquia social atual. Ao lugar disto, tecnologia é um campo de luta social, uma espécie de "parlamento das coisas" onde concorrem as alternativas civilizatórias.

VI.Interpretando Tecnologia

No restante deste artigo, gostaria de apresentar alguns temas principais de uma abordagem não-determinista da tecnologia. O quadro esboçado, até agora, implica em uma mudança significativa em nossa definição da tecnologia. Ela não pode mais ser considerada como uma coleção de dispositivos e nem, mais freqüentemente, como a soma de meios racionais. Estas são definições tendenciosas que fazem a tecnologia parecer mais funcional e menos social do que de fato é.

Enquanto um objeto social, a tecnologia deveria estar sujeita a uma interpretação como qualquer outro artefato cultural, mas geralmente é excluída do estudo nas ciências humanas. No entanto, somos assegurados que sua essência repousa em uma função tecnicamente explicável, ao lugar de um significado interpretável hermenêuticamente. No máximo, os métodos das ciências humanas podem apenas trazer alguma luz aos aspectos extrínsecos da tecnologia, como o a questão das embalagens e da publicidade, ou as reações populares para inovações consideradas controversas, como o poder nuclear ou mães de aluguel. O determinismo tecnológico tira a sua força desta atitude. Se alguém ignora a maioria das conexões entre a tecnologia e a sociedade, não é surpreendente que a tecnologia possa parecer como algo auto-engendrado.

Os objetos técnicos têm duas dimensões hermenêuticas que eu chamo de o seu significado social e de seu horizonte cultural.11 O papel do significado social está claro no caso da bicicleta introduzido anteriormente. Vimos que a construção da bicicleta foi, em primeiro lugar, controlada por um conflito de interpretações: era ela para ser o brinquedo de um desportista ou um meio de transporte? As características do seu desenho como tamanho da roda também serviram para atribuir significado à bicicleta, como um ou outro meio de transporte.12

Isto pode ser contestado como sendo uma mera discordância inicial sobre metas, sem significação hermenêutica. Uma vêz, estando o objeto estabilizado, o engenheiro é que tem a última palavra em relação a sua natureza, e o intérprete humanista é deixado de lado. Esta é a visão da maioria dos engenheiros e gerentes; eles se apossam prontamente o conceito de 'meta' mas não têm nenhum lugar para 'significado.'

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Na realidade a dicotomia entre meta e significado é um produto da cultura profissional funcionalista que está, por sua vêz, arraigada na estrutura da economia moderna. O conceito de 'meta' separa cruamente a tecnologia dos seus contextos sociais, focalizando nos engenheiros e gerentes e em só no que eles precisam saber para fazer o trabalho deles.

Porém, um quadro muito mais completo é obtido ao se estudar o papel social do objeto técnico e os estilos de vida que ele torna possível. Este quadro coloca a noção abstrata de "meta" em seu contexto social concreto. Ele torna as causas e as conseqüências do contexto tecnológico visíveis ao lugar de as obscurecer atrás de um funcionalismo empobrecido.

O ponto de vista funcionalista produz um corte transversal descontextualizado temporalmente em relação à vida do objeto. Como vimos, o determinismo argumenta pela implausibilidade de sermos capazes de conseguir a partir de uma configuração momentânea de um determinado objeto para um outro, em termos puramente técnicos. Mas no mundo real todos os tipos de atitudes imprevisíveis se cristalizam em tôrno dos objetos técnicos e influenciam mudanças posteriores no seu desenho. O engenheiro pode pensar que estas são extrínsecas ao dispositivo em que ele está trabalhando, mas eles são sua própria substância enquanto um fenômeno histórico em desenvolvimento .

Estes fatos são reconhecidos, até certo ponto, nos próprios campos técnicos, especialmente na área decomputação. Aqui nós temos uma versão contemporânea do dilema da bicicleta discutida anteriormente. O progresso em velocidade, o poder e a memória avança rapidamente enquanto os planejadores corporativos degladiam-se com a questão para que isso tudo serve. O desenvolvimento técnico, definitivamente, não aponta para qualquer caminho particular. Pelo contrário, abre ramificações e a determinação final da ramificação certa não está dentro da competência da sua engenharia, porque isso simplesmente não se inscreve na natureza da tecnologia.

Eu estudei um exemplo particularmente claro da complexidade da relação entre a função técnica e o significado do computador no caso do videotexto francês. 13 Chamado "Teletel", este sistema foi projetado para trazer a França à Era da Informação, dando acesso a bancos de dados para usuários do sistema telefônico. Temendo que os consumidores rejeitassem qualquer coisa que se assemelhasse a um equipamento de escritório, a companhia telefônica tentou redefinir a imagem social do computador; não era mais para parecer como uma complexa cálculadora para profissionais, mas como uma rede de informação para acesso de todos.

A empresa desenhou um novo tipo de terminal, o Minitel, para parecer e ser percebido como se fosse um suplemento do telefone doméstico. O disfarce telefônico levantou a possibilidade para alguns usuários que eles poderiam ser capazes de falar um com outro na rede. Logo o Minitel passou por uma posterior redefinição nas mãos destes usuários, muitos dos quais o utilizaram para conversar online, anonimamente, com outros usuários na procura de diversão, companhia e sexo.

Assim o desenho do Minitel encorajou aplicações comunicativas pelos engenheiros da companhia que não tinham sido previstas quando quiseram melhorar o fluxo de informação na sociedade francesa. Essas aplicações, em troca, deram ao Minitel a conotação de um meio de encontro pessoal, completamente oposto ao projeto racionalista para o qual foi criado originalmente. O "frio" computador tornou-se em um novo meio "quente".

O que vale, na transformação, não é apenas a estreita concepção técnica do computador, mas a verdadeira natureza da sociedade avançada que torna a mesma possível. Será que as redes abrem as portas para Era da Informação onde nós, como consumidores racionais famintos pôr informação, procuramos estratégias de otimização? Ou se trata de uma tecnologia pós-moderna que emerge do colapso da estabilidade institucional e emocional, refletindo, nas palavras de Lyotard a "atomização da sociedade em redes flexíveis de jogos de linguagem"?14 Neste caso, a tecnologia não é somente um simples servidor de algum propósito social pré-definido; é um ambiente dentro do qual um modo de vida é elaborado.

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Em suma, as diferenças do modo como os grupos sociais interpretam e usam objetos técnicos não são meramente extrínsecas, mas produzem uma diferença na própria natureza destes objetos. O que o objeto é para os grupos é que, em última instância, vai decidir seu destino e também vai determinar no que se ele se tornará quando for redesenhado e melhorado, com o passar do tempo. Se isto for verdade, então, nós só poderemos entender o desenvolvimento tecnológico a partir somente do estudo da situação sócio-política dos vários grupos envolvidos neste processo.

VII.Hegemonia Tecnológica

Além de todo o tipo de suposições sobre os objetos técnicos individuais que temos discutido, até este instante, esta situação também inclui suposições mais amplas sobre os valores sociais. Este é onde o estudo do horizonte cultural da tecnologia deve entrar em cena . Esta segunda dimensão hermenêutica da tecnologia é a base das modernas formas de hegemonia social. Isto é particularmente relevante para nossa pergunta original relativa à inevitabilidade da hierarquia em sociedade tecnológicas.

A hegemonia, de acordo com o modo como usaremos o termo, é uma forma de dominação tão profundamente arraigada na vida social que parece natural para aqueles a quem domina. Pode-se também definir a mesma como a configuração de poder social que tem a força da cultura, na sua base.

O termo "horizonte" se refere a suposições genéricas e culturais que formam background inquestionado para qualquer aspecto da vida.15 Algumas destas dão suporte à hegemonia prevalecente. Por exemplo, em sociedades feudais, a "cadeia de seres"5 garantiu a hierarquia estabelecida na estrutura do universo divino e protegeu as relações de casta da sociedade dos desafios. Sob este horizonte, camponeses se revoltaram em nome do rei, a única fonte imaginável de poder. A racionalização é nosso horizonte moderno, e o desenho tecnológico é a chave para entender sua efetividade como a base das hegemonias modernas atuais.

O desenvolvimento tecnológico é restringido por normas culturais que se originam da economias, da ideologia, da religião e da tradição. Nós discutimos anteriormente como suposições sobre a composição da força de trabalho entraram no desenho das tecnologias de produção, do século XIX. Tais suposições parecem tão naturais e óbvias que, geralmente, permanecem apenas no limiar da percepção consciente.

Este é o ponto da importante crítica de Herbert Marcuse a Weber. 16 Marcuse mostra que o conceito de racionalização confunde o controle do trabalho pelo gerenciamento com o controle da natureza pela tecnologia. A procura do controle da natureza é genérica, mas o gerenciamento só surge a partir de um background social específico, o sistema de salários capitalista. Os trabalhadores não têm nenhum interesse imediato na produção, neste sistema, diferentemente das formas anteriores dos trabalhos agrícola e artesanal, na medida em que seus salários não estão essencialmente vinculados à renda da empresa. O controle de seres humanos é de suma importância, neste contexto.

Através da mecanização, algumas das funções de controle são eventualmente transferidas dos supervisores humanos e de práticas de trabalhado parcelizados, para máquinas. O desenho das máquinas é, desta forma, socialmente relativo àquilo que Weber jamais reconheceu, e a 'racionalidade tecnológica' que ela incorpora não é universal, mas particular ao capitalismo. De fato, é o horizonte de todas as sociedades industriais existentes, tanto das comunistas como também das capitalistas, na medida em que elas são administradas de cima para baixo. (em

5 Nota do tradutor: uma metáfora de um sistema hierárquico universal, divinamente inspirado, classificando todas as formas de vida, da mais alta à mais baixa. O link, a seguir, oferece uma imagem visual da mesma (http://www.stanford.edu/class/engl174b/chain.html)

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uma seção posterior, discuto uma aplicação generalizada deste enfoque em termos do que eu chamo 'código técnico").

Se Marcuse estiver certo, deve ser possível traçar as marcas das relações de classe no desenho da tecnologia de produção, o que já foi demonstrado por estudiosos marxistas sobre o processo de trabalho como Harry Braverman e David Noble.17 A linha de montagem oferece um exemplo particularmente claro porque atinge as metas das tradicionais administrações, como o trabalho fragmentado e desqualificado, através de um padrão técnico. A sua disciplina de trabalho imposta tecnologicamente aumentam a produtividade e os lucros, aumentando o controle. Porém, a linha de montagem aparece como progresso técnico apenas em um contexto social específico. Não seria percebida como um avanço em uma economia baseada em cooperativas de trabalhadores, nas quais a disciplina de trabalho foi mais auto-imposta do que imposta por cima. Em tal uma sociedade, uma racionalidade tecnológica diferente ditaria diferentes modos de aumentar a produtividade.18

Este exemplo mostra que a racionalidade tecnológica não é meramente uma crença, uma ideologia, mas é efetivamente incorporada na estrutura das máquinas. O desenho das máquina reflete os fatores sociais operantes em uma racionalidade predominante. O fato de que o argumento da relatividade social da tecnologia moderna tenha se originada em um contexto marxista obscureceu suas maiores implicações radicais. Não estamos lidando aqui com uma mera crítica do sistema de propriedade, mas estendemos a força desta crítica em direção à base técnica. Este enfoque vai bem além da velha distinção econômica entre capitalismo e socialismo, mercado e planejamento. Pelo contrário, chega-se a uma distinção muito diferente entre sociedades nas quais o poder está na mediação técnica das atividades sociais e naquelas que democratizam o controle técnico e, de forma correspondente, o desenho tecnológico.

VIII.Teoria de Duplo Aspecto

O argumento para este ponto pode ser resumido como uma reivindicação de que o significado social e a racionalidade funcional são dimensões inextrincávelmente entrelaçadas da tecnologia. Eles não são ontologicamente distintos, como o significado na mente do observador e a racionalidade própria da tecnologia, por exemplo. São, no lugar, 'aspectos duplos" do mesmo objeto técnico básico, cada aspecto sendo revelado por um contexto específico.

A racionalidade funcional, como a racionalidade técnico-científica em geral, isola objetos do seu contexto original para os incorporar em sistemas teóricos ou funcionais. As instituições que dão suporte a este procedimento - tal como laboratórios e centros de pesquisa - formam um contexto específico com práticas próprias e ligações com os vários agentes sociais e áreas de poder. A noção de racionalidade 'pura' surge quando o trabalho de descontextualização não foi compreendida suficientemente como sendo uma atividade social refletindo interesses sociais.

As tecnologias são selecionadas a partir destes interesses entre muitas possíveis configurações. Na orientação do processo de seleção estão códigos sociais estabelecidos pelas lutas culturais e políticas que definem o horizonte sob o qual a tecnologia atuará. Uma vez introduzida, a tecnologia oferece uma validação material do horizonte cultural para o qual foi pré-formada. Eu chamo isto de "viés" da tecnologia: aparentemente neutra, a racionalidade funcional é engajada em defesa de uma hegemonia. Quanto mais a sociedade emprega tecnologia, mais significativo é este engajamento.

Como Foucault discute em sua teoria sobre "poder/conhecimento", as formas modernas de opressão não estão tão baseadas em falsas ideologias mas muito mais em “verdades”técnicas as quais a hegemonia dominante seleciona para reproduzir o sistema.19

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Enquanto a escolha permanece escondida, a imagem determinística de uma ordem social justificada tecnicamente é projetada.

A efetividade legitimadora da tecnologia depende da inconsciência do horizonte político-cultural na qual ela foi concebida. A crítica recontextualizadora da tecnologia pode descobrir aquele horizonte, desmistificar a ilusão de necessidade técnica, e expor a relatividade das escolhas técnicas predominantes.

IX.A Relatividade Social da Eficiência

Estes assuntos aparecem com força particular no movimento ambientalista atual. Muitos ecologistas clamam mudanças técnicas que protegeriam a natureza e, no mesmo processo, melhoraria a vida humana. Tais mudanças aumentariam a eficiência em amplos termos através da redução dos efeitos colaterais prejudiciais e custosos da tecnologia. Porém, este programa é muito difícil de ser imposto em uma sociedade capitalista. Há uma tendência para desviar a crítica dos processos tecnológicos para os produtos e as pessoas, de uma prevenção a priori, para uma limpeza a posteriori. Estas estratégias preferidas são geralmente caras e reduzem a eficiência de uma determinada tecnologia. Esta situação tem conseqüências políticas.

Restabelecer o ambiente depois que este foi afetado é uma forma de consumo coletivo, financiada por impostos ou preços mais altos. Estes enfoques dominam a consciência pública. É por isto que o movimento ambientalista é percebido como um custo envolvendo “trade-offs”, e não como uma racionalização que aumenta a eficiência como um todo. Mas em uma sociedade moderna, obcecada pelo bem-estar econômico, esta visão é amaldiçoada. Os economistas e empresários estão mais inclinados a explicar o preço que temos que pagar pela inflação e pelo desemprego através do culto aos rituais naturais em vez de Mammon (uma divindade do mal, deus das riquezas). A pobreza espera por aqueles que não se ajustam as expectativas sociais e políticas da tecnologia.

Este modelo “trade-off” coloca os ambientalistas em uma situação de pouca importância para fornecer uma estratégia válida. Alguns prometem uma piedosa esperança de que as pessoas trocarão os valores econômicos pelos valores espirituais face a ascensão dos problemas da sociedade industrial. Outros esperam que ditadores esclarecidos encarem bravamente e estóicamente a dificultosa e estressante tarefa de realizar uma reforma tecnológica mesmo se uma população desejosa pela mesma não assuma esta medida. É difícil decidir qual destas soluções é a mais improvável, mas ambos são incompatíveis com os valores democráticos básicos.20

O modelo “trade-off” nos confronta com dilemas – tecnologia com forte base ecológica vs prosperidade, satisfação de trabalhadores e controle vs produtividade, etc – onde o que precisamos são sínteses. A menos que os problemas do industrialismo moderno possam ser resolvidos de modo que aumente o bem-estar público e que conquiste o suporte público, há pouca razão para esperar que eles sejam resolvidos. Mas como uma reforma tecnológica poderia ser reconciliada com a prosperidade quando se coloca uma variedade de novos limites na economia?

O caso do trabalho infantil mostra como aparentes dilemas surgem nos limites de uma mudança cultural, especialmente quando a definição social das principais tecnologias está em transição. Em tais situações, grupos sociais excluídos do arranjo original articulam os seus interesses não representados,politicamente. Novos valores que os excluidos acreditam que aumentariam o seu bem-estar aparecem como meras ideologias para os incluídos que se julgam adequadamente representados pelo desenho tecnológico existente.

Esta é uma diferença de perspectiva, não de natureza. No entanto, a ilusão de um conflito fundamental é renovado sempre que as principais mudanças sociais afetem a tecnologia. A

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princípio, satisfazendo as demandas dos novos grupos após o ocorrido, tem custos visíveis e, sendo feita de maneira descoordenada, vai, na verdade, reduzir a eficiência do sistema até que novos desenhos sejam encontrados. Mas, normalmente, podem ser encontrados melhores desenhos e, o que poderia parecer uma barreira insuperável ao crescimento, dissolve-se face às mudanças tecnológicas.

Esta situação indica a diferença fundamental entre troca econômica e técnica. A troca se refere aos “trade-offs”: mais A significa menos B. Mas o objetivo do avanço técnico é precisamente evitar tais dilemas através de desenhos elegantes que otimizem de uma única vêz várias variáveis. A um único mecanismo, inteligentemente concebido, pode corresponder muitas demandas sociais diferentes, uma estrutura a muitos funções.21 O desenho tecnológico não é um jogo econômico de soma zero mas um processo cultural ambivalente que serve a uma multiplicidade de valores e grupos sociais sem, necessariamente, sacrificar a eficiência.

X.O Código Técnico

Pode ser visto que tais conflitos sobre o controle social de tecnologia não são novos, como no aconteceu no interessante caso das "caldeiras explosivas".22 As caldeiras de barcos a vapor foram a primeira tecnologia que o governo norte-americano sujeitou a um regulamento de segurança. Mais de cinco mil pessoas morreram ou ficaram feridas em centenas de explosões de barcos a vapor a partir de 1816, quando um regulamento foi proposto pela primeira vez, até 1852, quando o mesmo foi implantado. São muitas vítimas ou poucas? Os consumidores evidentemente não ficaram tão alarmados para continuar viajando de barco pois os números de passageiros ficaram cada vêz maiores. Compreensivelmente, os donos de barcos interpretaram isto como um voto de confiança e protestaram contra o custo excessivo dos desenhos mais seguros. Porém, vários políticos também ganharam votos exigindo segurança.

A taxa de acidentes caiu drasticamente uma vez que melhorias técnicas foram cumpridas. A legislação quase não teria sido necessária para alcançar este resultado, se isso tivesse sido determinado tecnicamente. Mas, na realidade, o projeto das caldeiras estava relacionado a um julgamento social sobre segurança. Aquele julgamento poderia ter sido feito estritamente a partir das leis de mercado, como desejavam os empresários, ou politicamente, com diferentes resultados técnicos. Em qualquer caso, esses resultados constituiram o que veio a ser a própria caldeira. O que uma caldeira 'é' foi assim definido por um longo processo de lutas políticas que finalmente culminaram em códigos uniformes emitidos pela Sociedade Americana de Engenheiros Mecânicos.

Este exemplo apenas mostra como a tecnologia se adapta às mudanças sociais. O que eu chamo de 'código técnico' do objeto faz a mediação do processo. Este código fornece uma resposta ao horizonte cultural da sociedade, no nível do desenho técnico. Parâmetros técnicos em grande medida, como a escolha e o processamento de materiais, são especificados socialmente por tal código. A ilusão da necessidade técnica surge frente ao fato de que o código é, por assim dizer, literalmente 'moldado em ferro' ou "concretado" como pode ser caso.23

As filosofias conservadoras anti-regulação social estão baseadas nesta ilusão. Elas esquecem que o processo de desenho sempre incorpora padrões de segurança e compatibilidade ambiental; semelhantemente, todas as tecnologias se apóiam em algum nível básico de iniciativa do trabalhador ou usuário. Um objeto técnico feito corretamente deve simplesmente satisfazer estes padrões para ser reconhecido como tal. Nós não consideramos tal conformidade como sendo uma adição custosa: consideramos isto como um custo de produção intrínseco. Elevar os padrões significa alterar a definição do objeto, não pagar um preço por um bem alternativo ou valor ideológico como o modelo “trade-off” exige.

Mas o que do muito discutido cálculo de custo-benefício do desenho muda a partir das exigências da legislação ambiental e de outras similares? Estes cálculos têm alguma aplicação

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em situações transitórias, antes que os avanços tecnológicos, respondendo aos novos valores, alterem os termos fundamentais do problema. Mas muito freqüentemente, os resultados dependem das estimativas muito grosseiras de economistas sobre o valor monetário de coisas como um dia de pesca de truta ou um ataque de asma. Se feitas sem preconceito, estas estimativas pode ajudar a priorizar alternativas políticas. Mas não se pode generalizar legitimamente a partir de tal aplicação política para se chegar a uma teoria universal dos custos de regulamentação.

Tal fetichismo da eficiência ignora nosso entendimento comum do conceito que pôr si só é relevante no processo de tomada de decisões pela sociedade. No bom senso do dia a dia, a eficiência interessa a uma gama estreita de valores que agentes econômicos rotineiramente influenciam, ao tomar suas decisões. Os aspectos não-problemáticos da tecnologia não são incluídos. Teoricamente uma pessoa pode decompor qualquer objeto técnico e pode dar conta por cada um de seus elementos em termos de objetivos alcançados, se estes são seguros, rápidos e confiáveis, etc; mas, na prática, ninguém está interessado em abrir a 'black box preta' para ver o que há dentro.

Por exemplo, uma vez que foi estabelecido o código das caldeiras, coisas como a densidade da parede ou o modelo da válvula de segurança aparecem como essenciais ao objeto. O custo destas características não emerge como sendo o 'preço' específico de segurança e comparado desfavoravelmente com uma versão mais eficiente, mas menos segura da tecnologia. Violar o código para abaixar os custos é um crime, não um “trade-off”. E desde que todo o progresso posterior apareceu a partir do novo padrão de segurança, em pouco tempo ninguém olhou para trás, para os bons velhos dias dos desenhos mais baratos e inseguros.

Os padrões dos desenhos tecnológicos são controvertidos apenas quando estão em processo. Conflitos solucionados sobre a tecnologia são rapidamente esquecidos. Seus resultados, uma confusa massa de padrões técnicos e legais, são corporificados em um código estável e formam o background contra o qual os agentes econômicos manipulam as porções instáveis do ambiente, na procura da eficiência. O código não varia em no mundo real dos cálculos econômicos reais mas considerado como sendo uma variável fixa.

Antecipando-se à estabilização de um novo código, uma pessoa pode geralmente ignorar os argumentos contemporâneos que logo serão silenciados pelo aparecimento de um novo horizonte de cálculos de eficiência. Isto foi o que aconteceu com modelo da caldeira e o trabalho infantil; presumivelmente, os debates atuais sobre ambientalismo terão uma história semelhante, e nós zombaremos daqueles que se opõem contra a limpeza do ar pelo fato de deste ser um "'falso princípio de humanidade" que viola os imperativos tecnológicos.

Os valores não-econômicos intersectam-se com a economia no código técnico. Os exemplos com os quais estamos lidando ilustram claramente este ponto. Os padrões legais que regulam a atividade econômica dos trabalhadores têm um impacto significativo em todos aspectos de suas vidas. No caso do trabalho infantil, a regulamentação ajudou a ampliar as oportunidades educacionais com conseqüências que não são primariamente econômicas nas suas características. No caso do barco à vapor, os americanos preferiram gradualmente aumentar os níveis de segurança e o desenho das caldeiras veio refletir esta escolha. No final das contas, esta não era uma “trade-off”, mas uma decisão não-econômica sobre o valor da vida humana e as responsabilidades de governo.

A tecnologia não é, assim, um mero meio para se chegar a um fim: padrões de desenho técnicos definem partes principais do ambiente social, tais como espaços urbanos e construções, ambientes de trabalho, atividades e expectativas médicas, padrões de vida e assim por diante. O significado econômico da mudança técnica geralmente diminue a importância mais ampla das suas implicações humanas, ao estruturar um modo de vida. Em tais casos, a regulamentação define o quadro cultural da economia; não é um ato na economia.

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XI.As Conseqüências da Tecnologia

A teoria esboçada aqui sugere a possibilidade de uma reforma geral da tecnologia. Mas os críticos distópicos objetam que pelo mero fato de se procurar por eficiência ou efetividade técnica já se faz uma violência inadmissível aos seres humanos e à natureza. A funcionalidade universal destrói a integridade de tudo isto. Como argumenta Heidegger, um mundo sem propósito e de meros recursos que substitui um mundo de coisas, tratado com respeito pelo seu modo de ser enquanto espaços de reunião de nossos múltiplos engajamentos como "ser".24

Esta crítica ganha força a partir dos reais perigos com que a tecnologia moderna ameaça o mundo hoje. Mas minhas suspeitas são despertadas pelo famoso contrastede Heidegger entre uma represa no Reno e um cálice grego. Seria difícil de achar uma comparação mais tendenciosa. Sem dúvida, a tecnologia moderna é imensamente mais destrutiva que qualquer outra. E Heidegger tem razão em defender que os meios não são verdadeiramente neutros, que o seu conteúdo substantivo afeta a sociedade independente das metas às quais eles servem. Mas este conteúdo não é essencialmente destrutivo; na verdade, é uma questão de desenho e inserção social.

Em outro texto, Heidegger nos mostra um jarro 'reunindo' os contextos nos quais foi criado e suas funcões. Não há nenhuma razão por que a tecnologia moderna também não pode reunir-se com seus múltiplos contextos, embora com um pathos menos romântico. Este é, na realidade, um modo de interpretar as demandas contemporâneas para coisas como uma tecnologia que respeite o meio ambiente, aplicações da tecnologia médica que respeitem a liberdade humana e a dignidade, planejamento urbanos que criem espaços ricos e adequados para as pessoas, métodos de produção que protejam a saúde dos trabalhadores e ofereçam espaços para o aprimoramento da sua inteligência e assim por diante. O que são estas demandas se não um apelo para reconstruir a tecnologia moderna, de forma que a mesma agregue uma maior gama de contextos ao invés de reduzir seu ambiente natural, humano e social a meros recursos?

Mas Heidegger não levaria tais alternativas muito seriamente, porque o mesmo reifica a tecnologia moderna como algo separado de sociedade, como uma força inerentemente sem contexto que pretende o puro poder. Se isto é a 'essência' da tecnologia, uma reforma seria meramente extrínseca. Mas neste ponto a posição de Heidegger converge ao mesmo prometeísmo que ele rejeita. Ambos dependem de uma definição estreita de tecnologia que, pelo menos desde Bacon e Descartes, tem enfatizado sua vocação de controlar o mundo, excluíndo o seu igualmente essencial contexto de inserção. Eu acredito que esta definição reflete o ambiente capitalista no qual tecnologia moderna, primeiramente, se desenvolveu.

O exemplo moderno de senhor da tecnologia é o empresário, uma mente que focaliza apenas a produção e o lucro. A empresa é um plataforma radicalmente descontextualizada voltada para a ação, sem as tradicionais responsabilidades com os indivíduos e lugares que colaboraram com poder técnico no passado. É a autonomia da empresa que torna possível distinguir tão nitidamente entre conseqüências intencionais e e não intencionais, entre os objetivos e os efeitos contextuais, e ignorar este último.

O estreito foco da tecnologia moderna satisfaz as necessidades de uma hegemonia particular; não é uma condição metafísica. Sob esta hegemonia, o desenho técnico é de forma não usual, descontextualizado e destrutivo. É esta a hegemonia que deve ser considerada, não tecnologia per se, quando apontamos que hoje os meios técnicos formam uma crescente ameaça ao meio ambiente no qual vivemos. É esta hegemonia, que se encarnou na própria tecnologia, que deve ser questionada na luta pela reforma tecnológica.

XII.A "Essência" da Tecnologia

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Heidegger rejeita qualquer diagnóstico que seja meramente social dos males das sociedades tecnológicas e reivindica que a fonte dos seus problemas remontam ,pelo menos, a Platão, e que as sociedades modernas apenas concretizam um telos imanente desde o início na metafísica Ocidental. A sua originalidade consiste em apontar que a ambição para controlar o ser é também, por sua vêz, um modo de ser e portanto está subordinado a um nível mais profundo a uma exclusão ontológica que está além do controle humano. A demanda de Heidegger para uma nova resposta para o desafio desta exclusão está envolvida em obscuridade a qual ninguém ainda foi capaz de dar um conteúdo concreto. O efeito geral l da sua crítica é condenar a instrumentalização do ser humano, pelo menos nos tempos modernos e, ao mesmo tempo, confundir as diferenças essenciais entre dos tipos de desenvolvimento tecnológico.

Esta confusão tem um aspecto histórico. Heidegger está perfeitamente alertado que a atividade técnica não era 'metafísica' na sua definição até recentemente. Ele precisa, portanto, distinguir nitidamente tecnologia moderna de todas as formas prévias de técnica, obscurecendo as muitos conexões e as continuidades reais existentes entre elas. Pelo contrário, eu argumentaria que o que é novo sobre tecnologia moderna só pode ser entendido contra o background do mundo técnico tradicional, do qual desenvolveu. Além disso, o potencial positivo da tecnologia moderna só pode ser percebido pela recapitulação de certas características tradicionais da técnica. Talvez este é o motivo pela qual as teorias que tratam tecnologia moderna como um fenômeno único levam a tais conclusões pessimistas.

A tecnologia moderna difere das práticas técnicas anteriores através de mudanças significativas na sua ênfase ao lugar de mudanças genéricas. Não há nada sem precedentes em suas características principais, como a transformação de objetos em matérias-primas, o uso de planos e medidas precisos, o controle técnico de alguns seres humanos por outros e operações em grande escala. É a centralidade destes aspectos que é novo, e é claro que as conseqüências disso são verdadeiramente sem precedentes.

O que um quadro histórico mais abrangente mostra da tecnologia? As dimensões privilegiadas de tecnologia moderna aparecem em um contexto maior que inclui muitas características atualmente subordinadas mas que foram definidoras para a mesma, em tempos passados. Pôr exemplo, até a generalização do Taylorismo, a vida técnica era essencialmente a escolha de uma vocação. A tecnologia era associada a um modo de vida, com formas específicas de desenvolvimento pessoal, virtudes, etc. Sómente com o sucesso do capitalismo desqualificador é que finalmente tais dimensões humanas da técnica foram reduzidas a fenômenos marginais.

Semelhantemente, a administração moderna substituiu o colegiado tradicional das guildas pôr novas formas de controle técnico. Da mesma forma que o investimento vocacional no trabalho continua em certas situações excepcionais, dtambém os colegiados sobrevivem em alguns locais de trabalho profissionais ou cooperativos. Numerosos estudos históricos mostram que estas formas antigas são eram assim tão incompatíveis com a "essência" da tecnologia como com as atuais economias capitalistas. Dado um diferente contexto social e um diferente caminho de desenvolvimento técnico, poderia ser possível recuperar estes valores técnicos tradicionais e as formas organizacionais de uma nova maneira em uma futura evolução da sociedade tecnológica moderna.

A tecnologia é um elaborado complexo de atividades relacionadas que se cristalizam em torno da fabricação e uso de ferramentas, em qualquer sociedade. Assuntos como a transmissão de técnicas ou a administração das suas conseqüências naturais não são extrínsecas à tecnologia per se, mas dimensões da sociedade. Quando, em sociedades modernas, torna-se vantajoso minimizar estes aspectos da tecnologia, isto também é uma forma de acomodá-la a uma certa demanda social e não a revelação da sua pré-existente 'essência.' Em certa medida, se é possível fazer sentido ao falar sobre uma essência da tecnologia, é preciso abarcar o campo inteiro que é revelado pelo estudo histórico, e não apenas a alguns aspectos etnocêntricos privilegiados pôr nossa sociedade .

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XIII.Conclusão: Racionalização subversiva

Por gerações, a fé no progresso foi apoiada por duas convicções amplamente defendidas: que a necessidade técnica dita o caminho de desenvolvimento, e que a procura por eficiência fornece uma base para a identificação deste caminho. Eu argumentei aqui que ambas as convicções são falsas, e que, além disso, elas são ideologias empregadas para justificar restrições nas oportunidades para a participação nas instituições da sociedade industrial. Concluo que nós podemos alcançar um tipo novo de sociedade tecnológica que pode dar suporte para um amplo leque de valores. A democracia é um dos valores principais que um industrialismo redesenhado poderia servir melhor.

O que significa democratizar a tecnologia? O problema não é primordialmente de direitos legais, mas de iniciativa e participação. As formas legais podem eventualmente rotinizar as reivindicações que são feitas pela primeira vez informalmente, mas as formas permanecerão ocas a menos que elas emerjam da experiência e das necessidades dos indivíduos que resistem a uma hegemonia tecnológica específica.

Esta resistência assume muitas formas, desde lutas sindicais por saúde e segurança em usinas nucleares a lutas comunitárias sobre a eliminação do lixo tóxico, até as demandas políticas pela regulamentação das tecnologias de reprodução da espécie. Estes movimentos alertam-nos para a necessidade de se levar em conta as externalidades tecnológicas e demandam por mudanças de desenho capazes de responder ao contexto mais amplo revelado nesse arrolamento.

Tais controvérsias tecnológicas se tornaram uma característica inevitável da vida política contemporânea, revelando os parâmetros para a "avaliação da tecnologia" oficial. 25 Eles sugerem a criação de uma nova esfera pública que inclua o background técnico da vida social, e um estilo novo de racionalização que internalize custos não contabilizados surgidos "naturalmente", i.e., algo ou alguém que pode ser explorado, em busca do lucro. Aqui o respeito pela natureza não é antagônico à tecnologia mas aumenta a eficiência em termos amplos.

Como estas controvérsias se tornam lugares comuns, surpreendentes novas formas de resistência e de demandas emergem com elas. O trabalho usando rede de computadores deu origem a uma entre muitas reações inovadoras do público à tecnologia. Os indivíduos que foram incorporados em novos tipos de redes aprenderam a resistir pela própria rede com o propósito de influenciar os poderes que a controlam. Esta não é uma competição por riqueza ou poder administrativo, mas uma luta para subverter as práticas técnicas, os procedimentos, e os arranjos que estruturam a vida cotidiana.

O exemplo do Minitel pode servir de modelo deste novo enfoque. Na França, o computador foi politizado tão logo o governo tentou apresentar um sistema de informação altamente racionalista ao público geral. Os usuários "manipularam" a rede na qual eles foram inseridos e alteraram seu funcionamento, introduzindo a comunicação humana em uma vasta escala onde apenas a distribuição centralizada das informações tinha sido planejada.

É instrutivo comparar este caso aos movimentos dos pacientes da AIDS.26 Da mesma maneira que uma concepção racionalista do computador tende a obstruir suas potencialidades comunicativas, na medicina as funções de atendimento se tornaram meros efeitos colaterais do tratamento, que é compreendido exclusivamente em termos técnicos. Os pacientes se tornam objetos desta técnica, mais ou menos "complacentes" com o gerenciamento por parte dos médicos. A incorporação de milhares de aidéticos incuráveis neste sistema desestabilizou-o e o expôs a novos desafios.

O assunto chave era o acesso a tratamentos experimentais. Com efeito, a pesquisa clínica é um modo no qual um sistema médico altamente tecnologizado pode cuidar daqueles que ainda não pôde curar. Mas, até bem recentemente, o acesso às experiências médicas foi severamente restringido por preocupações paternalistas pelo bem-estar dos pacientes. Os

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aidéticos puderam ter acesso porque as redes de contágio, no qual eles foram pegos, receberam apoio paralelo pelas redes sociais que já tinham sido mobilizadas em favor dos direitos homossexuais no momento em que a doença foi diagnosticada, pela primeira vez.

Em vez de participar individualmente na medicina como objetos de uma prática técnica, eles desafiaram isto coletiva e politicamente. Eles "manipularam" o sistema médico e o direcionaram para novos propósitos. A sua luta representa uma contra-tendência à organização tecnocrática da medicina, uma tentativa pela recuperação da sua dimensão simbólica e funções assistenciais.

Como no caso do Minitel, não é óbvio como avaliar este desafio nos termos do conceito habitual de política. Nem faz estas lutas sutis contra o crescimento do silêncio nas sociedades tecnológicas parecerem significantes do ponto de vista das ideologias reacionárias que competem ruidosamente com o modernismo capitalista hoje. Todavia a demanda por comunicação que estes movimentos representam é tão fundamental que pode servir como pedra-de-toque para a adequação de nossos conceitos de política para a idade tecnológica.

Estas resistências, como o movimento ambiental, desafiam o horizonte da racionalidade sob a qual a tecnologia é projetada atualmente. A racionalização na nossa sociedade responde a uma definição particular de tecnologia como um meio para obter lucro e poder. Uma compreensão mais abrangente da tecnologia sugere uma noção muito diferente de racionalização, baseada na responsabilidade para os contextos humanos e naturais da ação técnica. Eu chamo isto "racionalização subversiva" porque requer avanços tecnológicos que só podem ser feitos em oposição à hegemonia dominante. Isto representa uma alternativa tanto à celebração contínua da tecnocracia triunfante quanto à escura contrapartida Heideggeriana que "apenas um deus pode nos salvar" de um desastre tecno-cultural.27

Mas a racionalização subversiva é, nesse sentido, socialista? Há certamente um espaço para a discussão das conexões entre esta nova agenda tecnológica e a velha idéia do socialismo. Eu acredito que há continuidade significante. Na teoria socialista, a vida dos trabalhadores e a sua dignidade representaram os contextos maiores que a tecnologia moderna ignora. A destruição das suas mentes e corpos nos seus locais de trabalho era vista como uma conseqüência contingente ao sistema técnico capitalista. A implicação de que as sociedades socialistas poderiam projetar uma tecnologia muito diferente sob um horizonte cultural diferente foi talvez apenas discurso, mas pelo menos foi formulada como uma meta.

Nós podemos fazer uma argumentação semelhante hoje em cima de uma gama maior de contextos em uma variedade mais abrangente de configurações institucionais com muito maior urgência. Estou inclinado a tomar uma posição socialista e esperar que, a tempo, isso possa substituir a imagem do socialismo projetada pela fracassada experiência comunista.

Mais importante que esta questão terminológica é o ponto substancial que eu tenho tentado tocar. Por que a democracia não foi levada para domínios tecnicamente mediados da vida social apesar de um século de lutas? Isto acontece porque a tecnologia exclui a democracia, ou porque ela foi usada para bloqueá-la? O peso do argumento apóia a segunda conclusão. A tecnologia pode apoiar mais de um tipo de civilização tecnológica, e pode algum dia ser incorporada em uma sociedade mais democrática que a nossa.

(traduzido por Anthony T. Gonçalves)

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NOTAS E REFERÊNCIAS

1. Este artigo amplia uma apresentação de meu livro Critical Theory of Technology (New York: Oxford University Press, 1991), entregue à Associação Filosófica Americana, 28 Dec 1991. Foi publicado, primeiramente, em Inquiry, 35: 3 / 4 ,19922. Veja, por exemplo, Joshua Cohen e Joel Rogers, On Democracy: Toward a Transformation of American Society (Harmondsworth: Penguin, 1983); Frank Cunningham, Democratic Theory and Socialism (Cambridge: Cambridge University Press, 1987). 3. Max Weber, The Protestant Ethic and the Spirit of Capitalism, traduzido por T. Parsons (New York: Scribners, 1958), pp. 181-82. 4. Martin Heidegger, The Question Concerning Technology, traduzido por W. Lovitt (New York: Harper & Row, 1977); Jacques Ellul, The Technological Society, traduzido por J. Wilkinson (New York: Vintage, 1964). 5. Richard W. Miller, Analyzing Marx: Morality, Power and History (Princeton: Princeton University Press, 1984), pp. 188-95. 6. Karl Marx, Capital (New York: Modern Library, 1906), pág. 13. 7. Veja, por exemplo, David Bloor, Knowledge and Social Imagery (Chicago: University of Chicago Press, 1991), pp. 175-79. Para uma apresentação geral do construtivismo, veja Bruno Latour, Science in Action (Cambridge, MA: Harvard University Press, 1987). 8. Trevor Pinch e Wiebe Bijker, "The Social Construction of Facts and Artefacts: Or How the Sociology of Science and the Sociology of Technology Might Benefit Each Other", Social Studies of Science, no 14, 1984.

9. Veja a crítica que Langdon Winner faz sobre as limitações características da posição, intitulada "Upon Opening the Black Box and Finding it Empty: Social Construtivism and the Philosophy of Technology", The Technology of Discovery and the Discovery of Technology: Proceedings of the Sixth International Conference of the Society for Philosophy and Technology (Blacksburg, VA: The Society for Philosophy and Technology, 1991). 10. Hansard's Debates, Third Series: Parliamentary Debates 183o-1891, vol.LXXIII,1844(22 feb -22 apr), pp. 1123 e 1120. 11. Um ponto de partida útil para o desenvolvimento de uma hermenêutica da tecnologia é oferecido por Paul Ricoeur em "The Model of the Text: Meaningful Action Considered as a Text"; P. Rainbow e W. Sullivan (eds.), Interpretative Social Science: A Reader (Berkeley: University of California Press, 1979). 12. Michel de Certeau usou a frase "retóricas da tecnologia" para referir-se às representações e práticas que contextualizam as tecnologias e lhes dá um significado social. De Certeau escolheu o termo "retórico" porque este significado não é simplesmente imediato mas comunica um conteúdo que pode ser articulado pelo estudo das conotações que a tecnologia evoca. Veja a edição especial de Traverse, no 26, out 1982, intitulado Les Rhétoriques de la Technotogie, e, nesta edição, especialmente o artigo de Marc Guillaume, Téléspectres (pp. 22-23). 13. Andrew Feenberg, "From Information to Communication: the French Experience with Videotext" in Martin Lea (ed), The Social Contexts of Computer Mediated Communication (London, Harvester-Wheatsheaf, 1992). 14. Jean-François Lyotard, La Condition Postmoderne (Paris: Editions de Minuit, 1979), p 34. 15. Para uma introdução à teoria social baseada nesta noção (chamada, porém, doxa, pelo autor), veja Pierre Bourdieu, Outline of a Theory of Practice, traduzido por R. Nice (Cambridge: Cambridge University Press, 1977), pp 164-70. 0. 16. Herbert Marcuse, "Industrialization and Capitalism in the Work of Max Weber", em Negations, traduzido por J. Shapiro (Boston: Beacon Press, 1968). 17. Harry Braverman, Labor and Monopoly Capital (New York: Monthly Review, 1974); David Noble, Forces of Production (New York: Oxford University Press, 1984). 18. Bernard Gendron e Nancy Holstrom, "Marx, Machinery and Alienation", Research in Philosophy and Technology, vol. 2 ,1979. 19. A apresentação mais persuasiva de Foucault desta visão é Discipline and Punish, traduzido por A. Sheridan (New York: Vintage Books, 1979). 20. Veja, por exemplo, Robert Heilbroner, An Inquiry into the Human Prospect (New York: Norton, 1975). Para uma revisão destes assuntos em algumas das suas primeiras formulações, veja Andrew Feenberg, "Beyond the Politics of Survival", Theory and Society, nº 7,1979. 21. Este aspecto da tecnologia, chamado “concretização”, é explicado em Gilbert Simondon, La Mode d'Existence des Objets Techniques (Paris: Aubier, 1958), capítulo 1. 22. John G. Burke, "Bursting boilers and the Federal Power", in M. Kranzberg e W. Davenport,eds. Technology and Culture (New York: New American Library, 1972). 23. O código técnico expressa o "ponto de vista" dos grupos sociais dominantes em nível do desenho e da engenharia. Assim, é relativo a uma posição social sem ser, quanto a isto, uma mera ideologia ou disposição psicológica. Como eu argumentarei na última seção deste capítulo, a luta por mudanças sócio-técnicas pode emergir dos pontos de vista subordinados dos dominados por esses sistemas tecnológicos. Para mais sobre o conceito do ponto de vista epistemológico, veja Sandra Harding, Whose Science? Whose Knowledge? (Ithaca: Cornell University Press, 1991). 24. Os textos de Heidegger discutidos aqui são, na ordem, The Question Concerning Technology, op. cit.; e "The Thing: Poetry, Language, Thought" traduzido por A. Hofstadter (New York: Harper & Row, 1971). 25. Alberto Cambrosio e Camille Limoges, "Controversies as Governing Processes in Technology

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Assessment" em Technology Analysis and Strategic Management, vol. 3, nº 4,1991. 26. Para mais sobre o problema da AIDS neste contexto, veja Andrew Feenberg, "On Being a Human Subject: Interests and Obligation in the Experimental Treatment of Incurable Disease", The Philosophical Forum, vol xxiii, nº3 , Spring1992 27. "Only a God Can Save us Now", Martin Heidegger entrevistado em Der Spiegel, traduzido por D. Schendler, Graduate Philosophy Journal, vol. 6 , nº 1, Winter 1977.