Com apenas sete anos, Maria da Glória torna-se rainha de Portugal, um país que ela não conhecia. Sua infância foi vivida no Brasil, dias longos e quentes entre os morros verdes e as praias de areia branca, segura pelo amor de sua adorada mãe, Leopoldina da Áustria. A ofuscar esta felicidade apenas Domitila, a amante do imperador do Brasil e seu pai, D. Pedro I. Em 1828 parte rumo a Viena para ser educada na corte dos avós. Para trás deixa a mãe sepultada, os seus queridos irmãos e a sua marquesa de Aguiar, amiga e protetora. Traída pelo seu tio D. Miguel, que se declara rei de Portugal, e a quem estava prometida em casamento, Maria da Glória acaba por desembarcar em Londres, onde conhece Vitória, a herdeira da coroa da Inglaterra, a quem ficará para sempre ligada por uma estreita relação de amizade. Aos quatorze anos, finda a guerra civil, Maria da Glória pisa pela primeira vez o solo de Portugal. Prometeu a si mesma que seria uma boa rainha para aquela gente que a acolhia em festa e uma mulher feliz, mais feliz do que a sua querida mãe. Fracassada a união com o tio, agora exilado, casa-se com Augusto de Beauharnais, que um ano depois morre de difteria. Teimosa e determinada, não desistia assim tão facilmente da sua felicidade e encontra-a junto de D. Fernando de Saxe-Coburgo-Gotha, pai dos seus onze filhos.

Este livroéumahomenagemàscartas, esseobjetoemviasdeextinçãoqueemtempospassadoseraaúnicaeprivilegiadaformadecomunicação.De partilhar amores, quantas vezes clandestinos, trocar informações,contar alegrias e espelhar tristezas, matar saudades, mas também dedefinirestratégiaspolíticas,depromoveraguerra,ousaldarapaz.

É uma homenagem aos que escreveram estas cartas, deixando-nosbocadinhos das suas vidas, aos que as conservaram, intuindo que nofuturo ajudariam a entender o passado, e àqueles que as descobrem,recolhemepublicam,permitindo-nosviajarnotempo.

Este romance tem como espinha dorsal as cartas de D. Pedro 1 e daarquiduquesa Leopoldina, imperadores do Brasil e pais de D. Maria daGlória, a protagonista desta história, de Leonor da Câmara, mestra darainha, demarechais, duques, embaixadores e políticos,mas sobretudo acorrespondênciaintensaentreD.MariaIIdePortugalearainhaVitóriadeInglaterra, unidas por uma enorme amizade que nasceuquando ambastinham9anoseseconheceramemLondres.Amizade quepautouassuasvidas,mastambémajudouadecidirosdestinosdePortugal.

«A mamãe diz que nós, pobres princesas, somos apenas dados,que sejogam e cuja sorte ou o azar depende do resultado. Será verdade, massinto-memaiscon iantenasortequando tenhopertodemimamarquesadeAguiar.ÉaúnicaqueDomitílianãotemsoboseujugo.»

MariadaGlória

«Naquelanoite,aimperatrizimplorou-meparavelarpelapequeninarainha.TemiaqueficasseaquiesquecidanoBrasil,arruinadaaiiiiicanto,semquenadasefizesseparalhedarotronoqueeraseupordireito.Hoje,amo-acomosefosseminhafilha»

MarquesadeAguiar-

PaçodeSãoCristóvão,Riodejaneiro,20denovembrode1826

arfadesceuasescadasacorrer,ovestidodesedaazula tornaros seus olhos ainda mais azuis, e precipitou-se nos braços do pai, que alevantoucomosefosseumaboneca:

- Maria da Glória, isso é maneira de uma rainha descer as escadas -repreendeu-a, esquecido de que só tinha 7 anos, enquanto a pousava denovonochãoelhepassavaasmãospeloscabelosarruinados.

Maria olhou para cima, subitamente nervosa. Estaria o pai a falarasério? Ia zangar-se com ela? Com o pai nunca se sabia bem, tantopodiacomeçar tudo como uma brincadeira, com afagos e abraços, eminutosdepoistransformar-senumatempestade.

Masosolhosdopaipareciamcalmos.

-Papai,nãomesintoaindamuitorainha,edequalquermaneira aquinoBrasilsousósuafilha-arriscou.

Oimperadordeuumagargalhada:

-AsenhoraMariadaGlóriaétãobonita,quevaisempreconseguir fazeraquilo que lhe der na real gana, seja aqui no Brasil, seja lá em Portugal,nãoé,senhoramarquesa?

Mariasentiu-segelarpordentro.E,semsevirarparaaentradada sala,onde«ela»estavacertamente,escondeuacaranaspernasaltasdopai.

Pedro,nomesmoinstante,irritou-se:

-Eoqueéqueamenininha julgaqueestáa fazer? Jácumprimentouamarquesa de Santos? - disse-lhe, colocando com força as mãos sobre osseus ombros e virando-a emdireção àmulher que, para todos os efeitos,consideravaamaisimportantedopaís.

Mariasabiaquenãovaliaapenafazerbirra,nembateropécomofaziatantasvezesnosseusaposentosperanteascriadas,quetemiamcontrariá-la,e,contrariada,deuamãoabeijar.

-Senhoramarquesa...

Osseusolhosazuisfaiscavam,aoveraformacomoopaiseaproximavadaquelamulher,vestidacomsedasecobertadepedraspreciosas, a tiaranocabeloacontrastarcomocabeloescuro,ocorpetemuito justo,odecoteindecoroso. Já era su icientemente crescida para saber que uma senhoranãosevesteassim.

O pai parecia não dar pelo silêncio que se instalara naquela sala, pelodesconforto que a presença daquela mulher provocava no Paço de SãoCristóvão,queatédeixavanervosososguardas,fardadosarigorapesardoinsuportávelcalordeste imdetarde,umdecadaladodaenormeportadeentrada,feitadepau-santomaciçopintadodeverde-escuro.

-MariadaGlória,voupartiramanhãparaCisplatina,paradar ânimoaosnossos soldados, e os convidados estão quase a chegar parao beija-mão.Ondeestáasuamãe?

Maria baixou a cabeça, assustada, ao perceber que o pai olhava asescadas de madeira encerada que davam acesso à ala do palácio que aimperatrizocupava,comoseesperassevê-ladesceraqualquerminuto.

-Nãosei,senhormeupai-respondeu,avoztrémula,paraacrescentar,ansiosaporseescapardali:

-Masseosenhorquiservouprocurarsaber...

Não tinhadúvidasnenhumasdeque amãe estaria a arranjar todosospretextos,ademorar-seomaisquepudesse,talohorrorquetinha aestascerimónias públicas, onde ultimamente o imperador impunhaa presençadasuaamante.

Pedrovirou-separaDomitíliadeCastroeresmungou:

-Vouveroquesepassa,evocêvenhacomigo,ounãoécamareira-mordaimperatriz?

Mariaentrouempânico:

- Papai, não é preciso, está lá amarquesa de Aguiar, eu vou pedir-lhequeseapresse...

Masopaiempurrou-aparao ladoesubiuasescadas,aosdois degrausdecadavez,e,parahorrordacriança,amarquesadeSantos seguia-lheospassos.

Mariapercebeuquetinhadeagirdepressa.Partiudisparadaemdireçãoàscozinhasecomeçouasubirasescadasdeserviçoomaisdepressaquepodia,osuoracair-lhepelacara,ofegante,masdeterminadaachegaraosaposentos damãe antes que o pai, e aquelamulher, lá entrassem. Se aomenoschegasseatempodeavisaramãezinha...

Masnãochegou.Quandoestendiaamãoparaamaçanetademar imdaporta dos fundos do quarto da mãe, ouviu a voz do pai, fortee rouca.Chegaratardedemais.Deixou-seescorregarparaochãoe sentou-secomacabeçaencostadaàporta,ocoraçãoabaterdescompassadamente.

-Pedro,queroessamulherforadomeuquartodevestir,neste segundo-gritavaamãe,eMarianuncaaouviratãozangada.

Domitília,aparentementeserena,procuravaacalmá-la:

-SenhoraD.Leopoldina,acalme-se,sousuacamareira-mor,vim apenassaberdesi.

Paraacrescentar,olhandodesoslaioparaPedro,paramediroefeito dassuaspalavrasnoimperador:

-Enãoseagite,quepodefazermalaobebéquetemdentrodesi...

Leopoldinaignorou-a,dirigindo-sedenovoaomarido:

- Pedro, injo quenão vejo, não ouço, não sei; aceito quememantenhapresanaminhaprópriacasa,protejoosnossos ilhosdesta vergonha,masnão toleroquevenhaaqui comessamulher,pedir-me queváabençoaravossarelação...queaceite iraessebeija-mãocomeladeumlado,eeudooutro,comosefosseminhaigual...

Mariatapouosouvidoscomambasasmãos,aslágrimasacorrerem-lhepelacara.Conheciaopai.Nãoentendiacomopassavatãorapidamentedomelhor ao pior dos homens, mas sabia que era issoque iria acontecerdentrodesegundos.Sabiaqueoimperadornão aceitariaquedesa iassema sua autoridade, não suportava ser contrariado,menos ainda perante amulherque lhederaavoltaàcabeça,comoouviacomentaràscriadas,àsaias,aosprofessores,eatodaagentequearodeava...

Avozdopai sooucomoa trovoadasobreamatade Itapagipe, como osrelâmpagosque incendeiamomardabaía, comoa cachoeira quando noschegamostãopertodelaquesórestaoestrondodaáguaacair.

- Emminha casamando eu, na minhamulher mando eu. E euordenoqueasenhorasevistaedesçaaossalõesnesteminuto.

Maria ajoelhou-se, juntou as mãos e sussurrou: «Mãe, diga quesim,mamãe,digaquesim,NossaSenhoradaGlória,velapelaminhamãezinha.»

MasLeopoldina,amãonoventredeumagravidezadiantada,mantinha-se direita e decidida. Não podia esquecer que era arquiduquesa daÁustria, imperatriz do Brasil, a mulher legítima que em nove anos decasamento dera sete ilhos ao seu senhor, e esperava o oitavo destehomemaquemsededicaradecorpoealma:

-Pedro,estouindisposta,vou-medeitar,semederlicença...

Mas Pedro já não estava em si. As guerras, ganhava-as sempre, eDomitílianãopodiaassistiraumaderrota.

-Nãodoulicença,nãosenhora-gritou.-Vaiparabaixo,evai agora,nemqueaarrastepeloscabelos.

Maria,doladodeládaporta,enroladasobresimesmacomoum animalferido,tapouabocacomamão,paraqueossoluçosnãoseouvissem.

MasLeopoldinanãoestavadispostaaceder.Nãopodiaceder.

-Chega,Pedro!Queseportecomoummoçodeestrebariaétriste,maséumproblemaseu,maseuseidequemsou ilha,enãomeesqueçodequesouimperatrizdoBrasil...

Maria não ouviu a resposta do pai, mas percebeu os empurrões, osgritos,ospontapés,obarulhoda loiçaestilhaçada.Domitília implorava-lhequeparasse,masjánemavozdaamanteopaiconseguiaouvir.

Subitamenteumestrondo,comoodeumcorpoquecaíanochão,ogritodeumamulher, ospassosdopai a afastarem-se, portas a abrirem-se e afecharem-se.

Maria levantou-sedeumsalto, abriuaportae correuparaLeopoldina,que a custo se tentava levantar, mas já lá tinha chegado Francisca dePortugal e Castro, marquesa de Aguiar, e duas das suas açafatas, que aajudavam a sentar-se na pequena poltrona. Era óbvio que, também elas,escutavam à porta da sala de costura e aguardavam uma oportunidadeparaviremauxíliodasuasenhora.

A imperatriz, o cabelo ruivo desalinhado, o braço direito caído sobre ocolo como se estivesse inanimado, mantinha os olhos muitoabertos, commedo de que as lágrimas não lhe obedecessem e insistissem em cair, aosomdaspedrasdocolarpartidoque iamescorregando pelovestido,edovestidoparaochão.Amãoesquerda,estendeu-aaMaria,queseagarrouaela,numpranto, enquantodizia suavemente,tentandomascararo tremordavoz:

-Filha, Maria da Glória, que nervosismo é esse? Caí, escorregueinotapete,umatonturamaiorporcausadocalor,nadamais,estoubem,minhaquerida.

AmarquesadeAguiarinsistiu:

- Senhora D. Maria, a mamãe caiu, acontece muito quando se estágrávida,vamosdeixá-laagoradeitar-seesossegar,vamos?

E enquanto a Rosa Cabocla entrava comumpano frio para lhe colocarna testa, e murmurava, no seu tom entoado e calmo, «Vamos, senhora,vamosdeitar»,amarquesapegavanamãodarainhade Portugalelevava-aparalongedaquelecenáriomacabro.

Maria tentou libertar-se, gritou que não deixava a mãe, mas a vozdeLeopoldinachegouautoritária:

-Maria da Glória, vá mudar imediatamente de vestido, e desçarapidamenteaos salões, queo seupai vaiquerê-la ao seu ladodurante obeija-mão!

A ilhadeixou-searrastar,eLeopoldina,comocoraçãoapertado, icouavê-la sair, a sua ilhamaisvelha,a sua ilhaquerida,amenina que corriamaisperigodosseussete ilhos,arainhameninaqueprecisavadetodaasua proteção. Mas como a defenderia, se a cadasegundo lhe restavammenos forças?Cerrouosolhos com força e pediu, do fundodo coração, àSenhoradaGlóriaqueviesseemsuaproteção.

OSolcomeçavaadescer,umabolalaranjanocéu,feitomaior agoraquedesaparecia por detrás da loresta cerrada de folhas e lores, imensas egarridas, que rodeava esta chácara transformada em palácio, distante 30quilómetros da cidade do Rio de janeiro, o paço que Pedro e Leopoldinatinhamadotadocomocasaháquaseumadécada.

Os criados fardados de verde e amarelo, as cores da recém-criadabandeira da nação brasileira, abriam as portadas e as janelas para osterraços, onde os convidados esperavam o início da cerimónia do beija-mão, que o imperador voltara a instituir. A notícia já corria de boca emboca, de que D. Pedro tivera mais uma cena violenta com a pobreimperatriz,ehouvequemjurassequeserecusariaabeijaramão aoreise«aquela»mulherestivesseaoseulado,masaverdadeeraque hájáalgumtempoqueacorteentenderaqueseeraparaconseguir favorparaosseusnegócios,nãohaviamesmooutroremédiosenão falarà«sujeitinha»,comosefosseaprimeira-damadopaís.

Maria circulava entre eles, sem sombra exterior do que se passara, eestendiaasuaprópriamãoaquemaquisessebeijar, comanaturalidadedequemjáhámuitotornoumecânicoestegesto.

No terraço, a imensa gaiola cheia de papagaios e pássaros, queLeopoldina trazia dos seus passeios pelas matas, atraía a atenção dosembaixadores e recém-chegados a terras do Brasil, fascinados comaquelasmisturasdecores,quedeixavamasespécieseuropeiastãopálidasesemgraça.Mariaaproximou-seedeixouqueoencarregadode negóciosdaCasadaÁustriaa cumprimentasse,masquandoobarãodeMareschallhe perguntou onde estava a mãe, tossiu e respondeu, nasua voz de

criançaquetentaatodoocustosercrescida:

- Jáviuopapagaioamarelo-enxofrequeamamãe trouxedasua últimaviagem,equevaimandarparaoavôFrancisco?

Odiplomatacompreendeuqueevitavaapergunta,eentrounojogo:

- Já vi, sim, Sua Alteza, e estou a tratar do seu envio para a Áustria,conformepedidodasenhoraimperatriz.

Mariaendireitouascostase,comtodaadignidade,acrescentou:

-Veja lásenãoseperdepelocaminhocomotantasoutrascoisas que amamãemandapara a família, sobretudopara a querida tia Luísa. Ela fazmesmoquestãoqueestepapagaiochegueaodestino...

Mareschal deixou a cabeçapendernuma suave vénia, eMaria afastou-se,antesdeouviraresposta.

Pobre criança assustada, pensou, dentro de meses será enviada paraPortugal,jácasadacomumtioquelhetemsidopintadocomomulherengoeodioso, aindapormaispordecisãodo seupai, queporum ladofala do«mano» com toda a nostalgia de uma infância comum,masporoutronãosecansadeacusaro irmãoMiguelde terenvenenadooprópriopai,o reiD. João IV, que há unsmeses morrera em Lisboa. Olhou de novo para apequena Maria da Glória, tão parecida com aimperatriz, e jurou a simesmoquefariatudoparaquefosseenviada,antesdemais,paraacortedaÁustria,paracasadoavôFrancisco, queverianestasuanetaaimagemda ilha que partira há anos, e queperdera, pela distância, pelas ideiasliberais,portantacoisamais...

«Adisciplinadaminhaterrahaviadepolirodespotismodeumameninahabituadaadarordensacriadoseescravos»,murmurouparasimesmo.

Mas quando levantou a cabeça e cumprimentou o embaixadorfrancêsqueseaproximara,certamenteparatrocarintrigas,oseusorrisoeraodeumdiplomata.

Otrono,detalhadouradaeforradoaveludocarmim,estavacolocadonocentrodagrandesala.Comoeraimponenteoseupai,direito, ocabeloeas

patilhas aloiradas pelo sol, a pele tisnada pelas horas passadas a cavalo,hojefardadoarigor,a faixaazulacruzar-lheo peito,asmedalhasganhasem combate na lapela larga, os sapatosque de tão engraxados pareciamumespelho.Doseu ladodireitoestavaamarquesadeSantos, impávidaeserena, como se não se tivessepassado nada, empinando a barriga paramostrar que também elaestava grávida do imperador, o sorriso prontopara quem a bajulava,elogiavao seuvestidoouo solitáriomagní icoquecaíasobreosseusseiosquenãotinhapudoremmostrar,ouparaaquelesque lhe davamduaspalavrinhasemquedeixavamcairumensejoouumpedido aque prometia atender. Do lado esquerdo do pai, a pequeninarainhadePortugal,D.MariaII, iarecebendooscumprimentos,epercebia,com um aperto inde inido na garganta, como todos iriam esquecerdepressa a sua mãe, como todos, de forma mais ou menos ostensiva,estavam dispostos a vergar-se perante quem detinha o poder. O poderconquistadoporsangueouastúcia,mas,nocasodeDomitília,porbruxaria,comojuravaaamaFlorica,quebemlheexplicaracomo umamulherpodeenfeitiçarumhomemcompoçõescozinhadasnaprofundidadedasmatas,em que cabelos e cascas de árvores sagradas se juntavam à baba desalamandraseavenenodehera,deixando-oloucoeescravo.Porqueéquea mamãe não encomenda uma poçãoigual à desdentada da MariaGuadalupe,queébruxadodemóniodecertezinhaabsoluta?, lembrava-sede ter perguntado então.Masrecebera,de resposta, apenasumencolherdeombrosdaama,queporessaalturajásearrependeradeterfaladodemais. Mas Maria nãoesquecera: de certezinha que era isso, o pai nuncafariamalàmãesenãoestivessesobopoderdealgumfeitiço...

Queriamuito ir saber damãe, aninhar-se na sua cama, certi icar-sedeque estava bem,mas não se atrevia amexer-se nemum centímetro, commedodequeopaivoltassesobresiasuafúria,denovoescondidasobummantode charmee simpatia.Olhoupela janelaparase distrair, e lá fora,debaixo da árvore-do-fogo, com os seus ramos encarnados, brincavam asmanas Januária e Paula, observadas pelamana Francisca, a sua queridaXica, com os seus 2 anos precoces,pelamão de uma criada. Pelos gestospercebiaquetroçavamdeIsabelMaria,umameninapoucomaisvelhadoque Xica, cabelos maisescuros do que o de todas elas e que, chorando,pedia colo à ama, sem nada perceber, mas intuindo certamente ahostilidadecomqueasoutrascriançasatratavam.Nãoasconseguiaouvir,mas estava certade que a acusavam de ser bastarda. Fora colocada nopaçoàforça,comotítulodeduquesadeGoiás,dequeatéoscriadosriamà

socapa.Maria tambémodiavaasuapresença,sentimentoreforçadotodasasmanhãsquandoopaipegavanacriançaaocolo,antesdecumprimentarqualquerumadas ilhas,tratando-apor«aminhaBela»,comoseelafosseumadelas.Sim,porqueaditaBela,pensouMariacomsarcasmo,repetindoparasimesmaasfrasesouvidassorrateiramenteaos adultos,nãopassavadeum«frutodopecado», ilhadeumamulherde«sangue impuroe semberço»,quenãotinhalugarnosaposentosdasinfantasdoBrasil.

Por segundosMaria cruzou os olhos com a amante do pai, e percebeuque também ela entendera o que as manas estavam a fazer àsua ilha.Mais logo, quando se queixasse ao pai de que a Isabelinhaera alvo datroçadas ilhasdeLeopoldina, haverianovadiscussão.Emesmoquenãotivessedadopornada,umadasespiasdeDomitíliaouumdoscapangasdopai, que os farejavam a todos como cãesperdigueiros, contariam osucedido à mamãe Titília, que por sua vezfaria a cabeça do imperador,que, agindo como um fantoche, viriapedir contas à imperatriz, a suaadorada mãezinha, que era obrigada a suportar tudo isto em silêncio.Decididamente, outra cena se avizinhava, suspirou Maria. Quantas maisaguentariaasuapobremãe?,deuporsiapensar,angustiada.

SouMariaFranciscadePortugaleCastro,marquesadeAguiar.Recolho-meaoquarto,eprocuronaescritaaliberdadequenãotenhonoscorredoresestreitosdopaço,ondeasparedestêmouvidosenãoháninguémemquempossaconfiar.Tristesorteaminha,adetunamulherde44anos,viúvaecompoucasposses,obrigadapeloofícioapermanecernestepaço,ondeDomitíliadeCastrotemespiões,prontosadenunciarquemnãolheprestevassalagem,quemdealgumaformaseoponhaàformavergonhosacomoestendeuosseustentáculosporestacasa,porentreasprópriasdamasnomeadasporseufavor,eporestereino.JoséBonifácio,opaidesteBrasilindependenteelivre,eograndeamigodaminhaqueridaimperatriz,quesirvocomamorelealdade,sabebemopreçoquetevedepagarporserecusaravergar-seaoseupoder,esenemeleconseguiulevaroimperadoràrazão,senemoembaixadordaÁustriafoicapazdeofazerobedeceràsmínimasregrasdedecoro,comopoderiaeualgumavezimaginar-mecapazdedefenderaminhasenhora?Ouos

seusfilhos!

Masdesta vezD. Pedro foi longedemais.Bateunamulher, grávida deuni ilhoseu,comounivulgarcarroceiro,mostrando,maisumavez, que éincapazdecontrolaro seugénio,quenãoaceita ser contrariado, que nãopassadeumacriançagrandeaquemfaltoudisciplinaeeducação.Eseidoquefalo,porqueovinascerecrescer,damadasuamãe, agoracamareiradasuamulher.

Quando entrei no quarto de vestir, a senhora D. Leopoldina estavaatiradaaochão,eainfantaD.MariadaGlóriaagarradaàmãe,num prantosem im. A imperatriz ordenou-me que a levasse dali, e depois de aentregaràamaparaqueavestissedenovo,eaenviasseparaosalãodobeija-mão,volteiparacimaomaisdepressaquepude.ARosa jáadeitaranacama,fecharaascortinas,eestavaacolocar-lhepachosdeáguafrianatesta. Disse-me que a imperatriz não deixava chamar o médico,maschamei-o eu, pobre homem, que ingiu acreditar que a imperatriz caírasem que ninguém a empurrasse, e lhe receitou um calmante, e que secobrissem as negras (os dedos da mão do imperador marcados naquelapele branca como uma marca indelével) com pachos de ervas que,garantiu,aliviamasdoreseajudamaabsorverosanguepisado.

Masaimperatriznãoestavapreocupadaconsigomesma.Colocavaamãonabarrigaeperguntavaseobebéestariabem.Deussabe, eeu também,embora nuncamo tenha dito, que não queria engravidar deste ilho, oitogravidezes em tão poucos anos, tão cedo depois donascimento dopequeninoD.Pedro,quesóagoravaifazer1ano.Mas agoraquetembemconsciência de que Domitília procura engravidar sempre em simultâneo,munaconcorrênciamaldosaquechocaqualquerespíritocristão,nãopodiarecusar-seaoimperador,procurando peloseuestadointeressanteprovaraomundoqueomaridoaindaaprocura,queédoseuventrequenascemecontinuarãoanascerosherdeiroslegítimosdoImpério.

Omédicoacenoucomacabeça,preocupado,massossegouaimperatriz,fez o que pôde, disse-lhe que os próximos dias iam ser decisivos,recomendou-lhe descanso. Mantive-me na sombra das cortinas, o suor acair-me pelo rosto, maldito calor, as vozes dos convidados a chegaremalegres e descontraídas, como se ali ao lado não estivesse, de corpo ecoraçãodespedaçados,aimperatrizbem-amadadoBrasil.

Dormiu uni pouco, ou dormitou, e mantive-me ali, até que acordouechamoupelomeunome.

-D.MariaFrancisca,aindaaíestá?-perguntou,naquelasuavozsuave,numportuguêsdequenuncafugiuoacentodoseupaísnatal,aÁustriatãoamada,querecordaemocionadaatodasashoras.

Chegueitunacadeiraedei-lhe,pelaminhamão,ocaldodegalinhaqueaRosa deixara namesinha ao lado da cama. Comeu duas ou três colheres,paradepoisexclamar:

-Comoéquechegámosaisto,D.MariaFrancisca?

Não sabia o quequeria que lhe respondesse, e o quepodia respondereu,semriscodefalardemais?

-Iludi-me.Julgueiqueseoameaçassecomadecisãodepartirparacasadomeupai,deprocurarrefúgio,paramimeparaosmeusfilhos,naminhaÁustrianatal,oujuntodaminhaadoradairmãLuísa,queeleentenderiaquetinhadedeixaressaoutramulher,oupelomenosmanteremsegredoessarelação,comofazcomtodasasoutras...

Continuavacalada,enquantoela,numsussurrocausado,acrescentava:

-Subestimeiopoderdela,subestimeiateimosiadele.Aíuiicacoisaquemudounodiaemquelhefizfrente,emquelherecordeiqueera,antesdemais,arquiduquesadaAustriaeameaceipartir,foiaminhavida.HojesouprisioneiradePedro,assustadocomaideiadequepudesserealmenteescapar-lhe,comomedodequetransmitisseaosembaixadores,eatravésdelesaomeupaieàEuropa,osofrimentoemquevivo.QuetodosficassemaconhecerocaráterdoimperadordoBrasil...

Suspirou.Equandoretomouodiscursoeraoutra,quasesorrindo,meiga,apaixonada,meuDeus,comoécegoocoraçãodetunamulher:

NãoéoPedroqueémau,D.MariaFrancisca.Éinfantil,imaturo,caprichoso,nuncaninguémlhefezfrente,masquandosearrependechoracomoumacriança,esenãomeama-queissoseibemquenão,eàminhacusta-,tambémnãomehtunilhariadestaformaseelafossemaissenhora,seelanãoexigissetudo.Maselaquertítulos,palácios,eomeulugar.Hoje

ficouclaroquesonhaserimperatrizdoBrasil.

Tapei a boca com a mão, em genuíno terror. O que seria dela, dasprincesinhas, do pequenino imperador, se assim fosse? O que seria demim,denós,doBrasil?

Encontreiaspalavras,esosseguei-a:

-Istopassa,senhoraD.Leopoldina,istovaipassar,sabecomoéo senhorD.Pedro...

-Mulherengo? Capaz de engravidar qualquer jovem rapariga que secruze no seu carrinho, e chegar a casa, triunfante, com o bastardinho aocolo,troféudasuavirilidade?MaisuniPedrodeAlcântaraBrasileiro?

Nunca, mas nunca, a minha senhora havia falado assim. Olhei-a emhorror e silêncio. Era tudo verdade, nem valia a pena procurar negá-lo,mas a senhora D. Leopoldina nunca falava de forma tão direta, tão crua,era certamente o soporífero que lhe soltava a língua e lhe permitia fazerestasconfidências.

-Não vale a pena ingirmosquenão sei, ou quenão vejo. PobreIsabelMaria, que culpa tem a criança que paga os erros do pai, os pecados damãe? O imperador pode dizer com verdade que até me pediu, exigiu, oconsentimento para colocar a criança junto dos meus ilhos,sacrifíciosupremoque izporele,masagoratenhomedo,senhora marquesa,tenhomedodoqueestamulher faráaospríncipes,aomeupequeninoPedro,senãoestivercáparaodefender...

Cansada pelo esforço, caiu sobre os almofadões, a mão no estômago«queardecomofogo»,murmurava.

Adormeceudenovo,abençoadoremédio,eouviospassosdoscavaloseasrodasdascaleches,àmedidaqueopaçoia icandovaziodeconvidadose a noite descia rápida sobre nós. Escutei, neste paço onde as paredesdeixam ouvir tudo, o imperador a dar ordens aos criados, ouvi-o partir,certamenteparapassaranoitecom«ela»,semqueviessebateràportaeindagarpelasortedasuapobreesposa, tentandodenovoobteroperdãosempregarantido,quelhepermitiriapartircomaconsciênciatranquila.

Fui icandoaoseu lado,a lersoba luzdavelaqueaRosametrouxe, ealiceeiumasoparápida,semaquererdeixar.Adormeci.

Já passava das dez quando a imperatriz acordou de novo, encharcadaemágua,ocorpotomadoporarrepios,vómitosqueadeixavamsemfôlego:

-Marquesa,oimperadorfoidormirfora?-perguntava,eeusem saberoqueresponder,omeusilêncioadizertudo.

Perdeu a calma, agitou-se na cama, atirou para longe os lençóis que acobriam,pediuquelhepusesseaimagemdeNossaSenhoradaGlóriamaispertodacama,nuncamesinhacomusinavela,a«senhoraquedeuonomeàminhaMaria»,dizia, edamesinhadecabeceira tirou omedalhãocomoretratoeocabelodasuaqueridairmãMariaLuísa, airmãmaisvelhaquelhe tem servido de âncora nestes anos, e já sãotantos, de infelicidade. Echorou.

PaçodeSãoCristóvão,21denovembrode1826

arfa,depoisdeumanoiteassombradaporpesadelos,acordaranopiordoshumores.LogodepoisdapartidadoavôJoãoparaLisboa,comacorte,amãeremodelaraosespaçosdopaçoeconcederaàsuafilhaprimogénitaaposentosluxuosos,quartoscujasportasabriamumasparaasoutras,eondeumsem-númerodeaçafatas,criadas,amaseaiasserviamaquelaquenestesseusseteanosdevidajáforaprincesadaBeira,depoisprincesadoGrão-Pará,eeraagorarainhadePortugal.Dacama,osolhosaindasemicerrados,gritarapelaaçafata,queentraranoquartopreparadaparaumdiamau...Ordenara-lhequeabrisseoarmárioeapontaraparaumvestido,edepoisparaoutro,equandofinalmenteacriadalhetrouxeoquequeria,deixouocorpomole,osbraçoscaídos,obrigando-aavesti-lacomosefosseumabonecadepano.Quandoapobrelheestenderaossapatosbrancosdefivela,pontapeara-osparalonge,equaseaesbofeteara,vociferando:

-Comestecalor?Nãoqueroestessapatos.

Aoescutarobarulho,D.Teresa,umadassuasdamas,edasque tinhamsido escolhidas pela mãe, entrou no quarto e falou-lhe numavoz forte eautoritária:

- SuaMajestade está a comportar-se comouma criançade colo!Nem asuairmãmaispequenafazumafitadestasparasevestir!

E sentando-se ao seu lado na cama, para lhe apertar os atilhos dovestido,sussurroumaisbaixo:

- SenhoraD.Maria daGlória, quantas vezes é que a suamãe lhe disseque as pessoas abaixodenós devem ser tratadas com toda a delicadeza,porque não têm como protestar? Falar assim a uma criada, que não temcomo lhe responder, menina? Julga que lá na Europa, para onde vai,alguémtolera,mesmoaumarainha,umcomportamentoassim?

Maria olhou-a, os olhos iluminados de desa io, que rapidamente sedesvaneceu. Não era estúpida, e percebeu bem onde queria chegar acrítica. Leu a insinuação de que não passava de uma meninatemperamental. Igual ao pai. Sabia que era isso que as empregadas, asaçafatas e asaias diziam entre elas. Sabia que a própria lady MariaGraham, a amigainglesa da mãe, que a imperatriz contratara com tantoentusiasmo parasuamestra,masqueacabarapor ser recusadapelopai,seassustaracomaideiadeeducaruma«meninatãomimada»,foraessaaexpressãoquelheouviraportrásdaportaondeescutavaaconversaentreasdamas...

As lágrimascomeçaramacair-lhepelacara.Encostouo rosto branco, echeiodesardas,aoombrodeD.Teresa,queaabraçou.

«Coitadinha da minha Maria», pensou a dama, como podia nãoestardestroçada,depoisdoquesucederaontemànoite,depoisdoque sucediadiaapósdia,naagitaçãopolíticaquepressentiaforadopalácio,naagitaçãoconstante que vivia dentro de casa, mesmo naquelepaço distante dosururu da cidade, onde (aparentemente) só se ouviao barulhoensurdecedor das cigarras a cantar e o entoar dos cânticos dos escravosqueseocupavamdosanimaisedaquinta.

Deu-lhe um abraço apertado e depois, pondo-lhe o dedo debaixo doqueixoebeijando-lheatesta,disse-lhenumavozsuave:

- Não quer tomar o seu pequeno-almoço na varanda dos papagaios,juntodasenhoraimperatriz?Massemlágrimas-acrescentou,sorrindo.

-Amamãeestáapé?Não icoumuitodoente?Nãomorreu?-perguntou,soltandotodaaansiedadecontida.

D. Teresa teve vontade de lhe dizer «ainda não, minha querida filha»,mascalou-se,e,alisando-lheovestido,recebeuochapéudepalhadamãodacriadaecolocou-onacabeçadasuarainhapequenina:

-Asenhoraimperatrizesteveafalarcomosenhor,eagoradescansanavaranda.Vá,válátercomela,minhaquerida.

Mariasaiuacorrere,destavez,ninguémarepreendeu, lembrando-lhequeumarainhanãocorre.

Leopoldina ouviu, divertida, os passos apressados da sua ilhamaisvelhapelatijoleiradaentrada,edepoismaissuaves,porcimadamadeirapolidadochãodosalão,ecadavezmaispróximos,atéqueviuoseurostoredondoecorado,assuastrançasloiras,asurgirem pelaportaquedividiaograndesalãodavarandadepedraquecorria afachadatraseiradopaço,abertasobreafloresta.

Virou-senachaise longue,comumesgardedor,abrindoomosquiteirocomamãoparaaacolher,e,erguendoavozcomesforço, acimadopalrardosseuspapagaios,queenchiamumaimensagaioladebambu,exclamou:

-Filha,cuidadoqueaindaescorrega.

MasMaria não tinhamedo de escorregar, nem de cair. Queria apenasumacoisa,lançar-separaosbraçosdamãe,eafundar-seneles.

Leopoldinaescondeuacaranoscabelosda ilha,inalandoaquelecheiroaalfazemaeleitedecabra,ebeijou-asofregamente:

-Então,diabrete!Nãodevíamosestarafazerostrabalhos?Sãohorasdassuaslições...

Mariadeixou-seescorregarmaispertoeimplorou:

-Hojenão,mamãe,hojedeixe-meficaraquiaouvirassuashistórias...

E,commedodereceberum«não»,acrescentourapidamente:

- Se vou para Portugal, tenho de saber mais sobre o país onde voureinar,eaD.Lurdesnãosabecontarnada,nadatãobemcomoamamãe...

Leopoldina esforçou-se para sorrir, sentindo de repente que pouco lheimportavam as dores ísicas, face a esta dor tão funda que sentia desdeque Pedro decidira e realizara este casamento absurdo de Maria comMiguel, o cunhado que conhecia tão bem e do qual tinhaa pior dasimpressões, pelo que vira com os seus próprios olhos até aos 18 anos,idadeemquepartiraparaPortugal, e depoisdissopelas históriasda suarebeliãocontraoseuqueridosogro,ashistóriasde umMiguelseduzidoemanipulado pela sua odiosa sogra, CarlotaJoaquina, que icaria para aHistória, estava certa, como amulher quedividira os irmãos e os pusera

um contra o outro. Sabia de cor uma das últimas cartas que D. JoãoescreveraaPedro,emquelhedizia paraserhábileprudente,porquenasCortes portuguesas conspiravam contra ele, e os reacionários desejavamqueabdicasse«emfavordoteumanoMiguel».Lembrava-sedaexpressãomagoadadePedroquandolera«TuamãeépeloMiguel,eeu,quetequero,nada possofazercontraoscarbonáriosquenãotequerem».Nãogostara,tambémela, da forma como Portugal tinha recebido a família real,suspeitavaatéqueafaltaderespeitoeavigilânciaqueimpunhamaosreise aosinfantes tivessem justi icado a rebelião de Miguel, que semprepreferiraresolveratirooqueaeducaçãoeaculturaimpediamdevencerpela argumentação (aliás, tal como acontecia tantas vezes com Pedro,suspirou),mas a verdade é que o rei expulsara o próprio ilho para umexílio disfarçado de visita de estudo, enviando-o para a corte da Áustriaonde, esperava Leopoldina, tivessem feito dele um homem melhor. Mas,para ser sincera, o que podia o cunhado, e agora genro, aprender, numacorte tão rígida, tão abertamente contra os princípios liberais, que nem aindependência do Brasil aceitava? E embora percebesse a soluçãoengenhosa que Pedro encontrara para a sucessão da coroa portuguesa,casando a ilha com o irmão, e esperando assim manterum pé emPortugal, não conseguia entender como é que o marido eracapaz deentregarasuaprimogénitatãoamadaaumhomemque,acreditava, teriaenvenenadoopai.OndeestavaPedrocomacabeça?Semquerer,suspiroufundo: é claro que sabia onde é que Pedro estava com a cabeça, com ocorpo, comodinheiroe com tudoo resto.Mas oqueseriadeMaria,umacriançaainda,nasmãosdeMiguel,que,apostava,trairiaoirmãoeajovemmulher,aceitandoseraclamadorei,usurpandootronoàrainhalegítima.

Mariaentendeuolongosilêncioeoestremecerdocorpodamãe:

- Mãezinha, não tenhamedo, ele nãome vai envenenar amim -disse,muitoséria.

Leopoldina sobressaltou-se, zangada com as coscuvilheiras daquelacasa:

- Filha, que disparate - respondeu, tentando que a sua voz soassegenuinamenteindignada.

Mariaatalhou,aflita:

-Nãome lembrodo tioMiguel,masopaidissequevouviverprimeirocomoavôFrancisco,emViena,equeoavôvaitomarcontademim-amãopequenaprocurandoamãodamãe.

Leopoldinaforçouumsorriso:

-Medo,eu,minhaquerida?VaiparaaEuropa,queé tudooque amãemais desejava. E é por isso que esse alemão tem de melhorartodos osdias...

-Masfalofrancês,portuguêsealemão,eatéaladyGrahamdisse queeuera forte em línguas, para uma menina de 7 anos. E também sei umbocadinhodecaboclo,queestouaaprendercomoJaime,dacocheira...

Leopoldinadeuumagargalhada:

-Ocaboclo,então,vai ser fundamentalnacortedaÁustria,minhafilha.Mastemtodaarazão,nãohárazãonenhumaparatermedo, porqueoseuavô Francisco, os seus tios e primos na Áustria vão ajudá-la a aprendertudooquelhefaltasaber...

- Mamãe, o contrato do seu casamento também foi celebrado como omeu,comoseunoivolonge?AsmanasdizemqueeramelhortersidoaquinoBrasil,paraeleteracertezadequegostavademim.

Leopoldinavoltouarir:

-Essas suas irmãs quando querem sãomuito mazinhas, Maria.Com asrainhaseprincesasésempreassim,masdepois,quando izer 15anos,vaiter um casamento a sério, com festa de pompa e circunstância, como eutiveaquinoRio.

Maria sorriu, satisfeita. Gostava de festas, e havia tão poucas aquinopaço.Derepente,ofuturoparecia-lhemaisrisonho.

-Mamãe, a senhora vai lá estar, não vai? E o pai e asmanas, mesmo aJanuáriaeaPaula?

Entusiasmada,sugeriu:

- Porque é que não vem agora comigo? Já não vê o seu pai e os seusmanoshátantosanos,e...e...sefosseparalá,mamãe,nãosentiaestecalorque lhe faz tanto mal, nem... nem tinha de falar, nem ver, todas estaspessoasdequeamãenãogosta...

Leopoldina suspirou, tirou o chapéu à ilha, e ingiu refazer-lhe astranças,paraesconderoseurostoemocionado:

-Poisé,secalhar,vamospediraopaiparamedeixarirconsigo,na suacomitiva - disse, sorrindo -, mas agora vamos lá aprender a História dePortugal. Jáqueameninausatodosospretextospara fugiràs suasaulas,vou ver se lhe consigo ensinar alguma coisa... Lembra-seainda do avôJoão?

Maria deitou-se para trás nas almofadas de seda, vindas da Índia, efechouosolhos,comoseprocurassemuitofundonassuasmemórias:

- Lembro-me - disse devagarinho - de o avô me levar com ele para ojardim Botânico, e de me ensinar os nomes das árvores e das lores...Lembro-mequeele e amamãe icavamhoras a abrir caixas chegadas daalfândegaparaovossomuseu...Lembro-me,achoquemelembro, mãe,oufoiamãeouaaiaquemmecontou,dequandofoiaclamadorei, porqueabisavozinha velhinha morreu na casa das freiras, lá no largo grande noRio...

Leopoldina ia fazendo festas no cabelo da ilha, mergulhando comelanasmemórias.

O sogro recebera-a noBrasil com imenso carinho. Era baixo e gordo, olábio de baixo demasiado proeminente, rodeado de conselheiros, queescutava,eescutava,masquenemporissooajudavamadecidirnembem,nemmaisdepressa.Lembrava-sedecomoestranhara,logonodia emquedesembarcaranoRio,depoisdetrêsmesesdeenjooeexpectativas,comoaquela família se dividia em duas, o príncipe D. João, o sogro regente,fechadoaliemSãoCristóvãocoma ilhaMariaTeresa,viúva aos23anos,eo seu ilho primogénito, Pedro, e a sogra, espanhola, francamentehorrorosa, que habitava outro palácio mais no Centro da cidade, com osrestantes ilhos, o irascível Miguel e as suas manas, que se revelaramcunhadas megeras, em tudo demasiado parecido com a história daCinderela, que tantas vezes escutara nas noite de neve e gelo na sua

amadapátria.Comotempoentenderaqueodivórciodosseus sogros eramuitomaisdoqueumasimplesseparaçãodeumcasalquejátivera ilhossu icientesparagarantirasucessãoequeotempoeos gostossepararam.Não, a separação destes dois seres, profundamente infelizes, e mauseducadores, cada um à suamaneira, equivalia a duasmaneiras de ver omundo,aduasambições,adoisprojetosdefuturo -adosogro,queamavao país a que a invasão francesa o trouxera, e secretamente sonhava nãomais sair dele, perdendo-se entre as suas lores e espécies raras, numaindolência generosa e preguiçosa, e a da sogra, que contava os dias pararegressarà«civilização»eengenhosamentepreparavaoseuquerido ilhoMiguel para suceder ao pai,mesmo que para isso tivesse de passar porcimadoherdeiro.

Mariaarrancou-aaosonho:

-Mamãe,entãoalição?

Leopoldinariu:

-Enãoselembradapartidadoavô?

-Para o céu, mamãe? - perguntou a princesinha, os olhos abertosdeespanto.

Leopoldinasuspirou,comovida:

- Pois é, às vezes esqueço-me de que o avô morreu. Foi há tão poucotempo...masoqueestavaaperguntareraseselembravada partidaparaPortugal.

Maria fechou de novo os olhos, depois abriu-os, tapando-os comamãoporque a luz magoava os seus olhos claros, e acenou que não com acabeça:

-Seiqueerammuitosemuitos,quatromilachoquefoioqueopai disse,os que se foram embora na esquadra inglesa que veio buscar o avô,porque a mãe sempre que falava nisso icava triste, mas lembro-metambém - e soltou uma gargalhada - porque iquei commuitos emuitosquartosemuitoscriadossóparamim!!!

Leopoldina fez-lhe cócegas, e numa voz que procurou manter irme,apesardavontadederir:

-Maria,serrei,imperador,rajá,éserhumilde,éprestarumserviço aosoutros... Anda o seu pai a proclamar a Carta, a de cá e a que fez paraPortugal, baseada nos mais nobres princípios liberais, e a meninaMariaqueréquea levemnumaliteiraemombros,easirvamdejoelhos.Filha...filha...

Mariariu:

-Mãe,conte-meoutravezomeunascimentoeomeubatizado...

Leopoldinacontinuouasorrir,encostandoafilhacontrasi.

-Nessaalturaopapainãoeramau,poisnão?E«ela»aindanemexistia...

Aimperatrizgeloupordentro,feridademágoaedeculpa.Pobre MariadaGlória,quemãeera,paradeixarqueasua ilhaestivessea par destesdramassórdidos;queumacriançadedentesdeleiteainda intactosnoseusorriso soubesse de amantes e traições, pusesse emcausa a bondade doprópriopai?Crescia-setãomaisdepressanesta terra,queoraeraParaíso,oraInferno,estepaísqueLeopoldinaamavatãoprofundamente,estepaísde que conhecia os minerais e as pedras, o nome das árvores e dosanimais,estepaísdegente tãoboaegenerosa,ondeopecadonãoestavano corponudos índios comque secruzavanospasseiospelomais fundodas matas, mas na alma destesfalsos cristãos, desta corte, de gentemesquinha e tão fraca, tão ignorante e tão inculta,mas tão sobranceira etãosemvalores.Tinhaderesponderàfilha,efazerdastripascoraçãopararestauraraimagemdopai,doimperador:

- Que disparate, Maria, não consinto que fale assim do seu pai.Sabemuitobemqueopainãoémau,temémaugénio,aliáscomoumaMariadaGlóriaqueeu cá sei, tãodocee tãomeiga,masque tambémtem fúrias, eatiracomsapatospelosares,edásapatadasnosirmãos...

-Masnãobatonamãe-exclamou,angustiada,acriança.

Leopoldinanãoestavaàesperadaquelededonaferida,certeiro,mashámuitoque sehabituara adisfarçar, amentirquando lheperguntavamse

erafeliz,seestavatudobem.Retorquiu,rápida:

-MariadaGlória,oqueéqueestáparaaíadizer?Nãolheexpliqueiqueamamãeteveumatontura?Nãosabequeasenhora D.Domitíliaéminhacamareira,eénaturalquemeacudaquando mesintomal,comoénaturalquesesenteàmesmamesaqueopai?

MasMaria também já tinha aprendidoo jogo. Sentou-sedireita e disse,encerrandooassunto:

-Poisé,mãe,tinha-meesquecido.

E,desembaraçando-sedosbraçosdamãe,anunciou:

-Estámuitocalor.VouchamaraRosapara lhe trazeroseuremédio,evoubuscarocadernoeoslápis,eamãevaicontar-meomeunascimentoeomeubatizado,eeuvouescrevertudo,podeser?

Leopoldinaacolheucomalívioastréguas.

Mariasentou-senumacadeiradeverga,comalmofadasqueaajudavamachegaràalturadamesa.Emcima,otinteiroazul,enasuamãogordinha,a pena encarnada, raiada de amarelo e turquesa, que a mãe mandaraadaptar dapenadeumdos seuspássarosmais bonitos.A sua frente umcadernograndeepautado,queatiaMariaLuísalheenviara.

- Estou pronta, mamãe. Conte devagarinho para eu ter tempo deescrever,semesborratar-exclamouMaria,entusiasmadacomaproeza deredigirasua«autobiografia»,comoamãelhechamou.

Leopoldinasentia-seestonteada,perdiasangue,estavacertadequeestebebénãosobreviveria,mas,apesardospedidosdamarquesade AguiaredainsistênciadadedicadaRosa,insistiraqueagoratinha deacabaraaulaqueestavaadaràfilha.

-Entãovamoscomeçar.

Mariaanuiu.

«ChegueiaoRiodejaneiro,depoisdetrêsmesesdeviagem,num diade

muitocalor,echeiadesonhos.QuandoentreinabaíanãoqueriaacreditarqueerapossívelexistirumsítiotãobonitonaTerra-os morros,dealturasdiferentes,pareciamvulcõesverdesasairdaágua, umamuralhaarodearomar,eaareiaera tãobrancacomonunca tinhavisto.Bem,o teupai foiter comigo ao barco, e iquei logo apaixonada por ele, era mesmo comoesperava.Depoiscasámos,umafestaenorme,ecomeceiadesejar,maisdoquetudo,queoAltíssimomemandasseumbebé...»

Mariaolhou-a,curiosa,comosefossedi ícilimaginá-laaquererum ilho,ansiosaparaqueabarriga crescesse,quando,desdeque se lembrava desi,amãetinhaestadosempreàesperadeumbebé,umaseguiraooutro,sete ao todo, contando com os dois manos que tinhammorrido bebés, eagorapelaoitavavezem«estadointeressante»,comodizia.

Leopoldinapercebeuaqueleolhar,eriu:

- É verdade que sempre me viu grávida... mas estive quase um anocasadasemsombradebebé,ejáestavaa icarpreocupada.Quando soube,nem me atrevi a contar a ninguém, só à sua querida tia MariaLuísa.Escrevi-lhe,cheiadeesperançasdequefossemesmoum ilho,maspoucodepoisoseupaidescobriueficoutão,tãocontente...

Não lhe disse como tinha sido duro descobrir que o marido era umhomemacostumadoaquelhe izessemsempreavontade,quediziatudooque pensava com rudeza e grosseria, sem se preocupar com ossentimentos dela. Mas também não era justo que lhe dissesse, porqueaquelesprimeirosanostinhamsido,defacto,felizes.Acreditaraque Pedroaamavaeaverdadeéqueelemostravasemprearrependimento, choravaquando a via chorar, e se tinha «casos», que sabia que sim, não os traziapara casa... É verdade que semanas antes do parto, num gesto deincompreensível crueldade, aobrigaraadevolver àÁustria a suaamadeinfânciaeoseumédicodecon iança,queseangustiaramtantodeadeixarnesta terra tão quente, tão selvagem, tão diferente. E sem nenhum outromédicoemquemcon iasse.MasaamadePedro,quecontinuavanopaçoese arrogava direitos quase de mãe, mãe que ele na prática não tinha,intrigaraosuficienteparalevaroseu«menino»aordenarquepartissem.

Mariarespeitouosilênciodamãe,enquantoseentretinhaa darpevidesao papagaio que estava pousado na balaustrada davaranda, mas tinha

tantasperguntasparafazer,queacertaalturanãoresistiu:

-Masamãesempremedissequetinhaacertezadequeeraum rapaz.Nãoficoutristequandodescobriuqueafinaleraumarapariga,eu?

Leopoldina mudou de posição na chaise longue, escondendo umesgardedor,eordenou:

- Maria da Glória, está a trabalhar, volte já para a mesa e recomece aescrever...

Maria,quetinhadi iculdadeem icarquieta,obedeceu,e,denovocomapenanamão,insistiu:

-Mãe,digalá,opaiqueriaumfilho,nãoera?

Leopoldinaencolheuosombros:

-Opai icoutãofelizdeteruma ilha,quenuncamaispensounorapaz.Andavaconsigoaocolotodoodia,eaamaFlorica icavadoidaporqueeleestavasempreairbuscá-laaoquarto,epasseavaconsigoportodoo lado,eelasemsaberdesi.

Maria franziu o nariz e escreveu, satisfeita. Lembrava-se. Lembrava-sedecomoopaiapunhaàscavalitas,jáelatinha3ou4anos,lembrava-sedecomo amontava na sela à sua frente no cavalo, lembrava-se daquele diaemqueopaireceberaoembaixadoringlês, sematirardocolo,eosenhor,fardado e aperaltado nomeio de uma tarde de calor terrível, olhara cominveja para o imperador do Brasil, vestido com umas calças de linhobrancas, de tamancas nos pés, umchapéu de palha na cabeça, e umamenina,Maria,asuafilhamaisvelha,aocolo...

Depois franziu o sobrolho, os olhos ixos no rosto de Leopoldina, tãoparecidocomodela:

-Mãe, então porque é que o paimudou tanto? Porque é que se zangatantas vezes, sem eu perceber porquê? É por causa da IsabelMaria? -acrescentou,baixinho.

A imperatriz virou os olhos para o horizonte, enevoado com o calor do

dia,eesforçou-separacontrolaravoz:

- Não, Maria, é só porque anda cansado, porque tem muitaspreocupações.ManterunidoesteBrasiltãograndenãoéfácil,eporisso équehojetevedepartircomtantapressa...

MasMariaviucomoamãemordiao lábiosemdarpor isso,comoasuacarasetornavaduraetensa,tãomagoada,tãoinfeliz.

Sabiaquediziamqueeraumameninamimadaecaprichosacomoopai,ouviamuitobemasaçafatasqueixarem-sedassuasbirras,eas damasdamãe murmurarem, mal ela virava as costas, que «a princesa Maria daGlóriatemogéniodosBragança»,masguardavaessascenasparalongedavista da sua querida mãezinha. Desde sempre, desde quese lembrava,pelomenos,evitavatudooqueapudessefazertriste,maistristeainda.

- A Florica dizia sempre que eu era do tamanho de um porco bravoquando nasci e que a minha mãe quase tinha morrido ao trazer-me aomundo.Eramesmo,mãe?

Leopoldinasorriu,espantada:

-Umporcobravo?AimeuDeus,comoéqueeuheideeducar princesasquandoas amas falamdessa formaà vossa frente?A rainha de Portugal,comparadaaumporco...

Mariariu:

-Maseraounãoera?

- Era grande, realmente era, tinha e tem os meus ossos pesados, mascomquemsepareciamesmoeracomoseupai.Excetoos olhos,queforamsempreclaroscomoosmeus.MasaFloricatem razão,Maria,omédicoeramau, você era o meu primeiro bebé, e foram seis horas de grandesofrimento, mas acredite que mal olheipara si, esqueci tudo. Depoistocaramossinosecomeçaramasfestas...

Contou-lhe como o seu batismo acontecera com toda a pompaecircunstâncianaCapelaReal,noConventodeNossaSenhorado Carmo,decomooavôJoãoeaavóCarlotaJoaquinatinhamsidoescolhidosparaseus

padrinhos, falou-lhe dos retratos que mandara pintar dela, pequenina erechonchuda,equeagoraestavamemcasa doavôFrancisconaÁustria,eemcasadatiaLuísa,emItália,edepoisestendeu-lheamãoepediu:

-Maria,chamaaRosaparameajudar?Tenhodemeirdeitar.

MasaRosa,vindamisteriosamentedasombra,chegouantesmesmo deMariaterfeitomençãodeselevantar.

Maria deixou-se escorregar para o chão de pedra fresca, o vestidoaberto em seu redor, a cabeça encostada à pernada cadeira, o braço, devezemquando,aafastarumamelga,perdidaempensamentos.

Aos7 anosnãoera ingénua, eperceberahámuitoque amãeera umaprisioneira na própria casa, a quem só eram consentidos longos passeiosnas lorestaseentreter-secomasuacoleçãodemineraise preciosidadesde todooMundo,obrigadaavivernumaaladopaço,para onde todos osdiasseretiravalogodepoisdojantar,eonde icava, enquantooscapangasdopaimontavamrondaparateracertezaquedalinãosaía.

Ouvira asdamasdamãedizerqueopainãoagiapor ciúmesdequeasuamulherpudesse sair ou receber gentedequemelenãogostava,masporque assimpodia «ir à sua vida», lembrava-se de que a expressão eraessa,«iràsuavida»,semreceiodequeelaosurpreendessenummomentoinconveniente.

Sabiaqueamãetinhaapenasduasoutrêsamigasverdadeiras,porqueasoutraspercebiamqueeraDomitíliaquemmandavanopai, e era a elaque prestavam vassalagem. Há dias, o pai levara-a a ver umas terras nofundodo jardim, para lá das fontes queo avô João construíra, para lá daalamedadeárvoresfrondosasqueoavôJoãoplantara,nofundodolagoedorio,masaindaperto,su icientementepertoparaqueamamãepudessever da janela, o palacete que estava a construircom todo o luxo, para a«outra».Queestranhosetornaraestepaço. Jurouasimesmaquequandofosse rainha, rainha de Portugal, ai damulher que se chegasse perto doseumarido,aidoseumaridoseatraíssecomoutramulher.Fosseseutio,seu primo, fosse quem fosse.Ai isso jurava-o, perante Nossa Senhora daGlória,suapadroeiraemadrinhadocoração.

Deitei-me já dia, ia o Sol atrás dapalmeiramais alta do jardim, porquenão quis deixar a imperatriz, porque não con io em nenhuma das suasdamas, mas acabei por a deixar com D. Francisca Castelo Branco, que,emboratenhacometidoogravepecadodeapresentaraamanteDomitíliaàimperatriz,apedidodoimperador,nãoétunamulhermá,apenasfraca.

Antesdela,estivenoquartodeD.LeopoldinacomfreiAntónio Arrábida,de quem gosto do fundo do coração, umhomem sério, sincero e sereno,quehámuito fazpartedesta família. Ficoudesesperadopor ver o estadodaimperatriz,eseique,comodiretorespiritualdo senhorD.Pedrodesdejovem, se culpa certamente por não ter conseguido educá lo comodesejava,denãoveracatadososseussermõeseassuasreprimendas,queseiseremconstantes(esei-o,porquequandoofreidesaparecepordiasousemanasdosalmoçosejantares,ealguémperguntaondepara,éopróprioD.Pedroquenos conta, entre risos, queopobre «amuou»porque ignoraosseusraspanetes,eseincomodapoucoquandolherecusaaabsolvição).

D. Leopoldina pediu-lhe que rezasse missa ali no quarto, e acabámostodosdenovoemlágrimas.

O resultado foi que dormi um sono curto e sobressaltado, em queprimeiro julgueisonhar,masdepoistiveacertezadeouviro imperadoraregressar,ocavalolevadoparaoestábulo,asbotascardadasa subiremasescadas até ao patamar, depois a estacarem por segundos, e de novo aganharem pressa em direção aos aposentos da imperatriz. Sentei-me nacama, com o coração a bater descompassado, e estendia mão para ascontas do rosário, e pedi a Deus Nosso Senhor que aprotegesse. Pedi,imagine-se,queanoitecomaamante,naluxúriadequenuncasecansa,otivesseacalmadoetrazidoàrazão.

Sóaqui,nosegredodomeudiário,possoconfessarque,então, izoquenãodevia,nempodiater feito:atravesseiaantecãrnara,apenas com umamanta sobre a minha camisa de dormir, e aproximei-me da porta doquartodaimperatriz.

OuviavozcantadadeD.Pedroasaudaramulher,actunprimentarcomtuna graça frei António, que não lhe devolveu a gargalhada, e a lançar oinevitável piropo sobre a pobre da D. Francisca Castelo Branco, quebateramambosemretirada,felizmenteparaocorredor, senãoter-me-iamapanhado neste ato vergonhoso de espionagem.Depois, ouvi ranger astábuas da cama, e adivinhei que D. Pedro se sentava ao lado de D.Leopoldina e, pelo tom da voz que me chegava,lhe pedia perdão. Nãoentendi as palavras,mas tambémnãoprecisava deasouvir, tantasvezesaquelespedidossentidosedoídostinhamsidorepetidosaolongodosanos.Como a minha pobre D. Leopoldina se deve sentir cansada dearrependimentos que não duram mais do queminutos, como se devesentir enganada por tantos e tantos anos se terdeixado levar por eles,convencida de que era a juventude domaridoque o levava a agir assim,certa de que o seu amor seria su icientepara o resgatar aos mauscaminhos,seguradequeos ilhos,sim,quequandoos ilhoschegassemsedecidiriaaserunibompaidefamília.

Deipormimarecordarquequandoomeuprópriomaridomorrera hánove anos, na miséria depois de ter servido três Bragança, comome vaiacontecer a mim, tinha pouca ou nenhtuna consideração por este jovem,que acreditava não ter a força de caráter para ser rei, quanto maisimperador. Se o visse agora, ele que sempre foi uni homem da justiça,tímido, mas honrado, coraria de vergonha, e provavelmente poria emcausaalealdadeaoseusoberano.

Foi a voz de D. Leopoldina que me resgatou de pensamentos tãodesleais, porque a inal D. Pedro é rei, escolhido porDeus, pormuito queele próprio, pelo menos no papel, se pre ira considerar tuna escolha dopovo, desdequeopovoqueira oque ele quer,mas esse é outro assunto,paradivagarnumoutrodia.

0 que importa é que, naquele quarto, a imperatriz, apesar de doenteemagoada, repetia com coragem a ameaça de partir e de levar consigo osilhos, insistia, com palavras duras e irmes, que não compactuariamaiscomapouca-vergonhadarelaçãocomDomitília,exigiaqueaquelamulherfosse corrida de novo para São Paulo, que os seus ilhosnão lhe fossemimpingidos, que Pedro se comportasse como uni imperador, como umexemploparaosseussúbditos.

Pedroescutava-aemsilêncio,eela,maismãedoquemulher, persuadia-o:

- Não é possível que governe mn país em crise, que enfrente os seusinimigos, que seja capaz de convencer Portugal e a Europa a aceitar aindependência do Brasil, se não consegue renunciar a u m capricho deamor,ecomportar-secomounirei.

Eapesardoesforço,edoarquelhefaltava,insistia:

-Pedro,ecomoéqueosportuguesesvãoaceitarMariacomosuarainha,como é que a vamos enviar para o meu pai, como é quevamos venceraquelesquequeremaclamarMiguelcomoreidePortugal,seoimperadornem tempo tem para receber os embaixadores ou discutir os contratos,porqueestádemasiadoocupadoaconstruirpalacetesparaasuaamante?Esquece-sedequeatéa legitimidadedeMariaaotronoépostaemcausapor aqueles que alegam que depoisda Independência, ao anunciar queficava,aorenunciaraotítulodeprincesadaBeiraparaanossa ilha,edeotersubstituídoporunitítulobrasileiro, implicitamenterenunciouaosseusdireitosàcoroaportuguesa?

As lágrimas saltaram-me dos olhos, queria entrar por ali adentro eabraçá-la, dizer-lhe que desistisse daquele homem. Escutei, com penaehorror,umprantoimenso,emque,entresoluçosvindosdo luidoda alma,implorava:

-Pedro, nós temos quatro ilhas e um ilho, o imperador que o senhorsemprequis...porquememagoaassim?

Encostadaàporta,ocoraçãonagarganta, tapeiacaracomasmãos. Dooutrolado,ossoluçosdoimperadorjuntavam-seaosdela. Jásabiaoqueiaacontecer: D. Pedro ia agora jurar que não voltaria a ver Domitília,convicto,naqueleprecisosegundo,dequeerasincero, quemalsaíssedaliiria convocar os embaixadores e os ministros, dar ordens e escrevercartas,masamanhãtudoestariaigual...

Ouvi a porta bater, e os passos do imperador a afastarem-se, e volteirapidamente para o quarto. Horas depois, o imperador partia, primeiroparasereunircomogoverno,edaíparaafrentedebatalha.

OsorrisodeLeopoldinaquandoaencontreimais tardenavaranda dospapagaios, comD.Maria daGlória deitada ao seu lado, dizia-meque pelomenosoencontroserviraparaaserenar,equemsabelevá-la aacreditar,umavezmais,quedestaéquetudoiriamudar.Enquanto eleestiverfora,pelo menos Domitília não estará com ela, e não terá o desplante deaparecernopaço.

AindavinhaapensarnabênçãoqueseriapassarunslargosmesessemmecruzarcomacaradeTitíliaedasuacamarilha,quandofui intercetadaportunadascriadasdequartodaimperatriz,quemepergnmltou:

-Senhora,quefaçoaestevestido?

Olhei o vestido coçado e sem forma que a criadamemostrava, esentiuni misto de pena e desespero. Lembro-me tão bem de quandoD.LeopoldinachegaraaoBrasil.Esperei-a,comomeumaridoeumamultidãode gente, no cais, a baía cheia de barcos coloridos por bandeirinhas detodas as cores, e a praça coberta de lores garridas, as melhores colchaspenduradasdasjanelas,talequalcomoemPortugal.Vira-adesembarcar,alta, ruiva, os olhos muito verdes, elegante eatraente. O seu vestido decetim verde, o peito generoso de tuna jovem de 20 anos a espreitar pelodecote,emnsorrisorápido,aalegrar-lhe asfeiçõeseafazer-lhebrilharosolhos, tinham contagiado de entusiasmo a corte e os populares, que atinham saudado com «vivas» deentusiasmo. Nove anos depois, e oitogravidezesmaistarde,estavatransformadanumamulhergorda,emboraacara mantivesse as feições suaves e delicadas e os olhos (pelo menosquando estava feliz ouentusiasmada) ainda mantivessem a vivacidade.Apenascom28anos,Leopoldinaera tunaestrelacadente,esquecidapelacorte brasileira, esquecida até pela sua família distante, que lhe escreviacomcadavezmenosfrequência.Apesardeseramelhordasmães,dasuaculturaimensa, da sua dedicação às causas dos mais pobres, perderamuitodogostopelavidae,suspeitavaeu,nãosabiacomodesembaraçar-sedos con litos interiores, que o amor ao marido e aos ilhos, o sentido dodever, e o sentimento de injustiça, de raiva e de solidão lhe provocavam.Distantesiamosdias,pensei,emqueforaregente,seenvolveranapolítica,emquedisserao«sim»àDeclaraçãodeIndependência,emqueconstavaasua assinatura, ao lado da de José Bonifácio, o primeiro-ministro amigo eadmirador da sua intuição e inteligência, agora no exílio só porque serecusara a aceitar Domitília, a aceitar que o imperador do Brasil se

comportassecomotunjovemsemresponsabilidades.

Olheidenovoovestido,tãogastoeusado,semsombradevaidade,esentiraiva.TodossepareciamteresquecidodequefoiestamulherqueconcebeuabandeiradoBrasil,overdedePortugaleoourodaÁustria,que,lúcidaeperspicaz,peranteaameaçaportuguesaescreveuaomarido,emincursãopeloNorte,acampadojuntodorioIpiranga(ejáenvolvidocomapaulista,seapobreimperatrizsoubesseoqueaívinha...),aconselhando-oa«colherofrutoqueestámaduro»,equeaofazertudoistorenunciara,comconsciênciaabsolutadosacrifícioqueaescolhaimplicava,avoltaralgumavezà«sua»Europa,sabendoqueoseuadoradopainuncaaceitariaosprincípiosliberaisqueomaridoabraçara(parajánãofalarnassociedadesdepedreiros-livresqueagoraocontrolavam).Eeraagoraestamulherqueestavareduzidaaquatrooucincovestidosdisformes,porqueomaridonemamesadalhepagava?Umapobre,queiaabrindoaspernaseoventreaosimpulsosdomarido,parindofilhosparaqueelepudessesomá-losaosbastardosemostraraomundocomoestavaemformaasua«máquinatriforme»,comobrejeiramentecomentavacomacorjadeamigosdebaixacondiçãoqueorodeavam;sempreemforma,mesmoqueosseusvalidoscontassemnascozinhasquea«doença»jáotomara,eodeixavaporvezesimpotente,apesardasarteseartimanhasqueaamanteutilizavaparalhedarnovoânimo,aamanteeairmã,quetambémengravidaradele,esabe-seláquantasmais,porquecertamentenãoseiamanter«foradeacão»nestasuaincursãomilitar...

Coreicomosmeusprópriospensamentos,ecorodenovo,aoregistá-losnestaspáginas,guardadasasetechaves,mascorrespondemdetalformaàverdadeque julgoque,seosconfessasse,nempenitência frei Antóniomemandaria rezar. Gomo verdade é que a pobre criada de quarto icou aliespecada,comovestidonamão,esperandotunaresposta.

Caí emmim emandei-a lavar e passar o vestido, porque sabia queD.Leopoldina ia pergtmtar por ele, se é que algumdia voltaria a vestir-se...Devotersuspirado,comfaltadefé,porquearapariguinhaabriu osdentesbrancosatuasorrisoenorme:

- Deus será bom com a nossa senhora, D. Francisca, e a senhora vaivoltaravestirestevestido,vai.Vaivesti-loquandoforpelomatoprocurarmais bichos paramandar à irmã, ou quando se perder pelos caminhos a

daresmolaaospobres...

Mandei-aseguiratoquedecaixa,quentmca iaidedarmuitaconversa,porque tudo o que se diz é depois comentado, mas se estes criados ecaboclos votassem, tenho a certeza absoluta de que o Brasil seriagovernadoporuniaimperatriz.

PaçodeSãoCristóvão,23denovembrode1826

arfafoiencontraramãe,apoiadanobraçodeRosa,apassearpeloseujardim,comochamavaaopedaçodeterrenoquetransformaranumaenormehorta.Leopoldinaadoravaasrosaseasfloresexóticas,masensinarosescravosdaQuintadaBoaVistaacultivarumahortacomespécieseuropeiaseraumpassatempoquetinhacomeçadohámuito,equejánaalturafaziasorrirosogro.«EatéPedro»,pensavaagora,inspirandomaisfundo.

No campo ao lado pastavam ovelhas e vacas suíças, que pediraà suairmãLuísaquelhemandasse,porquegostavadeleitedevaca,eacreditavaqueospríncipesprecisavamdeobeberparacrescerem fortes. Divertida,lembrou-sedequandolhepediraqueenviassebúfalos,porquegostavadoqueijo feito a partir do seu leite, obrigando opobre embaixador adesalfandegar os animais, perante o espanto detodos, embora, verdadeseja dita, animais estranhos era coisa banal no porto do Rio de janeiro.Infelizmente, nem todas as suas importaçõessobreviviam, porque aspobrescriaturastorravamcomoinclementesoldoRiodejaneiro.

Vendo Maria chegar, com a pequenina Xica pela mão - eraminseparáveisaquelasduas,pensouLeopoldina,satisfeita-,chamou-as:

- Meninas, apanhem-me aí esses morangos para que o chefe nos façaumabavaroiseparaoalmoço-disse.

-Mamãe,aXicavaicomertodos,não icanemumnobalde-queixou-seMaria, enquanto a irmã mais pequenina ia enchendo aboca de sumovermelho,eovestidoaospoucossetingiadamesmacor.

Leopoldina pediu a Rosa que a levasse até ao banco de madeira,àsombradaenormetíliaqueplantarapoucodepoisdealichegar,eincitouamaispequeninaavirparaoseucolo,indiferenteàsmãoslambuzadas.

-Maria,queroessesmorangos inteirinhos,ouviu?Evádizendoo nome

detodasashortaliçasemfrancês,alemãoeportuguês,porque seaminhadoença é pretexto para escapar às lições, pelo menos vai treinando aslínguas.

Mariaignorouaordemeperguntouantes:

-Mamãe,naÁustriaoseupaitinhaumcozinheiro,easuamãeoutro?

Leopoldinacorouporinstantes:

- Maria, se izesse o que lhe peço, em lugar de perguntas tontas,ficávamostodosaganharcomisso...

Maria, esperta, repetiu a pergunta em francês, e depois em alemão,sempre amesma, os joelhos na terra, indiferente ao pó que se colava aovestido,osolhosfixosnamãe.

«Oraiodacriançaéteimosa...comoeu,masbastantemenospaciente,oque talvez seja bom, mas é capaz de ser muito mau, seaquele meninoMiguel continua prepotente e maldoso como era», pensou para consigoLeopoldina.

Marianãodesistia:

-Mãe?

- Ai Maria, que perguntas. Não, no palácio de Viena não havia doiscozinheiros e duas cozinhas diferentes, mas havia muitos cozinheiros namesmacozinha,porqueeramsempremuitas,muitaspessoasparaalmoçare jantar.Eaquiéassim,porqueoseupaigostadecomidaportuguesa,oumelhorbrasileira,eeucontinuoapreferiracomidadaminha juventude,eporissotenhocáoFrançois,que,comosabe,éfrancês...

Mariasentiu-sederepentemesquinha,equisemendar-se:

-Mãe,aindabemqueéassim,porqueeutambémgostomuitodospratosdoseuchefe,eébomquesejaassim,porqueprecisode estarhabituadaaessacomida,nãoé?Porquesenão,quandochegaràEuropa,nãogostodenada,nãoé?

Leopoldina sentiu os olhos a picar. Era tão genuína, a sua Maria.Inteligente, rápida, mas pouco esforçada, como ainda ontem escrevera àsuairmãacontar,masgenerosaedecoraçãogrande.Nãosairiado Brasiltão culta, nem tão educada como o desejaria. Deus sabia comotinha sidotristeoepisódiodeMariaGraham,aúnicamulhernesteslongosanoscomque fora capaz de conversar de igual para igual, ilha de um almiranteinglês,cultaeviajada.Guardavaamemóriadastardesquetinhampassadojuntas,comodasmaisagradáveisdosúltimosanos.Etinhadepositadonelatantas esperanças: era ouro sobre azul. Uma mulher culta que podiaensinar as suas ilhas a seremasprincesasqueLeopoldinadesejava quefossem,prepará-lasparaquenãopassassemporprovincianasquandoumdiacasassemcomumpríncipeeuropeu,equeaomesmotempoestariaalinaquelacasa,comoumaaliada,umaamiga.

Pedro icara entusiasmado a princípio. Tinha de reconhecer que omaridosepreocupavacomaeducaçãodas ilhas,equereconhecia que asua própria formação académica fora de iciente ou mesmo má. Era oprimeiroa incitá-lasaestudar,echegavaasermesmoexigente eduro (eno dia seguinte, indiferente ou complacente, suspirou!), e vira napreceptorainglesaaoportunidadeparaaspequeninas.Aceitaramandá-laa Inglaterracomprarmaterialescolare livros,masde repente,deumdiaparaooutro,anunciaraqueademitira.Antes mesmodeelatercomeçado.Argumentaraquenãoerabomqueas ilhasdoimperadordoBrasil,numtempoemqueosbrasileirosolhavamcomtantadescon iançaquemalinãotinha nascido, fossem educadas por uma «estrangeira». Passara pelavergonha de despedir asua amiga por carta, e chorara dias a io deamargura: tudo lhe era roubado. Tudo. Confessara-se nesse dia a freiAntónio, epediradesculpapeloódio comque falavadaquelagentequearodeava: «Padre, só ciúmes e invejas, só intrigas emaldade. Sentiram-sepreteridas,perceberamqueGrahamtinhaoqueelasnãotinham,queeraculta,percebiaaquilodequeeufalava,tinhalidooslivrosqueeuli,enãoaguentaramociúme.Masparaquê?Que lhes interessaoqueconversavacom Maria Graham, se não estão minimamente interessadas naquelasdiscussões? E agora? Agora quem é que ensina as minhas ilhas? AgoraqueméquetemmãonaMaria,queprecisadedisciplina,deserobrigadaaestudar, porque ou dá ordens às mestras, ou pura e simplesmente asignora,ebatecomaporta.Padre,peçoperdãopelo meuódio,pelaminharevolta,mas comopodeopai dosmeus ilhosconsentir que estes ciúmesmesquinhos ponham em causa o futuro dasnossas ilhas? 0 futuro do

futuroimperador,padre?»

Mas sabia que frei António, coitado, não podia mais fazer do quegarantir-lhequenãopecava,eprometerfalaraPedro.Masambos sabiamqueoimperadorsóouviaquandolheconvinha.

Mariainterrompeu-lhe,comosempre,ospensamentos,pousando-lhenocoloumbaldeenormedemorangos.

-Mamãe,chegam?

As bochechas encarnadas, o suor a cair-lhe pela cara, as sardasmarcadas por chapéus sempre esquecidos. Leopoldina tomou o rosto dasuafilhaqueridaentreasmãosebeijou-lheapontadonariz:

- Chegam,minha querida. Vamos chamar o François, e esperar que assuas irmãs não o intercetem pelo caminho, senão não há bavaroise paraninguém.

Nessatarde,depoisdoalmoço,Leopoldinavoltouàsuachaise longuenavarandadospapagaios.JanuáriaePaulapartilhavamarededelinhopresaàparede,quebalouçavamcomospésnochão,eoPedro,que faria1anodentrodedias,brincavanoparquedemadeira queaamahaviamontadoaopéda imperatriz.Xicaentretinha-secom umcarrinhodelinhas,depoisdeterrecebidováriosralhetespor ter tentadodarpevidesaospapagaioseacabadoquasesemdedos.Mariasentava-se,denovo,namesadeverga,a pena na mão. Felizmente,Bela tinha sido chamada pela mãe para lheprovarunsvestidos,eLeopoldinasuspiroudefelicidade:tudovaliaapena,para poder assistiràquela cena. Os olhos pousaram no bebé Pedro, oscabelos lourosencaracolados, os olhos claros, «tão austríaco, como nós»,escreveraaindahádiasaoseupai.

E agora, o que vinha aí? Um outro rapaz? Desejava-omuito,mas tinhamedo. Não podia olhar para Pedro sem se lembrar de João Carlos, quemorrera com pouco mais de 1 ano, e de Miguel, que o Altíssimo levarapoucosminutosdepoisdenascer.Assuas ilhaseram saudáveis,grandes,JanuáriaMaria,decabelomaisescuro,PaulaMarianaumagrandemistura,mas decididamente Maria da Glória eFrancisca Carolina eram maisalemãs, mas mesmo Pedro, embora sem problemas de saúde, graças aDeus, parecia mais frágil do que elas. Seria a epilepsia dos Bragança, de

que o imperador também sofria eque tanto o assustava, que tornava oshomensdafamíliamaisfracos?-a inal,tambémtinhaapenasumcunhado,emuitascunhadas.

A mão escorregou-lhe de novo para a barriga, e um pensamento fê-laestremecer:

DequesexoseriaonovobastardodeDomitília,quemaisdia,menosdiavoltariaaengravidar,estavacertadisso?TambémeladeraàluzumPedro,que morrera com apenas vinte dias de vida, sem que amãe sequerestivesse ao seu lado, porque viajava com os imperadores para a Baía,indiferenteàdoençado ilho,que icaracomosavós. Obastardo,PedrodeAlcântara Brasileiro, tivera umas exéquias dignas de ilho de imperador,com a presença de altos dignitários da corteque, na ausência de ordensexplícitas do pai, decidiram embalsamara criança e promoveramcerimónias religiosas na igreja do Engenho Velho. Os oportunistas eramsempre assim, preferiam pompa amais do que o risco de o ofender compompaamenos.Tinhaamesma idadedoseuPedro,que forapoupado,eolhando agora para o sorriso do seu bebé, que lhe estendia uma rocamordiscada, que Deus lhe perdoasse,mas ainda bem que nãosobrevivera...JábastariaaestePedroIIdo BrasilaherançadeumImpériocheiodecontradiçõesediferenças, umImpérioque,descon iava,opailhedeixaria um dia delapidado einseguro, quanto mais se o tivesse dedisputarcomumrival,apadrinhadoporumamulher tãoponderosae tãomácomoamarquesadeSantos-títuloqueserecusavaapronunciaralto.

Maria, que estivera entretida com os lápis de várias cores, de repenteexclamou:

-Mãe,conte-mecomofoiaaclamaçãodopai,porqueamestra querqueeuescrevasobreisso...

Leopoldinasorriu-lhe,deixandoclaroquesabiabemoquea ilhaqueriaouvir, a parte da história que, desde pequena, já lhe contara vezes semconta.Mas,entrandonojogo,concordou:

-Eu conto, se as meninas Januária e Paula deixarem de se balouçarassim,queaindaacabamnochão.

- Amãe só vai contar porque aMaria quer ouvir aquela parte emque

ela entra - começou Januária, mas calou-se perante o olhar cansado damãe,asolheiraspesadas...

Paulaatalhou,sempreconciliadora:

-Conte,mãezinha,aXicaeoPedronuncaouviram,decerteza.

Leopoldina estendeu a mão e deu-lhe uma festinha na perna emagradecimento.

-Então,voucontar.QuandoovossoavôJoãovoltouparaPortugal,comaavóeostios...

-EabisavóMarianumcaixão-acrescentouPaula.

- Sim, e a bisavóMaria, que sódeixoude ser rainhaquandomorreu, ecujocorpofoiparaLisboa,nessaaltura,opapai icou comorepresentanteda coroa portuguesa no Brasil. Mas as Cortes em Lisboa não quiseramaceitaroBrasilcomoumpaísindependente,queriamcontinuaragoverná-locomosefosseumaterrinhaportuguesa,atéporquemuitosquelávivemnunca viram como oBrasil é grande, rico e poderoso. Nessa altura osportugueses e osbrasileiros começaram a icar zangados uns com osoutros.Eosportugueses,commedodequeosbrasileirosseproclamassemindependentes, e que pedissem ao pai para ser o seu imperador,começaramamandarsoldados....

- E aí a mãe e o José Bonifácio decidiram que o Brasil devia serindependente, não foi? - gritouMaria, entusiasmada, quase entornando otinteiro.

Leopoldinariu:

-Afinalsabeahistória,ounão?

-Vê,mãezinha,comoelasabe-aproveitouimediatamenteJanuáriaparadizer.

- Bem, não importa, vou continuar a contar. É verdade que amãe eraregente nessa altura, porque o pai tinha ido a São Paulo paci icar umasescaramuças,eéverdadequeograndepolíticoqueera,eé,JoséBonifácio

pediu a minha ajuda para tomar algumas decisões. Por azar, porquepreferiaqueovossopaicátivesseestado,foinessaalturaquerecebemosumadeclaraçãodeguerradePortugal,eaAssembleiaGeralachouqueeratempodedeclararaindependência.Masadecisãoeradopai...

-Masopaidisseque foiamãeque lheescreveuadizerparaeledar o«GritodoIpiranga»-interrompeudenovoMaria.

-Etu lembras-te,não?-exclamouJanuária, irritada,esquecendo-sedosolhoscansadosdamãe...

- Por acaso atéme lembro, quaseme lembro, tinha 2 anos, o Pedrinhotem1anoejásabeimensascoisas...

Leopoldinadeuumagargalhada-hámuitotempoquenãosesentiatãofeliz,abençoadascrianças.

- Então o pai decidiu que o Brasil devia ser uma nação independente,mascomooBrasilé tãogrande,ecomtantasdiferenças, tinha de serumimpério,unsEstadosUnidosdoBrasil...

- E o pai e amãe passaram a ser imperadores do Brasil? - perguntouPaula.

- Issomesmo, ilha. O pai foi aclamado no dia 12 de outubro de1822.SaímosdopaçoemcarruagenspintadasdenovocomasarmasdoBrasil,efizemostodoocaminhoatéàCapelaImperialporbaixodearcosdeflores...

Enacarruagem-evirou-separaMaria,queestavacoradadeexcitação-ia eu, e aMariadaGlória, comumvestidobrancode rendas, porque eraentãoanossaúnica ilha,a ilhamaisvelha,acontinuaçãodanovadinastiabrasileira...

- Ainda bemque nasceu o Pedro - disse Januária, deitando a línguadeforaàirmã.

Mariaencolheuosombros:

-Mamãe,conte,edepoisfomosàvaranda,eulembro-me...

Leopoldinariu:

- Já viu tantas vezes os desenhos do Debret, que é impossível nãoselembrar.Mas fomoschamadosàvarandadopaço,o largocheio, cheio, degente,todaagentevestidaapreceito,oscriadosdelibré, assenhoraseossenhores nos seus melhores fatos, e você foi a mais aclamada. Tinha 2anos, mas icoumuito direita emuito sorridente, opai pegou-lhe ao coloparaamultidãoaver,egritaramtodos«Viva, MariadaGlória,VivaMariadaGlória».

- Porque julgavam que eu ia ser a próxima imperatriz do Brasil? -perguntouMaria,quasecomosefalasseparasimesma.

- Porque gostavamde si, porque gostavamdo seu pai, que tinha tido acoragemdedizer«Fico»,edelutarpeloBrasil,aosolhosdos outroscontraoseuprópriopai,masnaverdadeporordemdele,que tinhapressentidooqueiaacontecerelhedisseraparaaceitarserimperador.

- E agora vou-me embora, para ser rainha do país que os brasileirosodeiam? Eu, que deixei de ser princesa da Beira, para ser princesa doBrasil,vouparaPortugal...Eseelesnãogostamdemim,mamãe?

Leopoldina olhou para a ilha, os olhos toldados pela emoção, etentourespondercomindignação:

-Nãoodeiamnada,Maria, quedisparate.O seupai abdicouemsi, eosportugueses icaram contentes pela promessa de uma rainha Bragança,ilha de D. Pedro, neta de D. João VI, que vai levar com ela uma CartaConstitucionalliberal...

- Mas, mamãe - disse Maria, subitamente a sentir-se uma migalhaassustadanoUniverso-,aavóCarlotaJoaquinaquerquesejaofilhodela,otioMiguel,asubiraotrono!Eopapaisabedisso,por issoéquequerqueeu case comele.Mas e se o tioMiguel nãoquer casarcomigo, se vão sertodos maus para mim, e vou icar longe de si e dosmanos, como a mãeficoutãolongedoseupai,dasuaqueridairmãedetodososseusmanos?

Januária e Paula pararam de balouçar a rede, Xica fechou a mão comforçasobreocarrinhodelinhascomquebrincava,eatéoPedrinhodeixoudebatercomarocanabordadoparque,eficouparadoaolhar.

Leopoldina sentiu o coração apertar-se, e os pulmões colarem-se àscostas, como se nuncamais fosse capaz de respirar. Estendeu amão emdireçãoà ilhamaisvelha,querespondeuaogestoprecipitando-se paraoseuabraço:

- Maria, vai tudo correr bem, vai tudo correr bem. Mas agora vãolanchar,quejásãohoras.

Enquantoasviaatravessarasalaacaminhodacopa, fechouosolhos epensou:«Querazãotinhaeu,quandoaindahádiasescrevi àmanaLuísaelhe disse, lembro-me bem das palavras exatas, que "a cada dia maisconvencidaestoudequeapenaspaixãomútuaeamizadepodemfazerumcasamento feliz,equenós,pobresprincesas,somosapenasdados,quesejogam e cuja sorte ou o azar depende doresultado". Pobre Maria, comogostavaquepudesse casarpor amor, na idadecerta, em lugarde lhe serimpostoumtio,dezasseteanosmaisvelhodoqueela,apenasquatromaisnovodoqueoseuprópriopai,umhomemde25anoscomumameninade7...Dadosquerolamsobreumtabuleirode jogo,equenomeuacabaramnestatragédia...QueasortesejagenerosacomMaria,comtodasasminhasfilhas»,suspirou.

Uma das criadas ajudou-me a trocar a roupa do dia e a preparar-mepara me deitar. Sentei-me no meu toucador para que a criada medesmanchasseocarrapito,erepareimunamadeixabrancaquenuncaviraantes.Eracertamenteresultadodaagitaçãodosúltimostempos,pensei.

Nasci em Lisboa e casei ainda criança com o meu tio, Fernando dePortugal e Castro, como agora a pequenina Maria vai fazer. Vim para oBrasilquandoFernandofoinomeadovice-rei.DepoisvolteiparaPortugal,para inalmenteregressardenovoaoBrasil,damadeD.Maria edepoisdeD. Carlota Joaquina, quando a família real fugiu de Napoleão. Tinhaponderadoregressar,quandoosreisdePortugalregressaram,masestavajá demasiado presa a D. Leopoldina, aos pequeninos infantes, e era aquiqueestavamtodososmeusamigoseamigas-quefariaeu,devoltaàquelepaís,semnadaquelámeprendesse?

Deipormimaestremecer,eacriadaperguntou-meoqueera,eparoudeescovar,commedodemetermagoadoadesembaraçarocabelo.

- Não foi nada, Isaura, só imia brisazinha mais fresca, que entrou poressajanela,graçasaDeus,senãoaindaestorricamosaquivivos-disse-lheeu.

Elasoltoutunagargalhadalivre,comaquelaalegriaqueestepovotem,esemcerimóniaslevantouasaia,comosequisesseapanharoarfrescoporbaixodela,exclamando«Vossemecêspõemtantaroupaem cimadocorpo,que não sei como aguentam». Repreendi-a, mas ela insistia que se Deusnospôsnoinundoassim,entãoéporquequeriaqueandássemosassim...

Mandei-acalar,odiatinhasidodemasiadolongoedi ícilpara conseguirdistrair-mepormuitotempocomestasconversas,quandobateramàportacom força. Era Rosa, que me pedia que me deitasse no quarto de D.Leopoldina,porqueardiaemfebreedelirava.

Aaçafatailuminou-meocaminhoatéaosaposentosdaimperatriz.A luzda vela iluminava o quarto que se enchia de sombras sempre que tunacorrente de ar entrava pela janela escancarada. Apesar da escuridãodaquela noite, sem luar, percebi imediatamente que D. Leopoldina nãoestavabem:agitava-senacama,gemendo,oscabelosruivosespalhadosnaalmofadabrancaensopadosdesuor.

-Não,nãoqueropassarnemmaisumminutonestebarco,Pedro, tira-medaqui, Pedro, nãome faças sofrermais - dizia aminha pobre senhora, etive de enxotar dali a criada que me acompanhava, que iriacertamenterepetir nas copas os delírios da imperatriz. Mandei-a buscar uni chá deervas,epediaRosaquefosseprocurar lençóis lavadospara mudarmosacama, ensopada, e quando as vi sair, e tive a certeza de que tinhamfechadoaportaatrásdesi,comeceiafalar:

-Soueu,aMariaFrancisca,senhoraD.Leopoldina,nãoseaflija,estáaquiemcasa,comigoecomosseusfilhos...

Leopoldina respondeu à minha voz, os olhos muito abertos naminhadireção,masnãotinhaacertezadequemevia.Nuncaforasua confidente,a imperatriz reservava os seus desabafos para as cartas e o embaixador,mas disse-me que me estava profundamente reconhecida pela minha

fidelidade,coitada,sãopoucosdefactoosquelhetêmsidoleais.

Pediu-medesculpa,imagine-se,amãogelada,atestaaarderemfebre:

-Não ligue, minha boa amiga, imaginava-me a bordo ainda... naquelahorrível viagem à Baía, acho que desde aí não estou bem, primeiro asdoresnasarticulações,comtodaaquelahtunidade,agoraisto...

Pobreimperatriz.Nãolhopodiadizer,evidentemente,masnãohavianinguémnacorteinteira,noRiodeJaneirointeiro,quenãotivessecomentadoaquelaviagem.Ahistóriacorria,inclusivamente,àbocafechadanoscafésenastabernas,naspraçasenosmercados.QuantasvezesnãodiscutioassuntocomfreiAntónio,eseibemqueoembaixadoraustríaconoRio,oMareschal,escreveupreocupadoaoimperadordaÁustria,queixando-sedoatentadoàhonradaimperatrizperpetradopeloprópriomarido.Emboranãogostedoarrogantealemão,partilhocompletamenteasuaopinião,tambémeuachoqueD.Leopoldinasedeveriaterrecusadoapartirnomesmobarcoqueomaridoeaamante,eafechar-senoseucamaroteetomarassuasrefeiçõessozinha,enquantoamarquesadeSantosjantavanamesadegala,àesquerdadeD.Pedro,eparacúmulocomanossapequeninaMariadaGlória,entãocom6anos,aoseuladodireito.Nãoseicomoéqueaminhasenhorapermitiuaqueledesaforopúblico,permitiuquea«outra»seapresentasseaoladodoimperadornosdesfilespelasruasdaBaía,enquantoelaiaàfrentemunaliteiraàfrentedoscortejos,digna,triste,atraindoasiocarinhodasgentesdopovo,masaabrirterrenoparaaamante,quedepressasetornavamunaconcubinaoficialquemostravaaomundoquetinhaoreinapalmadamão.

D.Leopoldinaapontouparaocopodeáguaqueestavanasuamesa decabeceira, e apressei-me a levá-lo aos seus lábios gretados, quase oentornandoquandoouviaimperatrizperguntar-me:

- Culpa-me, senhora marquesa? Culpa-me por ter permitido que essamulher, essa Pompadour, mas ignorante e sem nível, mostrasse a todosque é ela que governa o meumarido, que é ela que dorme comele e omanipulacomotunamarioneta?

Engasguei-mecomoembaraço.Masaminhasenhoranãoesperava umaresposta,epresumiacomsegurançaosmeuspensamentos:

-Secalhartemtodaarazão.Mareschalzangou-secomigo,disse-mequenãodeviaterconsentidonaquelafantochada,quenãopodiaterconsentidoquePedroa izesseconvivercomanossa ilhaMaria,queserissecomela,que aparecesse a cavalo ao seu lado, como sefosse ela a mãe, ela amulher... mas que podia eu fazer? Fui educada a manter os meussentimentos paramim, educada para a reserva, para aguentar o que forprecisoporrazõesdeEstado.Quepossofazer,que podiafazer,senhoraD.Francisca?Transformar-menumaDomitília, arrancaroscabelosàmulher,lançá-laaomareesperarqueostubarõesadevorassem?

Aodizeristo,cortouaescuridãodoquartocomgargalhadaamarga,quemefezestremecer.Masqueriacontinuaradesabafar.

-Oquevoudizer-lhe,D.Francisca,atribua-o,porfavor,àfebre,à mortequemevai levarembreve,eguarde-oparasi,peço-lhe:averdade é quefui educada para casar com tun príncipe, com uni rei. Um homem que,tambémele,soubessequenãopodiasujeitarasuamulherlegítima,amãedos seus ilhos legítimos, às humilhações a que Pedro me temsujeito.In iéis,oshomenssempreforam,ouvihistóriasdesdepequena decasos,eaffaires,nãoseiseomeupaitraiuaminhamãeouaminhamadrasta,masseofez,possojurar-lhequeofezemsegredo,semque essamáculacaíssesobre nenhtun de nós. Como podia estar preparada para fazer frente auma mulher do calibre de Domitilia? Mas, sobretudo, como podia estarpreparada para fazer frente a uni marido que não tem respeito por simesmo,quenãorespeitaosseussúbditos,quenãorespeitaasuamulhereasuafamília?Como?Diga-me,como?

Fiquei emsilêncio,não sabiaoque responder.Tantasvezesme acharacapazdelhedarconselhos, izeramesmojulgamentosprecipitados,dequeeraacomodadademais,quenãootentavaseduzircomoaoutrafazia,masagoraolhava-aepercebia-a.D.Leopoldinatinha razão-quepodiaapobreter feitocomumhomemcaprichosoeautoritário,massedutoreamorosoquandoqueria,oquepodiaterfeitoelaali, tão longedetodosaquelesemquemconfiava?

Masnãopodia icarcalada.Estiquei-meparaafrente,evolteiamolharopachocolocadosobreatesta,efuifalando,baixinho:

-Sópodemosagirsegtmdoanossaconsciência,nacertezadequeDeus

NossoSenhorvêtudo,sabetudo,enosreceberánoCéu,dando-nosentãoarecompensadetudooquesofremosnestaTerra...

Leopoldina fez-me aquele seu sorriso doce. Sentiu que tinha decontinuar:

-Sabe,euviaeducaçãoqueosenhorD.Pedrorecebeu,aliáscomo oseuirmãoMiguel.Nãodigonas letras,que isso icouaosmestres,mas aquelaque recebeudos seuspais.Ainda a senhoraD.Maria estava bem, e já sepreocupavacomaquelecasamento,deumameninaquenaalturatinha12anosquandochegouaLisboaeo ilho,maisvelhoe,semepermite,pazàsua alma, umpouco estranho também.O senhorD. João era introvertido,religioso, metido com os seus livros e plantas, e não era capaz decontraditar a mulher, a sua sogra, que, como sabe, nunca, deixou deconspirarcontraele, porquequeriapoder,mais poder,opoderqueagoraprocura em Portugal através do seu cunhado. Chegaram aqui ao Brasil,tinhaosenhorD.Pedro9anos,edesdeentão viveramseparados,comosilhosdivididosentrepaiemãe,ouseja,entreguesasimesmos,uniupaíssem hábitos de corte, onde todos osprotocolos que trazíamos pareciamridículosedesajustados.

Leopoldinaentusiasmou-se:

-Quandocheguei,edurantemuitosanos,estranheiqueavidadacorteacontecessesónaigreja.Aquelasmissassemfim,omeuqueridosogroembevecia-secomamúsicaquemandavacomporparacerimóniasintermináveis,sentia-sebemalientreospadreseasfreiras.Sesoubesseafaltaquesentidosbailes,daalegriaedadança!Assenhorasvestiam-seapreceito,masparairàmissa...DepoiscomPedrotudomudouunipouco,eaoqueconstaagora,comela,háfestasebailes,eabreoscordõesàbolsaparamobilaracasacomtudooquehádemelhor,eeuvivododinheiroquevoupedindoaoembaixadorquepeçadaÁustria,eDeussabequantasdívidasvãoficar,quantagentepobre,quantosescravosvoudeixardesvalidosporquenãofaziasentidoquenãoosajudasse,famíliasquevivemaquinaquintaenãotêmoquedardecomeraosfilhos...

Estavacadavezmais comovida.Há tanto tempoquevivianestepaço, enuncaD.Leopoldina falaraassimcomigo.Semtermnmarido e ilhoscomquem partilhar os meus sentimentos, sentia-me, naquelemomento, tão

sozinhacomoaimperatriz.Quetempodesperdiçadoem quenospodíamoster ajudado mutuamente, nem que fosse com estesdesabafos. E agoraLeopoldinasófalavacomosefossepartir.Disse-lhe,entrelágrimas:

- Senhora, não fale sempre assim como se estivesse tudo acabado. Istovaimudar,osenhorD.Pedrovaicansar-sedaquelamulher,vaivoltarparasi...admira-atanto,pede-lheosseusconselhosparaapolítica, éasenhoraqueescreveascartasapedirsoldados,apedirfundosparaa guerra.Eosseus ilhos,espreitei-os todosquandoestavamnavaranda dos papagaios:tãobonitos,todosjuntos,tãopróximos,tãoamigos...

Aimperatrizsorriu,aparentementemaistranquila,epediumaisunigoledeágua.Apesardeofegante,edotempoquepassava,continuou:

- Viu a Maria? Está tão engraçada, tem tanto do pai, naquela formaespontânea como diz as coisas. E aquela alegria que também é dele,porquesim,D.Francisca,apesardetudo,aindameapaixonaaalegria eoentusiasmodoPedro,aformacomoeleseatiraparaascoisassem pensar,mas com tunavontadeenormedeviver... Tenhoa certezade que, apesardeunipoucomagoadacomele,aMariaeopaivãotersempreimialigaçãoespecial.Aindaselembradecomoelealevavaàscavalitas,andavacomelatodo o dia ao colo, quando ela era bebé defraldas e os homens nemcostumamligar?

Acenei que sim. Ninguém podia negar a paixão que o imperadortinhapor crianças, a facilidade com que lhes pegava, brincava comelas. Haviadiasemquefaziadecavalonochãodoquartodebrinquedoseasdeixavatreparporeleacima.

FalardeMariaeradosassuntos favoritosda imperatriz,por isso iqueicontentequandodeixouDomitíliapormomentoseseconcentrounafilha.

-Tenhomedoqueelasejaunipoucopreguiçosa,comoele-disse-me,maisdivertidadoquepreocupada.-Éesperta,muitointeligentemesmo,massepuderfugiraotrabalhometódicoedisciplinadofoge...AindahásemanasescreviàminhairmãLuísaadizer-lhequeasmeninastinhamadoradoosvestidosquelhesmandou,emboraodeMariaestivessepequeno,elaégrandeparaosseus7anos,masquemostrarabastantemenosinteressepeloslivrosenviados...

Dei por mim a tranquilizá-la, lembrando-lhe que livros via a criançadesdequenascera,porquetodososdiaschegavamcaixotesdelesao paço,queLeopoldinacompravaeliacompulsivamente.Játecidosricosevestidosbonitos era coisa mais rara, naquela casa austera, e não admirava nadaqueasinfantasdelirassemcomasroupasqueatialhesmandavadeItália.

Confesso que me apeteceu acrescentar que ela própria não teriaperdido nada se em lugar de encomendar balanças para pesar as suasricas pedras, e espanadores para limpar a coleção de raridades quecresciatodososdiasmunadasalasdopaço,tivessepedidoàirmãquelhemandasse vestidos decotados e tiaras, chapéus, luvas e plumas, comoaquelascomqueagoraDomitíliausavacomtodoodescaramento.

Dei uni salto, quando a imperatriz me leu de novo os pensamentos-seriadafebre,oupossuíaagorapoderesdesconhecidos?

-Acredite que já fui vaidosa, e que percebo a Maria - disse-me, paraacrescentar: - Só espero que não engorde como eu, e não esteja tantasvezesemestadointeressantecomoeuestive.

Coreiedesvieioassunto:

-Mas lembro-me,agoraqueme faladisso,deunivestido lindode sedaqueasenhoraD.MariaLuísalheenviouemtempos... julgoque nuncaavivesti-lo.

Leopoldina olhou para o teto da sua cama de dossel, e ali manteveosolhosfixos,atéquemerespondeu:

-OsenhorD.Pedronãodeixouqueousasse.Dissequenãoera própriode tunamulher séria, acusou-me deme querer fazer desejarpor outroshomens...

Senti o sangue fugir-me da cabeça, e apertei a mão contra o braço dacadeira.Queestranhoeraestehomem,queperverso,capazde minar aospoucos a con iança de uma mulher nos seus atributos,roubando-lhe aoportunidadedesemostrar,paradepoisaacusarde sergorda,disforme,desefecharemcasa,edenãoseratraente...Masconseguidizer:

-Tinhaciúmesdesi,ébomsinal.

Leopoldinariubaixinho:

- Foi o quena altura quis acreditar, e por isso aceitei, quase que acheiumaformadelisonja.Masposse,D.Francisca,écoisadiferentedeamor...eaprendi à minha custa que imputamos aos outros os maus pensamentosquetemosnasnossascabeças.Nuncapenseiematrairoutrohomemsenãoo meu marido, mas ele nunca pensou em maisnada senão em seduziroutrasmulheres,comounicaçadorquenão podeverumalebreaossaltosnumbosque.EsperoqueMariatenhamaissorte...

Procureiconsolá-la,nãoapodiadeixarembrenhar-seagorana angústiadocasamentodafilha.Enchi-medecoragem:

- Dizem que o senhor D. Miguel não é mulherengo, e como sabe, D.Leopoldina,caseicomunitio,efuitunamulhermuitofeliz.

Leopoldinaapertou-meamão:

-Sabe,nooutrodiaescreviaomeupaiepedi-lhequetivesseumaconversasériacomomeucunhado.Comosabe,oMigueltemestadonacorteaustríaca,eesperoqueaaprenderacomportar-se...Fiqueimuitoanimadaporqueomeupai,eaminhairmã,meresponderamadizerqueeleestavadiferente.EprometeramtomarcontadaMaria,educá-latambém,porquevaiprecisar,coitadinha,desehabituarauniprotocolobemmaisrigorosodoqueaquelequesevivemunachácaranoRiodeJaneiro.Seiqueomeupaitemconhecimentodoquetenhosofridoaqui-poucolhescontonasminhascartas,que,comosabe,sãosempreabertaselidas,masosenhorembaixadortemlevadonotícias,asenhoraGrahamtambémlheescreveujádeLondres.Acreditoqueomeupainãovaideixarqueodestinodafilhaserepitananetaquetantoama,ePortugalémaispróximodaÁustria...

Leopoldina não chegou a acabar a frase, subitamente contorceu-se dedores,egemeualto:

- Vou perdê-lo, vou perdê-lo, está a vir. Socorro, Nossa Senhora daGlória,socorro...

Fiquei por momentos paralisada, mas depois gritei por Rosa a plenospulmões.

Aaçafataentroude imediato,eambaspuxámospara trásos lençóis dacama.Tingidosdesangue,nãodeixavamdúvidadequeaimperatriztinharazão:obebé,aindatãoprematuro,etãomaltratadopelaviolênciadopaiepelaansiedadedamãe,cansara-sedeesperar.

Os gritos ecoaram pela casa,misturando-se as vozes e ordens, cavalosmontados por criados ensonados que corriam em busca do médico,oirmãodeRosa,comaordemexplícitade irbuscarocurandeiroda aldeiamaispróxima,freiAntóniochamadoavirdepressa.

Fiqueinoquartoatédemadrugada,eviapobreimperatrizdarà luzumrapazinho,quenasceujámorto.

Estenderam-lhe o bebé, envolto em panos, e D. Leopoldina beijou-o,desenhando-lhe tuna cruz na testa. Sem lágrimas, mordendo o lábiocomforça,dissebaixinho:

-Vai,meufilho,vaitercomoAltíssimo,queembreveláestareicontigo.

Quando regressei ao quarto para inalmente me deitar, ajoelhei-me juntoda relíquiade SantiagodeCompostela, que lhe tinha sidodadapelamãeempequena,erezeicomtodaaminhaFé,pelapobreimperatriz.

Omédico, antes de partir, con idenciara-me que desde a noite em queLeopoldina fora pontapeada e caíra, o bebé estava de certo morto. Asfebres faziam temer que a septicemia já tivesse começado há unsdias. Aimperatriznãodeliravaquandodiziaquecorriaperigode vida.Pelajanelaaberta,naânsiadeumapequenaaragem,aindaouviossoluçosdeRosanavaranda ali ao lado. Confessara-me, embora sabendo-nie contra estasmagias,queocurandeirodasuaaldeiavira omalaespalhar-se,edissera-seimpotenteparaocurar.Todooseu podereasuamagianãochegariamparaasalvar...

MasRosa,pelosvistos,nãodesistia: tunaaragemtrouxe-meocheiro detuna vela, que certamente a pobre açafata acendia à mãe de santo.Nãoprecisavadeescutaraspalavrasparasaberaoração:porestahora, Rosaimploraria que os espíritos levassem a vida do homem que arruinara avidadasuasenhora,quemorresseele,equemorresseaoutra, masqueasuasenhoraficassejuntodela,juntodosseusfilhinhos.

Enterreiacabeçanaalmofadae,entresoluços, izminhasaspalavrasdetunaescrava.

PaçodeSãoCristóvão,7dedezembrode1826

enina,estejaquietaqueaqueimo-protestavaacriada,quecomumferroquenteenrolavaocabelodeMaria,paraquecaísseemcanudos,comoaimperatrizgostavadeaver.

MasMarianãoconseguia icarquieta,enumgestoimpacientesacudiuamãodacriada,soltandoumgrito:

-Ai,queimaste-me.

Acriada,aflita,pousouoferroepegou-lhenamão.

-Venha, menina, rápido, que lhe faço um curativo na cozinha - disse,levantando-a da cadeira onde estava sentada e puxando-a emdireção àcopa.

Maria soprava na mão e seguia-a, vociferando insultos, quando ambaspararamnopatamardasescadas,estarrecidas.Branca,pálida comoa cal,Leopoldina, ainda de camisa de dormir, coberta por um roupão de sedaoriental, comumpadrãodepássarose loresexóticas, preparava-se paradescer as escadas, apoiando-se em Rosa de um ladoe no corrimão dooutro,quandoosgritosdafilhaafizeramparar.

-MariadaGlória,oqueéquesepassa, ilha,quemaneirassãoessasdefalar? - perguntou, a voz irme, apesar do ar de fantasma quetantoassustouacriança.

Maria engasgou-se e tossiu. Sabia bemquenãopodia fazer queixinhasdacriada,nemtão-poucoconquistaracompaixãodamãemostrando-lheaqueimadura na mão, por isso escondeu o braço atrás das costas erespondeu,afogueada:

-Foiomeumaugénio,mamãe,peçomuitadesculpa...

-Amim,Maria?Peloqueouvi,nãoéamimquetemdepedirdesculpa...

Maria, corada, virou-se para a criada, abraçou-a e pediu-lhe desculpassentidamente:

- Desculpa, queimei-me por estupidez minha, e fui malcriada, peçoperdão.

Acriada,osolhosnafragilidadeassustadoradaimperatriz,aconchegouasuameninajuntoasi.Pobrecriança,quemnãoandavacomosnervosemfranjanaquelacasa?

Leopoldina olhou a ilha, preocupada. Como seria a partir deagora?Quem lhe explicaria que sob nenhumpretexto podia deixar-se levar pelaira,quemlhefariafrente,quandoelatinhaaquelaespontaneidadedopai,quelevavaaquelheperdoassemaspioresofensas, comotantasvezeselatinha perdoado? Recordava-se de ter escrito aMaria Luísa, tinha Mariauns2anos,aqueixar-sedequenãoadeixavamcastigaracriança,castigossuaves, mas disciplinadores, quesabia terem sido importantes -mas, aténa educação das suas próprias ilhas os amigos de Pedro se tinhamintrometido,pensoucomraiva.

Chamou-aasiea ilhaveioacorrer,escondendoacaranasuavidadedaseda,entrepássaroseflores,ocheirodamãe,aquelecheirosódela:

- Mãe, prometo, prometo que nunca mais me porto mal. Deixe-me irconsigoparabaixo-insistiu.

Leopoldinasegurouamãoqueimadaedeu-lheumbeijosuave:

-Vátrataraqueimadura,queesperoporsinosalão.

Maria icou encostada à balaustrada de pau-santo, a ver amãedescerpenosamente degrau a degrau. Lá em baixo, de mão estendida paraacolher a da imperatriz e a beijar, estava o antigo ministro do pai, JoséBonifácio de Andrada, de quem amãe gostava tanto, e o pai, derepente,tãopouco.

Acriadapousou-lheamãonoombro,edescolou-adabalaustrada:

- Venha,menina, essamãoprecisa de um curativo, senão amenina vaiveracoceiraquefaz...

Maria deixou-se levar, procurando manter tanto tempo quantoconseguisseosolhosláembaixo:quandochegasseaoseutempodereinar,não deixaria que ninguém decidisse por ela quem devia ou nãoser seuamigo, quem devia ou não escolher para ministro. Teria muitos ilhos ecuidaria deles, como a mãezinha tomava conta de si e dosmanos, masmandariamuitoebem,eotioMiguelteriaqueperceberquearainhaeraela. Nunca, mas nunca, deixaria que a esquecessemnuma ala de umpalácio,agissemsem lhedarsatisfações,eaobrigassemasuportargentereles,muitomenos amantes do seumarido.E nessemomento quismuitopartir,eumdiaserrainhadePortugal.

Mariafoiprocuraramãe,amãoenvoltanumaligaduraimprovisadapelaCelestedojardimdasplantasmedicinais,quecobriraaqueimaduracomumamisteladeervasque,defacto,aliviavamador.Acriadaprocurouconvencê-laavoltaraosaposentos,paralheencaracolaroladodireitodocabelo,masMariarecusou,destavezeducada,mascomfirmeza.Queriairtercomamãe,insistia.

A casa estava escura, como em todas as horas de grande calor, asportadas fechadas, a humidade a condensar contra os vidros, mas hoje,alémdesombria,estavatão,tãoestranhamentesilenciosa,pensou.

Espreitou no salão, mas as cadeiras estavam vazias, correu à casa dejantar, mas não viu ninguém, atravessou o pátio, e nem vivalma. Com ocoraçãoabatercomforçanopeito,correuemdireçãoàcopa,egelou:

Criados, criadas, açafatas, cozinheiros, jardineiros e toda a sorte depessoasquetrabalhavamalinopaçoalinhavam-secontraaparede, numailaaperderdevista,easenhorasuamãedavaamãoabeijar aumporum,eacadaumdirigiaumapalavraespecial,perguntavaporum ilhoouum pai doente, agradecia um cuidado especial, recomendava repouso oujuízo,eumporumcadaumdelesdesfazia-seemlágrimas.

Mariaprocurouorostodasuamestra,osolhosdasuaFlorica,o sorrisotranquilizadordamarquesadeAguiar,masnenhumadelaslhe retribuíaoapelo, ignorando-a, comosenãoavissemouestivessemtãoperdidasquenãosabiamoquedizer.

Puxou pelo braço de Jaime, que estava ali mais próximo, e perguntou,destroçada:

-Jaime,porfavor,diz-metu,oqueéquesepassa?

- A senhora imperatriz quis despedir-se de todos nós - respondeu ococheiro,controlandoacomoçãonavoz.

Mariateveummomentodeesperança.Talvezamãezinhafosseter como pai, era isso, de certeza. Talvez o tivessem combinado quando o paipassara lá em casa para falar com a mãe, e ela icara tão mais bem-disposta, talvez o pai tivesse inalmente entendido queDomitília era umamulhermáemandasseaBelaparacasadela,etudo icariacomodantes.Eopai,estavacerta,voltariaaandarcomelaàscavalitas,opaiensinariaoPedrinho a caçar e amontar a cavalo, e o bebéqueestavanabarrigadabruxanuncachegariaanascer.Seodamãemorrera,odeTitílianãopodia,nãopodianascer.

Ficouencostadaàporta,atéquesentiuumamãonasua.AmarquesadeAguiar, de quem gostava tanto, apertava-lhe amão e pedia-lhe coragem.Coragem? Coragem para quê, queria perguntar, mas as palavras nãosaíam.FreiAntónio,queentrarasilenciosamenteatrás dela,pousou-lheasmãosnosombros,comaqueleseujeitosuave,edisse-lheaoouvido:

- Deus vai velar pela sua mãe, senhora D. Maria da Glória, e por nóstodos,masagoravenhacomigoatéaojardim,vem?

Mariavoltou-separaele,eopadrebaixou-seàsuaalturaeolhou-a nosolhos:

- A mãe vai para a Áustria, para o pé da querida tia Luísa e do avôFrancisco,éisso?-conseguiuperguntar.

FreiAntónio,emlugarderesponder,deu-lheamãoeconvidou:

- E se fôssemos dar uma voltinha ao museu da sua mãe, paraconversarmosumbocadinho?

Mariaseguiu-o,silenciosa.

GostavadoRealMuseuqueoavô João tinhacriadoparaamãe,para adistrairdassaudadesdacoleçãoderaridadesquedeixaraemViena,equeagora ocupava uma série de salas do paço,mais salasaindadesdeque oavô João fora para Lisboa com a sua corte, soldados e criados. Era dossítiosondemais feliz tinhavisto amãe.Lembrava-sedea vermostrar aopaiumanovapeçaacabadadechegaredecomo,então,elepartilhavacomelao entusiasmo, estudandoosdetalhes,rindo às gargalhadas, passando-lhe a mão pelos cabelos. Lembrava-se, ou lembrava-se de lhe teremcontado,talvezfossemaisisso,queopaieamãeandavamsemprecomelaaocolo,eque faziagrandesbirrasparasairdosseusbraços.Pareciaqueouvia a voz da mãe acontar-lhe: «Você era a primeira coisa minha, aprimeira coisa minhanesta terra nova onde tudo me era desconhecido,mas,maisdoquetudo,eraaprimeiracoisanossa,minhaedo teupai...AFloricaeraamaisdedicadadasamas,masaverdadeéquedurantemuitotemponão fezmuitomais senão andar atrás demim e de si», dizia a rir,para acrescentar: «Ainda hoje, querida, é a mais preciosa de todas asminhasraridades.»

Demãodadacom freiAntónio,Mariacontinuavacalada,osolhosagorapresosnummantodeplumas,delistasbegeselaranja-que pássaroteriapenas daquele laranja, mais laranja do que o laranja das laranjasportuguesas, pensou.Ao vê-la abrandar, o fradeparoupara olhar para omanto,fechadoentredoisvidros.Sorrindo,perguntou:

-Porqueéqueolhaparaali,senhoraD.MariadaGlória?

Maria,subitamenteentusiasmada,contou-lhe:

- Lembro-me que os meus pais receberam o rei Tamehaimeha II e arainhaTamehamalu,quefugiamnumnavioinglêsdasilhasSandwich, nãosei bem porquê, acho que foi como aconteceu quando os avósdeixaramPortugal. O meu pai deu um anel de brilhantes enorme àrainha, e umaespadamesmobonita e valiosa ao rei, e o rei deuaomeupai estemantolindo,eamimumabonecadepalha,comumasaiarodada,eumcolardelores. Quando se foram embora o meu pai pôs-me o manto sobre osombros, eu tinha 4 ou 5 anos e icava tãocomprido que arrastava pelochão,massenti-memuito importante.Depoismandou-meandarpelasala,eeufaziavéniasabrincar,eomeupaidiziaàminhamãe,queria,demever ali debaixo daquelaspenas todas: «Leopoldina, aMaria da Glória vai

seramaisbonitadasrainhas.»

FreiAntónioapertou-lheamãocomforça:

-Evai,senhoraD.MariadaGlória,evai...

Mariaabriuosseusenormesolhosazuis,epelaprimeiravezconfessou:

-Queromuitoserrainha,paraomeupaieaminhamãeterem orgulhodemim,masqueriaserrainhaaqui,aopédevocêstodos...ouentãoqueospaiseosmanosviessemcomigo...Estevequaseparaacontecerassim,nãoesteve,freiAntónio?

Ofradeacenouquesimcomacabeça:

- Não seimuito dessas coisas,mas falou-se que o seu avô, o senhorD.João,ficariaaquinoRio,queseriaasededoreino,eseriaoseupaiavoltarparaPortugal,comoregente...

-Omeupai,eamamãeetodosnós?

FreiAntóniohesitou:

- Como lhe disse, só lhe posso contar o que fui ouvindo, mas o quesediziaeraqueoavôJoãoqueriaqueosnetos,ofuturodadinastia, ficassemnoBrasilcomele,queasenhoraD.MariadaGlóriaficasse...

- Eu?Ficava cá semamãe?Maseu tinha2 anosquandoo avô JoãofoiparaLisboa,eamãenãoseseparavademim...

Ofradeatalhou,rápido:

- Nem foi preciso a sua mãe dizer nada, o seu pai disse logo quenãodeixava os ilhos, e como a sua mãe estava à espera de bebé, aindaquiseramqueosenhorD.Pedrofossesozinho,masdepoishouveaí umasescaramuçasna cidade, e acabarampordecidir quedevia ir o seu avô, eficaroseupai...

FreiAntónio já estava arrependidode se termetidopor esta conversa,pelaHistóriarecentedoBrasil,emquetudomudavatão depressaqueeradi ícil encontraro ioàmeada,emgrandepartepor culpadas constantes

mudançasdeopiniãodosenhorimperador.

Felizmente,Mariadistraía-sefacilmente:

- Porque é que viemos ver as coleções damãe? - perguntou,enquantoexperimentavaospesosnabalançapreciosaqueLeopoldinaficaratãofelizquandooavôFranciscolhaenviaradaÁustria.

Chegavaomomentodi ícil.FreiAntónioencheuospulmõesdear. Comodizer-lheque tinhasido,apenas,aúnicacoisaque lhe tinhapassadopelacabeça para a resgatar daquela cena macabra da imperatriz, como umespírito a pairar pela casa, em despedidas e agradecimentos, como sequisesse deixar as contas da alma saldadas? Como explicar-lhe que, embreve, só aqui no silêncio destas salas de pé-direito tão alto, nestascampânulasdevidro,nestesmostruáriosdepedraspreciosaseraridades,encontrariaaessênciadasuamãe?

Mariaestacoufrenteaumcestodepalhacarcomidotecidoem redordeumhomemmumi icado,sentadoevestido,dequesóseviamosossosdospésdescalçoseacabeça,oumelhoracaveira,quesaíadoinvólucrocomoque a buscar ar. «O corpo mumi icado de umAymara Titicaca, cujatradiçãoobrigaaque se coloquemdentroda cestaosobjetospessoaisdomorto.»Leratantasvezesaetiquetaqueamãeescreveracomasualetradesenhada e segura. Com a intuiçãodas crianças, sobretudo a de umacriança que tinha nascido e crescidoneste ambiente de intrigas econspirações,desarmouopobrefrade,indodiretaaoassunto:

-Querdizer-mequeaminhamãeestáadizeradeusàspessoasporquevaimorrer?

Direita, os seus cabelos arruivados a emoldurarem uma cara branca esardenta, a boca do pai, os lábios salientes e gordos, parecia pronta acomportar-secomoumaaustríaca:engolirasemoçõescomoumarainha.

Nãoforaissoqueviraamãefazer,vezapósvez,peranteashumilhaçõesdo pai, perante a morte dos seus bebés, frente aos olhares gulosos doscapangas do imperador, que lhe vigiavam todos os passos? Não fora istoque vira a mãe fazer quando escondia as lágrimas queesborratavam atintadascartasqueescreviaàsuaqueridairmãLuísa,aoseupaieaoseutio, e sempre que passava um dia, e depois outro, sem que essa família

distante lhe escrevesse de volta? Não fora assim que assistira a que, aospoucos,despedissemospolíticoseascamareirasdequemmaisgostava,aseparassem dos empregados favoritos, dos embaixadores que arespeitavam,detudooquelhedavaalegria?

Frei António, emocionado, virou-se para a múmia para a qual Mariaolhava, de mãos atrás das costas, e, de costas agora voltadas para acriança,respondeu:

-SenhoraD.MariadaGlória,osmédicosdizemqueasuamãeestámuitodoente, e ela sentiu hoje a necessidade de ver e falar com aspessoas dequemgosta,de lhesdizer issomesmo,parasesentirmaisempazconsigomesma,masissonãoquerdizerquevámorrer...Deus NossoSenhorquerqueestejamossemprepreparadosparaomomento emqueElenosqueiralevarparapertodesi...

-Deusnãoprecisaparanadadaminhamãe,maseueosmeusmanos,sim-respondeuMaria,derepentecasmurraedecidida,para acrescentarnumtomaltivo:

-Estepasseioestáterminado.Boatarde,freiAntónio.

Evirando-sedenovoparaamúmia,envoltanoseucesto,ficouaouvirospassosdofrade,semoutroremédiosenãoafastar-se.

Quando ouviu a porta do fundo fechar-se sobre os gonzos, sentou-senumdosbanquinhos juntoda janela,olhouamatacerradaeverde, cheiadevida,quesubiaatéaotopodosmorros,edeixouaslágrimas caírem-lhepelacara.No«cesto»damãe,comonodeAymara,ia colocarasuabonecafavorita,aMariaPequeninacomoamãelhechamava,porquetambémeraloiraedeolhosclaros.Assim,fosseparaondefosseamãe,iriacomela.

A luz do candelabro de seis velas que trazia na minha mão trémulaprojetavasombrasassustadorasnocorredor.Tivemedodetropeçaredeodeixarcair,deitandofogoàcasa,masrespireifundo,econtinuei ocaminhoparaomeuquarto,rezandobaixinho.

Pouseiaúnica luzque tinhaemcimadaescrivaninha,e retireia chavedagavetado iogrossodeprataque traziaaopescoço:precisavadomeudiário,precisavadedesabafar,precisavadeescreveroqueme ianaalma,nestanoitequeeraamaisterríveldequetinhamemória.

Fiqueiestarrecidaquandocedopelamanhã,comapenasalginuashorasde sono, deparei com a imperatriz, de roupão, vagueando pela casa, emdespedidasemocionadas.Mal tive tunaoportunidade,segureicom forçaobraço da imperatriz e guiei-a de novo para os seus aposentos, antes quedesfalecesse à frente de todos, ou fossemotivo de galhofa eescárnio dosespiõesdeDomitília, que a estahora já a teriamavisadodequeo estadode saúde da imperatriz se deteriorara irremediavelmente. Imaginar acorte da amante a ridicularizar D. Leopoldina enchia-mede raiva, massabiaqueeraexatamenteissoqueestariaaacontecer...

Aceitei,poucodepois,opedidodeD.Leopoldinaparaquetodos os ilhosfossemchamados aoquarto, e foi como coração a sangrar que vi chegarMariadaGlória, Januária,Paula,Francisca,ePedroao colodaama.Numavoz fraca, ordenou-lhes que se sentassem na sua cama, e por milagreencontrou forças para conversar com naturalidade, pergtmtar-lhes pelosestudosebrincadeiras.Atésorriraquandoaamadopequeninoimperadorlhe mostrara como ele já era capaz de dar palminhas, e estava exímio amostrarondeagalinhapunhaoovo.

Aocairdodia,noentanto,asdoresvoltaram,maisfortesdoquenunca,enumaagoniaimensaD.Leopoldinaimplorou-mequechamassemomédicoeopadre.Apesardosmedicamentosdoclínico,edasmezinhasdeRosa,asdoresnãocediam,eaminhaadoradaimperatrizalternavaentreosonoeodelírio.

Umadassuasoutrasdamas icaracomelaatéàsdezdanoite,ea essahoraeuvierasubstituí-la.

Subitamente,a imperatrizacordou,osolhosazuismuitoabertos,amão,nervosa,apuxarparalongedatestaumamechadecabeloquenosúltimosmesessetornarabranca.

-Marquesa,peço-lhequeaceiteescreverumacartaque lhevou ditar -disse-me, e eu respondi que achava boa ideia que escrevesse ao pai, àirmã,edesabafasse,equecomtodoogostotranscreveriaassuaspalavras.

-EentregaacartaaMareschal?Diz-lhequetemdeseguirem segredo,que ninguém a pode ler? Marquesa, consegue levá-la daqui,sem que osespiõesdeDomitília,oshomensdomeumarido,aleiam,adesviem?

Assegurei-adequesim,semsaberseseriacapazdecumpriramissão,mascon ianteemqueDeusNossoSenhormehaviadeiluminar,mehaviade ajudar.Rosadeu-lhemais tinia colherdo remédioqueo médico haviadeixado, e segurei-lhe na mão até que a febre desceu, e conseguiuadormecer. Só saí de junto dela quando a sua respiração icou regular eserena,atrevendo-meabeijar-lheatesta,pobremenina, tãosozinhaetãotriste,aquemtodaaalegriafoiroubada.

Queprovafoiouvirasuamágoa,asuador,e transcrevê-laemsilêncio,escutarosseussoluçosegemidos,sempoderconsolá-la.

Rosa saiu imediatamente, pelas portas do fundo, só espero quetenhaconseguido - espero que sim, rezo que sim - fazer chegar a carta aMareschal, através dos caboclos da fazenda, que amam esta minhasenhoramaisdoquetodaacortejunta.

Antes de a enviar, no entanto, copiei-a, para que a possa mandar denovoseaconteceralgtunacoisaàimperatrizouseoshomensdeRosanãochegaremaoseudestino.

Guardo-aaqui,entreestaspáginas,escondida.Escondidacomaminhaangústiadetersidotestemunhadetunadortamanha.Masestacartaéotestemunhodocompromissoqueassumidevelarpelasprincesas,peloPedrinho,pelomenosatéqueD.Pedrovolteemedestituadopaço,comocertamentefará.Zangadoconsigopróprio,encontrarádepressaumbodeexpiatório,maspoucomeimportaissoagora,oudepois.Masmesmoquememandeemboradaqui,nãodeixareidecumpriraordemquerecebi,juro-oporDeus.Seaomenostudodesseunivolte-face,eoimperadordaÁustriativessedódafilhaedosnetoseosmandassebuscar.Masenquantoessaajudanãochegar,queNossaSenhoradaGlóriamedêforçasparacumpriroprometido.

PaçodeSãoCristóvão,10dedezembrode1826

casacontinuavaenvoltanumsilêncioperturbador.Sóascigarrascontinuavamasuachinfrineira,indiferentesaosdramasdaquelacasaerguidanomeiodomatagalquelhespertencia.Amãeestavadoente,nãosepodiafazerbarulho,disse-lheFloricalogodemanhã.Aoveracarapreocupadadasuamenina,acrescentoulogo:

-SabequeochefeFrançoisfezumenormepiquenique,comtudo oqueameninaMariamais gosta, e vamosdarumpasseio grandedecarruagem,comasmanas.

-Vamos ao jardimBotânico, e andardebarcona lagoa?E se calhar atépodemos ir à praia, e correr na areia - exclamou Maria, subitamenteradiante.

- Se quiser... acho que a senhoramarquesa de Aguiar ainda não tinhadecididoodestino...

-EtambémquerosubiraomorrodeSantaTeresa,porqueamãe gostamuitodo cháde taperibáque se faz comas folhasque crescemaopédomiradouroeeuquerotrazer-lhas...

-Jámeparecemuitopasseio,masdigaissoàsenhoramarquesa, queelaé capaz de deixar que vá, pelo menos a alguns desses sítios,mas agoravista-seevamostomaropequeno-almoço,quenãopodemsairsemcomer.

Mariaeas irmãsforamaoHortoReal,ederamumpasseiode barconalagoa, protegidas por aquela fortaleza de montanhas, hojeenvoltas emnévoa. E Maria e as irmãs subiram a Santa Teresa, e cada uma delasapanhouumramodetaperibáparatrazeràmãedoente.

JanuáriaaindaprotestoucomaamadafilhadeDomitília:

-ABelanãopodeapanhar loresparaamamãe,porque foiamãe dela

quepôsaminhamãedoente.

Maria puxou-a para junto de si, pôs-lhe o braço à volta do pescoço edisse-lhe,deformaaquesóasduasouvissem:

-Januária,nãodigasisso,porqueaamadaBelafoiescolhidapor«Ela»evaifazer-lhequeixas,edepoisapanhastu,eapanhaamãeportabela.

Januáriabaixouosolhos,easduasafastaram-se,comPaulano encalço,emdireçãoaoutroarbustoflorido,longedeBelaedacriada.

Masdevoltaaopaçonãoasdeixaramsubiraoquartodamãe.

Januária gritou com a criada, Paula tentou correr pelas escadas deserviço,mas foi apanhada pelamão forte da sua ama, Xica choramingouencostada à porta do quarto, mas Maria, estranhamente obediente,estendeuasfloresàmarquesadeAguiar,epediu-lhebaixinho:

-Porfavor,entregue-asàminhamãe,epeçaàRosaparafazercom elasaquelechádequeelatantogosta...

Depoisescapou-separaavarandadospapagaios,eescondeu-sena rededepano,tapandoacaracomolinhobranco,emsilêncio.

Seriaassimquesesentiaummorto?Acaratapadacomumpano,comoviraalgumasvezes?Concentrou-se.Tinhade rezar,de rezarmuito. TinhadepediràSenhoradaGlória,àsuapatrona,tinhadepediràmãe desantoeatodasasforçasdaNaturezaquesalvassemamãezinha. Obarulhodascigarraseraensurdecedor, e estranhamentehojenãoa sossegava. Tapouosouvidoscomasmãos,eacabouporadormecer.

Sento-me aqui, em frente da minha escrivaninha, e nem forças tenhopara escrever. Mas depois obrigo-me, como quem se quer libertar doveneno da mordidela de tuna serpente, e para isso tem de chupar aprópria ferida. Sento-me aqui, por momentos, porque em breve terei devoltaraoquartoondeaminhaqueridaimperatrizperdeasforcas, cobertajáporummantodealheamento,queémenosdolorosodoqueaversofrer.

Sento-meaqui,porqueosacontecimentosdestediatêmde icarescritos,esó depois serei capaz de voltar para a sua beira, com o coração maisapaziguado.

HojefoiDeusquemeinspirou,tenhoacertezadisso,quandodemanhãdecidiqueerapreciso tirarascriançasdopaço,porquenãopodiammaissuportaresteambiente lúgubre,estesilêncioconfrangedor,emandeiquesaíssemapassear, senãodaqui apoucoestãodoentes dosnervos, senãofordocorpo.EaindabemquedeiordensàsdamasqueasacompanharamparapermitiremàpequeninaMariadaGlória quefosseaomorrodeSantaTeresa,comasirmãs,apanhar lorese folhasparaochádamãe,porqueoquehojeaconteceunestepaçonãofoiparaosolhoseouvidossensíveisdecrianças, embora a esta hora pelo menos a pequenina Maria já foicertamentepostaapardohorrorqueaquisepassou, infelizmenina,quetalvez encontre algum consolonosbraçosda suaFlorica, que a embalaráatéqueadormeça.

OsespiõesdeDomitíliadisseram-lhequeaimperatrizmorria, queoutramaneira há de dizer o que se passou? Fizeram-lhe certamente chegar oprognóstico do médico, que não lhe dá mais de umashoras, um dia nomáximo, ou intercetaram a carta que o ministro Paranaguá, chamado aopaço,escreveuapediroregressoimediato doimperador.Oqueseiéqueela soube, e em lugarde se fechar emcasa, e pedir perdão aDeuspelosseuspecados,quemataramaminharainha,teveodesplantesemnomedese apresentar aqui no paço.Vestida já de preto,mas como se fosse paraumbaile,tantosanéisecolaresquenãoseicomoaquelepescoçoeaquelesdedosnãocaemcomopeso,umaostentaçãoquesótemporobjetivovexaraindamaisD.Leopoldina.

Quando,lívidadea lição,umadascriadasmeveiodizerqueamarquesadeSantossepreparavaparaentrarnosaposentosdamoribunda,primeiroolhei-aestarrecida,edepoisperdiacabeça.

-Essamulher,quenãorespeitanemtraiamulhernoleitodamorte, nãoentraaqui.

FreiAntónioeosministrosconcordaramcomigo.

Lembro-medequeomordomo-mordopaço,omarquêsdeSão João dePalma,vociferou,tãoindignadoquantoeu:

-Nãoépossívelfazertamanhacrueldadeàimperatriz,quenãomereceunadadoquerecebeuemvida,quantomaisnestacondição.

Masfuieuquelhefuidizer,nacara,quenãoaceitariatamanha afronta.Fecheiaportadoquartodaimperatriz,pus-meàfrentedela, da irmã,doscunhados, e de toda aquela corja, e, com amaior friezadeque fui capaz,disse-lhe,omitindopropositadamenteafantochadadotítulo:

-AsenhoraD.Domitíliadeviatervergonhanacara.Volteparasua casa,edeixeapobreimperatrizempaz.

Re ilouqueeracamareiradaimperatriz,queninguémlhepodia vedaraentrada dos aposentos da senhora que jurara servir, choramingou, acretina, como se a estivesse a ofender ou a acusar injustamente,e, claro,acabou porme ameaçar com o dedo, de que seria expulsa dopaço, eu eaqueles«senhoresqueaíestãodentro,equeseibemquem são»,gritando,paraquemaquisesseouvir,que«omeusenhorD.Pedro nãovaiconsentirtamanhaafronta».

- Assim será, senhora D. Domitília, mas agora quem sai é a senhora -disse-lhecomredobradaconvicção.

A sua voz tinha atraído aopatamaros empregados, e as criadas, que aolhavamtãoforadesi,quetemiunilinchamentoalimesmo.Temie desejei,Deusmeperdoe.

Felizmente,umdoscunhadosnãoaguentouodesprezonomeu olhar,emesmoairmãBeneditateveconsciênciadequeDomitíliaestavaairlongede mais, e, pegando-lhe no braço, levaram-na, entre ameaças histéricas,para longe desta casa, e antes que as meninaschegassem. Sei queDomitília não mente, sei bem que o imperador, mesmo nestas penosascircunstâncias, vai despedir e ostracizar quem izer frente à sua amante,como jádespediueostracizouministrose amigosde longadata.Eela,eafamíliaeosamigos,nãoveemmaisnadasenãoasuaambiçãodepoder.

Mas julgo que icaram assustados com amultidão que aos poucosvemenchendo estes jardins: já corre a notícia da doença terminal daimperatriz, e é espantoso como chega tanta gente hmunilde, queacendevelas e reza novenas, acende incensos e entoa cânticos que mesãodesconhecidos. Pedempela vida da sua imperatriz, e Paranaguá garante-

meque,semorrer,vingarãooseudesgostonamulheraque atéohomemmaishtunildenestaterraatribuiacausadasuamorte.

Sei que a esta hora Domitília já escreveu a D. Pedro, e a sua cartacruzar-se-á certamente com a de frei António. Mas o imperador nãochegará a tempo, em Santa Catarina, no Rio Grande do Sul, está a dias edias de distância, e eu icarei sempre sem saber se volta para chorar amulheremãedosseus ilhos,ouparaaplacararaivadasuaamante. QueDeusnosajudeatodos.

PaçodeSãoCristóvão,11dedezembrode1826

arfanãoconseguiadormir,apesardascançõesdeembalardeFlorica.Masfingiudormir,fechandoosolhoscomforçaetentandofazerarespiraçãoritmadadequemadormeceu,paraqueadeixassesozinha.Quandoaamaseretirou,saiusilenciosamentedacamaeabriuajaneladoseuquartonosegundoandar,quedavaparaaentradaprincipaldopaço.Espantada,viuasluzestremelicantesepercebeuqueeramvelas,velasnasmãosdegentequerezavaeentoavacânticos.Eramosverdadeirosamigosdamãe,quevinhamrezarporela,entendeuporfim,comovida.Ossoldadostinhamfeitoumabarreiranocimodaescadariaprincipal,porordemdeumcapitão,mastambémelessejuntavamàsorações.Devezemquandoumchoro,ouumgrito,cortavaaquelezunzumdistante.

Olhouparaocéucheiodeestrelas,dequejátinhadesaparecidoa Lua,eperguntou-se se era para ali que a mãezinha iria agora, se era ali queestavamoavôJoãoeosmanosMigueleCarlos.

Aojantar,ouviraascriadasnacopaafalardavisitadeDomitíliaao paço,de como insistira em ver a mãe, e de como a marquesa de Aguiar, freiAntónioeosoutrosatinhamimpedidodeentrarnosseusaposentos.Queraivaquesentia,quepenaquetinhadenãoteraliestado,paraamandarexpulsar de casa, a inal, a seguir à sua mãe, estavaela, Maria da Glória,Rainha de Portugal e dos Algarves, d'Aquém e d'Além-Mar em África,Senhora da Guiné e da Conquista, Navegaçãoe Comércio da Etiópia,Arábia,PérsiaeÍndia,etc.,etc.,ePrincesadoGrão-Pará.

Uma carruagem subia a alameda, e as pessoas iam-se afastandopaci icamente para a deixar passar. Quando se aproximou, Mariareconheceu-alogocomoacarruagemdeD.JoséCaetano,obispo doRiodejaneiro, a cruz pintada nas portas, as cores da farda dos cocheiros aanunciarquemialádentro.

- Vai dar-lhe a extrema-unção - disse baixinho para simesma, o nó na

garganta a apertar-se com mais força. Saltou do banco queencostara àjanela, e en iou o vestido que icara pendurado na cadeira por cima dacamisadenoite.Depoisabriuaporta,passoupelaamaadormecidaesubiuacorrer,ospésdescalços,atéaoquartodamãe.

Naquele preciso momento, a marquesa de Aguiar abria a porta aosenhor bispo, e frei António beijava-lhe a mão. Maria aproveitou adistraçãopara se esgueirar pela outra porta, onde chocou comRosa, quesoluçavacomoumacriança.

- Rosa, aminhamãe está amorrer? - perguntou, a voz estranhamenteserena.

A criada da mãe, a mulher que lhe era mais dedicada desde sempre,olhoupara a princesinha, o vestidodesapertadonas costas, os pésnus,eaconchegou-aasi.Mariaaconchegou-seaopeitograndedaescrava negra,epediu-lhe:

-Quandoobisposairlevas-melá?Paraeumedespedirdela?

Rosaapertou-a contra si commais força, emanteve-se comela ao colo,nasombradoquarto,comojáestavaacostumada.

Maria viu D. José Caetano chegar perto da cama, tirar de um saco develudoescarlatepequenos frascosdevidro, comuma tampa deouroqueresplandeciaàluzdoenormecandelabroquetinham colocadonamesinhapróxima. Não conseguia distinguir todas aspessoas que ali estavam,masviu-asajoelharem-seemredorda cama,enquantoobispoungiaatestaeopeito da imperatriz e encomendava a sua alma a Deus. A mãe pareciadormir, mas de repente viu-a virar a cabeça para o canto onde Rosa seescondiasempre,eperguntar:

-Rosa,estásaí?

A escrava estremeceu, como é que a senhora a chamava assim, comtantagentemaisimportantedoqueelaemseuredor,masMaria,osbraçosemredordoseupescoço,insistiu:

-Rosa,amãeestáachamar-te,vamosdepressa...

E,apertandomaisosbraçosàsuavolta,insistiu:

-Rosa,amãechamou-te,eeuvoucontigo,nãotenhasmedo.

Ao verem amulher sair da sombra com a princesa-rainha ao colo, umsussurro de espanto correu pelo quarto, mas nem Rosa, nemMariaolhavam as caras que as rodeavam, ou se importavam com o quepensavam.

Leopoldina viu-as aproximar-se, e a boca tremeu na tentativa de umsorriso:

-MinhaRosa,minhaMaria,nãochorem.Nãochores,Maria, deita-teaquiaomeulado,vêscomoDeusmevai levar,semdor,nem medo,para juntodele?

ArainhadePortugalescorregouparaoabraçodamãe,queestendiaaoutramãoaRosa,queabeijavasemparar,edeixouacabeça cairsobreaalmofada,exausta.

MarianãosabiadizerquantotempodepoissentiuamarquesadeAguiarapegar-lheaocolo,ealevá-ladaliparafora.

-Aminhamãemorreu,senhoraD.MariaFrancisca?

-Sómorre,minhaquerida ilha,quemnãovivenocoraçãodaquelesqueaamam-soluçouamarquesadeAguiar,abraçando-acomforça.

Marialimpouaslágrimascomascostasdamãoedisse,entresoluços:

-Nomeu,nuncavaimorrer,nomeununcavaimorrer.

Perdi-a.Sintoumvazioimenso,tunaderrotatotal.Aminhafé vacila.NãoaminhaFéemDeusNossoSenhor,nemnaVirgemMaria, quecertamenteintercedeu para que fosse dada paz à mulher mais extraordinária ebondosaque jamais existiu,mas aminha fénaHumanidade,noshomensque me parecem ser feitos mais à semelhança deBelzebu do que do

Altíssimo.

Envieiagora,porumMaresclialcomovido,deolhosencarnadospeloesforçoparanãochorar,umacartaminhaparaoimperadordaÁustriaeoutraparaMariaLuísaBonaparte,dandoatristenotícia,renovandoomeucompromisso,edizendoqueMariafoiaúltimapessoaafalarcomamãeviva,equetemtidotiniacoragemeumaserenidadeadmiráveisparatunameninade7anos,tãopróximacomoeradamãe,aindaporcima.Asirmãssãomaispequenas,eoirmãoumbebé,porissoaceitarãotudoistocommaisnaturalidade,masMaria,Mariafoiaprimeiraeaúnicafilhaduranteanos,aquerestavaquandoamortelevavaosirmãos.

Éverdadequeécedo,muitocedoaindaparaquetenhamrealmenteconsciênciadoqueaconteceu,eosdiasqueseseguemvãoserlongosedolorosos.EsperoqueD.TeresaeFloricasejamcapazesdeprotegerD.Maria,porqueimaginocomoacondessadeItapagipeestaráintimamentefelizecheiadeesperançadequeolugarvagosejapreenchidopelasuaverdadeiraama,Domitília,equeoimperadoravolteaencherdebenessescomotemfeitoatéaqui-primeirobaronesa,háumano,agoracondessadeItapagipe,eembrevemarquesa...

Ocaixãoda imperatriz,depoisdocorpopronto,vaidescerparao salãode baile, as janelas já estão cobertas de panos pretos, a sala parece umtímlulo,coitadinhosdosinfantesqueali terãodeentrarparao derradeirobeija-mão.

Sinto-meempossadapelamãedestesmeninos, e temo já o regresso deDomitília e da sua trupe, todos fazendo-se dos mais inconsoláveisdosamigos,prontosatomardeassaltoopaçoeasprincesas.Assusta-me,eseiqueaminhasenhorapensavanissonoiteedia,quepossamfazeralgumacoisa contra Pedro. Agora Domitília não descansará enquanto nãoengravidardenovo,naesperançadeserelaamãedofuturoimperadordoBrasil.

Tenho de velar com especial cuidado também por Maria. Preciso daajudadefreiAntónio,eacreditoqueoembaixadoraustríaconãovaideixardeme consultar, sabendo como sabedo teordaquela carta, e da vontadedaimperatrizqueserviu.FareitudoparaquesaiarapidamentedoRiodeJaneiro, para junto do avô como a mãe tanto desejava, para longe da

in luência desta gente tão reles, deste imperador tão cata-vento, que meparecepoucocapazdedefenderconsistentementeodireitodasua ilhaaotrono.

Pensareinissodepois,agoratenhodeirparajuntodela.

Maria bateu agora mesmo à porta do meu quarto. Estendeu-me asuaboneca favorita, que a tia Maria Luísa lhe mandou de Itália pora terachadotãoparecidacomasobrinha,epediu-me,avoztrémula:

- Senhora D. Maria Francisca, pode pôr a Maria Pequenina no caixãocomaminhamãe?

Acomoçãodeixou-mesempalavras, ajoelhei-mee tomei-lhedos braçosabonecaqueridaejureiàfilha,comojuraraàmãe,cumpriroseupedido.

E agora, esborrato as letras deste diário, com as lágrimas, que a inalaindatinhaporchorar.

PaçodeSãoCristóvão,13dedezembrode1826

eguraranamãodamanaJanuáriaedamanaPaulaMarianacomforça.Eraamaisvelhadetodas,tinhadeprotegerasmaispequeninas,pensou,nemamãeesperariadelaoutracoisa.

- Não acredito que amamãe esteja ali dentro - disse Januária, batendocomopé,comoquemsepreparaparafazerumabirra.

- A mana tem razão, Maria, a mamãe nunca icaria ali quieta dentro,sabendo que estávamos aqui - acrescentou Paula, a voz meiga,entrecortadaporfaltasdear,malditospulmões.

Mariasentiuosolhosencherem-sede lágrimas-nãoaschorara todas?,perguntou a si mesma, surpreendida, enquanto olhava em seuredor, àprocuradamarquesadeAguiar,Mareschal,oufreiAntónio, alguémqueapudesse ajudar. Sozinha não seria capaz de explicar amorte da mãe àsmanas,explicarquealidebaixodaquelepanodeveludopreto,comgalõesde ouro, com as armas do Brasil, estava de facto o corpo da mamãemagni icamentevestido,dentrodeumcaixãodepinhoportuguês, fechadoà chave, sobreposto por um dechumbo com as armas imperiais, cobertofinalmenteporumúltimodecedro.

José Bonifácio de Andrada viu-a ali perdida, as três meninas daimperatriz perdidas e sem mãe, e veio em seu socorro. As suas mãosgrandes e quentes pousaram-se sobre os ombros da rainha-pequenina,trazendo-lhe a força de que precisava. Na sua voz forte e seguratranquilizouasmanas:

- Altezas, ouvi-as perguntar se amamãe estava ali dentro, e posso-vosresponderqueéclaroquenãoestá.AvossamãeestánoCéu,de ondeolhapelasfilhasqueridas.

Percebendoquechegavampara levaraurna,apertoucommais forçaoombrodeMariae,pedindo-lhequefossesuacúmplice,continuou:

-Eagoraque jáestáescuro lá fora -disse,apontandoparaanoite quedescera,quenteeescura-,oqueéqueamamãevosdiria?

-Banho,rezarecama!-dissePaula,repetindoafrasequeD.Leopoldinalhesrepetiatodasasnoites.

-Issomesmo!PorissovamoschamaraliaFlorica,queacaboudeentrar,ecomtodoojuízovãocomela...

Januáriaolhou-o,desconfiada:

-EaMariatambémvaiparaacama?

Bonifácio sentiu o corpo de Maria tornar-se rígido sob o seu toque,e,comumavozdequemnãoadmitediscussões,atalhou:

-A senhora D. Maria ica aqui mais um bocadinho comigo, masmalacabarmosaconversaéclaroquetambémsevaideitar,quetêm sidodiaslongosedifíceis.

- Obrigada - disse-lhe Maria, voltando para ele os seus olhos azuis. -Obrigadapormeterdeixado icar,eobrigadaporterditoàsmanas aquilode a mãe estar no Céu, porque sabe o que sinto? Que a mamãeestá nomeio da mata, escalando até ao cimo de um morro, livre das zangas dopapai, rodeada de borboletas que tenta apanhar com o seucamaroeironovo, encantada com as cores dos papagaios. E quandoestá calor tomabanhonumacachoeiraedormeasestaàsombradeumatília...

Bonifácioaconchegou-aasi,aslágrimasnosolhos,edissebaixinho:

-Obrigado,senhoraD.Maria,consolou-memaisdoquetodasas oraçõesdomundo.

Mariapuxou-opelobraço:

-Oiçocavalos,tantoscavalos-disse,correndoparaajanela,assustada.

Noterreiroemfrentedopaço,acavalariaemuniformedegala, seguida

de gente sem im a cavalo, conselheiros, políticos, autoridades, abria alasporentreamultidão,aquesetinhajuntadotodoopessoaldacasa.Mariaviu,derelance,RosaeMalvinanumprantoincontido,equandoolhouparaacarruagempuxadaporoitocavalos,cobertosdepanosescuros,osolhostapados,percebeuqueJaimeeraumdoscocheiros,oseu Jaime ia levaramamãeparaoseuúltimorepouso.

Agora o ruído vinha de dentro de casa, passos pesados subiam asescadasdepedra,ressoavamnocorredordemadeira,eabriamdepar empar as portas do salão. O cardeal, monsenhores, padres, gente e maisgente, entravamna sala e dirigiam-separa a urnadamãe. José Bonifáciotentousegurá-laporumbraço,masMariapartiudisparada emdireçãoaocaixão.

Quandoacordounacama,chamouporFlorica:

-Oqueaconteceu?Jáacaboutudo?

Aamabeijou-lheoscabelosesossegou-a:

- Amanhã vamos pôr umas lores ao Convento da Ajuda, menina,masagora durma, agora durma que a Florica está aqui à sua beira, e cantaparaaadormecer.

A casa está inalmente mergulhada em silêncio. Foi preciso dar umcalmanteaMariadaGlória,eaamaFloricapermitiuqueJanuáriaePauladormissemnacamadairmã.TemipelasaúdedePaula,játãofrágil.

Foi uni dia terrível, duro, que nunca mais tinha im, e partiu-me ocoração,ouoquerestadele,verapequeninaMariadaGlóriacorrer paraocaixão,semquererdeixarqueamãesaíssedecasa,comosesónaquelemomentotivessetomadorealmenteconsciênciadequenãoiriaacordardosono,ouvoltardetunaviagem.

Não lhepermitimosque icasseparaasnovenase rezas,mas julgo quefoi importante para ela, como foi para mim, ver como a sua mãe era

adorada e venerada, comoas ruas estavam cheias de gente, e amultidãoseguia o féretro no seu caminho para o Convento da Ajuda, em oracão ecânticos.

Aconsternaçãoégeral,edisse-meofreiAntónioqueoExércitoteve deintervir quando tuna turba de gente apedrejou a casa de Domitília,deondeelaeosseusfamiliaresforamobrigadosasairpelaportados fundos,escoltados por soldados, estando escondidos em parte incerta.Tudo sesabe,eopovonãodorme.Correahistóriadequeaamantedoimperadorenvenenouaimperatriz,masmaischocadasestãoaspessoascomosmaustratos a que D. Pedro a submetia - muito sinceramente, e para bem dospríncipes, espero que não volte decidido a vingar Domitília, como elagarante a toda a gente que vai acontecer. Se o izer, avançando contraaqueles que foram leais à mulher, suspeito que não será imperador pormuitotempo.

Hápoucofuiaoseuquarto,ondeRosamantémumavelaacesafrenteàimagemdeNossaSenhoradaGlória.Sobotoucadordoquartoestátunacarta,comoselodoimperador.Nuncaachegoualer,talvezlhetivessedadoalgtunconsolo,talvezativessetranquilizado.Depoisencolhiosombros,esenti-meinvadidaportunaraivaimensa.Lembrei-medecomohojemesmo,enquantovelávamosaminhasenhora,ouvioembaixadordaÁustriacomentarcomoministroParanaguáqueDomitíliareceberatunanotadosenhorD.Pedro,emqueestedeclaravaqueavingaria,nemquetallhecustasseavida.Peladatadachegada,deveterescritoaumaeaoutranomesmodia.Deixeiacartacairdenovoemcimadamesa,comosetivessepeçonha.Quehomeméeste?Seráqueamortedaarquiduquesa,damãedosseusfilhos,ofarámudar?Porqueseráquenemmesmoquandoescrevoestaspalavrasacreditonelas?

PaçodeSãoCristóvão,15dedezembrode1826

rainhaestavaàmesadeestudo,amestraàfrente,olivrodeGeografiaabertonomapadePortugal.Nemamortedamãepermitiaquearotinadosseusestudosfosseinterrompidapormuitotempo,pensou,ligeiramenteirritada,batendocomospéscontraamesa,atéqueD.Luísaamandouestarquieta.

- A senhora D. Maria da Glória quer que lhe façam perguntas sobre oseureinoeficarsemresposta?

Mariaparoudebalouçarospéseendireitouascostas.Não,averdadeéquenãoqueria.

Voltouaconcentrar-senomapaeaprocuraraterradequeD.Luísa lhetinhaditoonome,quandoouviuogalopedecavalos,eobarulhodebotasabateremnaterra,eosgritosparaJaime,ordenando-lheque viessebuscaroscavalos.

Deuumsaltonacadeiraeexclamou:

- D. Luísa, é o papai, o papai voltou - e sem pedir mais autorizaçõescorreu pelo corredor, em direção à porta principal. Quando chegou aopatamar,umavozdoídatrovejavapelacasa:

-DeusEterno,porquemearrebatasteaminhamuitoamadaimperatriz?-diziaopai,umdosjoelhossobreoprimeirodegraudas escadas,comosenãotivesseforçaparasubirasescadas.Osguardas daportacontinuavamhirtos,eoscriadosquepassavamestacaram,semsaberemsedeviam icaraolharparaoimperadornasuador,ou ingirignorá-laecontinuarcomoquefaziam.

MasMaria,subitamente,nãotevevontadededescerasescadasacorrer.Tevemedodo pai, daquela voz de trovão, das ordens gritadas. E quandoviu que ordenava a um criado que lhe trouxesse imediatamente à sua

presençaamarquesadeAguiar,freiAntónioeo camareiro-mor,percebeuque, antes de se lembrar dos seus queridos ilhos, o pai ia tratar davingançaprometida à «outra». Este não era o pai das cavalitas, o pai queicavajuntodasuacamaquandotinhafebre,estenãoeraopaiqueamãelhe tinhaquerido«vender»nestesúltimosdias.Recuou instintivamente,esem se virar abriu a porta eentrou comoumcaranguejona sala azul. Sóesperavaqueopainãodecidissevirparaaquitratardosseusassuntos.

Os passos nas escadas izeram-na tremer. Escondeu-se num canto, pordetrásdeumcanapé,eesperou.Respiroudealívioquandopercebeuqueo pai se sentara na biblioteca, na sala ao lado, e que era para ali que aspessoas se dirigiam.Encostou o ouvido à parede, e escutoua conversa.Opai mandava embora do palácio os melhores amigos damãe? Sentiu-sesubitamenteenjoada,quaseavomitar.Abriuaporta enormedasalaazul,espreitando pela frincha: no corredor estava amarquesa de Aguiar emlágrimas, e frei António consolava-a baixinho,dizendo-lhe que tudo iaacabarbem...

Maria jurou a si mesma que nunca, nunca iria trair os seus súbditosleais. Podiam ameaçá-la com o que quisessem, mas os amigos a quemdesseocoraçãoseriamdonosdeleparasempre.

Pronto, jáestá.O imperadorchegouhojeaopaçoeasuavozde trovãoecooupela casa.Chamoupornós,pormimepor freiAntónio,pelopobredo camareiro-mor, e pelos vistos já tinha chamado oministro Paranaguá,porqueelechegousegundosdepois.Colocou-nosdireitos contraaparede,como se um pelotão de fuzilamento estivesse pronto adisparar, e disse-nos que prescindia dos nossos serviços a partir daqueledia, e quetínhamosatéaopôrdoSolparasairdopaço.

Frei António perguntou de que é que éramos acusados, e eu disse-lhequeestavaincumbidapelaimperatrizdevelarpelosseusfilhos.

0 que fui dizer! Gritou comigo como uni possesso, dizendo que velarpelos ilhos velava ele, e que me aproveitara da fraqueza da imperatrizparameinsinuarjuntodela,quetinhasidoeuquelhemeteranacabeçaos

ciíunes, as intrigas contra as damas que escolhera, e tivera o desplantemáximode a incitar a revoltar-se contra ele, o seumarido, que sempre aamaramaisdoquetudo.

Confessoque iquei estupefacta, e até eu, queo conheçodemenino,sóposso pensar que enlouqueceu, porque se esquece a todo omomentodoqueaconteceudefacto,cegoporestadoença,queistonãoéamor,comqueDomitíliaocontagiou.SeráqueRosa temrazão,eapaulista usademagianegraparaomanterpresoeescravodosseusdesejos,dassuasambições?

Depois soltounumpranto, cheiodepenade simesmo, é issomesmo,épenadesimesmoomaldequesofre,e,quandochora,choraporelee nãopelos outros, como se a culpa lhe fosse sempre alheia - roubam-lhe amulher, que jura que amava e respeitava, e tentam agora privá-lo da(outra)mulherque ama, e no segundo emquediz estas coisas julgoqueacredita nelas profundamente, e não vê nos seus amores, nem no seuestatuto, nem no seu papel de pai, qualquer incompatibilidade. ParaD.Pedro, o desejo legitima tudo, e como ele deseja tanta coisa, e tantacoisadiferente,oresultadoestáàvista.

Extraordinário senhor absolutista, que se diz liberal, mas que nãoconsentequeninguémlhefaçafrenteouocontradiga.

Saída salabrancacomoa cal e freiAntóniodeu-meobraço, sentando-menumdosbancosdocorredor,enquantomandavavirum copodeáguacom açúcar.Naminha angústia, reparei queD.Mariame espreitava pelaportaentreabertadasalaazul,assustada,sementenderoquesepassava,semperceberporqueéqueopaiporqual tanto esperavanãoiaacorrerpara juntodelaparaaconsolarpelaperdada mãe.Vi-aamordero lábio,zangada,epercebiquebastouverquemeramaquelesquesaíamdaquelasala cabisbaixosparaentenderqueo paicastigavaoscriadosque tinhamdefendido a mãe contra Domitília.Nem a morte da mãe a salvara da«outra».

FreiAntóniopuxou-medepoisparaunicantoedisse-mequeignorasseoaviso do imperador - é claro que era preciso sair da vista dele por unstempos,mas depressa voltaria a si, já tinha assistido a outros acessos deloucuracomoeste,«maspassamdepressa»,garantia-me. Efoielequemedisse que não éramos as únicas vítimas: os ministros foram demitidos,

excetodois,umqueestavacomelenoRioGrandedo SuleooutroporqueeraamigoíntimodeDomitília.Arazão?Orelatórioquelhetinhamenviadocom os detalhes da morte e cerimóniasfúnebres da imperatriz dizia,claramente, que quando o povo soubera das razões que a própria D.Leopoldinaalegaraparaasuadoença,reagiraemfúria,sendonecessáriorodear de segurança «certas casas» e «determinadas pessoas». D. Pedrotomou este depoimento como seo governo desse crédito ao falatório,considerando-osindignosdasuaconfiança.Assim,semmais.Despachou-osa todos, e parece indiferente à mossa que estes gestos fazem ao seuprestígioeaoseunome.

Chorei, ali à frente de todos, tal a angústia: para onde iria, e comomanteria a minha promessa à imperatriz, se o perigo agora era aindamaior? Amorte de D. Leopoldina, tão recente ainda, e em circunstânciastãodolorosas,em lugardeo impeliraafastar-sedaamante,de a castigarmesmopelodesplantedeseterqueridoimporàimperatriznoseuleitodemorte,leva-oaassumirabertamenteopartidodeDomitília.«QuedoCéuaimperatriz não veja isto», soluçava eu, tãodestroçada que pouco meralavamasaparências.

Baixinho, freiAntóniopediu-mequemeencontrassecomele, ao im dodia,nojardimdaimperatriz,eprometi láestar.Fugiparao meuquartoe,deitadasobreaminhacama,choreicomotunameninapequena.

Foi comos olhos inchados, e o vestido emdesalinho, queme encontreicomfreiAntónionojardim.

- Não posso icar longe dos príncipes - repetia, casmurra, agarradaàquelafrasequerepresentavatodoomeupropósitodevida.

FreiAntónioconcordou,efalou-medoseuplano:

-Lembra-sedeD.MarianaCarlota?

Olhei-o,surpreendida.Claroquemelembrava.Comoéquepodianãomelembrar?D.MarianaCarlotaera,comoeu,viúvadetunjuiz-conselheiro,oVernadeMagalhães, tãoamigodomeumarido.Depoisdasuamorte,ela,tal comoeu, tinhasidoacolhidanopaço, sóque, aocontráriodemim,eralinda, a mulher mais bonita que algtuna vez vi.E uma mulher bonitapróximadeD.Pedroera,econtinuaaser,lenha aopédofogo.Oinevitável

aconteceu, e o imperador assediou-a sem omenor decoro. Mas Mariana,dama de Leopoldina, recusou com todaa clareza os seus avanços. Aimperatrizamava-amuitoporisso.Masoamordaimperatriztambémnãochegou para a salvar do desprezo do imperador enjeitado, e a pobreMarianarecolhera-senasuachácara,aquipróximadaQuintadaBoaVista,onde só eu e D. Leopoldina a íamos visitar, porque a corte inteira, comoseu seguidismo habitual,a considerara proscrita, como sempre aconteciacomtodososquecaíamnadesvaliadosenhorD.Pedro.

Aminhacaradeveter-seiluminadodealegria:

- Frei António, como é que é possível que não me lembrasse de D.Mariana? Tenho a certeza absoluta que me acolhe, a certezinhamaisabsoluta.Eassimficavapróximadopaço,enamelhordascompanhias.

FreiAntóniosorriu,satisfeito:

-Tomeialiberdadedemeantecipar...

E estendeu-me uni envelope selado com as armas dos barões deBelmonte,enquantodizia:

-Falei também com Jaime, que é da máxima con iança, para a levar láamanhãdemadrugada,antesdetodaestacasaacordar.Devepartir, julgoeu,semgrandealaridoedespedidas,eestejadescansadaquedigoapenasaD.TeresaondeéqueD.MariadaGlóriaapodeencontrar...

Rindo,acrescentou:

-Epodeteracertezaabsolutaqueaquelameninasaberáchegaratési,semprequeoentender...

Sorri-lhe, com os olhos cheios de lágrimas, e recordei-me de comoD.Leopoldiname contara que a ilha se orgulhava de ter aprendido crioulocom o criado da cavalariça do paço. Jaime e Rosa eram, narealidade, osúnicoseloscomopaçoemquepodiaconfiar.

NomeuquartolianotacurtadeMariana,quemeconvidavaparaficarcomelaotempoquedesejasse.Diziaquetínhamosmuitoqueconversar.Confidenciou-mefreiAntónioqueoministrodaÁustriaquerquesejaelaa

tomarcontadopequenoimperador,porqueéaímicaquelhemerececonfiança,esabequeseriaaescolhadaimperatriz.Agoraqueeucaíemdesfavor,seriaunimilagreseMarianafosseconvidadaavoltar.TalvezMaresclialtenhaagorapoderparalevaroimperadoramudardeideias.Nãoécoisadifícil.

PaçodeSãoCristóvão,16dedezembrode1826

arfatinhaprometidoasimesmaserfria,trataropaicomdistanciamento,vingar-senele.Masquandooimperadorentrounoquartodebrinquedos,ondetentavaensinarasletrasàpequeninaXica,levantou-sedeumsaltoefoiacorrerparaele,seguidadasirmãs.

Oimperadorbeijouechorouechorouebeijoucadaumdeles, sentando-se no chão, comos seusmeninos à volta, o pequenino Pedroao seu colo,comosenuncadalitivessesaído.

Quando a ama lhe trouxe Isabel Maria, passou Pedro para o colo deMaria,eabraçouafilhailegítimacomforça,soltandoemsoluços.

Mariasentiaas lágrimasvirem-lheaosolhos,mas Januáriabatiaopéeprotestava:

-Papai,parecomisso,já!

Pedroolhou-a,espantado,masJanuárianãohesitou:

-Papai,opapaiabraçaaBela?Maselanãoé ilhadanossamãe,elanãoéórfãcomonós,elaéfilhadasenhoraquefezmorreranossamãe!

Mariaolhouassustadaparaopai, temendoa reação, e asamasna salaparalisaram no sítio onde estavam, mas Pedro deu uma gargalhada, epuxouJanuáriaparasi,fazendo-lhecócegas:

- Se voltas a dizer uma coisa dessas, minha tonta pequenina, o paipendura-tepelospésdapalmeiramaisaltado jardim.Belaéminha filha,comotu,egostavamuitodaimperatriz,comoamãedelatambémgostava...

E,pondo-sedepé,desafiou:

-Queméquequer fazerumacorridacomigoatéao jardim?Maria,não

tinhasunsmorangueirosparamemostrar?-acrescentou,esticandoamãoparaafilhamaisvelha.

Maria apertou o punho cerrado, como se não a conseguisse abrir eestenderparaopai,mastambémnãolheresistiu:

- Quero, pai, eu e a mamãe ainda há dias colhemos muitos para umabavaroise...

Pedroanuiu,osolhoscheiosdelágrimas:

-Avossamãegostavatantodemorangos...

E, estendendo os braços sobre a ninhada que tinha em sua volta,exclamou:

-Duranteoitodiasopai é sóvosso.Vamos fechar-nosaqui, não deixarqueninguémdeforanosvenhamaçar,evamosfazertodasas coisasqueavossaqueridamãegostava.Concordam?

Mariaesqueceuocaixãocobertodepreto,as lágrimasdamarquesadeAguiar, o afastamento de frei António, e deixou-se envolver peloimperador.

Oitodiascomopaisóparaelaeparaosmanos,oitodiasemque podiaperguntar-lhepelo tioMiguel, porPortugal, saber se agora,queamamãejá não estava, continuavam decididos a mandá-la paracasa do avôFrancisco,haviatantacoisaquequeriasaber.

OpaicolocouPaulaàscostas,porquesecansavasempremais aandar,eentregouosmaispequeninosàama:

-Vamosentãoveressesmorangos...

Sentaram-senomesmobancoemquehá tãopouco tempo tinhaestadocomamãe,falaramdoenterro,daspessoasquerezavamporela,dossinosquetocavamnasigrejasequeatéaliseouviam...

-Eseagorafôssemosdarumpasseioatéumbocadinhomaislonge?

Mariapressentiutudo.Nervosa,insistiu:

-Papai,porquenãovamosláaostalhõesdecimaverasvacasqueamãemandouvirdaÁustria?

Mas Pedro, com passos largos, descia na direção da casa proibida, eMarianãoteveoutroremédiosenãosegui-lo.

-Papai,porqueéquenãolevamosasmanasaveracachoeira,está tantocalor, podíamos molhar os pés - insistiu, os seus 7 anos a esgotaremargumentos.

PedrocantarolavaagoraoHinodoBrasil,satisfeito:

-Maria da Glória, canta comigo, quer embora sejas rainha de Portugalnãopodesesquecernuncaohinodopaísondenasceste...Sabes que és aúnicarainhaeuropeiaquenãonasceunaEuropa?

Mariadistraiu-sepormomentos:

-Éverdade,papai?

-Claroqueéverdade,oteupai,oimperadordoBrasil,mentia-te?

Mariainsistiu:

-Mas,papai,agoraqueamãemorreu,vaimandar-mepara lá? ÉqueaXicaaindaprecisamuitodemim,eaPaulaMariananãotemestadomuitobemdospulmões,ecomoamamãejácánãoestá...

Oimperadorestacou,subitamente,comovido:

-Nãoseioquevou fazer semos conselhosdavossamãe -disse,a vozembargadapelaemoção.

Mariatambémsentiuasuavoztremer:

- Não chore, papai, o papai também precisa de mim, vê? É melhor eudeixarPortugal,poragora...

Oimperadorenxugouaslágrimascomumgrandelençodelinho,eriu:

- Achomuito bem, voto que iques por cá. Já uma vez propus aMiguel

quevoltasseaoRioparacasarcontigo,vouinsistir...Elegostavatantodestacidade,eháseteanosqueestálonge...

Maria olhou para o caminho, e viu mais perto o solar da marquesa,aqueleemqueopaiinvestiatantodinheiroetempo:

-Papai,estoucansada,vamosparacasa?

MasPedro,comoumacriança,fazendo-sesurpreendido,exclamou:

- Jáqueestamosaqui,vamossóaliabaixoverasobras...Maria, já vistecomoestábonito?EébomparaaBela,queficacomamãeaquitãoperto.

JanuáriatrocouolharescomMaria,eemcorodisseram:

-Nãoqueremoscontinuarestepasseio,opapaiprometeuque icavaoitodiasconnosco,semverninguém.

Masoimperadorjánãoasouvia.Láaofundo,asirmãsreconheceramasilhueta de Domitília, mas nem precisaram de se recusar a continuar,porque subitamente D. Pedro disse às duas criadas que osacompanhavam:

-Levemosmeninosparacima,quesãohorasdobanhoedojantar.

E acelerou o passo, a cara iluminada de alegria, em direção ao grandeportãoqueagoraseparavaaquintadosolardamarquesadeSantos.

Maria bateu o pé e gritou zangada,mas o pai nem se virou. Quandoacriadaachamou,declarou,noseuestilomaisaltivo:

-Tratadatuavida,queeutratodaminha!

E,desesperada,começouacorrerderegressoaopaço,osuora cair-lhepelacara,ovestidoaimpedir-lheosmovimentos.

A amaFloricadissera-lhequeamarquesadeAguiarpartiraparaumachácaraperto,equeJaimesabiaqualera.Tinhadelhefalar,soluçou.

Ao lado da cavalariça, Jaime voltava de um recado, numa pequenacaleche,puxadaporapenasumcavalo.

Mariagritou:

-Jaime,leva-meàmarquesadeAguiar.

Ococheironãopareceusurpreendido,e,parandoacarruagem, esperouqueMariaentrasse.

Depois, semdizernada, fezochicoteassobiar,eocavalopartiua trote.Marialimpouosuoràmangaetirouossapatos,esfregandoos pésdoridospelacorreria.Asensaçãodequedesobedeceraaopaieà criadaenchia-a,subitamente, de satisfação. Enganavam-se se julgavamque mandavamnela.

Pouco depois, a caleche parou à frente da casa de D.Mariana Carlota,conhecia-aperfeitamente,vieracáváriasvezescomamãe,quecontinuavaa visitá-la, apesar de o pai não permitir que se falasse nonome dela nopaço,nãose lembravabemporquê,mas,bonitacomoD.Marianaera,nãolhecustavamuitoadivinhar.

EfoidesalinhadaedespenteadaqueocriadoaconduziuàvarandaondeD. Mariana estava sentada, ao lado de D. Maria Francisca. Ambas sepuseramempé,assustadas,quandoviramquemchegava,masMaria, semconseguir dizer nada, precipitou-se diretamente para os braços damarquesadeAguiare,escondendoacaranoseuvestido,soluçou:

-D.MariaFrancisca,opapainãovoltouparanós.

Amarquesa de Aguiar ordenou a Jaime que levasse a princesa a casa,depoisdelheterlavadoacaraeenxugadoaslágrimas.Disse-lhe,semterdementir,queosfilhoseramoqueopaitinhademaisprecioso,queMariaera a primogénita muito amada, e que ela, queconhecera o pai desdepequenino,jurava-lhequeelesemodi icarano diaemquepegaraaocolo,pelaprimeiravez,narecém-nascidaMaria.

-Nãoposso icaraquiconsigoecomasenhoraD.Mariana?-perguntouMaria, olhando para a dona da casa na esperança de que não negasse opedidodeumainfanta,deumarainha.

MasD.Marianafez-lheumafestanocabeloeexplicou:

-TantoeucomoamarquesadeAguiartínhamosomaiorprazer emqueicasse, mas hoje vai ter de voltar depressa, antes que o seupai iquepreocupado,eacondessadeItapagipeamandeprocurar...

Maria percebeu que punha em risco as damas da sua mãe, secontinuasseateimar,eentendeuquediscretamentelhepediamsegredo.

Anuiu:

- Eu volto já, e não digo onde fui, conto que fugi para a mata,como amamãefazia...Maspossovoltaravê-las?Possovoltarmaisvezes?

AmarquesadeAguiartrocouumolharcomD.Marianaeassentiu:

-Agoravádepressa,paranãolevantarzangasnemsuspeitas,mas sabeocaminhoeregressesemprequequiser.

E,apertando-acontrasi,acrescentou:

-Semprequeprecisar!

AcabeidereceberunibilhetedePhilippeLeopoldWenzel,barãodeMareschal,eaindaestouemsobressalto.Quemepodequerer?Dizquevemàsoitohoras,depoisdojantar,porqueprecisaurgentementedemefazeralguunasperguntas...Oqueseráqueseiqueelenãosabe,ohomemmaisbeminformadodestacidade,sempreprontoaouvirmexericos,quenumserãosaltitadecasaemcasaaescutaraquieali,equeconheceuasconfidênciasdaimperatrizmuitomaistempodoqueeu?OlhoocartãoetomoconsciênciadequenemoprimeironomedoembaixadordaÁustriaconhecia,tãohabituadosestamosafalardelecomo«Mareschal»,usandoapenasotítuloparaalguunaperguntadireta.Doupormimaolharparaoespelho,coisaquejánãofaçohásemanas,desdequeaimperatrizadoeceu,ereparocomoosmeuscabelosembranqueceram,comoasrugasseacentuaram.Sintoquepareçomuitomaisvelhadoquesou,sofriasconsequênciasdalongadoençadomeumarido,e,porquenãodizê-loaqui,nosegredodestasfolhas,1uncasamentoque,emboraserenoefeliz,foi

maisdeamizadeecompanhiadoquedepaixão-casarcomunitiotrintaanosmaisvelhonãoécertamenteahistóriadeprincesascomquesonhamosdesdemeninas.

Adiante.Mesmoquequisessepôr umvestidomais bonito,mesmoparaesteinsigni icanteencontro,nãotenhooutrodeluto,eseoimperadornãorespeita o luto, a camareira-mor da imperatriz respeita. Vou apenaspentear de novo este cabelo, talvez volte a fazer aquela trançade queFernandotantogostava,equedisfarçaestamadeixabranca...

Voutentarseromaisrigorosapossívelnosdetalhesdesteencontro, semme deixar levar por pensamentos que não têm cabimento aqui, nem emnenhumoutrolugar.Maresclialchegoupontual,e,paraminha surpresa,énitidamente companhia frequente de Mariana - surpresa, aliás, que osdivertiu a ambos e me deixou meia embaraçada. Mariana convidou-o asentar-se connosco na varanda, que este verão tem sido invulgarmentequente,nemasnoitesarrefecem.Quis tmiwhisky,em lugardeumcafé,eserviu-se a si mesmo, como se se sentisse absolutamente em casa. Olheiparaele,provavelmentepelaprimeiravez,egosteidoquevi.Nãoémuitoalto,emaisexercícioedietanãolhefariammalnenhuun,masoseucabeloloiroeosseusolhosazuis,obigodearruinadoeosorrisorápido, tornam-no atraente. Com todo o descaramento, perguntou-me que idade tinha, e,depoisdeunsminutosdeembaraço,disse-lhe:

- Senhor embaixador, se quer mesmo saber, tenho 44 anos, feitos emsetembro,masseiquepareçomuitomais...

Fiquei desconcertada quando nem sequer me tentou contradizer, nemtão-pouco insistiuquepareciamuitomaisnova,ououtra frase desse tipo,comqueumcavalheirorebatesempreamençãodaidadedeumasenhora.RepareiqueMarianaria,divertidacomoà-vontadedosenhorembaixador,e coreiatéaoscabelosquandopediu licençapara se retirar enosdeixousozinhos.Aindafizuniprotestoparvoqualquer,maselaacenou-mejáládedentro.Quanto aMareschal, sentou-se aomeu ladonobanco comprido e,comosefizesseapenasumaconstatação,disse:

-Nuncatinhareparadonessesseusolhosverdes,sãomuitobonitos...

Corei aindamais, se tal fosse possível, confusa. Pensei, por momentos,em perguntar-lhe que idade tinha, que me falasse mais de si,mas achei

queeracompletamenteadespropósito.MasMareschalantecipou-se:

- Não é justo perguntar-lhe a idade sem lhe dizer a minha: tenho41anos, eestounoBrasildesdequea imperatriz chegou, jáhámuitos anos,portanto.Tal comoela, apaixonei-mepelapaisagem,peloRiode Janeiro eos seus morros, e, tal como ela, e como qualquer bom austríaco, odiei ocalor. Que ainda odeio, aliás, e se não se importa vou-me servir de novodestabebidaquemearrefece...

Eláselevantoudenovo,direitoàgarrafa.

Enquantoseservia,foifalando:

- Soupor formaçãoo icial deCavalaria,maspoucoantesdo casamentodasenhoraD.Leopoldinaopteipelacarreiradiplomática,etivea sortedeser logo enviado para o Rio de Janeiro, para a acompanhar. Hoje souministro plenipotenciário, o que é um nome pomposo para o mesmoordenado-dissecomtunagargalhada,paraacrescentar,maissério:

- Ao contrário da senhora D. Maria Francisca, não sou viúvo, pelasimples razão de que nunca me casei... a mulher certa mmca estevedisponível-acrescentouenigmaticamente.

Confessoque,poressaaltura,eujáolhavaparaohorizonte,sem saberoque fazerdestaconversa, semsabercomoentenderoprazer imenso quetinhaemescutá-lo,procurandodesviardeleomeuolhar. Nãosentiqueseestivesse a insinuar de uma forma deselegante, ouordinária, mas antesparecia-me a conversa mais íntima que algumavez tinha tido com umhomem, ainda para mais desconhecido, e quede tuna maneiradesconcertastemetocava.

Talvezpressentindooefeitoque tinhasobremim,Maresclialmudou detema,tãoabruptamentecomocomeçaraeste:

-Masvamosaoqueinteressa,senhoramarquesa.Jádeveterpercebidoqueeueasenhoraestamosnomesmobarco,parajánãofalar nasenhoraD.Mariana,quenaveganelehámuitosanos,eesperoque possateragoraumpapeldenovorelevante...

Seria de facto de con iança? Sempre quisera pensar que sim, mas

também havia quem me dissesse que as intrigas da corte eram a suasobremesafavorita.Mantive-mecalada,arespiraçãomenosofegante.

Leu-meospensamentos:

-Não tenhamedo.Seibema famadecoscuvilheiroque tenho, faz partedo o ício, preciso de falar para que falem, mas acredite que sei bemdistinguiraspessoaseascon idências.NuncaasenhoraD.Leopoldinamecontou fosse o que fosse que não tenha calado, oupor suas ordenstransmitidoexclusivamenteaoseupai...

- Ou a Metternich - disse eu, antes de pensar, sem poder esquecer oprimeiro-ministroaustríacoquedominavaaEuropa.

Mareschaldeutunagargalhada:

-Érápida,asenhora.Nãolheconheciaesseseuladoperspicaz,massabia-acorajosa,enãomeesqueçodequefezfrenteaDomitília,impedindo-adeentrarnoquartodaimperatriz,nemdequefoiasenhoraqueescreveuaúltimacartaqueD.Leopoldinaditou...

Corei,mascontra-ataqueideimediato:

-Portanto,oqueconversarmosaquihojesóchegaaosouvidosdopaidasenhora D. Leopoldina e ao primeiro-ministro de um país que só muitorelutantementereconheceoBrasilcomoumanaçãoindependente.

Riudenovo.

-Aindabemquenosentendemos.

E sentando-se ao meu lado de novo, demasiado perto, julgo eu,continuou:

- Estamos no mesmo barco, porque queremos a mesma coisa, ou seja,proteger os ilhos da imperatriz, já que por ela, infelizmente, já nadapodemos fazer (equandodisse isto, pelaprimeira vezdesviouosolhos epercebi que o rosto se contraía de comoção), porque queremos tirar osnetos do arquiduque Francisco 1 das garras deDomitília e da sua gente.Tenhorazãoounão?

Disse-lhe que sim, com um acenar veemente da cabeça. Disso estavacerta.

Chegando-seaindamaisperto,Maresclialestendeu-meuniacarta.

Dei um grito, surpreendida ao ver umas folhas com as armas doimperador,que tonta souporaindamesurpreender,masnãosuspeitavadequeestesespiõestivessemtempoemeiosdefazercópiasintegraisdascartas,julgueiqueseriamnotasapontamentos...

Peguei no papel a medo e li. Nela o senhor D. Pedro declarava o seuamor pela «sua Titília», dizia-lhe que já a tinha vingado, e que avingariasempre,nemqueissolhecustasseavida.

OlheiparaMaresclial,horrorizada:

-Avida?UmimperadordáavidapelaPátria,pelos ilhos,masnão portunamulher divorciada, com ilhos de uns e de outros, e que o usa parasubir socialmente, e levar de caminho toda a sua família -comentei,escandalizada.

Oembaixadorsorriu-me,divertido:

-ÉaprimeiracartaquelêdosenhorD.Pedro?

Chocada, respondi que obviamente que sim, o que era verdade, e eledeutunagargalhadatriste:

-Háalgumasquesãobemexplícitas,ebemvulgares,nãoseiqueescolateve este príncipe, mas foi das casas de senhoras pouco virtuosas, deestrebariasedaspiorescompanhias,pela linguagemque usa...Sabecomoéqueseautointitulaquandoescreveaestamulherinqualificável?

Fiquei sem saber o que dizer. Que podia eu comentar sobre a vidasexualdoimperador,seatédoassuntosabiapouco?Aceneicoma cabeçaquenão.

-Demonão!

Mareschalparecia,agora,divertir-secomomeuembaraço,e,pousando

asuamãosobreaminha,incitou-meacontinuaraler.

Mas o que li a seguir chocou-me ainda mais do que as revelaçõesanteriores.

D. Pedro escrevia: «Espero ansiosamente vê-la para junto ao seu peitodepositarminhaslágrimaspelamortedaminhaamadaesposa!»

«Nãoépossível! », exclamei. «Declaraoamoràesposaequer chorá-lanocolodaamante?»

Maresclial encostou-se para trás, bebeumais umgolo do seuwhisky, eperguntou:

- O imperador é um homem de uma sinceridade única, e a essasinceridade genuína tiro o chapéu. A senhora D. Maria Francisca achapossívelamarduasmulheresaomesmotempo,digoamardefacto?

Desta vez empalideci, e iquei a olhar para ele estarrecida, muda. Aospoucos o meu coração começou a bater mais devagar, e fui capaz dereencontraravoz:

-Nãosei,senhorembaixador,talvezsejapossível,ocoraçãotem espaçopara muita gente, mas do que tenho a certeza é que quandoamar umamulhermagoa tão profundamente outra, aquela que se assumiu peranteDeuseoshomens,emesmoassimsecontinuaamanterarelaçãocomosenada fosse, então não, não acho que seja amorpor duas mulheres, masamoracimadetudoporsipróprio.

Julgo que olhou paramim como seme visse pela primeira vez e, numtomdireto,disseadespropósito(mascomomesoubebem!):

-Dizem-lhecomfrequênciaqueébonita,D.MariaFrancisca.Esse cabeloescuro realça os seus olhos verdes, e para além do mais é rápida einteligente.

Eantesqueeupudessedizerfosseoquefosse,como,porexemplo,quesó podia ser lisonja o elogio, logo em casa damulhermais bonitado Rio,tossiuevoltouaoseutomcoloquial:

-Oraaquiestáunidilemairrelevante,quandoohomememquestão éoimperadordoBrasiletemahonradesercasadocomumamulher comoaarquiduquesaLeopoldina...

De repente, que estúpida, compreendi o que o angustiavaverdadeiramente, e sem pensar, levada pelos vapores do seu copo deálcool,oupelamagiananoite,respondi:

- Já entendi, o que o preocupa não é o facto de o imperadoreventualmenteamarduasmulheres,oqueodeixaangustiadoéqueagoraaimperatrizmorreu,eD.Pedropodeficarnasmãosdeapenastuna...

Maresclialpôs-sedepédeumsaltoecomeçouaandardeuniladoparaooutrodavaranda:

-Éprecisodistrairoimperador,éprecisovoltaracasá-locomtunamulherséria,quepossaserumaboamãeparaospríncipes,queosconsigaeducarcomodevemsereducados,equetragadenovoprestígioàfamíliaimperialbrasileira.JábastaoqueoseuropeuspensamdoBrasiledosseushabitantes,quantomaisselhesdermosdemãobeijadaesteescândalo.Omaisurgentementepossível.SãoessasasordensquerecebereideViena,semsombradedúvida.

-EoqueserádarainhadePortugal,deD.MariadaGlória?-perguntei,angustiada.

- Quando a história damorte da imperatriz circular pela Europa, e vaicircular até pelos jornais, como aqui já circula, D. Miguel terá a faca e oqueijonamãoeashipótesesdearainhachegaraotronoserão poucasounenhtunas...

Abriaboca,assustada:

- Mas, senhor embaixador, não pode ser, eu prometi à senhora D.Leopoldina...

- Pois prometeu, sei que prometeu, e por isso é que lhe quis falar comtanta urgência (e quando disse isto pareceu me, com que vergonha oconfesso,quemeolhavacomoseapartirdeagora tivesseoutrosmotivosparameprocurar).

Tenteiqueoseuolharnãomedistraísse,erespondi:

-Eoqueéqueeupossofazer?Fuiexpulsadopaço,retiradado serviçodaquelacasa...

Sorriu-me:

-Vaiverquepodefazermuito,eestánacasacertaparaisso.MarianaéapessoaidealparatomarcontadopríncipeD.Pedro,temos deconvencero imperador a reconhecer que não há outramulher no Brasil que possadar-lheasegurançaeaeducaçãodequeprecisa...

Sorri,entusiasmadacomaideia:

- Era uma escolha excelente, a ímica escolha, não podemos deixar D.Pedro nas mãos da temperamental condessa de Itapagipe, nem ospríncipesentreguesàquelacamarilha.Masachaqueépossível?Achaqueoimperadoraaceitariadevolta?

Mareschaldevolveu-meosorriso:

-Nãotenhomuitascartasnamanga,mastenhoalgmunas...Osversoscontraoimperadorjácirculamnospasquins,osjornaisliberaisacusam-nodeseruniliberaldefachada,quedemiteministrosporqueesteslhechamamaatençãoparaoserrosquecomete,esecomportacomoumreiabsoluto.Ostemposnãoestãofáceis,masacorte,osembaixadoreseospolíticosaindaestãodispostosaprestarvassalagemàamante,porquesabemdoseupoder.D.Pedroéimpulsivo,nasnãoéburro,esabequeprecisadoapoiodaÁustria,daEuropa.Alémdisso,asenhoramarquesasabecomoéoimperadordoBrasil.Umhomemdemomentosdedepressãoeangústia,capazdetodasascedênciasparasesentirbemconsigopróprio.AssustadocomoconteúdodacartaqueD.Leopoldinaescreveuaopai...

Interrompi-o,assustada:

-Oimperadorconheceessacarta?

Mareschalriu:

-Gostotantodasuaingenuidade,marquesa.SeasenhoraD.Francisca

conheceasdeleparaaamante,nãoconheceráD.PedroaúltimacartaqueamulherescreveuaoarquiduquedaÁustria,aindaparamaisadizermaldele?

Dei por mim a pôr a mão na boca, angustiada. Será que Mareschalachava que eu a tinha mostrado a alguém? O embaixador encolheu osombrosecontinuou:

-Éclaroqueseiquenãoamostrouaninguém,mashásempremuitagenteenvolvidanoenviodetunacartadoPaçodeSãoCristóvãoparatunsítiotãodistantecomoViena-disse-mecomironia,lendo-meospensamentos.-Masoqueimportaéqueestaráansiosoporagradaraosogro.Eosogro,queeurepresento,exigequeD.Marianasejaacamareira-mordoseunetoherdeirodotrono.Voilà!

Respirei imdo, um misto de sentimentos que nem eu entendo bem.Nada podia ser melhor do que saber que Mariana estaria junto dopequenino Pedro e das suas irmãs, próxima deMaria da Glória também,masporoutroladonãoeradi ícilperceberquenestarodada icavaeudefora.

Olheiparaastábuasdochãodavarandaeestremeci.Mareschaldeuporisso:

- Não se preocupe, senhoramarquesa. Preciso de si parame ajudar aplanear o futuro dos pequeninos Habsburgo Bragança. Nestemomento,marquesa,sóconfioemMarianaeemsi.

Edizendoisto,beijou-meamão,edespediu-se.

Nãomeatreviapergtuntar-lhequandovoltava.NemlhedissequeMariame tinha procurado. Mas também, para quê, Mareschal, depois daquelacarta,sabebemqueolutodoimperadoréum«lutoàimperador».

ConventodaAjuda,25dejaneirode1827

arfaiasentadaaoladodopai,quelhedavaamãoelheelogiavaovestido.

-Énovo,papai.AtiaLuísamandoumaissedadeItália,eacondessadeItapagipepediuàmelhorcostureiradoRioparaofazer,sóparaestedia.

Pedro olhou para a ilha, tão crescida para os seus quase 8 anos, esorriu-lhe,orgulhoso:

- És a ilhamais bonita que um pai pode ter, e vais ser amais bonitarainhadePortugal.

Maria sentiu o peito inchar de orgulho, não havia nadamelhor doqueumelogiodopai,eopaifora,nesteúltimomês,umpaisemprepresente.

Coçouobraçodorido,emesmoassimsorriu:

-Papai,aindamedóiosítioondemevacinoucontraavaríola.

Oimperadorencolheuosombros:

-Eamimpoucomeimporta, ilha.Tivevaríola,iamorrendodadoença,egaranto-tequeémelhordoer-teobraçodoqueapanharesadoença.

Januária,queiasentadaàfrentenacarruagem,entroulogonaconversa:

- Eu não me queixo - disse, procurando resgatar a atenção do paidaquela irmã que, além demais velha, tinha o título de rainha, masquesobretudopareciaultimamentefazerbrilharosolhosdopai.

Oimperadorriu:

-AvossaqueridamãebemdiziaqueMariaeramaisparecidacom ela,etu,Januária,tinhastudodeportuguesaesaíasamim.

Maria sentiu-se picada, e respondeu, quase ingénua, mas nãocompletamente:

- Émentira, papai. Tenho o cabelo e os olhos damamãe,mas todos oscriadosquandofaçoumabirradizemsempre-eesganiçouavoz, imitando-«amenininhaéigualaoseupai».

Oimperadordeuumagargalhada:

- Com que então é isso que dizem demim, é? Que faço birras, etenhomaugéniocomoameninaMaria.

JanuáriaePaulariram-quandoopairia,riamsempretodos,tal oalíviodeperceberqueestavabemefeliz,emborafosseprecisoestar bematentoaovirardovento.

Maria respondeu-lhe, com um sorriso também, levando a provocaçãomaislonge:

-Não,papai,euéquesouparecidacomosenhor.

Pedroabanouacabeça,divertido:

-MalsabeomanoMiguelamulherquelhecalhouemsorte,logoelequeé tão senhor das suas opiniões. Vai fazer-lhe bem umameninabrasileiraao lado, sem aquele acanhamento das mulheres europeias, insípidas eincapazesdebrincar...

Mariaolhou-ocomumolharquesetornarasubitamenteduro:

- A mamãe não era assim, lembro-me que ela dantes, quando eu eramaispequena,brincavaeriacomtudo.Atéconsigo,papai.

O rostodo imperador escureceu, como se umanuvem tivesse tapado oSol. Januária atirou um pontapé à irmã. Depois de ummêsem que o paitinha estado sempre com eles, do almoço à ceia, levando-os a passear decarruagemeacavalo,molhandocomelasospésnaságuasdolago,eatéasdeixandoirbrincarnaareiabrancadaspraias, vinhaagoraMariairritá-locom referências à mamãe. E Januária não sabia bem porquê, mas o paiodiavaquelhelembrassemqueamãeoutroratinhasidofeliz...

Pedro icou calado, eMaria arrependeu-se de ter levado a provocaçãolonge de mais. Pendurou-se no seu braço, procurando conquistá-lo denovo,maseleolhavaláparaforaeprotestava:

-Porque raioas ruasporondepassamosestão ladeadasde soldados?Julgam que o povo me odeia, e está pronto a assassinar-me?A mim, oprimeiroimperadordoBrasil,quesempreamaram...

As três ilhasnãoresponderam,masquandochegaramaoConventodaAjuda, o pai saltou para fora da carruagem, antes mesmo de esta terparado, e, ignorandoquemoqueria cumprimentar, foi direto ao chefedaguardapedirsatisfações.

Maria,quetinhalidoemsegredoalgunsdosjornaisquefalavamdopai,e escutara Rosa e Jaime a dizer que o povo culpava o imperador pelamortedasuasenhora,suspirou.Seaomenosnãotivesseassistido a tudo,pordetrásdaquelaporta,poderiaagoradefendercomconvicçãoopaidetodasasacusações,masassim...

Saída do luto mais cerrado, a corte aproveitava esta cerimónia paraarejarosseusmelhoresvestidosejoias.

Maria gostou da forma como o pai a mantinha sempre ao seulado,indicando-acomoarainha,elevandotodosossenhoresmais importantes,e todas as senhoras com nome, a beijarem-lhe amão, com uma pequenavénia-afinal,estavasempreaesquecer-se,masjáeraumamulhercasada,pensou,rindobaixinho.

Era boa a sensação de que lhe prestavam vassalagem, era boa asensaçãodequepormuitoqueDomitíliaquisesse,pormuitostítulosqueoseu pai lhe desse, nunca chegaria a ser respeitada como ela, apesardeaindasóter7anos.

Subitamente, no entanto, gelou.Domitília aproximava-sede ambosnumpasso seguro, o vestido de cetim preto, disparatadamente decotado,alargavaabaixodopeito,deixandoperceberumabarrigadegrávida,quepareciaempinardeformaatornaraindamaisproeminente.

Olhou em redor, angustiada, procurando os olhos da marquesa deAguiaroudefreiAntónio,umaâncoraparaoturbilhãodesentimentosque

voltaramdo fundode si, como se ali tivessem estado escondidos duranteestemêsemqueopaieos seuscuidadosatentos tinhamocupado todooseucoração,masnãohaviamarquesadeAguiar,nem freiAntónioàvista,exiladosqueestavampeloimperador.

As pessoas tinham quase aberto alas para a chegada da favorita, epercebia-se pela cara de muitos que a gravidez que Domitília expunhanestaocasião,logonesta,equivaliaaumabofetadanacara.Algunsvirarammesmo costas, e desistiram de dar ao imperador as suas condolências,outros icaram parados, estupefactos, ansiosos por ver a reação doimperador.Enãoesperaramemvão,porquePedrofezo escândaloqueosseus piores inimigos desejavam: abraçou-a efusivamente, e colocou umamão aberta sobre a sua barriga, descaradamente, para lhe perguntar,entrepiscadelasdeolho:

-Ecomovaiessemenino,senhoramarquesa?

Eela,deliciadaesorridente,retorquiualtoeabomsom:

- Será certamente um rapaz, meu senhor. Meninas já temos quecheguem,não?

Maria sentiu-se empalidecer. Meninas? Referia-se a Bela ou a ela e àsmanas?Punha-asnomesmosacoatodas?Comoseelaeasmanasfossemsuasfilhas?Eopaisorria,consentia,eagoraaindalhepunhaobraçosobocotoveloeencaminhava-aparaasalaondeumaceiaseriaservida,comosefosseasuamulher,amulherdasuavida?

Umamãopousounoseuombrocomforça.Virou-se,assustada,e viuqueera a de Mareschal, o melhor amigo da mãe, o representante do seuqueridoavôFrancisco,quetinhacrescidoaadular.

Deuporsiamurmurar:

- Barão, o que vai ser de nós, o que vai ser de mim e do meu irmãoPedro?EseelaenvenenaoPedrinho,eelemorrecomoaminhamãe eosmeusmanos?

Desajeitadamente,oembaixadorpassou-lheobraçoàvoltadopescoço,e,baixandoacabeça,sussurrou-lheaoouvido:

- Nada disso vai acontecer, Sua Alteza, que o seu avô não deixa, que asuamãe,quevelaporsiládoCéu,nãoopermite.

Mariaolhou-odiretamentenosolhos, e sentiu-semais segura. Respiroufundo,eentrouatrásdosoutrosparaasala.

Mais tarde, pensou, amanhã logo demanhã, vou visitar amarquesa deAguiar.

Fui às cerimónias inebresporminha conta e risco. Sentei-mena partede trás da igreja, e tentei passar despercebida, o véu preto sobre a caraajudouaevitarcruzarolharescomtantagentequemeconhece.Rezeipelaminhasenhora,evim-meemboraomaisdiscretamentequepude.

Mariananãoquisir,estátãohabituadaàsuavidadeisolamento quemeperguntose,casooplanodeMaresclialresultar,sehabituaráà agitaçãoeàsintrigasdopaço,masdepoislembro-mequequandocomparadacomelanadaseidosmeandrosdacorte,nemdassuasligações.

Já eram dez da noite quando ouvi os criados abrirem a porta aMaresclial. Jánãoestranham,évisitafrequente,ainicaponteentre mimeomundo.

Insiste agoraparaque lhe chamePhilippe,masnão consigoainda,mascon io nele, não sei nada do que sente pormim,mas con io queserve amesmacausaqueeu.

Entrou visivelmente alterado. A sua afeição porD. Leopoldina torna-semais visível àmedida que o conheçomelhor. Percebo que com humor, etunaaparênciadelevezaeatédesuper icialidade,comumaosdiplomatas,ingiu-se sempredistanteeaté críticoàsvezes,mas suspeitoque gostavamais dela do que lhe seria permitido, do que a sua honra lhepermitiarevelar alguuna vez.Do queD. Leopoldina suspeitava... Não lhe perguntodiretamente, nunca o farei, mas talvez esteja aí a explicação de se termantidosolteiro.Ouentãosoueu,queentreociíunede uniamulherviva,ouodeumamulhermorta,prefiroosegundo.

Quedisparatesdigodesdequeescrevounidiário,queDeusmeperdoe,Deusquevêtudo,elêestaslinhastambém...

Diziaquevinhaalterado,emalentrounasalae fechámosaporta paraque os criados não nos ouvissem, deixou-se cair nuas dos sofás edisse,direto:

-Domitíliaestágrávidadoimperador...

Sentei-menacadeiraemfrente,estupefacta:

- Grávida? Mas como? Foi concebido antes ou depois da morte daimperatriz?

Maresclialfezurusorrisotriste:

- Depois não foi, a não ser que use uma almofada para simular umabarrigadaqueletamanho...dizem-mequeestádedoismeses,porissoterásidoantesdeD.PedroterpartidoparaoRioGrande.

Derepenteveio-meàmemóriaosomdoscascosdocavaloachegarnamadrugadadepoisdacenadobeija-mão,decomoeuprópriatinharezadoparaqueunianoitedeluxúriaotivesseapaziguado...

- Sim, deve ter sido antes - respondi baixinho, como se tivessepresenciadoaconceção.

-Aquelamulhernãotemvergonha,sabeoquediziaatodos?Queestavacertadeque eraurumenino! «UmPedrinhopara fazer as vezes domeuquerido Pedro de Alcântara Brasileiro que morreu» - disse Mareschal,imitando a voz afetada de Domitília, provocando-me o risocom o seuesforçopara falar numbrasileiropaulista apesardos «rr» carregados dasualínguamaterna.

- Não é possível. E o imperador? Vexou-a, ignorou-a pelo menos? -perguntei,aindacomalgumaesperançadequeD.Pedrosecomportasse àalturadoseulugar,aindaparamaisnasexéquiasdamulherlegítima.

-Qualquê-suspirouMareschal.-Pôs-lheamãonabarriga,edeu-lheobraçoparaalevarparaaceia.

Fiquei estupefacta, mas pelo que me contou, desta vez, a corte nãoreagiu como habitualmente, tendo muitas famílias optado por não cear,regressando a casa, e o bispo do Rio de Janeiro, disse-me o embaixador,recusara-se discretamente a sentar-se à mesa do imperador, pedindoescusasparaseausentar.

- Se Domitília tem uni rapaz, acredito que o Pedro pequenino correriscos.Nãovejoque amarquesade Santos, ou algiundaqueles capangas,hesite em envenená-lo ou em fazer-lhemal... um acidente, umaqueda decavalo,étãofácil...

Mareschalolhouparamini,preocupado:

-VouterdecontartudooqueseestáapassarnosmeusrelatóriosparaaÁustria.Voupedirquemeenviemdinheiroparacontratarmaisvigilânciaparaopríncipe.ÉurgentecolocarMariananopaço,éaminhaprioridade.Conhecebemaamadacriança?

Disse-lheque sim,que era tunaescolhada imperatriz, que já fora amade Paula e de Francisca, e que era de uma dedicação imensa a D.Leopoldina, que a tinha salvo dos maus tratos de um marido violento(ironia!)eaacolheracomoaumafilha.

Mareschalouviu,masinsistiu:

- Peço-lhe que se encontre com ela e que reforce a ideia de que opríncipe corre risco, que seja ela ou alguémda con iançadela a cozinharparaele,quesejaelaaescolherascriadasqueoacompanham...mas nãochega.Mandeiumanotaaoimperadorapedir-lhequemerecebaamanhãde manhã... com a cena de hoje bem fresca, acho queestareisuficientementeindignadoparaoobrigaraceder.

E,voltando-separamim,insistiu:

- Logo ao primeiro almoço fale com Mariana, e estabeleçam uniplanoparaodiaadiadacriança-comasuaajuda,acondessaquefaçaaescalados criados e professores do pequeno imperador. Não quero que sejadeixado sozinho com nenhum deles, por mais de con iança que lhepareçam.Queescolhaaquelesquenãogostamunsdosoutros,paraquesedenunciemmutuamente...

Confesso que mesmo tendo vivido no paço tantos anos, muna casadividida em duas alas ocupadas por dois «partidos», nunca tinhaimaginado esquemas tão subtis e requintados, quemais pareciam tiradosdeumfolhetimnovelesco.Massim,tinhadeconcordar,faziasentido...

Maresclial estava entusiasmado com os seus planos, e Maria daGlóriafaziapartedeles:

-Quantoà«sua»Maria-disse,trocistamasbondoso-,voupediraoavôque amande ir paraViena.Nãopode crescerneste ambiente devasso, jávimosoresultadoquedeucomoseupaieoseutio,eprecisadedisciplina,deestudos,nãopodeandarporaquiàsoltacomotunaindiazinha.

Concordei.Maria da Glória era uni encanto de criança, crescida para aidade, mas facilmente in luenciável e manipulável por estesadultos semmoral,nemescrúpulos.Pormuitoquemecustassevê-lapartir, eraoqueD.Leopoldinamaisqueriaparaa ilha,elánoCéu icariacertamentemaisdescansada no dia em que a primogénita deixasse o Rio em direção àEuropa.

Oembaixador levantou-se, julgueiqueparasedespedir,mas,para meuespanto, e omeu coração ainda salta quando o recordo, estendeu-me asmãos para me ajudar a levantar do cadeirão e, aproveitando o balanço,puxou-me para os seus braços, e apertou-me contra si. Os meus cabelosroçaramnosseus,aminhacara icouafogueada contraoseupeito,atéquetambém os meus braços se apertaram em redor do seu corpo, e assimicámos pormomentos, para depois nosdespedirmos convencionalmente.Foiquaseumabraçodeamigos,que digo, foimais, tantomaisdoque tunabraçodeamigos.

Foram apenas uns minutos, mas talvez os minutos mais felizes queconheci até hoje. Suspeito que isto se chama paixão,mas agorasó querodormir,fecharosolhoseimaginarqueaquelesbraçosainda estãoemmeuredor.

PaçodeSãoCristóvão,26dejaneirode1827

arfaacordouaosgritos.Olhouemredor,paraoquartoquelheeratãofamiliar,epercebeuquetinhaestadoasonhar.Sentou-senacama,ofegante,commedodefechardenovoosolhos.Noseupesadelo,amãechoravaaumcanto,enquantoabarrigadeDomitíliacrescia,crescia,crescia,atéquerebentavacomoacascadeumovo,deixandosair,emvezdeumpinto,ummeninofeio,depelopretoquecresciaportodoocorpo,comoumursodoslivrosdehistóriasqueatiaLuísamandavadaEuropa,eopaipegava-lheaocoloediziaatodaagente«VeemcomooimperadordoBrasilébonito,muitomaisbonitodoqueodeslavadodoPedrinho».Eamãechoravacomaindamaisforça,echamavaporela,«Maria,nãodeixes,nãodeixesquefaçammalaonossoPedro».

AamaFloricadeviaestarporpertoporquechegouminutosdepois:

-Jápassa,jápassa,foisóumsonhomau-dizia.

Maria,avoztrémula,sóperguntava:

-Florica,omeumanoPedroestábem?Florica,jávisteoPedrohoje...

Florica, que sabia da gravidez de Domitília, benzeu-se e beijou amedalhadeNossaSenhoradaGlóriaquetraziaaopescoço:

-Credo,menina, então não havia de estar bem.Vá, vou vesti-la, e vai látercomomanoedá-lheapapadeaveiadamanhã,estábem?AamaIzzaatéagradeceasuaajuda.

Maria enxugou as lágrimas, e quando entrou no quarto de brinquedosdoseuúnico irmão,eoviudecaracóis loiroseolhosazuis,abrincarcomcubosdemadeiradeváriascores,queempilhava jácom perícia, correuapegar-lheaocoloeaenchê-lodebeijinhos.

Obebériu,satisfeito,eIzzaencorajou-a:

-D.Maria, jáviuqueeleconseguedarunspassossozinho?Ora pegue-lheaípelacinturaeponha-odireito,evaivercomoelevematémim.

E Maria, fascinada, viu o pequenino imperador a dar uns passos emdireçãoàamaqueorecebeu,fazendo-osaltarnosbraços.

- Vou dizer ao pai que o Pedro já anda - disse a rainha de Portugal,correndoparaforadasalaantesquealguémapudesseimpedir.

O imperador estava sentado à mesa do primeiro almoço, o jornal nasmãos,quandoaviuentrarafogueada:

-Papai,oPedrojáanda,oPedrojáanda...

Oimperadorpousouojornalesorriu-lhe,satisfeito:

-Jásei,minhatonta,estiveláhojedemanhãevi.Masagoranãopossoir,etutambémnão,porque,paraalémdasliçõesaquenãopodes faltar, tensdepreparartudoporquevamospartir.

Mariaolhou-o,entusiasmada:

-Vamosparaachácara,fugirdestecalor?-perguntou.

Opaiacenouquesim,masarespostadeixou-asempalavras:

- A marquesa de Santos não pode icar aqui na cidade com estastemperaturas,porqueobebécorreriscodenãosedesenvolver...Por issovamos todos, e vai ser bom estarmos lá todos, longe dos olharesdestesurubus-acrescentou.

Mariaficoucoradadefúriae,perdendoacabeça,gritou:

- O papai pode ir, mas eu não vou. E asminhasmanas e omeumanotambémnão.Amamãenuncanosdeixaria ir comessasenhorapara ladonenhum,muitomenosparaa chácaraondepassámos tanto tempo juntos,quandoaPaulaestevedoente-ouopai jánemse lembradequeaPaulaestevetãodoente?

Pedrolevantou-se,furioso,eabanoua ilhapelosombrosviolentamente.Mariaestavademasiadozangadaparatermedo:

-Julga queme vai fazer o mesmo que fez à mamãe? Eu sou rainhadePortugal, omeu avô é arquiduque da Áustria, e vou para a Europa paralongedesi,edessajararaca,elevoosmanoscomigo.Todos.PodeficarcomaBela,eessequevainascer...

E antes que o pai a pudesse esbofetear, como a mão em movimentoindicava que ia acontecer, fugiu pela porta aberta para a varanda dospapagaios, edaídeixou-seescorregarpor entreo espaçodabalaustrada,para a grama lá em baixo, levantou-se, esfregou os joelhos esfolados ecomeçouacorrer.

Pedro, de cabeça tão perdida como a ilha, preparava-se para correratrásdela,quandoavozdeDomitíliaofezestacar:

-Oquesepassaaqui?Nãoestamosapreparar-nosparapartir?

Hipnotizado,virou-separatrásedeixouqueelaobeijassenaboca e lhepassasse a mão brejeiramente entre as pernas. Como se fosse outro, oimperadormordeu-lheaorelhaesussurrou:

-Easenhoranãoperguntaseomeucoisoestámelhorhoje?

Numa gargalhada conjunta, viraram as costas à varanda de portasabertaseforamprepararasmalas.

NumcantodasalaaamaFlorica,quevieraprocurarMaria,observava,estarrecida.

Mariacorreuquenemumalouca,quandopercebeuqueatrásdelavinhamoutrospassos.Duranteumbocadonãoolhouparatrás,temendoquefosseopaiouumdoscriadosenviadosporele,masfoipercebendoqueospésqueaseguiameramdecriançatambém.Exausta,dobrou-sesobreacintura,adordeburroaimpedi-ladecontinuar,eolhouparatrásderelance.

Eraumadasescravas,quetinhamaisoumenosasuaidadeecom quembrincava desde que o pai a comprara quando tinham estado na Baía.Malvinaaproximou-se,tambémofegante,edisse-lhe:

- Majestade, o Jaime chamou por D. Maria, e pediu-me que viessea

correrdizer-lhequetemacarruagempronta.

Maria agradeceu, ainda bem que o Jaime percebera que se preparavapara correr até à chácara de Santo António, mas, virando-se para aescrava,disse-lhenumtomautoritário:

-Vais onde eu for,masbico calado.Esfolo-te viva sedisseres a alguémondefomos...

Malvina acenou que sim com a cabeça, e em silêncio voltaram atéàstraseirasdacocheira,ondeMariaentrouparaacarruagem,depois deum«obrigada»gritadoaJaime,queseguravaoscavalos.

SóamarquesadeAguiar,pensavaMaria,podiadizer-lheoquefazer.

QuandoocriadoanunciouachegadadobarãodeMareschal,ministrodaÁustria,Pedrosoltou-sedosbraçosdeDomitília,comumbocejo:

-Tenhode ir,minhaquerida, o homemque faz as vezesdomeu sogroestáàminhaespera.

Masquandoviuafaixapretaemredordobraçodoembaixador deixoucair o sorriso. Era raro ver o embaixador tão carrancudo, e subitamentelembrou-sedequetambémerasupostoeleestarinconsolável.

Mandou-osentar:

-Senhorembaixador,digaláoqueotrazporcá-perguntou.

Mareschalfoidiretoaoassunto:

-Senhorimperador,oseusogropretendesabercomurgênciaquem éadamaquevelarápeloseunetoPedro.

O imperador sentiu um impulso de protestar contra esta pressão daÁustria,mas de repente lembrou-se de que lá em cimaDomitília fazia asmalas,eunsdiasdeprazeresossegooesperavamnachácara, eencolheuosombros:

-Pelomeu ilhovelo,antesdemais,eupróprio-aindadisse,mas,aoveriçarem-seassobrancelhasdeMareschal,perguntou:

-Eomeusogro,oumelhor,oseumandante,temalgumaideiade quemdeveriaocuparesselugar?

Mareschalmudouo tom, paraumoutromais sedutor, e, trauteandoosdedosnasecretáriadepau-santoquetinhaemfrente,disse:

- O «mandante», como o senhor D. Pedro a mim se refere, teve umaideia,quejulgopodeserviroimperadordeváriasformas...

-Entãodigalá,homem...

Mareschaldeixou-secairparatrásnacadeiraecomeçou:

-JulgoquenestemomentoconvémaosenhorD.Pedroescolher alguém«independente»,porassimdizer,eacimadequalquersuspeita...

Pedrofez-lhesinaldequecontinuasse.

- Alguém que já tivesse dado provas de lealdade à senhora D.Leopoldina, e de que me fosse possível dar as melhores referências aoarquiduqueFrancisco.

Pedroimpacientou-se:

-Desembuche,homem,quenãotenhoodiatodo.

Mareschal sorriu (enquanto cruzava os dedos da mão escondidanobolso):

- Estava a pensar na senhora D. Mariana Carlota, condessa deBelmonte...

Pedropôs-sedepédeumsalto,umaexpressãodedivertimentonacara:

-AVernadeMagalhães?-perguntou,comumagargalhada.-Éaescolhaperfeita,meuqueridobarão.Vaiserumapedradanocharco detodaessagente que me acusa de ser um homem cruel e sem sentimentos, de terumavidadevassaedefavorecerapenasalguns.

Edepois,passandoamãopelaspatilhasloiras,nãoresistiuaperguntar:

-Meuamigo,diga-me,asenhoracontinuatãobonitacomoera?

Mareschal teve vontadede lhedarummurronaquela cara sorridente,mas respondeu com um riso cúmplice (Meu Deus, pensou, oque adiplomaciapedeaumhomem!):

-Linda.Mas...

Pedronemodeixouacabar:

- Sim, sim, claro que me comprometo a não fazer avanços junto dasenhora,pormuitapenaquetenha...anãoserqueelamudedeideias,eodeseje.

Mareschalnemqueriaacreditarquetudotivessesidotãofácil:

-Possoentãoperguntaràsenhoraseestariadisponível?...

- Não me conte histórias, barão, ou acha que acredito que estivesse afalar-me neste nome, sem se ter assegurado primeiro que a senhoraaceitariaaproposta?...Diga-lhequecomecejáamanhã.Vamostodosparaachácara,masaamadomeu ilhojámetinhaditoqueeleestáadoentadoenãoconvinhamudá-lodeares,eeu,senhorbarão,comasaúdedeum ilhomeunãobrinco...

«A ama protegeu a criança, não a deixou ir com Domitília para achácara»,recordouMareschaljánacarruagem,satisfeito.Tinhade elogiaramarquesa de Aguiar pela sua competência. E, estranhamente, sentiu-sefelizportermaisestaboanotíciaparalhedar.

As notícias que Maresclial me trouxe ontem deixaram-me, no entanto,preocupada.Estaharmoniaentrepaie ilhosnãovaidurar, seamarquesadeSantosforviverparaosolarpraticamentenosjardinsdaquinta,equetodos os dias cresce em tamanho e luxo, e muitomenos se o imperadordecidircasarcomela,apretextodestanovagravidez.

Mas não estava à espera que os efeitos da revelação de ontem sedessem tão depressa, como os círculos que unia pedra atirada à águaprovoca,equesevãoalastrandoatéperderdevista.

Pensava nisto tudo, e no abraço de Philippe, confesso, quandologo demanhã, quando o ar ainda estava fresco e andava a regar o canteiro deroseiras de D. Mariana, o mínimo que posso fazer para retribuir ahospitalidade, ouvi uma carruagem chegar, e entrar pelo portão aminhaMariadaGlória,comumadasescravas-meninasatrás,quemandouparaacozinha,dizendo-lhequequeriafalarcomigoasós.

Jánãoaviaháalgiunassemanas,etiveocuidadodenãomeprecipitaraperguntar-lhe como estava. Preferi antes passar-lhe a mangueira para amãoefalardas loresedospássaros,dotempoeda humidade,comoseonosso encontro fosse absolutamente diário efamiliar. Perguntei-lhe pelospríncipes,pelopai,pornotíciasdeLisboa,eacabámossentadasnumbancodepedradebaixodeumaenormetília.

Efoiaíqueelameconfessou,angustiada:

-D.MariaFrancisca,aDomitíliaestáàesperadebebé.

Fingi nada saber. Era de facto um golpe tão baixo, mas tãoassustadoramenteesperado,queaindaagoraficavasemsaberoquedizer.

Maria da Glória pareceu icar satisfeita com o efeito que a notíciaprovocou.Evoltouàcarga:

-Nãoachabem,poisnão?Sópode serdomeupai, senhoramarquesa,pelamaneiracomoelepôsamãosobreabarrigadela,comoaolhou.

O que podia responder? Nem valia a pena contar-lhe histórias deembalar, que noutros tempos tinham servido para esconder evidências.Porisso,comtodaasinceridade,confirmei:

-Nãoachobem,D.MariadaGlória,nãoachomesmonadabem...

-Opapaitempassadotantotempoconnoscoemcasa, temsidotãobomque...-einterrompeuafrase,quelhecustavavisivelmente acabar- ...quenemtenhosentidomuitoafaltadamamãe.

Aculpaquesentiaeraimensa,esópenseiemapaziguá-la:

- A sua mãe teria icado tão feliz com isso, sabe, não sabe? NadaadeixavamaiscontentedoqueverosenhorD.Pedrobrincarcomos filhos,erepetiasemprequeeraomelhordospais.

Apobrecriançapareciamaisleve,comoseunipesosetivesselevantadodosseusombros:

-Éverdade,nãoé?Amamãetambémpassavaosdiasacontarcomoopaiandavacomigoàscavalitas,eagoraeletemandadocomaNicaeoPedroàscavalitas,eaBela,claro,eleadoraaBela,eagoravaiadoraronovofilho-terminou,comamarguranavoz.

-Nãomistureascoisas-disse-lhe,apertandouniadassuasmãosentreas minhas. - O amor que o seu pai lhe tem a si e às suas manas, eaoimperadorpequenino,nãoéigualàquelequetempelosseusoutros filhos,porqueelegostavadasuamãedeoutramaneira...

Maria da Glória olhou-me, os olhosmuito abertos, e pela sua respostativeacertezadejáterfaladodemais.Disse-me,comnaturalidade:

-Amavaaminhamãecomoseamaasmulhereseosmaridoscomquemse casa, o amor que é abençoado por Deus, mas depois é naturalqueprocuremamantes,comoDomitília,porcausadacamaedosexo,nãoé?

Saiu-me um grito - meu Deus, como é que estas crianças aprendiamestascoisas,queterraeraestaemqueocorpoassumiatunanaturalidadetãograndequetunaprincesa,quedentrodeunsmesesfaria8anos,falavadeleassim.

Repreendi-a,suavemente:

- D. Maria da Glória, não pode falar assim... e além disso, émentira. 0casamento é um sacramento, e os homens e as mulheres casadospartilham tudo isso, não é necessário que um homem procure outrasmulheresforadocasamento...

Aprincesaolhou-megenuinamentedescon iada, enãoeraparamenos,aindanooutrodiaMaresclialeeutínhamosfeitoascontase D.Pedro,aos

28 anos, já tinha mais de vinte ilhos conhecidos, apenascinco deleslegítimos...

- Pois é, senhoramarquesa, e o pior é que toda a gente diz que omeumarido - e pronunciou a palavra comum certo orgulho, apesar de tudo -tambémgostademulheres,eatéquenãoqueriacasarcomigomascomaprincesaLuísadaBaviera,masqueopaidelanãodeixou...

D.Migueleramuitomaisvelhodoqueela,eramaisdoquenatural quese apaixonasse por mulheres da idade dele, mas senti a urgência de asossegar:

-As informaçõesquetenhonãosãoasmesmasqueassuas,senhoraD.MariadaGlória.

Acriançaolhouparamim,ansiosa:

-Não?Ouviuoutrascoisas?

-Ouvicoisasbemmelhores,eouvi-asàsuamãe,quenãosóoconhecia,mas sobretudo que recebia cartas de quem tem convivido com ele nosúltimos anos, na corte do seu avô Francisco. E esses dizem que mudoumuito, quenão anda a correr atrás dasmulheres, e que se tem dedicadoaosestudos...Alémdissodançabem-acrescentei.

Mariasorriu,satisfeita:

-Gostotantodedançar.Amamãeestavasempretunbocadinho triste,enunca queria bailes no paço, não era? A D. Francisca foi feliz com o seumarido?

Ri-me,efiz-lhecócegas:

-Aspergtmtasquefaz!Seiquesabequeomeumaridoeratambémmeutio,mas não sabe que tinhamais trinta anos do que eu quandocasámosaquinoRiodeJaneiro.

- Trinta? - perguntou Maria, de boca aberta. - O Miguel só temmaisdezoitoanosdoqueeu,ejáassimparece-mequeestoucasadacomomeupai.Sabe,preferiacasarcomunipríncipequenãotivessenadaavercomo

Brasil,umpríncipeeuropeu,comoaquelesdequeaminhamãefalava,quesevestemmuitobem,eusamperfuunesbons,nuncasuamcomoaqui,sãomuito educados com as senhoras, deixam-nas passar sempre à frente, enuncaastraem,porquesãobonscristãos,evivememcasascomlareiranoinverno, em palácios no meiode lorestas verdes, com rios cristalinos acorrer,quegelamnoinvernoeondesepatina.

Confesso que aminha gargalhada foi tão aberta que quase a ofendeu.Comoopai, tãoparecidacomopaiem tantas coisas,olhou-mesem saberpara que lado ia cair o seu humor, mas felizmente decidiu-se por se rirtambém.Apressei-meaexplicar:

-Desculpe,sómeriporquepareciamesmoasuamãeafalardaÁustria,quantasvezesaouvimos,nãofoi?

Mariaassentiucomacabeça,edepoiscomentou:

- Mas é verdade que os homens de lá não são bem iguais aos nossos.Olhe para o barão deMaresclial, é umdaqueles homens de que aminhamãe falava, apesar de aqui suar, porque quem não sua neste calordetestável,masnãotemnadaavercomosamigosdomeupai,poisnão?

Eaífuieuqueescondiacara, ingindoapanhartunmalmequerdochão.NãolhepodiadizerquetambémachavaquePhilippeeraespecial.

Maria tagareloupelamanhã fora.Sóquandoviuaescravaespreitar daportadacozinha,comuniarassustado,confessou:

-Tenhodevoltar,porquefugidecasadepoisdetunaviolentadiscussãocom omeu pai, e a coitadinha daMalvina e o Jaime ainda sãopostos decastigo,pormeteremdeixadodesaparecer...mas,senhoramarquesa,tinhademevirdespedirdesi.

Espantei-me.

-Não,nãovouparaPortugal,émuitopior.Opapaidissehojeque vamostodosparaafazenda.

E depois, deitando a língua de fora, como a criança que realmente era,acrescentou:

- Toda a gente icou zangada com a barriga da marquesa ontem nascerimónias, e o papai icou ainda mais fulo por quase toda a gente terfugido a cumprimentar amarquesa, e hoje declarou, logo demanhã, quevamostodos,nóseela,paraforaporunstempos.

Eencolhendoosombros,conformada:

- Ainda protestei, e disse ao papai que fosse com a outra, porque amamãemmcanosdeixariaircomela,maselequeria-mebater.

Depois, lançando-me os braços espontaneamente ao pescoço,acrescentouaomeuouvido:

-VoupediràRosaquefaçaumfeitiçopara«ela»perderobebé.

Eantesqueeupudessedizeralgtnnacoisa,estendeu-meamãoabeijar,e dirigiu-se à carruagem, onde ordenou ao Jaime que a levassede volta,comapobreescravaatentaracompanhar-lheopasso.

Voltoaomeudiáriopelasegundavezhoje.Mareschalapareceuparajantar,edestavezMariananãodesapareceu,comosefosse[miafadacasamenteira,comolhechameinooutrodia(eela,deresposta,sóriu!).

Philippevinhacomuniardefelicidadetotal,eanotíciaquetraziaeradefacto extraordinária: o imperador, sem discussão, aceitou o regresso deMariana para camareira-mor do pequenino Pedro. Vi como os seus olhosicaram cheios de lágrimas, quando o barão lhe deu a notícia, é de factoimensooseuamoràsenhoraD.Leopoldina,e aosseus ilhos,paraaceitarvoltarassimparaabocadolobo,queéaquelepaço,queéonossosenhorD.Pedro,masésimultaneamente oreconhecimentoperante todosdequea virtude compensa. PobreMariana, depois da alegria, olhou para mim,aflita,edisse:

-MariaFrancisca,vouprecisardesi,devoltaaopaço,muitoembreve.

Mareschalpousouacolhereriu:

- Para vencer aquela camarilha, senhoraD.Mariana, era preciso que amarquesa de Aguiar levasse consigo um batalhão do Exército, e muitosurubus para devorarem os cadáveres das vítimas que aquela gente que

vivenopaçoassassinatodososdias.

Acenei a cabeça de uni lado para o outro, entre o choque e odivertimento,masMarianariaàsgargalhadas.

- Sempre tãoexpressivo, senhorembaixador.Basta-mequeo senhor, ofreiAntónioeamarquesasemantenhammeusaliados...edetodaa ajudaqueDeusNossoSenhormepuderdar.

A seguir ao jantardeixei-os adiscutir osdetalhes, porqueo imperadorpediu que Mariana começasse logo que possível, e fui ver a Lua,tãoredondaecheiade luzqueenchiaocéueapagavaasestrelas. Se calhar,que vergonha, Philippe achou que o fazia de propósito,para o levar aseguir-me...numanoitedeluacheia.Averdadeéqueseguiu,equandovioseuvulto senti aspernas a tremer, e tivede tossir várias vezes, antes desercapazde lhedizerqueasenhoraD.Maria daGlóriameforaverhoje,parasequeixardequeopaiaquerialevarcomDomitíliaparaafazenda.

Mareschalpousouamãoaodelevenomeuombro:

- Tem cumprido bem a sua promessa. Sabe que o imperador não levacomeleo ilho,porqueaama lhedissequea criançaestavaadoentadaenãopodiaviajar...

Olhei-o,ansiosa:

-Doente?

- Não, não se preocupe, já inc informei, está ótimo, o que lhe estouadizeréqueaamaestáaseguirassuasordenscomtodoorigor...

Corei:

-Gostomuitodela,eelagostavamuitodasenhoraD.Leopoldina... comoagora vai gostar da Mariana... todos eles vão encontrar nela umaverdadeiramãe.

Philippepassou-meamãodevagarinhopelocabelo,edissebaixinlio:

- Sente-se tão dividida, aminha pobre Francisca. Por um lado ica feliz

porospríncipesencontraremtunamãe,alguémquecuidedeles, poroutrosabequenãoéaFranciscaqueláestá,porcausadetunagraveinjustiça...

Meu Deus, como este homem me lê por dentro. Apertei as mãos comforça para não chorar, mas deixei que me puxasse contra ele por mismomentos.

PaçodeSãoCristóvão,23demaiode1827

arfaentrounasaladejantareolhouderelanceparaamesacomprida,onde,soboenormelustredecristal,estavaumboloenorme,comasletras«BELA»,emtamanhogigante.Emredordamesa,quehátantosmesesnãoerausada,estavamosmaisimprováveiscomensais,dosodiosossegurançasdopaiàavóeàsirmãseoirmãodeDomitília,quelhecausavamasco,ealgunsnobresdacorte,quedesprezavaporseteremaliadoàmarquesadeSantoscontraamãe.Januária,PaulaeXicaestavamsentadas,deseguida,àesquerdadopai(comumlugaraindavago,paraela,Maria),masàsuadireita,numacadeiraenfeitadacomhibiscosefloresdetodasascores,estavaIsabelMaria,aduquesadeGoiás,quehojefazia3anos.Domitíliadavaordensatortoeadireitoemandavaserviroalmoço,numaexcitaçãoquedeixavaMariadaGlóriaagoniada-hámesesqueasenhoraagianopaçocomosefosseadonadacasa,abarrigaacrescer,peranteoarsatisfeitodoseupai.TrocouumolharrápidocomacondessadeItapagipe,ecompreendeuqueestalhepediaserenidade.Afinal,játinha8anos,feitosháummêsecelebradoscombemmenospompa,apretextodequeafamíliaaindaestavadeluto,eerarainhadePortugal.Procurandomanterascostasdireitaseacabeçalevantada,comolheensinavaomestredeprotocolo,emsilêncioprocurouoseulugaresentou-se.

Subitamente,quandoumcriadooserviademaisvinho,D.Pedro puxoupara trás a cadeira, que caiu com estrondo ao chão, e saiuprecipitadamente da sala. As vozes foram-se calando, à medida que aspessoasentendiamoquesepassava,e,antesqueamãodaaiaapudessesegurar, saiu a correr atrás do pai, procurando-o pelos corredores,tentando perceber para onde fora. Domitília veio atrás dela, igualmenteassustada, e ambas ouviram fechar com estrondo a porta do quarto deLeopoldina,queRosamantinhacomoumsantuário.

Maria olhouparaDomitília em triunfo, comoquemdiz «énoquarto daminhamãe que o meu pai se esconde», mas a marquesarespondeu-lhe,brusca:

- E se o seu pai pressentiu uma crise de epilepsia, a senhora vaicontinuaraachargraça?

Aepilepsia, quehorror, tinha-se esquecido completamentedos ataquesdopai,mastinhaassistidoavários,doisdelesempúblico,eguardavadelesa imagemterríveldopaideitadonochão,ocorpoaestremecer, alguémacorrer para lhe pôr um lenço ou um guardanapo debaixo da língua, edepois, depois de o pior ter passado, da humilhação e raiva que o paisentia, do esforço que fazia para se levantar e continuar o que estava afazer, para não dar parte de fraco, mas que tinha sempre um resultadopatético, acabando por ser levado em braços, para os seus aposentos ouparaasalamaispróxima.

Aflita,fezaDomitília,pelaprimeiraveznavida,umpedido:

-Corra,váveroquesepassa...queeuchamoomédico.

Domitíliacomeçouasubirasescadas,masameiofez-lhesinal:

-Nãochameomédico,queseupainãoquerquesesaibadestascoisas.Váparaamesa,edigaqueosenhorimperadorteveumaindisposição.

Maria anuiu, obediente, mas depois de ter dado o recado à sala emsilêncio esgueirou-se de novo pelas escadas de trás, e foi o maisrapidamente que podia para a porta adjacente ao quarto da mãe.Espreitou pelo buraco da fechadura, e deu com o pai sentado numacadeirabaixa, agarrado ao retrato da mãe, o retrato pintado que Rosamantinhanamesinhacomumavelasempreacesa,achoraremdesespero.

-Tenho tantas saudadesdaminhaqueridamulher.Amava-a tanto, faz-me tanta falta - soluçava, como uma criança, perante uma Domitília quetentavadisfarçarodesprezo,masinteligentementenãodizianada.

- Deus não foi justo ao levar-ma. Ao deixar osmeus ilhos órfãos,e euquenemestavacánadoençaparaavelar,nahoradamorteparalhedizeroquantogostavadela-continuava,avozembargada.

Até Maria temeu pela sua sanidade: como era possível que o paiestivessealidiantedaamantecomumabarrigadesetemeses,grávidadoterceiro ilhodoimperador,comoerapossívelqueopaitivesse feitotanto

malàmãe,eagorachorassecomoumacriança?ClamandocontraDeus,eoinfortúnio, quando o infortúnio nascia da sua vontade? Seria istoarrependimento? Sabia bem como era arrepender-se do mau génio, decomo icava mesmo triste quando a mãe lhe chamavaa atenção para aformacomomagoaraumacriadaou,pior,aprópriamãe.Seriaisso?

Domitíliapareciaestaraperderapaciência:

-Pedro, ilho,porqueéquetedeuparaistoagora?-perguntou,e Mariachocou-secomaformainformalcomootratava.

Pedro puxou-a para o seu lado, encostou a cabeça ao seu ventredilatado,elamentou-se:

-Derepente,naquelacasadejantar,vi-aaotopodamesa,sorridente,oseu cabelo ruivo comoo deMaria, os seus olhos azuis comoos daminhafilhamaisvelha,esentiumassaudadesimensas...

Mariasentiu-se feliz.Faziaopai lembrar-sedamãe!Eraumasensaçãoboa, e era um poder que poderia usar a seu favor, pensou. Domitíliamudoudeexpressão,ezangou-se:

- Por Deus, Pedro, você se comporta como um menininho, vendoassombração,umimperadorquelargaamesacheiadeconvidadosesaiderompante, deixando toda a gente numa a lição, porque se recorda damulher que morreu... Levante-se daí e venha para baixo, que sua ilhaBela, e todosos convidados, estãoapoquentadoscomasuaausência, logomais tarde chora Leopoldina - disse numa voz ríspida, a queestranhamenteD.Pedroobedeceucomardecachorrinho queacabavadeserrepreendidocomumasapatadanonariz.

Maria abriu a boca de espanto.De facto,Domitília tinha umaforça, umadmiráveldomíniosobreoseupai.Imaginoupormomentoscomoreagiriaa mãe perante uma das cenas do pai e percebeu a diferença: D. Pedrotinha de ser tratado à bruta, mal, como uma mãetrata um ilhodesobediente.

Deixou-seescorregarparaochão,ascostascontraaportade madeira-e como gostava do cheiro -, o barulho familiar das cigarras ao fundo, erezou:

«Mamãe,desculpe-me,masachoquevou lidarcomotioMiguel,comoshomensdaminhavida,comoDomitíliafaz...Dequelheserviusereducada,ingirquenãoviaasafrontasquepapailhefazia?Perdeusempre.Quandofor rainha de Portugal vou bater o pé, serteimosa, determinada comoDomitília,queconseguetudooquequer.»

Umacorrentedearfê-laestremecer.Sorriu:

«Não sepreocupe,mamãe,nuncavou ser vulgar emá comoela.Queroapenas aprender aquele jeito de fazer valer a minha vontade,para nãoacabar presa na ala de uma casa, sem direito, sequer, a escolher aprofessoradosmeusfilhos,comolheaconteceuasi.»

Agoraquevivoaquisozinha,graçasàgenerosidadedeMariana,que semudou para o paço, começo a compreender porque gostava ela destesossego,destamaneiradeviver,emquesomossenhorasedonasdonossotempo. Hoje, estava a bordar uma toalha que quero dar a D. Maria daGlória quando partir, sentada no meu banquinho, no vão da janela queagoraéaminhafavorita,porquedáparaocaminhodeondetodosos diasespero a visita de Mareschal_ Já nos encontrámos no Dentro da cidade,passeámos juntos no Horto Real, e há dias marcámos encontro na RealBiblioteca,mas nessesmomentos falamos de nós, das fofocas detodos osdias,masnuncadoimperadoredafamíliaporqueasparedes nesteRiodeJaneirotêmouvidos,seéqueoscoqueirossãosurdos.

Hojeodia tinhanascidocinzento,ea chuva forte fustigavaovidrocomtamanhas bátegas que tivemedo que o telhado desta casa viesseabaixo.Bordava aminha almofada, um lado demim a dizer «Francisca, por queraio há de o homem vir até aqui aos arrabaldes com este temporal», eoutroaconvencer-medequesim,dequetalvez,sótalvez,o interessequemanifestava já hámeses pormim tivesse ultrapassado aconveniência demetersimplesmentecomoaliadaparaosseusplanos.

GanhouaFranciscaotimista,pensei,quandoviasuacarruagem pararàporta, e atirei a costura para me precipitar ao seu encontro, para merecordaratempodequehaviaurucriadoparaaabrir...

Mareschal,Philippecomoagora lhechamoàsvezes,sóàsvezes, entroumolhadocomoumpinto,apesardeadistânciadoportãoàportasercurta.

Mas mal o criado lhe levou a capa e o chapéu, puxou-me pelo braçocomotunacriançaexcitada:

-Entrerápido,paraasala,tenhonotíciasescaldantes.

Fecheiaportaeolhei-o,ocabelodesgrenhado,masosorrisotritmfante:

-Elechamou-meaopaço,édeláquevenhoagora,porquequeria pediraminhaajuda...

Olhei,espantada:

-Ajuda?-quissaber,desconfiada.

-Sim,estavasentadonoseucadeirãodecouro,noescritório,asportadassemicerradas,naquaseescuridão.Começoupormedizerquetinhamuitoem conta a minha opinião - o que j á não dizia há algunsanos! -, e quenunca chegara a agradecer-me tudo o que eu izera pela sua queridaLeopoldina-maisestranhoainda.

Confesso que, ao ouvir isto, iz tuna careta, de nariz franzido, como sefosseuniameninadaescola,masMareschalcontinuou.

-Depoisqueixou-sedequeeraum incompreendido,queamara muito amulher,masquesabiaqueosogrojulgavaqueatinhamaltratado,ecomoé que eu achava que ele podia desfazer essa ideia errada...E antes,felizmente,deeutertidotempoderesponder,continuouorol dequeixas,dizendo que sabia que os jornais e os pasquins o vilipendiavam, que oacusavamde, a inal, ser unimonarca absoluto, quandoera um liberal decoração e atos, e que em cima de tudo isto os políticosbrasileiros ocondenavam por perder demasiado tempo com os assuntosde Portugal,enquanto em Portugal os seus informadores lhe contavamque unimovimento crescente o dava como estrangeiro, preferindo o seu irmãoMiguel...

- E nem tuna referência a Domitília, ao seu mau comportamento? -perguntei,incapazdeficarmaistempocalada.

Mareschal puxou-me para mais próximo de si (que felicidade sintoquandoasuamãoprendeaminha...)edeutunagargalhada.

-Acon issãonãoiapassarpelospiorespecados,masdestavezfuidiretoa eles. Disse-lhe, com tuna frontalidade que até a mimme surpreendeu,que era impossível mudar a opinião que o arquiduque Francisco tinhadele, enquanto mantivesse tuna relação com a mulher quetodosconsideravama causadamorteda ilha, e enquanto insistisse emeducaros seus ilhos legítimos com os seus ilhos naturais, colocando-ostodosdebaixodomesmoteto.

-ED.Pedrorebentoumunadassuasfúrias?-quiseusaber.

-Não,estranhamentenão.

Abriabocadeespanto:

- Signi ica que Domitília lhe satisfaz aquele desejo da carne insaciável,mas que começa a sentir falta de chão, falta da credibilidade dequeprecisa para vencer todos estes movimentos de oposição. E conhecemosbemD.Pedro,dá-semal,muitomal,quandose sentemal-amado,quandonãopodefazeropapeldoheróiadulado.

- Não quero sermaldosa,mas só por pena de si próprio, pormedo doque daí pode vir, é que há alguuna hipótese de que decida mudar, quedecidaacabaressarelação-emesmoqueodeseje,nãoseiseoconsegue.Domitília tem sobre ele um poder imenso, e sabemos como,usando osfilhos,éfácildemanipular...

-Foipor issoquejogueiacartaquetemosestadoapreparar:disse-lheque se arriscava a perder Portugal e o Brasil, se não se tornassemaisrespeitável, e que só se tornaria mais respeitável se casasse com umaprincesa de sangue, tuna princesa bem cotada na Europa, queprovassequenãoeraomonstroquefaziamdele,equepudesseeducar osnetosdoimperador Francisco como deveriam ser educados, se uni dia pretendiaque assumissem o Império brasileiro, e as ilhas casassem nas famíliasreaisqueimportam.

-Eele,comoéquereagiu?

- Damaneira que reage sempre que decide perseguir uma nova ideia,uninovoprojeto...

-Pôs-sedepé,comonovo,ecomeçoua fazerplanos -concluíeu,que oconheçodesdepequeno.

Mareschalafagou-meocabeloetrocou:

-ÉtãoespertinhaaminhaFrancisca,foiexatamenteissoqueaconteceu.

«Minha Francisca», tinha dito «minha Francisca», por momentos nãoconseguipensaremmaisnada,mas,temendofazerfiguradeparva,tossi,econcentrei-medenovo.

Mareschal,comosenãodessepornada,continuavaaexplicar-me:

- Disse-me que ia imediatamente escrever ao sogro a confessar o seuarrependimento, eaprometer ser1unbomcristão.Pediu-meque izesseumrelatórioadarcontadasuamudançadecaráter,afalardasuatristezainconsolável, a contar como os príncipes precisavam de uma mãe,e asugerir que talvez fosse boa ideia que casasse com tuna das irmãsmaisnovasdeLeopoldina,queassimseriamtiasemãesdosinfantes.

Olhei-o,estarrecida:

- O arquiduque nunca vai consentir: tuna segunda ilhamandadaparaalém-mar,paraasgarrasdomesmohomem?

Mareschalacenoucomacabeça,contristado.

-Infelizmente,seesseforointeressepolíticodeMetternich,oimperadorvai obedecer-lhe, mas não sei, as cartas de Leopoldina forammuitoexplícitas, houve muitos relatos de Domitília, até os pasquinsde lápublicaram a história desta nova gravidez. Quando o deixei o imperadorparecia unimiúdo, aos saltos, com o novo brinquedo,masoume enganomuito, ou concretizar este projeto vai ser bem mais di ícil do queimaginámos...

- Conhecendo o imperador, se demorar muito a concretizar, mudarárapidamentedeideias.Eseasnoivaseuropeiaslhederemcomaporta na

cara,vairecusar-seasujeitar-seatalvexame,fazer-sedevítima, dizeraospolíticos brasileiros e ao seu povo que se esforçou, mas que são «eles»,sempreosoutros,osdefora,queodesprezaram,e,puxando abrasaàsuasardinha, insinuaráqueodesprezonãoéparaomaltratante,masparaonossopaís...

Maresclialanuiu:

-Issoétudoverdade,masnãodeixadeserumprincípio,éprecisoagorainsistir, trabalhar a ideia, deixá-lo perceber que não tem outra forma derestaurar o seu prestígio. Que casar com Domitília seria a sua mortepolítica,isso,sinceramente,achoquejápercebeu.

Aimpaciênciadoimperadornãoeracompatívelcomalentidãode todosestesprocessos,queimplicavamidasevindasdaEuropaparao ladodecádoAtlântico.

Virando-meparaele,perguntei:

-FaloudeMariadaGlória?

Mareschalbeijou-me,meuDeus, beijou-me comonunca fui beijada, umbeijo doce e irme, com uma paixão a que correspondi comsentimentosque nunca até hoje conheci. Confesso que só agora, aquinomeu quarto,com o meu diário aberto à minha frente, me voltei a lembrar da pobrerainhadePortugal.

PaçodeSãoCristóvão,3dejulhode1827

enhoraD.MariadaGlória,oseupaichamou-a-disseocriado,depoisdeterrespeitosamentebatidoàportadasaladeestudo.

Aprofessoraolhouaaluna,comoqueparacon irmarquenãoera maisum truque para se escapar aos livros, mas, vendo-a tão surpreendida,disse-lhe:

-Levante-se,D.MariadaGlória,oseupaiestáàsuaespera.

MariaaindafezmençãodeguardarodetestávelcadernodeAritmética,masaprofessorainsistiu:

- Caso o assunto não seja demorado, quero-a de volta imediatamente.Nãoqueremosirparaacortedoseuavôfazermásfiguras,poisnão?

Seosolhosdarainhaqueimassemaprofessoradesapareceriaem fumo,e saiu esforçando-se para não correr - de há uns tempos para cá, toda agenteaproibiadecorrer...

D. Pedro estava sentado por trás da sua secretária demadeira escura,coisa rara, pensou a ilha, enquanto se aproximava para o beijar, e ele alevantouaoar,rindo:

-Estáscadavezmaispesada.Quando izeres9anos, ilha,jánuncamaistepossoatiraraoar...

Marianãogostavaque izessemreferênciaaoseupeso.Ouviaas aias eas criadas dizer que, embora alta para a sua idade, era gordinha, e asbochechas rosadas que herdara da mãe não ajudavam a dar-lhe o arelegantequetantoqueriater.

Opaipercebeuaexpressãopreocupadadafilhaecomentou,divertido:

-Tensdetercuidadocomoquecomes,senãooteumaridodevolve-teàprocedência, o que também não era pior, querida ilha, porqueme custatantoimaginarqueumdiavamosterdenosseparar.

Mariaolhou-onummistodesustoeentusiasmo,ignorandoocomentárioàsuafigura:

-Papai,éagoraquevouparaaEuropa?

ApresençaconstantedeDomitília,que,apesardagravidez,continuavaadarordensnopaçocomosefossesuacasa,eascartasquerecebiadoavôedatiaLuísaaperguntarquandoéqueosiaconhecer, tornavamcadavezmaiorasuavontadedepartir.

- Não, não te vais nada embora, minha ilha - disse o imperador, numtomsentido.-Chamei-teparadizerquenomeeiomeuirmãoMiguel,eteumarido,lugar-tenenteeregentedoreinodePortugal.

Mariapensouunssegundoseperguntou:

-O tioMiguelvai substituir a tia IsabelMariana regênciadePortugal?Atéqueeutenhaqueidade?

Pedroabanouacabeçacomoseestivesseespantado:

- Não me digas que a professora de História de Portugal nem isso teensinou?Não sabesque sópodes ser rainha, emPortugal,namelhordashipótesesaos15anos...

Mariapôs-seacontarpelosdedos,eopaiperdeuapaciência:

-Pelosdedos,Maria?Faltamseteanos,seteanosemquetensmuitoqueaprender,inclusivamenteafazercontasdecabeça.

Mariadeuumagargalhada,asuaboadisposiçãoasobrepor-seaoamuo,e o pai juntou-se ao riso, tão iguais que eram nesta inconstânciadetemperamento.SubitamenteMariaparou,edisparou:

-Éverdadequeopapaivaicasaroutravez?

Pedroestacou,espantado:

-Nãohánadaquenãosesaibanestaterra?Éverdade,escrevi aoavô,aperguntar se alguma das tuas tias quer casar comigo, e omarquês deBarbacena procura na Europa uma princesa de sangue que queira serimperatrizdoBrasilemãedosmeusfilhos.

-Ai,minhanãovaiser,eraoquefaltavaquearainhadePortugaltivesseoutramãe,paraalémdaSenhoradaGlóriaedamãezinhaque estánoCéu-protestou.

Pedropousou-lheamãonacabeça:

- Quando ela vier, tu vais-te embora... por isso, se fosse a ti, não mepreocupava.

Mariapediu licençaparasair,evoltou lentamenteparaasalade aulas.Tudotinhaprósecontras,pensou:nãoqueriaqueDomitília continuasseafazer de mãe, ou a ocupar lugar no palácio, mas tambémlhe custavaimaginar que um dia a mana Xica e o mano Pedro olhariam para outramulherelhechamariammãe,pequeninosdemaisparaselembrarembemdamãeLeopoldina.Entroupensativanaaula...

Mariaestevecáhojeecontou-mequeD.Miguelfoinomeadoregente dePortugal,equesonhavacomodiadepartirparaaEuropa.

Disse-lhe que eram boas notícias, que mais podia fazer, mas pelo quetenhoouvidonadaéouserátãosimplescomoparece.Deram-menota,defontesegura,dequehátinimovimento fortequequerMiguelnopoder,eque a sua mãe Carlota Joaquina não se cansa de oconvencer a tomar olugardoirmão,comojáoincitaraantesatomarolugardopai.Soube,porMaresclial,queopríncipe,quetemestadoaviveremViena,recebeutunacartadeD.Carlotaadizer-lhequese jurasseaCartaestariacondenadoaoInferno, convencida que está deque D. Pedro, que se esquece que étambém seu ilho, é pedreiro-livre (que é!), e pretende acabar com asmonarquiaseuropeias,valha-noso disparate,porqueestereinãoimaginaquesejapossívelreinarsemquerer,poderemandar.Contudo,apesardasameaçasdamãe,D.Miguel jurouaCarta,masMaresclialdizquenãosabe

com que convicção. Vai fazer agora 25 anos em outubro, idade em queatingirá a maioridade, evolta para Portugal nessa altura - temo que adistância do irmão, quesempre admirou e tentou imitar, as seduções dopoder,eas chantagens darainhabruxa,quenãoháoutronomepara lhechamar,olevemausurparotrono.

Mareschal,queestádentrode tudo istohá tantosanos,dizquea causamiguelista tem, além do mais, argumentos fortes, porque aoassiunir oImpério brasileiro, tirando à ilha mais velha aqui nascida o títuloportuguês de princesa daBeira, e substituindo-o por um títulobrasileiro,Pedrorenuncioudefactoaosseusdireitos,eaosdireitosdela aotronodePortugal.

Suspeito, e o embaixador austríaco suspeita comigo, que Metternichestará mais interessado em que seja um rei absolutista a governarPortugal, justamente ntun momento em que as revoluções e a anarquiaameaçam as coroas da Europa e Espanha está numa situação explosiva.Maria icaria assimno trono de Portugal,mas como fantocheou princesaconsorte,eMiguelseriaoreidefacto.

Se ao menos tuna princesa europeia de uma Casa real de prestígioquisesse casar com D. Pedro, tudo seria diferente, para o Brasil, paraPortugal, e sobretudo para Maria. Porque com o casamento viriacertamente a aliança que levaria países-chaves, como a França e aInglaterra,eevidentementeoImpérioAustro-Hímgaro,aapoiaremacausadamenina-rainha,contraalgumatentativadelheroubaremotrono.

Maria reparou que eu estava mais pensativa do que conversadora, etalvezporissodespediu-secedoepartiu,nãosemantesmedizer:

- Se está a pensar no casamento do meu pai, esqueça isso, senhoramarquesa.Doinitílianuncaovailibertar...

Aindaatenteichamar,paraquenãonosdespedíssemosassim,mas já ianotopodaladeira...

PaçodeSãoCristóvão,13deagostode1827

notíciacorriaacidade,aindaossinosnãotocavamparaamissadasoitohoras.Nasacristiaopadreouviaanovadosacristão:DomitíliaderaàluzeoimperadorqueriaqueamissafossedeAçãodeGraçaspeloacontecimento.

-Maséumrapaz?-perguntou,semconseguiresconderonervosismo,opobre pároco. O sacristão, endireitando-lhe a sotaina, a transpirar com oesforçoporqueosenhorestavacadavezmaisgordo,murmurou:

- Isso não, valha-nos a Senhora da Glória! Foi uma menina, mais uma,que o reino do Brasil estava perdido se nascesse mais um bastardinhoPedrodeAlcântaraBrasileiro.

O prior, que ouvia aliviado, sentiu-se na obrigação de tossir,reprovadoramente:

-Quetemosnósavercomisso,senhorMateus?

Ao que o homenzinho se apressou a responder, enquanto se esticavaparatirardoarmárioosparamentosdefesta:

- Não devíamos ter nada, senhor padre, mas temos tudo! O senhorD.Pedroanunciouquevinhaàmissadasoito,eaqueriarezadapela intençãoda pequenina princesa Maria Isabel de Alcântara Brasileira, e quefôssemospensandonagrandefestadoseubatizado.

Opriorolhouparaoparamentoencarnadodebruadoaouro,e teveumatontura:

- Mateus, homem, arrume lá esse paramento de dia de festa, queamanhãéqueédiadanossapadroeira.

Mateusinsistiu:

-Qual foi apartequeo senhorpriornãoouviu?O imperadordoBrasilestáachegarparaouviraSantaMissa,queencomendouquefosserezadaporDomitíliaeasuanovafilha...

Agora era o prior que suava. Desde que este escândalo tórrido com apaulistacomeçara,aIgrejajáengolirasapossem im.Oimperador rasgaraoassentodebatismodaprimeira ilhaIsabelMaria,porque adizia ilhadepaiincógnito,mandando-osubstituirporcertidãoemqueseassumiapaie,depoisdeumaguerrasemquartelcomobispo,ogovernoinsistiraemdarum funeral de Estado ao bastardo Pedro quemorrera quando pai emãeestavam ausentes na Baía, para já nãofalar na vez em que o imperadorpressionaraa Igrejaparaconceder odivórcioaDomitília,deumprimeirocasamentodequetinhadoisfilhosadolescentes.Eagoraisto...

Osacristãoestava,intimamente,adivertir-secomoembaraçodoprior.

-Eanovaprincesajátemtítulo,duquesadoCeará-acrescentou, ufanoporestarsempretãobeminformado.

AmissacomeçouàsoitohorasealgunsminutosnaCapelaReal.

O imperador estava fardado, no seu posto, uma cadeira dourada ecarmim colocada no altar e onde todos os domingos e dias santosouviamissa, e nas varandas da família real viam-se as caras das princesinhas,MariadaGlóriaeacondessadeItapagipe,naprimeira,aquelaquesempreestivera reservada para a imperatriz Leopoldina, e as irmãs na do lado,comassuasaias.

Apalavracorreraacidade,eaigrejaestavacheia.

MariadaGlóriacomentoucoma ilhadacondessa,aproximadamentedasuaidade:

- Já viste, Maria Teresa, como as senhoras têm o cabelo arranjado, astiarasasegurar-lhesoscabelos,aspérolasaopescoço?Devemter sabidodo nascimento da ilha de Domitília antes de nós e passado anoite aarranjar-se para este momento. A má-língua e a intriga nesta corte sãomais e icientes do que os tambores e os fumosdos selvagensna loresta,bemdiziaaminhamãe.

Maria Teresa sentiu o toque damão damãe sobre o ombro. Omelhoreranãoabriraboca,nemcomentarnada.

Mariaentendeuogesto:

-Condessa,nãopodemostermedodosespiõesdamarquesadeSantos,eu pelomenos não tenho... não escondo de ninguém que dava tudo paranãoestarnestaigreja,equenãovourezarporcriança bastardanenhuma.Sóvourezar,issosim,pornãotersidoumrapaz.

Acondessapassou-lheamãopelocabelo,comoseestivesseaendireitar-lheumdoscanudosarruivados,eMariaacrescentou,avozcomovida:

- Mas não podemos, nem por um minuto, deixar de vigiar o Pedro.Acreditobemqueaquelacorjaécapazdetentarenvenená-lo...

Acondessaeafilhabenzeram-se:

-Nãodigaumacoisadessas,D.MariadaGlória!

TevepenadenãolhepoderdizerquejátinhaprometidoàmarquesadeAguiar redobrar a vigilância em redor da criança, nunca a deixando commenos de três damas diferentes, de preferência que se odiassemmutuamente. Desse ódio mútuo pretendia as queixinhasnecessárias amanteropequenoimperadoremsegurança.

Só tenho tempopara tunanotarápida,porqueassentiem irauni baileem casa de José Bonifácio, a que Mareschal também vai. Foi ele queinsistiu, e confesso que senti uma grande alegria em que quisesseencontrar-se comigo num lugar público, mesmo que esteja mais do queentendido que diante dos outros nos ciunprimentamos apenas comoconhecidos,ouamigos,quetodaagentesabequesomos.

Durante estes meses tenho evitado os acontecimentos sociais, não sóporque o luto por D. Leopoldina me tirava a vontade destes encontros,como também porque as grandes festas que têm acontecido envolvemsempre Domitília e aqueles que decidiram bajulá-la como se fosse ela a

legítimamulherdo imperador.Todososdiasvejo crescero seu palácio, eseiqueembreve,muitoembreve,semudaráparalácoma suacorte,quehoje em dia já inclui embaixador, adidos de negócios e artistas, todos naesperançadequeapadrinheassuascausaseas leveaoconhecimentodoimperador.OsamigosdeDomitíliaestãoemtodos os lugaresdeEstado,oque obviamente leva a gente a murmurar, e o prestígio do imperador acairaostrambolhões.

Imagino que Mareschal esteja desesperado. Passado o alívio de saberque a marquesa de Santos não tinha dado à luz um rapaz, veio aconsciência de que o senhorD. Pedro não resiste a um bebé, a um ilho,metiaemoçãoqueatécomove,senãoparecesseemmuitosmomentosqueexibeumtroféuqueprovaasuavirilidade.

Mareschalestápreocupadoporquetemequesesaibaqueo imperadorestá com tuna doença venérea, o que não é de admirar com a vida queleva, e para o provar queria que lesse uma outra carta que o imperadorescreveu à marquesa. Protestei e pedi-lhe que ma deixasse, para que alessesozinha,porque,mesmocomanossaintimidadecrescente,teriasidoincapazdealeràsuafrente.Enãoimaginavaeu,naaltura,ostermosemque o imperador escreve, como quando diz «Não quero deixar de te darparte que hoje a Tua Coisa vinha espremendoalgtuna hmunidade, maspodesestarcertaquenãoénada»,eorestonemconsigotranscrever.

Eagonorreia,oquesesuspeitaser,deD.Pedroseriaagotadeágua natragédia que tem sido encontrar-lhe noiva. O marquês de Barbacena jápartiuhásemanas,masasnotíciassãodesanimadoras, todasasmulhereselegíveis lhe dizem que não, e diz-me Mareschal que as irmãs deLeopoldinaprotestaramcomfúriaàsimplesmençãodeque octuúiadoseatreveraapedi-lasemcasamento.

Gomoseistonãochegasse,háagoramaistunacriançadacriatura, enãotenhodúvidaqueembreveoimperadorajuntaráàsuaninhadasobotetodo paço, porque sermédico, professor e tutor das crianças ainda pareceseraúnicacoisaquelhedáalgunnaalegria.

MareschalestápreocupadocomaideiadequeDomitiliaganhoudenovo,porqueassuaspromessasdequevoltariaparaSãoPaulomalacabeoresguardovãoserrevogadaspelacerta.Bastouver,dizele,oorgulho

comqueoimperadormandourezarmissapelarecém-nascida,aquemdeujáotítulodeduquesadoCeará,nadamais,nadamenosdoqueduquesa...0quediránopróximorelatórioquefizerparaaÁustria?

E como se isto não bastasse, a causa daminha rainha vai icandoparasegundo plano. Enquanto anda de volta do berço da menina, nãotemtempopara lerospedidoseosavisosque lhechegamdePortugal.Tenhomedoquequandoderpeloqueporláestáaacontecersejatardedemais.EdepoisoqueserádeMariadaGlória,quecresceuasentir-se rainhadeunireinoquenãoconheceeque,setudocontinuarassim,nuncachegaráaver?

TenhodeinsistircomMareschal-a inal,queavôéestequenão querasuaneta juntodesi,que ignoraosapelosdeproteçãoquea sua ilha lhefeznahoradamorte?QuandodigoaPhilippequeosaustríacosdevemserhomensdecoraçãofrio,ri-seediz-mequenasceunoLuxemburgo.Ecoroatéàsorelhas,esinto-meamulhermaisfelizdoMundo.

SantuáriodeNossaSenhoradaGlória,20deagostode1827

icabocejoueencostouacabeçaaoombrodairmã.Mariapassou-lheobraçoemredordosombros,eairmãomaispequeninadisse-lhebaixinho:

-Mana,estacapelaétua,nãoé?

Mariasorriu,erespondeu-lheaoouvido:

- Amamãe dizia sempre que sim. Dizia sempre que a Igreja de NossaSenhoradaGlória,aquiemcimadestemorro,comvistasobreacidade,eradaminhamadrinhanoCéu,aquemedeuonome.

O pai, que estava ao seu lado, fez-lhe sinal de silêncio. Como sempre,estavamsentadosnatribunademadeira lateralaoaltar,deonde viam ospadresdecima,easpessoasencostadasdoladodireito,mas dosoutrossóouviam as vozes. A família real podia ver sem ser observada, um poucomaisacimadoqueosrestantes.

Xica calou-se por uns momentos, mas depois não resistiu, apontandoparaaVirgem,nonichodoaltarprincipal,notopodosdegraus demadeirade pau-santo, numa igreja onde a madeira escura e brilhante ladeavatodososarcosdepedra.

-Mana,aNossaSenhoraque temoMeninoaocolopodiaseramamãe,não podia? E o menino, o Pedro - insistiu, como quem pedeque lherealizemumdesejo.

Mariasorriu-lhe:

-Podia,Xica,masachoqueanossamãeeramaisbonita,eoPedro temcaracóismaisloirosebonitosdoqueosdaquelaimagem.

Xicaolhou,pensativa,eJanuáriaentrounaconversa:

- O papai disse-me que esta imagemda Senhora émuito parecida comaquela que está na igreja de Vila Viçosa, de onde vêm os nossosavósBragança.Opaidizqueselembradeteraminhaidadeedeláirrezar...

Paula,quepassavamuitomais tempodoqueas irmãsadevorar livros,porqueospulmõesnãoadeixavamcorrerláporforacomoelas,corrigiu:

-ASenhoradeVilaViçosaémuitoantiga,eoMeninotempombinhosnamão -dizemque foiD.NunoÁlvaresPereira, queéonosso antepassado,que a trouxe de Inglaterra e a deu à Congregação de Nossa Senhora daConceição.DepoisonossoavôD.JoãoIVtornou-apadroeiradePortugal.

-Seéassim,amanaMariadaGlórianãovaiteronomedapadroeira dePortugal - lançou logo Januária, a eterna ciumenta. E, virando-separa airmãmaisvelha,disparou:

-LáémelhorusaressóoMaria...

Mariaencolheuosombroserespondeu,maisaltodoquequeria:

-Amãede Jesusé sóuma,pouco importa issodosnomes,ederesto amãe tratava-me sempre por Maria, nas cartas que escrevia ao avôFrancisco e aos tios, sempre porMaria, por isso lá ninguémme conheceporoutronome.

O imperador virou-se para as ilhas e pôs umdedo zangado em frentedaboca,eavozdopadrevoltouaencheraigreja.

Hoje era o dia da padroeira e a cerimónia nuncamais terminava, masdepois vinha a parte boa, a festa no largo que rodeava a capela,os jogosnosbancosdepedraque ladeavamomuretequeprotegiao miradouro,avista deslumbrante sobre o mar, as ilhas que ponteavam as águas, e ascopas das árvores que iam descendo para a costa e sobre as quaiscresciam,comoummanto,asbuganvíliasroxasàprocuradosol.

Eosfoguetes!Mariagostavatantodofogodeartifícioqueenchiaoscéusqueagoranoinverno icavamescurosmaiscedo,gostavadas estrelasqueformavam,doscachosdeestrelinhasquedesciamdepoisdaqueleestrondomaior.

Voltou a concentrar-se na missa, mas por pouco tempo, porque Xicainsistia,destavezcomPaula,sempretãodelicadaesuave:

-Paula,aquelesanjosgrandes,comasasquesedobramcomo folhasdepalmeiras-dizia,apontandoosazulejos-,sãoosquetêmosnossosnomes?

Atéacondessade Itapagipe,queestavaa tentar ingirquenãoouvia otagarelardamaispequenina,tevedeesconderumagargalhada.

Maria anuiu com a cabeça, e repetiu baixinho, como se recitasse umaoração: - Maria da Glória Joana Carlota Leopoldina da CruzFranciscaXavierdePaulaIsidoraMicaelaGabrielaRafaelaGonzagadeBragança.

E Xica, a rir, imitou-a, na sua voz cantada: - Francisca Carolina JoanaLeopoldinaRomanaXavierdePaulaMicaelaRafaelaGabrielaGonzaga deBragança.

O olhar do pai desta vez calou-as. Se continuassem assim iam diretasparacasa,eadeusfesta,adeusfoguetes.

Seguiramaprocissãopelas ruasdoBairrodaGlória, que tinha vindo acrescer em redor da Ordem Imperial de Nossa Senhora da Glória doOuteiro. O facto de ser o lugar que os imperadores visitavamconstantemente, fazendo parte dos percursos a cavalo de D. Leopoldina,levou a quemuitas das famílias enriquecidas com o ouro, e agora o café,construíssemaliassuascasassenhoriais.

A irmã e o cunhado de Domitília estavam entre estes novos-ricos,promovidos a barões de Sorocaba por generosidade do imperador, queescandalosamentedistribuía títulosebene íciospor todaa famíliaCastro,sobretudo quando os maridos generosamente cediam as esposas à sualuxúria - Benedita tinha sido seduzida, e deramesmoà luz um ilho a D.Pedro,mas agora todo o caso estava abafado e escondido, até porque osciúmesdeTitíliaeramfamososnoRiodeJaneiroearredores.

Mas estanoite o imperadornãopareciadisposto a fazer concessões aotemperamentocaprichosodeDomitília,aqueoresguardodepois dopartorecente obrigava a icar fechada em casa, enquanto todossaíam para sedivertirem.

Por isso,D.Pedro,quedesciaa ruabem-disposto, comMaria pelamão,disse logo que sim ao convite da «cunhada», como comentaramimediatamente os presentes, e o seu grupo de amigos habituais, onde aralé se misturava com algumas ovelhas tresmalhadas da nobreza antiga,entrouacantarpelosportõesdaquintaqueabriamparaaladeira.

Benedita estava linda, comentou o imperador, enquanto lhe passavaumamãosensualpelosbraçoscobertosapenasporumaécharpe,eroçavacomassuaspatilhasebigodenoseurostomaquilhado.Mariatentouqueopai lhe soltasse a mão, subitamente incomodadapor toda aquelasensualidadeque sentianoar, e icouaolhá-los naquele jogode seduçãoque já começava a entender, de tanto o ver à sua volta,mesmo entre oscriados e os escravos da quinta, os seuscorpos negros e brilhantes emdançasàluzdasfogueirasqueacendiamaocairdanoite,noscamposportrás do paço. Embaraçava-a,masmentiria sedissessequenão a atraía, emuitas vezes à noite, nocalordos lençóisde linho, imaginavaqueumdiaseriaoseu,ocorpodesejadoporumhomem.

Osmúsicostocavamalto,eosconvidados faziamumcírculo,para queoimperador abrisse o baile, cá fora no pátio, por baixo das árvores,decoradascombandeirinhascomaimagemdaSenhoradaGlória.PuxandoparasiBenedita,opai,maisbem-dispostodoquehámuitotempoMariaovia, dançou com ela uma e outra dança, eMaria reparou que por detrásdos leques as senhoras já falavam, imaginando (outalvez não fosseimaginação)queabaronesaaproveitavaaausênciada suairmãmaisnovapararecordaraD.Pedrooprazerdemomentospassados.

Numimpulso,atravessouosparesqueentretantosetinhamjuntadoaocasal,epuxoupelobraçodopai:

-Papai,dancecomigo-pediu.

Pedroolhouparaa ilha,quetantolherecordavaamãe,pediu licençaaBenedita e, tomando a ilha nos braços, rodopiou com ela pelo espaço,levantando-lhe os pés do chão, e fazendo-a dobrar-se pelacintura. Ospresentes riam, divertidos, e Maria sentia-se nas nuvens.Como era bomteropaisóparasi.

Quando o primeiro estrondo do fogo de arti ício se ouviu, osmúsicospararamdetocar,etodaagenteseprecipitouparaogradeamentovirado

paraomar,eduranteumahoraespantaram-secom asnovascriaçõesdosmestres do fogo. Pegando na pequenina Xicaao colo, e com as suas trêsfilhasjuntoasi,oimperadorsentia-seprofundamentefeliz.

Talvez a melancolia que a morte de Leopoldina trouxera estivesseinalmente a desaparecer - da Europa viria uma princesa linda e seriamoutravezumafamíliaalegreeunida,pensou,satisfeito.

Nessanoitesóchegaramaopaçopelasonzeemeia,equandoentregouFrancisca à ama, e deitou Paula Mariana com um beijo na testa, disse aMariaeaJanuária,queoseguiamdequartoemquartoansiosasporqueanoitenãoacabasse:

- Amanhã vou partir para a fazenda, prepará-la para fugirmos para láumassemanas,nadarmosnosrios,ebrincarmostodososdias.

MariaeJanuáriaencostaram-seàspernasdopai,quecolocouosbraçosem redordasduas, baixando-separa lhesbeijar os cabelos e lhesdar asboas-noites.

Hojefuinumpasseio,quaseperegrinação,àIgrejadeNossaSenhora daPenhadeFrança,pousadanestepenhascoasetentametrosdomar, láembaixo, no centro de uni vale a perder de vista, onde de cada vez meespanto,comosefosseaprimeira,comaquantidadedeverdes diferentesque se entrelaçam nesta mata. Gostaria tanto de saber pintar, e podercaptarnuma folhadepapel a vistaque tenhodesta rochaondeme sentoagora, à sombra dos cachos de lores amarelas de tuna chuva-de-ouro,umacassia istula,comodiriaomeumaridoFernandocomoseudesejoderigor.

A Maria apareceu há dois dias lá em casa, de manhã cedinho, com apobre da Malvina a trotar atrás, e parecia outra criança: as bochechascheias de cor, os olhos brilhantes de entusiasmo, a contar-me comodançaracomopaiemcasadabaronesadeSorocaba,edecomoo senhorD. Pedro se preparava para as levas, «só a mim e às manas», para achácara. Não quis desiludi-la, porque me pareceu convencida, como se

calhar todos os cariocas, de que Domitília depois do resguardomínimovoltariaparaSãoPaulo,massuspeitoquevai icardececionada.Disse-meMaresclial que, embora fosse essa a decisão primitiva, o nascimento dacriança já lhe dera a volta à cabeça, e Domitília teriaem breve de novotodoopoderquedesejava.Oqueseiéqueosolardamarquesacontinuaacresceremtamanhoeluxo,e,pelopau-santo eoscarpinteirosquelávejoatrabalhar,nãoécasaaqueamarquesadeSantosvávirarascostas.

Nãoseioquese terápassadoentretanto,maso«meu»barão mandou-metunanotacurtaapedirqueescolhesseumlocallongedopaçoparanosencontrarmos.Escolhia IgrejadaPenhadeFrança, porquequeriadividircomeleestecenárioe,quemsabe,rezarcomelenestaigreja,ondeumdiagostavademecasar-quedigoeu,quesonhoeu,nuncatrocámospalavrasnesse sentido, e ele ainda por cimamais novo, só vai mantendo estaamizade,oupoucomaisdoqueisso,parapassarotempo.Nãomeimporto,nãoqueropensarnissoagora. Vouparardeescrever,eguardarestemeucadernoprecioso,quesóa loucuramefezarrastarparaaqui.Depois,maistarde,talvezvolteaescreveremcasa,nasegurançadomeuquarto.

As notícias que Philippe tinha para me dar eram empolgantes eassustadoras,tudoaomesmotempo.Aoqueparece,ontemànoite, quandoa baronesa de Sorocaba, a Benedita de Castro aqui para nós, que se nãousoo títulodeDomitília,queconsideroumadesconsideraçãoporaquelesque têm uma distinção por feitos realmentemerecidos, também o destairmãCastronãomemereceomínimo respeito...Adiante:oquemedissefoiqueBeneditachegavaacasatarde,quandoumtirodepistolaestilhaçouovidro da carruagem emque seguia sozinha, não a matando por um triz.Chamou a guarda,chamou o marido, que pelos vistos tinha ido para afazenda de SantaCruz com o imperador - lá se vai o sonho deMaria daGlóriadetunasfériasapenascomasirmãsdesangueeopai-,pedindo-lheque regressasse com urgência. Mareschal foi chamado demadrugada aopaço,ondeumimperadorfuribundoeimpacientelhedissequeoatiradoreraumo icialdaCavalaria,íntimodeDomitíliaequetinhasidovistocomoirmão desta, José de Castro. Possesso, D. Pedro gritava que só lhe faltavaagora que a amante andasse a matar porciúme, visivelmente temendo,disse-mePhilippe,queumdiaaloucuradamulheralevasseaatirarsobreopróprioimperador,porque julgava-abemcapazdetudoquandosentissequeperdidaporcem,perdidapormil.

Mareschal aproveitou o episódio para reforçar a sua tese de que apaulista tinhade ser devolvida a SãoPaulo, e todo o romance terminado,sob risco de que o imperador perdesse credibilidade e fosse, ainda porcima, acusado de dar cobertura a tini crime. Era preciso deixar a guardainvestigaratéaofim,prenderosculpados,ecastigarDomitília.

Aí o imperador icou pálido, a cara da cor das patillias platinadas pelosol,edisse:

-Nãovoudeixarqueapolícia investigueistoatéao im,Mareschal,nãomepeça isso,vouapenasdizeraTitíliaquedeveescapar-serapidamenteparaforadoRio,paraficarlongedoencalcedainvestigação...

Masfoiafraseaseguir,dizMaresclial,queodeixouestarrecido.

-Francisca-dizia-meele-,sabeoqueéqueàquelahorada madrugadaelejátinhafeito?

Disse-lhequenãoeele,contentepeloimpactoqueanovidadeiacausarem mim, e com muita razão, porque desta não estava mesmo à espera,contou:

-Tinha passado diretamente em casa damarquesa de Santos e trazidoconsigoparaopaçoapequeninarecém-nascida,comumasemanadevida.

Não quis acreditar, mas ele jurou-me que era verdade, e a pequeninaMaria Isabel de Alcântara Brasileira, a duquesa do Ceará, estava já nosaposentosdasuairmãBela,comaamadeleite,queobviamentevieraporarrasto.

Mareschalestavadecabeçaperdida:

-Francisca,oquedigodestavezaoarquiduqueFrancisco?Queos seusnetosagoraconvivemebrincamnãocomuma ilhadeDomitíliadeCastro,mascomduas?

Não lhe invejo o emprego, comentei a rir, mas a verdade é grave, averdade é que com a criança na sua ninhada, as duas isabéis da suaDomitilia em casa, e a di iculdade em arranjar rapidamente tunamulherque lhe cale o desejo, com doença vénerea ou sem ela, dou quinze dias

para que tudo esteja exatamente na mesma, ou pior. O imperador vaiescrever-lhe a mandá-la partir, ela vai implorar mais uns dias para serecompor,oimperadorvaivisitá-laparasecerti icardequeestábem, comeste seu gosto de curandeiro e médico, este prazer genuíno que tem develar por aqueles que ama na doença (sentir-se-á amado e útil,nessesmomentos?Ter-lhehá icadoa carênciadeumamãequevelasse por ele,entregue ao pai e a tuna ama rabugenta e possessiva, como foi?), e vaiceder.Pelo«coiso»,pelocoração,nãoseiporquê,masesta mulhertem-nocompletamentenamão.

Estremeço quando escrevo isto - há em mim uni momento de inveja.Comogostavadeterafacilidadedeseduzirqueelatem,comogostavaquePhilippefossemeu...

PaçodeSãoCristóvão,16demarçode1828

scarruagenssucediam-seachegaraopaço.Primeiroados.ministros,logoseguidapeladeMareschal,etodosjuntossubiramaescadaria,epassarampelassentinelasdaportacomosenãoasvissem.

Maria brincava com Januária no pátio do tanque, mas ambas icaramimobilizadascomoestátuasquandoouviramocamareiro-mor anunciar osnomes,frenteàsaladetrabalhodopai.

Acomitivaparoupormomentosàporta,eMariareparouqueentre elaestavam o marquês de Barbacena, que julgava na Europa à procura deumamulherparaopai,edoisoutrossenhoresquenuncavira antes,masquepelaformacomoestavamvestidoseramportugueses,decerteza.

Estranhamente, não falavam entre si, e até Mareschal, que à distâncialhe fez uma vénia divertida, parecia menos bem-humorado do que ocostume.

Também há semanas que ninguém andava bem-disposto naquelacasa,comopaiavociferarcontraodescaramentodasprincesas europeiasquenão o queriam para marido, e Maria por várias vezesse tinha sentidomagoada quando ele, sem freio na língua, acusavaD. Leopoldina de ter,com as suas queixinhas, intrigado contra ele ládo outro lado do mar.Ouvira-o protestar com Mareschal contra o avô Francisco, insultadoporque já lhe tinhaescritoapedirperdão ea jurarmudar,eoavô,pelosvistos,poucocasofizeradassuaspromessas.

Januária sentou-se ao seu lado, na borda do tanque, os olhos postosnaqueleshomens,eperguntou:

-Achasqueanossamadrastavaiserboazinha?

Mariaencolheuosombros:

-MelhordoqueDomitíliaécomcerteza,pelomenossevierdelátalvezsejamaisparecidacomanossaprópriamãedoqueestamulher.

ComachegadaaopaçodeMariaIsabel,dequemopaicuidavacomosefosseumaama,o seucrescente favoritismoporBela, a somarao factodecontinuar a ir dormir todas as noites ao luxuoso solar damarquesa porquem estava, visivelmente, apaixonado, as irmãs estavam ainda maisunidas contra a mulher que consideravam culpada não só da morte damãe,comodosraspanetesereprimendasquerecebiamdopai.

- O pior é que ninguém quer casar com ele e vir para esta terra tãodistante,depoisdoqueouviramdizerdele-suspirouMaria.

- E pior ainda - disse Januária, que, apesar da recém-encontradafraternidade,nãoconseguiaevitarumasbicadas-équeasaiasdizemqueporseres ilhadele,porsermos ilhasdele,vamostermaisdi iculdadeemarranjarmarido.Eunãome importo,sou Januáriaporque nascinoRiodejaneiro e não quero deixar esta casa, nem os manos, nem os meus cães,mastu...

Mariaolhou-aderelance,comalgumdesprezo,enumtomligeiramentepomposorespondeuàalfinetada:

-Quandoláchegareumostro-lhesquesouumarainhadiferente daquiloqueopaié,maisparecidacomamãe...

Aconversafoiinterrompidapelobarulhodemurrosnamesa,egritos,avozdopaiaecoarpeloscorredorescompridosdacasa.

Mariapôs-seempé,deuamãoaJanuáriaealiciou-a:

-Anda,vamosouviràsportas...

Januáriaseguiu-a,masavisou:

- Tu, com essa mania de escutar às fechaduras, ainda vais arranjarsarilhosasério.

Masaceitouajoelhar-secomelanumcantodosalãoamarelo,contíguoaoescritóriodopai,eencostaraorelhaaorespiradorquedeixavaouvirtudo.

Os dois portugueses, um de cada vez, tentavam explicar ao imperadorque o seu irmão Miguel, mal desembarcara em Lisboa, e depois de terjurado idelidade aD.Maria II e à Carta Constitucional, tinhademitido osministérios,dissolvidoaCâmaradeDeputados,ecomeçadoaperseguirosliberais.

-Eeuouvi-o,senhorD.Pedro,ouvi-ocomamãosobreaBíblia Sagrada,a dizer «Juro idelidade ao senhor D. Pedro IV e à senhora D. Maria II,legítimosreisdePortugal»-diziaumdeles.

Pedrotrovejava:

- É claro que ouviu, seu bruto, porque foi com essa informação quetorneiefetivaaminhaabdicaçãoàcoroadePortugal,nuncaoteriafeitosesuspeitassequeomeuirmãometrairia.Eagora,meus senhores,eagoraoque fazemos, daqui, de tão longe, e na certeza deque a Assembleiabrasileira nunca me dará autorização de pegar nas tropas e enviar umaarmadacontraLisboa?

Mareschal,Mariaconhecia-lheavoz,tentavafazermaisperguntas:

- Senhor D. Pedro, espere, que temos de recolher ainda mais algunsdadosdoproblema.Diga-me, que decisão tomouo regente acerca da suamulher,D.MariadaGlória?

Mariasentiuocorpoatremersemparar,eapele, jábranca,estava tãobranca,queJanuáriaseassustou:

-Mana,queresquechamealguém?

Mariamandou-acalar,eencostoudenovooouvidoàparede.

O silêncio na sala durou o que pareceu uma eternidade, até que o talportuguêsrespondeu:

- Lamento informar o senhor imperador que D. Miguel anunciou quedavapordesfeitoocasamentocomasuasobrinha,arainhaD.MariaII.

Maria levantou-se e desatou a correr. Januária foi atrás dela mas,ofegante, desistiu no princípio do roseiral. Sabia que iria direita à

marquesa de Aguiar. Pobre mana, que sarilho. D. Francisca saberia,melhordoqueela,oquelhedizer.

Meu Deus, como queria que as minhas profecias estivessem erradas,como desejei hoje que a senhora D. Leopoldina, com a sua imensacapacidade de resignação e o seu amor insuperável aos ilhos, aquiestivesse, quando a pequenina Maria da Glória entrou pela casa dentro,lavadaemlágrimas.

Finjo para mimmesma que sou mãe desta menina, a mãe que a mãedesignou na Terra, e todas as noites peço à Senhora da Glória que meilumine para ser amelhor dasmães,mas nestesmomentos percebo quenãoseinadaepossotãopouco.

A minha rainha de Portugal, sempre tão segura de si, parecia uniabonecade trapos, queme caiuno colo semcerimónias, nemprotocolos, eseabracouamimemsolutosincontrolados.

Comdi iculdade conseguiquemedissesseoque sepassava - tenhodeconfessarqueaté tivemedoquealgumdoscapangasdopai,querondamcomo lobos aquela casa e as minhas meninas, tivesse abusadodela munmomentodeloucura,comoseiquefazemcomasescravasmaisnovas,semque os pais as possam proteger ou sequer atrever-se a queixar-se, masfelizmente não era nada disso.Mas paraD.Maria daGlória, a notícia eradevastadora: ouvira um embaixador português dizer que o seu tio, D.Miguel,depoisde terassinadoo contratodecasamento,depoisde lhe terjuradofidelidadeperanteosdeputados,anunciouquenãocasariacomela.

Tenteitrazê-laàrazão,masMaria,apesardosseusquase9anos, sentia-se uma noiva, não, uma mulher despeitada e abandonada pelomarido,envergonhadaperanteomundo,comosenãoprestasseparanada.

Mandeiacriadafazerumchádetília,embrulhei-amunamantaquente,porque tremia de frio, e procurei ajudá-la a perceber que, bem vistas ascoisas,o tioa libertaradeunicompromisso terrível,odecasar comele.Eque bem melhor tinha sido que se revelasse agora pelo que é

verdadeiramente, do que se o tivesse feito quando ela já estivesse naEuropa,sozinhaedesamparada,semtodosnósaoseulado.

Só tive vontade de desenrolar o papiro dos defeitos do rapaz bruto emalcriado que conheci aqui no Rio, mas, quando há anos lhe andamosaesconder os seus defeitos e a ressaltar as qualidades, faria igura dementirosaeoportunista,eissonãoquero.

Repeti-lheafrasedamãe,dasprincesasquenãopassamdedados,quejáouviutantasvezes,masdequepelaprimeiravezentendeuosignificado.

Por imfoielaprópria,comaqueleotimismoquefelizmentelhechegadopai,equesuplantaamelancoliadamãe,quemedisse,emboracomusinavozaindatrémula:

-SecalharaminhamãeficavacontentequeoMigueltenhaacabadocomtudo,porqueassimvoupodersereuaescolheromeumarido,nãoé?

Agarrei-meànotadeesperançacomunhasedentes:

-Éexatamenteisso.Jáviuqueasuamãediziaqueumcasamentofelizéfeitodeamizadeepaixão.SentiaalgiunacoisadessaspeloseutioMiguel?

Mariaacenouquenãocomacabeça,eeuabracei-acomforça:

-Agoravaipoderescolheroseupríncipe,quevaireinarconsigo, ajudá-laaseramelhordasrainhas.

Olhou-me,preocupada:

- Não sei se vou ser rainha, agora, senhora D. Francisca. O Miguel vaiproclamar-se rei a seguir, vai ver que sim. Depois desta afronta ao meupai,depoisdefazertudoaocontráriodoquejurou,edeter deitadoforaaCarta,vaicontinuaremfrente.Quersereleorei,ese calharvaicasarcomatalLuísadaBavieradequemgostava-eopaidelaagoradeixa,porqueeleéreidePortugal.

Abaneiacabeça,eespantei-mecomasualucidez.Nãolhementi:

-AchoqueasenhoraD.MariadaGlóriaécapazdeterrazão.Masofacto

de seproclamar reinãoquerdizerque as coisas iquemassim. Ainda nooutrodiaMariaGranammediziaqueoembaixadorem Londres,emuitosoutrosportugueses,nãoqueremruiretornoarmia monarquiaabsoluta,eseassimforvãoreagir.

Marialimpouacaraaovestido,comoacriançaqueera,edisse:

-Eeuvoureagircomeles.Senãoquercasarcomigo,oproblemaé dele,esóficoaganhar.MaseuéquesourainhadePortugal!

Confessoquegostavadetera fédela.Temoqueacabeçaestouvadadonosso imperador, os assuntos de Domitília, e a instabilidade políticanacional, odistraiamde rua trabalho sério epersistentepela causade D.Maria. Espero a chegada de Philippe - a cada dia que passa me émaisindispensável,emaiscon ionasuaperspicácia.Alémdomais,Mariadisse-me que o barão deMareschal estava na reunião, por isso saberá dar-memaisdetalhesdoqueestacriançaqueescutaàsportas!

PaçodeSãoCristóvão,10demaiode1828

emprequeopainãoficavaemcasadeDomitíliaeapareciaaopequeno-almoçonopaço,insistiaemsentar-seàmesagrandecomele.

O imperador achara graça à decisão queMaria tomara no dia em queizera 9 anos, há dois meses, e sobretudo à «explanação» que lhe fizeraparajustificaramudançadacopadascriançasparaamesadosgrandes.

Muito direita, e compenetrada, explicara-lhe que agora que a situaçãoemPortugaleragrave,agoraque tioMiguelera inimigo,passaria a lerosjornaiseadiscutirpolítica.

- Papai, nãopodemos icar aqui sentados, a deixar que o seumanolhecomaaspapasnacabeça-dissera,determinada,noprimeirodia emqueonovoregimeforainstituído.

Pedrosorrira-lhe,dooutrocantodamesa:

-Gostomuitodeveraminha ilhainteressadaempolítica,porque,aliás,temaquemsair-sabequefoiquandoasuamãefoiregente...

-...quetratoudaindependênciadoBrasil-respondeuMaria, arrumandooassunto.Nãoiadaraopaidesculpasparacontarhistóriasdopassado,deque ainda por cima saía sempre como a vítimainocente, quando ela bemsabiacomoascoisassetinhampassadorealmente.Porissocontinuou:

-Papai,temdememandarparaaEuropa,paracasadoavôFrancisco.

Pedroestremeceu.Acusavam-nodeserumpai-galinha,eera-ode facto,nãogostavanadada ideiadeenviara ilhapara longe,nemsequera suaDomitíliaparaSãoPaulo,comoMareschalinsistiatodos osdias,nemIsabelMariaparaumaescolaemParis,comoBarbacenapedia,quantomaisasuafilhaparaacortedosogro,quesabianuncalheterperdoado.

Quisdesviaroassunto,falardecomoestavabomosucodegoiaba,masMarianãoodeixou:

-Papai - insistiu -, o senhor sabe que o tioMiguel se vai proclamarrei,nãosabe?

Pedro,sentindo-seacusadodenadafazercontraoquetodosdiziam serumaevidência,protestou:

- Maria da Glória, nada de exageros, concordei em falar contigo depolítica,masaindavaisterdeestudarmuitoastuaslições-eaoqueseiésbastante preguiçosa! - antes de vires comandar a estratégia que oimperadordoBrasilsegue.

Mariaencolheuosombros,comosetudooqueopai lhedissera tivesseentradoporumouvidoesaídopelooutro:

-Nãoqueromandarnosenhor,masqueroquemeenvieparaa Europa,quando o marquês de Barbacena for para lá para continuar a procurarumamulherparasi.

Eantesqueopaipudesseprotestar,atacou:

- Pense bem, paizinho, eu vou dar visibilidade ao Brasil, e voumostrarcomoopainãodeixaqueoseuirmão,mesmosendoseuirmão,desfaçaosjuramentosquefez.Sabeoqueéqueelesdizemporláagora?

Pedro,surpreendido, franziuosobrolho -oquepodiaa ilhasaber queelenãosabia?Comquemfalava,queméquelhemetiatudoistonacabeça?

Marianãoesperoupelointerrogatório:

-Oiçoaquieali, leioos jornais,papai, e aspessoas comentame julgamque não escuto nada.Mas isso não importa, o que importa é quelá pelaEuropadizemqueo imperadordoBrasilestátãoocupadoa darbailesnopaláciodamarquesadeSantos,quepoucoseimportacomagovernaçãodoBrasiloudePortugal...

Pedrodeuumsalto,atirandoparatrásacadeira,quecaiucomestrondo:

-AmeninaMariadaGlóriavaiparaoseuquarto,decastigo,ejá!

Maria sabia que tinha de icar por ali, mas levantou-se devagar,insolente,esaiudasalacomum«Atéamanhã,papai».

Quandonessemesmodia,noPalácioImperial,ondesereuniacomosseusministros,oembaixadordePortugalpediuparaseradmitidocomurgência,Pedronãoqueriaacreditar.PoderiaMariaterinformadoresmaisrápidosdoqueosdele?Poradivinhação,oupormérito,nãosabiaqual,masquandoorepresentantedePortugallheanunciouquea25deabrilpassado,hámaisdedezdias,portanto,oSenadodeLisboahaviaproclamadoMiguelreiabsoluto,eopovogritaranarua«VivaD.Miguel,reiabsoluto!»,ficouchocado.Quandolhedisseramqueumapartedosnobresportuguesespediaaoirmãonãosóparasesentarnotrono,comoaindaparaconvocarosantigostrêsestadosdoreino,epararevogaraCarta,aCartaquejurarasobreaBíblia,aCartaqueele,oimperadordoBrasil,deraaPortugal,sentiuummurronoestômagoearaivaaexplodir,mas,controlando-secomdificuldade,conseguiunãodarpartedefraco.

Peranteoolhardosseusministros,retorquiu:

- Meus senhores, isto é uma reunião de ministros do Brasil, são osassuntos doBrasil que necessitamda nossa atenção.De Portugal,senhorembaixador,trataremosdepois.

E o embaixador português foi conduzido à porta em silêncio. Eraentãoesta a postura que o senhor D. Pedro assumia? Tendo perdido a coroaportuguesa, agarrava-se com unhas e dentes há que ainda era sua,abandonandoacausadafilha...

Aosairdopaláciocruzou-secomMareschal,quelhedissedechofre:

- Se os liberais portugueses querem ganhar esta guerra contra oabsolutismo,D.MariaIIéaúnicacartaquelhesresta.

Oembaixadoracenoucomosetivesseacabadodeconfirmarissomesmo,eMareschalinsistiu:

-Temosdeaproveitarestemomentoparaprepararaidadasenhora D.Mariapara aEuropa, ou seráuma rainhaquenunca se sentaráno trono

queéseupordireito.

Oembaixadorportuguêssorriu,irónico:

- Infelizmente, acho que o senhor embaixador é o único europeuapensar assim. O seuMetternich, que foi tutor de D.Miguel, estápor estaalturaaesfregarasmãosdecontente,poucose importando como futuroda neta do arquiduque, que certamente reputa de uma selvagenzinhanascidaemterrasdeVeraCruz.

Mareschalrespondeu,decidido:

-Vê,estáadar-metodaarazão.Quandoviremquenãoéassim, quandoestiveremcomD.MariadaGlória,tãoparecidacomamãe, tãoeuropeiadefeições, apoiada pelo seu avô, e provavelmente pelosreis de Inglaterra,tudomudarádefigura.

Oembaixadorcoçouabarbarala,econcedeu:

-Talvez,talvez,ebemprecisamosdealgumaluzparaanossa causa,quenos próximos dias vai resultar em sublevações em Portugal, porque osliberais portugueses não aceitarão esta decisão paci icamente, e estameninatemluz...

Paraacrescentar,encolhendoosombros:

-Talvezosenhorministrosejacapazdepersuadiroimperador,já queamim,pôs-meliteralmentenarua...

Mareschal franziu o sobrolho. O embaixador português era bem capazdeterrazão:D.Pedropreferiaumpássaronamãodoquedoisavoar.

Aconteceuaquiloporquetantoansiava:pelascincodatarde, jáoSolsepunha, o imperador mandou chamar-me ao paço. Nem tive tempodemudar de vestido, passei só a minha écharpe de seda verde sobre osombroseentreiparaacarruagemquemandouparamebuscar,ospésna

lamaemquesetornouojardimdepoisdeumdiadetrovoadasechuva.

JásabiadasnotíciasdePortugal,equeMareschal insistiacomD.Pedroque a única forma de reagir à tentativa de usurpação deD.Miguel seriaenviandoarainha-meninaparaocampodebatalha quenestemomentoéa Europa, antes que seja tarde de mais e asmonarquias que importamreconheçamonovorei,acreditandoque lhesdarámaissegurançadoqueuniimperadorliberalagovernaràdistância,outunameninade9anos...

Sabia das notícias, mas não sabia o que D. Pedro me queria, e foi umalívio quando na escadas do paço encontrei frei António, omeu caro freiAntónio, epudeentrar acompanhadaporele - oque faziasentido, jáquetínhamossaídojuntos.

D. Pedro recebeu-nosna biblioteca, como seumelhor sorriso, e, comocharme que indubitavelmente possui, saudou-nos comose fôssemos osseusmelhoresamigos.Mandou-nossentar,disse-nos que falta temos feitonopaço,comosenãotivesseresponsabilidadenenhumanofactodealinãoestarmoshámaisdeumano,eandandodeumladoparaooutrodasala,como sempre faz quando quer evitar o olhar dos seus interlocutores,anunciou-nosquevaimandarasenhoraD.MariadaGlóriaparaacortedoseu «querido sogro»,pedindo-nos que regressemos a São Cristóvãoimediatamenteparaajudararainhaapreparar-separapartir.Virando-separa mim, comose o assunto me dissesse diretamente respeito,acrescentou, com a vozembargada com a comoção que a ideia de verpartirasuafilhamaisvelhalheprovoca:

- Já pedi ao barão de Maresclial que venha todos os dias falar com aminhafilhasobreacorteaustríaca,eoqueaesperaporlá.

E eu, corando como uma menina de escola, sentindo-me umacriançaingénua por ter pensado que a minha ligação com Philippe semantinhalongedasconversasdetodaagente,limitei-meaassentircomacabeçaeamurmurarqueteriatodoogostoemvoltar.

AfreiAntóniopediuomesmo,acrescentando,comoseotivesse vistonavéspera, que precisava de se confessar, dos seus conselhos espirituais, eque ajudasse a preparar a pequenina rainhapara o embate damudançadecultura.Querendoexplicar-se,insistiu:

-Tinha9anosquandosaídeLisboa,aminha ilhaterá9anos,seDeusquiser, quando lá chegar, mas o frei António era já um homem feitoquandoviemos,evoltouaPortugaltunaouduasvezes,porisso,comesseseujeitinho,écapazdefazermaisporeladoqueeu.

Porestaaltura já tinhaosolhoscheiosde lágrimas,e segurando-me namão,parameuembaraço,disse-me,comovido:

-Ospobresdosmeus ilhosperderamamelhordasmães,eeu,eeu, amelhor e a mais amada das esposas, como a senhora marquesa sabemelhordoqueninguém.

Baixeiacabeça,commedodequeaminhaexpressãometraísse, porquesinceramenteaindanãoperdoeioqueelefezaela,eainjustiçaquemefezamim.Poucoimportaissoagora,oqueinteressaévoltar para juntodeD.MariadaGlória, e ajudá-la apreparar-separapartir. Vai custar-me tantovê-la embarcar, esta ilha que adotei, mas tenho a certeza de que vousentir o consolo de ter cumprido o prometido à imperatriz. Não meesqueço de que ainda tenho de velar pelas outrastrêsmeninas, e vigiaratentamenteopequeninoPedro.Esse,aindacorretodososperigos.

Deixeiopaçocomocoraçãoaossaltos.Queria tanto ter-meprecipitadopelas escadas acima até aos aposentos das princesas para lhes dar anotíciadequeregressava,mascontive-me.Agradecioconviteeretirei-nle.

Em casa mandei uma nota a Maresclial a dar-lhe conta do queacontecera, e quando tunas horas depois me veio visitar lancei-me nosseusbraçose chorei como tuna criança.PobrePhilippe,bemmurmuravaqueasmulheresnãoseentendem,senemeuentendosechorode alegriaoudetristeza,quantomaisosoutros.

Disse-lhe,entrelágrimas,quesintoquevouperdertantoquantovouganhar,porquetenhomedo,muitomedodequeoministroplenipotenciáriodaÁustrianoBrasilnãocontinueavisitartunacamareiranopaçodoimperador,masnãolhefaleidosmeusreceios,nãoqueroobrigá-loanada.MassabeDeusoquemecustounãolheperguntarquaissãoosseussentimentosemrelaçãoamira,qualoseugraudecompromisso...Secalharnuncaovousaber,agoraquecumprimosapartemaisimportantedonossoplanoconjunto,fazerpartirparaVienaarainhadePortugal.

PaçodeSãoCristóvão,10dejunhode1828

arfaestavaempé,osbraçosabertosemcruz,enquantoFlorindaEsteves,acostureiramaisfamosadoRiodejaneiro,ajustavaasmangas,eduasajudantesmarcavamabainhadeumvestidodegala,desedaverde,deumverde-esmeralda.

Florinda ia palreando como os papagaios da gaiola da mamãe,pensouMaria, cheiadevontadederir,assegurandoa rainhadeque odecote embarco, a cinturamarcadacomumcintoeuma ivela, e sobretudoaquelasimensas mangas em balão que estreitavam poraltura do cotovelo efechavam no punho com um pedra preciosa, era exatamente o que seusava«esteinverno»nacorteaustríaca.

Amarquesa deAguiar, que assistia à prova, trocou umolhar divertidocomMaria àmençãoda estaçãodo ano, porqueFlorinda, comtoda a suapompa e certezas, esquecia o facto de que Maria da Glóriachegaria àÁustria em pleno verão, esperando-se que os igurinos do ano passado,aqueles em que a senhora certamente se inspirara, ainda estivessem namoda.Comorgulhonasuamenina,comentou:

-Esteverde,senhoraD.MariadaGlória,tornaosseusolhosainda maisbonitos,acreditequevaifazerfuror.

Maria sorriu-lhe, agradecida. Era tão bom tê-la de novo junto de si,sobretudo agora que se preparava para partir. Desde que o pai, háexatamenteummês,lheanunciaraqueoavôFranciscoesperavaporela, avidadopaçorodavaemseuredor.D.Pedroredobraraohoráriodas suaslições,eessapartenãotinhagraçanenhuma,atéporque,acerta alturadodia, já não sabia se falava em francês, alemão ou português, mas tudo oresto eradivertido.Opai a princípionãoqueria abrir os cordõesàbolsa,masMarianãohesitouumsegundo,aocontráriodasuamãe,emrecorrerà chantagem, acusando-o diretamente de favorecer a amante emdetrimentodelaedasmanas.

Pelaprimeiraveznavida,confessavaaumMareschalescandalizadoqueestavadispostaausarofactodeoimperadorquerermanterarelaçãocomDomitíliaemsegredo,emseufavor.

-Penseiquenunca iriaquererqueopapai voltasse a casar,mas agora,meuqueridobarão,perceboqueéaúnicasolução,aúnica queprotegeasmanas e omanoPedro, por isso vou esforçar-me para ajudar omarquêsdeBarbacenaaencontrarumanoivadequemeugoste...Entretanto,paraoconseguir,para fazerboa igurado ladode ládomar, tenhodeusarosmeus métodos para que o pai inancie omeu guarda-roupa, dê ao meututorpedraspreciosaseoutrascoisas parapresentearaspessoasqueforencontrando - a mamãe dizia sempre que os europeus não resistiam àsnossasraridades...

Mareschal icavasemsaberbemoquedizeraestameninaquepareciatertãopoucanoçãodoslimitesentreobemeomal,ocorretoeoincorreto,temendo que o rigor moral, mesmo que muito hipócrita,das corteseuropeias fosse um choque para ela. «E um choquemaior ainda para osqueareceberem»,pensou,masnãodisse.

O que vale é que Maria não esperava, nem queria, ouvir sermões.Doembaixador e amigo da mãe desejava detalhes sobre aquilo que aesperava,conselhosdecomodeviaagir:

- Sei que Palmela entregou o lugar de embaixador em Londres aovisconde de Itabaiana, o ministro do Brasil naquela cidade, e que osliberaisqueapoiamaminhacausaestãoaserperseguidosemPortugal,eafugirparaInglaterra-éassimnãoé,senhorembaixador?

Mareschalconfirmava.

-Ediga-me,senhorembaixador,aminhamissãoéseromaissimpáticaesedutoraquepuder,deformaaqueaspotênciaseuropeias percebamquesou eu a legítima herdeira do trono domeu avô João, e que é preferívelapoiaremaminhacausadoqueadomeutioMiguel-quealémdomaiséummentiroso,ejuroufidelidadeecasamentoenãocumpriu...

Mareschal voltava a dizer que sim com a cabeça, por uma vez navidasempalavras.

AamaFlorica sentou-senacadeira juntodacama,e cantouparaa suamenina, até a ver adormecer. Com amão namão adormecida da rainha,deixou as lágrimas rebolarem-lhe pela cara. Acabara de saber que nãotinhasidointegradanacomitivadeMariapelacondessadeItapagipe.

O sono deMaria também estava longe de ser tranquilo. Via-se demãodadacomamãe,numpasseiopelamata,amãeaapanharumajalapa-do-campo,apuxar-lhesuavementeocabelo,eacolocara lorencarnadapordetrásdaorelha,dizendo,arir,quepareciaumaindiazinhadepeleclara;ouvia-sedepoisorugidodeumaonça,eamãepegava-lheaocoloecorria,corria, corria pela loresta, tropeçando nos juncos, ferindo-se nos galhos,procurandosalvar-seesalvá-la doanimal.Agitada,rebolava-senacama,ocalor húmido da noite atornar-lhe o sono aindamais agitado, a cara daonça a transformar-se na de Domitília, nos braços do pai, os gemidos deprazerdosdoisenrolados juntosnarededavarandademadeiradeumacasa, que eraengolida pelas chamas. Paula, doente, com falta de ar, quechamavaporela,eosomlongínquo,porentreasondasdomarquebatiamnocasco de um navio, queria voltar, queria fazer-lhe um chá, chamar aRosa para vir salvar a irmãzinha, mas o barco não mudava de rumo, asvelas cheias pelo vento, a empurrá-lo para a frente. E Maria chorava,encostadaaovarandimdapopa,osmorrosdoseuqueridoRio dejaneiroadesaparecerem, o Pão de Açúcar já um ponto no céu, e Xica, a suapequeninaXica,numprantosem imaocolodaama,osbraçosestendidospara a água como se esperasse que ela voltasse e a segurasse junto a si,comofaziaquandocaíaeesfolavaumjoelho.

Acordoucomumgrito,eFlorica,queadormeceranacadeira, abeirou-sedela,assustada:

-Tem febre,menina? - dizia enquanto lhe passava amão pelos cabelosensopados.

Mariasentou-senacama,eimplorou:

-Florica,acendeumaluz,tenhomedodoescuro.

Aportaabriu-seeamarquesadeAguiarentroucomumavelanamão,eperguntou,preocupada:

-Oqueaconteceu,senhoraD.Maria?

Mariaabanouacabeçadeumladoparaooutroepediudesculpa:

-Nãofoinada,nãofoinada...Sóumsusto.

Floricaeamarquesatrocaramumolharentendido:depoisdaanimaçãoe da excitação dos planos feitos de dia, vinha, com a noite, omedo dodesconhecido.

Amarquesasentou-seaoladodaamaedisse-lhe:

- D. Maria, nunca é fácil partir, mas o marquês de Barbacena e amarquesadeItapagipevãotomarcontadesi,evaiverqueosportuguesesqueavãorecebersãohomenscapazesdedaravidaporsi...

Maria mordeu o lábio e passou a mão pelos cabelos, ainda assustadacomasimagensquelhetinhampovoadoossonhos:

-Evocês tomamcontadaXicaedaPaula?SabemqueaPaulanãotemmuitasaúde,eaXica,aXicaprecisasempredomeucoloquando esfola ojoelhoecai...

Floricadeu-lheamãoeassegurou-lhe:

-Podepartir,menina,queaquiasuaFloricavaivelarpelasmanas comovelouporsi.

-Eeu,senhoraD.Maria,nãofareioutracoisa-acrescentoua marquesade Aguiar, escondendo a descon iança de que, mal a rainha partisse, oimperador se encarregariade apôr foradenovo, e para ser sinceranãosabia se queria icar, habituara-se a ter o seu espaço, habituara-se a terPhilippe.

Mas,sossegada,Mariaencontrouapazdequeprecisavaparapartir.

Desdeque,háquaseunimês,volteiparaopaçonãotenhotidotempodeescrever. Com os preparativos da viagem de D. Maria os dias passam acorrer. Ainda agora me tinha sentado à escrivaninha, escrivaninha onde

comecei este diário, quando ouvi tnn grito vindo doquarto da pequeninarainha,epus-medepédeumsaltoparairsaberoquesepassava.

Quesensaçãoestranhaadeandar,denovo,noscorredoresdopalácio,comumavelanamãoeuniamantasobreosombros,assustadaeapressadacomonaquelestempos,masafinaleraapenastunpesadelo,pobrecriança.Dediasaltaecorreeufórica,eosmestresqueixam-sedequeéincapazdeficarsentadaquietaduranteaslições,masànoite,quandoficaasóscomosseuspensamentos,devesentirumterrorimensocomaideiadedeixarestaterraquente,queéasua,poroutraquenãoconhece.Éverdadequedetantoouviramãefalardesseinundo,dosdetalhesqueelalhecontavadasuainfância,dosseushábitoserotinas,dascartasqueleudoavôedastias,vaipartircomasensaçãodequeregressa,dealienaforma,acasa,mastemo,eMareschaldiz-mequetenhorazão,quenadacorrespondajáàsmemóriastingidaspelasaudadedaimperatriz.Afinal,jápassoumaisdeumadécada,eseoBrasilondeD.Leopoldinadesembarcoujánãoéaqueleemqueestamos,quantomaisaÁustria,InglaterraeFrança,ondeasrevoluçõeseasreformastêmsidoimensas.

Esperoqueo seu jeito carioca, junto com todaa educaçãoquerecebeudamãe,encantemoseuropeuscomomeencantamamimeaPhilippe.

E por falar emPhilippe, que estranho foi tudo, ao princípio. Cruzar-mecom ele nas escadas, ou a atravessar um salão e cumprimentarmo-noscomo se fôssemos apenas conhecidos. Mas Mareschal é um homemcorajoso, reconheço-o, e se no cumprimento do seu dever me trata comformalidade,nãodeixoudemeconvidarparameencontrarcom eleaquieali,nemmeretiroudasuaconfiançaoumeprivoudassuasconfidências.

Seiqueaestahoraoimperadorjádevetercópiadetodososbilhetes ecartas que trocámos, mas já estou como a senhora D. Maria da Glória,também eu tenho os que troca com aquela mulher que com uni podersobrenatural continua a mantê-lo preso pelo desejo, numa relação tãointensa que hámomentos em que, apaixonada,me pergunto se o que osume não é também unia paixão. Pelomenos a dele, porque a ela acho-ademasiadofriaecalculistaparaseentregardealmaecoração.

Ainda hoje, ao im do dia, me encontrei comMareschal no Horto Real,

entreasárvoresexuberantes,osmanacásem loreas loresde lótusquecobremaságuas.

Andámos durante muito tempo, e depois sentámo-nos num banco,ePhilippe segurou-me com força a mão. Estivemos calados uns segundos,como se aquele toque nos preenchesse e matasse as saudades, masquandoMareschalvoltouafalarnãofoi(comoeudesejava)sobrenós.

-Barbacena está desesperado porque o imperador continua a mentir-nosa todos.Ontem,estivecomelenopaço, e juntosameaçámosD.Pedrocom a nossa demissão. Não podemos continuar a fazer igurade ursos, ajurar nos nossos relatórios que Domitília já saiu do Rio, quando oimperador continua a encontrarse com ela e apagar-lhe todas asextravagâncias, para não falar no facto de continuar a manter as ilhasnaturaisjuntodoslegítimos...

Olhei-o, estarrecida - não pelo imperador, confesso, mas pela ideia dequeMareschal possa abandonar o seu cargo e o Brasil, e ele sorriu-me,tranquilo:

-Não se preocupe, fazer chantagem com o imperador é fácil. Levá-lo aprometer coisas é tarefa rápida, a cumpri-las é que é quase impossível -disse-me,comumagargalhada.

Embora tenha garantido a pés juntos que já não tem nada com asenhora, prometeu voltar a escrever-lhe e a pedir-lhe que saia doRio deJaneiro.

Chegouaopontodelhesmostrarumacarta,quetinharecebidodela, emque a criatura, de forma venenosa e acintosa, diz que sai até ao inaldomêsequedispensaosconselhosdo imperadorporque,aocontrário dele,não é um cata-vento que anda ao sabor da opinião dos assessores. Averdade,diz-meMareschal,équejáconseguiuqueD.Pedrolhedesseuniasériedeprédiosechácaras,paraalémdeseterapropriadodetodooricomobiliárioequadrosdopalácioqueelelhecedeu.

Depoismarcaram a data de saída deD.Maria para o dia 2 de julho, evoltaram a dizer-lhe que se a comitiva que partia com ela levava aimpressão de que Domitília ainda icara pelo Rio, os danos seriamincalculáveis.Acreditamqueo assustaramde facto, tanto com omelindre

dasituação internanoBrasil, ondeodescontentamentocresce, comocomas notícias da guerra civil que grassa em Portugal, pobre país, de comoPalmelasedemitiudeembaixadoremLondres,eosnobresqueapoiamasua causa se juntam à espera das suas ordens, já havendo milhares deexiladosliberaisemInglaterra.

Tenho medo que seja tarde. Muito tarde para D. Maria. Temo queembarque e não a deixem desembarcar, temo que os homens corajososque se batem por ela não sejam su icientes para vencer os portuguesesquepreferemosenhorD.Miguel.Quetristeétudoisto...

Gomo me enche de preocupação o facto de D. Pedro enviar a ilhaentregueàcondessadeItapagipe,aquelaAnaRomanaquenãomemereceamenorcon iança.JulgoqueaoverDomitíliapartirterátidoobomsensodedeixarde falarnela (pelomenosquandosecruzacomigonãomeolhada formaacintosa comqueolhava, o quequerdizerqueentendeu que ovento está a mudar...) e se aliar ao marquês de Barbacena (desse sim,gostomuito), para lutarpela causadeD.MariadaGlória. Suponhoqueofará, porque leva consigo aMaria Francisca, um ano mais nova do que arainha, e quererá garantir-lhe uni bom casamento do lado de lá doAtlântico.0suficiente,talvez,paramoderaraquelegénio.

Foi, decididamente, com o coração pesado que deixei o embaixador.TemosdeterFéemDeus,eacreditarqueamãedarainhavelaporela ládoCéu.

CapeladeNossaSenhoradaGlória,28dejunhode1828

indaestavaescuroquandoMariaescapoudacamaedosseus.aposentos,atirouumvestidosobreocorpo,levouossapatosnamãoparanãofazerbarulhoadescerasescadas,e,depoisdeostercalçadoàpressa,correuatéàcocheiraondeacordouJaime,adormecidosobrefardosdepalha,elhepediuquealevasseàCapeladaSenhoradaGlória,atempodevoltarparaopequeno-almoço,semqueninguémdessepelasuasaída.Queriaajoelhar-se,pormomentos,nacapeladasuamadrinha,umsítiodememóriasfelizes,epediraoAltíssimoqueaprotegesse,aelaquepartia,equeprotegesseosqueficavam,osmanosesobretudoopai,pobrepai,que,levadopelosseusimpulsos,sófaziaasneiras.

Jaime protestou, disse que não, que tinha medo de ser castigado,mascedeu,enumacarruagemdiscreta,semasarmaspintadas,levou-aatélá.

Esgueirando-separadentrodacapela,pelaportadasacristia, quesabiasempreaberta,acendeuduasoutrêsvelasjuntodoaltar eajoelhou-seaospés da Virgem, a cara escondida entre as mãos, os olhos cerrados emoração.

Partiria no dia 5 de julho, a data adiada uns dias, para que passassealgum temposobreapartidadamarquesadeSantos,que sóontem saírapara São Paulo, carruagens e carros a cavalo carregados do recheio dopalácio,umapartidacompompae circunstância,paradar bemnasvistasqueseforaembora,massobretudoparadeixarclaroqueoamantepagavacaroadestituiçãodasuaamanteoficial.

Maria só tinha 9 anos, mas nove anos no Paço de São Cristóvão,comodiziafreiAntóniocomumsorrisotriste,valiamvinteanosnoutrolugardaTerra,eperceberaperfeitamentequeopaidesejavaque acomitivaqueaacompanhavanasuaviagemparaaEuropafosseaportadoradanotíciadeque o imperador vivia sozinho e celibatário,chorando a dor damorte damulherlegítima,enaesperançadequealgumaprincesaseapiedassedele,

edosseus ilhinhos. Inspirouesoltouumsuspiroprofundo:opaiviviadetalformaestashistóriasinfantis,queacabavaporacreditarnelasecon iarque os outros também o faziam. Porque, suspeitava, mal ela partisse, amarquesa deSantos encontraria um pretexto para voltar para oimperador. Além domais,ouviraoscapangasdopai,quecontinuavamnopaço semsesabermuitobemafazeroquê,acomentarentreelesqueD.Pedro,posto«àmínguademulher»,depressavoltariaparaafeiticeira,ouparaoutraqualquer-eMaria,comumencolherdeombros,deu consigoapensar«quesejaoutraqualquer»,paradepoissebenzeremcontrição.

Quando saiu da capela, olhou a sua cidade ali de cima, sentiu ocheirodas loresque se abriamà chegadado sol, olhouo céudeumazul aindasuavemasjácheiodeurubus,esentiuumarrepio:Esenunca,masnuncamais,voltasseàquelelugar?

Jaimechamou-adacarruagem,nervosocomocastigoqueoesperava,eMaria aproximou-se depressa, sem querer arranjar sarilhos àquele seucriadotãodedicado.

-Vamosembora,Jaime-disse,comavozatremer.

Eenquantosedebruçavadajanela,paraverasruasporondepassava,guardandoparasempreamemóriados lugares,veio-lhepela milionésimavez à cabeça a frase damãe: «Nós, as princesas, somoscomo dados nasmãosdeumjogador.»Queriaacreditarqueamão quelhesaíraseriaboa.Ia dançar, conversar, conhecer umpríncipede verdade, e comele entrartriunfanteemPortugal,ondeseriamagnânimacomMiguel,e icariaparaaHistóriacomoamaispoderosaejustadasrainhas...

Chegouaopaçocomaalmamais leve.Seeraparapartir,quea partidachegassedepressa.

De Lisboa chegam-me cartas terríveis. No dia de anos da rainhaD.CarlotaJoaquina,oSenadodeLisboaaclamouD.Miguelcomoreiabsoluto.Tremoaopensaroqueseestaránestemomentoapassar emLisboa.Masas notícias demoram a atravessar o oceano. Queira Deus que a rainha-

meninanão esteja a embarcar numa viagem semvolta. Que a senhoraD.LeopoldinaveleporelaládoCéuequeNossaSenhoradaGlóriailumineoespíritodoavôaustríaco.Protegeiaminhamenina,quepartesemsaberoqueencontrarádooutroladodooceano.Diz-meaminhaamigaLeonordaCâmara, que de Lisboa meescreve, que D. Miguel justi ica a recusa docasamento com a sobrinhacom o medo da loucura, do que o sanguepróximo pode trazer aos seus ilhos. Convicto da loucura do pai, a queacreditaterescapado(dizemasmás-línguasquepornãoser ilhodorei!),conhecedordaepilepsiadoirmãoPedro,aquetambémescapou,desejavagarantir uma linhade sucessão «limpa», sem as nódoas dos seusantepassados. Quandoli o que me escreviam, confesso que rua lado demimentendeuoquesentia,porquetambémeutemipelosfilhosdomeutioque depoisnunca cheguei a gerar,mas o outro reagiu com raiva: o ilhofavoritode D. Carlota Joaquina, ambiciosa emesquinha, não se preocupacoma herança que amãe lhe deixa e que transmitirá aos que vierem aseguir?Confessoquesaberqueocasamentocomaquelesenhornãoseráimposto à minha menina é a imica coisa que me consola, emboracompreendatambémquesemesta ligaçãoopaíssevaiesventrar, irmãoscontra irmãos,muna luta sangrenta que arrasará ruapaís já tão pobre edelapidadoporNapoleão.

Maresclialtambémtevenotícias.Háinsurreicõesliberaisemtodo opaís.Estava preocupado porque D. Pedro, fechado num quarto escuro,recusava-sea receberosemissários liberais,demasiado inconsolável comadespedidada«suaTitília»paraquelhefalassemdestesdistúrbios.

Barbacenapõeemcausaapartida,masMareschal insistequeD.Mariatem de sair daqui rapidamente, porque será a bandeira que dará alentoaosquedãoavidaporelaepelacausaliberal.EsperemosqueD.Pedrosedecidaasairdocasulo,pelomenosparasedespedirdeMaria.Nãotenhodúvidasnenhumasdequeestaránocais,prontoaabraçara ilhaquerida,e a mostrar ao mundo diplomático, eaquele que embarca, que é ruaimperadordeapenas29anos,comruapaísgloriosoeruafuturobrilhanteaofereceràmulherquetenhaacoragemdeseaventurararegressarnonavioqueagoraparte.

Cruzei-mecomMareschal,apenasporminutos,nopátiodopaço.Disse-me, baixo, que D. Pedro pediu a Barbacena que a jovem noiva deve terquatro qualidades: nascimento, formosura, virtude e educação. Depois,

percebendoadi iculdadequeo amigoantevia emencontrar tunamulherque reunisse tudo isto, e ainda estivesse disposta a casarcom ele,apressou-seaacrescentarqueaterdetransigiremalgumdos requisitos,entãoque fossem ignoradosonascimentoeaeducação.Descon ioqueasminhas gargalhadas, tão raras, devem ter atraído damas e criados àsjanelasdosaguão.E iqueicomumsorrisonos lábiosportodoodia.Bemprecisavadele.

BaíadoRiodejaneiro,5dejulhode1828

despedidanocaistinhasidoemotiva,eopaichoraracomoumacriançaabraçadoàfilha,masMaria,estranhamente,sósentiraolábiotremer,eosolhosencherem-sedelágrimas,quandoasuapequeninaXicalhedissera:

-Mana,logoànoitecontas-meumahistóriaparaeuadormecer?

Derepente,essafrasetãodescabidatinha-alevadoatomarconsciênciade que esta era uma viagem sem retorno. Nunca mais, era uma ideiainsuportável. Olhou em volta para o cais cheio de gente,damultidão quevinha despedir-se de si, os ministros e as damas na ila da frente, oscriadosdopaçomaisatrás,eummardepessoasdetodasascores,quelheacenavam com lenços brancos, como se fosseuma santa numa procissão.Masmaisdoqueaspessoas,eraapraça, apedradascasas,as loresdosjacarandás, o cheiro das especiarias, omovimento, a vidadaquela cidade,queatéamamãetinhaditoquenãoseencontravaemmaislugarnenhumdoMundo.

A fragata brasileira Imperatriz, batizada com o nome da sua mãe, eragrande, e tinha de o ser, porque a comitiva também o era. Criadas ecriados,açafatasedamas,umaCasadignadeumarainha,comodiziaopai,que subitamente tivera um acesso de megalomania, desejoso deque, àchegada, todos icassem impressionadoscoma riquezadopaísde origemdesta menina. O comandante era o visconde de Sousel, asua camareira-mor a condessade Itapagipe, e a ilha,Maria Francisca, as suas damas, ecomo tutor o marquês de Barbacena, José Caldeira Brandt. E criados ecriadas, e cozinheiros e padres, mais de vinte, para desespero deBarbacena, que bem perguntava a Mareschal, e aquem o queria ouvir,quem é que ia pagar as despesas de toda aquelagente quandodesembarcassememGénova.«Todosmenosasminhas queridasFlorica emarquesadeAguiar»,pensou,zangada,arainha.

Maria pediu para icar sozinha na popa do barco, porque queria

despedir-seda cidadeondenascera.Olhouas ilhas, overdedas lorestasquedesciamatéaomar, aspalmeirasmaisaltas, as torresdas igrejas,osmorrosmaisaltos,asencostasemqueocafétinhasubstituídoasárvores,e a cor, a cor das árvores encarnadas e azuis. Imaginou o que teriamsentido os descobridores portugueses a chegar, e a dar com aquilo tudo,semquereremacreditarqueaquilo fosseummar,enão umimensorio,eimaginouoquesentiraoseuavôJoão,aochegarali fugidodePortugal,eopaide9anos,eanosdepoisamãe,comtantasesperanças...

Quando já só via o mar, pôs a mão no bolso e tirou uma carta que amarquesadeAguiarlhederadiscretamentequandoaestreitaracontra si.Umacartaemqueprometiaamá-laparasempre.

«Iludiu os espiões do tio Miguel, e fugiu de Lisboa para vir tercomigo.Odeio as suas ordens, mas quando choro é a primeira a enxugar-me aslágrimas.»

MariaII

«Acreditoquepossoajudarainstruí-lacomouniarainhadehojedeveserinstruída.Massóconseguireimoldá-laseforfeliz,edeixaremdelidarcomelacomasarmasdatraicão.»

LeonordaCâmara

FragataImperatriz,Gibraltar,2desetembrode1828

uandoomarquêsdeBarbacenapassouporelaeseinclinounumavéniamasnãodissepalavra,Mariapercebeuquealgonãoestavabem.

Encostadaàamurada,olhavaoenormerochedoàsuafrente,árido enu,comosefosseumdosmorrosdoRiodejaneiro,masapenasum. Depoisdedois meses rodeada por água, sentia um enorme confortoao ver terrafirme.EntãoGibraltareraisto?

Durante a viagem, a mestra obrigara-a a estudar os mapas, asmonarquiaseuropeias,oscostumesdascortes,masnemsempreprestaragrandeatenção.DasintençõesdeBarbacenaconhecia,noentanto,todososdetalhes,esabiaqueoplanoeraaportaraquiparaabastecimentodeágua,seguindo para Génova, onde seria recebida por uma comitiva do avôFranciscoqueaacompanhariaatéViena.Viena,apalavraincessantementepronunciadapelamãe comoum«abracadabra»mágico. Seria tudo o queimaginara?,pensou,estendendoumadasmãosparaocéuquelhepareciadesbotado, comparado comaquele a que estava habituada a ter sobre acabeça.

Lá atrás, na popa da fragata, reparou que Barbacena se despedia dedoisdesconhecidosqueregressavamaterranumpequenoescaler.

Esforçava os olhos para tentar distingui-los quando sentiu umamãopousadasobreoombroe, sobressaltada,virou-se.Eraamãoda condessadeItapagipe,queachamava:

-OmarquêsdeBarbacenapede-nosparanosreunirmosnasala.

Mariaolhou-a,preocupada:

-Hápoucopassoupormim,mal-humorado.Quemsãoaqueleshomens?Oqueéquesepassa,D.Ana?

Acondessalimitou-seainsistir:

-Vamosouviroquenostemadizer.

Omarquêsjáaesperava.Comeleestavaumsenhorquenuncavira,masque lhe foi apresentado como sendo o comendador Ildefonso Bayard,enviadodeLondrespeloviscondede Itabaiana.Essesim,sabiabemseroembaixador do Brasil em Inglaterra, e que agora acumulava também osnegócios de Portugal, desde que o marquês dePalmela se demitira epartiraparalutarcontraotioMiguel.

Ficoufelizquandooviscondeseinclinouparalhebeijaramão,tratando-a como a rainha que a cada dia mais se sentia, sobretudo desde queviajavacomumacortesósuaetodosatratavamcomumadeferênciaque,francamente,lheagradava.

-Másnotícias,senhoraD.Maria-disseomarquês.

Mariamanteveosolhosnosdele:

-Nãopense,senhormarquês,fale.

Barbacenariu:

-Temrazão,senhoraD.Maria,masoque lhequerodizernão é fácil.Oseu tio foi aclamado rei de Portugal, já prestou juramento como reiabsoluto.Usurpouotronoquepordireitolhepertenceasi.

Maria sentiu subitamente o balanço do barco, ela que se orgulhavadenãoterenjoadoumasóvez.D.Miguel1,reidePortugal.Comoera possívelque traísse assim o irmão, como era possível que os portugueses oquisessemaele,enãoaela?Guardouospensamentosparasi, procurandoque a sua expressão não denunciasse o que sentia, comoo pai lherecomendara tantas vezes. Num tom solene, afugentando omedo,declarou:

-OmeuavôFranciscovai ajudar-nos a recuperaroque legitimamentemepertence.

BarbacenatevevontadedelhedizerqueoavôFrancisco,eMetterniche

queocontrolava,seriamosúltimosnaTerraafazertalcoisa, masconteve-se.

- Soubemos estas notícias pelo senhor comendador Bayard, que trazconsigo a sugestão de que mudemos o destino de chegada, rumandodiretos a Inglaterra, país onde já se encontram centenas de exiladosliberais.Asuapresençajuntodelesreforçaráacausadarainhalegítima,eanimaráoshomensquelutaramporVossaMajestade.

MariaolhoudenovoparaBayard,reconhecendoabondadedasugestão.

-Estáapedir-meumaopinião,oua informar-mesimplesmentedeumamudança de planos? - perguntou, rígida, como acontecia sempreque nãosabiabemoqueeraesperadodela.

Barbacenaescondeuosorriso:

- Não tendo possibilidade de consultar o senhor D. Pedro, tomei adecisão,enquantoúltimoresponsávelpelasegurançadeVossaMajestade.Partimos para Falmouth, e o comendador Bayard assegurará que sejarecebidacomtodasashonrasdevidasaumarainha.

Mariagostoudoqueouviu.Desdequearecebessemcomorainha, enãoa devolvessem ao Brasil humilhada, dava-se por satisfeita. Alémdisso,con iava em Barbacena. Olhou pela escotilha para as águasazuis quebatiam contra o casco e respingavamnos vidros: estavado outro lado doMundo,longedafamíliaedetodososqueaamavamrealmente,queoutroremédiotinhasenãocon iar?Eesperarque,lá decima,asuamãevelassepela ilhamaisvelha,aquelaque,a inal,concretizavaoseusonhodevoltaracasa.

Chamo-meLeonordaCâmara,tenho47anos,feitosemmaio,idadeparater juízo. Sou solteira, vivo em Lisboa em casa da minha únicacunhada,Mariana, marquesa da Ribeira, e encarrego-me da educação do meusobrinho Francisco, da mesma idade que D. Maria II. Idade mais do quesu icienteparaterjuízo,certamente,masnãootenho,econtinuoadesejar

lutarpor aquilo emqueacredito.E aminha insatisfação como estadodopaísvemdelonge.

AssisticompreocupaçãoàchegadadeD.MiguelaLisboa.ServicomodamaarainhaCarlotaJoaquina,conheço-adesdequeeueramenina,nascidaquefuinoRiodeJaneiro,enestasnotasqueagoratomoapenasparamimpossoconfessarquenuncasuporteiasuaprepotênciaemesquinhez,aopontodeterpedido,jáemLisboa,aexoneraçãodoPaçodeQueluz.Conheçotambémoinfante,aqueleaquemerecusoachamarrei,eatéconsigoentenderquetenhachegadoaoquechegou,chantageadoporaquelamãeeseduzidopelopoder,queosdefensoresdetunamonarquiaabsolutistalheofereceram.Terácomeçado,noregressodoRiodeJaneiro,porsesentirzangadocomaformacomooseupaifoi(mal)tratadopelasCortes,sendodepoislevadoaatosnomínimoinsensatosporumamãevenenosaemanipuladorae,éjustodizê-lo,porumpaiausenteeenlouquecido.Aestadia,ouoexílio,juntodeMetternichtê-lo-átornadomaispolido,maisdisciplinado,atémaisinstruído,mascertamentequeoinebrioucomacertezadadivindadedopoderreal,ounãofossemaÁustria,aPrússiaeaRússiaosúltimosbastiõesdasmonarquiasabsolutas.EéunireiabsolutoqueD.Miguelpretendeser.comoentendiquandodissolveuasCortesemandouprendereperseguirosquedefendemaCarta,aquelesque,comoeu,acreditamquesãooshomensquecolocamopoderdeDeusnasmãosdeunisoberanojusto,quedevereinarouvindoopovoquejurouservir.

Quemtenhaassistidoàcerimóniadopassadodia23dejunho,noPalácioda Ajuda, não icou com a mais pequena sombra de dúvida decomo D.Miguelpretendereinar.Nassemanasanteriores,emLisboa, nãosefalavadeoutracoisa:aordemeradequeosprocuradores,os membrosdaIgrejae os ministros comparecessem vestidos seguindo o antigo costume, e ascostureiras trabalharam noite em dia para recriar as farpelas dos seusantepassados que as traças já haviam devorado, tal o tempo que tinhampermanecido fechadas emarcas.Quanto àmultidão que se reuniu frenteao palácio, engalanado como nunca ninguémo havia visto, julgou estarperantetunarecriaçãoteatraldeuniacena deháduzentosanos.Acredito,mesmo,queopovotenhasidoseduzidoportodaaquelaimponência,comosempreé, esquecidodeque representavauni recuonos seusdireitos,noprogresso do país.Mas quem assistiu à cerimónia icou verdadeiramenteestarrecido:D.Miguel, segurodesiesemonervosismoqueselhevirano

juramento da Carta,perante as Cortes, chegou, entre trombetas echaramelas,mantoreal sobreosombrosecetrodeouronamão,ochapéudeplumasbrancasaesconder-lheacabeça,comonoquadrodaaclamaçãodeD. JoãoIVsimbolicamentependuradomunadasparedes.Recebidoporuniaassistênciasolene,dirigiu-seentãoaumtronoimponente,todoouroecarmesim,cobertoporumvéu,retiradoapenasnomomentoemque subiuao palanque para o ocupar. Num seguindo momento, ajoelhou-se sobreunia almofada de veludo, com franja de ouro, passou o cetro para amãoesquerda e, colocando a direita sobre uma Bíblia encadernada a ouro,prestoujuramento,masdestavezemvozaltae irme-força quelhevinhacertamente de saber que cumpria inalmente a vontadeda sua mãeCarlotaJoaquina,queaos73anoschoravana«plateia»,nãocabendoemsidecontenteporverno tronooseu ilhodileto.Nosdiasqueseseguiram,foi o im de qualquer esperança de queestivesse disposto a conciliar-secom uni regime parlamentar, com a perseguição das tropas liberais, querecuaram para a Galiza, e a derrota da incursão dos membros da juntaliberal no Porto, que voltaram nomesmo barco em que tinham chegado,rumo a Inglaterra. O marquês de Fronteira, o meu tio, o marquês doLavradio,etantosoutrosfugiramantesquefossemlançadosnoscárceresdaGuardaReal,vendoosseusbensapreendidos.

Omarquês de Palmela, que corajosamente pediu a exoneração do seulugar de embaixador emLondres, sabia domeudescontentamento.Sabiaquetambémeuabraçoacausaliberal,adetunamonarquia constitucional,símbolodeumpaísmoderno, quedesejamos, e,maisdoque isso,dequeprecisamosurgentemente.

Mas, ainda assim, não estava à espera do que aconteceu hoje.Sobressaltámo-nos quando o criado anunciou que estava à portaunimarinheiro inglês que me queria entregar uma encomenda. Troquei uniolhar preocupado com a minha cunhada, que estes não sãotemposseguros, e os espiões da Guarda Real estão em todo o lado, emandei-oentrar,omaisrapidamentepossível,queseoscriadosde casanãosãodeabsoluta con iança, aspessoasquepassamna ruaaindao sãomenos.NatampadeumapequenaarcapintadaestavatunacartadePalmela.Mandeiqueselheservisseumcafé,enquantomeretireiparaasalinhaparaaler.Eramapenasdezlinhas,emquemeinformavadequeasenhoraD.MariaIIestariaachegaràEuropa,pretendendo-sequeseexilasseemLondres.Edepois vinhao mais surpreendente: pedia-me que aceitasse a

responsabilidadedeseradamaemestradarainha,e,emcasoa irmativo,que engendrasse maneira de chegar a Londres o mais rapidamentepossível.Eu, em Londres? Como conseguiria sair do país? Teria ascapacidadesnecessáriasparaocargo?

Nãoseiarespostaaestasperguntas,mastambémnãosoutunamulherdeperdertempo.Omarinheiroesperavaaresposta,etê-la-ia. Numafolhadepapelescreviuni«aceito»,enadamais.Dosdetalhesdaviagemteriadeser eu a tratar, e quanto menos dissesse aquela folha, que a qualquermomento a guarda podia intercetar, melhor. Entreguei-a ao rapaz, e vi-opartir. Tomara a decisão mais importante daminha vida, agora só podiacontar como segredoe o apoiodaminha cunhada,porque todosaquelesemqueconfiavanãoestãoemPortugal.

Mariana esperou que voltasse à sala, e conversámos. Ambasconcordamos com Palinela. Em Viena, a rainha seria prisioneira do seupróprio avô, mais inclinado a favorecer um rei absoluto como D. Miguel,que ainda para mais passou os últimos anos na sua corte, do que umacriança,aindaporcimamulher,quetemequevenhaimbuídadas ideiasdoseu pai, que odeia por todas (e algumas, boas) razões.Mesmosendo suaneta.

Não vale a pena escondê-lo, pelo menos nestas páginas: não tenhogrande opinião do arquiduque Francisco, que deixou a ilha morrer àsmãosdomarido, aindapior opinião tenhodeD. Pedro e da suanaturezalevianaedebochada,emaisdoqueissotemoosdanosirremediáveisqueoseu comportamento escandaloso terão na causa da senhora D.Maria. Seique agora procura desesperadamente uma esposa que lhe devolva acredibilidade,masPalmeladiz-mequeamissãonãoserevela fácil,equeaprincipal razão por que o imperador permitiu a vinda da ilha para aEuropa foi porque acreditou que lhe poderia servir de carta derecomendação, e não porque esteja realmente empenhado em apoiar aCausaetudooqueelaimplica...

Talvez Palinela não seja tão sensível como eu às in idelidades doimperador, porque os homens escondem entre si essa estranha e imoralsolidariedade,massei-opreocupadocoma instabilidadedoseucaráter, esobretudoavolúpiacomquemudadeopinião:acausaliberalportuguesaprecisadoapoiodeD.Pedro,eD.Pedroestá,namaiorparte dosdias,com

acabeçanoutrolado...

Daíaimportânciadestamenina-rainha,queprometetudo,que podesertudo.Daíaminharespostasersim,nãopoderseroutrasenãouni«aceito».

Amanhã tenho de escrever a pedir conselhos ao meu querido primoFrancisco de Almeida, Francisco Lavradio, exilado em Paris, onde seassluneabertamentecomoministrodacausaliberaljuntodosfranceses.

E seráamanhã, também,quevoupensaremcomochegara Inglaterra,iludiravigilânciasobaqualD.Migueltemosseusnobres, receosodequenas cortes estrangeiras conspiremos contra ele, como vou falsi icar osdocumentos para no cais passar pela guarda.Mas agora voudormir, quefelizmentequemtemaconsciênciatranquilanuncaperdeosono.

Falmouth,Inglaterra,22desetembrode1828

'ãomeenervemmais!-gritouMaria,atirandocomolivroqueseguravanamãoàpobremestra,instruídaparaintensificaraslições,desdequeodestinodaviagemmudara.

Os últimos vinte dias tinham sido cansativos, e Maria estava peloscabelos.

-Jánãoaguentoouvirfalareminglês,jánãoconsigoaprendernemmaisumnomedeumcastelooudeumaterra...

Barbacena, que descia aos aposentos de Maria, para lhe dizer quedentro de algumas horas estariam a aportar em Inglaterra, teve vontadede rir.Determinaçãonão faltava à rainha, o quenão eramau, mas agoranão era o momento ideal para revelar o seu temperamento autoritário,pensou, enquanto batia à porta do camarote real, sem saber como ia serrecebido.

MasaMariaqueomandouentrareraumacriançaencantadora, com oar mais sereno e será ico do mundo, linda no seu vestido branco derendas,ocabeloemduastranças,presasatrásdacabeçacomumlaço.

- Bom dia, senhormarquês, é hoje que chegamos? - perguntou,com amaiordasdelicadezas.

Barbacenabeijou-lheamão:

- Dentro de duas horas vamos aportar a Falmouth, e, se tudo corrercomoesperado,VossaMajestadevaiserrecebidacomtodasashonras deumarainhadeumpaísaliado.

Maria,impercetivelmentenervosa,insistiu:

-Hojemesmovouterdefalareminglêscomquemestivernoportopara

mereceber?

Barbacenasorriu-lhe:

- Hoje mesmo espero receber a bordo os representantes de SuaMajestade, o rei George IV, mas se lhes falar em francês, não haveráqualquerproblema.

Mariafranziuonariz,numgestoinfantil:

-Seique temgastocomigomuito tempo,eespero teraprendido tudo oquemeensinou,masaindasoucapazdemisturarosnomeseostítulos,ede não saber bem os protocolos deste país... É que até agora, e durantetodaaviagem,sómefalaramemalemão...

Barbacenasorriu-lhe,confiante:

- Uma rainha que fala brasileiro, português, francês e alemãocorretamente pode falhar umas palavras em inglês. Quanto ao resto, sótemdedaramãoabeijaresercomoé,senhoraD.Maria,porque acreditequepreferirãoasuasinceridadeefranquezaaartifícios.

Mariaabriuosorriso,satisfeita:

-Ah,entãoseésóisso,vaicorrerbem.

Barbacena admirou-lhe, pela milionésima vez, a segurança. Seria umaboarainha,estavacerto.

Barbacena,fardadoarigor,esperavaempénoconvés.OviscondedeSousel,aoseulado,murmurou:

- Deve ter sido isto que sentiu o marquês de Sande ao chegar comD.CatarinadeBragançaaInglaterra.

Barbacenafranziuosobrolho:

- Julgo que nesse tempo os ingleses tinham sido avisados com umbocadinho mais de antecedência. Temo, sinceramente, que as boasin luências de Itabaiana não tenham sido su icientes para garantir areceçãodequeprecisamos-seasenhoraD.Marianãoforrecebida como

rainhadefacto,acausaliberalsofreumforteabalo.

OviscondedeSouselvoltouacolocarosbinóculosjuntoàcara,enquantofalava:

-PeloqueBayardnosdisse,ogovernodeSuaMajestadependeparaD.Miguel,alémdequeémuitomaisfácilassumirumfactoconsumadodoqueapoiarumaguerraemfavordeumacriança,quechegasobaégidedeumimperadorliberal...

Barbacenaacenou,angustiado:

-Esperoqueosamigosque izquandoestiveemLondresanegociaroreconhecimento da independência do Brasil ainda estejam nos seuspostos...digo-lhe,Sousel,adiplomaciaétudomenosumjogolimpo.

-Nem de resultado certo, o que é particularmente dramático quandosabemosquejáhácentenasdeexiladosportuguesesnumcampomontadoparaosacolheremPortsmouth...pelomenosPalmelaconseguiuquenãoosexpulsassem - suspirou o visconde, impaciente porque um nevoeiroespessooimpediadeperceberseocastelosobranceiroaomareosbarcosnoportoestavamengalanados.

Barbacena concordou, mas insistiu, quase como se procurassetranquilizar-seasimesmo:

-Itabaiana é um ás nestas coisas. Acredito que tenha conseguidoserdúbio quanto ao caráter da vinda da rainha. Suspeito que terá dado aimpressãodequesetratadeumavisitadepassagem,oqueà partidanosgarantia a oportunidade de, uma vez nos nossos postosem terra,prolongarmos a estadia, conseguindo que esta menina semtrono atraiasobresitodasassimpatias.

O visconde deixou cair os binóculos, que baloiçaram contra o peito,segurosnacorreiadecouro,eriu:

-Sedependerdaforçadestarainha,acausaestáganha.

Barbacenajuntou-seaoriso:

-Éamaisencantadoradascrianças,mastemgénio.BemlhedissequeotemadaescravaturaésensívelemInglaterra,eesperoquenão se lembredegritarcomumadassuascriadasemfrentedeninguém.

Osomdefogueteseapitosdenaviossobressaltou-os:

-Nãosevênada,comestemalditonevoeiro,masparece-meque estãoànossaespera-disseovisconde,entusiasmado.

Barba cena fezumdiscreto sinalda cruz.QueoAltíssimoabençoeestamenina, rezou, olhando para bandeira de Portugal içada bem alto nomastrodoImperatriz.

Meuprimo,

Acreditoquejásaiba,porPalmela,doconvitequemefoifeito.Nãoentroemdetalhes, porque, como sabe, o correio não é seguro. Queria só dizer-lhequeoaceitei,equeestouafazertodosospreparativos.

Seiquearainha,louvadosejaDeus,chegousãesalvaaInglaterra.

Esperemos que lhe deem o acolhimento que lhe é devido, e iquemdonosso lado. Sei que está segura na companhia de Barbacena, Itabaiana ePalmela,econ ioqueamarquesadePalmela,mãedetantos ilhos,acolhacomo sua esta menina, mas acredito que posso ajudara instruí-la comouma rainha de hoje deve ser instruída. Tenho a singular sorte de terconhecido e me correspondido tanto com a imperatriz Leopoldina, comocomMaria Granam, amestra escolhida,mas escorraçada por D. Pedro, eespero que o que aprendi delas me ajude a conseguir compreender eajudarmelhor SuaMajestade.Mais recentemente, amarquesa de Aguiartem-mepostoapardavidaagitadadarainhadesdequeamãemorreu,eseiquepossosemprerecorreraoseuauxílioemcasodedúvida.

Envio-lhe tuna lista de livros e material escolar que lhe icava muitograta se me conseguisse fazer chegar a Londres. Embora espere que arainha tenha tuna professora de inglês, língua que não domino por

completo, e de áreas especí icas, como a dança e a música, quero que abase daminha instrução seja feita em francês, língua franca neste nossomlmdo. De Lisboa levarei os livros portugueses que consideroindispensável que leia, e de tudo o resto lhe falarei de viva voz, ainda amelhorformadeensinar...

Poderia voltar aQueluzpara ir buscar osmeus livros antigos,mas nãomeatrevoachamaraatençãosobremim,ousobreosmeusatos, porqueseiqueD.MiguelsabecertamentedachegadadasuasobrinhaàEuropa,esuspeitarádemim.

Digo só que me custa deixar a minha cunhada e o meu sobrinhoFrancisco,quesãoaminhafamíliamaispróxima,maspartonaesperançade que este exílio que nos impomos não dure muito tempo. Para nossobem,eodePortugal.

QueDeusoacompanhe,

LeonordaCãmara

Lisboa,22desetembrode1828

Bath,30desetembrode1828

malongafiladecarruagenspercorriaaestradaqueligavaFalmouthàstermasdeBath,ondeoreideInglaterraofereceraàrainhadePortugalaestadadeunsdias,paradescansardaviagem,dandotempoaomarquêsdeBarbacenaparaencontraremLondresumacasaparaarainha.

Maria estava ainda a sentir o balouçar do barco, depois de quasetrêsmesessempôrpéemterra irme,masapaisagememseuredor fascinava-ade talmaneiraquequaseseesqueceudas tonturasdeque se queixarade manhã. Muitas das árvores pareciam em fogo, as folhas de umencarnado-vivo, e outras de ramos despidos, preparadas para o outono,que não fazia ideia do que era. Estava frio, húmido e caíaconstante umachuvamiudinha,nemsabiaquehaviachuvaassim.

- A senhora D. Maria deseja umamanta para pôr sobre os ombros? -perguntou uma voz, e Maria virou-se para olhar o marquês de Palmela,queconheceraapenasháalgumashoras.

Aoseulado,oseu ilhoAlexandre,de16anos,bonito,loiro,com ocabeloonduladoeumapeletãobrancacomoasua,sorria-lheeestendia-lheumamantadexadrez,prestável.

«Gostomaisdo ilhodoquedopai»,disseparasimesma,escondendooriso.

Estendeuamãoparaalãquenteecobriuosombroscomela,voltandoasuaatençãoparaquemviajavanacarruagem:

- D. Pedro, já vive em Inglaterra há muitos anos? - perguntou aomarquêsdePalmela,quesabialealaoseupaieàsuacausa.

Palmelasorriu:

-FuinomeadoembaixadordePortugalemInglaterrahá jámais dedezanos, e a minha mulher e os meus ilhos vivem comigo em Londres. OAlexandre já conhece, acaba de regressar de Portugal, onde esperavaestudar na Universidade de Coimbra, mas acabou envolvidona luta pelasenhoraD.Maria, sentenciadoaodegredona Índia.FelizmenteconseguiufugirparaInglaterra.

Mariaolhou-ocomadmiraçãoredobrada:

-Obrigada,Alexandre-foiaúnicacoisaqueconseguiudizer, tomadadeumsúbitoembaraço,dequesaiuperguntando:

-Agoraestudaonde?

Alexandre baixou a cabeça num gesto de agradecimento e respondeu,bem-disposto:

- Frequento a Universidade de Londres, e antes disso estudei na RealAcademiaMilitardeSandhurst.

Maria,tomandoconsciênciadequeinterromperaomarquêsde Palmela,pediu-lheparacontinuar:

-Dizia que espero em breve apresentar-lhe a minha mulher, que estáansiosapor a conhecer, e osmeusoutros ilhos.Masnão sei se sabe queagorajánemembaixadorsou.

Maria franziu o nariz. Sabia, é claro que sabia, julgavam que era umacriança?Engoliuairritaçãomomentânea.

- Estou-lhe muito grata pela sua coragem - disse, num tom maisprotocolar,recordando-sederepentequeestehomemfaziatudopor ela. -ElamentoqueaexpediçãoaPortugaltenhacorridomal-acrescentou.

Palmela fez um esgar embaraçado. A sua incursão resultara numaderrota, e em consequência dela estavam agora mais de mil homensemigradosemPortsmouth.

-Julgoquenãoteriacorridobemaninguém-reagiu.

Mariapercebeuquenãodevia insistir,preferindoperguntarpelos seussúbditosque,comoela,estavamexiladosnestaterra.

OrostodePalmelaanimou-seporunsmomentos:

- Sabem da chegada da sua rainha, e estão animados com isso.Acreditamqueogoverno inglês,napresençadeVossaMajestade, apoie anossacausaenosdêmeiosparavoltarmosalutar...Tinha mesmopensadoqueseriabomseasenhoraD.Mariaosvisitasse,e sei queontemànoiteacenderamtodosumavelanoparapeitodasjanelasparaareceber,mas...

- Mas então porque é que não me levou até lá? - atalhou Maria,desconcertada.

Alexandretrocouumolharcomopai,comoquemdiz,«éprecisocuidadocom o que se diz, que a rainha tem génio», mas o marquês respondeudiplomaticamente,comoeraseutimbre:

- Porque o marquês de Barbacena entendeu que não a devíamosperturbar depois de uma viagem tão longa com beija-mãos e históriastristes,pelomenosnãoantesdedescansar...

Mariaajustou-senobanco,ligeiramenteimpaciente:

-Nãoestoucansada,eseéprecisofazer,faz-se.Arainhanãoserecusaanadaquesejaimportante-acrescentou,altiva.

Alexandre,queolhavaparaforadajanela,exclamou:

- Senhora D. Maria, veja, veja, a Cavalaria do rei espera-a à entradadestacidade.

MariaolhouparaondeAlexandreapontava,entusiasmada:

-Abremalasàminhapassagem...esãotãobonitosestesuniformes.

Deum ladoedooutrodaestradaumbatalhãodeCavalaria saudavaachegada da rainha de Portugal, e nas ruas mulheres e crianças vinhamentregar loresequeriamveramenina-rainhaaquemtinha sidoroubadootrono.

Palmela incitouumaMarianervosaaabrira janelaeaestenderamãopequeninaparaaquelesqueaqueriamtocar,eaagradeceras lores quelheentregavam.

-Sabemquemeusou?-perguntou,espantada.

Alexandresorriu-lhe,umsorrisofrancoedivertido:

-Dizem«rainhaMaria»,chamam-napeloseunome.AhistóriadarainhadePortugaltemestadonosjornais,easpessoasfalamecomentam.

Evirando-separaopai,sorriu-lhe,entusiasmado:

-Sãoboasnotícias,nãosão,pai?

Palmela anuiu. Eram boas notícias, de facto. George IV dedicava oseutempo e os seus homens a dar à causa portuguesa uma visibilidadeinesperada. E se a opinião pública fosse favorável a uma intervenção, ogovernoserialevadoaagir.

Maria,comumgranderamodefloresnocolo,sorriu-lhe:

- Omeu pai gostaria de ver comome acolhem. Vou contar-lhe,e assimtalvez não se zangue com o marquês de Barbacena por elenão lhe terobedecido - disse, e o marquês de Palmela tomou nota: a rainha, queconheciaopaicomoninguém,temiaaquiloemqueelepróprio jápensara,ou seja, que o imperador reagisse por as suas ordens não terem sidocumpridas.

Quando chegaram ao alojamento que lhes estava reservado, era aInfantaria que rodeava a porta da estalagem e inclinava a cabeçaàpassagemdarainha.Mariaestavadeliciadacomofactodeserocentrodetoda a atenção. A mamãe certamente não se importaria quetivessemudadoderumo,amamãedecertezaabsolutaseorgulhariada ilhaqueeraacolhidaassimnaEuropadequetantofalava.

Ao jantar, depois de um banho tomado numa enorme tina demadeira,comáguaquentequecriadastraziamdasgrandescozinhas, perguntouaomarquês,sentadoàsuadireita:

-QuandoéquepossoagradeceraoreiGeorgeestasimpatia?

PalmelaolhousorridenteparaFreemantleeClinton,osenviados dorei,quetambémosacompanhavam,edisse:

-SenhoraD.Maria,terádeperguntaraestessenhores.

Ligeiramente corada, mas mantendo-se muito direita, Maria repetiu apergunta em francês, pedindo desculpa por não se expressar em inglês,«masaindanãomeatrevo»,dissecomumagraçaenternecedora.

Freemantlerespondeu,comumsorriso:

- SuaMajestade icará feliz por saber que a fez feliz, e logo queestejamelhorvairecebê-la,comtodaacerteza.

- Em Windsor - acrescentou Maria, desejosa de mostrar que se nãodominavaalíngua,pelomenossabiaosnomesdospaláciosdosreis...

-EmWindsor-disseFreemantle,bem-disposto. -Masocastelo estáemobrasderemodelação.Terádeserumbocadinhopaciente, porqueoreisóa quererá receber quando o puder fazer com a pompa que a senhoraD.Mariamerece.

Maria riu, comoqualquermenina de 9 anos riria, ao ouvir o seunomepronunciadodaquelamaneira,eFreemantleatalhou:

-Comovê, omeuportuguêsnãoé grande coisa,mas terei todoo gostoemaprender.

Mariaolhou-ocomoseuarmaismeigo:

-Semeensinaringlês...

Etodaagenteàmesariu.

Alexandreacompanhou-aatéàsaladaestalagem,enquantoopaieosoutroshomensacendiamosseushavanoseeramservidosdevinhodoPorto.Alareiraardia,eMariaapontou,fascinada:

-UmdoslivrosqueaminhatiaLuísamemandouquandoera pequenina

tinhaumalareiraexatamentecomoesta!Aminhamãe contava-mequeemViena as lareiras eram tão grandes, que nos dias mais frios ela punha oseubanquinhodemadeiraládentro,mesmolá dentro,ebordavaalipertodaschamas.

Sentaram-se nos bancos, e Maria chegou-se ao fogo, como se quisessetornarmaisvivaamemóriadaimperatriz.

-Alexandre,oreiGeorgeIVtemfilhos?

Alexandrenegoucomacabeça:

- É uma história triste. O rei, que na altura era só regente, era pai deumaúnica ilha, Charlotte, a herdeira que todos queriam ver rainha. QuedepoiscasoucomopríncipeLeopoldodeSaxe-Coburgo.

-Conte,oqueaconteceuaseguir?-perguntouMaria,impaciente.

- Depois a princesa Charlotte icou à espera de bebé, e o paísenlouqueceudealegria,porqueeraoprimeirobebéquenascianafamíliareal há vinte e dois anos, ou seja, desde que a própria princesa nascera.Gostavammuitodela,maisdoque...

-Maisdoquedoregente.Doregentequeéagoraorei-avançou Maria,muitorápidaaintuiroqueficavapordizer.

Alexandre icou visivelmente perturbado. Era preciso ser maisdiplomata,maiscautelosonaspalavras,pensou.Mas,apesardepressentirqueocolocavanumaposiçãoincómoda,Mariainsistiu.

- O regente não era nada popular. Era conhecida a sua vida dissoluta,gastava muito dinheiro, e o divórcio da mulher, da mãe da princesaCharlotte, foiumprocessodi ícil.Mas tudo issoaconteceuhámais de dezanos.Agoraaspessoasgostamdele...

MariasuspeitavaqueoembaraçodeAlexandrenasciadesaber davidaagitada do seu pai e de ter medo de ferir suscetibilidades.Precisava deconhecer mais sobre a vida de George IV e da sua ilhaCharlotte, masdecididamenteomaisvelhodos ilhosPalmelanãoeraapessoacertaparalhedarospormenoresmaisescaldantes,porissovoltouaterrenoseguro:

-Oqueéqueaconteceuaobebéeàprincesa?

-Obebé,queaindaporcimaeraumrapaz,nasceumorto,ea princesamorreunodiaseguinte.

Maria comoveu-se, e para esconder a cara virou-a para a lareira, eremexeu na lenha com um dos espigões de metal que encontroupenduradosaolado:

-Coitadodorei,edomarido...Aminhamãetambémmorreu depoisdeomeuirmãoternascidomorto.

Alexandre icoua lito.Queestúpidofora,entãonãoestavafartode saberdamortedaimperatrizLeopoldina.Mariaapressou-seatranquilizá-lo:

- Não faz mal, gosto de falar da mamãe, e ninguém quer falarcomigodela,sabe?

Alexandre,sensível,apressou-seadizer:

-Omeupai conheceu a senhora imperatriz quando estevenoBrasil, edissequeeraumasenhoraencantadora...Tambémconheceua senhoraD.Maria, que era então uma bebé de um ano, e diz sempre que era umacriançalinda,dequemasuamãeeoseupaitinhamimensoorgulho.

- Omarquês conheceu-me em bebé?Não sabia,mas sim, aminhamãefalava dele, e o meu pai também, claro, mas conte-me mais coisassobreInglaterra. Devia ter ouvido melhor a minha mestra, mas, para dizer averdade, tentaram ensinar-me tantas coisas ao mesmo tempo, que achoquenãofixeinemuma...

- Também me acontece exatamente isso, quando me dizem coisasdemais de uma vez só. Mas conto-lhe aos bocadinhos, ique descansada -sossegou-aAlexandre.

-Quemvaiherdarotrono,então?-perguntouMaria.

-Seoreinãotivermaisnenhum ilho,oqueéprovável,dadoque játemalgumaidade...

Arainhadeuumagargalhada,quedesanuviouoambiente:

- Alguma idade, Alexandre? É velhíssimo - disse, franzindo assobrancelhasenquantofaziacontas,paraacrescentar:

-OreiGeorgetem66anos,nãovivecomamulherejánemsequertemamantes...

Alexandre olhou-a, chocado. Como é que uma criança falava assim,seriam verdade todas as histórias que diziam que a vida no paço eradissoluta...Cabisbaixo,comentou:

- Aos 9 anos, todos os adultos parecem muito velhos... mas eleaindapodeterumfilho,seDeusassimoquiser.

Maria olhou-o, espantada, este rapaz era completamente ingénuo oufazia-se?

-Aos66anos,duvido.Mas,eseDeusnãoquiser,quemvemaseguir?

Alexandre sentiu-se tentado a amuar, mas Maria fez-lhe uma careta,divertida,eoprimogénitoPalmelasorriu:

-Senãotiver ilhos,oherdeiroseráoseuirmão,oduquede Clarence,opríncipeWilliam.

-Ah,eoduquetemfilhos?

- Não, vivos não tem - rematou, contrariado, preparado já para oscomentáriossarcásticosdarainha.

-Pois,eessetambémjátem63anos...

-Masamulher,aprincesaAdelaidedeSaxe-Coburgo-Meiningen, émuitomais nova do que ele. É uma história triste, porque as suasduas ilhasmorreram em pequeninas - disse Alexandre, que gostava muito daduquesadeClarence.

- Então e quando ele morrer? - insistiu Maria, de novo impaciente.Porqueéqueorapaznãolhedizialogooquelheinteressava,emlugar deseperdernagenealogiadafamíliarealinglesa?

AexpressãodeAlexandreeramisteriosa,emurmurou:

- Nesse caso, a rainha será a pequenina Vitória, ilha dos duques deKent.Porqueopaijámorreu-acrescentou.

Mariaentusiasmou-se:

-Pequenina,pequeninadequeidade?

-Pequeninaporquesótem9anos-disseAlexandre.

- Nove anos? Nove anos não é pequenina, Alexandre. Nove anostenhoeu,esourainhadePortugal.

OfilhodomarquêsdePalmelaescondeuasuavontadederir:

-Temrazão,senhoraD.Maria.Noveanosnãoépequena.

Nessanoite,Mariaadormeceuapensarnaprincesaquepodiaherdaracoroa.Queriaconhecê-la:seumdiaseriarainhadoImpério britânico, eraimportante que icassemamigas... Duasmulheres notronodedois paísesaliados,parecia-lhemesmomuitobem.Decididamente,queria sabermaissobreestaVitória.

Meuprimo,

Uma nota breve, só para agradecer a sua, e quemuito alentome deu.Parto dentro de dias, já está tudo tratado. Um dos criados daminhacunhada Mariana conseguiu que os meus baús de viagem fossemcarregadosnopaquete,sobonomefalsoqueescolhi(equenãoreveloporsegurança).Assimvoupodersairdecasaapenascomumainalapequena,paranãolevantarsuspeitas.

É uma ilusão, porque, por muitos cuidados que se tenha, há semprealguémque fala.Aindaontemachei suspeita a visita da condessadeEga,que visivelmente vinha farejar asminhas intenções, perguntando-mepordiversasvezesporquemerecusavaa ira todososbailesenão aceitara o

convite para um lanche em Queluz, onde a senhora D. Carlota Joaquinaesperavareconciliar-secomigo.Falsosamigos,falsostodoseles.

AomeusobrinhoFranciscoaindanãodissenada,commedode queporpalavras, ou atos, traia a sua emoção, mas vou deixar-lhe uma carta emquetudoexplico. Julgoqueentenderá,porquepertenceaunia família emqueentendemosossacrifíciospelasgrandescausas.

Quanto à viagem, vai ser bemmais longa do que imaginava, porqueédemasiado perigoso viajar diretamente para o destino. Terei de ir àMadeira, e de lá lhe enviarei nova carta, sem novas, certamente, porquetenciono fechar-me no camarote e sair o menos possível, a pretexto deenjoo.

Sei que Barbacena está preocupado que o governo de esquerda inglêsseja,contratodasasexpectativas,maispeloabsolutismo,quenãodefende,doquepelacausadaliberdade,queadvoga,masnãotemosoutroremédiosenão con iar emDeus, e esperar que o pobre Palmela consiga o créditoqueprocuradesesperadamente.Disse-lhe quenãosepreocupasse comopagamento dos meus serviços, desde queme ofereçam o pão nosso decadadia.

QueDeusoabençoe,

LeonordaCâmara

Lisboa,30desetembrode1828

HotelGrillon,Londres,11deoutubrode1828

aprimeiravezquepassoosanosdomeupailongedele-queixou-seMaria,quandoaaiaaveiolevantardemanhã.

Erguendo-se sobre as almofadas, estremeceu, num misto de frio e decansaço:

-Este quarto está gelado, desde que cheguei que tenho sempre frio.Nuncamaismevouqueixardo calor, comomequeixava todososdias noRio - disse, puxando para si uma das mantas que tinha sobre a cama,pedindoaumadascriadasparalhapôremredordosombros.

-Hojenãomeapetecesairdacama,tragam-meaquiopequeno-almoço-ordenou.

Aaia,quetiravadoarmárioumdosseusvestidos,olhou-a,preocupada:

- Sente-se bem, senhora D. Maria? Frio, temos todos, é uma mudançabruscadeclima,eosenhormarquêsdePalmelajámandoucomprarmaisagasalhos...

Mariaolhouodiacinzentoláfora,eteveaindamenosvontadedesairdebaixodoscobertores:

-Nãoestoudoente,sócansada,ehojetemosareceçãodosanosdopapaiemcasadomarquêsdePalmela,porissotenhodedescansar, vãoserumatardeeumanoitelongas.

Trouxeram-lhe o almoço num tabuleiro grande, mas Maria sentiu faltados sumos e da fruta, queixou-se desta mania de beberem chá a toda ahora em vez do café com leite de que tanto gostava, e acaboude novoenroladanoscobertores.

-Deixem-me-ordenou.

Fechouosolhoseimaginou-seacorrerpelamadeirapolidado seupaço,em direção à varanda dos papagaios, os braços damãe à sua espera, docheiro a terra molhada depois das chuvas, da cor dos jacarandás e doshibiscos,dosabordafrutaapanhadadasárvores,dosprimeirospassosdePedro, dos olhos verdes de Xica, da mão de Januária na sua, e de PaulaMariana, sempre pálida mas feliz, a ler-lhe alto uma história. E comopareciaestranhoesteruídodecascosdecavalosechiardecarruagens,emlugardocantoensurdecedordascigarras...

Os olhos encheram-se de lágrimas, não os abriu, não os queriaabrirporquequando voltasse a ver aquele quarto lembrar-se-ia de que estavalonge,tãolongedecasa.AgorajánãoeraMariadaGlória,ameninadopai,mas uma rainha sem reino. Pelo menos a princesa Vitória, com que nosúltimosdias tantagentea comparava,nãoprecisava de sairde casaparaserrainha...

Mariadeixouqueavestissem.AcondessadeItapagipeinsistiranumvestidobranco,comumafaixaazul-claraqueapertavaatrásnumgrandelaço,asmangasembalão,eumagolalargaderenda,meiasbrancas(equentes!)eunssapatosrasosdeseda,toilettequeacharademasiadoinfantil,masninguémouviraosseusprotestos.Calara-se,compreendendoqueaideiaeradequesurgisseaosconvidados,entreelesosembaixadoresdeváriospaísesdaEuropa,comoumameninafrágil,suficientementecrescidaparademonstrarcarátereconvicção,masaindaumacriançaqueprecisavadoapoiodetodosparaherdarotronoqueopailhelegara.

O passeio de carruagem pelas ruas agitadas acordou-a daquelasonolência que a engolia desde manhã, como se não estivesse bemdesperta e tudonãopassassedeumdaqueles sonhos estranhos.Quandooscavalospararamem frente aumacasa imponentede tijolo encarnado,janelas grandes de guilhotina, um gradeamento de ferro em volta, e osdegraus que levavam a uma porta grande demadeira antiga, eMaria foienvolvida por vozes de crianças, que lhe chegavam por uma dasjanelasabertas,sentiu-sedenovoviva.AcasadomarquêsdePalmela,mesmonoCentro de Londres, em South Audley Street, tinha sido transformada,desde a sua chegada, numa embaixada improvisada,e o aniversário doimperador do Brasil, pai da rainha, era o pretexto para a sua primeirareceçãooficial.

Àporta,paraareceber,em lugardomordomooudeumcriado, estavaumamulher linda, de cabelomuito preto e sedoso e olhosmuitoescuros,comumsorrisoacolhedoreaberto.

- É a senhora D. Eugénia, a marquesa de Palmela - disse baixinho omarquês de Barbacena, mas Maria já tinha subido as escadas depressa,irresistivelmenteatraída:

- Senhora D. Maria, desculpe a confusão desta casa. Insisti com omeumaridoparaquea trouxessemais cedo,porquequeriaapresentar-lheosmeusfilhos,equesesentisseaquicomoemsuacasa...

Mariasorriu-lhe,edeu-lheamão,sentindo-sederepentereconfortada.

-Fiquei tãocontentequandoouviasvossasvozespela janela.Lembrei-medosmeus irmãos,sabe,souamaisvelha,edesdequemerecordovivicomavozdemeninospequeninosàminhavolta-disse,noseuportuguêscantadodoBrasil.

- Imagino as saudades que deve ter de casa - respondeu amarquesa,apertandoamãodarainhacommaisforça.

Maria abanou a cabeça, não se atrevendo a falar, não fosse a voz sairtremida,osanéisdocabeloabaloiçarem-lhesobreacara,ea marquesadePalmela achou-a bonita, embora um bocadinho rechonchuda de mais.Talvez fossem os meses sedentários a bordo, e nesse caso depressa acomidainglesaeaidadelheafinariamaslinhasdorosto,pensou.

- Venha, entre para a sala e deixe-me apresentar-lhe osmeus ilhos. Omeumaridopreparaosdiscursos,adorapapéis,por isso sóestamosnós-disse, abrindoaportaparaumasaladeparedes forradasaseda,opianonumcanto,oscadeirõesdourados,estofadosdeveludoencarnado-escuro,comumartãoaconchegadoeconfortável,queMariasoltouumsuspirodesatisfação. Alexandre,que já conhecia, avançoupara lhebeijar amão e asaudar,sorridente,dizendobaixinho:

-TrocoaHistóriadeInglaterrapeladoBrasil,podeser?

Mariariu,descontraindoimediatamente.Queriadizer-lhequeprecisavade saber mais sobre Vitória, mas a marquesa de Palmela já lhe

apresentavaosoutrosfilhos:

-Prepare-se,sãomuitosnomes!

Eugénia,quelhepareciamuitomaisvelhadoqueela,com15anos, fez-lheumavéniaebeijou-lheamão.Domingos,queveioaseguir, eraapenasumanomaisvelho,ManuelVicentedasuaidade,eMariaAnaacabaradefazer7anos,ocabeloloiroquasebrancoeunsolhosenormes.

- A minha irmã Januária tem a sua idade, mas tem o cabelo castanhocomoodasuamãe-disseMariaàcriança.

MariaAnafez-lheumavéniaatrapalhada,eprotestou:

-Maseugostomaisdomeucabelo!

Mariadesatouarir:

- Acho muito bem, e a Januária também gosta mais do dela, porissoestãoambascontentes-disse,aproximando-sedeumaoutra rapariga,quequasepareciagémeadeMariaAna.

Amarquesapercebeuainterrogação:

- É aTeresinha, de5 anos.Osmeus ilhos são todosmuitopróximos, aIsabel e a Maria já na Graça de Deus... - Por um segundo umanuvemcobriu-lheosolhos,masosorrisodepressavoltou:

- Alexandre nasceu em Cádis, Domingos e Manuel em Londres, depoisMariaAna,TeresaeRodrigoemLisboa,eagoraCatarinaeAnadenovoemInglaterra.

Arainhaobservou-os,pensativa:

-Algunssãocomoeu,portuguesesquenuncaviramPortugal...

- O que importa é onde temos o coração, e o de todos nós está emPortugal - sossegou-a a marquesa. - Rodrigo, tenha calma, que já oapresento-disse,rindoparaoRodrigode4anosquepuxavaasaia deD.Maria,etodosriram.

- Senhora D. Maria, esse menino impaciente é o Rodrigo, e aquela aCatarina, de 2 anos. Finalmente ali - disse apontando para um berço defolhosbrancos-estáaAna,quefezhádiasquatromeses.

Mariacorreuparaoberço,paraveramaispequeninadosPalmela:

-Étãobonita,possopegar-lheaocolo?-exclamou,entusiasmada.

Amarquesa levantou a ilha e passou o corpo quente da bebé para osbraçosdeMaria,queaapertoucontrasi,enchendo-adebeijos.

- Lembro-me tão bem dos meus manos assim. O Pedro é o maispequenino,mas já fez 1 ano, por isso hámuito tempo que nãotenho umbebéaocolo-dissearainha,sentando-senumbancobaixo.

MarianãodissequequandopartiradoRiohaviaumabebé láemcasa,Maria Isabel de Alcântara Brasileira, que fazia questão de ignorar. Nãosuportava imaginar o pequeno imperador a celebrar os seus 2 anos,rodeado das duas ilhas de Domitília, quem sabe se a maisnova levadapelopaiàscavalitas,comofizeraconsigo...

A informalidade do almoço, com todos os Palmela mais velhos àmesa,contrastou coma formalidadeda receçãoo icial. Sentadanum verdadeirotrono,Maria estendeu, durante o que lhepareceramhoras a io, amão abeijar,asenhoresdefardadegala,asenhorascomidade paraseremsuasavós,gentequedisfarçavamalacuriosidadecomqueaolhavam.

Finalmente,omarquêsdePalmela fezumdiscursoempolgante,mas dequeMarianãoconseguiupercebernemmetade,distraindo-se aolharparaos vestidos das senhoras, os retratos dos antepassados do marquêspenduradosemmoldurasdouradasepesadasaolongodasala.

Depoisdaspalmasedeterembebidoàsaúdedoseupai,omarquês dePalmela fez as despedidas e permitiu que umaMaria exausta passasse àsala,ondeosPalmelamaisnovoscantavamemredordopiano.

Mariadeixou-seafundarnumacadeiraconfortável,eAlexandre sentou-senumaoutraàsuafrente,ameiascomamanaEugénia.

- Olham para mim como se fosse um dos papagaios que a minhamãe

mandavadoBrasilparaosjardinszoológicosdeViena-queixou-seMaria.

AlexandreeEugéniariram:

- Vossa Majestade é mesmo uma ave rara - concordou Domingos, queouvia a conversa, encostado à cadeira do irmão mais velho, etodosdesataramarir.Mariaolhou-os,surpreendida-paradizera verdade,nãoestavanadahabituadaaqueserissemdela,enãoestavacertadegostar.Sorriupordelicadeza,apenas.

Alexandrereparouimediatamentequeelaamuava,edisse,preocupado:

- Não se ofenda, senhora D. Maria. Omeu irmão está só a brincar. Osconvidadosolhavammuitoparasiporquequeriamguardar asuaimagem,queriam poder descrever aos outros como é a rainha que todos servemmasnuncaviram.Masdesisópodemdizercoisasboas...

Mariapareceu satisfeita,masamarquesadePalmela, queaobservavadiscretamente,enquantobordavajuntoà lareira,pensouquelhe faltavamirmãos, primos, amigos mais velhos, que lhe permitissem irsendocontrariadacomaquela franquezadequesóosdamesma idade, emuitopróximos, são capazes. Uma menina-rainha, rodeada de uma corte deadultos bajuladores, poderia facilmente tornar-se obstinada edespótica.Insistiria com o marido, para que a trouxesse muitas vezes ali a casa.EstavacertadequeLeonordaCâmaraseriaaprimeiraaconcordar.

Meuprimo,

Espero que amanhã seja de vez, porque é mais desgastaste aantecipaçãodosperigosdoqueenfrentá-los.Depoisdachuvaedovento,hojeacordámossobunicéulimpo,aquelecéuquesóLisboatem,massemtunapingadevento.Contudo,espera-sequeamanhãhajacondiçõesparapartir.

RecebimaisumavisitadacondessadeEga,quesubitamenteindagapormim constantemente, e falei-lhe na ida para Valença, usando o temporal

para justi icar a minha demora em partir para junto da minha tia - osvaporesparaoPorto também têmestado impedidosde sair, e sabeDeusque viajar agora pelas estradas de lama, e infestadas de bandidos e derevoltososdetunoudeoutropartido,émaisperigosodoquenosfazermosamaralto,ondeospiratasatéparecemanjinhos.Julgoqueaconvenci,masdequalquermaneiralisonjeia-mepensarqueD.Miguelmeconsideratunapeçatãopreciosadopuzzle,aopontodeperdertantotempoapensaremmim.

Seiqueosmeustemoresserevelaramfundamentados,porquePalmeiadiz-mequeoduquedeWellington,emboraagradadocomanossa rainha,irrita-seporconsiderarqueadecisãodea levarmosparaLondreséumaformadeosencostarmosàparede,e,comosabe,osinglesesodeiamsentirque há alguém mais esperto do que eles. Sendo assim, ingem queacreditam que a rainha está em Londres de passagem, e que em brevepartiráparaaÁustria,ondeaguardaráocasamentocom otio.Soluçãoque,inevitavelmente, todos acham mais fácil, pobrecriança, pobres de nós.Quantoaossoberanosingleses,nãoavançamcomoconviteparaconhecerarainha,masacreditoqueoimpassese devadefactoaosachaquesdorei,receiosagravadospelomedodeterherdadoaloucuradopai.

De qualquer forma, Palmela a irma que a correspondência entreBarbacenae lordAberdeen,quetemapastadosNegóciosEstrangeiros, édiária,emboracáparamimécertamentePalinelaqueasescreveem nomedele, não o podendo fazer no seu, já que o governo inglês teimosamenterecusa-se a reconhecê-lo como embaixador da rainha. O que demonstraumacasmurricegrande,jáqueD.Pedro, inalmente,enãoerasemtempo,enviou a todas as embaixadas europeias tunadeclaraçãode que abdicounasenhoraD.Mariaequeelaéalegítimarainha dePortugaloquedeviachegar para os levar adecidi rem-se por ela, embora, claro, continue ahaver quem arglunente que tanto uni, comoo outro, são agoraestrangeiros,equeD.Pedro,aoescolheroBrasil traindoPortugal,perdeuirrevogavelmente o direito à coroa portuguesa. Que mais precisam paraprovar aquilo que Palmela não se cansade arglunentar, ou seja, de queInglaterra está mais do que obrigada,pelos tratados de aliança entre osdoispaíses,aapoiaracausadetunarainhaaquemfoiusurpadootrono?E é clara a questão, pelomenosparamim,mas a diplomacia nunca foi omeuforte,porquenãogostodeáguasturvas.

Esperoquetudoseresolvapelomelhor,enquantoeunavegopor outraságuasque,comfranqueza,memetem,apesardetudo,menosmedo.

QueDeusoabençoe,

LeonordaCâmara

Lisboa,11deoutubrode1828

LalehamHouse,1denovembrode1828

arfanãoficarafelizporsairdoCentrodeLondres,ondeestavatãopertodosPalmela,daslojasedaagitaçãodasruas,queafascinavam.Ficaramuitoespantadaquandoaspessoascomquesecruzavanarualhediziam«Godblessyou,mylittlequeen»,esejuntavamempequenosgruposparaaseguir(aopontodechegaremasercansativos,queixou-seaumBarbacenaestupefacto),eliaereliaasnotíciasqueiamsaindonosjornaissobreasuachegadaaInglaterra.Asuapreferidaeraumacrónicasobreareceçãoaosembaixadores,queadescreviacomo«bonitaebondosa,commodoseinteligênciamuitosuperioresàidade».

MasBarbacenaqueria tirá-lada cidadeomais rapidamentepossível, eimpor-lhe uma rotina disciplinada, que incluísse um horário apertado deestudos, aulasdedançaedemúsica,paraquea sua real pupila izesseamelhorfiguraquandofosserecebidanacorte.

Porissoaquiestavam,jáhámaisdeumasemana,emLalehamHouse,ameiahoradecarruagemdeLondres,umacasarazoavelmentegrande,masamilhasdedistânciadapompadospaláciosporondepassaranocaminhoatécá.

A condessa de Itapagipe explicara-lhe que não tinham dinheiro paraalugaroucomprarnenhumadaquelascasasdefamília,equemesmoesta,ondeacortedevintepessoascabiaconfortavelmente,foracedidaporumtallordLucan,amigodomarquêsdePalmela.

Maria gostava do estilo clássico da casa, de linhas direitas, comumpequenopórticogregosobreaportaprincipal,emuitasjanelas,a norteeasul, sobreoenormeparquequea rodeava.Gostavamenosdohoráriodeestudosqueotutor lhetinhaimposto.Desobedecia-lhesemprequepodia,econtavacomacumplicidadedacondessadeItapagipe,sabendobemqueela adorava contrariar o marquês. Nos dias escuros, como o de hoje,recusava-se mesmo a levantar-se da cama,comendo chocolates e lendo

novelasromânticasatéqueumadamaaconseguisseconvencerasairparairdarumpasseionosintervalosdosaguaceiros.

E escrevia cartas, esperando ansiosamente pelas respostas, mas atéagorasóamarquesadeAguiarlheescrevera,contandonovidadesdopaço,dasmanas e de Pedro, incluindo no envelope umaspétalas das rosas damamãe,queapesardotempodaviagemaindaguardavamoseuperfume.Escrevera-lhedevolta,cheiadesaudades,apedirumcaracoldocabelodeXica para o seu medalhão, e aperguntar porque é que o pai não davanotícias.Desdequechegara,nemumacartadoimperador,epercebia,pelacara de Barbacena,que também os relatórios que lhe enviava todas assemanasnãoobtinhamresposta.

«Senhora D. Francisca, o papai está bem? Não teve mais nenhumdaqueles ataques que o deixam sempre tão derreado que não consegueescrever?Passa-sealgumacoisa?»,disseranaúltima,semousarperguntardiretamente pela «outra», e se era por causa da «outra» que o pai seesqueceradela.

MasamarquesadeAguiar,comosempre,souberalernasentrelinhas,erespondera-lhe dizendo que estava tudo bem com os manos,mas que apequeninaMariaIsabeldeAlcântaraBrasileiratinhamorrido,comumanoemeio. Sabia que não precisava de dizermais.Maria imaginava o pai nopaço, a banda preta em redor damanga de linho da sua camisa branca,chorosoe triste, sentindo-seomaismiseráveldoshomens, convencidodequeamortedasua ilhamaisnovaeramaisumcastigocontrasi.Atiraraacarta à lareira num impulso, e icara a vê-la incendiar-se numa chamalaranjavivaqueporminutosdavamaiscalor,masdepoisdesapareciaemfarrapospretos,eainda tentouestenderamãoparaa resgatar,mas já iatarde.

Que lhe importavaque tivessemorridoa ilhadeDomitília, certamentecastigo de Deus contra amulher que levara a suamãe, e o seumano, àmorte?,pensavaagora,enquantocaminhavapeloquartodeum ladoparaooutro,semsaberoquefazeraotempo.

Subitamente, lembrou-se do vestido verde. Do vestido verde que acostureira do Rio lhe izera, guardado à espera do dia em que o rei aconvidasse para Windsor, em que fosse apresentada à corte. Abriu as

portas do roupeiro de madeira de cerejeira e olhou-o ali, entre todos osseus outros vestidos, o vestido de gala verde, pensado para lhe realçar acordosolhos,eadeixarirresistível.Asuaraivacontidatornou-seemfúria,ecomolhesabiamelhorafúriadoqueatristeza!Saiudoquarto,batendoa porta com estrondo, e desceu as escadas emdireção ao escritório domarquêsdeBarbacena.Nãobateu,asrainhas nãobatemàportadosseuscriados, disse para si mesma, e apanhou àsecretária o seu tutor,espantadocomasuaentradarepentina.

Nemtempotevedesepôrdepéparaasaudar,porqueMariadisparouàqueima-roupa:

- O que leva o rei George a nunca mais me convidar para Windsor?Porqueéquenãoreceboavisitadospríncipes?Seráquesabemque estouaqui,perdidanomeiodasvacasedasovelhas,nestecampoverdeafastadodetudo?

Barbacena sentiu vontade de a mandar para o quarto de castigo,massabia que não podia. Inspirou profundamente e respondeu comsinceridade:

-Nãoseiporqueéqueoreinãovoltouaescrever. Jápusaquestão aomarquêsdePalmela,queimaginaqueadoençadeSuaMajestadeoimpeçadeconvidararainhadePortugal...MasvouinsistircomFreemantle,estoucertodequeoconvitechegaráporestesdias...

Não teve tempo de dizer mais nada, porque foram interrompidos pelotoquenaportadeumdoscriados,quetraziaumacartacomoseloreal.

Mariaolhouparaoenvelopecheiadeesperança.Vinhaendereçado emseunome,eBarbacenaestendeu-lho,masMaria,repentinamentesemvoz,fez-lhesinalparaquealesse.

Omarquês devorou-a de uma vez, e depois começou a traduzi-la paraportuguês:

«Malaminhasaúdeopermita,teriaomaiorprazeremreceberVossaMajestade em minha casa, onde Vossa Majestade pode estar certa decontar comamais cordial receção - e aí terei a felicidadede renovaraVossaMajestade, em pessoa, a certeza da minha consideração e afeto

porsi.

Minhaqueridairmãeprima,

OirmãoafeiçoadodeVossaMajestade,

GeorgeR»

Mariaolhou-o,ligeiramenteirónica:

-VouparacimarezarpelasaúdedoreiGeorgeIVdeInglaterra- disse,virando as costas e saindo da sala sem mais uma palavra. Barbacenacontrolouavontadedelhedarumgrito.Sefossesua ilha icavahojesemjantar. Quisesse Deus que D. Leonor chegasse depressa e fosse, comoPalmelaassegurava,amulhercoma formaçãoeopulsonecessários paravelareeducarestamenina.Olhandodenovoanotaqueseguravanamão,sorriu. Podia não ter data marcada, mas estacarta de George IV era orenovardeumaesperança.

Meuprimo,

Escrevo-lhe todos os dias porque dou em doida se não «falar» comalguém,presanacabinadestebarcoquejásuportocomdi iculdade. Podesentir-se lisonjeado, porque pre iro conversar consigo, mesmo sem obterresposta, do que entabular conversa com o criado que todosos dias metrazoalmoço,tunrapazitoquenãosecalaemereceitamil mezinhasparaoenjoo.

No Funchal esperava-me tuna carta de Barbacena, e soube-me bemreceber notícias da nossa causa, já que os jornais da Madeira repetemapenas aquilo que Lisboa lhes dita, ainda mais radicais com medo deserem engolidos pelos liberais que, felizmente, mantêm o bastião dosAçores.

Percebiqueanossarainhaescapouporpoucoaumsequestroaustríaco.Para lhe dizer a verdade, estranhava a passividade do avô perante o«desvio»danetaparaLondres,quandotinhatudopronto paraareceber,

eumacomitivadereceçãojáemGénova.Nãomeenganei,porqueocondeLebzeltern chegou por estes dias a Londres, para reclamar a rainha. Aoque parece, a troca de palavras com Barbacena foi dura, e o delegadoaustríaco chorou-se dela no ombro dosministrosWellington eAberdeen,que, como imagina, estavam muito maisdesejosos de agradar a tunagrande potência do que de fazer a vontadeaos liberais de um país tãopequenoeinsigni icantecomoPortugal.Felizmente,o imperadordoBrasilencontrava-semuni dos seus diasbonsquandoescreveuadeclaraçãodepoderesquetornaBarbacenaoúnicoresponsávelpela ilha,e,depoisdealer de trás para a frente e de frentepara trás,Aberdeenachouporbemnão se meter ao barulho,e disse que, face à vontade do pai, não podiafazernada.

O austríaco ainda tentou mexer os cordelinhos, mas a opinião públicainglesaestáafavorda«littlequeen»,eacortetambém,dondeoperigodaliporagorapareceafastado.

Mas tome nota das minhas palavras, meu querido primo, porqueasseguro-o de que quem vai desautorizar Barbacena será o próprio D.Pedro.Primeiro,porquenãogostadeserdesobedecido,esegtmdo, emaisimportante, porqueaindamantéma esperançadequeo sogro lhedêemcasamento,senãoumaoutradassuasfilhas,pelomenosalgtnnaprima.

Se a missão de Bayard, que icou com a tarefa de encontrar umaprincesa casadoira, falhar redondamente, D. Pedro mandará regressar ailha ao Brasil e destituirá o pobre doBarbacena. Tomara amimnão serunibocadinhociganacapazdeadivinharofuturo.

E com esta me despeço, na consciência de que estas semanas aquimetidanoporãodeuninaviomedevemestarafazermalaojuízo.

EsperoqueaminhapróximacartajásejadeLondres.

QueDeusoguarde,

LeonordaCâmara

Altomar,1denovembrode1828

LalehamHouse,3dedezembrode1828

arfaestavadevoltaaLalehamHouse,depoisdeunsdiasemcasadosmarquesesdePalmelaemLondres.ODiadaIndependênciaNacionalforaopretextoparamaisumjantarnaembaixadaimprovisada,seguidodeumespetáculodequegostara.Masgostara,aindamais,dosserõessentadacomosfilhosdosmarqueses,abordarumabandeiraparamandarentregaraosemigradosdePlymouth,emsinaldasuagratidão,enaesperançadequeembrevefosseoestandartedeumanovaincursão.DuranteaquelesdiaspensoumuitasvezesqueseotioMiguelanãotivesserejeitado(eaindalhecustavaadmitirqueassimfosse),poderiaserapenasumarainhaquevaiàsfestas,eabreosbailes,masquedepoisdeixaapolíticaenfadonhaparaomaridoeosministros,eserodeiadefilhostãobonitoscomoelaeosmanos,tãobonitoscomoestesdez«palmelas».Mas,melhoraindaseria,pensou,sepudesseescolherummaridobonito(otioMiguelnãoeranadatãobonitocomoopai!),aquemamasseapaixonadamenteequefossetãogentilcomelacomoeraomarquêscomamulher,ejáestavamcasadoshádezoitoanos!

Semsaberporquê,recordou-se,derepente,deAlexandre.Lisonjeava-aaatençãoquelhedava,porqueaos16anospoucosrapazesse interessampor raparigas de 9 anos, quase 10, é verdade, e mesmo sendo essarapariga rainha, que importava ser rainha num país onde nem eraconvidada para um único dos palácios. E Alexandre, pelo que percebia,frequentava-os todos, e era convidado para os bailes de jovens da corte,enquantoosdiaspassavamedelaninguémselembrava.

Haviam falado de Vitória. Eugénia, a irmã de Alexandre, sabiamuitomaissobreeladoqueoirmão,queestavaprontoarecitara genealogiadafamíliareal inglesa,nomearosnomesdasbatalhasedas leis,maspareciacompletamente desinteressado dos detalhes e daintriga, que, pensouMaria,erasempredivertidaquandonãonostemcomoalvo.

Ficara a saber que a ilha dos duques de Kent era órfã de pai, que

morrera quando tinha apenas oito meses. Vivia num palácio chamadoKensington,nosarredoresdeLondres,muitoprotegidapelamãe,que nãoa deixava ir a festas promovidas pelo rei, nem chegar-se perto dos filhosbastardos do herdeiro, os seus primos Fitzclarence, alegando que aprincesaprecisavademostraraopovoquesabiabemdistinguir«avirtudedovício».

Maria sentiu-semomentaneamente embaraçada - será que os Palmelasabiamqueos ilhosbastardosdoseupaiviviamnamesmacasaqueelaeosirmãos,equeamãe,talcomoaduquesadeKent,tambémnãoosqueriaperto dos seus ilhos? Esperava sinceramente que não, ou julgá-los-iamunsselvagens,semmoralnemlei.

-Eaduquesasuportaaamante? -perguntou,semconsciênciadeque apalavranãoentravaoficialmenteemcasadosPalmela.

Alexandre entrou de novo na conversa, abrindo muito os olhos emdireção à irmã para que não abrissemais a boca - era proibido falar damarquesa de Santos, e não queria que dissesse qualquer coisa quepudessemagoarapobrerainha:

- Estes ilhos são todos de uma ligação anterior ao casamento comaduquesa-enãodeudetalhessobreaatrizirlandesaque izerao furordamá-língua da corte durante anos. Desde que casou com aprincesaAdelaide,sãomuitofelizes...

MariavoltouaconversadenovoparaVitória:

-Mas se amãenãodeixa aprincesaVitória ir à corte, e se tratamal opríncipeherdeiro,nãoreconhecendoosseus ilhos,elenãopode escolherdeixarotronoaoutrapessoa?

Alexandreacenaraquenãocomacabeça:

-Elatemumúnicoprimolegítimo,opríncipeGeorge,maséirmãodeumtiomaisnovodoqueoseupai,porissoestáelaprimeiro.

Mariarecordavatudoisto,olhandosematençãoumcompêndiodeGeografia,quandoacondessadeItapagipeentrounasaladeestudoeachamou:

- Senhora D. Maria, o marquês de Palmela chegou, e o marquês deBarbacenapede-lheofavordedescer.

O tom de voz da condessa era seco e duro. Maria levantou a cabeça,surpreendida,masa condessa jávirara costas, eos seuspassosecoavamnocorredor.

«Foi ela que chegou», percebeu Maria. Levantou-se e foi até à janelaembaciadapelocalordoquarto,abrindocomobafoumaclareiraporondeconseguia ver lá para fora. A carruagem do marquês de Palmela estavaparada à porta, e os criados descarregavam dois grandes baús, quevinhampresosatrás.

D. Leonor da Câmara chegara, inalmente. E a condessa de Itapagipemostravabemcomqueespírito iriarecebera«rival»,aquelaque apartirde agora seria a aia da rainha, para além de mestra. Maria sorriu, umsorriso trocista. Era verdadequenão encarava comgrande entusiasmo a«disciplina» e o «rigor» que os adultos gabavam emD. Leonor, mas, poroutro lado,queprazer lhedavameteracondessa de Itapagipenaordem,tirando-lhe o pouco poder que ainda tinhasobre o seu dia a dia. Não seesquecia, nunca se esquecia, mesmoquando prometia ao seu confessorperdoar,queD.AnaeraumaescolhadeDomitília.

Desceuasescadassempressa.Anovamestrateriadeentender desdeoprimeirominuto quem era a rainha,mas a verdade é que já sentia umaimensaadmiraçãoporestamulherqueseatreveraa fugir à vigilânciadeMiguel e da guarda, para embarcar num paquete às escondidas, só pelodesejo de a servir. Além disso, uma inimiga do seu tio era, à partida, suaamiga, coma vantagemdeque lhepoderia falardePortugal, dePortugaltal como estava, porque, a inal, como é quepodia ser rainha de um paísquenãoconhecia?

Tencionava observá-la dos pés à cabeça. Caso se parecesse comMariaGraham, aceitá-la-ia de coração aberto, como se lhe fosse enviada pelamamãe,comunsanosdeatraso...

Barbacena e Palmela estavam de pé, e numa cadeira à sua frentesentava-se uma senhora alta, o cabelo preso num carrapito, e uns olhosbrilhantes, ligeiramente sapudos, enrolada numa manta de xadrezencarnado,comumachávenadechánamão.

Quando viu Maria, levantou-se de imediato, e a expressão era deentusiasmogenuíno:

- SenhoraD.MariadaGlória,queboméencontrá-la inalmente - disse,antes que os seus an itriões tivessem tempo de a apresentar. Depois deumavénia,pôs-lheasmãosnosombroseolhou-a comoquemavaliaumaobradearte:

-Éaindamaisbonitadoqueoretratoquetenhodesi.

Mariafoiapanhadadesurpresa:

-Temumretratomeu?EporqueéquemechamouMariadaGlória?

LeonordaCâmaravoltouadeixar-secairnacadeira:

- Desculpe, nem lhe pedi licença para me sentar, mas ainda tenho aspernas bambas pelo balouçar do paquete, e acredite que estou fartademaredebarcosparaumavida-aindaporcimanãoquissairdo camarotedurante toda a viagem para não dar nas vistas, porque os espiões dosenhorD.Miguelestãoemtodoolado.

Mariasentiu-secontagiadapeloespíritodeaventuradestasenhora, queeramuitomaisvelhadoqueamamãe,masmagraeágil,comar dequemnãoseimportavadepegarnumaespadaelutarnumcampodebatalha...

-Ai,desculpe,senhoraD.Maria,pus-meaquiafalarenemlherespondiàs perguntas. Sabe porque é que tenho um retrato seu? Porque mecorrespondia com a suamãe eMaria Graham, ainda se lembra de MariaGraham?

Maria, invulgarmente silenciosa, acenou que sim com a cabeça,mas D.Leonornemesperoupelaresposta:

-Conheci a suaqueridamãequandoestivenoBrasil. Foipouco tempo,porque depois voltei com o senhor D. João, mas continuei sempre aescrever-lhe. Por vezes pedia-me livros e eu enviava-lhos, e uma vez,imagine,mandou-meumpapagaiodeumamarelo-ocre...

Marianãoconseguiuconterumgritodealegria:

- Era para si o papagaio ocre? A mamãe disse-me que era para umaamigaemPortugal,masnãomedisseonome,ounãomelembro.Aminhamãeestavatãocontentecomaqueleexemplar.Estevenagaioladavarandadospapagaiosmuitotempo,àesperadeportadorseguro...

Os olhos de Maria brilhavam de excitação, e Barbacena olhoudiscretamente para Palmela: nunca se tinham atrevido a imaginar quetudo corresse tão bem, temiam mesmo que a rainha já estivesseenvenenadapelacondessadeItapagipeepeloscriados.

Depoisdemaisumatrocadehistórias,LeonordaCâmarapôs-se depéeestendeu a mão à rainha, naquele misto de respeito e afeto que aconquistavasempre:

-Mostra-meosmeus aposentos, e vamos falando enquanto subimos asescadasemeinstalo?-sugeriu.

Maria aceitou a proposta com entusiasmo, e desapareceram de mãosdadaspelasescadasacima.Barbacena,quevieraatéàportadoescritóriovê-las subir, percebeuo barulhodeportas que se fechavam noandardecima-acondessadeItapagipeeasamigasestavamcertamenteforadeside irritação. Começavam as intrigas a sério. Destavez a teimosia dasenhora D. Maria iria ser muito útil. Ninguém a convenceria a trair umaamiga.

Meuprimo,

FinalmenteconheciasenhoraD.Maria,eachei-aencantadora.Primeiroolhou-me como se me estivesse a avaliar de alto a baixo, e achoqueconsegui passar a prova, porque me recusei a adotar um estilosubservienteedesinteressante,queéoquemaistemconhecido.Percebe-seimediatamenteque é tuna criançaqueperdeu cedo a ingenuidade emrelação à Htunanidade, e faz pena perceber que desde sempre foiobrigada a procurar destrinçar se quem tem pela frente é amigo ouinimigo,sepertenceaopartidodopaioudamãe,seéumaespiain iltradadamarquesa de Santos, um inimigomiguelista, ou alguém que por outro

motivoalisonjeiaparafazerusodela.

Contudo, como lhe falei daminha ligação com a imperatriz e comladyGranam,eempolgueiosperigosdaminhaviagem,emlugardea tornarocentro de tudo, julgo que consegui algtuls créditos. Aceitou acompanhar-meaosmeusaposentos,equandodeiporissoestavaaajudar-meaabrirobaú onde trouxe todos os livros que quero usar para lhe ensinarmais emelhor. Olhou-os com um certo horror, e mais horrorizada icou quandotireida inalaunihorárioquemeentretiveapreencher duranteaviagem.Entreguei-lho,comosefosseacoisamaisnaturaldo inundo,evi-amordero lábio enquanto o leu, deixando entrever queestá pouco habituada arotinas de trabalho. Iremos com calma, mas com irmeza, porque, meuprimo,paraalémde lhequererdara segurançaeo afetodequeprecisaumameninasemmãe,nãoesqueçoporumminutoqueestaéarainhaemquedepositamostodosaesperançadeumPortugalmaiseducado,ondeoprogressolibertedamisériatantaetantagente.

Barbacena continua o encanto de sempre, e leva a tarefa de tutor comum zelo imenso. Jáme deu a ler os relatórios que faz diariamente e quetodas as semanas envia ao imperador. Ontem tinha escrito que a rainhaestáacadadiamaisbonita,porquecresceueestámenosgorda, etemsidotratadaporIundentistaderenomeaquiemLondres,quelhe endireitaosdentes, que cresciam sobrepostos. É, de facto, uma criança francamentebonita,massuponhoque terá tendênciaparaengordar, como,aliás, a suamãe, e vai competir-me vigiar a sua dieta, e controlaro cozinheirobrasileiro que veio com a comitiva do Brasil. Percebo que o calor e oscostumes no Rio de Janeiro incitavam a muitas horas dentro de casa, eaqui, de facto, estamos em pleno inverno - mas vou procurar que seencontre com frequência com os pequenos Palmela, que certamentepatinamnogelo,montamacavaloejogamténis.Vamosver.

DeixoaPalmelaamissãodeopôrapardasituaçãodosemigrados edanotíciadequeWellingtonosquerverdispersados,receandooque podemengendrarmilhomens,alojadosemmáscondiçõese semnadaque fazer,excetoimaginarconspiraçõesevinganças.

Preocupada também eu estou com o bloqueio que a condessa deItapagipeeas suas«meninas»mevão fazer,masespero, comdelicadeza,devolveralo-uniaordemaestacasa,semgrandescon litos.Anossa pobre

rainha precisa de tudo menos de vinte gatos-pingados à luta por causadela.

QueDeusoguarde,

LeonordaCâmara

LalehamHouse,10dedezembrode1828

lexandrechegoucomoseupai,desurpresa.ArainhanãofoicapazdeesconderaalegriaquandoD.Leonorachamouparalhedizerquetinhaumavisita.Quandoviuofilhodomarquês,sentadonumdossofásdecourodabiblioteca,confortavelmenteinstaladoalerumlivro,tevedificuldadeemnãoseprecipitarparaosseusbraços:

- Alexandre, veio salvar-me do tédio destas lições que nunca maisacabam-disse-lhe,asuavozcantadaafazê-losorrir.

- Bom dia, senhora D. Maria, sim, vim salvá-la, e mais do que isso, asenhoraD.LeonordaCâmarapermitiu-meconvidá-laparaumpasseio.

Maria olhou por cima do ombro para se certi icar de que ninguém aouvia:

-Nãoacreditacomoavidamudouporaqui-suspirou.-Agora tudotemhoras, parece que entrei para um colégio militar - disse, com um ar deenfadoquesóprovocoumaisrisoemAlexandre.

- A minha mãe disse-me que a senhora D. Maria ia demorar umbocadinhoahabituar-seaoshoráriosdeD.Leonor,masvaiverque depoisgostadetudooquevaiaprenderesaber.

Mariapensouembateropé,zangada.Nãogostavaqueandassemafalardela,muitomenosqueatratassemcomoumacriançaqueprecisavadesereducada,muitoeducadaera ela, porobedecer a todaesta gente, como senãofosseumarainhadeverdade.Masomedode queAlexandretroçassedelaobrigou-aaengoliraira,earesponder:

- Tenho saudades da sua mãe, e descon io de que se engana muito.Nuncavougostardestasliçõestodas,nemdevoltarapassaralimpocartasinteiras para omeu pai, só porqueme esqueci de pôr uma letra aqui ouumaletraali,easenhoraD.Leonorachaqueelesevaiimportarcomisso.

Edepois,comraiva:

- Já lheescrevidezenasdecartas,eopapainãorespondeua nenhuma,porissopoucoimportaseoportuguêsestábom,mau,ouassim-assim...

Alexandretevepenadela,masdesviouoassunto:

-Vamosaproveitarparasair,antesquemudemde ideiasouomeu paisejaobrigadoavoltarparaLondres?

Maria esqueceu a irritação, e tocou para que a criada lhe trouxesse ocasacoeasluvas.

-Ondevamos?-perguntou.

-Parao jardim,porquequeroensinar-lheumacoisaquemedizem queaindanãoaprendeu-respondeuAlexandre.

-Não quero aprender nemmais uma coisa - re ilouMaria,mas deixouqueacriadalhevestisseocasaco,eaceitoucalçaroúltimogritodamoda,as botasWellington novinhas em folha que Barbacenalhe comprara - asbotas de salto baixo, de pele de vaca muito suave,que a divertira saberque tinham o nome do primeiro-ministro, porque tinham sido inventadasporeleparaganharWaterloo.

Alexandrependurouumsacoatiracolo,emquearainhanemreparou,eabriuumadasportasvidradasqueabriamparaastraseiras:

-Venha, senhora D. Maria, antes que a mandem aprender Latim ouHistória-troçou,eMaria,sorrindo,saltouodegrauparaojardim.

A neve muito branca contrastava com os azevinhos cheios de bagasencarnadas, e as árvores despidas pareciam dançarinas ao vento. Lá aofundo, o pequeno lago estava gelado, mas era para ali que Alexandre alevava.

-Paraondevamos?-perguntouMaria,atentaracompanhar-lheopasso,feliz como há muito não estava, como se pouco lhe importasseque o reiGeorgeaconvidasseounãoparaWindsor,ouqueopailhe escrevesse,oudeixassedeescrever,esquecidaatédequenoRiodeJaneiroeraverão,ea

areiadaspraiastãomaciacomoaneve,sóquebemmaisquente.

-Vamosaprenderumacoisanova,parecidacomdançar,dequesei quegostamuito-disseAlexandre.

Mariasorriu,asmaçãsdorostoencarnadasdofrio,osolhosmaisazuis,porqueoventogeladolevava-osachorar.

-Ensinam-me a dançar para fazer boa igura quando, um dia, o reimeprestaratenção,maspelomenoséumacoisadequegostomesmo-disse,subitamentedespreocupada.

Alexandresacudiuanevedeumtroncogrosso,e sugeriuqueMaria sesentasse.Depoisabriuosacoedeládedentrotirouunsobjetosmetálicoseestranhos,queMariareconheceudeimediato:

-Patins,patinsparaogelo-gritou,excitada,ajoelhando-seao ladodele,paralhestocar.-Viumavezunsnumlivroqueaminhatia MariaLuísamemandou,eamamãecontou-mequeempequenaeraoquemaisgostavadefazer.

Alexandrepediu-lhequesesentassedenovoetirasseasbotas:

- Desculpe a falta de cerimónia, senhora D. Maria - mas Maria hojeestava mais do que preparada para deixar de lado todos os protocolos.Hoje, muito melhor do que ser rainha, era ser amiga de Alexandre, eaprenderapatinarnogelo,comoasuamãetinhafeitoemmenina.

Foi a aluna mais entusiasta imaginável, e ao im de meia hora jáconseguia aguentar-se em pé por uns longos minutos, até, entregargalhadas,seestirarnochão,parase levantarcomaajudadamãoqueAlexandrelheestendia-comogostavadoconfortodaquelegesto.

Da janeladoprimeiro andarda casa, a condessade Itapagipeolhava acena,comentando-acomdesprezo:

-ÉistoqueBarbacenaquer?Chamaumamulherquedizilustrada,eumdosseusprimeirosgestosédeixararainhasozinhacomum rapaznomeiodeumlago,afazeraquelasfiguras?Amimninguémmeengana,tudoistoéum esquema do Palmela, que deseja a rainhaapaixonada pelo seu ilho,

estámaisdoquevisto.EestaLeonordaCâmara fazparteda camarilha -vociferou,despeitada.

MasMariaquerialásaberdoquesediziaentreasparedesde LalehamHouse.Hojeestavalivreefeliz.

Meucaroprimo,

Osdiasavançamlentos,econfessoquehámomentosemquemorrodesaudadesdeLisboa,domeusobrinhoFrancisco,doconfortodaminhasala,edosossegodetunacasaondeninguémintrigava.

Mashojenem tive tempodemeperder emnostalgias, porquePalmeiachegou demanhã cedo e sem avisar. Percebi que o assunto era grave, eBarbacena teve a bondade, como tem sempre, de me incluirna reuniãoquesefeznoseuescritório.Palmelaestavalívido,eoprimosabequefazeruni embaixador empalidecer à frente de outros é sinal de coisa grave.Trazia anotíciadequeumportuguês foraapanhado pela guarda inglesa,depoisdeodonodeumbaroterdenunciado.Ohomemébriotrataradesegabar,aoqueparecemuninglêsperfeito, dequeiaenvenenararainhadePortugal. Louco, contou o plano de seintroduzir na casa da rainha comoajudantedecozinha,edecolocarovenenonopratoquelheseriaservido.

Aguarda revistouo seuquartonumhotelno submundodeLondres, eencontrou arsénio e imla carta com as ordens que o tresloucado repetiu,abençoadacerveja.

Ocriminososabiaquesódesdequeeuaquichegueisemudaraohábitode a rainha tomar as suas refeições na mesma mesa do que todos nós,para a pôr a almoçar e jantar numa mesa sozinha, como mandaoprotocolo.

Tudopareceutãograveetãosério,quelordAberdeenmandou chamaro marquês e achou por bem pô-lo a par do que se passava.Palmelaprocurou interrogá-loemportuguês,masohomem, já sóbrio, nãoabriuaboca, nem contou quem lhe pagava o serviço. O pobremarquês diz que

teve vontade de o torturar para extorquir informação, mas nenhumaameaça surtiu efeito. Vai passar uns tempos na cadeia,por posse doveneno,eAberdeenprometeuaPalinelaquedepoisdisso serárepatriadopara Portugal, já que nada se consegue provar - a carta é anónima, e ohomem garante que o arsénio era um medicamento que lhe tinha sidoreceitado.

Tanto Barbacena como eu icámos gelados com as revelações. A partirdehojevamosvoltaràmesadeEstado,emanter-nosvigilantes.Oquemaisme preocupa é que certamente é alguém de dentro que passa ainformação. Não quero acreditar que alguém, que aqui vive connosco, eservearainha,conspireparaamatar,masestamosnuma terraperigosa,eeste aviso veio tornar reais todas as outras ameaças que Palrnela eBarbacena já receberam. Pa]rnela teme que, para além dos absolutistasmais fanáticos, haja liberais zangados com o queconsideram ser oabandonodoimperadordoBrasilàsuacausa,esequeiramvingar.

Éurgente,defacto,queoreiGeorgeIVpassedaspalavrasaos atos-seesta menina tivesse o apoio e a proteção real de uma potência como ainglesa, tudo seria mais simples. Barbacena icou incumbido de ir aLondres apelar a Freemantle, camareiro do rei - temos de tentar a linhadireta,porqueadospolíticosnãopassadacepatorta.

Felizmente, até para que a rainha não ouvisse nem suspeitasse destaconversa, o pequeno mais velho dos Palmela veio com o pai, trazendorecadodeEugénia,tunanotaemquemediziaquemeenviavatunexímioprofessordepatinagemnogeloparauniprimeiraliçãoàrainha. Abriuunisaco e mostrou-me dois pares de patins, e confesso que dei tunagargalhadadefelicidade,coisararanosóltimostempos.Lembra-sequelhedisse, neste meu tagarelar por escrito, que esperava que as criançasPalmelaajudassemarainhaaintegrar-seemInglaterra,atéporque muitoscresceram aqui, falam a língua e têm os costumes dos «nativos»? PoisEugénia ajuda-me como esperava. Autorizei a rainha a ir com o jovemAlexandre,quemeparecemuitoeducadoeexcelenterapaz.

Voltou feliz comonuncaa tinhavisto, a cara rosadapelo frio. Julgo quehoje atémeperdoouohorário rígido, as lições e os trabalhos, e abraçou-meantesdesedeitar.QuandoacondessadeItapagipeaveio repreenderpela fraca igura que izera no jardim «com uni homem» - é de uni falso

pudor inacreditável estaamigada famosamarquesade Santos, querendoobviamente atingir-me a mim -, a rainha mandou-acalar-se, dizendo-lheque tuna rainha pode receber quem quer no seu jardim, e que osmauspensamentos icam comquemos tem.Noutraaltura tê,-Ia-ia repreendidopeloseutomaltivoesobranceiro,masdestavez,confesso,meuprimo, ingiquenãoouvi.Maslamento,lamentoqueestasintrigasemqueestameninacresceuaobriguemdepois arecorreraopodereàaltivezparase impor.Queoutraarmatem?

MasoqueserádenóssearainhadePortugalnãosoubernegociar, serlexível e ouvir? Como será se só souber cortar cabeças quando acontrariam, certa de que tem o poder todo na mão? Não é para educartunarainhaassim,certamente,quePalmelaeBarbacenaaconfiamamim.

Vouterdelhemoldarosmodos,massóoconseguireifazersefor feliz,ese deixaremde lidar comela com as armas da traição. EugéniamandavatambémdizerqueaspróximasliçõesdeveriamseremLondres,epediuàrainhaquelhedesseahonradelá icarunsdias,sobo pretextodequeasenhoraD.Mariadeveriaajudarasfilhasabordartunaoutrabandeira.

VousugeriraBarbacenaquenosdeixeir.A inal,estamostãopróximosdoNatal,eatéamimsabiabemumtempocomalguémemquemcon ioecomquemtenhooqueconversar,eD.Mariasó temaganharporpassarmaistemponumambientedefamília.QuantoaAlexandre,tereide icardeolhonaquelesdois.Vãodizerqueéuniesquemadomarquês,seiquevão,mas não lhe vou roubar o primeiro amigo que tem, para calar as línguasviperinas,porqueessasinventarãologooutracoisaqualquer.

Acarta jávai longa,meuprimo,masqueria sódizer-lhequevoutratarcommaisrespeitoasdecisõesdoimperador,porque,pensando bemnesteseudesejodeque a ilha comesse com todos, está certamenteomedodeque fosse envenenada. Sabe o senhor D. Pedro, melhor do que nós, osperigosqueeleeafilhacorrem.

Atébreve,equeDeusoguarde,

LeonordaCâmara

LalehamHouse,18dedezembrode1828

saulasdedançaeramassuasfavoritas.Umadassalastinhasido.despidadetodososmóveis,excetodopiano,quefaziapartedorecheiodacasaquelordLucancederaaoseuamigoPalmela,eochãoforaencerado,deformaaqueospésdeslizassemsobreamadeira.AescolhadoprofessorrecaiusobreaquelequedavaaulasdedançaàprincesaVitória,umfrancêsexótico,acompanhadodeumpianistaedeumcãodecolo,daquelesdeorelhaspontiagudasefocinhosirritantes,semprecomumenormelaçonacabeça.

Barbacenaescondiacomdi iculdadeorisosemprequelhefalavam«doartistaedoamigo»,cujastoilettesoriginaisdeixavamchocadosopobredocamarista e os criados da casa, mas divertiam todos osoutros. Mas feliz,feliz, estava o professor quando trocava as botinas por umas sapatilhaspretaserodopiavapelasala.

Maria aprendia os novos passos da quadrilha, quando um criadoveiopedir desculpa por interromper, mas que a senhora D. Leonor pedia-lheque fosse urgentemente para os seus aposentos, onde tudolhe seriaexplicado.

Mariabateuopé,zangada:

- Nunca me interrompem durante as lições de que não gosto - mas oprofessorconsolou-a:

- Ma petite Marie - disse, informal -, espero por si o tempo que forpreciso,masvá,vá,deveserimportante.

Maria agradeceu-lhe com um dos seus magní icos sorrisos, e correupelas escadas até ao seu quarto, onde uma D. Leonor pela primeira vezagitada dava ordens às criadas que preparassem o vestido, asmeias e oxaile,enquantoelaprópriatiravadoestojoumapequenacaixade blushe

umaescovadecabelo:

-SenhoraD.Maria,desculpetudoisto,masnãoseioqueaconteceu,nãochegou o aviso a tempo, e a verdade é que o senhor Freemantle está achegar,evemdapartedoreiGeorgeIV.

Mariabateupalmas,excitada:

-Achaqueéumconvite,achaqueé inalmenteumconvite,umbailedeNatal?

LeonordaCâmarasentiuvontadederesponderquedeGeorgeIV podiavir tudo, temperamental e hipocondríaco como era, ao ponto de a suahistória fazer parecer a de D. Pedro a de um menino de sacristia, masconteve-se:

- Acho que é o mais provável, mas agora vista-se depressa, e deixe acriada pentear-lhe o cabelo sem protestos - acrescentou no seu habitualtom,serenoedireto.

Marialevantouosbraçosobedientementeenquantoacriadalhetiravaovestidodedança,eoutra lheen iavaumvestidodeveludoazul, comumafaixadeumoutrotom,soleneepesado,comoaocasiãoexige,disseraumadasaias.

Aguentou pacientemente que lhe prendessem o cabelo numa trançaenrolada, deixou que lhe puxassem os cabelos da frente e os frisassemcom o ferro quente, e não encheu as bochechas de ar quando lheaplicaramumpoucodepó.

Agitou-se na cadeira, brincandonervosamente com a pulseira pousadano toucador, quando ouviu tocar à porta e anunciar a chegada doemissário real, e saiudo seuquarto, comumúltimoolharparao guarda-fato, onde o vestido verde lhe parecia pedir que encontrasse uma festadignadeousar...

«Cresci tanto, espero que ainda me sirva», murmurou para si mesmaenquantodesciaasescadas,«devagar,muitodevagar,uma rainhanãotempressa», dizia baixinho, recordando os ensaios que izera no seu queridoPaçodeSãoCristóvão,sobaorientaçãoserenadamarquesadeAguiar.

Freemantleolhouparaarainhacomaprovação.Crescera,estavaaindamaisbonita,eoseuamo,oreideInglaterra,iagostardoquevia.Recordar-lhe-iaasuafilhaCharlotte,maisloiradoqueestamenina,mascomosmesmosolhosazuis,apelealva,quetalveznoverãofossesardenta,earecordaçãonostálgicaprovavelmentetorná-lo-iaespecialmentecarinhosoegeneroso,oqueseriabomparaacausadarainha.

Fez uma vénia profunda e beijou a mão que Maria, com toda anaturalidade,lheestendia.

Sentadoseminconfortáveiscadeirasdecostasaltas,enumasalagelada,porque não tinha havido tempo de a aquecer, e não havia dinheiro paramantertudoquenteeconfortávelàesperadevisitasquenuncachegavam,Freemantleagiucomoseestivessenamaisformaldasocasiões:

-VossaMajestade,oreiqueriasaberselhedavaahonradeuma visita,nestasegunda-feira,pelasduashoras,noPaláciodeWindsor.

Maria fazia algum esforço para seguir o inglês propositadamentepausadodocamareirodeGeorgeIV,epercebeuoessencial.

-Seomeututorconcordar,tereiomaiorprazeremaceitar-disse comoseuardemeninamaisbem-comportadadomundo.

Barbacena, que ouvia a conversa junto da janela, avançou um passoe,comumavéniaparaambos,acrescentou:

-Seriaumaimensahonra...

Mariavoltouachamarsobresiaatenção:

-Eoreisente-semelhor?-perguntou,solícita.

-Bastantemelhor,VossaMajestade, su icientementebemparacumpriro prometido, embora não garanta que esteja em forma para dançarconsigo...

Mariacorou,seráquejásabiamquegostavadedançar?,masmanteveacalma.

- Conversaremos, então, e pode mostrar-me as obras que fez emWindsor...

Freemantlesorriu:

-Tenhoa certezadequeSuaMajestade terá todoo gosto emmostrar-lheasnovidadesetodaamaquinariaquemandouinstalarnopalácioparaotornarmaisconfortável.Mashaverámuitagentequeaquerconhecer.

Maria sorriu. Não tinha di iculdade nenhuma em falar com quemquerquefosse,desdequeopudessefazeremfrancês.Freemantle assegurou-adequefrancêsestavaperfeitamentebem...

NessanoiteMariasonhouqueovestidoverdeeratãocurto,tãocurto,queD.Leonoraimpediadesairparaafesta,obrigando-aaficarnacozinha,comumavassouranamão.Alexandreesperavaporelanacarruagem,maselanãoconseguiaabriraporta,eeledesistiadeaguardar,emandavaococheiroseguirparaWindsor.

Acordoucomumsalto,osuoracorrer-lhepela testa,asmãos húmidas,ossoluçosabaloiçarem-lheopeito.

Ao seu lado viu LeonordaCâmara, a lita.Ouvira-a gritar o seu nome eviera a correr, um roupão atirado sobre os ombros, a camisa de noite delanelaquenteàvista,ospésdescalços,porquenemtempotiveradecalçaraspantufas.

-D.Leonor -dissea rainha, estendendoamãopara lhe tocar,na ânsiadesecertificarseeraadosonhoouareal.

- Senhora D. Maria, estou aqui, o que foi? - disse-lhe com uma vozinvulgarmentemeiga,afastandoasduascriadasqueentretantosetinhamlevantadosobressaltadas.

Maria contou-lhe o sono, atrapalhada, mas omitindo a referência aAlexandre...

Leonor da Câmara aconchegou-a nos lençóis, tapou-a melhor comoédredondepenas,edisse-lhebaixinho:

-A senhora D. Maria anda a ler demasiadas histórias da GataBorralheira.Deixeláquenãoqueroseramadrastamá,pre iroopapel defadamadrinha.Amanhãdemanhãexperimentamosessevestido,paraverse lhecabe,esenãocouberasenhoraD.Eugéniahádesaber onomedeumaboacostureiraparacávirajustá-lo.

Maria, numgesto invulgar, puxou amãoda senhora para si e beijou-a,deixando-aseguranasuamãoduranteumbocadinho.Que saudadestinhados abraçosda amaFlorica, dos sorrisosdamarquesa deAguiar, do colodopai,edasmãosdoPedrinho,presasnasua,quandoaprendiaaandar.Quesaudadestinhadecorrerparaamãe,e deseafogarnosseusbraços,e ali icar ingindoquedormia, na lassidãodeuma tardenavarandadospapagaios.

As lágrimas silenciosas caíram-lhe pela cara. A sombra do dosselimpediaquefossemvistas.

-Obrigada,D.Leonor-dissebaixinho,easenhoradebruçou-see beijou-lhecarinhosamenteatesta:

-Durmabem,senhoraD.Maria.

Caroprimo,

Umanotamuito rápida, em resposta à sua carta de ontem, só para lhecon irmarqueoreiGeorgeIVreceberáarainhadePortugalem Windsor,já na segunda-feira. Freemantle correspondeu ao pedido de Barbacena edisse-nos que quando informou o rei da importância de queo convite serevestia para a causa da rainha, Sua Majestade foi rápido a tomar uniadecisão, esquecendo-se dos seus achaques, tal o desejode «socorrer adonzela em perigo», ao que parece foi a expressão que usou. Temosordensparagastaroquefornecessário,paraquearainha seapresenteàreceção com toda a pompa. Espero, primo, que isto seja o princípio dareviravoltadequeprecisamostanto.

Atébreve,

LeonordaCâmara

CastelodeWindsor,22dedezembrode1828

marquesadePalmelaeasfilhasjáestavamemLalehamHousequandoMariaacordou.Acordar,éumaformadedizer,porquenãotinhaconseguidopregarolho,talaexcitaçãodosúltimosdias.

- Passei a noite a ensaiar os passos e as vénias - disseMaria, sorrindoparaEugéniamãeeEugéniafilha.

-Eosnomes,omaisdi ícilsãoosnomes-disseEugénia ilha,queestavatão excitada como a rainha, porque era também a sua primeira receçãooficial.

- O marquês de Barbacena apareceu na minha sala de estudo com oretratodo rei, edosduquesdeClarence,mas sóesperoqueopintor nãotenhasidodaquelesquequer lisonjearquemlhepagaoquadro,eeunãosejacapazdereconhecernenhum-diziaMaria,arir.

LeonordaCâmaratranquilizou-as:

- Não é preciso decorar o nome de ninguém, vão-lhe sendoapresentados.

-Masquandonosdizemvintenomesdeseguida icaumanuvempretanacabeça, e jánosparecem todos iguais.E comoé supostoqueseja euacomeçaraconversa,porqueBarbacenainsistiumilvezesqueninguémfalacom a rainha sem ter sido ela a fazer uma pergunta,convém que melembredecomquemestouafalar-respondeuMaria,preocupada.

- Agora não pense nisso, senhora D. Maria, ao seu lado estarão omeumaridoeomarquêsdeBarbacena -disse-lheamarquesade Palmela. -Eagoracomecemavestir-se,senãonãohátempo.

Maria sentiu uma al inetada de ciúmes. Que pena tinha de não terali,como Eugénia, a sua mãe, de não ir a esta receção com ela, de aouvir

dizer-lhequeeraameninamaisbonitadeInglaterraearredores.

Eugénialeu-lheospensamentos,eatalhou:

-SenhoraD.Maria,acostureiraconseguiubaixar-lheabainha?

A manobra de distração funcionou. Maria apontou para o vestido desedasuspensonoarmário,armadoeengomado,eacara iluminou-secomumsorriso:

-Aindatevededescercincocentímetros,eapertouaindaumbocadinhoacintura.

LeonordaCâmarasorriu-lhe:

- Não admira que omarquês de Barbacena tenha escrito ao seu pai adizer-lhequeestámaisalta,maismagraeaindamaisbonita.

Maria fez um sorriso satisfeito, e não desviou os olhos. Era, felizmente,uma criança alegre, pensou a marquesa de Palmela, porque senão todaestaagitaçãoemtornodasuavidatê-la-iatornadoacabrunhadaetriste.

Mas de triste, de facto, a rainha de Portugal não teve nada naquelamanhãdepreparativos,atalhadospelomeio-dia:

-AindasãoduashorasdeviagematéaoCastelodeWindsor -explicouEugénia.

-Eosvestidosvãoenrodilhar-setodos,enãoseicomoéqueestatrançaemcimadacabeçavairesistiratélá-protestouMaria,que tiravaepunhaumcolardepérolas,semsaberseolevavaounão.

-Não o leve, senhoraD.Maria, acredite que já brilha por si - disse-lheLeonor,carinhosa,eMaria,despedindo-sedela,deu-lheumbeijonatesta:

- Tenho pena que não venha connosco, mas ique acordada, porquequandovoltarconto-lhetudo,tudo,tudo-dissenaqueleestiloafetuosoquetinhaumamarcadequemvinhadeumaterraquente,onde o toque faziapartedosgestosdodiaadia.

Quando descia as escadas, com cuidado para não tropeçar no vestido,

Maria reparou que lá em baixo, junto da porta para a rua, estavaAlexandre, vestido a rigor, e tão bonito. Recebeu-a no último degrau,beijando-lheamãoemurmurando:

-Estádeslumbrante.

Maria levantou os olhos e, quando viu os dele, acreditou. E sentiuumconforto imenso dentro de si. Não sabia porquê, mas era mesmoimportantequeAlexandreaadmirasse.

Barbacena estava mais nervoso do que Maria. Empenhara todoo seutempo e o dinheiro que Palmela conseguira desencantar, para que acomitivarealchegassecompompaecircunstância.«Aprimeira impressãocontatudo»,repetiaincessantemente,enquantotratava dosdetalhes.Duascarruagens reais, seguidas pela do visconde deItabaiana, com a dosmarquesesdePalmelaafechar.

Barbacenafalavasemparar,comoseonervosismolhetivessedesatadoalíngua.

-Não me dê nem mais uma instrução, senão ainda desaprendo oqueaprendi-disseMaria,subitamentezangada.

Barbacenainclinouacabeça,arrependido:

- Não ligue, senhora D. Maria, vai correr tudo bem, são já manias develho.

Marianãotevetempode lheresponder,porqueobarulhodecavalosetombetasafezolharpelajanela:

- A guarda de honra para nos escoltar, gosto tanto destas fardasencarnadascombotõesdourados,emaisdoquetudodestesbarretesaltospretos,depelo,parecemsoldadosdeumjogodoPedro... Jádevemosestarperto.-E,colandoacaraàjanela,exclamou:

- Está ali em cima daquele monte, é enorme o castelo, nunca vi umcastelo tão grande, tão imponente. Não admira que as obras nunca maisacabassem.-Marianãocontinhaaexcitação:

-SóesperoqueumadasinovaçõesdequeFreemantlenosfalou sejaumaquecimento para este castelo enorme, senão voumorrer de frio só comestevestido...

Barbacena deu uma gargalhada, mas nem teve tempo de responderporque as cornetas soavam, e um criado fardado abria a porta dacarruagem.

OmarquêsdePalmelaestavaaoseu lado,antesque tivesse tidotempodepensarnoquedeviafazeraseguir.Baixinho,disse-lhe:

-Vamos subir esta escadaria, porqueo rei vai recebê-la ali em cima, nopatamar. Ainda se sente doente, não está em condições de a vir receberaquiabaixo.

MasoduquedeClarencejávinhaadescer,paralhedarobraço:

- Boa tarde, prima, fez boa viagem? - disse em francês, para alívio deMaria,queseobrigavaaolharparaquemfalavacomelaemlugardeparaas gigantescas tapeçarias e quadros, de um luxo como nunca tinha vistoigual.

- Sim, obrigada - foi tudo o que a rainha de Portugal conseguiuresponder, subitamente esquecida do nome do irmão do rei, e da suahistória.«Ah,jásei»,recordouunsdegrausmaisacima,«épaidedez filhosilegítimos, cinco rapazes e cinco raparigas, e as duas ilhas legítimasmorreram...» Pelos ilegítimos não podia perguntar, não queria falar dasquetinhammorrido,masderepenterecordouqueAlexandreelogiaracomentusiasmoaprincesaAdelaide:

-GostavadeconheceraprincesaAdelaide- foicapazdedizer, já quaseláemcima.

OduquedeClarence,queadoravacriançasetinhanetos«bastardos»daidade de Maria, apertou-lhe a mão com força, e inclinou-separa lhesegredaraoouvido:

-AAdelaideestáansiosaporaconhecer.Anossa ilhamaisnova teriaasuaidade...

Maria,felizmente,nãoprecisouderesponder,porquealiestavaorei.

- Minha pequenina rainha de Portugal! Maria, prima, que prazer emrecebê-la aqui - exclamou George IV. Com a sua casaca decorada demedalhas, o rei saltitava entre um pé e o outro, efusivo, e num impulsobeijou-lhea testa.Mariapensoudepressa, «velhoe louco»,mas deixou-seabraçar,comosefosseumaboneca.

- Linda, linda, não é linda - gritava o rei, para os cortesãos que arodeavam.Mariaolhouàvolta,ocoraçãoabater-lhedescompassadamenteperantetantosrostosestranhos,masaliestavamPalmelae Barbacena,umpoucoatrás,mascomoumfarolàvista.

- Vamos para dentro, que se morre aqui de frio. Fechem-me essasportas,poramordeDeus-continuavaorei,dando-lheamãoepuxando-apara um corredor a perder de vista, um tapete encarnado a meio, asparedes cheias de quadros de antepassados, nas suasmolduras de ouro,osmóveistãobonitos,quelheapeteciatocar-lhes.

-São loucos, todos loucos,minhapequenaMaria,aminhafamíliaéumafamíliadeloucos-diziaGeorge,apontandoparaesteepara aqueleretrato-,masnósvamossentar-nosnosofámaisquentedasala amarela,mesmopertodalareira,sóeuearainhadePortugal, antesdecomeçarmoscomasapresentações.

Umamulherbonita,olhoscinzentos,cabelojáesbranquiçado,eumcolarde pérolas lindo a adornar-lhe o colo que o vestido de decote embarcodeixavadescoberto,aproximou-se:

-Meuqueridoirmão,possoquebraroprotocoloeapresentar-me?

Mariareconheceu-aimediatamente,eratalequalaimaginava. Comumavéniagraciosa,foiaprimeiraadizer:

-PrincesaAdelaide...

AduquesadeClarencecomoveu-se:

-MeuDeus,nomeiodetodaestaconfusão,sabequemsou.

Epuxando-aparasi,abraçou-a:

-Estátãobonita,minhapequenina,equebemlheficaesseverde.Temosmuitoqueconversar.

Masoreitirou-lheMariadosbraços,ereivindicou:

- Aqui o rei sou eu - disse com um sorriso trocista -, e é comigo que anossa prima-rainha vai conversar. Estive a tentar convalescer maisdepressa para a poder receber, para a Adelaide me roubar já acompanhia?

Mariasorriu-lhe,ligeiramenteassustadacomtantaefusividade-teriadelembrar a Barbacena que esta família real não se comportava como osoutros ingleses -, deixando que o rei a arrastasse para uma salaimponente,osofáprometido,umdeentremuitos,juntodalareira.

Sentou-seprimeiroorei,que,batendonaalmofadaaolado, insistiu queicassebemperto,enquantoosconvidados iamenchendoa sala,todos depé,atéqueGeorgeIVsedecidisseamandá-lossentar.Mas aoreieram-lheindiferentesos calosdas senhoras,ouo reumático dos senhores, por issonão disse nada, entretido que estava a pediraMaria que lhe contasse ahistória da sua vida. A rainha começoupor recitar aquilo queBarbacenalhe recomendara, mas em breve já se tinha esquecido do guião e falavaabertamente,osgestosinfantisaacompanharemasdescriçõesdasplantasedosanimaisdoseuBrasilnatal,asgraçasdassuasirmãsmaispequenas,ashistóriasdamãe.

George IV, por seu lado, mostrava-lhe as três ordens portuguesas querecebera,dadaspelo«bomreiJoãoVI»,pelaajudaaPortugal.

-Fomos iéisaPortugal,comomandaaaliança,efaremostudo paraqueoseutiodeixeotronoquelherouboueodevolvaàmenina-rainhaqueaeletemdireito.

Mariarespondiacomumsorrisocontente.

- Vai ver que vai ser rápido - continuava o rei, e Barbacena e Palmela,que se tinhamcolocadoestrategicamentepertoparaouvir fragmentos doquesedizia,olharamumparaooutro,satisfeitos.

Maria, que perdera por momentos a postura rígida de «pupila» deBarbacena,perguntou:

-Masoseugovernonãopensaomesmoqueomeuqueridoprimo,poisnão?Parecemmaisinclinadosparaapoiaromeutio.

O rei deu uma das suas gargalhadas histéricas, que os seus súbditosconheciambem:

- Wellington, Wellington, venha cá - disse, fazendo sinal ao primeiro-ministro, que conversava com um homem que Maria reconheceu serAberdeeneoutrosdoisquenuncatinhavisto.

LordWellingtonaproximou-seimediatamente,eoreidissealto:

-Wellington,meuamigo,temosaquiumarainhade9anosqueestá tãoespantadacomoeu,comasincongruênciasdonossosistema.

Wellington beijou a mão a Maria, escondendo para si a vontade decomentar que a idade mental de ambos seria muito próxima, masrespondeucomoseestivesserealmenteinteressadonaquestão:

-Algumadúvidaquepossaesclarecer,minhasenhora?

Maria procurou os olhos do tutor, arrependida de ter sido tão franca,masoreinãolhedeutempodehesitar:

-Repitalá,minhaqueridaprima,oquemeacaboudedizer.

Sem outro remédio, Maria endireitou as costas para se sentir maior erepetiu:

-SuaMajestadedizia-mequeapoiavaaminhacausa,eeudisse-lhequeoreipareciaterumaopiniãoeoseugovernooutra...

Wellington conteve a surpresa. Não estava decididamente à espera deuma pergunta destas de uma criança. Olhou para Palmela e Barbacena,como que a acusá-los de terem ensaiado a rainha, e os doismarquesesentreolharam-se preocupados, desesperados por não se poderem incluirnaconversa.

Oreidavagargalhadascadavezmaisaltas:

- Fantástico, prima Maria, fantástico, conseguiu deixar sem pio opomposo domeu primeiro-ministro, coisa que nem eu, nosmelhores dosmeusdias,consigo.Aiquenãomepossorirtanto,queahérnianascostasnãoperdoa.

Apesar de desconcertada, Maria acompanhava o riso do rei comumsorrisoaberto:

-LordWellington-disseMaria,comoseuarmaisangélico-,não queriameter-meempolítica,estavasóatentarperceber...

Wellingtonnãoperdeunemacompostura,nemaironia,eolhando paraMaria,masrespondendoaorei,retorquiu:

-ComoVossaMajestadesabe,nestepaísopovonãodesejacolocartodoopodernasmãosdeumrei.Comboasrazões...

Orei icousubitamentezangado.Nãoerasóopaiquemudava dehumordeumsegundoparaooutro,pensouMaria,enquantoosoberanosepunhaempé,comaajudadeumcriadoatento,edizia:

- Adiante, deixemos esta conversa para outro dia, que não me pareceque a nossa pequenaMaria queira sabermais nada sobre os podres dapolítica nacional, já lhe basta estar aqui num exílio forçado.- E batendopalmas,chamouasiosconvidados:

-Vamoscomeçarasapresentações.

Durantequaseumahora,Maria,aoladodorei,foiapresentadaa umrordegentesem im.Nãofoicapazdereterumnome,eascarasmisturavam-senumabandadenarizeseolhos,cabelosejoias,comosefossempeçasdeumjogoqueaindaestivessepormontar.

Seguiu-seumbanquete,eMariaabriuabocadeespantoquandoentrouna casa de jantar de Windsor, tentando guardar na memória todos osdetalhes das paredes forradas de quadros, de pé-direito tão alto comonunca vira, as portas demadeira, pintadas a ouro, os reposteiros de umveludorosa-vivoeumaclaraboiaimensa,porondeentravaaluz daLuae

seviamasestrelasabrilharnocéu.Amesa,deumcomprimentosem im(«quem está numa ponta não faz ideia de quem se sentana outra»,murmurou, espantada), cheia de comida, servida em salvasde prata etaçasdecristal, tudodeumtal tamanho,quesesentiuumdoshabitantesdeLilliput,nashistóriasdeGulliverqueamamãelhecontava.

-Majestade,venhasentar-senestapequenamesa-disse-lheaprincesaAdelaide, levando-a pela mão em direção a uma mesa redonda, a únicacom lugares sentados. O rei, felizmente, distraíra-se a conversar com umdos seus irmãos, e a duquesa de Clarence aproveitou o espaço para lheperguntarseestavaasuportarofrio,oqueaprendianas lições,perguntasde resposta fácil, como con idenciou depois Mariaa Leonor da Câmara.Mariasóqueria fazerumapergunta,massabiaque tinhadeserdiscreta,porque, a inal, estava perante a futura rainha de Inglaterra, quandofinalmenteGeorgeIVmorresseeoduquedeClarenceherdasseotrono.

-Nãoháprimosdaminhaidade?

Adelaiderespondeusemhesitações:

-Muitopoucos,masamaispróximadotronoéumarapariga.

Mariaesperouqueoseuardesurpresaparecessegenuíno:

-Umarapariga,comoeu?

Adelaide pensou «se te contasse que só George IV tem vinte e cincoilhos ilegítimos e quando casei omeumarido já tinha dez ilhos de umaatriz, todoselesaquipresenteshoje,paranão falarnosnetos comque sedeleita»,masmanteveavozsegura,eatémeiga,quandorespondeu:

- Sim, Alexandrina Vitória, Drina como lhe chamamos, e que tema suaidade.

Mariaolhouemseuredor,ansiosa:

-Estácá?Gostavadeaconhecer.

Adelaidefezumsorrisoenigmático:

-Foiconvidada,mashojenãoestá.Omeucunhadomorreu,e Drinaviveumpoucoafastadadacorte,porqueasuamãenãoachaquesejamosboacompanhia...

Mariasobressaltou-se.Comoéqueerapossívelqueaúnicaherdeiradotronodeum Impériopoderoso comoestenão sedesse com os tios a queiriasuceder.

Adelaideriu-sedoarespantadodarainhadePortugal:

- As famílias, e as famílias com poder, nunca são assunto fácil, como aminhaqueridasabe...

Mariaanuiucomacabeça,epensouquesecalharaprincesanemsabiaoquanto,eAdelaidecontinuou:

-OpaideVitória, oduquedeKent, era irmãodomeumaridoedorei,evidentemente.Umhomemencantador,quecasoucomumadas irmãs dopríncipeLeopoldo.

-LeopoldodeCoburgo,viúvodaprincesaCharlotte-disseMaria,rápida.

Adelaidepareceusatisfeita:

-VejoquetemestudadoanossaHistória.

Maria sentiu-se atrapalhada - se dissesse que sim, talvez Adelaidenãolhe contasse mais nada sobre Vitória... Optou pelo silêncio, queesperavapassassepormodéstia,eaprincesacontinuou:

-AirmãdopríncipeLeopoldo,Victoire,eraviúva,jácomdois ilhos,masapaixonou-seecasoucomomeucunhado,e icouàespera debebépoucodepois. Esse bebé é Vitória, que neste momento é a herdeira.Simplesmente, por motivos que agora pouco importam, após amorte doseupai,tinhaelaoitomeses...

Mariaexclamou,comosenãosoubessedenada:

- Só oito meses? Coitada, não se deve lembrar do pai... eu pelomenoslembro-me bem da minha mãe. Tinha 7 anos quando morreu - disse,

agitada.

Adelaidefez-lheumafestarápida:

-Étristeperderospais,quandosomosaindapequenos...

Marianãoqueriacomover-se,einsistiu:

-MasaprincesaVitóriaficouaviveremInglaterra?

-ViveemLondres.Amãetemmuitoorgulhona ilha,eVitóriavivecomamãe nos aposentos que o rei lhe cedeu no Palácio de Kensington. Temmuitaslições,comoaMariadeveter,eaduquesadeKentsóadeixadar-secom algumas crianças que considera serem amelhor companhia para afilha...

Mariaentendeuacrítica,masnãoresistiu:

-Nuncasaidecasa?Gostavadeaconhecer...

Adelaidesorriu:

-Vouconvenceroduqueadarmosumbaileparameninasdasua idade,eaídecertezaqueaduquesadeKentadeixair,mastalvezeu,antesdisso,consigaconvencê-laafazer-lheumavisita.

Talvezacunhada,quesonhavacomodiaemqueVitóriafosserainhadeInglaterra, que a preparava com os melhores professores, se sentisseseduzidaaapresentaraprincesaaumacriançaquejáera rainha,mesmoantesdeterfeito10anos.

Mariaolhou-acheiadeesperanças:

-Achamesmo?TalveznospudéssemosencontraraindaantesdoNatal,talvezpudesseirvisitá-laaKensington...

AdelaideolhouparaMaria,epensounocontrastequefaziamestas duascrianças, uma rainha de nome, mas sem trono, e pelo que sabia compoucas possibilidades de o recuperar, a outra sem o nome, mas a serpreparadaparaherdarumImpério.MasapequenaMariaparecia-lheumacriançamaislivre,maisfeliz,doqueaprisioneiraVitória,queaindadormia

noquartodamãe,eaquemsódeixavamdescerasescadasdemãodadacomumadama,convencendoacriançadequealguémpoderiavirportráse lançá-la pelos degraus abaixo, na tentativa de a verem desaparecer dafacedaTerra.

Gostava francamente de Vitória, e fazia-lhe pena vê-la fechada nosquartosdopalácio,apenascomoscãeseasbonecasporcompanhia-fazia-lhe bem brincar com outra criança, pensou, decidindo quehaveria deencontrarmaneiradeaslevaraconhecerem-se.

ApertouamãodapequenaMaria:

-Voufazertodosospossíveis.

Mas o rei George estava de novo concentrado na sua mais recente«boneca», e chamava já mais gente à mesa, para conversarem com ela.Depoispôs-seempée,levantandoocopo,exclamou:

- À saúde da rainha de Portugal - e todos os convidados levantaram ocopo.

Barbacena e Palmela foram os primeiros a erguê-lo. Maria viera evencera.Osucessodareceçãoestavaàvista.

Erahoradasdespedidas.QuandoMariadesciaasescadas,acenandoumadeusa todaacortequese juntaraparaaverpartir,o rei exclamou altoparaquetodosoouvissem:

-Ésoberbaestamenina.Tantocharme,tantacompostura.

OduquedeClarencedeuobraçoàmulheredisse-lheaoouvido:

-OqueelefazparairritaraduquesadeKent.

EAdelaiderespondeu:

-Talvezsejaaliçãodequeanossacunhadaprecise,paraperceber quemanteraDrinalongedenósnãoavaiajudaremnada.

Malasportasestavamfechadas,eacarruagembalouçavasobreaspedrasdacalçadaquedesciadeWindsor,Mariaperguntou:

-Portei-mebem?

Barbacenapegou-lhenamãoebeijou-a:

-Melhornãopodia,estoumuitoorgulhosodesi,senhoraD.Maria. Hojemesmovouescreveraoseupaiacontartudo.

Maria deixou-se cair para trás, tapando-se com uma manta quente, eminutos depois estava a dormir. Só tinha pena de não ter tido nem umminutoparafalarcomAlexandre.

Caroprimo,

Anoitejávailonga,mastinhadelheescreveradarnotíciasdaprimeirareceção da nossa rainha pelo rei. Estava tudo preparado ao mais ín imodetalhe, mas a rainha, diz-me Barbacena, portou-seextraordinariamente.Digo-lhe,primo,queestavalinda,numvestidodecrepeeseda,mangasembalão,queapertavamapartirdocotovelo,univestidodedecotedescaído.Umamulheremminiatura,o cabelo(maisescuropela faltade soldoquequando chegou do Brasil) alisadoà frente, com uma trança enrolada edecoradacom loresdediamante.Masomelhordetudosãoasfeições,tãodoces e ingénuas, e a alegriarápida a iluminar-lhe a cara. Nãome custanem por umminuto acreditar que tenha conquistado toda a família real,como Barbacena garanteque aconteceu. 0 marquês diz que a princípioparecia tímida,mas que depois a loucura do rei George a deixoumais àvontade. Loucura, foiessa a palavra que usou, e na família de Hannoverqual deles é que nãoo é,mas que tanto pode dar para a paixão rápida,comoparaoódio,enestecasotivemosafelicidadedequeoreidetestasseD.Migueleadorassearainha.

Maria veio particularmente entusiasmada com a promessa que lhefoifeita,deumencontrocomapequenaDrina,comolhechamamemfamília.

Barbacena e Palmela icaram entusiasmados com a ideia - o primeiropasso é sentar a nossa rainha no trono, mas tudo será mais fácil se, nofuturo, a aliança dos nossos dois países fosse acompanhada portuna

amizadesólidaentreasduasrainhas.

NemoscomentáriosirónicosdelordWellingtonparecemterarrefecidooentusiasmodePahneladequeosoberanoobrigueogovernoamudarasuaposiçãoemrelaçãoaPortugal.Vamosver.

Boanoite,primo,porqueavela jáestáaacabar,easuapaciência paraleros relatosque lhevou fazendocertamente também.Masacredite,nãotenhoaindaaquininguémemquemconfiarosmeuspensamentos,porissosirvo-me de si como uni diário. Espero que não leve amal, mas as suasrespostasprontasanimam-meacontinuar.

QueDeusoabençoe,

LeonordaCâmara

PaláciodeKensington,30dedezembrode1828

stáali,estáali-disseMariaaLeonordaCâmara,queaacompanhavanestavisitanão-oficialàduquesadeKenteàprincesaVitória,quefinalmenteatiaAdelaideconseguiramarcar.

KensingtoneraumavilanosarredoresdeLondres,eopalácio icavanocimodeumpequenomonte,rodeadodeárvoresecamposverdes.

-D.Leonor,olhe,olhetantaschaminés, tantasalasdeumamesma casa,é como se começassem a construir numa ponta e cada um fosseacrescentando mais um bocadinho - explicava Maria. A quantidadedechaminés continuava a fasciná-la, assim como os limpa-chaminés,que viapassarnas ruas, as caras chamuscadas, as vassouras comas suas pontasespetadas.

-Maséexatamenteassim, senhoraD.Maria.Ospaláciosvão crescendocomasfamíliasqueosvãoocupando...

-Lembro-meagoraqueomeupaifalavamuitasvezesnoPaçode Sintra,quevinhadesdeosmouros,equetinhaduaschaminésenormes...

Leonorassentiucomacabeça:

-Vai gostar doPaçode Sintra. É um sítio lindo, tenho a certezade queseráumdosseuspaçosfavoritos...

-Achaqueestoubemvestida?-perguntou,derepentetímida.

-Estálinda,senhoraD.Maria-disse-lheamestra,puxando-lhe asaiadovestidobranco,comumagoladerendajuntoaopescoço.

Passandoasmãosnocabeloanelado,voltouaperguntar:

- E a pulseira de pedras do Brasil que lhe trazemos? Acha que vai

gostar? A duquesa de Clarence disse que ela só gosta de bonecas e decães...Eunãobrincocombonecasdesdeodiaemqueaminhamãemorreu- disse, subitamente séria. Não ia contar a Leonor onde estavaa suaboneca favorita, a Maria da Glória Pequenina, porque senãoaindacomeçavaachorar...

Leonor da Câmara percebeu que não era a altura de lhe perguntarporquê,eacrescentounumtommaisligeiro:

- Podem passear no jardim, hoje está um dia lindo, e poucas meninasdevem saber tanto de plantas e lores como a senhora D. Maria - disse,encorajadora.-SabequesóagoracomeçamachegaraInglaterra espéciesvindasdoBrasil,edaÁsia,comooshibiscos,osrododendros eascaméliasdequemeestásempreafalar?

Mariaolhou,animada:

-Seráquetemcameleirasnojardim?Ouervasdecheiro,seidistinguirasalsa dos coentros, o que é muito di ícil, e os ingleses põemhortelã emtudo,devemterhortelãnasestufas,não?

Acarruagemnãoparounaportaprincipal, epercorriaagoraa estradaparalelaaomurode tijolo,emdireçãoaumaporta lateral. MariaolhouD.Leonor,subitamentedesobrolhocarregado:

-Nãomerecebemnopátiocentral?-perguntou,preocupada.

-Nãoé faltade respeito, senhoraD.Maria,massimplesmenteporqueaduquesadeKentsóocupaumapartedosaposentos, temapenasdireitoapartedeumandar,eaentradaéaquipelolado.

Mariaabanouacabeça,incrédula:

-NãoadmiraqueaduquesadeKentnãogostedoreiedoscunhados,D.Leonor. Tem algum sentido deixar o palácio vazio, e dar à herdeira dotronoumcantinho,cujoacessoéaindaporcimapelaportadoscriados?Semeperguntar,vou-lhedizerquetemtodaarazãoemestarzangada.

Leonortevevontadedesebenzerdesusto:

-Nãoseesqueçadequeassuaspalavrastêmopesodasdeumarainha-disse,diplomata.

MasMaria,quedesciaosdegrausdacarruagem,ripostou,amuada:

-Muitogostamdemelembrarquesourainhaquandovosconvém...

«Istopodenãocorrerbem,istopodenãocorrernadabem»,murmurouparasimesmaapobreprofessora.

Vitória era mais pequena do que Maria, mas os seus cabelos loiros eolhos azuis erammuito parecidos comos da rainha de Portugal. Com umvestidobrancodeumarendatrabalhadaeumacinturadelicada, marcadaporumafaixaazul,pareciatambémmaisnovaemaisfrágil.

TinhamsidoapresentadaspeladuquesadeClarence,quedepois tentaraconvenceracunhadaeaspreceptorasdeambasascriançasa saíremcomela:

- Deixem-nas sozinhas, senão não vão ter qualquer hipótese de seconheceremmelhor-insistiu.

Leonorpreparou-separaaseguir,masamãeeapreceptorade Vitórianãoarredavampé.

- Vitória nunca ica sozinha, em circunstância alguma, por precaução -explicouamestraLouiseLehzen,eamãedaprincesaanuiucomacabeça:

-ÉdemasiadoimportanteparaInglaterra,paraquepossacorrer perigo,ealémdissoteminimigos,pobrecriança.

LeonordaCâmaraolhouparaaduquesadeClarence,quearregalouosolhosaocéu,comimpaciência:

- Por amor de Deus, minha querida, que disparate. Inimigos? Aqui,dentrodopalácio?Umacriança temdeteralgumespaçoparasi,estamosaquinasaladolado...

Vitória ouviu a discussão com impaciência, e de repente bateu opé,zangada:

-Mãe,poramordeDeus,nãomeenvergonheemfrentedestaspessoas,saia,porfavor.

Maria olhou para a cara da duquesa de Kent, acreditando vê-laenfurecer-se, mas não, a mãe de Vitória parecia assustada, e pronta apedirdesculpa.

Embaraçada,justificou-se:

-Ninguémacreditariaqueestaéaminhaterceira ilha,pelaforma comomandaemmim,maséumacriançaencantadoraquandoquer-disse,masaverdadeéquefoisaindodoquartodebrinquedos,para nãosofrermaisnenhum vexame. Lehzen, no entanto, não arredou pé,sentando-se numcadeirãonooutrocantodasala,comumlivronamão,enquantodizia:

-Podemir,eufico.

A porta fechou-se, e Maria deixou-se escorregar para o chão. Poreducação,nãoiadizeraestameninaarrogantequeascriançasqueaindabrincamcombonecasnãofalamassimàmãe,mascalou-se.

Fascinadacomosmóveisemminiaturadecadaumadassalase quartos,as cópias ao detalhe de quadros dourados, os pratos e os talheres sobretoalhasbrancasderenda,esticouamãoecomeçouabrincar.

-Queméqueadeixoumexernaminhacasadebonecas?-disse Vitória,altiva, mas Maria continuou a abrir portas de armários e amexer nosvestidosemminiaturacomosenãoativesseouvido.

Vitóriaenfureceu-se:

- Estou habituada a queme peçam autorização antes demexerem nasminhascoisas-insistiu.

Mariaolhou-a, trocista,e,paraespantodaprincesa,respondeu-lhe numalemãofluente,queaapanhoudesprevenida:

-Vê-sequevivesozinha,Vitória.Eununcativeumbrinquedoemqueasminhasirmãsmaisnovasnãomexessem,eaminhamãenunca,masnunca,medeixariafalarassimaumaconvidadaemminhacasa.

ApequenaVitória parou, estarrecida. «E o que se fazia agora?» Nuncaninguém,novoouvelho,seatreveraafalar-lheassim.

- Parece-me que não lhe explicaram bem quem é que eu sou - disse,muitodireita,esemsairdomesmosítio.

Maria, que se concentrava na cama de dossel da casinha de bonecas,sentiuamostardasubir-lheaonariz,largouoquetinhanamãoepôs-sedepédeumsalto,ficandodezcentímetrosmaisaltadoqueaoutracriança:

- Não quero ser malcriada, prima Vitória, mas parece-me que seesqueceram é de lhe dizer a si quem é que eu sou! Aminha professoradisse-me que a prima era muito inteligente e estudava imenso, massinceramente não me parece que sirva para muito - disse, zangada,voltandoafalarfrancês.

Vitória estava insegura. Era uma criança inteligente, habituada a vercumpridaa suavontadeàprimeira,masquesearrependiadepressa dosseusexcessos,que,aliás,confessavatodososdomingos,antesdamissa.

Porém,pedirdesculpa,epedirdesculpaaoutracriança,eraum assuntodiferente.

Tentoumaisumavez:

- Vou ser uma boa rainha. Estou a estudar para saber servir os meussúbditos, e desenvolver o país e o Império, mas não posso permitir queentremnomeuquartoemexamnasminhascoisas-disse,batendoopé.

Mariabateuodela,comaindamaisforça:

- E eu já sou rainha de Portugal desde os 7 anos, ilha de umaarquiduquesa da Áustria, da imperatriz e do imperador do Brasil, equandomeconvidamparacasadealguémnãomepassapelacabeçaqueseja preciso estar com salamaleques e vénias, ainda por cimaquando setratadeumacriançamaisnovadoqueeu.Equenemsequersabesevai,ounão,umdiachegaraotrono!

Vitória olhou-a, com os seus olhos muito abertos, como se a quisessecomer,ederepenteMariadeuumagargalhada:

-Aminha irmã Januária faziaessamesmacara,eucostumavadizerqueestava a ingir que era o lobomau da história do CapuchinhoVermelho.Acabe com isso, Vitória, ou quermesmo passar o resto datarde sozinhanesta casa enorme? É que se não me deixa mexer emnada, vou-me jáembora...Vá,mostre-meopalácio,nuncavivinum paláciodestetamanho-acrescentou num tom mais suave, dando-lheuma hipótese de sairairosamentedasituação.

Vitóriaorgulhava-sededizeraverdade,eodiavaamentirasinuosa e alisonja com que tantos a adulavam. A forma como Maria a confrontavafascinou-aeasuagargalhadacristalinacontagiou-a:

- Quer mesmo ver o palácio? - perguntou, aproveitando a saídaqueMarialhedava.

-Queroverasalaemquefoibatizada.Aminhaprofessoradisse-mequeeraaquinopalácio...-respondeuarainhadePortugal.

Vitória lançou um olhar a Lehzen, e Maria olhou para a mulherqueadormecerasobreolivro.

-Vamos,antesqueelaacorde-disse.

PercebeuahesitaçãodeVitória,masrepetiuaproposta:

- Só vamos a uma sala no palácio, nem sequer saímos destas paredes,venha, se quer sair rainha de um Império não pode icar à espera que asuapreceptoraacorde...

Vitóriasentiu-sepicada:

- Mas eu nem desço as escadas sem ser de mão dada com alguém,porquepodemempurrar-me...

Mariaolhou-a,incrédula:

-Com9anos?

-Nãoépela idade,aminhamãedizqueéperigoso,porquehápessoasquemequeremmatar...

Mariaolhou-acomoseestivesseaponderaraprobabilidadede alguémquererassassinaraherdeiradotrono:

-Nãoacreditonada,sabe?-disse,comosepensassealto. -Quemé queicaria a ganhar com a suamorte? Ninguém! Não hámais ninguém paraherdarotrono,ederestoaduquesadeClarencedizque gostadesicomode uma ilha, o marido dela faz truques de magiacom moedas queaparecematrásdaorelha,nãomeparecenadao génerodemandarmatarninguém, e o seu tio, o rei, sinceramente pareceu-mebastante louco,masfaloudesicommuitasimpatia,equeixou-sequequeriaqueestivessecomelenacorte,masqueasuamãenãodeixava.

Vitória olhava-a, cheia de admiração. O francês da rainha de Portugalnão era grande coisa, anotou, nem a luência das suas frases, masfascinava-aaquelamaneiratãopráticadeanalisarosproblemas.

- Vamos - disse Vitória de repente -, vou mostrar-lhe o quarto ondeestevepresoomeninodaselva,eoquartodaslágrimas,easaladacúpulaondefuibatizada.

Maria saiu atrás dela, em passos leves para não acordar a preceptoraalemã.

- O quarto do menino da selva? - perguntou, enquanto atravessavamsalashúmidasefrias,escuras,porqueasportadasestavam fechadas,comum ar abandonado - pobre princesa, o rei eramesmo um forreta se nãolhesdavadinheiroparaviveremmelhordoqueisto.

- Sim, há quase cem anos encontraram um menino numa mata aquiperto, quenão sabia falar, andavanasquatropatas - e riu, pela primeiravezabertamente-,gatinhavacomaspernaseosbraçoscomoosbebés, etrouxeram-no para aqui. Meteram-no naquela jaula ali - e apontou paraumajaulafeitadepaus,queagoraestavavazia-echamarammédicosparao observar, e depois convidavam pessoas para virem olhar para estemenino-animal,queacaboupormorrer...

Mariaolhouparaas sombrasquea luz fazianasparedes, ligeiramenteassustada:

-NoBrasilhaviahistóriasestranhas,eosescravosàsvezeseram postos

em jaulas como animais, a minha mãe e o meu pai não deixavam, masnuncaouvifalardenenhummeninodaselva...coitado.

- Pois é, coitado - disse Vitória. - Mas vamos agora ver a sala daslágrimas.

Correrampormaisumcorredorassustador,atéumaporta,que Vitóriaabriu. A porta de um quarto, com uma cama de dossel magní ica e, nacómoda de embutidos, estavam frascos e frascos de vidro, cada um comumaetiquetadepapelpardo.

-Dequemeraestequarto,dequemeramestas lágrimas? -perguntou,derepentenervosa,porque lhe lembravadealgumamaneira oquartodamamãenoBrasil.

- Este quarto chama-seRoomo f Royal Sorrow, e depois traduziu parafrancês,oquartodosdesgostosreais...

-Masdequemsãoaslágrimas?-perguntouMaria,aflita.

-DaprincesaCharlotte.O tioLeopoldoquisguardarestes frascos, paranoslembrarmosdas lágrimasqueelachoroudurantedoisdias parateroilho,easquechoroudepoisdesaberqueeletinhamorrido-disseVitória,numtomdramático.

Mariasentiu-seempalidecer:

-Da sua tia Charlotte?Quemorreunodia a seguir a ter o bebé, aqueteriasidorainha?-perguntoudeumfôlego,recordandoahistória quelhelembravasempreassaudadesdasuamãe,abrutalidadedoseu pai, tudoaquilodequefugia,tudoaquiloquequeriaesquecer.

Vitória olhou-a, com admiração. A inal, ao contrário do que Lehzen lhedissera, a rainha de Portugal não era uma ignorante, tinha a HistóriarecentedeInglaterranapontadalíngua.

-Sim,éporelatermorridoqueeusoutãoimportante-respondeucomnaturalidade.-Mashádiasemquegostavadenãoser-con idenciou-,nãogostonadadeviveraquifechada,denuncairàcorte,deamãeeoConroy,queodeio,nãomedeixaremiraosbailesedançar.

Mariafezumapirueta,eriu:

- Gosta de dançar? É a lição de que mais gosto, e acho que o meuprofessortambéméoseu.Éfrancês,muitoestranhomasmuitosimpático,queaparecesemprecomumacadelinharidícula,delaçonacabeça.

-OmestreSyms?Nãoacredito! Sãoasminhas lições favoritas também.Temosmesmodeiraumbaileedançaratédemadrugada-disseVitória,osolhosabrilhardeentusiasmo.

- A tia Adelaide disse que ia dar um baile demeninas, e achava queaesseasuamãeadeixavair...

Vitóriaacenouquesimcomacabeça:

-Secalhar,secalhar,seforatiaAdelaideapedir...

Ederepente,preocupada:

- Vamos, vamos, porque se não chegarmos ao quarto de brinquedosantes de a Lehzen acordar, ico de castigo, e então é quenão vou a bailenenhum. -Epordelicadezanãoacrescentou«porqueacham quearainhadePortugalémácompanhiaemelevaafazercoisasperigosas».

- E a sala do seu batizado? - protestou Maria, ofegante, enquantoatentavaacompanhar.

-Conto-lhedepois-disseVitória, levando-adiretaàsaladebrinquedos.Abriramaportadevagarinho,eLehzenaindadormia.Vitóriasentou-senochãoeMaria fezomesmo, e enquantobrincavamcoma casa de bonecasVitóriacontou-lhecomooreiproibiraospaisde fazeremumbatizadocoma cerimónia que desejavam, e ainda izerauma tal ita em relação aosnomesquelhequeriamdar.

- Não queria que fosse Vitória, como a minha mãe que é Victoire,nãoqueria que me chamasse Georgina, porque não desejava dar-me oseunome,nãoqueriaquemechamasseCharlotte,porqueeraonome da ilha,epor im,quandooarcebispodeCantuária jádesesperava, comaáguaàmeia hora na mão, e a minha mãe a chorar baba e ranho, lá vociferou«Pronto,ponhamonomedamãe,massóaseguiraodopadrinho»,queéo

czardaRússia,eláfiqueiAlexandrinaVitória.

- Não admira que a sua mãe deteste o rei - disse, indignada, Maria, eVitóriadestavezdeuumagargalhada:

-Aopédesi,queridaprimaMaria,euafinalnuncadigooquepenso!

Nessanoite,quandoseajoelhoujuntodacamapararezarà imagemdeNossaSenhoradaGlóriaqueamarquesadeAguiar lhedera àpartidadoRiodejaneiro,MariaagradeceuaDeustersidoa ilha primogénitaemuitoamadadePedroeLeopoldina,aMariadaGlóriaqueridadosbrasileiros,equando se deitou e fechou os olhos, o sonolevou-a à varanda dospapagaios,ondeavozdamãe lhecontavatodososdetalhesdas festasdoseu batismo, dos cantos e das dançasnas ruas, dos arcos de lores, daspessoas que saíam à rua para a verpassar numa liteira decorada comgalõesdeouro,aocolodasuamamãe.Quesortetivera,suspirou,enquantoseviravaparaoladoeadormecia,feliz.

Meucaroprimo,

Antes demais, Bom Ano Novo. Espero que o próximo ano nos traga amudança por que tanto esperamos. Por aqui a aceitação da nossarainhatem sido fulgurante, e hoje acompanhei a senhora D. Maria a visitar aprincesa Vitória, a esperança de Inglaterra. Para mim foi tuna visitaimportante, porque a conversa que mantive com a duquesa de Kent, aduquesadeClarenceeapreceptoraalemãdacriançafoi muitoelucidativa,nemsemprenomelhorsentido.Seachamosqueanossarainhavivianumambiente conturbado e promíscuo, não sei oque dizer desta. A pobre D.Vitóriaviveenclausuradanumpaláciocomalgumassalasmagní icas,masque em geral está mal cuidado, bolorento e escuro, presa, e acho que otermoébastante literal,por tunamãe(muitoencantadora,masnervosaeassustadiça) dominada poruni homem de tuna condição social inferior equemeparece (pela conversa comaduquesadeClarence) tuna criaturasem escrúpulos, queao controlar a duquesa pretende controlar a futurarainha,eganharmuitocomisso.

A duquesa de Clarence, aliás, explica a ligação estreita, demasiadoestreita, entrea senhoraD.Vitóriae apreceptoraalemãcomoresultanteda revolta que a criança sente contra o «amigo» da mãe, que, ao queparece,atratacombastanteagressividadeeautoritarismo.Imaginequeapreceptora alemã não a deixa um minuto sozinha (hoje, e apesar dainsistência, nem aceitou sair do quarto de brinquedos paraque as duascrianças se conhecessem melhor!)., chegando ao cúmulode lhe ler umahistóriaenquantoseveste,paraquenãoconversecomascriadasoucomqualquer um dos seus serviçais. Como é possível queuma futura rainhacresça assim alheada domundo, enredada numa teia demedos, que temcomo único objetivo, está bom de ver, levá-la a con iar apenas nos quealegamdefendê-ladetaisinimigos?

No meio de tudo isto a normalidade da princesa, em si, só podesurpreender. É encantadora à vista, mais pequena do que a senhora D.Maria, e com o cabelo de uni louro mais escuro, e parece-me muitointeligente e culta - perguntou-me coisas sobre Portugal que,meuprimo,suspeitoseremdesconhecidasdanossapequenarainha.

Masnão julguequesóaelaviqualidades.Senti-memuitoorgulhosadanossa rainha, é segura de si, determinada, exprime-se com imensafacilidadeedeformacativante,eoseucharmeeasuasimpatiapermitem-lhe levar a água ao seumoinho, semamenordi iculdade.Que os adultosicam sempre encantados, vejo a todo omomento, masconfesso que nãoesperava que conquistasse a princesa da maneira como conquistou,porque tenho a certeza, pela forma como, no inal dodia, a pequeninaVitória olhava para a sua prima Maria, que a nossarainha conseguiuestabelecer uma espécie de supremacia sobre ela, talvez porque tenhatrazidoluzaumaexistênciatãoescura.Porquea senhoraD.Mariatem,defacto, uma alegria contagiaste, uma forma con iante de se entregar àspessoaseaofuturo,semmedo,comoseestivessecertadequeháunianjodaguardaquevelaporela.Nãoduvidodequemuitodestasuamaneiradeser resultadoBrasil ondenasceu,masquantomaisa conheçomaiscertaestoudequeoamorconstanteeapaixonadodasuamãefezdelaoqueelaé.

Bem, vou deitar-me, que já é muito tarde, e os meus olhos acusamocansaço de tantas horas a escrever com tão pouca luz. Peço-lhe queentregueosmeusvotosdeBomAnotambémaomeutio,seupai.

EqueDeusvosabençoe,

LeonordaGâmara

ClarenceHouse,19dejaneirode1829

lexandrenãoconseguiaconcentrar-senoslivrosquetinhaàfrente.Pôs-seempé,caminhouatéaoquartodevestirdairmãmaisvelha,ondeEugéniaconversavaaltocomDomingos.

- E se izessem menos barulho? Os manos pequeninos todos juntosfazemmenoschinfrimdoquevocês-protestou.

Mas como resposta só recebeu uma almofada atirada com força porEugénia,easgargalhadasdeDomingos.

Numtomdequemnãodavagrande importânciaaoassunto,Alexandreperguntou:

-AquehoraschegaasenhoraD.Maria?

NãoaviadesdeodiadeNatale,porinexplicávelquefosse,sentiaasuafalta. «Que disparate, para que é que quero mais crianças nesta casa»,dissea simesmo, comremorsospor tratar,mesmoque sóno segredo dasuacabeça,arainhadePortugaldeformatãoirreverente.

-Se izessemmenos barulho tinhamouvido a carruagem chegar -disseDomingos,eAlexandresobressaltou-se.Osilênciocaiusobreo quartopormilésimosdesegundo,atéqueEugéniainsistiu:

-Váláabaixo,Alexandre,empate-aumbocadinho,porquesea mãevêoestado em que este quarto está no dia em que recebemosa rainha, põe-nosdecastigo.

Felizcomadesculpa,queaindaparamaislhegranjeavaalguns créditosjunto da mana, Alexandre desceu os degraus dois a dois, parando pararespirarfundoecomporocasacoantesdeentrar nasala,ondeD.Mariajáestava sentada a brincar com osmais pequeninos, soltando exclamaçõesdealegriaquandoobebélhefezumenormesorriso.

- SenhoraD. Eugénia, estão tão queridos. Se imaginasse o bemquemefaz brincar com eles, levava-os todos os dias a Laleham House -dizia,entusiasmada,eamarquesaolhava-a,comovida.

Quemavissenoencontromensalaosexilados,hirtaealtiva,esticandoamão para a dar a beijar sem a menor hesitação, teria di iculdade emimaginá-la com um bebé ao colo, e as outras criançaspequenas atreparem-lheporcima.

-Sabe,achoquevouterdezenasedezenasdefilhos-dizia,fazendoriramarquesa, que achava imensa graça a estes exageros dramáticos de D.Maria,eadoravaquandosedescontraíaedeixavavoltarosotaquecantadoàssuaspalavras.

Alexandresorriuparaamãe.Tambémelesentiaumapertono coraçãoquandoaviaassim.

Mariapressentiuquehaviamaisalguémnasalaevirou-se,como bebéapertadocontrasi,eaoverAlexandreexclamou:

-Olhaomeuprofessordepatinagem,quedesapareceu!

Alexandre beijou-lhe a mão e sentou-se próximo, subindo para osjoelhosumdosseusirmãos.

-Bempreferiadar-lhe liçõesdepatinagemnogelo, a irparaas aulas -respondeu,subitamenteenvergonhado.

-Amanhãédomingo,por isso temdeme levaraoringuedepatinagemde Hyde Park. Pode, não pode? - perguntou à marquesa, quesedesmanchouarir.

-Amanhã logosevê, senhoraD.Maria,nãosei sedepoisdeuma tardedebailevaiterpernasqueaguentemapatinagem-respondeu.

- Ah, pois é, o baile... Alexandre, prometa que não me abandona -implorou-lhe,osolhosazuisbrilhantes. -OmestreSymsdizqueeu já soucapazdedançar todas aquelas coisas,mas tenhomedodemeenganar, ederepentetodaaquelagentecairumaemcimadaoutraporminhaculpa.JáestouaverotítulodoMorningChronicle.

Amarquesaeofilhoriram,eAlexandredeuporsiadizer:

-Estarei lá sempreaoseu lado,VossaMajestade,mashaverá melhorespartidosdoqueeu.

Maria nem deu pelo tom quasemagoado,mas amarquesa de Palmelaolhouofilho,discretamente,eficoupreocupada.

O próprio Alexandre pareceu ter-se surpreendido a si próprio, eapressou-seaacrescentar:

-Promete-meumadança?

Mariaestendeu-lheamão:

-Querjá?Estouabrincar,maslogoànoitepormim icariamuito felizdedançar todas as vezes consigo, porque pelo menos pisavaos pés a umportuguêsqueteriadecertezaahombridadedenãosequeixar.

OprimoWilliamrecebera-anohalldeentradacomumasaudaçãoefusiva,eatiaAdelaideabraçara-acomgenuínoafeto,afastando-adepoisparaavermelhor,elogiando-lheovestidobrancocomumdecotedrapeado,osombrosàvista,eopescoçoaltoesemjoias,porqueasmeninasnãousavamjoiasnestastardesdançantes,queMariarapidamentepercebeunãoteremnadadedespretensioso,comooconvitefizeracrer.ComoEugéniaPalmela,tambémMariaconseguiraconvencerapreceptoraadeixá-laencurtarabainhadovestido,quedeixavaverasmeiasbrancaseasbailarinasdouradas,compequenoslacinhos.

-Vitóriaestácá-disse-lheaduquesaaoouvido,enquantoalevavaparauma sala cheia de gente, velhos e novos, que se calaramquando aviramchegar. Maria esteve tentada a olhar para o chão, mas lembrou-se dasrecomendações de Barbacena, e manteve a cabeça erguida,correndo ascarasquesevoltavamparaelacomcuriosidadeeemquedepois,satisfeita,viaadmiração.

-Quantas pessoas estão? - perguntou Maria, baixinho, porque aosseusolhospareciammaisdequinhentaspessoas,deentreasquaisasmeninaspareciammenosdemetade.

Adelaideapertou-lheobraço,encorajadoramente:

- Parece muita gente, porque ainda não as conhece. Mas olhe, Vitóriaestáali,aprecisardealguémcomquemconversar.

Maria teve vontade de lhe acenar, mas conteve-se. Vitória, no entanto,tinha-avisto,efez-lheumpequenogestocomamãoaassinalarofacto.

-Masespere,antesdissotenhodeaapresentaratanta,tantagente quemepediuexpressamenteparaterahonradeaconhecer-disse Adelaide,edurantemaisdeumahoraMariafezerecebeuvénias, tentandoemvãodecorarosnomesmaisestranhos.

Acertaaltura,semsabercomo,reparouqueVitóriaestavaaoseu lado.Aproveitando a oportunidade, pegou-lhe namão e disse, comum sorrisodealívio:

-Umacaraconhecida.Vamosfugireverestepaláciotambém?-propôs.

Vitória deixou a mão presa na de Maria, e puxou-a em direção a umreposteirodeveludopesado:

-Venha,háaquiumasala,ondepodemosfalar.

E puxando a cortina, entraram as duas para uma salinha forrada deestantes,cheiasdelivros:

-ÉogabinetedomeutioWilliam.

Maria deixou-se cair num cadeirão, os braços ao lado do corpo, os pésemcimadeumbanquinho,eriu:

-Estouexausta.

A princesa inglesa olhou-a com admiração. Era umbocadinho estranhaestaprimarainha,tãodiferentedaquiloqueimaginavaser quandoumdiachegasseaotrono,enoentantofascinava-a,envoltanumanoveladignadosromances que lia às escondidas, em que um tiomau icava com tudo e aheroína era obrigada a esconder-se e a lutar contra tudo e contra todosparaovencer.

-Hámuitagenteque tambémnãogostadomeu tioqueé rei,nemtão-poucodoirmãodele,oduquedeClarence,quevaiherdarotrono aseguir-admitiuderepente.

Mariaendireitou-senacadeira,paraavermelhor:

- Como lhe disse no outro dia, os dois forammuito simpáticos comigo,mas achei o rei um bocadinho louco. O duque de Clarence parece maisnormal-constatou,comfranqueza,eVitóriaabriuaboca,chocada:

-Dizer essas coisas do rei é traição e dá direito a cortarema cabeça aquemasdiz.

Mariapareceuficaraflita:

- Peço imensa desculpa, não quero ofender ninguém, mas é mesmoassim, não é? E a Vitória disse que havia gente que não gostava dele,tambémétraição,nãoé?

Vitória corou, não sabia bem se de zangada ou de envergonhada, eMariaatalhourapidamente:

- Acho que Inglaterra vai agradecer quando a Vitória for rainha, comojulgoque emPortugal vãoperceberque soumuitomelhordoqueomeutio.

-Elefoicasadoconsigo,nãofoi?-perguntouVitória,agoracuriosa.

Mariaabanouacabeça,ligeiramenteembaraçada:

-Sim,assinouospapéisetudo,masdepoisnãoquiscasarcomigo,oquedecertamaneirafoiumapena,porqueagoranãoandávamos todosalutaruns com os outros, mas por outro - disse, pensativa - não ia resultar.Porquequeroserrainha,esefossemeumarido,apostoque queriasereleadecidirtudo...

Vitóriaolhou-a,espantada, felizcomadescobertadequenãoerasóelaquepensavaassim:

- Quando for rainha, se for algum dia rainha - acrescentou

apressadamente-,ou icosolteiracomoarainhaIsabel,ousócasocomumhomemquesaibaqueémeusúbdito.

Mariadeuumagargalhada:

- Eu solteira, não quero icar, Deusme livre, quero casar e ter muitosfilhos,ealémdissohácoisasboasquandosedormecomumhomem...

Vitóriaolhou-a,absolutamentechocada,masMarianemprestouatenção,continuando:

- E agora que posso escolher, vou escolher umpríncipe lindo, cheio decharme,quemsabeseovouencontrarhojeànoite.

E pôs-se de pé, consciente de que já estavam fugidas da sala hámuitotempo.

- Venha, Vitória, vamos dançar. Omestre Syms diz que ninguém dançamelhordoqueaVitória,atéfiqueicomumbocadinhodeinveja-disse,comtodaasinceridade.

Vitória abriu um sorriso de contentamento. Era mesmo especial,estarainha de Portugal. Seriam as duas as melhores rainhas que a Históriaalgumavezconhecera,jurouasimesma.

Barbacenaveioaoseuencontro,zangado:

-Desapareceu,senhoraD.Maria?Estoufartodeaprocurar.

Mariaencolheuosombroserespondeu,trocista:

-Lamento,senhormarquês,mashaviaassuntosparatratar.

Barbacenasentiuaquelamisturadesentimentosqueotomavammuitasvezesquandoestavapróximodarainha.«Aisefosseminha ilha»,pensou,mas depois olhou para aquele rosto determinado e sentiu um enormerespeito.Amenina-rainhasabiaoseulugar,epôr osoutrosnolugardeles-podiacondená-laporaprenderbemalição?

- A duquesa de Clarence recebeu muitos pedidos de pais ansiosos dequeosfilhosdancemcomVossaMajestade,mastambémnãosabiadesi.

Maria deu-lhe o braço, e teve de se conter para não dar saltinhos dealegria:

-Asério?Esãobonitos?

Felizmente,Adelaideveioaoseuencontro:

-OpríncipedeLieven, ilhodoembaixadordaRússia,pediuahonradaprimeiradança.

Mariasentiu-sesubitamenteembaraçada,eolhouemvoltasemsaberoque procurava, até que encontrou os olhos de Alexandre, num grupo derapazesda idadedele, e sentiu-se sossegar -pelomenosestavaali perto,prontoparaaresgatar.Menosnervosa,respondeuaAdelaide:

-Espero não me enganar em nenhum dos passos - disse, enquantoaduquesa de Clarence a apresentava ao embaixador da Rússia e ao filho,quelhefezumaprofundavénia.

Logo nos primeirosmomentos da quadrilha, esqueceu todos osmedos.Os pés pareciam ensinados, e a música envolvia-a completamente, aindabem que naquela intrincada dança não havia tempopara grandesconversas, porque, para dizer a verdade, nem o nome do príncipe foracapazdememorizar.

Cruzou-se com Vitória várias vezes, e ao dar-lhe a mão murmurou,«gostei muito da nossa conversa», e na vez seguinte foi Vitória que lhedisse«temosdenosencontrardepoisdistoparafalar».

Quandosesentavadenovo,viuAlexandreaproximar-se:

-SenhoraD.Maria,dá-meahonradapróximadança?

Mariapôs-sedepédeumsalto:

-Estavaaverquenuncamaismeconvidava,queachavaqueeranovademaisparadançarconsigo-dissedeumsopro.

Alexandredeu-lheobraçoatéjuntodosoutrospares:

- Sabe que idade tinha a minha mãe quando casou, que idade tinha

quandoeunasci?

-Comoseiqueasuamãetem30anosagora,ecomoseiqueo ilhotem16 anos, podia fazer as contas, mas se me dissesse poupavaa minhacabeça-masnãodiganadadaminhapreguiçaaD.Leonor- respondeuarir

Alexandreriutambém:

-Tinha12anosquandocasoucomomeupai,quenaalturaacabaradefazer 17 anos, e ia partir para Cádis, como embaixador. Depois, eu nasciemEspanha,tinhaaminhamãe13anos...

Nãohaviamaistempoparaconversar,porqueadançatinhacomeçado,masenquantotrocavadepareseprocuravaqueospés lheobedecessem,pensavanoqueAlexandre lhe tinhadito.Dozeanos?Ondeestariaaos12anos?Olhouàvolta.Talvezasorteestivessedoseulado,talvezaos12anospudesse dar o seu próprio baile, no seupróprio palácio, rodeada da suacorte, e Vitória fosse uma das suasconvidadas. E nessa altura teria decasar, ededarumherdeiroao trono,umrapaz, sim,o seuprimeiro ilhoseria um rapaz, para que os portugueses tivessem um príncipe ondedepositar a esperança, umpríncipe da paz, que fosse símbolo do futuro...NaquelemomentoamãodeAlexandretocouasua,etevevontadedequenãoasoltassenunca.

Mariasentou-senasege,aoladodomarquêsdeBarbacena,asmaçãsdorostoaindaafogueadas,ecomeçouafalarsemparar.

-Viu,viuqueoduquedeClarencebebeuàsaúdedarainhadePortugal,equemesentaramrodeadadetodososembaixadoresimportantes,numamesasóparanós?

Barbacena, que estava tãodelirante como a sua rainha, acenava com acabeça,satisfeito.

-EasenhoraD.Mariaestádeparabéns.Soubesempreoquedizer, foitãogenerosaesimpáticacomtodos...

Maria,semcerimónias,tirouossapatosepuxouumpéparaoesfregar:

-Temdedizeraomeupaiquemeesforceitanto,tanto,queaté tenhoospésem ferida, e a cabeçaemágua -disse, enquantomassajavaosdedos,quetinhamsuportadoumalonganoitenumassabrinasdouradas.

Caroprimo,

Falta pouco para a meia-noite, e a nossa rainha acaba de se deitar,depois de uni baile em casa dos duques de Clarence, de que veio tãoentusiasmada e feliz, que me contagiou com a sua felicidade. Barbacenacon irmouque,defacto,foirecebidacomoaconvidadadehonra etratadacomtodasasdeferências.

Nestanoite,passadaaquicomosPalinela,consigoatéolharofuturocomotirnismo.Defacto,sesomarmosasimpatiaquearainhacolhe,aofactodeoimperadordoBrasilterfinalmenteautorizadoqueomarquêsdePalmelafosseoficialmentenomeadoministrodaRainha,dandoànossaestadiaaquie à Causa um estatuto menosmarginal, há razões de esperança. Deesperançatambémfoiapartidadosnossossoldadosparaa ilhaTerceira,quesemantém iel,comosempre,aosliberais,eondeobviamentePalmelaquerinstalarasededogovernodeD.Maria,paraquesepossadizerque arainhaéjádefactorainhareconhecidaemterritórioportuguês.

Do Brasil contamos apenas com esse gesto, porque inanciamentonenhuun,eointeressedoimperadorcontinuaaserapenaspontual, queodigaopobrePahnela,quetodososdiascontraimaistunadívida paranossustentaratodos.AmarquesadeAguiarvai-mepondoapardoqueporláse passa, e pelos vistosD. Pedro continua ligado aDomitília,mais presosumaooutrodoquenunca,apesardosavisosquelhechegamdequeaserassimnãohaverápelaEuropamulhernenhuuna aaceitarasuaproposta.E depois não é apenas Domitília. Segundome conta a marquesa, eBarbacena recebeu a mesma informação, o imperador continua a ter deprovar a sua virilidade junto de todasasmulheresque apanha.Anotíciade que teve uni novo ilho, valha-nos Deus, de unia tal Joana Mosquera,felizmente ainda não surgiunos jornais por aqui, mas está con irmada,assim como a gravidez dacostureira francesa, casada ainda por cima.

QuandoD.Mariamemostrounooutrodiaovestidoverdedequetantoseorgulha,emedisseonomedequemlho izera,senti-meaempalidecer:ovestidodegaladarainhadePortugaléobradeusinaadúltera,quetraznoventre uniseumeio-irmão? Até para romance de cordel é puxado. Pelosvistos,Maresclial anda a tentar apagar os fogos, ansioso por que estasloucurasnãodestruamoesforçodaquelesqueporaquiandamatratardeencontrar um casamento. Diz-me Barbacena que agora o imperadorestabeleceu inclusivamenteumprémioparaquemconseguir levar a bomtermoatarefa.

Masseéprecisocumpri-laparasossegaraluxúriaeoamor-próprio deD. Pedro, então de facto, meu querido primo, espero que surja por aíalgumamártir.Masquedigo,meuDeus,estoua icarazedaerabugenta,jápara não falar de velha e coxa, que esta htunidade e este frioconstantesderamcabodasminhasarticulacões.

Comosdesejosdeumanobomparatodosaídecasa,

LeonordaCâmara

LalehamHouse,20defevereirode1829

ntregargalhadas,Maria,AlexandreeEugéniaentravamemcasadepoisdemaisumaauladepatinagem,provavelmenteaúltimadesteano,porqueosdiaspareciamfinalmenteestaraficarumpoucomaisquentes,quandosecruzaramcomD.Leonor.AmestradeMariaapontouparaamesadaentrada,ondeumacartacomasarmasdoimperadordoBrasilesperavasobreasalvadepratadacorrespondência.

Maria icousubitamentepálida,eascoresqueoventofrio lhetrouxeraaorostodesapareceram:

- Uma carta domeu pai? - perguntou, a medo, e Alexandre e Eugéniadiscretamente passaram para a sala, pressentindo que era um daquelesmomentosemquesequerestarsozinho.

- É uma carta do senhor D. Pedro - disse-lhe, sorrindo, Leonor daCâmara. -Porqueéquenãovai lê-laparaoseuquartodeestudo,que euexplicoaoAlexandreeàEugéniaquevemtercomelesàhorado almoço?Pelos livros que oAlexandre trazia debaixodobraço, deve termuitoqueestudar...

Mariaagradeceu,eprecipitou-separaasuasala,comacartanas mãostrémulas.Desdequechegaraestaeraaprimeiracartaquelheera dirigidadiretamente,esentiaummistodeexcitaçãoereceioaoabri-la.Aoburacoda fechadura, como sempre, ouvira Barbacena dizer que o pai, zangadocom as constantes negativas que recebia das princesas europeias,ameaçava com o regresso da ilha ao Brasil, dizendo que não a querianessaEuropaonde tinhamdecididohumilhá-lo a si e aos seus. Seria estacarta a ordenar-lhe que voltasse? Maria nãoqueria voltar. Sentiasaudades,éclaroquesentia,ehaviadiasemquesentiaafaltadosmanos,doshibiscos em lor, dos jacarandás incendiadosde roxopelos caminhos,da loresta impenetrável, da varanda dos papagaios, da marquesa deAguiar e de tudo o que deixara para trás. Deixar para trás! Era essa a

frasequeexplicava tudo:nãoqueriavoltaràestacazero,aumpaláciodeSãoCristóvãoondeDomitíliaerasenhoraerainha,nãoqueriaqueela,eacanalha que a rodeava,se rissem na sua cara, a tratassem como umarainhaafingir,quesósesentavaemtronosnassalasdopai.

Respirou fundo, e deixou a faca cortar o papel, abrindo o envelope.Desdobrou a folha, e a letra do pai comoveu-a: era tão impulsiva edesarrumada como a sua, e ocupava a folha semnorte ou sul, comose oescritornãocontrolasseamão.

«Minhamuito querida e adorada ilha», leu, e pousou pormomentos acarta em cima damesa, saboreando as palavras, que parecia escutar emlugar de ler. Uns segundos depois voltou os olhos para a folha onde oimperador se queixava da falta que lhe fazia e lhe davanotícias dasúltimasgraçasdePedro,dasvezesemqueasmanasincessantementelheperguntavamquandoéqueamanaMariavoltava.

Masopainãoestavacontente.Estremeceuquandoleu:«Seemlugardepassares tanto tempo na cama, tu estudasses, então as tuascartas nãoteriamerrosnenhuns.»

Sabiaquenãoestudavatantoquantodevia,equenãotinhapaciênciaderever epassar as cartas a limpo, como tanto lhe recomendavam,mas erainjustodizer-lheque icavaosdiasnacama,injustoparaela,einjustoparaD.Leonor,quenuncaadeixariaescapar-seassimàsobrigações.

Nãoeraprecisomuitopara tera certezadequeas intrigasnoPaço deSão Cristóvão se teciam em redor do seu pai, como sempre tinhaacontecido. Não era di ícil imaginar como esta informação distorcidachegava aos ouvidos do imperador: a condessa de Itapagipe escrevera aDomitília,queporsuavezdeixaraanotacair,comoquemnãoqueracoisa,para que D. Pedro a apanhasse e a lesse. Nessa altura, depois de estarseguradeque absorveraoque estava escrito, taparia a boca, fingindo-sechocada,dizendonaqueleseutimbrepaulistaduasoitavasacima: «Pedro,quemeninomau,lendocartaquenãoéparasi.»

Masaverdadeiraameaçavinha jána linha seguinte, comopressentira:«De tudo isto te falarei à vista, pedindo contas a ti e às tuas damas.» Àvista?Opaidavaoseuregressopróximocomocerto. Pousouacarta, foiàportadasalaechamou,numavozquequiscontrolada:

-SenhoraD.Leonor,podechegaraqui,porfavor?

Ao ouvir as queixas do imperador, e a con irmação de que tencionavamandarregressararainha,manteveamesmaexpressão:

- As cartas demoram muito a chegar ao Brasil. A senhora D. Maria jámelhoroumuitoasuaescrita,evaimelhoraraindamais.Napróximanãohaverárazõesdequeixa.

Mariaolhou-a,ansiosa:

- Mas o papai parece indicar que me quer de volta. Sabe de algumacoisa?OmarquêsdeBarbacenafalou-lhedealgumadata?

- Não se preocupe agora com isso. Na política tudo muda muitorapidamente, e em breve vamos ter novas dos nossos soldados naTerceira,aquelesquetêmconsigoabandeiraqueasenhoraD.Marialhesbordou. Vamos rezar a Deus para que as próximas novas sejam boas, eentretanto estudar mais e melhor... Mas agora tem dois convidados àesperaparaalmoçar.

OrostodeMariailuminou-se:

-Ai, que horror, esqueci-me que deixei o Alexandre e a Eugéniaplantados.

E saiu apressada para ir ter com eles, deixando Leonor a pensar que,felizmente, a pequenina Maria da Glória tinha dentro de si o soldo paísondenascera.

Caroprimo,

Umanotarápida-asenhoraD.Mariarecebeucartadopai,quelhe faloucomoseapartidaestivessemarcada.BarbacenaePalmelareceberamestanotícia compavor, jáquevemaoencontrodas ameaçasque o imperadortambémlhesfezdiretamente.Paraarainhaseriaumatragédia.SóaquiemLondres, e apesar das di iculdades inanceiras, tem a possibilidade de

receberaeducaçãodequeurgentementeprecisa,tanto aformal,quecabeamimeaosprofessoresqueBarbacenacontratou, comoamais informal,aquela que só se ganha pelo convívio com genteque a tem de formanatural. Os costtunes da família real inglesa, e demuitos que a rodeiam,podem-nosparecermenosrecomendáveis,masaverdadeéqueoníveldopadrãoculturalepolíticoqueaquiserespiraéalto,orespeitopelasleisepela liberdade, o avanço social, nocuidado com os mais pobres edesprotegidos,tudoissoserespiraaqui.

O pai critica-lhe os erros ortográ icos na imica carta que lhe escreveu,pobre criança, e são de facto inadmissíveis, e só ica bem ao imperadordesejar que a ilha tenha tuna educaçãomelhor do que aquela aque eleteve acesso, mas por isso mesmo não a deve interromper agora. Éperfeitamenteverdadequearainhaescrevedeformadescuidadae poucoatenta,eculpo-mepornãoter insistidoemrelerascartasquelheenviou,mas parecia-me unia intromissão demasiado escandalosa na suaprivacidade.Entendoqueapartirdeagoratereideofazer,jáqueD.Pedroinsinuaquea culpaé, também,dasdamasda rainha.Ouseja,minha,quesou a sua mestra. Apesar da animosidade que lhesinto, sou obrigada aaceitaracrítica,masnãopossosentir-mebemcomainsinuaçãoquefazdequeasfalhasresultemdaindulgênciacomqueétratada,nemdequeseriapossível que lhe permitíssemos que icasse todo o dia na cama, comoa irma. Talvez tenha acontecido antesde aqui chegar, e provavelmente ainformação chegou-lhe desfasadapelo tempo.Esta,meuprimo, é aminhainterpretação benevolente,porqueaoutra é adequenesta casa, e entreas damas da rainha, háquemmequeiraverdestituída. Imaginoqueestapartida, caso se venhaa dar,me prive de continuar ao serviço daminharainha, que a cadadia estimo mais, mas caberá sempre ao imperadoravaliardaminhautilidade...

Por isso, caro primo, encontre-me uma noiva para o «Homem» como apartirdeagoramevouaelereferir,quetalvezassimse ique peloBrasil,satisfeito,enosdeixevelarpelarainha.

Desculpe mais este desabafo, mas as suas respostas são sempre tãocheias e encorajadoras, que acabo por não resistir a fazer de si o meudiário.

QueDeusoabençoe,asieaotio,

LeonordaCâmara

CastelodeWindsor,20demaiode1829

uandoVitóriaentrounasala,ficouprimeiroespantada,edepoisligeiramenteperturbada.Orei,vestido,comosempre,deformaexuberanteecolorida,sentava-senumsofá,aoladodarainhadePortugal,conversandoanimadamente,eemfrancêsaindaporcima,rodeadosportodaafamíliareal.Piorainda,deolhospostosemMariaestavaopríncipeherdeirodosOrleães,queachavaparticularmenteencantador.

Quandoouviuoseunomeanunciado,GeorgeIVexclamou:

- É a minha outra querida sobrinha que chega. Tragam-ma para aquiparaosofá,queaquerodomeuoutrolado.

Mas a mãe de Vitória estava ainda mais perturbada do que ela, eapertando-lhe com força o ombro, esmagando os folhos do vestido deorgandiqueestreavaparaafesta,murmurouentredentes:

-Fingequenãoouvistenada.Eraoque faltava,quea futurarainha deInglaterrafossetratadacomoumabonecaporaquelevelhosenil.

Vitória,quenãosabiamentir,respondeutambémbaixo:

-Nãofaleassim,mãe.Eseoreimechama,nãovou ingirquenãoooiço.Largue-me o ombro, agora! - disse mais alto, e a duquesa de Kent,preocupada com o que poderia transparecer, não teve outro remédiosenãosorrirparaaesquerdaeparaadireitae,numavoz melosa,incitarafilhaairtercomquemachamava.

Maria sorriu-lhe, encantada. Para dizer a verdade, já não sabia o quedizeraosenhor,queaindaporcimaadesconcertavacomfrases como«Válá,dê-meapatinha!», comose fosseumcãozinho.Vitóriabeijouamãoaotio,sorriu-lhe,encantadora,e,vencendoomomentodeciúme,piscouoolhoaMaria,dizendo:

- Se o rei nos quisesse acompanhar ao baile, icávamos as duasmuitocontentes.Ensaiámosmuitoparaestedia,nãofoi,primaMaria?

Maria entrou imediatamenteno jogo, pondo-se tambémdepé, eambasas meninas ajudaram o pobre homem a levantar-se, provocando nospresentesrisosescondidospordetrásdosleques.GeorgeIVdisselogoquesesentiamuitolisonjeadoporasentregaraosparesqueasesperavam.

- Não posso dançar, infelizmente, mas sobrinho George, chega aqui edança coma tuaprima, e tuaí,Alexandre,nãoé como te chamas?, leva atuarainhaparaestaquadrilha,enãolhepisesospés.

MariatrocouumolharcomAlexandre,eambostiveramimensa vontadede rir, mas nenhum esqueceu que por ali todos os ouvidos estavamprontos a apanhar e a usar como fosse preciso qualquer comentário quepudessemfazer.

MasAlexandrenãoresistiuadizer-lhe,chegando-seomaispróximoquepodia:

-Estãotodosencantadosconsigo,Majestade.Sóseouvemcomentáriosàsuaeducaçãoeàsuabeleza.

OsolhosazuisdeMariabrilharamdealegria:

- Obrigada porme dizer isso - respondeu, antes de ser levada porumoutropar.

«Mamãe,esperoqueseorgulhedemim,esperoquemeolheláde cimae eu seja tudo o que quis que fosse», pensou baixinho. A felicidade desentirqueforacapazdesuperarasexpectativasdePalmela,Barbacena,D.Leonore,também,deAlexandre,via-senasuaexpressão,queencandeava.

A marquesa de Palmela ia circulando e recebendo cumprimentos, eaceitava-os como súbdita, mas por dentro sentia-os como se fosse mãedaquelarainhade10anos.

- É muito mais bonita e real do que Vitória, que é baixa e tem aaparênciadeumacriançaabsolutamentevulgar -ouviucomentarum dosconselheirosdorei,masumadasconvidadaseradaopiniãocontrária:

-Queexagero,Charles,émaisbaixa,admito,masreparecomo dança,oucomoriefalacomaspessoas?Éumamisturaencantadora derainhaedecriança,comumaformadeestarcompletamentediferentedaportuguesa.Éoutraeducação...

Eugénia sentiu-se estremecer de irritação. Olhavam para estas duasmeninas como se fossem objetos num leilão, não tivessem alma, nemsentimentos.

Dooutroladodasala,avozdoreiinterrompiaadança.

-Estougordoecansadoenãomeconsigolevantardestacadeira-diziaorei -,mas tu,William, leva a rainha de Portugal para a ceia. Infelizmente,não posso ser eu a fazê-lo, mas já que vais herdar o meutrono, herdastambémaamizadequetenhoàrainhadePortugal.Semorrerlogoànoite,o que espero aconteça só depois do meu cálicede vinho de Porto, bementendido - e deu uma estrondosa gargalhada -, cabe-te a ti defender acausadestapobremenina,aquemotrogloditaeempoeiradotioroubouotrono.

Maria paralisara ao ouvir a referência ao seu nome, assustada e semsaberbemoqueeraesperadodela.Deveriaagradecer, iraoencontro doduquedeClarence,ouesperarquefosseeleavirbuscá-la?

Felizmente, a tia Adelaide salvou-a, aproximando-se e chamando omarido,quecomhumorlhedisse:

- Desculpe tirá-la dos braços de homensmais bonitos emais novos doque eu,mas semeder ahonrade a conduzir até à casade jantar, possopelomenossentá-laàmesa.

Mariaestampouumsorrisonervosonacara.Estafamíliareal deixava-aconfusaeperturbada,nuncamaisiriaqueixar-sedasua.Perdidanosseuspensamentos, não reparou que vinha em sua direção um grupo desenhoras,equandoembateucontraumadelas,escorregouecaiunomeiodochão.

Os frescos pintados no teto rodaram como se a Terra se tivesse viradoao contrário, e os candelabros pareciammover-se como se fosse baloiçosnum jardim. Estonteada e assustada, começou achorar, subitamente tão

frágil e indefesa, tão longe de casa, tão perdida, e sem dar por issoesfregavaacaracomospunhoscomoumacriança.

-Sótem10anos,acoitadinha-ouviuaofundoàpequenamultidãoquearodeara.

- Pobre criança, é de mais para ela toda esta atenção, toda estaresponsabilidade-diziaalguém.

- AomenosVitória temumamãe que vela por ela, enquanto esta,nemmãe,nempai-acrescentavaoutrapessoa.

O rosto do marquês de Barbacena surgiu por cima do seu, e os seusbraçosseguraram-nacomforça:

-Porfavor,deem-lheespaço,deixem-narespirar-eajudou-aa levantar-se,segurando-acomforçacontrasi.

Mariacobriaacaracomosbraçosesoluçava:

-Tenhovergonha,tenhovergonha,agoraoqueéquefaço?

Barbacena sentou-anumadas cadeirasvazias, sossegando-a coma suavoz serena, mas foram amarquesa de Palmela e a duquesa de Clarencequechegaramacorrereaabraçaram:

-Nãotemimportância,Majestade,todaagentecai,nãotemimportâncianenhuma - dizia a tia Adelaide, afagando-lhe o cabelo,enquanto Eugénialhe limpava as lágrimas e a cara, com um lenço derenda com cheiro aalfazema.

- De qualquer maneira, já é muito tarde, já dançou muito, e temos deregressaracasaporqueodiafoilongo-insistiuamarquesade Palmela,eaduquesadeClarenceanuiu:

-Omeucunhadoesquece-seque istoéumbailedemeninaspequenas,por muito reais que sejam. Senhora D. Maria, venha agora comigodespedir-sedo rei, semgrandealarido, e vai verqueninguémse lembramaisdoquesepassou.

Maria mordeu o lábio, determinada. Podia ter chorado por momentoscomoumacriançade10anos,masnãoiasairdalicomosefosseumbebéa recolher aosbraçosdamãe.Nãoqueriadar a ideiadeque a rainhadePortugaleraumameninafrágilechorona.Nemaoreide Inglaterra,nemaAlexandre.

Insistiuemdançarmaistrêsdanças,edepoisentãodespedir-se.QuandosaiuaindaviuVitória,unspéspequeninosnunssapatosdouradosdelaçosgrandes,arodopiarpelasala.Noutrodiafalariam.

Caroprimo,

Barbacena con irmou-me que a princesa Amélia Augusta EugéniaNapoleão de Leuchtenberg será a novamulher do senhor D. Pedro. Nãotevetempodemedargrandesdetalhes,porqueestavaasairpara obailequeGeorgeIVdeuemhonradanossarainha,masvinhatão satisfeitoquenão conseguia esconder a notícia de ninguém. Devemos-lhe os parabéns,porque me disse que os esforços do primo foram fundamentais paraconvencerotutordaprincesaaaceitarapropostadecasamento,trabalhofacilitado, ao que parece, por o rei da Baviera e a sua mulher sereminimigosdeMetternichedo imperadorFranciscodaÁustria. Imaginoquelheteráditoqueeraaprimeiraescolha,com essecharmeirresistívelqueosLavradiotiveramsempre!Esuponhoqueestarátãoencantadocomoelecom a beleza da princesa. Mostrou-me o retrato que vai enviar para oimperador e tenho de reconhecer que, se é tão bonita (e ele diz que émais) como o pintor a retratou, está de facto preenchido o requisito dabelezaemqueosenhorD.Pedrocolocoutantaenfâse.

Sintopenadela, contudo. Temapenas17 anos, e vai para tão longe. Sóespero que o imperador a saiba respeitar, e que tenha a delicadeza delimpar a cidade das suas amantes e companheiras, mais ou menosocasionais,paraqueapobreduquesanãosejaobrigadaavidasemelhanteàdapobreD.Leopoldina.

OcontratodecasamentoseráassinadoaquiemInglaterra,nodia 30demaio, e até essa data Barbacena teme que os austríacos aindatentem

intervir, porque a inal esta vai ser amadrasta do neto do imperador daÁustria, e futuro imperador do Brasil. Contudo, tendo em conta que aalternativa é deixar os infantes aos cuidados de uma Domitília, até umasegunda mãe liberal e da «dinastia» de Napoleão lhe deveparecer tunabênção.

Continuo com a secreta esperança de que, satisfeito e entretido com aperspetivadeumanovaesposa, o imperadordesistademandararainhaD.MariaseguirparaoRio.Avervamos.

Vouagoramandarpreparar tunabotijaquente,queapesardomês serdemaioporaquiestá frio, eumcháde tília,porquePalmelamandouuniescudeiro informar-medequeapobre senhoraD.Mariadeu tuna quedano baile que, embora sem nenhtuna importância, a deixou frágil edesorientada.

Aguardo com ansiedade a sua versão dos acontecimentos, pedindo-lhedesde já abrigo em Paris, caso o imperador não me queira no Rio deJaneiro-masdissofalaremosmaistarde.

QueDeusoabençoe,

LeonordaCâmara

LalehamHouse,29dejunhode1829

marquêsdePalmelaandavadeumladoparaooutrodabiblioteca,ospunhosfechados,comoseoseuúnicodesejofosseesmurraralguém,bememcheiononarizparaopartiraosbocadinhos.OmarquêsdeBarbacena,porseulado,enterrava-senapoltronadecouro,orostoabatido,eumacartanamão.QuandoLeonordaCâmaraentroucomD.Maria,ambosseviraramparaelas:

-SenhoraD.Maria,o seupaiquerqueregresseomais rápido possívelaoBrasil, namesma fragata que levará a senhoraD. Amélia para o Rio -dissePalmela,procurandoqueavozlhesaíssetranquila.

Maria olhou-o, a lita. Eramais do que evidente que o seu tutor e oseuministro discordavam da ordem do seu pai, que a achavam desastrosamesmo,eelanãosabiaoquedizer.

- Posso fazer alguma coisa para dissuadir o meu pai? - perguntou,tentandoconteraslágrimas.

Barbacenaacenouquenãocomacabeça:

-Julgoquenão,senhoraD.Maria.

Etentandosermaisjovial:

- Vamos passar o inverno a um clima quente, é só isso,mas embreveestaremos de volta e, entretanto, aqui o nosso ministro vai tratando danossacausa.

- Talvez no Brasil, mais próxima domeu pai, consiga que nos dê maisapoio, mande mais dinheiro, seja mais duro com Miguel - acrescentouMaria, olhando para Palmela, que lhe parecia ter envelhecido nestesúltimosdias.

Palmelainspiroufundo,edisfarçou:

-Temtodaarazão,senhoraD.Maria,vai fazerbemaoseupaiver comosseusolhoscomocresceueestábonita,ouvi-lacontaroqueporcáviueouviu,equemsabe, talvez lheconsigaexplicarquesemoapoiodoBrasil,semoapoiodoimperador,nadaserápossível.

LeonordaCâmaracontinuavacalada,esubitamenteMariaafligiu-se:

-AsenhoraD.Leonorvaicomigo,nãovai?Nãomedeixeagora. Prometoque estudo tudo o que me mandar estudar, mas não quero ir sem si -implorou.

Leonoriadizerquenãoconheciaasordensdoimperador,quandoMariainsistiu,noseutommaisautoritário:

- Senhor marquês de Barbacena, pouco me importa se o meu paimandou dizer ou deixou de dizer se D. Leonor ia comigo. É umaprerrogativadarainhadecidirquemsãoassuasdamas.Eeudigoque D.Leonorvai.

Edepois,aflita:

-Querdizer,nãolhequerodarordensasi,senhoraD.Leonor.

Aprofessorariu:

- Aceito muito bem ordens, D. Maria, sobretudo vindas de si, a quemjureiservir.

Pousando-lheamãocarinhosamentenoombro,acrescentou:

- Nem podia ser de outra maneira, porque não quero que deixe deestudarduranteosmesesdaviagemderegresso...

- Bem, pelo menos isso está decidido! - constatou, mais consolada.- Equandopartimos?

- Nos últimos dias de agosto. Terei de representar o imperador nacerimónia do casamento, na capela do palácio dos príncipes deLeuchtenberg no dia 2 de agosto, e ainda é preciso organizar tudo.A

senhoraD.Améliaembarcaprimeiro...

Maria,angustiada,queriaaquelaconversaterminada,desejavaacimadetudoficarsozinha:

- Fico à espera que me diga a data. Há amigos de quem me querodespedircomtempo-acrescentou,virando-separasairdasala.

Caroprimo,

Está con irmado. Barbacena recebeu ordens e vamos partir dentro deummês.Peço-lhequevenhaatéLondres,porqueosdoismarquesesestãodevastados.Palmelavê tirarem-lheo tapetedebaixodospés, logo quandotudocorriapelomelhor.MasBarbacenaestámaismachucado. Acartaquerecebeu hoje retira-lhe a guarda da rainha, imagine. Intrigas aqui dacondessadeItapagipe,que,semnadaquefazer,conspirae escrevetodoodia. Tirar a guarda da rainha a uni homem que dedicou cada dia destelongoanoaprotegereavelarpelamenina,édeumainjustiçaquebradaaos céus. E castigo, sabemo-lo, por não ter levadoa rainha para Viena,supondoosenhorD.Pedro,ouquerendosupor, comoéseuhábito,queépor isso, e não pelos maus tratos que in ligiuà ilha do imperador daÁustria,queviudi icultadooseusegundocasamento.Outalveznãotenhagostado da clareza com que Barbacenalho disse na carta em que lheescreveu. Agora deu a guarda da rainha ao marquês de Palma, emagradecimentopelopapelquedesempenhouadesencantar-lheD.Amélia-francamente, comoo suportareiquando chegar aoBrasil, não sei, epeço-lhe,meuprimo,queusedetodaasuain luênciaparaofazerentenderquetunaveznoRioarainhatemdeser tratadacomorainhaqueé,comCasaprópria,ouseráengolidapela cortebrasileira,perdendotodaa forçaquecom tanto mérito capitalizou aqui nesta cidade, e uni pouco por toda aEuropa.

Espere,hámais,acabodereceberanotíciae retomoaescritapara lhadar. Imagine que chegou carta nomeando um governo de regência emnomedeD.Maria,sobapresidênciadePalmela.Quesentidofaz tudoisto?Tiracomtunamão,dácomaoutra?

Agoramaisdoquenunca,peço-lhequeselheforpossível,primo,venhaaté cá e apoie sobretudo Palmela, que a inal é quem ica com abatataquentenamão-vejo-otãoperturbadocomasdívidasactunuladas,comarenda da embaixada que não consegue pagar, as despesas desta casa, esobretudo com o encargo dos emigrados. São o seu nome e a sua honraque estão em jogo, mas também a segurança e ahonra da mulher, queacolheuasenhoraD.Mariacomotunamãe,edosseusfilhos.

Esperoquemedigaalgumacoisaembreve.

QueDeusotragaseguro,

LeonordaCâmara

LalehamHouse,25deagostode1829

arfasentou-sefrenteaoúltimobaúdeviagemquefaltavafechar.Pediraàscriadasqueadeixassemsozinha,garantiu-lhesquequeriaserelaaembalarosseusobjetosmaisqueridos.

Olhou em redor do quarto, percorrendo as paredes, parando em cadaquadro, nas cortinas de lores de que tanto gostava, e depois pousou oolhar durante muito tempo nos patins que Alexandre lhe oferecera. Eraumaironialevá-losparaoBrasil,talvezparadeslizarpelas dunasdeareiaina, pensou enquanto os cantos da boca se abriam numligeiro sorriso,mas não era capaz de os deixar icar. Signi icavam tudo o que tinhaaprendidonestesmeses,mas,maisdoqueisso, ligavam-naaAlexandre,eatravésdeleatodaaquelafamíliaquequeriaguardar dentrodesi.Umdia,quandoAlexandreacabasseauniversidade,talvezfosseaoBrasilestudarplantas eminerais, comoprometera, talvez a convidasse a voltar comele,paraquedenovopatinassemjuntosnumlagogeladodeInglaterra.

Quem sabe se isto de ser rainha não passava de uma fantasia, eestivesseantesdestinadaasermãedeonze ilhos,numachácaraperdida,abandonandodevezosonhodereinarnumpaísquenemsequerconheciae pelo qual, para ser verdadeira consigo mesmo, o pai se pareciainteressarmuitopouco.

Passouodedo,comcuidado,pelalâminadopatim,quepousaranocolo.Nãotinhavontadenenhumadeconheceramadrasta,queera poucomaisou menos da idade de Alexandre. Custava-lhe regressar ao Rio, não sócomo rainha exilada, como ainda sendo «portadora» da mulher que iasubstituir a suamãe junto do seu pai, amulher a quemteria de chamarmãe, e que o seria de facto para os seus irmãos. Comoreagiria Januária,habituada agora a ser amais velha da casa? E Xica,não suportaria ver asuaXica ao colo destamulher,mais umaque o pai acolhia na sua alcova,nem tão-pouco o Pedrinho a lançar-se nosseus braços. E a pobre Paula?Certamente que, com o seu humor doce,faria tudo para que todos

estivessembem,comosempre.

Ajoelhou-se junto da mala e arrumou os patins, embrulhando-os namanta de xadrez que a duquesa de Clarence lhe dera, chorando. Ia tersaudadesdesta tiaAdelaide, tão generosa, que a izeraprometerque lheescreveriamuitas vezes. Tinham vindo a Laleham a duquesa e o duque,que lhedisseestarenvergonhadopelo factodeogovernonãorespeitarapromessa de ajuda à rainha legítima de Portugal, garantindo-lhe que sefosse ele o rei, as coisas seriam diferentes. Maria teve vontade de rir,porque achava o futuro rei de Inglaterra quase tão excêntrico como oirmão, embora se vestisse de cores menos garridas e não lhe pedisse a«patinha» como George IV. Decididamente, pensou, enquanto estendia amãoparaacartaque icaraemcimadapequenaescrivaninha,aprincesaVitóriaiaserumabênçãoparaInglaterra,comoelapoderiatersido (aindapoderiaser?)paraPortugal.

«Asmulheres sabemmuitomelhor o que querem do que os homens»,dissera-lhe Vitória na carta que lhe escrevera, pedindo desculpa por nãolhe vir dizer adeus pessoalmente,mas amãe arrastara-a paramais umadigressão,«naesperançadeaumentaraminhapopularidadee demedara conhecer aosmeus futuros súbditos, masMaria, acredita, não há nadaque mais deteste do que estes longos jantares em que souobrigada asorrir e a cumprimentarmil desconhecidos, ainda por cimasabendo quesómeganhaoódiodosmeustios.Masaverdadeéque,porsaberemissomesmo, os jornalistas não perdem a oportunidadede publicar as nossasviagensnosseusjornais».Despedia-seassinandoDrina,ejuravaescrever-lhe todas as semanas. A duquesa de Kentjuntara à carta um embrulhocom um colar de corais, e um cartão emque a irmava o gosto de a terconhecidoeosvotosdequevoltasseembreve.Mariaagradeceu-lhe,maspediuaD.Leonorquerevessea carta,porquenãoqueria,decididamente,fazer o papel de analfabetaque regressa à selva, como comentou com aprofessora,quedeuuma genuínagargalhada,enemsequerarepreendeupelos quatro erros que encontrou. Estava tão bem-disposta desde que oprimo Lavradio chegara de Paris, que até aceitara interromper as liçõesnestesdiasqueantecediamapartida.

Fechou o baú com convicção, e chamou pela criada para lhe dizer queestavapronto,aproximando-seda janelaparavercarregarascarruagensquea levariamaPortsmouth,deondepartiriao Imperatriz.Queagora se

chamavaAmélia, recordou, torcendoonariz. Era esta a velocidade a que,emtudo,opaiesqueciaamamãe.

QuasechoreiquandohojerecebidasmãosdaminhaqueridamarquesadePalinelaestecaderno,comtunacapalindadefloressecaseumcadeadodechave:

-Vaiprecisardedesabafar,enãohánadamelhordoqueumdiárioparao fazer - disse-me, abraçando-me com força, sabendo bem, como eu sei,que parto sem saber ao que vou, e sem ter a mais pequena ideiadequandoregresso.

Aindanãoparti,e jádouusoaestaspáginas,quesubstituemporagoraas cartas ao meu primo Lavradio, porque tenho a alegria de o ter aquicomigo.AceitouomeuconviteeapareceuàportadeLalehamHouse semaviso, tomando rapidamente o comando da situação, permitindo queBarbacenaultimasse todosospreparativosdapartida, e aindadaviagemdeD.Amélia,equePalinelativessealguémaoseuladonestemomentoquemeconfessouseromaisangustiantedasuavida-ecomoquePalinela jáviveu e sofreu, é uma a irmação depeso. Percebo em absoluto as suasrazões, porque, como diz, embora a rainha seja tuna criança, a suapresençadavaumaimportânciareal àsuacausa,eragarantiadoapoiodopai,etornavamaisfácilmoveraaliançadepaísesestrangeiros.Agoraestapartida,tudoisto,parece-lhe,aeleeanós,umaabdicação,ou,pelomenos,aindicaçãoclaradequenãosepretendearestauraçãoacurtoprazo.

Palmela estava tãoangustiado,queaté foi LavradioqueacompanhouarainhaaWindsor,ondesedespediudorei,eéelequetemfeito ashonrasdacasaaosmembrosdafamíliarealque,comuniaenormesimpatiaetunasimplicidade que me encanta, vieram até cá dizer adeusà senhora D.Maria.

Foitambémelequetrouxenotíciasquenosalentaram.Asnossas forçasconheceram tuna importante vitória em Vila da Praia, na ilha Terceira, eSaldanhaparececontinuarimparável.

VamosagoraparaPortsmouth,ondeasenhoraD.Améliajános espera-pobre criança, suponhoque terei de a apoiar também, já que a condessade Itapagipe e o seu grupinho de damas já se declararam inimigasvisceraisdaquelaquevemdestronarapatronaDomitília.Sefor sensata,ese quiser ouvir os meus conselhos, que lhe darei se mos pedir, trataráimediatamente, após a chegada, de correr do paço com toda agente quepor lá estiver, criados ou damas, oumesmo amas, que serão certamenteafetos ao «regime antigo», como por delicadeza costtunodizer. ExceçãofeitaaD.Mariana,quetomacontadopequenoimperadorcomoumamãe,ea freiAntónio,quesemantevesempre leala Leopoldina.Estoucertadequea senhoraD.Mariaquereráamarquesa deAguiaremsuacasa, seativer, que nunca mais voltou ao paço, que até há semanas era aindadominadoporDomitília e a sua ilhaBelinha-diz-meomeuprimoqueoimperador lhepediuquetratassede tudo paraquearaparigacomeçasseaestudar jáemsetembronoColégiodoSagradoCoraçãoemParis,oquesignificaqueD.Pedroestádefactoansiosoporcomeçartunanovavida.

LeonordaCâmara

FragataAmélia,Portsmouth,29deagostode1829

ocaisdeembarque,Alexandredeixou-lhenamãoumaneldeesmeraldaverde,murmurando:

-Nãoperdenuncaobrilho,pormuitotempoquepasse,pormuito longequevá.

Mariadeixouapedraescorregarparaumdosseusbolsoserespondeu,tambémbaixo:

-ProcurenaspáginasdoseulivrodeMatemática.

Deixara dentro do livro de Alexandre ummedalhão com uma madeixadoseucabelo,sinaldequepermaneciaparasemprejuntodele.

Os abraços e os beijos das pequeninas Palmela, de uma Teresaagradecida pelo vestido verde, e umaMariaAna radiante comos colaresquelhedeixara,separaram-nadeAlexandre.

Serena,masvisivelmentecomovida,amarquesadePalmelatornou tudomaisfácil:

-Olhe, ali está omarquês dePalma, não o quer cumprimentar, senhoraD.Maria.-Masarainhanemsevoltou.

Pouco lhe importavam as ordens injustas do seu pai. Barbacenaera, econtinuavaaser,oseuúnicotutor,nãoaceitavaqueodemitisse docargo,e pouco lhe interessava se Palma se ofendia ou não. Mas omarquês dePalmatambémnãoestavainteressadoemguerrilhas,epediuaBarbacenaqueaacompanhasse.BarbacenaestendeuobraçoaMaria:

-Dá-meahonradestaviagem,Majestade?

AgargalhadadeMariaquebrouogelo,e,depoisdeumabraço apertado

à marquesa de Palmela, aceitou o braço do marquês e embarcou. Amadrastaesperava-a láemcima,eabraçou-a,numgestorápido. A rainhadePortugalobservou-arapidamente.Erabonita,eparecia simpática,mastinhasemanasabordoparaaavaliar,agoraeramosqueestavamemterraquelheenchiamocoração.

Da amurada, silenciosa, acenou até os perder a todos de vista, atéAlexandre ser apenas um pontinho no horizonte. Pôs a mão no bolsoetiroudeládedentrooanel,en iando-onodedo,comovida.«Nuncamaisovoutirar»,disseparasimesma,comascertezasquesetemaos10anos.

Abrodenovoomeudiário.Confessoquepre irooestiloepistolar, sabera quem escrevo, imaginar as reações de quem lê, do que escrever porescrever,aindaparamais temendoqueasminhascon idências sejam tinidiavasculhadasporalguémquenãomediznada,oumequermal.Masapartir de agora, e durante dois meses, é o meu único escape para aagitação interior que sinto. Tenho Barbacena, é verdade, e a rainha, queme faz tanta companhia, mas não posso pesar com asminhas dúvidas apazdeespíritonemdeum,nemdeoutro.

Poucodepoisde terembarcado,desciaomeucamaroteeaoadjacente,que pedi que fosse guardado para sala de aulas de D. Maria, e tratei dearrumar as minhas coisas, pondo por ordem livros e cadernos, numexercício que tem sempre o condão de me tranquilizar. Além do mais,agorasento-meaescreverrodeadadeobjetosqueconheço-até oretratodomeusobrinhoFranciscojápendurei,eéumbocadinhodaminhafamíliaedomeupaísqueseguecomigo.

A imperatriz Amélia pareceu-me afável, e bonita é-o, sem dúvidanenhtuna. Não quero precipitar-me, mas parece-me que tem irmeza decaráterequesabemuitobemoquequer.Talvez,comoespera Barbacena,que tem a melhor das opiniões dela, seja capaz de trazeralgumaestabilidadeàquela família, quemsabeaté, com tanta juventudeebeleza,manter o imperador iel.Não será fácil a sua ligação comD.Maria, que averásemprecomoumasubstitutadetunamãeque adoraacimade todasasmulheresequelhefoitiradanascircunstânciasmaiscruéis,mas,tendo

emcontaqueaalternativaeraDomitília, julgoquearainhavaiencontrarformadeseentendercomela.

Comoveu-mevê-laadespedir-sedeAlexandre.Seiqueéoamorpormnirmãomaisvelho,quenosensinaeampara,masseriauniamorimpossívelse uni dia passasse disso. Que digo, que escrevo? Disparates de umasolteirona que viu o seu único grande amor morrer, e que nunca maisamou,nemfoiamada.

Pareceu-memuitoóbviaapresençadoirmãodeD.Amélia.Compreendoquefaçasentidoseracompanhadaporalguémdafamíliapróxima,masoumeenganomuitooualguémimaginouumcasamentoreal...Augustoéalto,louro, de bigode e patilhas claras, e parece-me que sabe usar o seuencanto, mas só espero que o imperador não tenha uni daqueles seusimpulsosimpensadosedecidacasara ilhacomojovem-Portugalprecisaprimeiro de acolher e aceitar a sua rainha, sem apêndices que a tornemaindamaissuspeitaaosolhosdopovo.Jábastaoclamorabsolutistadequeela e o seu pai são «estrangeiros» que se tentam apoderar do tronoportuguês.

Meu Deus, quanta coisa quero resolver nuns só dia. Tenho de me irarranjar para o jantar, na certeza de que esta viagem tem tuna grandevantagem sobre a últimaque iz, naquele paquetemalcheiroso: desta vezpossosairdoquarto.

SolardaMarquesa,10dedezembrode1829

cordounonovoquarto,asjanelassobreojardimeaQuintada.BoaVista,eláaofundooPaçodeSãoCristóvão.Pediraparalhedeixaremosreposteirosabertos,porquequeriaolharparaforasemsairdacama.

Sabia que a casa emque vivia, e que era agora a CasadePortugal, noRiodejaneiro,foraconstruídaedecoradaparaamarquesa deSantos,masdecidiradeitartudoissoparatrásdascostas.Oque importavaéqueagoraera sua, só sua, e das damas que escolhia ter àsua volta, sinal que o paidavadequeeraacolhidaetratadacomorainhadePortugal.Dequalquermodo, a decoração era diferente, completamente diferente, aliás, pensoucomum riso divertido, enquantoolhavaosmóveismeiosdesconchavadosque o pai mandara buscara este e àquele palácio, para preencher asparedes e o chão vazios,porque Domitília, despeitada, levara todo orecheio da casa para São Paulo, quando o pai a despachara para lá, nasvésperasda chegadadanovamulher.Nemumamesinhaouumacadeiraicaraparaamostra, dizia-lheoprópriopai, rindo,epassando-lheobraçopelacintura:

- O que se há de fazer, ilha? Cometem-se os erros, arcam-se com asconsequências,eadiante,queparaafrenteéqueéocaminho.

Maria também não era de perder demasiado tempo com remorsos erecriminações, e por isso aceitou o palácio ainda novo, ingianão ouvirquando lhechamavamoSolardaMarquesa,eencheuossalõesdegente,tentandorecriaras festaseosbailesdeWindsor.Bastantemaisquentes,embora,aavaliarpelosvestidosdassenhorasqueimportavamamodadeLondres e Paris, ninguém diria, como escrevia divertida a Vitória, comquemtrocavacartasquasediárias.

Apesardoregresso,edeestarinstaladatãopertodopaçoonde nascera,a sua vida mudara e gostava da recém-conquistada independência, dacortequearodeavaeque,reconhecia,lhetornavaavidamuitoagradável,

comasuaobediênciaeasuaconstantelisonja.Nãoeraparva,con iavamilvezes mais num elogio, ou numa reprimenda,de D. Leonor ou damarquesa deAguiar, que alegria fora reencontrá-la!, e até deMareschal,doquenasfalinhasmansasdamaioriadosseusnovosamigos.

«Nãopodemosacreditaremnadadoquedizem,nemquandonos juramqueestamosmaismagras»,escrevera-lheVitória,numacarta quechegaraainda ontem, e até D. Leonor desatara a rir quando lhe lera alto aquelebocadinho.AprincesaVitóriaeraúnica.

ConseguiraconvenceropaiapermitirqueRosaentrasseaoseu serviço,a suaqueridaRosa,quedeixaraopaçoeviviana suavila e secomoveratanto, tanto quando a voltara a ver, gritando que era a sua Leopoldinaregressadadosmortos.Gostavaquando lhediziamque era igualàmãe,emaisaindaquandodavapelopaiaolhá-la,embevecidomastriste,esabiaque lherecordavaLeopoldina.«Ébemfeita», pensavaparasi,ealegrava-se um bocadinho, por saber que D. Amélianão izera esquecer averdadeiraimperatriz,comocon idenciaraafrei António,quevoltaraaseroseuconfessor.«Épecado?»,perguntara,e freiAntónio, rindo,garantira-lhequeemRomatalvezfosse,masquealienoCéu,ondeDeuserapai,nãooeracertamente.

Dali a bocadinho entrariam as criadas com o seu primeiro almoço, edeliciar-se-ia com as frutas e os sumos, o pão e a voz cantadadaquelasmulheres,quelhepareciambemmaisalegresefelizesdo queas inglesas,ou mesmo as portuguesas, reconhecia com algumapreocupação. «Eu seiquesãomuitorespeitáveis,D.Leonor,mastãosériasechatas»,re ilaraumdia, quando a mestra lhe proclamara as virtudes das mulheresportuguesas,eamestrafingiranãoperceberquefalavadela.

Bocejouepensouquenãoeraverdadequandoa irmavatergostado detodasasmudanças.Algumasdesagradavam-lheprofundamente, como,porexemplo, ver o pai a obedecer que nem um cordeirinho àmadrasta, e amadrasta com o seu querido mano Pedro nos braços, a cabeça cheia decaracóis loiros, mas que nos primeiros dias chorava sempre que seaproximava dele. Também não gostava dos comentários maldosos deJanuária, por muito que a marquesa de Aguiar lhe pedissepaciência,porqueeradi ícilparaairmãverchegarduasmulheresà vidadopai,easduastãobonitasetãocapazesdeatrairemanteraatençãodoimperador.

Enchera-a de preocupação ver que PaulaMariana estava ainda maismagraedelicada,equeaamanãoa largavadoisminutos,semprecomumxaropeatrás,paralhecalara tossequetantaansiedadejáderaàsuamãe.E mais, havia mais deque não gostava. Não gostava de que o pai nãodeixasse que Xicafossemais vezes a sua casa, a sua queridamana Xica.Tinhaagora6anos,eoimperadorinsistiaqueeraumaprincesabrasileira,nãosendobom,dadoo«estadodascoisas»,quesemisturassedemasiadocomairmã.

Perguntara a Mareschal qual era de facto o «estado das coisas», e oembaixadoraustríacoexplicara-lhe,comumacalmaqueopapainãotinha,que nunca como hoje houvera uma animosidade tão grande entreportugueses, ricos e cheios de poder, e a população brasileira nativa, oupelo menos nascida em terras brasileiras, brancos pobres, mestiços,negroseescravos.

- A inal, não mudou assim tanto, porque lembra-se que a minhamãegastava todo o seu tempo e dinheiro a ajudar aqueles que toda agenteesquecia?

Mareschal acenara o seu acordo. De facto, a situação só se tinhaagravado, coma raivadopovomais aberta emanifesta, com lugar já naspáginasdosjornais.

Lembrava-sedetercontestado:

-MasomeupaiéimperadordoBrasil,foielequelhedeuaConstituiçãoequedecidiu icar,esoueuarainhadePortugal,porqueéque issohádefazerconfusãoaosbrasileiros?

Mareschalaparentementetinha icadosemresposta,eforaamarquesade Aguiar, passando-lhe a mão suavemente pelos cabelos, como que arecuperar o tempo perdido longe desta sua « ilha», que a tranquilizara,garantindo-lhe que não passavam de intrigas políticas quedepressa sedesvaneceriam.

A porta abriu-se, e o tabuleiro cheio de comida, de todas as cores esabores,entroupelasmãosdeumacriada,fardadaarigor.

- Bom dia, Malvina, é tão bom ver-te emminha casa - disse-lheMaria,

radianteporreveraescravaquetantasvezesaseguiranassuas fugasdopaço,emtemposqueagoralhepareciamtãodistantes,quaseimpossíveis.

Ainda bem que não tivera a educação que a princesa Vitória estavasempre a atirar-lhe à cara que lhe faltava, porque senão, em lugar depoder falar com quem a servia, e através delas saber os zunzuns e asintrigasdacorte,seriaobrigadaaouvirleraltoumenfadonhoeinstrutivolivroqualquer.

Pormomentos,obrilhodaesmeraldadoseuanelcaptouasuaatenção,esuspirou.Augusto,oirmãodaimperatriz,erasimpático. Muitomaisvelhodoqueela,mastalvezaindamaisatraenteporisso,sedutoredivertido,eopaiparecia estar entusiasmado como cunhado.Rodouoanelnodedo.SeaomenosAlexandreaquiestivesse.

Meucaroprimo,

Nãoseriacomoremetentedestacarta.Émesmoverdade,asua primaLeonor trocou Lisboa, e depois Londres, pela casa da famosa amante. Senão fosse tão sério até podia ter graça. Tenho de aprender com aminhareal pupila a ser capaz de ignoras os detalhes que me desagradam, e aaproveitar o que a situação tem de bom. E de bom,bom, só tenho aamizade da marquesa de Aguiar, que, posso dizer-lhe, está noiva deMareschal e tão feliz, que comove. Tudo o resto são más notícias para onossopobrepaíseparaarestauraçãodeD.Maria.

A imperatriz Amélia parece estar a adaptar-se bem, e o imperador nafase do encantamento, fazendo-lhe todas as vontades. E se há tunacoisaque entendi ao entrar neste luxuoso solar, de uni bom gosto indubitável,com as salas de paredes pintadas com frescos dos melhores artistaseuropeus, a escadaria, as portas e janelas de pau-santo e umchãoembutido que brilha como se fosse tun espelho, é que conduzidopelaluxúriao imperadorabreoscordõesàbolsa. Julgoqueterásido por aquiter vindo, constatando a diferença do investimento que omarido fez nacasa da amante e no paço onde «só» alojava a esposa eos ilhos, que ajovem imperatriz exigiu obras de remodelação em São Cristóvão e

orçamentoparaencomendarmóveis,loiças,tecidosetudoomais.ComodizMareschal,D.Améliaageassimporsesabermenos aristocráticadoqueD.Leopoldina. «A falta de berço esconde-se coma opulência», re ila oembaixador,queserviaapaixonadamenteasuaarquiduquesa.

O certo é que a imperatriz bem se pode entreter com a decoração,porque, para tristeza do Homem, ainda não espera bebé, o que, aliás, odeixadecabeçaperdida, inquietoqueconsteporaíqueaos30anosestávelhoenãoconsegueengravidaraesposa.

Pelaminha parte, tenho pena dela. A ameaça deDomitília estásemprepresente,ounãoestivesseparadarà luz,dentrodemeses, uninovo ilhodo imperador. Sabia disso? Sabendo-se, como se sabe, a forma como icaligadoàscrias,eovolte-facequedeuaquandodonascimentodaúltima,apobreD. Amélia deve estar a pedir à Virgem queomaridonãodecida irvisitaraparturiente.

Pela minha parte, continuo a manter a rotina dos estudos, e D. Mariaesforça-se e tem capacidade para aprender, mas nada neste ambiente épropício a traia educaçãomais rigorosa e séria. Epena, porque temo quechegueao tronodemasiado impreparada.Bemavejorir-secomas cartassolenes que a princesa Vitória lhe escreve, e em que nitidamentetentacultivar a prima com o que vai aprendendo. Embora compreenda queD.Maria aceitemal estas lições pomposas, pressinto que afutura rainha deInglaterra percebeu bem que para reinar em paz no século xix sãoprecisastodasasarmasquesóaeducaçãonospodedar.

A carta já vai tão longa, espero que tenha a paciência de a ler,mas senãotiver,nãoseimporte,porquejámeprestouumenormeserviçoaodar-meaoportunidadedeaescrever.

QueDeusoguarde,

LeonordaCâmara

SolardaMarquesa,30demaiode1830

arfaentrounaSaladoOlimpo,efoisaudadacom«vivas».Continuavafrancamentealtaparaos11anos,feitoshápoucassemanas,acarasarapintadadesardas,porquenemoschapéussalvavamapeledosefeitosdaluzdesteSol,efrancamentebonita.Econtinuavaaadorarouvir«vivas»,pensouamarquesadeAguiar,divertida.

A notícia de que fora aclamada rainha na ilha da Madeira chegara aoBrasil a uma velocidade invulgar, e D. Pedro izera questão de que fossecelebradacompompa,naquelaqueera,a inal,aembaixadade PortugalnoRiodejaneiro.

Nostálgico,o imperadorsaiudoescritóriodaáguianapoleónicapintadano teto, presságio de que um dia casaria com alguém da suadinastia,pensou, esquecido de que amandara pintar para a amante, e passou àsoutras salas.Tinhadecididamentebomgosto, concluiuaoolharosdeusesgregosnasparedes, cenasdeprimaveranasalapara aqualabriaaquelaem que estava, numa sucessão de divisões que deportas abertasformavamumsalãoenorme,agoracheiodegentequevinhacelebrarestavitória.

- Papai, o senhor está bem? - perguntou comum acento brasileiro quevoltara,paradesesperodeD.Leonor.

-Estoubem,mastriste,porquequandoolhoparasipensoemsuamãe,equandovejoestacasalembro-medamarquesadeSantosedaminha ilhaqueagoradelanasceu,aminhapequeninaIsabelMaria,quevemocuparolugar da que Deus me levou - respondeu o imperador, sem a menorhesitação.

Mariazangou-se,vermelhadefúria:

- Pai, isso não tem sentido nenhum. Que se lembre da minha mãe,

entendo...

Opainãoadeixoucontinuar,tãofuriosocomoela:

- Filha, que cenas são essas? A bater o pé ao seu pai? Quem é quesejulga?

-ArainhadePortugal-disseMaria,entredentes,conscientede quenãopodiaatrairaatençãosobreadiscussão.

MasPedropoucoseimportavacomaassistência:

- Rainha de Portugal, há de ser, porque não se esqueça que porenquantoémenor,esoueuquetratodestesassuntos.Seestacasa eestacortelhedizemocontrário,ébomquepousedenovoospésnaterra.

Maria estava gelada por dentro,mas sentiu a urgência de o apaziguar,sentiasempremedoquandooviatãozangado,aimagemdamãenochão,dobradasobresimesma,nuncalhesairiadacabeça:

- Papai, sei que tenho 11 anos, e sei que conto consigo para tudo,nãoqueriadesrespeitá-lo,desculpe.

Pedro gostava de ouvir pedir perdão, e mal sentiu que a discussãoestavaganhatransformou-se:

- Minha ilha, quem lhe pede desculpa sou eu, ico triste quandomelembrodopassado,mas istopassa.Estoumuito felizcomasuaaclamaçãonaMadeira.Vá,venha,vamosbrindaraoseutrono...

Arrastando a ilha para o centro da sala, mandou que os criadosservissemochampanhe.

- Não lhe disse que a Nossa Senhora da Glória iria ouvir as nossaspreces?

Mariaacenoucomacabeçaquesim.Nãoseatreviaa levantarosolhos,com medo de os cruzar com os de Leonor da Câmaraou Mareschal,Barbacena ou Bonifácio. Sobretudo, não suportavaque a sua queridamarquesadeAguiarlessetudooquelheialádentro.

Instintivamente colocou umamão sobre a outra, para sentir o confortoque o anel de esmeralda lhe dava. E pelamilionésima vez pensou,se aomenosAlexandreaquiestivesse.

Caroprimo,

FiqueimuitocontentecomapartidadePalmelaparaosAçores,a imdepresidir aumgovernode regênciaemnomedeD.Maria.Temos governoliberal em terra portuguesa, e esse facto deixa-me cheia de esperança.Menos feliz iquei, obviamente, com o desespero da pobremarquesa dePalmela,comoscredoresdeD.Mariaàperna,tudoporqueopaidarainhanãocumpriuapromessadepagarasdívidas.

A marquesa de Aguiar esteve aqui em casa há pouco. O casamentopróximocomMaresclialimpediu-adeaceitarolugardedamaqueD.Marialheofereceu,masévisitadiária.Hojeveiopelanoitee,comoD.Maria icoua jantar por São Cristóvão, conversámos.Nãomodisseabertamente,masnitidamentea informaçãoque colheuvinhadeMaresclial, e con irmaquenão contem com ajuda por este lado, nãoacreditem nas promessas eladainhasquevos transmitirem,porquea indiferençaqueD.Pedro temàcausa da rainha é tão grande, que julgo que ninguém acredita sem ver.Afasta,comumagargalhada,quemlhefalenoassunto,equandoaprópriarainhaperguntapelos seusassuntos, respondecomum«Minha ilha,nãoestá contente de estarpróxima de seu papai?» e outras sensaborias dogénero. É estranho como um homem que reage com tanta aparenteemoção a algumnascoisas demonstra tuna frieza gélida com outras. E acausa portuguesaé tuna delas. Quando soube da morte da senhora D.Carlota Joaquinateveuns assomosde raiva contrao irmão, acusando-o àboca cheia detodas as vilanias,masdepressa esqueceuo assunto. Se lhefalamdePortugal,faladarecém-nascida ilhadeDomitília,eseperguntamdapossibilidadedeuni inanciamento,diz,comoarmaissériodomundo,quevaimandarrezarumamissapela«venturadafilha».

Gostavadelhedarnovasmelhoresdoqueestas,masachomelhorsabercomoquepodemcontar,doqueviveremnailusão.Quantoà rainha,oseufeitionaturalmenteteimosoeautoritárionãoganhanadacomosexemplos

paternos.

QueDeusoabençoe,

LeonordaCâmara

P.S.-Paradizeraverdadeoquelhedesagrada,nestemomento,équeD.Amélianãoengravide,comosefossetunamanchanasuareputação-quealiásdeveser,porqueosrelatóriosmédicossecretosnãorevelamdúvidasdequesofredeuniadoençavenérearecorrente,pobrerapariga,queprovavelmenteacabadoentetambém.

SolardaMarquesa,13dejulhode1830

osegurarnamãoacartaqueacabaradereceberdeVitória,Mariainterrogou-seporqueéqueeraincapazdeencontrarpalavrasparadizeraAlexandre,masnãolhefaltavamnenhumasquandosetratavadeescreverà princesa de Kent. E o contrário também deviaser verdade, porqueAlexandrelimitava-seamandar-lhe«saudades»pelascartasdamarquesade Palmela. Por sermos raparigas?, pensoupara si mesma, e sentou-sedisposta a abrir o envelope. Guardava-assempre para ler quando estavasozinha, para que ninguém a interrompesse. Descon iava que Vitóriacopiava o estilo do romancista queestava a ler na altura, e por isso ascartasoraeramcómicas,cheiasdeconselhos,ounumestilomaisdenotíciade jornal, quase comose fossem uma descrição feita na terceira pessoa.Nãoseenganaraquandosuspeitaraqueestatinhadesersobreoenterrodo tio Georgee a coroação do tioWilliam. Sentou-semais confortável napoltronadoseuquarto,ecomeçoualer:

QueridaprimaMaria,

Escrevo-teparatedardetalhesdoenterrodorei,queimaginogostesdesaber.AindabemqueDeusolevou,porquecoitadoestavaasofrerimenso,queaquelevinhodoPortodoteupaísvinga-senaspessoas,dando-lhesumagotahorrível,eosinglesesbebemmuito,porissonãoéoúnicoasofrerassim.

Qualquerpessoasensatateriaacertezadequeamortedeumreiseriasuficienteparapôrafamíliadeacordo,pelomenosduranteumassemanas,masaminhafamília,comosabes,nãoénadafácileporissohouveumadiscussãoenormeentreaminhamãeeatiaAdelaide,arainhaAdelaide,melhordizendo,acercadolugarqueeudeviatomarnocortejofúnebre.Finalmenteláacordaramemqueseguirialogoatrásdela,comosegundanalinhadasucessão,econfessoquemesentimuitoimportantecomumvestidopretoderenda,agolaeospunhosbrancos,eumchapéucomumvéuacobrir-meacara,apesardeeusóter11

anoseaLehzenterachado«absolutamentedisparatado».

Masomelhorfoidepoisdoenterro,quandoaspessoasnaruagritavamvivasàrainhaAdelaide,eelasentou-meemcimadomuroquenosseparavadarua,easmultidõesberraram«Vivamasduasrainhas,vivamasduasrainhas».Achei-ostodosmuitogenerosos,eseumdiafordefactorainhavouserumarainhamuitojusta,porqueterásidoparaissoqueDeusmepôsnotrono.

Bem,masquandochegueiàcarruagemparavoltarparacasa,aminhamãe e aquele a quem chamo, como sabes, o espião JC, deram-me umraspanete enorme. Não percebi porquê, e fui mesmomalcriada com aminhamãe,dizendo-lhequeatiaAdelaide,querdizerarainhaAdelaide,foramaisdoquegenerosaemmostrar-meassimàspessoas.Masdepoisolheipara Lehzen e calei-me. Em casa, ela explicou-me aquilo que eraaparentementeóbvio,ouseja,queaminhamãenãoquerquea rainhafaçademimsua ilha,porquetemmedodequeseesqueçamdela,ouamandemembora de Inglaterra. Cá para mim são coisas do spy JC,porqueapobredarainhaésempretãoboacomigo.

Porissoumdiafabuloso,querdizer,émaudizerqueodiadeumenterrodoreiéumdiabom,maspercebesoquequerodizer,ficouquaseestragado...»

DepoiscontinuavaporaliforaaperguntarporMaria,peloBrasil,aagradeceroscolaresdepedrascoloridasquelhemandara,eterminavaadizerqueesperavaquearevoluçãoemParis,quetinhadepostooreiCarlosX,umreiabsoluto,ecolocadonotronoLuísFilipedeOrleães(opaidoduquedeOrleãesquetinhamconhecidoemLondres),erabomsinalparaacausadarainhaportuguesa,edespedia-seprometendovoltaraescreverembreve.

Mariapousouacartaeencostou-separatrásnacadeira.Tinha penadeVitória, lá fechada naquele palácio enormemas triste, como omenino daselva de que lhe falara quando o visitara, às mãos de um homem semescrúpulos, que queria controlá-la. Ainda bem que aprincesa tinhaLehzen,diziaconstantementeD.Leonor.EaindabemqueelatinhaLeonor,os nomes das duas mestras das duas rainhas começavam com um L,pensou a rir. Agora precisava que alguém lhe explicasse porque é que a

princesainglesaachavaqueaquedadeumreiemFrançaapodiaajudar...

Primo,

ObrigadapelainformaçãosobreaquedadeCarlos1easubidaaotronodeLuísFilipedeOrleães.Queroacreditarqueéumacartada forteparaacausa da nossa rainha.Mareschal diz-me queWellington também temosdias contados, e que os liberais ingleses voltarão ao poder. O repúdio doabsolutismo em França terá certamente que levar ao repúdio doabsolutismoemPortugal.Talvezagoraas grandes potências tenhammaisfacilidadeemapoiare inanciaraguerraquetravamos.D.Maria recebeutuna carta da pequena Vitória, em que aprincesa notava isto mesmo. Anossa rainha, infelizmente, precisou que lhe explicasse a relevância daquestão,mascomoestavainteressadaemdoisminutosentendeutudo.

Tenhodeir,saudadesatodos,eporfavorescreva-merapidamente commaisnovas.

LeonordaCâmara

SolardaMarquesa,10desetembrode1830

arfaestavasentadanojardim,àsombradoenormecajueiro,quandoouviuavozdeXica,dooutroladodomuro.

Unsminutosdepois, láestavaelaaabriroportão,evinhademãodadacom Augusto, conversando como uma gralha, com aquela alegriacontagiante.

- Ah, mana Maria, está aqui no jardim - disse, e correu para ela,abraçando-a com força. - A mãe Amélia deixou-me vir visitá-la porque oAugustoconcordouemfazerofavordemetrazer.Nãofoiumasorte?

MariasorriuparaAugusto,quelhebeijavaamão:

-Éumfavorquenãomecustanemumbocadinho-con irmouAugusto,comumsorrisosedutor.

Xica escutou-o, a cabeça de lado, os olhos verdes a dançarem, e disselogo:

-Claroquenãolhecustou,porqueaqueriavirverasi,eeuservi sódedesculpa. Vai casar com ele? - insistiu, perante o embaraço da irmã e do«tio».

-Mana,osolfez-lhemalàcabeça-disseMariacom irmeza,abrindo-lheosolhosparalhemostrarquepassaradasmarcas.

Xicaficouaflita:

- Não posso perguntar? Mas perguntei-lhe a ele e disse que sim,quequeria...eémuitomelhordoqueotioMiguel,quetemsidomauparaopaielheroubouotrono-insistiu.

Mariafezsinalaumadascriadas:

-Sãohorasdeirlanchar,FranciscadeBragança.

SozinhacomAugusto,fez-seumsilêncio,queMariaquebrou:

-Quandoéquesevaiembora,Augusto?

Elesorriu-lhe,divertido:

-Nãoquerresponderàperguntaqueasuairmãlhefez?

Mariasorriu:

-Numaoutraaltura, talvez,masagoraquerosaberquandoéque partedenovoparaaEuropa.

Augusto sentou-se no murinho de um dos canteiros, e com a mãonocoração,numgestoteatral,voltouàcarga:

- Sinceramente acredita que me pudesse ir embora? Só irei se viercomigo...

Nuncanenhumhomemlhe falaraassim,eaos20anos,ecomostiquesdacortedeMuniqueondesemprevivera,Augustoparecia-lheumhomemfeito. Era tão diferente de Alexandre, incapaz deste teatro todo, pensouMaria. Não podia dizer que lhe desagradasse sercortejada, nem que seimportasseque,nosúltimosbailes,Augustoaapertasse commais forçaelhe passasse a mão pelos ombros, ingindoafastar uma mosca ou ummosquito.

-Descon ioqueosenhorandaalerdemasiadasnovelas-respondeu,osolhospostosnochão,fingindo-sechocada.

Mas antes que se ofendesse, de facto, ou retirasse de initivamente aproposta,Mariaconcedeu:

-Ficocontentedesaberquenãovaipartir.Asuairmãdeveestarmuitofeliz. Lembro-me daminhamãeme dizer sempre como lhe tinha custadoicaraquisemamigos,porquenaquelaalturaomeupaiosmandou todosembora-acrescentou,comalgumazedume.

Augusto,inteligente,mudoudeassunto:

-VamosverseameninaFranciscaprecisaqueesteseuprofessorlhedêmaisuma liçãodeequitação.Vínhamoscásabersequeria irassistir,masdepois-sorriu-perdemo-noscomoutrosassuntos...

Xicajávinhaládedentroacorrere,ofegante,exclamou:

-Mana,mana, sabe que há uma passagem secreta de sua casa para anossa?Possovoltarporláparaopaço,posso?

Mariapôs-sedepé,espantada:

-Umapassagemsecreta?Quefantasiaéessa?

-Nãoéfantasia,querver?OJaimetinha-mefaladonela,eagoraquandofui à copaparamedaremo lanche, estava lá uma escrava, quenão sei onome,acomentarcomoutra.Eeupediparaver,elevaram-meàportaquedá para o túnel... tem sítio para pendurar lanternas e tudo. Augusto, oAugustopodeircomigo,nãopode?

Maria olhou para ambos, estupefacta. Nem um, nem outro sabiam queacabavadecompreenderomistérioqueafascinarasempre:como équeopai,quandodiziaquetinha«cortado»comDomitília,entravaesaíadopaçoparairvisitaramarquesadeSantos,semqueninguémdessepornada.

Olhou subitamente para Augusto, como quem diz «depois explico,mastemosdeadistrair»,eAugustoentendeuopedido(maisumcréditoaseufavor,pensou),e,pegandoàscavalitasnapequeninaXica,protestou:

- Outro dia, outro dia, princesa, porque agora é hora da nossa lição deequitação,evaijádaquiacavalo-disse,relinchando.

Xicariuàsgargalhadas:

-Venhaconnosco,mana.

Maria foi.Mais tarde, quando a casa estivesse em silêncio, encontrariaformadeirvercomosseusprópriosolhosapassagemsecreta.

Caroprimo,

Nemseiporonde começaresta carta, recebidaháminutosanotíciadeque o marquês de Barbacena foi demitido do seu lugar de chefe dogoverno, acusado, imagine-se, de ter «roubado» dinheiro ao orçamentopúblico. Espanto-me, já nem eu sei porquê, mas a verdade é que nãoesperava que o imperador se virasse contra Barbacena, que tem sabidogovernardeformaserenaeconciliadora.

ÉverdadequenosúltimostemposoHomemtemsidomuitocontestado.E insensatamente repete, seja muna reunião de ministério oumuna salacheia de convidados, que os liberais bem podem «roncar», que lhes fazorelhasmoucas,esãomúltiplasassituaçõesemqueralha aos deputados,oschamaàpedraerecusaqualquercríticanoparlamento.

Acredite que tenho di iculdade em distinguir os irmãos! E a lige-memuito que a nossa rainha veja todas estas cenas, e observe, suspeitoqueaté com admiração, o comportamento do pai, que parece sempre tãosegurodesiedestemido.

Temo que, desta vez, o imperador tenha ido longe de mais, porque osbrasileiros veneram Barbacena. Recordo as palavras de Mareschal e deBonifácio,queseperguntavam,háalgunsmeses,seoimperadornãoiadarpor si semnenhtuna das coroas. O pior é se sem esta, voltaatrás e querusaradafilha!

Por favor,mande-me rápido todas as reaçõesque aí se izeremao queaquisepassa,edê-menovasdafrente.Precisodelasparamanteromoral!

Dasuaprima,quemuitooestima,

LeonordaCâmara

P.S.-Barbacenamandouaoimperadorumacartaantesdeseretirarparaasuachácara,urnacartaqueédecortarofôlego.Cito-lheapenasesteparágrafo,tãodemolidor,mastãoverdadeiro:

«SenhorD.Pedro,umdostiosdeV.M.acabouosseusdiasnumaprisãoemSintra.V.M.poderáacabarosseusemalgumaprisãoemMinas,atítulodedoido,erealmentesóunidoidosacrificariaosinteressesdeumanação,

dasuafamília,darealezaemgeral,aoscaprichoseseduçõesdecriadosecaixeirosportugueses,que,aliás,constituemaescóriadoquehádemaisvileignorantenaEuropacivilizada.»

PaçodeSãoCristóvão,6deabrilde1831

arfaacabaradeadormecerquandoLeonordaCâmaraentroupeloseuquarto,agitada:

- Acorde, senhoraD.Maria, acorde, temos de ir ao paço, que o seu paichamou-noscomurgência.

Mariaabriuosolhos, assustada,mas rapidamente recuperouo sangue-frio, vestindo-se depressa, aceitando a capa com capuz que adama lheentregava.

A carruagem estava à porta, e as duas entraram nela e mandaram ococheiropôroscavalosaumtroterápidoemdireçãoaopaço.

- Há luz em todas as janelas - exclamou Maria, o coração a bateracelerado.

Leonor apertou-lhe a mão, com força, e não disse nada. A carruagemainda não tinha parado, e jáMaria abria a porta, pronta a saltar. Correupelasescadasacima,parouporsegundosnagrandeentrada,eprecipitou-sepelosegundolancedeescadasnadireçãodeondevinhaavozdopai.

Estacou à porta da sala, ao ver que a madrasta choravacompulsivamente, enquanto o pai assinava papéis postos sobre a suagrande secretária, falando alto com o embaixador de França, a quem iapedindomais papel, ou mais penas. José Bonifácio estava sentado,parecendoainda mais velho, os olhos no in inito, como se já tivessedesistidodeargumentar,eoembaixadoringlêsretiravalivrosdeumadasmuitasestantesqueforravamasparedesdaqueleescritório.

-Papai,oqueaconteceu?-gritou,ePedrorespondeu,sereno:

-Vamosembora,minhafilha.

- Embora, papai, porquê e para onde, papai? - perguntou Maria,resistindoaoimpulsodecorrerparaeleesegurar-seàssuaspernas, comofaziaempequena.

- Não querem um imperador nascido em Portugal, mesmo quando elepassou 23 anos no Brasil, e lhe dedicou a vida? Então, se não querem,abdico no seu irmão Pedro, que é nascido e criado nesta terra, e vou-meembora.

Mariatapouaboca,estarrecida:

-Papai,opapainãopodeirembora,nãopodeabdicar...

-Aiposso,posso,e jáo iz.Pre irosaircomhonraaserenxovalhado,aqueme chamemnomes eme insultem.Não vou chamar ossoldados, souummonarcaconstitucionalesaioummonarcaconstitucional.Ofereceram-meacoroadoBrasil,aceitei-aehonrei-a;nãomequerem,vou-meembora.

Maria respirou fundo, mas não chorou, e olhou com desprezo para aimperatriz, que não parava de fungar, escondendo a cara num lençoensopado:

-Enós,papai,vamoscomosenhor!-disse,numavozdeterminada.

Améliasoltouumgemido:

-Maria,nãoentendeuoqueoseupaidisse?Oseupaiquerpartir,masascriançasficamcá,omeuPedrinhoficaaqui,denovosemmãe...

Maria sentiuo chãoeo tetoandaremà roda, eLeonordaCâmara, queestava dois passos atrás desde que a conversa começara, estendeu osbraçosparaaimpedirdecair:

-Papai,eunãofico!

Pedroolhou-a,impaciente:

-Éclaroquenãofica,filha.Então,setodoestesarilhoéporacharemquedou mais atenção a Portugal do que ao Brasil, o que icava arainha dePortugalafazernoRiodejaneiro?

-Eosmanos?Nãovaideixaraquiosmanos,comestagentenaruaquelhespodefazermal,semopapaieD.Améliaparaosproteger,e amamãeenterradanaAjuda-exclamouMaria,empânico.

Pedroagarrounopapelqueacabaradeassinar,ebrandiu-onoar:

-Istoaqui,Maria,éumdecretoquenomeiaaquelesenhorali-eapontoupara JoséBonifácio - tutor dosmeusquatro ilhos, tutor daquele que é, apartirdeamanhã,oimperadordoBrasil.

MariaolhouparaJoséBonifácio,comoseacabassededarporele:

-Bonifácio,convençaomeupaianãofazerumacoisadestas.

Mas o novo tutor dos príncipes do Brasil, pondo-se de pé, encolheuosombros:

-SenhoraD.Maria,acreditequejátenteitudo...

- Mas e quando partimos, quando é que vamos? - perguntouMaria, ePedropassouporelaemdireçãoàporta:

- Agora mesmo! Não suporto despedir-me dos meus ilhos acordados,voudizer-lhesadeusenquantodormem.

E,virando-separaumcriado,ordenou:

-Peçaquemetragamaminhacoroaimperial...

Mariadeuumgrito:

-Nãopodefazerisso,papai,nãosepodeiremborasemsedespedir,eunãopossoiremborasemdizeradeusaosmanos...

Pedroestacouaopédaportaeolhouparaafilhacomumarameaçador:

-Maria,comporte-secomoarainhaqueé.Umarainhaqueembreve vaisentar-senotrono,issolhegaranteoseupai,porquehojedeixo acoroadoBrasil ao seu irmãoPedro, e voupara aEuropa lutar por aquela que lhepertenceasi,equeoassassinodomeuirmãolheroubou.

Evirando-separaLeonordaCâmara:

- E a senhora, por favor, trate de fazer as malas. Quero a minha filhaamanhã a bordo do Volage, que o embaixador britânico já pôs à nossadisposição.

EcomumaD.Améliachorosanoencalço,deixou-osatodos.

Meuprimo,

Aconteceuopior,D.Pedroabdicou,eviajaparaaEuropaapenas comoduquedeBragança.Escrevoàpressa, sópara lhedizerque embarcamoshoje.Depoisnãoseiquandopodereivoltaraescrever.

Apesar de não ser totalmente inesperado, pois as batalhas nas ruassucediam-se,commortose feridos,estamos todoschocados.O imperador,comoimaginava,agecomose tudo isto fosseacena inaldetunaópera,eacreditoquemergulhadonoseupapel-querepresentanaperfeição,diga-se de passagem -, mas a nossa rainha está em estado de choque, e D.Améliadestroçada,pordeixarascrianças,sobretudoomaispequenino,dequetemcuidadocomoum ilho.Nãoconsigoimaginarochoquequeestesquatro príncipes sentirão amanhã quando acordarem e o paço estivervazio.

QueDeusnosprotejaatodos,massobretudoSuaMajestade.

LeonordaCâmara

CastelodeMeudon,Paris,22deagostode1831

arfacorreuparaele,esquecidadetudo,dosprotocolosquedizemqueumarainhanãocorre,dovestidoquelheprendiaosmovimentos.Alexandremantinha-seemsentido,esóosorrisoabertorevelavaoquesentia.Aochegarperto,ocabelosoltoacair-lhepelosombros,arespiraçãoofegante,apequenarainhaparou,subitamenteinquieta:

-Alexandre,soueu,soueu-disse-lhe,lançando-se-lhenosbraços.

Alexandre esqueceu a pose, esqueceu o dever, esqueceu aresponsabilidade de irmão mais velho, como gostava de se imaginar, eapertou-acontrasi,rodopiando-anoar,beijando-lheocabelo,estameninade12anosquenuncalhesaíadopensamento.

Depois voltou a si, afastou-se e beijou-lhe a mão respeitosamente,pedindo-lhemildesculpas,atrapalhado.

Maria prendeu as suas mãos nas dele, deixou-se cair num banco depedradojardimdopalácio,ejuroucomconvicção:

-Parisvaisersempreaminhacidadefavorita!

ChegarahámenosdedoisdiasdeLondres,onde,porcaprichodopaievergonhasua,foraimpingida,nãohaviaoutrotermo,nacortedeWilliamIV,pormortedoreiGeorge,epiordoqueisso,diretamentenosaposentosdarainhaAdelaide.ContouaAlexandre:

-LogodepoisdechegaraBrest,omeupaiescreveu-lhesaexigirqueeufosse acolhida com todas as honras devidas a uma rainha,mas, maisousado ainda, que a tia Adelaide me recebesse nos seus própriosaposentos.Alexandre,imaginesó,apobresenhora,obrigada aenvolver-senestaconfusãopolítica,comogovernoadizerquenãotomavapartidonempelomeupai,nempelotioMiguel,earainhasemsaberoquefazer.

Sorrindo-lhe,acrescentou:

-Aúnicacoisaboa,naverdade,foiestarcomVitóriadenovo,podervê-la muitas vezes, mas diplomaticamente foi um desastre.Lembra-se dosnossosbailes,Alexandre,emquemetrataramcomo umarainhadefacto?Destaveznãohouvenempompa,nemcircunstância.Éclaroqueopapaiseofendeu,tirou-medaliealojou-nosatodosnumhotel,onde,sinceramente,mesentiprisioneira.Rodeou-medasmáscompanhiasquetrouxedoBrasil,com ordens de quevigiassem todos os meus gestos, lessem as minhascartas,controlassemasvisitas.

Estendendo-lhedenovoamão,comoquemsecerti icadequeestavaali,decarneeosso,murmurou:

-ImagineaminhadesilusãoquandosoubequeoAlexandreetodaasuafamíliasemudaramparaParis.Nempodiaescrever-lhe. Quando descobrique abriam as cartas, passei a mandá-las por portadores seguros, massabeoqueaconteceuaseguir?Observavamàluzafolhaseguintedobloco,onde icavaacópiadoqueescrevera! EueaLeonordaCâmaratínhamosmedodaquelatropadebandidos.Omeupaihesitava.Descon ioqueaindahoje hesita, tem vontade dereivindicar a coroa para ele, e sinceramentenãoseisenãoeramelhorparatodos.Sabeque,devezemquando,aindafalaemcasar-mecomomeutioMiguel?

O rosto de Alexandre endureceu. O imperador traía-os a todos quandopareciaalinharcomaestratégiaaustríacaqueaindaqueria veraquestãodePortugal saldada como casamentoda tia comosobrinho,mantendo oregimeabsolutista.

Mariaparou,comoqueparaodeixardigerirainformaçãoquelhe dava,edepoiscontinuou:

- A gota de água foi quando o próprio lord Palmerston disse ao papaique antesdemaisnada eraprecisoqueopróprio imperador soubesse oque queria! Até o poderoso ministro dos Negócios Estrangeiros inglêspercebeuocernedaquestão.

Mariacontinuavaasegurar-lheamãocomforça:

-Não iqueatrapalhado,Alexandre.Seiperfeitamentequeoseu pai lhe

deve ter ditomuito do que hoje lhe conto. O que é certo é que um dia osenhor D. Pedro se fartou e ala que se faz tarde, em menos de vinte equatro horas mandou-nos fazer as malas e mudar-nos para Paris. Parisonde o rei Luís Filipe e a rainha Amélia também já estavam amuados,porqueo imperadorpreferiraaaliançainglesa. Sentiram-seumasegundaescolha,mas não podiam ter sidomais simpáticos paramim. Instalaram-nosnesta casa -disse, apontando comacabeçaparaopequenopalácio -,vieram visitar-me quando cheguei,e os ilhos foram encantadores. Oresultado é que agora o meu pai anda muito satisfeito, de caçada emcaçada,defestejoemfestejo,eoseu...eoseupaidesesperado,àesperadedinheiroereforçosnailhaTerceira.

Alexandrenãosabiabemoquedizer.Quantasequantasvezes sonharareencontrarMaria,desdequearainhapartiraparaoBrasil. Concentrara-se nos estudos, tentando esquecê-la, tentando esquecerque não tinhamfuturo juntos, e quando o imperador nãomandara o dinheiro prometidopara saldar asdívidasquePalmela contraíra em seunome, a família foraobrigada a sair de Inglaterra. Nessa altura inscrevera-se na Sorbonne, eestudaramais ainda. Não se atrevera a escrever à rainha, limitando-se apediràmãequeacrescentasseum«saudadesdoAlexandre»no inaldassuascartas,eaospoucosperderaaesperançadeavoltaraver.Eagoraoimperador do Brasil transformara-seemduquedeBragançaeaparecerana Europa, aparentemente encabeçando a luta da sua ilha pelo trono.Aparentemente,porque em Paris recusava-se a receber os homens quelideravam acausa da rainha, e o dinheiro continuava a faltar parainanciar asexpedições que já estavam no terreno, criando umdescontentamentoenormeemaldisfarçadoentreosportuguesesexilados.Quanto aD. Miguel, só via vantagens no desnorte do irmão, rei absolutonumPortugaldivididoeensanguentado.

-EasenhoraD.Améliacomoestá?-perguntou,procurandomudarorumodaconversa,empurrando-aparalugarmaisseguro.

Mariafezumacareta:

-O bebé nasce dentro de meses, e lá vemmais uma meia-irmãou ummeio-irmão.AfilhamaisvelhadeDomitília,aBelinhaqueaminhamãenãoquerianopaço,nempróximadenós, estáaí, eviveagoradebaixoda asadaduquesadeBragança,vejaláasvoltasqueomundodá.

Alexandresorriu:

-Dávoltas,masmudapouco,senhoraD.Maria.

Mariadevolveuosorriso:

- Leva-me a patinar de novo?No Brasil, lembrava-me tantas vezes dasnossasliçõesnolagogeladoemfrentedecasa,lembra-se?

Omais velhodosPalmela teve vontadede a chegar a si, de a protegerdestacamarilhadequeviviarodeada.Mariaestavamuitomaisalta,masosolhos mantinham o brilho, a expressão iluminava-se coma mesmavelocidade,enãoaprendera,apesardosesforçosedasoraçõesdeLeonordaCâmara,aconterosseusimpulsos.Aos12anosera,defacto,indomável,eseos liberaisganhassemasuacausa, seoseupai,Saldanha,TerceiraetodososoutrosqueestavamnosAçores eplaneavam tomaro continente,conseguissem recuperar o trono para lho entregar, seria uma rainhadeterminada.Senhoradoseunariz.

Mariaobservava-o,extasiada:

-Seiqueestáapensarquevouserumarainhamuitoteimosa...

Vendo-ocorardenovo,exclamoudealegria:

- Ah, ah, ainda sou capaz de lhe ler os pensamentos. Vê, vêAlexandre,comosomosfeitosumparaooutro?

Alexandre tapou-lhe a boca com a mão, e Maria, ainda tão menina,procuroumordê-la:

-Asrainhasnãomordem-disse-lheAlexandre,descontraindo, sentindo-se de novo mais à vontade, como se brincasse com uma dassuas irmãsmaispequenas.

- Venha, vou levá-la de regresso a casa, antes que chegue por aí asenhoraD.Leonor,enuncamaismedeixevisitá-la.

Mariadeu-lheobraço,segredando:

-Suborneiocriadofrancêsparamedeixarentrarpelaportada cozinha,

por isso vá pela da frente, está bem?A duquesa de Bragança icará felizpor receber a sua visita - disse-lhe piscando o olho, e desapareceu tãodepressacomochegara.

Meuprimo,

Como sabe, estivemos em Londres, a desfazer o que já estava feito,sendo a rainha obrigada a andar sempre atrás da duquesa deBragança,aparecendoempúblicosemdistinçãoalguma,postaàmesafrentea todaagente, não só abaixo do pai e da madrasta, mas também de outrosportugueses. A rainha foi tratada com a amizade e a ternura de sempre,massemaglóriadaoutravez.Viveurodeadadebrasileiros ehomensdacon iança do imperador, gente de má índole, e constantemente vigiada.Depois, uni dia, o imperador acordou coma lembrança deque o governoinglêsnãoatratavacomorainhae,tendoacertezadequenão,certezaquelhe chegou cara a cara com lorcl Palmerston, mandou-nos a todos seguirimediatamenteparaParis.Eaquiestamos.

Osconselheirostêmsidocomo igurantesdoteatro:Eleéquefala, Eleéqueescreve,Eleé,en im,quemtemouvido«Não»atudoetodos.Atéestoucom dó d'Ele, porque tudo lhe sai torto;mas não é possívelser de outromodo,eopioréquenóséquepagamos.

Primo,esperoque, sendoembaixadordePortugalaquiemFrança, sejacapazdemudaromodocomoanossarainhaé tratada.Sabeo queéquedesejava?

Que a rainha de França tomasse à sua conta esta infeliz meninadesamparada, para a tirar das mãos das bruxas. Mas se for o mesmo«diplomata» a tratar da vida dela aqui, como lá, os resultados serãonecessariamente osmesmos. Pobremenina! Con iomuitonaprovidência,na justiça da sua causa, mas é bom que se trabalhe e que oprimoempreguetodososmeiosquepuder.NãoselembredoHomem, lembre-sesódarainha,porqueosnossosserviçossãoaelaenãoaopai. Adeus,meuprimo, vou icarmuito contente quando lhe coubermunaparte da glóriaderestaurarotronodarainhaerestabelecerosossegodePortugal.

LeonordaCâmara

P.S.-Apesardeseterdadocomogarantiaasjoiasdarainha,oimperadorsóconseguiuangariartrêsmillibras,oqueéumamiséria,enãovaichegarparanada.Oimperadornãoquerusardoseudinheiro,alegandoqueprecisadeleparasuasegurançapessoal,mastalvezoprimo,Palmelaououtrosejamcapazesdeconseguirqueemprestemmaisàcausa,agoraqueopaidameninacáestá.Adificuldadeéconseguirqueeleassumaliderarasualuta,oquemeparececomplicado,maspossível.

Paris,25desetembrode1831

svestidosdasprimasOrleãeseramdeslumbrantes,earainhaAméliadecidiraqueeraprecisoqueascostureirasfizessemiguaisparaarainhadePortugal.Maria,direitaparaquelhetirassemasmedidas,sorriaparaClementina,doisanosmaisvelhadoqueela,ecomquemfizeraumaamizadeinstantânea:

-Clem,sabequeméquevaiaobailedelogoànoite?

Clementinapiscou-lheoolho,entrerisinhos:

-Aqueleemqueestáapensar,decertezaabsoluta.

Maria não conseguira manter em segredo a sua admiração porAlexandre.Háumasemanaquevinha ter comelasao jardim, eporduasvezes conseguira convencer Leonor da Câmara a levá-la a casa dosPalmela. Sentira uma emoção enorme ao regressar à sala de estar de D.Eugénia: Domingos já tão alto e crescido, e todos os outros quaseirreconhecíveis.Pegaranobebémaispequeninoaocolo, comovida, com amemóriadequedooutroladodomarestavaPedro,procurandoportodaacasa a mana mais velha e o pai, sem os conseguir encontrar. As maispequeninaslembravam-lheJanuária,PaulaeXica,amanaXica,poucomaisdo que abandonadas à sua sorte. Como estaria a tosse dePaula? JáescreveraàmarquesadeAguiarparaqueavigiasseenãose esquecessedelevarXicaparaachácaraedelhedarmuitomimo.

Clemrepetiaapergunta:

- Maria, onde é que está com a cabeça? Disse-lhe que o AlexandredeSousa Holstein ia hoje ao baile, e se usar aquele vestido verde quelheemprestei,vaiverqueelenãoconsegueolharparamaisninguém.

Maria,osolhosbrilhantes,olhou-a,espantada:

- Sabequeeraverdeomeumelhorvestidoquandoestive emLondresaos9anos?Seráqueeleselembra?

Clemriu:

-Malse livrardessesal inetes todos,podíamos irao lagodardecomeraospatos,quemsabequeméqueencontramosporlá...

Arainhaacenoucomacabeça,impacientecomotempoquedemoravaaprova. Gostava de Paris, gostava destes jardins de buxos aparados, osamores-perfeitosalinhadosa fazerasbordas,doscaminhosdepedrinhasque ziguezagueavam por meio dos canteiros. Não havia palmeiras, nemmatas,nemmorros,nemogritodourubu,eascigarrasaquitambémnãocantavam, mas pelo menos as pessoas pareciam mais divertidas,maisprontas a dançar e a brincar do que em Londres, e o pai entregara-a àfamíliarealfrancesacomumaliberdadequedesconheciaatéagora.

Suspirou ao pensar em Leonor da Câmara. Percebia que amestra nãoaprovava estas meninas que lhe pareciam demasiado «sabidas», queapanhavaabeijarhomensmaisvelhoseemcenasousadasquenenhumameninadebemdeviasequer imaginar,masrecusava-sea icaremcasaaaprenderagramáticaportuguesaouarezarnooratório,comopretendia.

-Deixe-me ir,D. Leonor!Vou comaCleme comos irmãosdela - dizia,omitindo,semsaberporquê,onomedeAlexandre.

Leonoracabavapordeixar,comvontadedeverasuameninafeliz,masvincava mais uma ruga. Maria não estudava há meses, aindamostravamenos interesse do que dantes pela política, e dava ideia deque a únicacoisaqueambicionavaerasermaisumadamanumacortealegreefestiva.

Mariaviu-omalentrounasaladasTulherias.UsavaafardadoExércitoportuguês,alto,elegante,umsorrisotímidonoslábios,masunsolhosinteressadosqueabsorviamtudoàsuavolta.Pareciatãomaisvelhodoqueela,deviacertamenteachá-laumacriança,gostardelacomoosirmãosgostamdasirmãsmaisnovas.Seaomenosselembrassequeamãecasaraaos11anos...

Comocoraçãoagitado,percebeuquefalavaauma,duas,trêsraparigasmaisvelhasdoqueela,osdecotesarevelaremformasdemulher, esentiu

raiva do seu corpo de menina, num vestido de menina, umafaixa nacintura, um io de pedras e brilhantes em redor do pescoço, substituindoosadornosnaturais...

Clempôs-lheumamãonobraçoesussurrou-lhe:

-Émuitobonito,masétãosério,meuDeus!

Mariaprotestou:

- Num baile dos reis de França será, mas quando passeamos peloscamposemedizonomedospássarosedasplantas,emecontadequeéquesãofeitasasestrelas,nãoénemsisudo,nemsoturno.

Clem, com todo o desembaraço, acenou a Alexandre, apontando paraMaria, cujo rosto se tingiu de vermelho-vivo. «É parva», protestou, massentiuaspernastremeremquandooviudirigir-seaelas.

Subitamente não encontrava palavras, mas Clem fez a despesa daconversa,empurrando-osparaumavalsa,antesquepudessemprotestar.

-Alexandre, não sei dançar valsas, odeio valsas - queixou-se, masdançaramjuntos,ágeis,amãodelenasua,deixandoquealevasse.Quandoatrouxedevoltaàcadeira,Mariaolhouparaochão.Alexandreestranhouosilêncio:

-Magoei-a?-perguntou,ansioso.

MariaergueuacaraeosseusolhosmergulharamnosdeAlexandre.

-Nunca.Seiquenuncamemagoaria.

E,numimpulso,deu-lheumbeijonacara:

- Prometo-lhe que só danço a valsa se for consigo, nunca, nuncamaisquerodançaravalsacommaisninguém.

Alexandredeuumagargalhada:

-SenhoraD.Maria,nãodesejeasimesmaumacoisadessas...seja oqueforqueo futuronos reserve, saibasemprequeacimade tudo quero que

sejamuitofeliz.

Ocriadoentregou-lheumacartacomasarmasdosduquesdeKent.UmacartadeVitória,pensou,feliz,epediuaLeonorqueadeixasseabri-lajá:

-Depois estudo a Carta, está bem, agora deixe-me ler esta!De certezaabsolutaquecontatudosobreacoroaçãodorei.

Leonorassentiu:

- Mas lê-a aqui sentada à mesa, e depois continuamos os trabalhos -exigiu.

OsobrolhodeMariafranziu-secomirritação:

- Às vezes parece que se esquece de quem sou - disse, zangada.E,despótica, apontou para a porta: - Faça o favor de sair. Chamo-a quandoestiverprontaarecomeçaralição.

Leonor olhou-a, incrédula, mas obedeceu-lhe, e mal a mestra saiu daporta, Maria sentou-se numa das cadeiras próximas da janela, os péserguidossobreumaoutra,eabriuacarta.

A tintaestavaesborratada,Vitóriaestiveraa chorarenquanto escrevia.Leu, ansiosa. Era inacreditável a crueldade da duquesa de Kent, queproibiraVitóriadeiràcoroaçãodorei,porqueWilliamIV doReinoUnidonão aceitara que a sobrinha viesse logo atrás de si na procissão até aoaltar.AVitóriatantofaziaemquelugaria,oque queriaera ir,masamãenãocedera.Desdeoberçoquepreparavauma rainha,nãopodiapermitirquearebaixassem,pontofinal.

«Nadameconseguiuconsolar,nemasminhasbonecasmeconsolaram»,escreviaapobreVitória,aindamaissozinhaagoraqueo tioLeopoldoerareidaBélgica,umpaísnovoqueconvidavaparareiquemlheapetecia,quecoisaestranha.

Maria suspirou. Nas últimas semanas não tinha pensado nisso, tãodivertidaestavaaserapenasumadamanasfestasdeverãodeumacortemundana, mas a verdade é que estava na mesma situação daprincesaherdeira do Império britânico. Uma e outra esperavam a sua vez. E

pensandobem,avezdeVitóriapodiachegarantesdasua,seopapainãosedecidisseapartirparaguerra,seopapainãoescolhesse lutarparaqueotronodePortugalfosseseu.

ChamouLeonor.Agoraapetecia-lhetercomquemfalar.

Pedroentrounosaposentosdafilha,eufórico.Aproximou-sedeMariaeabraçou-aefusivamentecomosenãoavisseháanos,e,beijando-anatesta,anunciou:

- Filha, hoje o teu nome foi aclamado em Lisboa. Trezentos homensdaInfantariasaíramàruaegritaram«VivaD.MariaII.VivaaCarta». Estásaouvir,filha?Jágritamoteunome,estáquase...

-Edeixaram-nosgritar?-perguntouMaria,espantada.

-Aindaconseguiramatravessarmeiacidade,masacabaramderrotadosna Praça da Alegria. As barbaridades que o meu irmão e osseuscorreligionáriostêmfeitovãovirar-secontraeles.Hámuitagente feridaemorta,as famíliasestãocansadasdeestardivididas,e tucomeçasaseraesperançadeumPortugaldiferente,tueaCarta.

E com as mãos nos seus ombros, olhando-a de frente, perguntou,subitamentezangado:

-Já leste a Carta? Já sabes o que a Carta diz, ou a tua mestra andaaperdertempoaensinar-teaBíblia?

Mariamanteveoseuolhar:

-Jáli,simsenhor,enãodigamaldeLeonordaCâmara,quesedouaindamuitoserrosdeortografia,ousenãoestudoosuficiente,nãoéculpadela.

Nervosacomoconfronto,soltou-sedasmãosdopaiechegou-seà janela,procurou assustar a ansiedade que a tomava, olhando os jardineiros queregavamarelva.Roeuasunhas,equandodeuporissopôsamãonobolso,maldito hábito que viera não se sabe de onde,agravado nos tempos emquesesentiratãopresaesozinhanaquelehoteldeLondres...

Pedrovoltouaaproximar-se,denovomeigo:

- Filha, só quero que estejas preparada para ser rainha. Longe vai otempoemqueos reis se consideravamdivinos.Hoje éprecisomerecerolugar,teraformaçãonecessáriaparaconduzirosdestinosdeumanação.

Maria conteveavontadede lhedizerquenão seriadi ícil fazermelhordoquePedroeMiguel.

Caroprimo,

Umanotarápida,paralhedizerqueoviao luidodasala,masnão acheioportuno falar-lhe. O imperador continua rodeado desta gente, e temaproveitado mal todas as oportunidades de encontrar apoios einanciamentoparaa causa,mesmoquandoos reisdeFrançapromovemjantaresparaessemesmoefeito.Faladecaça,do«seuBrasil»,dos ilhos,masnãotratadonegócio,comosepretendedele.Masquelhedigo,primo,seseiquesabedetudooquesepassa,esofremaisdoqueninguém.

Espero que tudo se resolva depressa, porque se a rainha passamuitomaistempoaquitemoqueasuacabeça iqueocaesehabitueatiniavidaque nunca terá quando regressarmos a Lisboa. Percebo o seudeshnnbramento, mas não posso condescender, está sobre os meusombros a responsabilidade de a tornar capaz de assumir o seu lugar.Esforço-me para que estude, mas nada. Alexandre de Sousa Holstein étuna boa in luência, seique gosta delemais do que de todos os outros, etenho a certeza que nospasseios que fazem juntos lhe incute mais bomsensoe sabedoriadoqueeuemseishorasde lição,por issoconfesso-lhequetenhosidomais liberalnosencontrosquelhespermitojuntos,doqueseorapazfosseoutro.

Atébreve,

LeonordaCâmara

Paris,1dedezembrode1831

arfafoichamadaaoquartoparaverabebérecém-nascida.Beijou-acomindiferença,cumprimentouamadrastacomfrieza.UmaD.AméliagrandeeumaD.Améliapequena,nãotencionavagostarnemdeuma,nemdeoutra.

«Aindabemqueéumarapariga,porquetemiaquefossemaisumPedro,esuportariamalveromeupaibabadocomumfilhovarão,afeiçoando-seaeleeesquecendoonossoPedrinho,equemsabemetendonacabeçaqueera eleo futuro rei dePortugal. Sabe comoos pais sãocomos rapazes, ecomoopovopreferesempreumreiaumarainha»,escreveuaVitória.

«Quando tiver ilhos, quero que sejam todos rapazes. Assim o meumarido icarásatisfeitocomigoecomobebé,eopovoportuguês terá umherdeirovarão.Seumarainhaformãedemuitos ilhoshomens, julgoquelhe perdoam ser mulher», con idenciara na mesma carta.Mas quanto aesta meia-irmã pequenina, tencionava ignorá-la, porque a inal não eramais do que a ilha dos duques de Bragança, pensoucommaldade. Umacriança sobre a qual os seus ilhos teriam sempre precedência. Etencionavatermuitos...

QuandoasegeparoufrenteacasadosPalmela,sentiuocoraçãodarumsalto.Seriapossívelquetivessevistoentraromarquês,osenhorD.Pedro?Mascomo,seestavanaTerceira,seAlexandreaindahádiasestiveracomelaafazerumembrulhodecigarrosecharutosparalhemandar?

Correu pelos degraus acima, atravessou o corredor e abriu a porta dasala onde habitualmente toda a família estava reunida. A lenhacrepitavano fogão,mas só as duasmais pequeninas brincavam numcanto com asbonecas:

- Onde é que está a vossa mãe? - perguntou, com um pressentimentoterrível.

Anaapontouparaoandardecima,semdizerumapalavra,voltandoaospratinhosdasbonecas,eCatarinaconcordoucomacabeça, sentando-senacadeirinha alentejana, certamente parte da mobíliaportuguesa dosmarqueses.

Mariasubiuasescadascomocoraçãoapertado,enopatamarencontrouasenhoraD.Eugénia:

- SenhoraD.Maria, não a esperávamos tão cedo - disse, surpreendida,dobrandoojoelhonumavéniaebeijando-lheamão.

Mariapercebeucomoasuamãotremia:

- O que é que aconteceu? Será possível ter visto o senhor D. Pedroentrar há minutos, ou sonhei? E onde está o Alexandre, a Eugénia, oDomingos...-Asperguntascaíamemcatadupa.

Eugéniadeu-lheobraçoatéaocorredorquedavaparaosquartos.

Sentou-secomelanumbancocorridodepalhinhaeexplicou-lhe:

- O Alexandre está muito doente, uma afeção dos pulmões, omédicoestevecá,dizqueégrave,masesperaquecomosremédiosacrisepasse...

Maria icou sem palavras. Alexandre doente? Alexandre gravementedoente?Agoraque,aofimdetantotempo,setinhamreencontrado.

O marquês de Palmela fechou com cuidado a porta do quarto doseufilhomaisvelho,vindoaoseuencontro:

-Majestade,quehonraévê-laaqui...-edepois,deixando-secairnolugarlivredobanco,escondeuacaranasmãos.

Mariaroeuasunhas,semsaberoquedizer.Porqueéquetodos aquelesqueamavalhefugiamsempre,comoareiaentreosdedos?

Paris,8demaiode1832

arfapegounalinhaenopanoesentou-seentreassuasdamas,quebordavam.Precisavadeumpretextoparabaixaracabeçaenãodeixarquelhelessemosolhos,encarnadosdechorar.Alexandreiapartir,porrecomendaçãodosmédicos,paraosAçores,ondehátrêsmesesestavaosenhorD.Pedro,quenumimpulsoagarraranaespada,deixaraParisejuntara-seaosseushomens,lutandopelacoroaque,afinal,decidiraquepertenciadefactoàfilha.

Durantetodoo inverno,Maria izera-lhevisitasdiárias,ehavia dias emqueoherdeirodosPalmelapareciamelhoreemquejogavamàscartas,ouviam juntos enciclopédias de plantas, e a rainhaapontava-lhe as queaprendera a conhecer no Brasil e falava-lhe delas, com entusiasmo.Mas,sem se saber porquê, voltavam os dias escuros, em que Alexandreconseguiapoucomaisdoquefazer-lheumsorrisoeestenderamãofebrilpara levar a dela aos lábios gretados, na menção de a beijar. Nessesmomentos, pedia-lhe, numa voz débil, que lhefalasse das espécies maisraras queD. Leopoldina encontrara emandara para a Europa, pedia-lhequecontassecomoeramascachoeiras, lhedissessecomoJaimearmavaasarmadilhasparaospapagaios,e lhedescrevesseorecortedasmontanhascontraocéuazul, e comoera quenteomarquebatianaspraiasdeareiabranca.

Maria,emocionada,provocava-o:

-Tardanadaquerquelheimiteosominfernaldascigarras.

Alexandre ria, um riso baixinho, que tantas vezes acabava numataquedetosseaqueacudiaamãe,sempreatentanumcanto,afazeroseutricot.

Quando as folhas verde-alface começaram a surgir nas árvores, e ospássarosdenovoacantar,oslagosdosjardinsdeParisapartir ogeloeaágua a correr de novo pelos canais, Maria teve esperança, esperou queAlexandre icasse de novo bom, que a luz da primavera devorasse as

sombras.

Mas Alexandre icara pior, e os médicos e boticários que oacompanhavamsugeriramosAçorescomoaúltimaesperança,amudançadearesqueopodiasalvar.

Despedira-sedeleontemànoite,disfarçandoaangústia.

-Encontramo-nosemLisboa-dissera-lheele,quandosedebruçaraparaobeijar.

-Encontramo-nosemLisboa - responderaela,massabia, sabiano maisfundodesi,quenuncamaisovoltariaaver.

NessatarderecebeuumacartadeVitória,emquecontavaqueamãelhederaumdiário:«Aminhamãesabeque,àmedidaquemetornomaisvelha,consigopercebermelhorestesistemaestranhoquemerodeia,equesoucapazdeguardarparamimospensamentos.Esperasaberosmeussegredosatravésdesteslivrinhos,ondemeincitaadesabafar.Tenhoacerteza,eelanãomedesmentiu,quetencionalê-losdepois.Elaeo«spyJC»,comochamaagoraaConroy.Piorparaeles.»

Agora,comacartadaamiganamão,deuporsiapensarquenãohaviapáginassuficientesnoMundointeiroquepudessemconterasuador.

Primo,

Dê-menotícias, estoumuito ralada. Sei que sebateuàsportasdePariscomosenhorJoãoOliveiraeDaun,ocadavezmaissobranceiroe lunáticoSaldanha, porque andava por aí a dizermal do Homem, numaaltura emque tudo fazemos para dar a D. Pedro credibilidade, e a insinuar que arainhaétunadéspota,enãoserveaopaís.Queódio.Seiquenãomorreu,disseram-mepelomenos isso,masmaisnada.Oseumaugénio,primo, sólhe pode trazer problemas, e os tempos não são para perder a cabeça,emboraseentendaodesesperoqueprovoquem.

Sinceramente,deveriaterdescon iadodequesepassavaqualquercoisa

de grave, porque o procurei por duas vezes em sua casa, mas nuncaestava, e o seu criado pareceu-me preocupado. Julguei que fossem asdi iculdades inanceiras de queme falou, porque é duro o papel que lhedeixaramquandopartiram: comopode angariarmais verbas para a luta,contrair empréstimos em nome do Homem, se agora tudo passa peladecisão da imperatriz, e ela não decide nada sem falar como marido,incomunicáveleindeciso,estejaondeestiver.

Bemdiziaoprimoquecompreendiaqueoimperadornãoquisesse levarSaldanha com ele, mas a verdade é que debaixo das barbas doHomemtalvez fosse menos perigoso do que à solta em Paris, ondeprometemundos e luidos, fala de mais, e, despeitado por não ser integrado naforça que segue para Portugal, quer dar nas vistas de outra forma. Pelomenos na guerra teriamelhor uso para a espada emenos tempo para alíngua.

Dê-menotícias rápido.HojepartemamarquesaeAlexandre,que Deuslhevalha,esequisermandaralgumanotaparaoimperador sabequetemaliportadoresseguros.Arainhaestáinconsolável,pobremenina.

QueDeusoabençoe,

LeonordaCâmara

Paris,27dejunhode1832

arfaestavasentadanabordadotanquedepedra,amãoalevaraáguacomoumremo,pensativa.Clemeasdamasdacortefrancesatinhamcontinuadoopasseio,eseesforçasseosolhosaindaasviaaolonge,adesaparecernohorizonte.PararanaqueletanqueondeháumanoAlexandrelheexplicaracomosealimentavaumnenúfar,asraízessemterra.Receberaumacartadeleasemanapassada,quatrooucincolinhasapenas,comumaletratrémula,emagradecimentoporaquelaquelheescrevera.

Aolongeouviuumavozqueachamava,masjulgouquesonhava.

Quando levantou os olhos viu Domingos, que se aproximava a passoslargos,asuaaiaeLeonordaCâmaradeixando-seficarparatrás.

Abriu os olhos com força, procurando não chorar, o peito subindo edescendo rápido, à medida que o coração batia mais depressa. Queriaantecipar-seànotíciaqueDomingoslhetrazia,masnãoeracapaz.

- O Alexandre morreu, senhora D. Maria - balbuciou o pobre rapaz,tentandomanter-se irme,tão irmecomoosseus14anoslhepermitiam.EMariamordeu o lábio, com a força que 13 anos tão sofridos a tornavamcapaz.

-Conte-metudo,Domingos,conte-mecomofoi...

Domingossentou-seaoseulado,amãonaáguacomoadarainha,comoseofrioaliviasseador,econtou:

-Sóseioqueamãenosescreveuhoje.DizqueAlexandre foium heróiaté ao im. Insistiu em vestir o seu uniforme de soldado de Artilharia, aespada na bainha, e em assistir a partir de uma sege à revista que oimperador fez à guarnição de sete mil e quinhentos homens quehoje

partiaparaocontinente,quehojepartiuparatomaroPorto. Aminhamãenãoo tentou sequer desaconselhar, percebendoque eramais importantequemorresse feliz e orgulhoso, sabendo que asenhoraD.Maria poderiafinalmenteserrainhanoseureino,doquefechadonumquarto...

O corpo damenina-rainha tremia em soluços silenciosos, as lágrimas acaíremnumacadeiacadavezmaisgrossapelasuapelebranca esardenta,pingando a água do lago de pedra. Domingos, comovido, limpou os olhosmolhadosàmangadocasaco,mascontinuou:

-Omeupaiestavaaoladodoimperador,epassourevistaaos soldados,dizaminhamãe,comosolhospostosnasege,osolhospresosaosdomeuirmão,paraondeolhavamcomoquehipnotizadostodososnossoshomens.Quando terminou, a minha mãe, comaquela coragem que só ela tem,perguntouaAlexandresenãoeramelhorpedirosúltimossacramentos,eo meu irmão quis saber senão os podiam adiar um bocadinho mais, sópara deixar que o meupai partisse primeiro... partisse antes de saber,ainda comalgumaesperança.Masaminhamãedisse-lhequenão,quesesentiriamtodos melhor se recebesse a última bênção de um padre, eAlexandremorreupoucodepois.

Domingos respirou fundo, tentando manter a voz irme. Mariarecuperouasua:

-O seu pai partiu para Portugal? E a sua mãe icou ali sozinha,com ocorpo de Alexandre, sem ninguém, nenhum de vocês perto dela,Alexandre, o seu ilho mais velho, que sempre fez as vezes do seu paiquandoeleparte...

Domingosanuiu:

-Esperoqueaminhamãechegueouhojeouamanhã.Estamostodos cáparaareceber...

Maria levantou-se abruptamente, e despediu-se dele com um beijonatesta. Domingos icou a vê-la partir, sem saber como mitigar a dor darainha,easua.

Caroprimo,

Sei que está emLondres a procurar que as potências intervenhamemfavor da nossa causa, que outra solução não se vê, com as nossas tropasentrincheiradasnoPorto,cercadaspelosmiguelistas,amorrerdefome, decóleraedetifo.

Sei que tem procurado que a imperatriz o apoie na sua tentativa deencontrar fundos. Disseram-me também que os ingleses não queremcomprarosdoispaláciosnoRiodeJaneiroqueoimperadorestádispostoavender, mas que aceitariam emprestar contra uma hipoteca. Digo-lhe sóquenãocontecomela,quenãovaitomarumadecisãosemqueoHomemlhe dê tuna ordem por escrito. Julguei que aquele medoque sente emrelação a ele se dissipasse quando se sentisse em segurança numa corteeuropeia,próximada sua família edos seus irmãos,masnadaparece termudado.Continua tristee calada,devoltadoberçoda ilha, rezandopelomaridoque temequemorraemcombate.NemanotíciadosdesvariosdoHomem a parece afetar. Se fosse eu, e soubesse que o meu marido metinhaenganadocomuma freira,pode teracerteza,primo,que lhevendiaos prédios todos. Talvez seja por isso, por ser demasiado independente,quenuncacasei.

Tudooqueprecisar,mandedizer.

Dasuaprimaquemuitooestima,

LeonordaCâmara

Paris,15dejunhode1833

avatudoparavoltaraoBrasil-suspirouMaria,que,aos14anos,estavamaisaltaebemmaislargadoqueClem.Sentadanofundodacamadaprincesafrancesa,experimentava«chapéusdeboneca»,comolheschamava,mascomoquemcumpreumritualenfadonho,quenãoserveparamaisnadasenãoparaajudarapassarotempo.

Clemdeixavaqueumacriadalhepenteasseocabelocomumaescovadetartaruga,eolhouaamigadesoslaio:

-Andaarepetiramesmacoisadesdeque...

Mariaacabou-lheafrase:

- Não tenha medo de o dizer, Clem, desde que a minha irmã Paulamorreu, seismesesdepoisdeAlexandre...Mas sabe, amorteda Paula foiaindamais dura de uma certamaneira, porque estão lá sem família, sempai, nem mãe, nem irmã mais velha, já imaginou? E selesse a carta deJanuáriapercebiacomoomeucoração icouemferida, imploravaaopapaipara voltar, implorava-me a mim que regressasse, e sabe que eu e elanuncanosdemosmuitobem.

Clem não conseguia olhar para a rainha. Não se imaginava longe dosseusdezirmãos.Marianempareciadarporela:

-SabeoqueéqueaJanuáriadizia?QueelaeamanaXicatinhamjuradonãocomeraçúcarduranteseismeses,açúcar,Clem,a coisa melhorqueoBrasiltem,emaçãodegraçasporoPedronãoter morridotambém!Jáviuo que é duas pobresmeninas sentirem que depende das suas orações avidadoimperador?

Nervosa,atirouoschapéusparaaoutrapontadoquarto,semcerimónia:

- Omeu pai se calhar também vai morrer, naquelas batalhas todas. Já

nãoseisequeroaquelemalditotronoquetantotrabalhodáatodaagente!

Clemabriuaboca,chocada:

-Nãodigaisso,Maria,depois...

-Ohnão,ClementinadeOrleães,sómefaltavaquetambémmepusessesobreosombrosopesodaminhacoroa!

Clemjáconheciaaamiga.Mudourapidamentedeassunto:

- Deixe-os lá a lutar, e conte-me histórias de Vitória. Quero tantoconhecê-la. Já percebi que os meus pais pensam em casar o meu irmãomaisvelhocomela.

Maria olhou-a, surpreendida. Tinham-no conhecido em pequenas,eVitóriadefactofalara-lhedopossívelpretendente,massecretamente,nosúltimosmeses,pensaraqueseriaomaridoidealparasi.

Clemapanhouaexpressãodeespantoeriu:

-Não sepreocupe,queoquenão faltanesta família são rapazes. Diga-me lá qual é que preferia? O Henri acha-lhe imensa graça, e François équasedasuaidade,mastemavantagemdeseromeuirmãofavorito...EseVitória icasse com o Fernando, seríamos todas primase cunhadas entrenós,erabom,nãoera?

Maria corou. Henri parecia-lhe demasiado sisudo, dava-lhe raspanetesporquefalavamuitoalto,masFrançois,opríncipedeJoinville,eraparecidocomAlexandre,altoeloiro,ebrincavaimensocomela...

-Queparvoíce-disfarçou.-MassequersaberdeVitória,vouterde lhefalar de animais: tem agora um cocker spaniel chamadoDash,e não falanoutracoisa,epediu-meumnomeparaaéguaqueo rei lhe deu quandofezanos,esugeri-lheRosa,umnomeportuguês,equemelembrasempreaRosa,criadadaminhamãe,quememimavamuito.

Clemriucomodisparatedepôronomedeumapessoaaumcavalo, edepoisusouasuaprerrogativadeprimamaisvelha:

-Vá,éasuavezdesepentear.Hojetemosdeiràscompras,porque nãopodechegaraPortugalsemnadaparavestir.

Pelo menos Clem acha que um dia vou conhecer o país de quesourainha há tantos anos, pensou. Às vezes sentia que mais ninguémacreditavarealmente.

Caroprimo,

Nãomeadmiranadaquetenhaapresentadoasuademissão.Tudo istoéde dar em loucos. Fico contente que Palmela tenha sido promovido aduque,merece-o,masSaldanhaamarechal,acondeea comandante-geraldoExército,depoisdossopaposqueoprimolhedeu pelomalquediziadoimperador e da rainha, e das intrigas que fazia em prejuízo da causa, éinsuportável.Compreendoasuasensaçãodeinjustiça,tantomaisqueveioparaoexílioeserveoreiaquiemParis,porqueéemParisqueoHomemoquer. Quer ou não quer, não sabemos bem, porque a camarilha dosabrasileirados que o Brasil fez bem em correr aopontapénãodeixa queninguémdevirtudeebomsensosecheguepertodaimperatriz.Aindaporcima já devem ter chegado aosouvidos da pobre o último escândalo, sóesperoqueaminhameninanunca iqueasaberdisto.Afreiradeuagoraàluz mais uni Pedro deAlcântara, este não é Brasileiro, mas da Terceira.Comoéqueépossíveltantafaltaderespeito,tãopoucacontenção,mesmoaos33anos,quandoafúriadosimpulsosdeviaestarjácontrolada.Emaisestragoscontinuaráafazer,podeestarcertodisso.Felizmente,aesquadradebarcos que Palinela inalmente conseguiu comprar já avançou para oAlgarve,paraatacarpelosul.Deusestejacomelesepermitaquetudoistoacabedepressa.

Atébreve,equeDeusestejaconsigo,

LeonordaCâmara

Portsmouth,16desetembrode1833

arfaviveraosúltimosmesescomenormeentusiasmo.Masaosaberquea«esquadradosvapores»comandadapeloalmiranteNapierconseguiralevarosabsolutistasaabandonaremLisboa,sósentiavontadedefestejar.Nodia24dejulho,oduquedaTerceiraforarecebidotriunfalmentenacidade,equatrodiasdepoisD.PedrochegaravindodoPorto.«Otronoéteu»,escrevera-lheopai,pedindoassuasoraçõesegratidãoparatodososquetinhamsidocapazesderealizaraproeza.Menossoldados,menosmeios,menosapoiopopular,masumaestratégiabemplaneadaeumavontadefortedastropasliberaistinhamfinalmenterealizadoosonho,dizia.Opaísaindaestavalongedapaz,masaspotênciasestrangeirasjátinhamreconhecidoqueemPortugalreinavaD.MariaII.AtéInglaterraenviaraparaLisboaumembaixador,contara-lhe,felizcomonuncaavira,D.Leonor.

Nodiaemqueopai lhesdera«ordemdemarcha»,ajoelhara-sea seuspés,beijando-lheamão:

- Senhora D. Maria, Vossa Majestade - dizia, e Maria, rindo, mandou-alevantar:

-Aindaamandoprenderportraição.Entãosóagoraéqueme considerarainha?

Os Palmela também faziam as malas. De alguma forma, pensouMaria,este regresso a Portugal teria o condão de sossegar um pouco a dor damãedeAlexandre.Pelomenosestariamtodosjuntos,eoduquedePalmela- teria de se habituar a chamar-lhe assim - poderia inalmente chorar ofilho.

Comovera-seaodespedir-sedetodaafamíliaOrleães.NanoiteantesdapartidaClemdissera-lhe,entrelágrimas:

-Mantemosoplano?MariadePortugaleVitóriadeInglaterracasamcom

Orleães,eassimficamoscunhadas!

Mariasorriu-lhe:

-Etu,casascomquem?

Clemsuspirou,pensativa:

- Só tens um irmão, e está no Brasil, e se casasse com ele tinha de irviverpara láenãomeserviadenadaser tuacunhada,oudeVitória,porisso,nãosei,temosdearranjaralgumprimopróximo.

LeonordaCâmara,queouvia a conversa, sorriu.Rainhasouprincesas,todasasraparigaspensavamnomesmo.Estavatãofelizpeloregresso,tãoeufórica com a vitória de que duvidara tantas vezes, quelhe apeteceujuntar-seàconversadascrianças,jurando-lhesqueestavacertadeque,deumaformaoudeoutra,seriamfelizes.

A notícia de que seria preciso ir a Portsmouth, em Inglaterra, paraembarcar para Lisboa, deixouMaria numa excitação. Escrevera a Vitóriaimplorando-lheque encontrassemaneira de lá ir ter, para se verem pelomenos mais uma vez, antes da sua partida para Portugal.Leonor daCâmara tentara explicar-lhe que não seria certamente possível que aduquesadeKentcorressecoma ilhaàvilacosteira,mas foiaprimeiraaicarsurpreendidacomaresposta.AduquesaeVitória teriamtodoogostoemvisitara rainhaD.Maria IIeaduquesade Bragança, ea sua ilha,nodia16desetembro,diziaanota.

Agora que esperava Vitória, Vitória de carne e osso, Maria sentia-sesubitamenteenvergonhadae semnadapara lhedizer.Comoerapossívelque a língua estivesse atada, quando todos os dias, durante todosestesanos, contavam uma à outra os seus segredos, sabiam da vida uma daoutramaisdoqueaspessoasqueasrodeavamdeperto.

Vitória estaria aí a chegar tardanada, o jardim foraengalanado para areceber, assim como toda a estrada, onde uma banda de música a cadacemmetrosesperavaapassagemdaquelaqueosinglesesjá consideravamasuafuturarainha.

Procurou uma outra janela que tivesse uma vista melhor para o

caminho, nesta casa desconhecida que lhes fora emprestada apenas pordez dias, o tempo de visitarWindsor e prestar a sua homenagemao reiWilliam, beijar a mão à tia Adelaide, conforme instruçõesdo pai, quequeriaqueasrelaçõesentreosdoispaísesfossemasmelhores.

Primeiroouviuoscascosdoscavalos,edepoisviuacarruagem.GritouonomedeLeonor,queseaproximouparaasverchegar.

Oscriadosabriramaporta,eMaria,ladeadapeladuquesadeBragança,esperou que a duquesa de Kent e a princesa Vitória descessem,mas derepenteMariasaiuacorrer,incapazdeesperarmaisumminuto.

- Vitória - disse antes de a estreitar nos braços, e a pequena princesa,maisbaixaemaismorenadoqueela,surpreendida,deixou-se abraçar,osbraçoscaídosaolongodocorpocomoumaboneca.

Mariarecuperouoseuhumor:

-Parecesumadas tuasbonecas!Esquecia-medequevocêsos inglesesnãogostamdeabraços,nemdebeijos,masfazemmal,avidaétãocurta...

AduquesadeKentafagou-lheocabelo:

- Mas eu abraço, porque sou «estrangeira» neste país - disse, rindo. -Estátãoaltaetãobonita,Maria-comentoudeseguida,eMariaretribuiuosorriso.

- Posso levar comigoVitória? - perguntou, aproveitando as boasgraçasemquepareciaestar.

AduquesadeKentpareceuhesitarummomento,masMariainsistiu:

- Levá-la comigo para o quarto ao lado não é para Portugal - disse,naquele seu tomde quemnão admitia uma recusa. A inal, disse depoisaumaD.Leonoreternamenteespantadacomosdesaforosdasua aluna,«aliarainhaeraeu!».

Vitória deixou-se arrastar pela mão, e quando viu a porta fechada,sentou-senumacadeiraeriuàsgargalhadas:

- Jáme esquecia do que é aMaria II de Portugal ao vivo. Até aminhamãeficouemsentido-easlágrimasderisocaíam-lhepelacaraabaixo.

Mariajuntou-seàsgargalhadas:

-Desculpe! Faço as coisas sem pensar, mas queria tanto, tanto estarconsigo,perguntar-lhepeloDashepelaRosa,pelospyJC.

Vitóriapôsoindicadoremfrentedaboca,emsinaldesilêncio:

- Não diga esse nome, nem aqui! Felizmente, esse senhor sem caráternãoteveodesplantedevir,mascontinuaaaterrorizar-me.

Mariaolhou-adealtoabaixo:

-Éporcausadelequeestámaismagra?

Vitória,séria,concordou:

-Odeio estas viagens pelo país, ico enjoada e comdores de cabeça,sóquero voltar para casa, e estar com os meus cães, os meus papagaios,obrigada, Maria, por aquele que tem tantas cores que a marquesa deAguiarmemandou em seunome, e aminha égua - terminourindo. - E opior, o pior é que os reis odeiam estas minhas digressões, que sãoautênticosatosderebelião,eapobredatiaAdelaideéque sofre.Elabemquer estar comigo,mas entre os ódios daminhamãe eos do rei, não háhipótese.

MariarecordouatiaAdelaide,dequemgostavatanto.

- Talvez um dia me possam visitar em Portugal, agora que está tudopacífico.

Vitória pareceuquerer dizer alguma coisa,mashesitou e calou-se. Nãolheparecia justodizeraMaria,navésperadeapobreembarcar no Soho,que estava à sua espera no cais, que, pelo que lera nos jornais, Portugalestava tudo menos em paz, e que nem sequer D. Miguelainda saíra dopaís,continuandoosseusapoiantesadeteramaiorpartedoterritório.

Maria percebeu que Vitória se preparava para lhe dar uma lição de

política,eencolheuosombros:

-Nãotenholidoosjornais,estiveemviagem,edequalquermaneiranãoacredito emmetade do que dizem. Amanhã embarco com o Domingos, etenhomuitotempoparaouvirosdetalhestodos.

Vitória encostou a cabeça ao braço e observou-a, como quemobservaumquadro.

Maria,incomodada,perguntou-lheoquefazia.

-Tentoguardá-laparasemprenamemória.

Arainhasorriu-lhe:

-Vouescrever-lhetodososdias,contar-lhetudo.Eumdiavai visitar-me,eeuesperoporsinocais.ArainhadePortugalrecebearainhadoImpérioBritânico,jáestouaverotítulodosjornais.

RioTejo,22desetembrode1833

omingos,olhe,olheparaLisboa!Quebonitaqueéacidade,asubirparaocastelo!Ehátantosbarcosnorio,evejacomoaspessoasseapinhamnasmargens,agritarpormim...

Maria não cabia em si de contente. Aos 14 anos chegava inalmente aPortugal, e de um relance queria certi icar-se de que tudo era comoimaginara durante todos estes anos de espera, todos aqueles que tinhampassado desde que ao colo da sua mãe, no aconchego do Paçode SãoCristóvão, ouvia descrições da cidade dos seus avós, da cidadeondenasceraoseupai.

Para Domingos também tudo era novo, e a emoção tirava-lhe aspalavras. Finalmente ia saltar para dentro das imagens, que até agoraeram apenas pinturas a óleo, ou gravuras, nas paredes da sala, a Lisboados seus pais e irmãosmais velhos, mas que nunca conhecera.A Lisboaque agora o pai conquistara, ao lado do ex-imperador, e que se rendia,eufórica,àsuarainhalegítima.

Por uma fração de segundo trocou um olhar com D. Maria, e umasombra cobriu-lhe o sorriso. Tanto um, como outro, sabiam bem que eraAlexandre que devia estar nesta amurada, que era Alexandre o guia e oamigoqueMariadesejava.

Mariamurmurou:

-Não iquetriste,Domingos,oAlexandrevê-nosládecima,ondeestádecerteza ao lado da minha mãe, que não perdia esta aclamaçãopor nadanestemundo.

Domingos deu uma gargalhada: só Maria, para imaginar o Céucomouma bancada de um grande teatro, onde em cena estava a chegada darainha de Portugal a Lisboa, mas sempre gostara deste lado luminoso edivertidodarainha.

LeonordaCâmara,queseaproximaradeambos,sorriu também. Tinhaa certeza de que os lisboetas, e um dia os portugueses, iam gostar dafranqueza desta rainha, que trazia nas suas raízes brasileiras um ladosolarquefaziafaltaaumacortedemasiadomacambúziaeprotocolar,algoque o reinado de D. Miguel não izera nada para diminuir. Olhou derelanceparaaex-imperatrizAmélia,que,comafilhaaocolo,observavaemsilêncioachegadaàcidadequeagoraiaserasua.

-D.Leonor,estamosachegaraoTerreirodoPaço,nãoé?Ali, aquelecaisdas colunas, onde atrás estão alinhadas as carruagens àminha espera -exclamouMaria.

-Temtodaarazão...eveja,vemaíumadezenadeescaleres,com o seupai, Saldanha, o almirante Napier... - reparou Domingos, vendo que D.Pedro, fardado a rigor, com todas as medalhas ao peito, acenavavigorosamenteàfilha.

- Senhora D.Maria, este vai ser um dia longo e cansativo,mas guardedentrode si todososmomentos, porque este é odiaporque tanta gentedeu a vida - disse-lhe, solene, Leonor da Câmara, e Maria,num impulsoespontâneo,abraçou-a:

-Nãomevouesquecerdisso, a sérioquenãovou.E lembra-secomo aVitóriadisseque ia ser amelhordas rainhas?Euprometoomesmo. Voufazerusodetudooqueensinou,ecomaajudadomeupai,queesperoqueaindasejaregentepormuitosemuitosanos,vouuniropaíseasfamílias,esquecerasvinganças,etornaravidadosportuguesesmaisfácil.

Leonor passou-lhe a mão pela cabeça, com cuidado para nãodesmancharopenteadoquedemoraratantashorasafazer,efez-lheumapequena cruz na testa, como uma mãe faria a uma ilha de quem sedespedia.

Maria nem teve tempo de entender o gesto, porque a voz do pai jáecoava na fragata, subida em três tempos a escada de corda de acesso abordo.

-Maria,minhaquerida ilha-disse,abraçando-a-,vêscomogritamporti?Vêscomooteupaitedeuotrono?

E soltando-a, pôs o braço em redorde Saldanha, o «louco» comoMarialhe chamava dentro de portas, que baixou o joelho ao chão numa véniateatralelhebeijouamão:

- VossaMajestade, D. Maria II de Portugal, aqui tem um soldado e umhomem ao seu serviço, hoje e para toda a sua vida - declarou, numa vozembargada.

Mariaagradeceu-lhe,solenetambém,eD.Pedrobateunascostas doseugeneral,anunciando:

- Filha, estásperante omarechal de Saldanha, que acabodepromoverao mais alto cargo do Exército, porque é graças a ele que estamos aquihoje,quefinalmentearainhasereúneaoseureino.

Ecomovido,abraçouasuameninadenovo:

-Maria,deixeitodososmeusoutros ilhosporcausadeti,efoiaminhaausência,tenhoacerteza,quematouapobrezinhadaPaula-soluçou.

Mariamordeuolábio,zangada:

- Pai, não fui eu que o obriguei a sair do Rio de janeiro, e se temsaudadesdosseusfilhos,eutambémtenhodosmeusirmãos.

Mas icou a falar sozinha, porque o novo regente do reino de Portugalavançava já para a sua querida esposa e a sua adorada ilhinha, comoexclamava alto.Maria controlou a irritação, respirou fundo, e concentrou-sedenovonosrecém-chegados.Opainãotinhaemenda,enãoeraaquelamadrasta, que todos insistiam que chamassemãe,que lhe ia dar a volta.Poucoimportava,pensou,agorateriapróximodesioduquedePalmelaeasua querida duquesa de Palmela, e tantosoutros dispostos a ajudá-la. Ealémdisso,edeuporsiasorrir,embreveteriamarido!

Caroprimo,

QueemoçãoestardenovoemLisboa,naminhaLisboa,nasuaLisboa,naLisboa de todos os portugueses, este castelo sobre o rio,este rio quemarcouanossaHistória,comopontodepartidaedechegada.

Hoje,aoveroentusiasmocomqueopovorecebeuarainha,osduquesde Palmela de novo em Portugal, e o pequeno Domingos, que agora éoherdeirodotítulo,achegarcomarainha,tiveunimomentodeesperança,tunasensaçãodedeverctnnprido.

Segui na carruagem até à nossa Sé, as paredes sóbrias de pedra amarcarem a Fé de tantos séculos, e rezei com todas as vozes que selevantaram ao Céu no Te Deum, dando graças a Deus pelo im de uniregime de terror e pelo início de um outro, que se deseja de liberdade eigualdade,derespeitopelaspessoas,edeprogresso.

AocontráriodoqueaeuforiadoHomemindica,asituaçãoestálongedeestar controlada. Lisboa é «nossa» , mas o Exército continua nas suaslinhasde combate, e, aoquemediz fonte segura, não temosmaisdoqueLisboa,porqueàsportasdacidadeosmiguelistasaindadetêmoterreno,eD. Miguel está ainda em Portugal, e commais homens.Queira Deus quenãoestejamosaagradeceroqueaindanãoécerto...

Pelaminhaparte,primo, julgoqueomeutempoestaráachegaraofim.Pressinto-o jáhámuito,masquandovi a forma comoosquartosestavamdistribuídos aqui no paço, tendo-me sido atribuído um bemlonge dosaposentosdaminhasenhora, tiveacerteza.Não tenhodúvidasdequeD.Pedrovaiassumiraregênciacomosefosserei,eque D.Améliatemtodoointeresse em que assim seja. E a nossa rainha, ainda tão criança,embarcarásemprotestosnestausurpaçãodiscreta.Irrita-secomopai,poro considerar imprevisível e despótico? Por vezes sim (julgo que nuncaesquece a morte da mãe), e outras tantastem consciência de que não éjustoparaquemoserveeprocuralevá-lo acorrigirosseusgestos,masamaior parte do tempo aceita as coisascomo são, comnaturalidade, e quemais se pode pedir a unia ilha?Mas é boa menina, e se fosse bemaconselhada seria capaz de ser justa e irme, mas suspeito que vaicontinuar rodeada destes energínnenos, quealém do mais confundem oliberalismo por que lutámos com vendetascontra a Igreja, e que sósaberão semear o ódio e a divisão entre aqueles que deram a vida arestaurarotrono.

Tenhoaconsciência tranquila,enãomevendopordinheiroalgum, porissosómerestacontinuaraservircomomelhorseiarainha,e adormecerfeliz num quarto na minha cidade, entre estes lençóis de linho, com ocheirosuavedabarreladequetinhatantassaudades.

Dênotícias,

LeonordaCâmara

PaláciodasNecessidades,24denovembrode1833

arfaestavasentadafrenteàlareira,obordadopousadosobreumbanquinho,rodeadadassuasdamasquebordavamtambém.Odiaacordarafrioehúmido,achuvabatiacomforçacontraavidraçadasjanelas,easala,emborativessesidorecentementeremodelada,eradesconfortável,escuraefria.

- Quando, no Rio de janeiro, dizia que odiava o calor, não queria dizerque preferia trocá-lo por isto - dizia a rir, esfregando as mãos para asaquecer.

Asdamasriamporrir,porque,abemdaverdade, jánemumarestavadas que tinham nascido e crescido no Brasil, devolvidas há muito àprocedência,masfingiamcompreenderoquearainhadizia.

Maria dava por si a lembrar-se constantemente doRio de janeiro, e ascartas que recebia das irmãs deixavam-na mergulhada numaenormenostalgia. Januária e Xica queixavam-se amargamentede solidão e dassaudadesdairmãedopai,sobretudodesdequeBonifácioforaafastadodasuatutoria,epassavamcadavezmenostempocomoPedro,que,segundocontavam, crescia aolhosvistos,masera tímidoemedroso, abandonandocomdi iculdadeocolodeD.Mariana,queporsuavezdefendiaciosamenteoseumenino, talvezexcessivamente,aavaliarpeloqueBonifáciocontavanascartasquetambémlheescrevia.

Lisboa era muito diferente do que imaginara, e sobretudo estes diasescurosdeinvernodeixavam-natriste,estranhamenteaindamaistriste doque aqueles quepassara emLondres,mas nessa altura, suspirava, haviaAlexandreeasliçõesdepatinagemnogeloparalheanimarosdias,parajánão falar na possibilidade de se refugiar em casa dosPalmela, e deconversar comBarbacena,dequemgostava tanto.Easintrigasnãoerammelhores aqui do que em qualquer lado. As damasdividiam-se emgrupinhos, cochichando umas sobre as outras, e inalmente percebia a

hostilidade que sentiam em relação a Leonor daCâmara, que estavasempretãopróximadarainhaepareciaquerer ditartodasasregras.Masapior inimigada suamestra, estava certadisso, eraamadrasta,quenãoesquecera os tempos em Paris em quesentira o desprezo de Leonor,impacientecomassuasindecisões.

Enquantovoltavaparaobordado,asmãosjámenosgeladas,pensouqueprecisavadepediràmarquesadeAguiarquelhemandassem papagaioseplantas raras. Mandaria fazer uma gaiola enorme para a varanda,protegidadofrio,eseriaelaprópriaasupervisionaronovo jardim,comoamamãefaziasemprelánoPaçodeSãoCristóvão.

As damas tinham mergulhado no silêncio, em respeito pela rainha,quando a porta do salão se abriu de repente e o pai surgiu na sala, osobrolhocarregado,aquelaexpressãoqueMariaconheciatãobem,etemiatanto.

-Bomdia,pai,quealegriavê-lo,nestamanhãtãoescura.

MasD.Pedroignorou-a:

-SenhoraD.Leonor,podefazerasmalaseretirar-sedopaço-vociferou,eMariaempalideceu,fechandoasmãoscomforça.

A sua dama mais querida, a sua professora, tratada assim, sem maisnem porquê? Indignada, levantou-se, decidida a protestar, mas o paiempurrou-a para baixo, a mão pressionada com força no seu ombro. EMariasentiuaquelagarraforte,desteserquesetransformavade beloemmonstro,edeixou-se icar,comosealgumacoisavindade longe, vindadedentro,aimpedissedeserelaprópria,dereagir.

Leonor, por seu lado, estava já de pé, surpreendentemente serena, osolhos nos olhos do imperador, que baixou os seus, incomodado, estamulherincomodava-o,sempreoincomodara,daspoucasmulheresemqueoseucharmenãoresultava,senãofossequemerajá ateriasubmetidoaoseu corpo, domando-a como domara tantasoutras, que a inal só odesdenhavamporqueoqueriam,era isso porcerto,pensou,sossegando-oa ideia de que era ele quem estavapor cima, e a solteirona que nãoconhecia homem, umaquarentonarezingona,queescondiasobacapadacoragemaquiloqueera,afinal,desejo...

Mas D. Leonor parecia, aos olhos de todos, tudo menos umamulherpresadaluxúriapeloregentedePortugal.Numtomdesgastado,disse-lhe:

-Acusadadequê,senhorD.Pedro?

A sua voz era gelada, e teve o efeito desejado. D. Pedro recuou, parajuntodalareira,camu lando-secomasdamasquesetinham postodepéàsuaentrada,erespondeu,maisinseguro:

-Acusadadequê?Aindapergunta?DesercontraaCarta,deprocurarenvenenararainhacomosseusideaisabsolutistas.

Maria abriu a boca, chocada. Absolutista, a suamestra? Será que o paiestavasoboefeitodealgumadroga?

Leonor ria, ria como se estivesse frente a um louco. D. Pedro pareceunervoso,masinsistiu:

-Todososconspiradoresseescondempordetrásdasurpresa. Sei bemque envenena a rainha contra o seu pai, contra os liberais. Mas não souingrato.Osseusserviçosserãocompensados.

Leonorcoroudefúria,masmanteveoolharfrio:

- Tanta generosidade só pode comover - vociferou, zangada. - Se nãosabequenãoháouronenhumdoMundoquemecompre,queme izesseconsentir em separar-me da rainha, está profundamente enganado, e defactoconhece-memal.

Pedroqueria reagir,mashaviaqualquer coisanaquelamulherque lhelembrava Leopoldina, uma força que o transformava num rapazinho areceber uma descompostura damãe. Protestou,mas Leonor não acabaraainda:

-As suas acusações são graves, e tenhodireito aobom-nome.Contra aCarta? Absolutista? Nem sentido têm, mas ofendem. Faça o favorde pôrtudoissopôrescrito,quelhedareiarespostaquemerece,e encaminhareiocasoparaotribunal.

Maria, inspirada pela segurança da professora, entrou no combate, no

tommaisríspidoqueconseguiu:

-Pai,queintrigaéesta?

Com um gestomandou sair da sala as damas, que fugiram dali omaisdepressa que puderam, ansiosas por espalhar a boa nova, e de cabeçaperdidagritou:

-Qualéaacusação,diga-me?Ouesquece-sedequeLeonordaCâmaraestáaoserviçodarainha,enãoaoseu?

MasfoiLeonorquelherespondeu:

-Nãosedesgasteadefender-me,Majestade.Oque tinhadeserserá, epodeestarcertadequenãomeperde.Estareisempreperto, sabesempreonde me pode encontrar - e, deixando uma Maria emsoluços, virou ascostasaD.Pedroesaiu.

Esta cena não era nova, pensou Maria, com a mão no peito, ondelhefaltavaoar.Zangada,protestou:

-Vá lá,pai, conte!Queméque lhemeteunacabeçaqueaminhadamamaisqueridaeracontrasi?

Oimperador,irritadocomahumilhação,gritoudenovo:

- Contramim, poucome importava,mas contra o regime constitucionalnãopossoaceitar!Comopodias tercomoprofessoraumamulherquenãoacreditanaCarta,quequeropoderabsoluto?

Marianãoqueriaacreditar:

-Opai não sabeoquediz?Está a terumataque como tevenodia emquedespediuamarquesadeAguiardopaço,depoisdetudooqueelafezpelamãezinha!NãoháninguémmaisconstitucionaldoqueD.Leonor, pai.Quantas vezes é que a pobre senhora me avisou contra o absolutismo,elogiouoregimeinglês,memassacroucomasvantagensda Carta.Pai,nãoénadadisso.Apobreévítimade intrigasdeumaoutramulherqualquer,comoamarquesadeAguiarfoidasdeDomitília...

Pedro corou de fúria. Não queria que lhe lembrassem Domitília, dequem todososdias sentia saudades,nãoqueriaque lheatirassemà caraosseuserrospassados.Gritou:

-QueméqueameninaMariasejulga?Setemumtrono...

MasMariatambémlheviravaascostas,saindoacorreratrásde Leonor.Dequevaliaapenaserrainha,seeraparaisto?Senempodia fazerfrenteao pai, dominado agora por umaAmélia? Se amadrasta julgava que semLeonorseaproximariadela,estavamuitoenganada.

Tinhadecrescer,tinhadecasar,tinhadesersenhoranasuacasa, senãocomoéque algumavez seria rainhadeumpaís? Fechando-se no quarto,lançou-sesobreacamanumpranto.Oquedariaparater aliasuamãe,oquedariaparateraliaboneca,aMariaPequenina,quedeixarapartircomamamãe...

Caroprimo,

Nunca pensei que o desplante doHomem fosse tão grande. Saioagorado paço, neste minuto, e vou para casa da duquesa de Palinela. De lápensarei na resposta a dar ao regente. Disse-lhe que dama da rainhacontinuariaatéao imdaminhavida,masqueguardasseassuaspensõesousubornos,equelevariaocasoàsCortes.Nãoseacusaassimumadamadarainhasemprovaraacusação,masaverdadeéquesei queoHomemganhaaguerra,porquemeafastadaminhamenina.

Primo, nunca mais me enderece ou mande entregar uma carta a estamorada. Enquanto oHomem aqui viver, não voltarei a entrar neste paço,mas peço-lhe que volte depressa, e tome o meu lugar juntoda pobrerainha,quenãooserádefactoenquantoestemonstroestivervivo.

Nãoimaginaovazioquesintopordeixaraquelaqueamoacimadetudo,que servi com toda a dedicação, e por quemdaria a vida.Percebo agora,melhordoquenunca, como se sentiu amarquesadeAguiarquandoesteHomemaexpulsoudopalácio,aobrigouadeixarosinfantesàsmãosdesta

criaturaedeDomitília.

Venhadepressa,primo,console-meamimeprotejaarainha,por quemtantolutou.

LeonordaCâmara

«Vitória é a melhor das amigas, e sei que procura sempre proteger-nos,masasuaarrogânciaporvezeséintolerável.DePortugal,seieu.»

MariaII

«Mariadizqueavidadeumarainhacasadaéfácil.Sóseforadela.quefaztudonascostasdomarido,mantendoaapai'nciadeesposadócileobediente.»

litório,10(11/1(1dehil-hilerrcr

PaláciodeQueluz,24desetembrode1834

spesadascortinasdeveludoestavamcorridas,eapesardasvelasacesas,noquartoapenassepercebiaovultodeD.Pedrodeitado,abarbalongaeesbranquiçadaqueninguémcortavahaviasemanas.Mariacorreuparajuntodopaiedeu-lheamão:

- Nãomorra, papai, nãomorra... pense emmim, que vou icar sozinha,pensenosmanos, pensenoPedrinho, naXica ena Januáriaque todos osdiasesperamqueosenhorvolteparajuntodeles...

Pedro sorriu-lhe, e, apesar da falta de ar, encontrou forças pararesponder:

- Coitadinha da minha Maria, que aos 15 anos vai ser rainha sozinha,coitadinhodoseupai,quevaidestaTerratãonovo,esemrevero Brasil,oúnicosítioondePedroéPedro,ondePedrofoiPedro.Talvez oParaísosejaparecidocomoRiodejaneiro,talveztenhamorros altoseverdes,eaáguadomartãoazuletransparentecomoadelá...

Maria passou-lhe os dedospelos cabelos, suavemente, e não conseguiudeixardesorrir:overdadeiroPedroeraaqueleque,antesde mais, tinhapenadePedro.Olhou-odenovo,comoseoquisesseguardarnamemória.Comoestavaenvelhecido,aos35anos.

Mais calma, sentou-senobanquinho ao seu lado, ignorandoochoro deAmélia,queseviaviúvatãonova,comumafilhapequeninaaocolo,eaindaporcimanadependênciadeumaenteada.

- Sabe, papai - disse, regressando instintivamente ao brasileiro da suainfância -, achomesmoqueoCéudeve ser igual aoBrasil, eosenhor vaipodercavalgarporlácomotantogosta,caçaroseualmoço,eacompanhá-lo de uma cachaça como aqui não existe, sabendo quecumpriu a suamissão...

Pedrovoltouasorrir,etambémeleregressouaoportuguêscantado:

- A missão de deixar uma rainha no trono de Portugal, e um ilho notrono do Brasil, é bom, sei disso, ilha minha, mas sabe o que queriamesmo?RegressarvivoaoBrasil...

Maria conteve a vontade de rir alto. Sabia bem porque é que opaipreferia a liberdade do Brasil a todas as promessas do Céu, ondecertamenteamamãeeopróprioS.Pedrooimpediriamdeencontrar umamoçaemcadacapelinha.

Levantou-seeinclinou-separalhebeijaratesta.

Pedroestremeceu:

-Maria,nãodeixesqueoteumaugéniotomecontadeti.OuvePalmela,Saldanha, os amigos do teu pai, tem cautela com o usurpador, que poderegressar, interessa-te por tudo, não deixes que decidam por ti,mas nãodecidassemouvirosteusconselheiros.

Os olhos de Maria encheram-se de lágrimas, e esfregou-os num gestoinfantil,deixandocairacabeçasobreopeitodopai:

-Papai,prometo,prometo...

Se aomenos não fosse rainha. Se aomenos pudesse chorar como umaqualquermenina que perde o pai.Mas acabava de partir destemundo oúnicohomemqueapodiaestreitarcontrasi,oúnicoquea podiasentaraocoloeatiraraoar.

Fechou os olhos com força, e por segundos viu-os aos três: a mãe, ocabelo ruivo a brilhar ao sol, estendia os braços para uma Maria, devestidobrancoderendas,quecavalgavanosombrosdopai,eriam juntos,as gargalhadas cristalinas abafadas pelo barulho das ondasquequebravamsobreaareia.Eraesseopaiquequeriaguardarna memória.O outro, enterrá-lo ia com este corpo que agora descansava inerte namesmacamaenomesmopalácioondenascera.

Escrevo «Vitória» na primeira página deste diário, tenho tantos que aarcaqueLelizenmedeuparaosguardarjáestáquasecheia.Amãeaindalêtudooqueescrevo,masnãomeimporto-senãogostar,paciência.

Este começa com tuna noticia triste, o pai da rainha D. Maria morreu.Morreu de uma doença contraída pelo seu desbragado comportamentoimoral, e que o tinha vindo a enfraquecer aos poucos, ouvi a Lehzencomentar.Tenhopenadarainha,masnãopossodizerque lamentemuito,elepareceu-mesempreumserinconstante,incapazdedefenderumaideiadoisdiasseguidos.

Felizmentenãofoiumamorteinesperada,eMariadiz-mequeas Cortesjá a declararam maior, e que jurou a Carta, que suspeito nunca leu, aavaliarpelosqueixuunesdapobreD.LeonordaCâmara.

Escreviadar-lheosmeussentimentos.Ficarsozinhaaos15anos,rainhade um país de rastos, saído de tuna guerra fratricida, não é um cenárioanimador.Alexandrevai-lhefazerimensafalta.

Mariaébonita, adorável,divertidae consegue fazer-me rir,mesmo nosdiasmaissombrios.Ecorajosa,nãotemmedodenada,e invejoamaneiracomodesrespeitaasregrasquandolheconvém,massuspeito quenãovaiter a paciência e a diplomacia necessárias para deixar queoutrosgovernemseminterferir,aMariaestáhabituadaaoposso,quero emando.Mas a verdade é que o Dash, que é o cocker spanielmais inteligente domundo, obedece-lhe como a ninguém, por isso talvez ospolíticosportuguesesfaçamomesmo.

O tio Leopoldo, que é omelhor conselheiro domunido e umpai, jámeescreveu a pedir que in luencie Maria no sentido de um casamentocomumdosseussobrinhos,emeusprimos.Aestahorajáestáemcampo...

Por aqui, o rei está cada vezmaisdoente emais zangado comaminhamãe,eaminhamãezangadacomeleecoma tiaAdelaide,mas comonãolhesrestaoutraalternativa,éprovávelqueunidiaeu venhamesmoaserrainha. Se até lá o spy JC nãomematar - pretende à força que o nomeiemeu conselheiro, mas nem morta. Ele e a minhamãe apanharam tunafúria, e aquela criatura chegou a empurrar-me. Se julgam que esqueçotudoisto,enganam-se.0quemevaleéLehzen,queguardaráaminhavidacomadela.Bem,tenhodeirestudar...

PaláciodeKensington,30desetembrode1834

PaláciodasNecessidades,10deoutubrode1834

quesenteumafilha,incumbidadelevarocoraçãodopai,arrancadodoseupeito,paraodepositarnacidadedoPorto,cidadequeoimperadorinsistiraemhomenagearcomesteúltimogesto?,perguntaraaVitórianacartaquehojelheescrevera.Masconheciabemdemaisaresposta,pensouMaria,esfregandoosolhoscansadosdechorar,edeixandoocorpoexaustocairsobreacama.PalmelaestiveracomelaecomaduquesadeBragança,quandolhestrouxeramacampânuladeouroondeadádivadoimperadorseriaparasempreguardada,eMariaordenara-lhesquenãoaabrissem,recusara-seaver.EmadrastaeenteadatinhamaceiteasugestãodePalmeladequeacerimóniadeentregaàIgrejadaLapafosseadiadaparafevereiro.Eracedodemaisparasesujeitaremdenovoabanhosdeumamultidãoemocionada,decidiraPalmela.

Desde que o imperador morrera que Maria se multiplicava emcerimónias de homenagem ao rei-soldado, e as decisões da governaçãopesavam agora sobre os seus ombros. Dava por si, vezes sem conta, àesperadeveropaientrarnasalaetirar-lheospapéisdasmãos,ena suavozfortemandarquese izesseexatamenteocontráriodoqueelaacabaradedecidir. Sentia a faltado seu abraço forte, da sua autoridade eda suaproteção.

E o vazio que o seu pai brasileiro deixara, como tantas vezes dizia naintimidade, tornara ainda mais pesada a ausência das manas, de freiAntónio,damarquesadeAguiar,deRosa,de Jaime,de todosaqueles quetinhamestadoaoseuladonodiaemqueenterraraamãe.

Aconchegou-se melhor às almofadas, e sorriu no escuro. Agora erarainha de facto, sozinha, mas rainha, e não ia deixar que mais ninguémdecidisse quem eram, ou deixavam de ser os seus amigos, nemque seaproveitassemda sua idadepara amanipular e usar. Iamandar. Decidir.Escolher. E escolhia casar com um homem que fosse só seu, lhe desse o

apoioeoamordequeprecisava,eos ilhosqueDeuslhequisesseenviar-sóassim,numacasacheiadegenteaquepudessechamarsua,sesentiriadenovosegura.

Suspirou, puxando os cobertores até ao pescoço, tentando criar umninhoapertadocomoaquelequeFlorica lhe faziacomos lençóis.Comumhomem ao seu lado, pensou de novo, seria capaz de enfrentar asdiscussões que a cansavam. Nem um mês passara desde que o seu paimorrera,ejásetornaranasededetodasasintrigas...

Nomeara o duque de Palmela chefe do seu primeiro ministério,esperando que todos icassem satisfeitos, mas a inal nada corria comoimaginara:nãopassavaumdiaquenãolhebatesseàportaumconde,umduqueouummarquês,umsargento,umgeneralouummarechal, a fazerqueixinhas disto e a protestar contra aquilo, alegando que Palmeia sónomeavaosseusamigos,ouchorando-sepelo factodetersidoesquecido,enumerando longas e fastidiosas listas de feitos, deixando-atão a lita econfusa, que a cabeça estalava de tal formaque a obrigavaa ir deitar-senum quarto escuro, exigindo que ninguém a perturbasse.O marechalSaldanha era o pior de todos, tão adorável num momento, rancoroso noseguinte, entusiasta pouco depois, e amuado como umacriança logo aseguir...

Mas a verdade é que quando mandava chamar Palmela e lheperguntava pelo estado das coisas, irritava-a porque a tratava como sefosseumadassuas ilhas,enãoprecisavadesaberdetalhes,masapenasdecon iar.Quandoestavaprestesaexplodir, controlava-se repetindoa simesma «Palmela é dos bons», e não como muitosdesta sua nova corte,gentequenuncalutaraporela,burguesesenriquecidoscomocomércioeque agora queriam a bênção real para sedimentar o seu estatuto. Ondeestavamquandodesembarcaraem Londres?EquemlhegarantiaquenãoeramamigosdotioMiguel,queaassinaturadaConvençãodeÉvoraMonteobrigaraadeixarPortugalparasempre,masqueaindatinhaaquiosseuspartidárioseespiões?

Decididamente, precisava de um marido. Para a ajudar a governar, eparaoutrascoisas,pensoucommalícia...

Virando-sena cama, riupara simesma, ao recordar-se subitamente da

pobre Maria das Dores, uma das suas damas mais novas, que ainda nooutrodia lheperguntarasenão tinhamedodaprimeiranoite... Chocara-aquando lhe dissera, sem rodeios, que ansiava por perder a virgindade,porque devia ser coisa boa, já que não conhecia ninguémque a quisessedevolta.

Todososdias, desdeque chegaraàEuropa, se espantava como terroraocorpoqueasmeninaspareciamter,enquantoosrapazes,pelo que lheera dado saber, não se coibiam de roubar o prazer a pobres criadas,peranteoarcomplacentedospais.Nãotinhamedodaprimeiranoite,issonãotinha,masreagiamalàideiadequepassariaaumpapelsecundário,aconsortedealguém.

Nesse instante, pensou em Alexandre. Se Alexandre estivesse vivo,poderia ter sido ele. Zangou-se consigo mesma. Era preciso pensar nofuturo, no príncipe Augusto, duque de Leuchtenberg, como o seu paipretendia.SeriaAugusto,Augustoque,pelomenos,conheciaoseuBrasil.

Arainhanãoesqueceraoduque,nemoseucorpoaltoeforte,o bigodeloiro que colava com as patilhas, os gestos seguros, e o charme perigosocom que derretia todas as mulheres, com que a tentara derreter a ela.Quantasequantasvezesprocurarabeijá-la,quantasvezes quaseapediraem casamento, mas nessa altura havia Alexandre, uma esperançalongínqua,masacesa.SecasassecomAugusto,pensou,teriadelhemanterarédeacurta,ouacabaria tãoenganadacomoamãe,e isso,prometiaasimesma,issonuncairiaacontecer.Reconfortadacomaideia,adormeceu.

-Deixam-mecasarcomumpríncipeestrangeiro,nestepaíscomtantomedodeestrangeiros,ondeomeupaieeufomosvilipendiadosportermosnascidolongeevindodefora?-perguntouaumduquedePalmelaaliviadopordesviaroassuntodascontaspúblicasedafaltadedinheiro.

-Nãomeparecequese levantasseproblema,tendoemcontaque éumhomem liberal, reconhecidamente adepto de uma linha constitucional,enteadodeNapoleãoBonaparte,irmãodaimperatrizviúva...

Maria,subitamente,entusiasmou-se:

-Achavaumbomcasamentoparaumafilhasua?

Vendooduqueapanhadodesurpresa,insistiu:

- Como tantas vezes me trata como se ainda fosse uma criança,aliáscomo se fosse sua ilha, para o bem e para o mal - acentuou com umsuspiroteatral-,nãodeveterdificuldadeemresponder-me.

Palmelacorou,esubitamenteosseusolhos icaramvaziosde expressão,e a rainha sentiu os seus toldarem-se de lágrimas, e, numa voz trémula,pediudesculpa.

-Peço-lhe desculpa, senhor D. Pedro... sei que quando falamos desteassunto surgem logo asmemóriasmais felizes, e que tragicamente agorasetornaramnasmaistristes...

Palmela sorriu-lhe docemente, depois de passar o lenço rapidamentepelacara:

- Uma rainha não pede desculpa, muito menos a um súbdito tãoimperfeitocomoeu,senhoraD.Maria,massim,temrazão,quantasetantasvezes me lembro de si pequenina mas já tão rainha, a entrar em nossacasa em South Audley Street, dependendo da nossa proteção... E lembro-medosmeus ilhosàsuavolta,procurandoaatenção queVossaMajestadelhesconcediacomtantasimplicidade,eagora,Alexandrejácánãoestá...

Mariamordeuolábio,comovida,masasuavozsaiufirme:

- Nem imagina como lhe agradeço, a si e à senhora D. Eugénia, oacolhimento queme deram.Mas agora devo tomar uma decisão, e fiz-lheumapergunta.

Oduquepôs-sedepéecaminhoudeumladoparaooutrodasala, comofaziasemprequepensavaalto:

- O marechal Sá da Bandeira é a pessoa certa para negociar essecasamento,emborapoucohajaanegociar,jáque...

-...jáque aminhaboamadrastadeve ter tratadode todosos detalhes -disse a rainha, divertida. - Apesar disso, agradecia-lhe que olhasse portudo, paraque fossebemaceite pelosportugueses, bemnegociado, essascoisastodas...

Quando Palmela saiu da sala, com a promessa de concretizar ocasamento e apressar a chegada do duque, Maria pegou na pena ecomeçouaescrever.QueriadaranotíciaaVitória.Sentia-seorgulhosaporandarsempreunspassosàfrentedafuturarainhadoImpérioBritânico.

RecebiumacartaemqueMariamecontaquevaicasarcomAugustodeLeuchtenberg.SeiqueotioLeopoldonãovaificarcontente.

Paciência. Pelo menos Maria tem a sorte de casar com alguém que jáconhece, e de quem gosta. É tmi soldado, com a disciplina do Exército, éinstruídoeconstitucional.Tem24anos,maisnovedoquearainha,oqueébom,porqueteráamaturidadequeelanãotem,eaexperiência doinundoque lhe falta. Pode ser uma boa solução, bem melhor do quese tivesseoptado por umdosOrleães, como era provável depois da sua estadia emFrança,edeClemlhefazeracabeçacomfantasias.

Além disso, talvez a reconcilie com a madrasta, que agora passa acunhada, sem deixar de ser mãe da meia-irmã - meu Deus, em queconfusõessemetemosreiseasrainhas.

Escrevi-lhe de volta para lhe dar os parabéns efusivos, e a pedir maisdetalhes.Hámomentosemquesuspiroporteraliberdadedela. Poraquiavida está cada vezmais di ícil, com as guerras da família aatingirem umponto insuportável:aminhamãeeo spy JCespalhamoboatodequesoudoente e frágil, alegando que não é boa ideia que acoroa passediretamenteparamim.Eles,queme izeramcorreropaís, sujeitando-meaexames públicos, emque bispos e políticos eramo júri, tudoparaprovaraopovocomosouinteligenteeinstruída,agoraqueremfazerdemimtunaimbecil, porque querem a regência, porque desejamo poder. Contei tudoisto a Maria. Talvez assim ela perceba que há mais gente metida emcamisas de onze varas. Bem, tenho tantostrabalhos de latim e estudospolíticos,queétunainconsciênciaestaraquiaescrevernomeudiário.

PaláciodeKensington,outubrode1834

PaláciodasNecessidades,25dejaneirode1835

arfasaltoudacamacomumentusiasmoquefezrirasuacriadadequarto,quelhetraziaopequeno-almoçonumtabuleiro:

-Estás louca,Lurdes, tenho lá tempoparacomernacama?Não ouvisteostirosdoscanhõeseossinosareplicar? -perguntou, enquantoabriaosreposteiroseajaneladeparempar.

- Não se vê nada - disse, inclinando-se sobre a balaustrada, como sequisesse tocar o rio que corria lá em baixo. - A fragata que traz o meumaridojáchegoumasnãoavejodaqui...

Edepois,falandosozinha:

- A esta hora a minha madrasta-cunhada está a chegar a bordo parareceberoirmão...

- Senhora D. Maria, meta-se para dentro, aí ao frio, às sete horas damanhã,nomêsdejaneiro,aindaapanhaumapneumonia,Deusnosvalha-exclamouacriada.

Mariasoltouumagargalhada:

-Por amor de Deus digo eu, Lurdes. O meu primeiro marido não quiscasarcomigo,eaindametentouroubarotrono,eagoraestása dizerquemorreanoivaantesdanoitedenúpcias?

ApobreLurdesbenzeu-se,assustada.

- As coisas que a senhoraD.Maria diz - re ilou, e a rainha, fechando ajanela,pousou-lheumamãonumombro,meiga:

-Nãoliguesaoquedigo,Lurdinhas,estoutãofelizquesãosódisparates.QuandoviresosenhorD.Augustovaisperceberporquê... Estãoprontosos

quartosdele?Fizeramacamacomoslençóisdelinhonovos?Eospintoresacabaramasportas?Esperoqueocheiroatintanãosejainsuportável,maspaciência,sempreémelhordoqueomofoqueaquelesaposentostinham...

-Senhora,estátudoemordem...

Mariasorriu:

-Sómerestacomer.

Ecomoaconteciasemprequeestavanervosa,devorouopão,os cereaiseocaféquevinhamnotabuleiro,queixando-sepelafaltadasfrutasdoseuBrasil. Tinha de pedir às manas que lhe mandassem pésde maracujá etodas as outras espécies de que tanto gostava, e se nãodessem fruto,talvez iluminassem os jardins de Lisboa com as suas lores, pensou,olhandocomsaudadeparaasminiaturasde Januária, Paula,XicaePedropenduradasaoladodasuacama.Nãopassavaumdiaquenãoasolhasse.

Um bater discreto na porta fê-la pousar a chávena e interromper ospensamentosnostálgicos.AduquesadePalmela,eleganteparaosseus37anos,ea ilhaEugéniapediramlicençaparaentrar,eMariasentiu aalmamaisleve,numafelicidadeagridoce.

Eugéniabeijou-lheamãoeentregou-lheumembrulho,queMariaabriuentusiasmada.

Eugéniaexplicou:

-EmLisboa,sófaziasentidooferecer-lheumSantoAntónio,osantodasnoivas...

AduquesadePalmelaacrescentou:

- A bênção deDeus, e da suamãe que está no Céu a velar por si,já atem,eéissoqueimporta...

Mariaagradeceu-lhee,puxandopelamãodeEugénia,pediu:

-Ajudam-meavestir?

A sua camareira-mor, amarquesa de Ficalho, que chegava com a filha

Margarida,entroudevagar,comumsorrisopostiço.Arainha nemreparouno gelo comque cumprimentaramaduquesadePalmela,masaduquesatomounota: as Ficalhonão lhe iamperdoar quenestedia tão importantetivesseprimaziasobreelas.

A criada preparava os ganchos, porque Maria insistia que queria ocabelo numa trança presa em cima, «faz-me parecer mais magra eelegante»,insistia,quandoseouviudenovobateràporta.

A criada foi surpreendida por um criado vestido com a libré da CasaPalmela. Ia dizer-lhe que a rainha não estava disponível, mas Maria,aoperceberquemera,levantou-sedacadeirafrenteaotoucador:

- Deixa, sei o que é. Pede-lhe que ponha os papéis naminhamesadetrabalho,jálávou.

Deixandoacriadacomaescovanamão,dirigiu-separaasalaao ladoe,pegando na pena,molhou-a no tinteiro e assinou o decreto que nomeavaLeonor da Câmara marquesa de Ponta Delgada. Olhou a sua assinatura,com satisfação. Gostava de usar o poder para fazer justiça. Neste dia emque virava uma página da sua vida, queria saldara imensa dívida degratidão para com a sua mestra. Voltando para o toucador, sentou-se erefilou:

-Silvina,vêláoquefazesaomeucabelo,quenãoqueroqueopríncipesemandedaqui.

EugéniaeaduquesadePalmelaolharam-sedesoslaio.Nadaconseguiaapagarde vez as expressõesque a rainha trouxeradoBrasil. Ainda bemquecomomaridofalariaemfrancês...

Augustoentrounograndesalãodecoradodenovoparaestagrandereceção.Mesmonaluzcinzentadestediadeinvernobrilhava,tãosegurodesi,tãosedutor...

Eradi ícilmanteraformalidadequandosetinhamconhecidonoconvésdeumbarco,nascadeirasdevergadeumpátio,empasseios acavalopelamata, entre o grasnar dos patos selvagens e dos urubus, risos egargalhadas, e piropos que iam muito para lá dos comentários que erapermitidofazeraumasenhoranumacorteeuropeia...

Augustomanteveaposturadeumsoldado,piscando-lhediscretamenteoolho,enquantosedobravanumavéniaparalhebeijaramão.

Mariarespondeucomumsorriso,edispensoucomumgestoimpacienteossalamalequesdamadrasta,cujasolicitudeeufóricaairritava.

Depois seguiu-se o almoço, o passeio pelo jardim, o jantar de gala,semprerodeadosdegenteemaisgente,semaoportunidadedetrocaremuma palavra a sós. «Não haviam os casamentos de correr mal, se nãodeixam os noivos sossegados», pensou Maria quando, inalmente,oprotocolopermitiuquearainharecolhesseaosseusaposentos.

Recusara-seadeixarfecharasportadas,queriadormiraoluar, insistira.Subitamente ouviu a porta ranger, e sentou-se na cama, excitada: teriaAugustoacoragemdeviraosseusaposentosnanoiteantesdocasamento?

Masovultoquechegavajuntodacamaeraodeumamulher.

- Senhora D. Leonor - exclamou, estendendo os braços para abraçar asuamestra.

- Minha querida menina, não a podia deixar casar sem umbeijo meu,sem a minha bênção e o meu presente - disse Leonor daCâmara,estendendo-lheumpequenorelicáriodeNossaSenhora daGlória.-Aceite-ocomouma lembrançaminhaedasenhoramarquesadeAguiar,aquempediquemoenviassedoRiodejaneiro.

Aslágrimascaírampelacaradarainha,numsoluçoincontrolável:

-Aminhapadroeira,Leonor,aSenhoraaquemaminhaquerida mãefoiroubar o meu nome - soluçou. - Obrigada, senhora marquesa de PontaDelgada-conseguiudizer.

Leonorpassou-lheasmãospelocabeloeordenou:

-Possonãosermaisasuamestra,masjáparadentrodacama,que nãopode apanhar frio. Amanhã é a celebração do seu casamento, equerodesejar-lhetodasasfelicidadesdomundo.

Maria escorregou para dentro dos lençóis e, estendendo amão para a

prendernadela,implorou:

-Fiqueaqui comigoatéeuadormecer.Protege-medospesadelos e dossonhosmaus?

Leonor anuiu com a cabeça e, puxando uma cadeira, sentou-se juntodela,rezandobaixinho.

Maria casa hoje. Dizem-me que Augusto é ummulherengo, espero quenão lhe parta o coração. O coração da rainha é grande, mas muitoremendado, e suspeito que se pode desfazer mais facilmente do queparece.Pensomuitasvezesquesomosaindamaisfrágeisdoqueas outrasmulheres, porque não temos forma de fugir ao que decidem por nós, esomosobrigadasaesconderosnossossentimentosdemilolharescuriosos,para não dizer maldosos. Não posso confessá-lo a ninguém,massinceramentenãomeparecequeasmulherestenhamqualquer vantagemem casar, icando para sempre servas dos seus maridos, sem benspróprios,quasesemvontadeprópria.

Masquedisparate, escrever tudo istonumdiaemquesódevia pensarnafelicidadedeMaria.OtioLeopoldodiz-mequeMariatemsidoinsensatana escolha das pessoas que a rodeiam. Ao que parece, deixou que tunaiinicafamília,osFicalhoeosMelo,éoquemediz.arodeiem,semperceberque com isso acicata invejas, e que icounamãode interessespessoais edeumúnicopontodevista...Masquandonãose temninguémé fácil cairnestas armadilhas, mas quanto menos preparados estamos para oexercíciodopoder,pior.Éoquedizemosmeusprofessoreseomeutio.

PaláciodeKensington,26dejaneirode1835

SéCatedral,Lisboa,26dejaneirode1835

ugustodeu-lheobraçoàsaídadaigrejae,chegandoabocaao.seuouvido,murmurou:

-Nãolhegarantiaqueumdiaseriaminha?

Disse-o enquanto lhe passava amão suavemente pelo braço,eriçando-lheapele,numarrepio.

- Custa-me esperar por hoje à noite - murmurou de novo, enquanto,galante,iasorrindoàesquerdaeàdireita.

Marianãosabiaoqueresponder.Fora-lheditoqueocasamentosóseriaconsumado quando completasse 16 anos, e a madrasta, agora cunhada!,assegurara-a que antes dessa idade era cedo de mais, mas resistiria adeixar-seseduzirporestehomemque,comabênçãodaIgreja,era jáseumarido?

Sentia vontadede se entregar aoprazerque estava certaqueAugustolhe saberiadar, nemque fossepelas liçõesque certamente receberadasmoçasmaisbonitasdoRiodeJaneiro!Agargantaapertou-senumnó,seriaisto aquilo que a mãe sentia quando o marido saía da sua camaquenteparaadeoutrasmulheres?

Sorriueacenouparaopovoquegritavaoseunome.Nãoiadeixarqueopassado a assombrasse. A partir de agora queria ser feliz, tinha o direitodeserfeliz.

Augusto aproveitou a passagem entre a multidão em direção àcarruagemengalanada,parasussurrardenovo:

-Malpossoesperarparaaternaminhacama.

Maria estremeceu,mas quando levantou os olhos cruzou-os com osda

duquesadeBragança,esentiunelesumavisodecautela.

Eraverdadequeumamulherquesefaziaesperarvaliamais...e podiamnamorar, tocar-se, deixar-se beijar como nunca fora beijada até então,sabiaqueamãedesejariaqueesperasse...

Quandoaportadacarruagemsefechou,beijou-oporsegundosnaboca,efoiasuavezdedizerbaixinho:

-Temosmuitoparadescobrirantesdessedia...

Os gritos e as ovações da multidão que enchiam as ruas estreitastomaram-lhetodaaatenção.Depoisdeanosdeguerraedesgraça,defomeedemorte,Lisboafestejavaestecasamentocomeuforia.Arainha-meninacasavacomumgarbosopríncipe, comonos contosde fadas.Quando tudofaltava no país, e os governos e os políticosse sucediam, uma festa faziaesquecer,pelomenosporumdia,queo liberalismoaindanãooslibertaradenada, e que na práticaD.Maria era rainhaapenasdeLisboa, Sintra earredores,porqueorestodopaíscontinuavadivididoeemluta.

Amãe, aLehzene eu fomoshoje àmissapara rezarpela felicidade docasamentodeMaria.Aquininguémfalaemcasar-me,maso reimeteu nacabeça que o meu nome deveria ser mudado para Charlotte,o nome daminha prima, a princesa real que morreu de parto. Porque Vitória ésinónimo de estrangeiro, e ninguém quer tuna rainha britânica com tunnomealemão,dizele.

Fiqueimuitocaladaquandoaminhamãemecontou.Elaquemedeu oseu próprio nome, contra tudo e contra todos, naquela sinistra cerimóniadebatismo,nempestanejava.«Seforprecisomudar,mudamos»,disse-me.Gomo se tudo o que sou, tudo o que fui nestes quinzeanos, nãorepresentassenada.QueinvejativehojedeMaria,rainha, casada,senhorada sua casaedo seu reino.Tenhoa certezadequenão aceitariaque lhemudassem o nome! E eu, quando um dia for rainha,também não medeixareiusarcomoagorafazem.CharlotteRegina?Nãomeparece.

PaláciodeKensington,26dejaneirode1835

PaláciodasNecessidades,10defevereirode1835

sdiassucediam-sefelizes.MariaeAugustotinhamidoaMafraeaSintra,passear,montaracavaloecaçar,aoSãoCarlosouvirópera,acasadosduquesdePalmeladançar,eoPaláciodasNecessidadesenchia-sedegentetodasasnoites,oscandelabrosdecentenasdevelasacesas,aorquestraatocaratédemadrugada.

Maria e Augusto conseguiam, de vez em quando, escapulir-se paraumcantodo jardimparanamorarempaz,masquedi iculdadeera afastarasdamas,acunhada,astias,ameia-irmãetodaaquelagenteque,derepente,insistiaemrodeá-losatodaahoraeatodoominuto.

«Têm medo que engravide do meu marido, é? Grande escândalo, defacto»,protestavaMaria,desabrida.MashojeAugustoconseguira arrastá-la para a biblioteca vazia, e deixava a mão escorregar para lugaresproibidos,sossegando-acompalavras:

-Tenhacalma,odiaestáquaseachegar...Faltapoucomaisdeum mêsparaquefaça16anos,eentão...

Maria estremecia com o toque da pele na sua pele, mas subitamente,respirandofundo,zangou-se:

- Não tenho tempo para estas coisas. Há um país para governar, e sóPalmelaeSaldanhachegamparamepôracabeçaemágua-comoéqueépossívelquenemessesseentendam?Começoapercebera impaciênciadomeu pai, no Brasil, com os ministros e os políticos. Lutaram pela Carta,deramavidaparamerestituirotrono,eagoraqueosinimigosaindaestãolongedederrotados,discutemunscomosoutrosdiaenoite.

Augustofez-lheumafestacarinhosanocabelo:

-Porque é que insiste em não me deixar falar com eles? Soucomandante-chefe do Exército, até o desvairado do Saldanha me deve

respeito,tenhomaisexperiênciadestascoisas.

Mariafulminou-ocomosolhos:

-Domeupovotratoeu,equenemlhepassepelacabeçaocuparomeulugar!Podesertudoissoemuitomais,masemPortugal,arainhasoueu.

AcartaparaaMariaseguiuesborratadacomasminhaslágrimas. Tenhoestadocomfebretifoide,e,vendo-meàsportasdamorte,odepravado deJohnConroy,comacumplicidadedaminhamãe,queria queassinasseunidocumento a con irmá-lo como meu secretário particular. A queridaLehzenentrouderepenteeviucomometorturavam, aminhamãecomamãoa forçar-meaagarrarmunacaneta, JCcomo papelestendido,eeuaarderemfebre,recusava-me.Perdeuacabeça?,gritou-lhe,epô-losforadomeuquarto.Comoéqueépossívelquetunamãe façaumacoisadestasauma ilha?PreferiaserórfãcomoaMaria,atertunamãeassim.ALehzenmandou chamar o Dr. Clark, que imediatamente proibiu visitas, até daminhamãe,eagoraqueestouumbocadinhomelhorquerqueadoteoutrarotina, que apanhe ar fresco, em lugar de passar horas e horas àsecretáriaeaestudar.Insisteque façaexercíciocompesosparamelhorara minha musculatura, porque sou demasiado magricelas. Para dizer averdade, com esta doençapareço uni verdadeiro cabide. Consolou-mecontar tudo isto à Maria,sei que está longe, mas não tenho outra amigamaisperto,eassuascartas incisivasediretas, tãofrancaseaté ingénuas,ajudam-me muito.Põe tudo preto no branco, com tuna simplicidade quenão tenho masqueme faz bem. Espero que a resposta venha depressa.Entretanto,brincocomomeuqueridoDash,porquemetiraramdoquartotodosos livros. Não querem que canse os olhos, e, pela primeira vez navida,nãomeapeteceler.

PaláciodeKensington,20defevereirode1835

PaláciodasNecessidades,22demarçode1835

rainhaacordounostálgicaeficoumuitoquietaesilenciosaaolharotetododosseldasuacama.EstavahámenosdeumanoemLisboa,hásetemesesmaisprecisamente,ejátantacoisatinhaacontecido,pensou.EagoraAugusto.Umadasdamas,comamaldadequetodastêm,suspirou,deixaracairainformaçãodequeoseuqueridomaridoforavisto,decapaemredordosombrosechapéuenterradoatéaosolhos,numbairrodemeninasfáceis.Mariafingiraignoraraconversa,dando-aporumrumorvenenoso.Emesmoquefosseverdade,pensavaagoraenquantoseespreguiçava,oshomenstinhamassuasnecessidades,todaagenteosabia,edepoisdesteestúpidojejumaqueforaobrigadoeranaturalqueprocurassesatisfaçãoforadecasa.Masdaquiamenosdeumasemana,nodia4deabrilmaisprecisamente,tudoissoiaacabar.Dar-lhe-iatantoprazer,seriatãoassíduanasuacama,queelenuncamaissentiriavontadeounecessidadedesairdela.

O céu de Lisboa estava azul, e não ia deixar que estes pensamentostristes lheroubassemaalegria.Para issobemlhebastavamospolíticos, enos últimos dias Palmela fora tão atacado nas Câmaras e pelos jornais,acusado de incompetência e favorecimento, que suspeitava quemais diamenos dia apresentaria a demissão. E depois? Depois logo se via. Agoraesperava-a um passeio a cavalo com Augusto, e Eugénia e DomingosPalmela.Istoé,seAugustonãotivessefeitoumanoitada,pensou,irritada.

Acriadaajudou-aarranjar-se,atrançaloiraegrossa,comumlaçoazulaprendê-la, a saiadeamazonaquemandara fazeremParis eo chapéu defeltro,presocomumgancho.

-Estoubonita,Lurdinhas?-perguntou,rodopiandoemfrentedo espelho,subitamente cheia de saudades da sua Florica, que lhe prenderiacertamenteumadasrosasbrancasdamãenocabeloe lhedariaum beijofugido na testa, entoando uma graça qualquer no seu portuguêscantado.Lurdesanimou-a:

-Vá,vá,Senhora,queosmeninosPalmelaesperamporsi.

Mariafingiurepreendê-la:

-SabesquedeiotítulodemarquêsdoFaialaDomingos,jánãoo podestratarpor«menino»-edespedindo-se,desceuaescadapara opátio,ondeos cavalos estavam prontos e Domingos a esperava, chuviscado por umaguaceiroqueabriraentreasChagas,ondemorava,easNecessidades.

- A Eugénia não veio? - perguntou Maria, surpreendida, mas Eugéniaicara emcasa, adoentada. - EoAugusto, jádesceu? - perguntouMaria, eestranhouqueDomingosbaixasseosolhos, ingindolimparasbotascomapontadachibata.

Franziu o sobrolho, zangada. Estava visto que Domingos sabia mais doseumaridodoqueela,certamentealgumanoitadainconfessável.Decidida,tomou as rédeas do seu cavalo das mãos do cocheiro, e ordenou aDomingosqueaajudasseamontar:

-Vamos, senhor marquês, que o passeio é comprido, porque queromostrar-lheoancoradouroquemandeifazerfrenteaoPaláciodeBelém...

Domingoshesitou,masarainhainsistiu:

-Nemparecesuaessatimidez.Achaquesairempasseiocomarainhaequatro criados como chaperons é perigoso - desa iou, a voz ligeiramenteestridente. Se Augusto saía para a noite, porque é que a rainha estavaimpedidadepassearcomumamigodeinfânciaemplenodia?

Domingos,deixandoregressarasuahabitualboadisposição,saltouparaocavalo:

-Vamosaisso,antesquevolteachover.

Da janela do primeiro andar, a duquesa de Bragança viu-os partir.Nervosa, estendeu as mãos ao longo do seu vestido preto, como que apassá-lo a ferro, e dirigiu-se, num passo apressado, para o quarto doirmão. Não resistia a contar-lhe o que vira, a ele e às suas damas quesecretamentenoscorredoresescurosdopalácioseguerreavamcomas deD.Maria,numalutasurdapelopoder.

Encontrou Augusto no quarto de vestir, rodeado pelos criados, numahierarquiarígida,emqueunstinhamdireitoatocarnopríncipe,enquantoaoutros restava a tarefade lhe engraxaremasbotas, oude penduraremnumacruzetaafardamilitar.

Saudou a irmã com a voz rouca, e apontando para a cabeça e para agarganta,numamímicacheiadehumor,dissebaixo:

-Dói-meacabeçaeagarganta.Nãodormitodaanoite.

Nervosacomapalidezdo irmão,aduquesadeBragançapôs-lheamãonatesta,quefervia:

-Jáparaacama,Augusto.

Eprotestandocomocamareiro:

-Nãoviuqueosenhorduqueestáaarderem febre?Chameomédico,imediatamente.

Augustofranziuosobrolhozangado,e,numfiodevoz,protestou:

- Mana, que ita é essa? Com um golo de vinho do Porto ao pequeno-almoçoficobem.

Masacabeçaestalava,eoprotestonãodemorouacederàinsistênciadairmã.

-NãodeixeaMariaentraraqui,quenãoqueroqueapanhe isto-disseatiritardefrio,apesardoscobertoresdepapaquejáocobriam.

AduquesadeBragançahesitou,masnãoresistiu:

-Nãoháperigo,Augusto.AMariafoipassearacavalocomoDomingos,osenhormarquêsdoFaial.O ilhododuquedePalmela- insistiu,nãofossealgum dos criados não ter entendido a insinuação,ou quem era apersonagem.

Augusto pressionou a garganta com o dedo indicador, para conseguirrir:

-Aimana,mana,esseveneno...

Mariaabriaasportas,umaporuma,deixando-asfecharatrásdesicomestrondo.Corriapelocorredor,comoumacriançapequenaquandoimaginaqueéperseguidaporumladrãoeanseiaesconder-senacamadamãeoudaama.Corriacomonaquelediaemquetentarachegaraoquartodamãe,antesdopaiedeDomitília,percorrendooscaminhossecretosdoPaçodeSãoCristóvão,comomesmoterrordenãochegaratempo.Comomesmopressentimentodeperigo,demorte,deculpa.Ofegante,paralisoudemedoaovercomoapelelívidadeAugustoseperdianafronhadaalmofada.

Ignorandoomédicoeoolharacusadordacunhada,deuospassosqueaseparavam de Augusto e, ajoelhando-se ao lado da cama, segurou-lhe namão.Masavozsaiuforte,comosenãoadmitissepieguices:

- Augusto, está tão quente... Livre-se de não se pôr bom numinstante,porqueprecisode si embreve -disse,piscando-lheoolho. Aproximando-separaobeijar,murmurou-lheaoouvido:

-Lembra-sedocombinado?Ou jáseesqueceudeque façoanospara asemana?

Augusto passou-lhe o braço em redor dos ombros e reteve-a junto a sipor uns minutos longos, mordendo-lhe a orelha, enquanto lhe diziabaixinho:

-Podecontarcomigo,Maria.

Massoltandooabraço,deixou-secairnaalmofada.

A rainha beijou-o na testa, escondendo a sua a lição, e saiu apressadaem direção à capela. Era preciso rezar. Rezar à sua Senhora da Glória.Pediràmãeque,ládoCéu,intercedesseporAugusto,intercedesseporelaquejánãoaguentavamaisdesgostos.

-Nãoqueroosjornaisnestepaço,ouviram?-gritouMaria.

Espantado, o mordomo-mor baixou a cabeça em assentimento,esperandoouvirumajustificação.

MasMaria limitou-se a atirar oPanoramapara cimadeuma cadeira, esaiudasala.Curioso,omordomoolhouaspáginasespalhadasdojornaldedia28demarço,eleu:«PríncipedeLeuchtenbergcorreperigodevida».

Pobrerainha,pensou,enquantoordenavaaoscriadosqueapanhassemaspáginasqueseespalhavampelochão.

Maria entrounoquartodomaridoqueosmédicoshaviamdesistidodesalvar. Não acreditava na medicina, não acreditava em Deus, nãoacreditava em nada, porque nada disto tinha salvo a mãe, Alexandre, aPaula e o pai, as pessoas a quem mais queria no mundo. Hoje nãoacreditavaemnada.Comosolhosazuisdeumvidroque re letiaa luz davela acesa na mesa de cabeceira de Augusto, afastou a madrasta, quechoravadescontroladamentejuntodacama,ordenandonumavozgelada:

-Deixe-sedehisterismos.Casosesalvenãoprecisadeles,eseestiveramorrer,tambémnão.

Estupefacta, Amélia deixou que uma das damas discretamente asentasse numa cadeira afastada, na esperança de que passassedespercebida.ApobreduquesadeBragançanão sobreviveriaaAugusto,assustou-se o duque de Palmela, chamado ao paço perante esta tragédiaiminente.

Comonacena inaldeumadasóperasaquetantogostavamdeassistirnoSãoCarlos,MariaeAugustoabraçavam-se,sozinhosnomundo.

-Nãoacreditoquenãovousaborearasuapele -sussurrounum io devoz,sóparaela,opríncipe.

Mariacorou,edeixouacabeçacair-lhesobreocorpo:

-Éclaroquevai...nãoselembraquefaçoanos...-aindadisse,masavoznãoalevoumaislonge.

Augusto, que tossia a cada palavra, o ar a miar ao passar-lhe nagargantaapertadapelaangina,quasequesoletrou,nummurmúrio:

-Minhaquerida,vousonharquesomosfinalmenteumsó.

Efechouosolhosparasempre.Mariaabraçouoseupríncipeperdido,osseussoluçosaembalaremocorpojásemvida.

Quando viu D. Amélia correr para o irmão, Palmela deu dois passoslargos em direção à rainha, procurando evitar o confronto. Não chegou atempo.Aosentirasmãosdamadrastasobreosombros, tentandoafastá-lado irmão, quemorria nesta terra onde só conhecera amorte e a solidão,Mariasoltou-seerugiu:

-Morreuomeumarido,nãoposso fazermaisdoqueaceitaravontadede Deus, mas aqui, minha senhora, mando eu, e, cortados todos os laçosqueaprendiamamim,desapareçadaminhavistaparasempre.

Seaomenossepudesseescondernarededavarandadospapagaios,seaomenospudessecorrerentreosfetoseomato,emdireçãoaosbraçosdamarquesa de Aguiar, sentir o cheiro da terra molhada depois de umachuva sem im, se ao menos o som das cigarras e osbeijos de Florica apudessemsossegar.Masnãotinhamaisdoqueo céuenevoadodeLisboaeumavontadeimensadedesistir.Desdeos 9anosquecorriasozinha,decabeça erguida, ingindo não perceberque tudo e todos estavam sempredispostos a roubar-lhe o que tinhade mais querido. Quando entrou noquarto,estacougelada:ascriadasjátiravamdosarmáriosovestidopreto,o vestido preto que há menosde um ano usara para o enterro do pai.Gritou,zangada:

-Hátempoparaisso,tragam-meoalmoço.

Haviadeengordartanto, tanto, tanto,queaporcariadovestido não lhecaberia nunca mais. Zangada, triste, enraivecida, destruída,que lheimportava o nome que os outros quisessem dar à sua dor. Só sabia quedoíadecadavezquelheroubavamofuturo.

RecebitraiacartadaduquesadePalmelaenãoqueriaacreditarno queli. Augusto morreu, vítima de uma amigdalite, no dia 28 de março, doismesesdepoisdocasamento.AsenhoraD.Eugéniaachouqueme deviadara notícia o mais rapidamente possível, porque Maria está devastada de

maisparaescrever.Sentei-meàsecretária,paralisada: oqueéquesediznuma altura destas? 0 que digo a Maria, mas tambémà duquesa deBragança,queperdeassimoirmãotãoamado.Tentei escreverdocoração,porquenãogostodecartasformais,quenãodizemnadaesódãoideiadequequemescrevequerédespacharoassunto.

Depois, escrevi ao tio Leopoldo, para que me diga o que acontece aseguir. Não quero ser fria,mas sei que o tio Leopoldo achará que esta étuna oportunidade enviada do Céu, e de facto, sendo amiga comosou deMaria,seique icarámelhorcasandocomumdosmeusprimos. Julgo queela não amava Augusto, sempre suspeitei pelas suas cartasque o seucoração estava com Alexandre, mas o que aconteceu é brutal, sobretudoparaquem já sofreu tanto. SeiqueaduquesadeBragança temunioutroirmão, que certamente quererá casar com a rainha,mas, não sei porquê,achoquedestavezotioLeopoldojánãovaijogarafeijões.

PaláciodeKensington,5deabrilde1835

PaláciodasNecessidades,18deabrilde1835

arfaenxugouaslágrimas.Passaraodiatodofechadanasuasalinha,nãoquiserafalarcomninguém,ouvirninguém.Subitamentesentia-seperdidaeassustada:quelheinteressavaacoroa,opaís,fossequemfosse,setudoacabavasempretãodepressa,enumdesgostotãoprofundo?Augustoestavamortoeenterrado,eelasóconseguiachorar.

Ouviu um bater de dedos na porta da sua sala, onde ingia trabalharpela noite adentro, um bater suave, quase assustado. Quem seatrevia aincomodá-la,depoisdetodasassuasordensdequeadeixassemempaz?Ocriado,amedo,disse-lhequenaSaladosEmbaixadoresestavaocônsulinglês, que pedia para ser recebido com urgência. Animou-se: viriaentregar-lheumacartadeVitória,umacartadeconsolo?

OpobreMeagherentrouvisivelmenteperturbado.

-SuponhoqueVossaMajestadejásabeoqueaconteceu?-perguntou,avozgrave.

-Oqueaconteceu-repetiuMaria,perplexa.Ohomembrincavacomela?Perguntava-lhepelomaridomorto?

Odiplomatacorouatéà raizdoscabelosbrancos, e,percebendoo mal-entendido,balbuciou,numfrancêsde«rr»carregado:

-Não,senhoraD.Maria, faloda turbaqueestáreunidaàportada casadoduquedePalmela,nasChagas,apedirasuamorte,edafugadoduqueedamulherparaminhacasa...

Mariaolhou-o,estarrecida:

- «Morras» aoministro, fuga do duque?Não sei de nada, julguei que oExército, os políticos, a corte, o povo, o país, estivessem de luto! Fale,senhorcônsul-instou,furiosa.

-Peço-lheimensadesculpa,masjulgueiquejásabiadorumordequeosenhorD.Augustofoienvenenado...

-Augustoenvenenado?Masestagenteétodalouca?

Mariafranziuosobrolho,ameaçadora.

-EoqueéqueessedisparatetemavercomoduquedePalmela?

O cônsul, visivelmente incomodado, e depois de tossir para ganhartempo,respondeu:

-Ahistóriadoenvenenamentosurgiunumimpressocoladonasesquinasdacidade,equeumjornalirresponsávelpublicou...

Mariafez-lheumsinaldeimpaciência:

-Não leio jornais,masporqueéquenão respondeàminhapergunta:oque é que o senhor duque de Palmela tem a ver com estahistóriadisparatada?

-Eraoquelhetentavaexplicar,Majestade.Orumordizquefoio duquequeotentoumatar.

Mariaabriuabocacomumespantoincontido:

-O duquede Palmela agora é assassino?Umhomicida que andaa pôrveneno no prato dos príncipes que se empenha em trazer para Portugal,paracasaremcomarainha?Masafantochadanãotemfim?

-SenhoraD.Maria,nãolhepossodarmaisrazão,massabecomo sãoosboatos, sabe como estas coisas correm, e a verdade é que umamultidãoenraivecida se juntou à porta do Palácio Palmela ao im datarde, aos«morras».Pelasnovedanoite,oduqueea família fugiram pelos quintais,atéminhacasa,ondeestiveramescondidos.CercadasonzehorasaGuardaabriu sobre amultidão, quedispersou.Agora queoduque já voltouparacasa, e lá está seguro e acompanhado deamigos, achei que era minhaobrigação avisar VossaMajestade. Palmela queria vir pessoalmente, masimplorei-lhe que delegasse em mima missão, porque não é seguro quesaiaàrua.

-AGuardaestavalá,enãofeznada?-perguntou,perplexa,arainha.

Aindamaisembaraçado,ocônsulrespondeu:

- Sim, Majestade, a Guarda Nacional estava lá desde o início, massódecidiuagirhorasdepois...

Marianãoqueriaacreditar.Pôs-sedepé, levandooembaixadora fazero mesmo, aproximando-se da janela. Lá fora a noite, como um espelhomágico, re letia a noite damorte da suamãe, em que o povo enfurecidoassaltara a chácara de Domitília, e o Exército passivo deixara que lhedeitassemfogo.Afastouasmemóriasevoltou-sedenovoparaoinglês,comumanovaquestão.

-Masoquealegam?PorqueéqueoduquedePalmeladesejariamatarAugusto?

O pobre homem daria tudo para não ser o arauto desta história. Sempensarnogesto,puxoudeumacadeira,comosedescon iasseque arainhairiaprecisardela.

Mariazangou-sedenovo:

- Não sou uma criança, senhor cônsul! Sou a rainha de Portugal,umarainhaviúva...

Oembaixadorengoliuemseco:

- Não queria ser indelicado, mas é tão nova, ainda poucomais doqueumacriança,etempassadoportanto...

-Deixe-sedisso,erespondaàminhaquestão...

- A turba foi acicatada pelas sociedades secretas dos quadrantespolíticos inimigos do duque, estou certo disso, mas o motivo próximoalegado...

Ocônsulrespiroufundo,eacrescentoudeumfôlego:

- Dizem que o queria morto para que Vossa Majestade pudesse casarcomofilho...

Mariavirou-sedenovoparaajanela,escondendoovéuquecaíasobre oseuolhar.Nãoerapossívelumaironiadestas.«Alexandre,Alexandre,ondeestás?Porqueéquenãomeproteges,nãoprotegesosteuspaise os teusirmãos?», rezoubaixinho.Eramaisdoque certodequealguém falara dasualigaçãocomAlexandre,eagoraconfundiamosirmãos...

- Para me casar com o Domingos? Como se tal alguma vez pudessepassarpela cabeçadoduquedePalmela,quebandode saloios...De ondeterávindoumaideiacomoessa?

Aoveroembaixadorembaraçado,percebeuquehaviamais:

-Diga-metudo,porfavor...

-Aoqueparece,aproveitaramofactodeVossaMajestadetersido vistaapassearsozinhaacavalocomomarquêsdoFaial,diasantes damortedopríncipe,erecordaramquelhedeuhápoucootítulo...

Maria sentou-se na cadeira que recusara há momentos e escondeu acaracomasmãos.Quantasvezessearrependerapor ter julgado Augustoapressadamente naquela manhã, mas, por amor da Virgem,saíra comDomingos,umamigoqueconheciadesdeos9anos,umamigo,nadamais,eagora julgavam-na uma cortesã, capaz até de comprar o amante comumtítulo, prémio de consolação por não secasar com ele? Seria este o seudestino,serperseguida,vilipendiada,observadaatodooinstante?

Levantouacabeça,subitamenteenfurecida:

-Nãohálimiteparaaestupidezhumana.

Ocônsulqueriasuavizaroembate:

-Não é nada coma rainha,Majestade.Há setores políticos que odeiamPalmela,quefariamtudoparaodestruir.

Maria, cansada, acenou com a cabeça. Sabia bem que os absolutistasachavamPalmelarevolucionário,osrevolucionáriosocondenavamporseraristocratae terrecebido terras,dinheiroebens,ecomose tudo istonãochegasse ainda havia os radicais, zangados porque não eram escolhidosparaogoverno,enãosuportavamasualigaçãocomos ingleses,maspara

ela eram todos uns seres cansativos e insuportáveis, que nunca estavamcontentes, já para não falar nos clubes dospedreiros-livres, cujasmaquinaçõesnemtentavaentender.

-Boanoite,senhorcônsul,hojemesmovouescreveraosenhorduquedePalmela.

Meagher, perplexo com a rapidez com que era despachado, não teveoutroremédiosenãofazerumavéniaesairdasala.

Ocônsulbritânicodeu-noscontadoquesepassouemLisboa.Éterrívelimaginar que o povo se tenha voltado contra Palinela e a família, queestranhoéquesepersigatunapessoaquefezefaztantopelopaís.Custa-mequeapobreMariasejaobrigadaapassarportudoistosozinha.Dizem-me que a confusão no país é grande, e que um doserros graves foi aincapacidade de chamar à corte e ao governo aquelesque serviram D.Miguel, sobretudoporqueos seusapoiantes sãoaindamuitos.No imdasguerras civis é sempre di ícil perdoar, sendo enorme a tentação de fazeruso do poder para a retaliação, mas é um erro, diz o meu professor dePolítica, e espero ntmca o esquecer. É di ícil aos vencedores seremmagnânimos,mas a verdade é que a linha dinásticade D. Pedro, ou sejaMaria, ainda está longe de se poder dizer segura.Só que quanto maismedo, menos tolerância. A nossa História estácheia de casos que oprovam. Mas Maria, a esta hora, estará pouco interessada no que sepassoudesteladodomar.

PaláciodeKensington,19deabrilde1835

PaláciodasNecessidades,20demaiode1835

rainhasentou-senoterraçoviradoparaojardimequedecoraradeformaalembrar-lheasvarandasdoseuPaçodeSãoCristóvão,naesperançadeencontraralgumsossego.Nãoatinhamdeixado,sequer,fazerolutopelomarido,eles,ospolíticos,quesequeriamagoraimiscuirtambémnasuavidaprivada,ditarosseusamores.Palmelademitira-sepoucodepoisdamanifestaçãoàportadecasa,aseguirvieraumministérioedepoisoutro,eagoraeraSaldanhaquechefiavaogoverno,ovelhoamigodopaiquelhegarantiaqueopaísaqueriavercasada,queopaísdesejavaumadinastia.

Primeiro resistira, mas logo depois dera pelos botões das lores aabrirem,asfolhasverde-alfaceanasceremnasárvores,eorioTejode umazulcintilante,aquemabonançatraziaacadadiamaisveleiros, com itasde cores a enfeitarem-lhes os mastros, e deixara-se contagiar pelaprimaveraquevoltara,comovoltavasempre.

Opaíscontinuavaderastos,ospolíticoseospartidos,quenasciamtodososdiascomocogumelos,nãoseentendiam,eaelacabia-lheencontrarummarido, cujoprestígio fortalecessea coroaedeixasse claroqueadinastiadeBragançaestavano tronopara continuar, e com oapoiodaspotênciasestrangeiras.Umhomemfortequeaajudasse agovernarcomaCartaqueo seupai lhedeixara, alguémqueestivessedo seu lado, de cuja lealdadenão duvidasse nunca. O conde doLavradio, o primo querido da sua D.Leonor, e quem sabe se instruído por ela, parecia tê-lo encontrado.FernandodeSaxe-Coburgo-Gotha,que,alémdetodasasqualidades,tinhao trunfo máximo de ser primodireito de Vitória. Agora era preciso queaceitasse.

Pegounapenaecomeçouaescrever:

«MinhaqueridaVitória,podespedir, coma in luênciaque tens sobre o

tio Leopoldo, que ele intervenha em meu favor, e convença o teu primoFernandodequesouamulheridealparaele?»,escreveu.

Roendoapontadapena,pensou:agoraerasódar-lheosparabéns pelosseus16anos,e lembrar-lhequeocasamentoas transformavaem primasdeverdade,comoClemsonhara.

HojerecebicartadaMaria.Tãocheiadesi,quesómedávontadederir.Diz que me dá este ano o melhor dos presentes de aniversário,aoponderarcasarcomomeuprimoFernando,quenemconheço.Mas pelosvistostenhodetrabalharparavirareceberomeuprópriopresente!Malsabe a rainha de Portugal que não preciso de in luenciar o tio Leopoldo,porquejáestáemcampohámeses,desdeodiaemquesoubedamortedeAugusto.NãomeadmiranadaquetenhasidoeleacontactarLavradio,atéporque os dois se conhecem bem e de há muitosanos. Inglaterra, paramais, apoiará certamente este casamento, porque pelo menos deixa deladoainfluênciafrancesa.

Quantoamim,tivetundiadeanos fantástico.Oreideu-meunsbrincosde sa ira e um livro de orações debruado a ouro, e a mãe fez-me tunasurpresa fabulosa, de tal forma que por momentos (curtos,reconheço!)quase me apeteceu esquecer todas as crueldades a queme tem sujeito(mas não esqueço!)., trazendo a Kensington a minhacantora de óperafavorita.Nemqueriaacreditar.Adoroópera,adoro cantar,eadorodançar.Tenho isso em comtun com Maria. E talvez, umdia, também um maridoescolhido de entre os rapazes Saxe-Coburgo, porque não duvido de quecasar-me com alguém da família é parteimportante dos planos do meuadoradoreidaBélgica.

PaláciodeKensington,30demaiode1835

PaláciodasNecessidades,29demarçode1836

arfaabriuascaixaseexclamou,entusiasmada:

- Senhora D. Eugénia, já viu estas camisas de dormir lindas queencomendeideParis?Eolhe,olhe,senhoraD.Eugénia,esteschapéus!

AduquesadePalmelasorriu,condescendente.AalegriacomqueMariapreparava o seu terceiro casamento era contagiante. Admirava acapacidade que a rainha tinha de ultrapassar di iculdades, um ladorisonho e alegre que era certamente a marca «dos trópicos», como aprópriaMariadiziaconstantemente.

Prestes a fazer 17 anos, Maria era francamente bonita, a pele muitobranca, os olhos cheios de vida, as maçãs do rosto sempre rosadas, e ocabelo arruivado por um longo inverno. Mas está mais gorda, reparou aduquesa, recordando os avisos que a marquesa de Aguiar lhe faziasempre, com receio de que Maria se tornasse tão disforme como a mãeapóssucessivasgravidezesemuitatristeza.

Mariaapanhou-apensativa:

-Emqueéqueestáapensar?-quissaber,avozaprocuraresconderaa lição, como se a duquesa de Palmela estivesse a ver nuvens quelhepassavamdespercebidas.Eugéniasorriu,abertamente:

-Pensavaemcomoqueroque seja feliz, e tenhamuitos ilhos, talcomoeu,ecomoasuamãe.

Maria deu uma gargalhada, mas quem a conhecia bem encontravanoseurisoumasombradedor:

- Se Fernando chegar a Lisboa são e salvo, e não morrer só de olharparamim...

Aduquesapassou-lheamãorapidamentepelocabelo:

-Quedisparate,senhoraD.Maria.

Mariamordeuasunhas,esseseuhábitoquenadaconseguia impedir,eatreveu-se a continuar, com aquela franqueza que a duquesa de Palmelaprevia que lhe trouxesse muitos sarilhos, e que já tinha um efeitodemolidornospolíticoshabituadosaguardaroquetinhamparadizerparaquandooalvodassuasintrigasestivessedecostas:

- Sabe, recebi uma carta da princesa Vitória, a contar como adorou oFernando,queestevecomelaemLondresdurantequasedois meses. Diztanto,tanto,bemdele,desfaz-seemelogiostãosentidos,quesinceramentenão sei se devo icar contente por ser uma pessoatão dotada, se devotemerqueoqueiraguardarparaela.Oupior,que ocoraçãodeFernandojávenhatomado...

AduquesadePalmelasorriu-lhe:

-Ciúmes,senhoraD.Maria?Sabequeosciúmes,nadosecerta, sãoumacoisamuitoboaparaoscasamentos.

Mariaolhou-a, intrigada,eEugénia tevepenadequearainhaestivesserodeadaporuma camarilhaquenãovalianada.Talvez estemarido,maiscultoeeducadodoqueela,comoutrosinteresses,fossecapazdeimpedirarainha de se deixar prender por afetos que dava sem pensar, numalealdadedescuidadaderazões.

-D.Eugénia,osciúmesfazembemaquê?Àcontadeles,viaminhamãemorrerlentamente,eaamantedomeupaiatentarmataratiroa própriairmã.NãoqueroqueoFernandomefaçaciúmes.

AduquesadePalmelarespondeunumavozmeiga,dequemsabiacomoeste assuntomagoava fundo. Era preciso explicar à rainha que era certoexigir um marido iel e leal, mas que homem nenhum aceitaria serenjaulado, como um dos animais selvagens que a imperatrizLeopoldinaenviavaparaascoleçõeseuropeias.

- Falava de um ciúme suave, uma pontada no coração que nos diz quetemosdeseresposasmaisdedicadas,prestarmaisatençãoaosdesejosde

quemamamos,semotomarmoscomocerto...

A rainha começou a empilhar as caixas que recebera, como seprecisassedeatividadeparalhemascararaânsia:

-VitóriadizqueFernandoémeigoe interessante,queandapor todo olado comumbloco e um lápis e desenha tudo o que vê, queé sensível egosta de música, só qualidades. Coitada, acho que ela,fechada naquelepaláciohátantosanos,tambémseencantacomqualquerum...Master-me-iaavisadosefossemulherengo,nãoacha?

Aduquesadeuumagargalhada:

- Tenho a certeza de que sim,Majestade. Vai ver que se vai apaixonarporelemallhepuserosolhosemcima,eeleporsi,semdúvidanenhuma.

Mariasorriu,satisfeita:

-Achamesmo?-eEugéniaacenouquesimcomacabeça.Maisumavezadmirava Leopoldina. O seu amor de mãe fora tão forte que deixara nailha um amor-próprio à prova de intempéries. O que, somado àimpulsividade do pai, tornava possível que a rainha estivessesemprepronta a abraçar o amanhã, enterrando longe do coração o ontem. Seráque ainda se lembravadeAlexandre?, pensou comuma ponta demágoa,ela que nunca o esquecia, mesmo quando um novo ilho crescia no seuventre,comoagoraestavacertaqueacontecia.

Mariajáianaporta:

-Venha,venha,voumostrar-lheasobras.Nãoqueroenvergonhar-medopalácio em que recebo o meu marido, habituado como está àsmelhorescasasdaEuropa.Aproveiteiapartidadaminhamadrasta edapequeninaAméliaparaopaláciodaRuade SantaMarta, e iznovos aposentos paratodos,venhaver,venha...

Só queria que Fernando icasse mais tempo. Animou a vida neste

palácio,dançoucomigoatédemadrugada,montámosacavalo, jogámosàscartas,fomosàópera,eencheu-meavida,habitualmentetãomonótona,desurpresa e entusiasmo. Preferi-o mil vezes ao seu irmão Augusto, é-lhesuperiordemuitasmaneiras,temmisolhoslindos,unscaracóislourosqueemolduramtunacaraperfeita,tunainteligência vivaeumaalegria infantilque adoro nos homens. Que pena tenhode o ver partir. É tuna pessoaexcelente, generosa, temuni coraçãode ouro,eeu,maisdoqueninguém,só quero que seja feliz. Disse tudoisto à minha boa Maria quando lheescrevi, mas omiti as minhas dúvidas. Não sei como se habituará aPortugal, tão diferente daquilo queconhece. Fernando vai cheio decoragem, espírito de sacri ício e boavontade, e, sendo naturalmenteinteligente e observador, não duvido de que, com bons conselhos e commuitaprudência, tudová correrbem.0 tioLeopoldoescreveu-meadizerque passou semanas a instruí-lo napolítica portuguesa e internacional, enaquilo de que vai precisar para ser rei de Portugal e governar comexcelência, e já aqui, em Inglaterra, falámos longamente de política. Teveencontroscomospolíticosdetodososquadrantes,que icaramcomótimaimpressão dele, o que lhevai ser útil se precisar de ajuda. Ou melhor,quandoprecisardeajuda,porquenãoéfácil,aos19anos,serconsortedetuna rainha tão jovem,frente aumpaísdestroçadopor tunaguerra civil,com tuna situaçãoeconómica próxima da penúria, e um conjunto depolíticosquesóagoraseiniciamnaarteequeparecemestarinteressadosem tudo,menosnos interessesdePortugal.Levaconsigoo seupreceptorCarlDietz,uniprofessormaisvelho,queestácomeledesdepequeno,masmuitofrancamente não sei bem o que pensar do homem. Pareceu-niemuitocontrolador, sempre a vigiar-nos, mas talvez Fernando tenhapensadoomesmodaminhaLehzen,semaqualnãosounada.En im,voupediràminhamãequemandevirosmeusoutrosprimos,ErnesteAlbert.Achoqueafinalosqueroconhecer.

PaláciodeKensington,29demarçode1836

PaçodasNecessidades,8deabrilde1836

estavez,Marianãocorreuparaajanela.Nemquisverobarcoaolonge.Emuitomenosaceitouesperarimpávidaeserena,queomaridoseapresentassefrenteaoseutronodouradoecarmim.Destavez,Mariaestavaorgulhosadosseus17anosfeitosháapenasquatrodias,edecididaaqueaoterceiromaridoseriadevez,comocomentava,entrerisos,comasdamas,enquantoascriadasapertavamascostasdeumvestidoacabadodechegardeParis,azul-clarinhoparalherealçarosolhos,odecoteembarco,ousadamentedescaído,asmangasestreitasqueabriamembalãoparafecharemdenovonumbotãodemadrepérolanospunhos,arendadeumacamisabrancaamarcarasmãos,demasiadopapudastalvez,masqueimportavaagoraisso...

- Vou ao Arsenal esperar o meu marido, não vou permitir que toda agenteoveja,comenteeopineantesdelhepôrosolhosemcima-insistira,equandoMariainsistia,ganhavasempre.

Ascarruagensesperavamno terreiro frenteaoPaçodasNecessidades,quefelizmenteotemposecotornavamaisapresentável.

-Aindabemquenãoestá a chover, porque senãoFernando icava malimpressionadocomolodaçaldasnossasruas,acomeçarporesteterreiro,quetemosdemandarcalcetar-comentoucomPalmela,enquantoentravaparaacarruagemdafrente,asarmasdosBragançapintadasdefresconasportasdacarruagemreal,porsuaordemexpressa.

As multidões ladeavam os caminhos desde cedo, na esperança deumlugarcomvista,eMariaacenou-lhes,feliz,eopovogritou«Vivaarainha!»,e seguiu a comitiva, os populares na ânsia de serem também eles osprimeirosaveropríncipeestrangeiro.

- Tenho a certezadeque a esta hora estão a fazer apostas de que vouserrepudiadaouqueomeumaridomemorreránosbraços-disse Maria,osolhosfixosnumpequenogrupodevarinasqueriamentresi.

AduquesadePalmelariu:

- A sua imaginação fá-la sofrer muito mais do que seria necessário,senhoraD.Maria.

Mariaencolheuosombros:

- Quero lá saber o que pensam ou dizem. Cansada estou de ouvirospolíticosdestepaís,quetodososdiasmegarantemqueopovoestáprontoparamedestronar.Opovo,senhoraD.Eugénia,éumótimo pretextoparaquecadaumdigaoquequersemsofrerasconsequências.

A carruagemparara noArsenal, ali junto do Terreiro do Paço, e Mariaviu-o no primeiro relance. Alto, pálido, louro, magro na sua farda a queumafaixaencarnado-vivadavacor,eraaimagemperfeitadospríncipesdequeamãelhefalaratantasvezes.OspríncipesdaVienadeLeopoldina,ospríncipesquedesejaraparaasuafilha.

Fernando aproximou-se e, com uma vénia, beijou-lhe a mão. Olhou-a,tímido.

-Então,asurpresaéboaoumá?-perguntouMariaemfrancês, comumdescaramento que fez respingar algumas das damas, mas que divertiuFernando.

-Amelhorpossível-disse,sorrindo-,eesperotambémnãotersidoumadesilusão.

Marianãoresistiu:

-Orabem,depoisdasdescriçõesqueVitóriafezdesi...

Fernando corou, e Maria estremeceu. Será que se apaixonara pelaprincesainglesa?Sesim,eraprecisoquesedesapaixonasse,pontofinal.

- Iadizerque julgueiqueaminhaqueridaprima tinhaexagerado,masparece-mequenão.

-Parece-lhe,dizbem,achoqueémelhoresperarparaver,pelo menosmaisumbocadinho...-respondeuFernando.

-Concordo,maisumbocadinhoserá,emborajáestejamoscasados parao bem e para o mal, mas sim, esperamos por amanhã, quando nosvoltaremosajurarumaooutro,naSédeLisboa.Masaviso-o- acrescentou,descarada-,depoisdissonãoháretorno.-Eumsorriso largo,quedeixavaverosseusdentesbrancoseperfeitos,deixavaclarooseupragmatismo.

Fernandoprotestouquenão,queé claroquenãoqueriadesertar, masnem teve tempo de proferir uma palavra, porque uma personagem alta,quasecareca,umnarizafiadoeumabocanumtraçofino,intrometeu-se:

- Não deserta nada, que não deixo. A senhora D. Maria é tudo o queimaginávamos.

Fernandoapressou-seaapresentá-lo:

-CarlDietz,Majestade.

-Ah,ofamosopreceptor-disseMariacomumsorrisodeaprovação.

O duque de Palmela e os embaixadores de França e Inglaterra, quecompletavam o círculo, entreolharam-se. A ninguém tinha passadodespercebido o «nós» majestático do mestre alemão, como se ele e opríncipefossemumaeamesmapessoa.

CoitadadarainhadePortugal.Segundodizemosnossosembaixadores,hojemesmocomeçouusinadiscussãoemtornodanomeaçãodeFernandopara comandante-chefedoExército,queo contratonupcial prevê.Aoqueparece,asCortesnãoconcordamqueuniestrangeiro assumaolugar,eatépoderiam ter alguma razão, se não fosse o absurdo de nunca teremcolocadonenhunnaobjeçãoaqueAugustousasse taltítulo.O quemudouem apenas meses? São os dois igualmente estrangeiros. Escreve oembaixadorqueosliberaisportuguesesgostavammaisdopedigreeliberaldo primeiro, e descon iamda juventude dosegundo, que lhes parece umjovem imberbe e inseguro. Como podemser tão cruéis? Não queremdeixar a rainhaempaz.Maso tioLeopoldofezquestãodequeFernandotivesse um lugar importante em Portugal,e diz-me que o comando doExército é simbolicamente fundamental. Não vejo que ninguém vá ceder,

mas temoque, senãoo izerem,Fernandorecebaordensda famíliapararepudiarapobreMaria,eisso nãoseriajusto.Comoéqueépossívelqueoconde do Lavradio tenhaassinado uni documento que não era paracumprir? Descon io que foiarmadilhado, mas duvido que aceite estahuunilhação. A ver vamos.Voumontar a cavalo por usina hora, senão omédicogarantequeasminhasterríveisdoresdecabeçavoltarão.

PaláciodeKensington,8deabrilde1836

PaláciodasNecessidades,9deabrilde1836

xplique-me,explique-mecomoéqueépossívelqueosdeputadostrabalhemenãorespeitemodiadomeucasamento.NãorespeitamosenhorD.Fernando,comoseasuachegadanãofossesuficientementeimportanteparaqueassinalemodia-indignou-searainha,peranteonovoprimeiro-ministro,JoséJorgeLoureiro,quetorciaasmãos,nervoso.Searainhaselevantavadobanquetedoseuprópriocasamento,searainhadelongovestidobrancoetiaranocabeloestavaalinasuasaladetrabalho,paraprotestarcomoministroporlheterconstadoqueaCâmaradeBaixonãointerromperaasessãoparacelebrarafesta,comoreagiriaquandosoubessequeostrabalhossetinhamdestinadoaimpedirqueopríncipeconsortefossecomandante-chefedoExército?Fernando,espantadocomodesaparecimentodamulher,espreitoudiscretamenteàportadasaladetrabalho,eficouboquiabertocomumaMariaautoritáriaezangada,tãodiferentedamulherdoceedelicadaqueoacompanharaaojardimparaverasespéciesquemandaravirdoBrasil,daMariaquesaíradasegejuntoàsescadasdaSédeLisboa,edesceraaaladaigrejapelobraçodomarechalSaldanha,sorrindo-lhegentilmentequandolhederaamãoperanteocardeal-patriarcadeLisboa,peranteDeus.Nem,tão-pouco,lhepareciaaMariacheiadevidaquevieratodoocaminhodaigrejaparaopaçoaapontar-lheosedifíciosmaisbonitos,adesvanecer-secomavistaparaorio,atrocargraçascomDietz,comumà-vontadequeestavapoucohabituadoaveremmulheres.

Maria percebeu que o marido icara ali, estarrecido, e sorriu-lheabertamente:

-Fernando,entre,estavaaquiaresolverunsproblemasurgentes.

Fernando cumprimentou o pobre homem, reparando em como estavanervoso, e teve vontade de pegar no lápis e caricaturar a expressão quelhevianacaraparaapublicarnumqualquer jornal,comuma legendadotipo«Aquiestáoqueaconteceaquemquerfazerfarinhacomarainha».

Maria sentiu necessidade de explicar a razão que a levara a sair damesa:

-O senhor ministro veio aqui expressamente para nos desejar asmaioresfelicidades,nãoéassim?

O ministro acenou a irmativamente com a cabeça. Era a primeira vezqueassumiaumcargotão importante,esuspeitavaquenãoodeteriapormuitotempo,masentendiacomoiriaserdaquiparaafrente:asenhoraD.Mariadeixaria omaridode forade todos osnegócios do reino. Fernandotambémoregistou,mashojepoucolheimportava.

Passou amão pelo cabelo deMaria, e ela sentiu a alma derreter-seaoseu toque. Era virgem, tinha chegado virgem a este dia, sabe-se lácomo,pensouarir,masprometeuasimesmaquenãoseriavirgem amanhã.Eratempodecomeçaraviver.Despediuoministrocomumacenodemão.

Osseuscabelossoltos,espalhadospelasalmofadasdacamadeFernando,brilhavamaosoldamanhãqueentravapelajanela.Mariaabriuosolhos,naquelemilagreinexplicávelqueéoacordar,eestendeuamãoparaoespaçoquehorasantesomaridoocupara.Tateouovazio,efez-lhefaltaocorpoquenteeapelemaciadeFernando,esentou-sedeummovimento,assustada:omaridofugira?Nãotinhamcombinadoque,dissessemoquedissessemasdamaseascamareiras,acordariamjuntos,namesmacama,nomesmoquarto?

Ouviuumagargalhada,aquelerisotransparentedequejágostava tanto,e, tapando-se com o lençol, olhou para o lugar de onde vinha.Fernando,comumatoalhaemvoltadacintura,estavasentadonumacadeira,ojoelhodobradoasegurarumblocodepapel,ondeolápisdecarvãocorria:

- Não se mexa, Maria, estou a desenhá-la, a desenhar a mulhermaisbonita,arainhamaisperfeita...

Mariasorriu,felizportudoistonãoserumsonho,pornãoterimaginadootoquenapelequea izerasubiraoscéus;poracordarmulhercasadadefacto.Fingiuprotestar:

-Oqueéquevaifazeraodesenhodarainhanua,darainhaque sóparasisedespiu?

Fernandoaproximou-sedacamaebeijou-anabocaardentemente.

-Voufazerumportefóliopessoaldaminharainha,eguardá-loparatodoo sempre - disse, abraçando-a com força, a barbapor fazer a roçar-lhe apeleclara,deixandoamarcadasuapresença.

Maria sentiu subitamente uma enorme gratidão. Há tanto, tantotempoquenãopertenciaaninguém,talvezdesdequeopaia levavaàscavalitas,desdequeoabraçodasuamãesetinhasoltoparatodo osempre.Osolhosencheram-sedelágrimas,eFernandolambeu-as,sorrindo-lhe:

- São salgadas, têm o sabor dos morros do Rio de janeiro de quemefaloutantoontemànoite,doshibiscosdoJardimBotânicodoseuavôJoão...

-...edocantodospássarosedascigarras?

-Edocantodospássaros,edobarulhoensurdecedordascigarras, quesópossoimaginar-repetiuele,deixando-secairaoseulado.

Mariajurouasimesmaqueofariafeliz.Muitofeliz,hojeeparasempre,como jurara no altar. Fernando nunca se arrependeria de ter deixado asuaterra,nuncasearrependeriaquefossecomela,enão comVitória,queo tio Leopoldo decidira casá-lo. Com um atrevimento que espantava opríncipe,deixouasmãosescorregarsobreoseucorpo,murmurando:

-Édelágrimasedeprazerquesefazumcasamentofeliz.

Mariaolhou-odotopodamesadoprimeiroalmoçoesorriu,satisfeita.Quebonitoqueera,olaçodacamisabrancaapertadoemredordopescoçoaltoeelegante,ocoleteeocasacodeumcorteimpecável,enacabeçaumchapéudepalhadeabaslargas.

- Vesti-me para passear consigo - disse, enquanto se sentava,estendendoamãoparaumalaranja,queatirouaoareapanhou,fascinadocomacoreatextura.

Maria olhou-o, enlevada: tudo parecia comover e encantar o príncipe,quecomoumacriançaseentretinhacomoquelheiaaparecendoàfrente.

- O senhor D. Fernando vai passear, mas eu tenho uma reunião de

ministros, infelizmente.Odeiopolítica,sabe,odeiomesmo,esóespero queaprenda português depressa, para me poder substituir nestas tarefastenebrosas...

Fernandoolhou-a,desconcertado:

-Nãopodedizerqueestánasua luademel,edelegaremSaldanhaounoutrodosseusministros?

Mariaencolheuosombros:

- São todos uns imbecis! A verdade é essa, e se não estiver lá paradecidir,podeteracertezaquedecidemacoisamaisabsurdaimaginável...

Carl Dietz acabava de entrar na sala, a cara afogueada, o nariz aindamaisaquilinodoqueontem,oupelomenosaMariaassimoparecia.

Beijou amãoda rainha, comuma vénia longa, e sentou-se ao seulado,como seMaria não esperasse outra coisa senão ser acolitada por aqueleque, por ser mais velho e experiente, era obviamente a pessoaindicadaparaaconselharumcasalreal.

-SenhorD.Fernando,quandose reinaumpaísnãohá tempopara luasdemel,nãoéassim?Eseosenhorquercoadjuvarnesta tarefa,éprecisoque continue as suas lições de português - tomei a liberdade delheencontrar um professor durante a festa de ontem, que aqui estará pelasdezhoras.DepoisgostavadedarumavoltaconsigopelovaledeAlcântara,queovaideixarfascinado.

E virando-se para a rainha, nada incomodado por comentar umaconversaquenãoselhedestinara:

-Temtodaarazão,Majestade,temtodaarazão,estespolíticos são,regrageral, gente de baixa condição, incultos, que não sabem oseu lugar. Peloqueouviduranteodiadeontem,nãopossoestarmaisdeacordoconsigo:se não for a senhora D.Maria, com toda a sua sageza, a decidir, dámauresultadocertamente.

Maria olhou-o, satisfeita: ora aqui estava um homem sensato, quepercebia que pormuito que a política fosse, de facto,mais entediantedo

que passear, alguém tinha de dedicar-se a ela. E Fernando não estavaaindaprontoparaolugare,paraserfranca,preferia-oartista, dedicadoadesenhar-lhe os cabelos soltos pela almofada, feliz com assuasdescobertas, do que a disputar com ela o poder. Porque Fernando talveznãoosoubesse,emborasuspeitassedequeCarlDietzjáotinhaentendido,masaverdadeéquenãotencionavapartilharopodercomninguém.Pelomenosporagora.

Entraramjuntosnacarruagemdestinadaa levá-losaoSãoCarlos. Eraaprimeira vez que surgiam em público, e Fernando estava entusiasmadocomacompanhiafrancesaqueatuavanaquelanoite.Maria,ovestidopretocintadoeumaécharpedeumencarnado-vivoquecondiziacomocarmimdos seus lábios, estava linda. Fernando disse-lhopor várias vezes,beijando-lhe a mão e segurando-a junto do seu coração, palavras emalemão, misturadas com as francesas, comovendo-a, e simultaneamentefazendo-arir,sentimentosnovos,quedesconhecia.

«Queraivaterdeestragartudoisto»,pensouMaria,maseraobrigatóriodizer-lhe o que se passava, antes que algum insulto, ou umapateada, osurpreendessenoespetáculo.Lavradiobemaavisaranessa tardedequeosânimosestavamacesos.

- Fernando - disse-lhe numa voz que depressa assumiu um tom deindignação -, hoje o Conselho de Estado não foi fácil, porque lhes deuemprotestar,àfaltadeassunto,comasuanomeaçãocomocomandante-chefedoExércitoportuguês.

Fernandoolhou-a,espantado:

-Mas porquê, se o conde do Lavradio esteve de acordo, se o contratonupcial foi assinado pelo ministério português, e se é do contratoqueconstaessacláusula?

- Porquê? Porquê? Porque há sempre gente descontente neste país,porque lhes deu agora para suspeitarem dos estrangeiros, ciosos da suaindependência-protestouMaria,irritada.

Fernando não entendia. Será que não sabiam tudo o que deixara paratrás para aceitar este casamento, estamissão? Será que apesar dos seuscasacos importadosdeParis, daspeles em redordospescoços,dos livros

emfrancêsedascantorasdeóperamandadasvirdefora, osportuguesesnão tinham consciência de que este país era periférico,primitivo,rudimentar, e que mesmo este São Carlos não era mais do que umaimitaçãodeumteatroitaliano?

- Fernando, está a ouvir o que lhe estou a dizer? Opõem-se à suanomeação...

- E o que é que Dietz acha disto tudo? E o tio Leopoldo, tenho deescreveraotioLeopoldo...

-Dietzachaumabsurdo,eotioLeopoldotambém-retorquiu a rainha,ligeiramente impaciente, e antes que omarido perguntassecomoo sabia,acrescentou: - Ouviram falar disto, tem vindo nos jornais portugueses,franceseseingleses,evoltaramaescreveremprotesto.

Fernandoolhou-a,magoado,eMariasentiuumapertonocoração:

-Parece-mequemeestãotodosatratarcomoumacriança.Amanhãvouler o contrato, percebermelhor o que icou acordado, e depois dou-lhe aminhaopinião...

- Amanhã? - gritou Maria, aquela maldita impulsividade contra aqualLeonordaCâmaratantolhepediracautela.Poisherdara-ado pai, tantoselhedava,estavacompoucapaciênciaparare lexõessobre oseucaráter. -Não há amanhã nenhum, Fernando, já disse hoje quenão aceitava umdesaforodestes.Arainhadeclarouquenãosediscute maisoassunto,porissooassuntoestáencerrado,pontofinal,evaipodervestirafarda,queasfardasficam-lhemuitobem.

Fernandoolhouparaforadajanela,procurandocontrolar-se:

-Jálhedisse,Maria,quevouestudaroproblema.OsassuntosdeEstadonão se decidem por impulsos. Se tiver razão, mantém-se o pedido denomeação, se veri icarmos que é importante para Portugal querenuncie,entãorenuncio...

Maria resistiu à tentação de encolher os ombros. Deu-lhe um beijoapressadoesossegou-o:

-Entãoamanhãlogosevê.

ArainhaMariabateuopéeFernandofoimesmonomeadocomandantedoExército,depoisdademissãodeumministérioqueserecusou aacataracláusula...Emboraestejacontentecomoresultado,eotio Leopoldomaisdo que todos nós, não acho bom que o povo portuguêsperceba que arainhanomeiagovernosparactunpriremasuavontade. Embreveestarãoa dizer que é uma monarca absoluta, e que a Carta lhe dá demasiadopoder. O embaixador britânico em Lisboa garante que isto não ica poraqui,quetambémestegovernovaicair,jásão tantosemtãopoucotempo,quelhespercoaconta.

Masescrevequedopontodevistapessoalestá tudoacorreromelhorpossível, equeFernandoestá radiante comMaria, eela com ele,eque jásãomuitofelizesjuntos.Tenhodeconfessarquenuncapenseiquefossemde tal maneira feitos um para o outro, mas nunca tive dúvidas de que oamoràprimeiravista,quandoacontece,époderoso.Alémdisso,FernandoétãoamáveleMariatãoboapessoa,quesuponhoquetinhadeacontecer.Afinal,tambémgosteideumedeoutrainstantaneamente...ouquase.

PaláciodeKensington,20deabrilde1836

PaláciodasNecessidades,21demaiode1836

arfaestavasentadaàescrivaninhaquandoFernandoentrouesedeixoucair,estafado,numacadeira:

- Sabe que atravessei o Aqueduto das Águas Livres a pé, do Rato aMonsanto?ODomingosPalmelaveiocomigo,éumencanto,eosrapazinhosque vendem água nas ruas seguiram-nos em bando, pareciam achar-meumaespécierara.AmimeaoDietz,queandavaporali a lerahistóriadomonumento,sobriscodecairláabaixo.

Maria parou de escrever e observou-o, contente por o ver contente,divertidacomassuashistórias,porquetodososdiashaviahistóriasdestaLisboaqueomaridoexploravaeconheciamuitomelhordoqueela.

- Sabe o que é que estou a fazer? - perguntou-lhe, apontando paraopapelqueestavaàsuafrente.

-Escreve a Vitória, aposto - respondeu Fernando, descalçando as botasenquantofalava.

-Claro que escrevo a Vitória,mas esqueceu-se que também tem de lheescrever,porquenodia24faz17anos,equeroquerecebacartas nossasnoprópriodia. - E apontandopara forada janela, continuou: -Opaquetepara Plymouth parte às duas da tarde, temos de lá ter as cartasembarcadasantesdisso.

Fernando aproximou-se da mesa, e Maria tapou a carta com o braço,rindo:

-Nãotemnadacomaquiloquelheescrevo,éconversademulheres,nãolheinteressa.

Fernandopassou-lheamãopelocabelo:

-Gostoquandousaoseucabelonumatrança larga -disse,puxandonabrincadeiraolaçodesedaqueaprendia.

Mariariu,deliciada:

- Olhe que a criada esteve horas a arranjá-la, não a desfaça - ou já seesqueceuquetemoshojebaileemcasadomarquêsdeFronteira?

Fernando brincou com os cabelos, e depois abraçou-a, encostando acabeçaàdela:

-EstáaítãocontenteporaVitóriafazer17anos,eesquece-sequetemaidadedela,ouseja,éumamenina.

-Então dance comigo hoje à noite, porque pega-se à conversa comosoutroshomenseesquece-sedemim...

- Hoje prometo,mas não pode ser sempre - disse a rir. - Confesso-lhequeestoucansado,temosidoabailesdiasim,dianão,parajánãofalarnasóperasenosteatros,equeriaumanoiteemcasa,sónósosdois...

Mariadeixou-seestar,saboreandoaquelemomento,paradepoisvoltaraVitória:

-Háumacoisaqueelanãotem.Ummaridocomoomeu.

-Não tem,nemnuncavai ter -disseele,dando-lheumbeijo -,masnãovaificarmuitomaistemposolteira,podeteracerteza.AminhatiajátratoudeconvidarosmeusprimosErnesteAlbert,agoraésóesperarparaverdequaléqueVitóriagostamais...

- Duvido que o reiWilliam a deixe casar comum Saxe - riu Maria -, játem tido problemas de sobra com a mãe de Vitória, e o tio Leopoldotambémnãoélámuitobem-vistoentreosingleses...

-Sãoestrangeiros-disseFernando,numavoztrocista.

- Está a brincar, mas é mesmo isso. Não sei porque é que estranhamtantoqueemPortugaltambémnãogostemdeles-disse,pensativa.

Fernando afastou-se, e olhou pela janela para o jardim onde passava

horas a plantar novas espécies, para horror dos jardineiros do paço. Defacto, quem vinha de fora tinha sempre hábitos diferentes, e as pessoasreagiamàmudançacommedo.

- Vitória deve estar radiante por o rei não ter morrido antes da suamaioridade-agorajánãoprecisaderegenteelivra-sedevezdaquele duoterrível,mãeeJohnConroyemconluio.

- Do spy JC, coitadinha da Vitória, o que aquele homem a fezsofrer.SuspeitoqueesteanoJCjánãovaiàfesta...VaisentiramesmaalegriaquesentiquandovolteiaoBrasileocupeiacasa luxuosaqueomeupai izeraparaDomitília,amulher...

Fernandoolhou-adesoslaio:

- A mulher que tanto magoou a sua mãe. Acredite, não a voumagoarassim...

Mariabaixouosolhos:

-Esperomesmoquenão,Fernando.Partia-meocoração.

Ontem recebi cartas de parabéns da Maria e do Fernando. A minhaquerida Lelizen tinha-as guardado para mas entregar logo de manhã.Gosto tanto deles, e juro que farei tudo por Portugal, porque são tãoatenciosos e amáveis comigo.Mas omelhorpresentede anosque recebi,paraalémdaemancipaçãodeConroyedaminhamãe,foiavisitadosmeusprimosAlberteErnest.DanceicomelestodaanoitenobailequeomeutioWilliamdeu emminhahonra emWindsor,masAlbert émeio enfadonho,àsnovedanoite já adormeciapor todosos cantos.Fui obrigada a dançarcom os pretendentes que o rei acha que seriammais indicados, massinceramenteachei-osgordos,pegajososefeios.

Hojejárimosmuitocomopapagaiograndeecoloridoqueumdosmeustiosmedeu.VeiodoBrasil,e lembrou-metantoashistóriasde Maria,queme contava sempre como a mãe se embrenhava nas matas com os

indígenas para os apanhar e mandar para a Europa. Albert esteve aensinar-lheafalar,coitadodoanimal, já lhebastaestarmuna gaiolanestaterra fria e enevoada, só lhe faltava ter de aprender alemão...Mas aindanos rimosmuito. Tenho de contar àMaria tudo oqueme temacontecidonestesúltimosdias,deAlbertaopapagaio...

PaláciodeKensington25demaiode1836

PalácioRealdeSintra,9deagostode1836

ernandoabriuasportasdajaneladoseuquartoecontemplouaserradepedrasevegetaçãorasteira,comocastelobemfirmenotopo,aindaenvoltononevoeirodamanhã.Mariasaiudacamasilenciosamenteeencostou-seàscostasdomarido,enterrandoacaranoseuroupão,osbraçosemredordoseupeito.Nãoerabaixa,masFernandoeramuitomaisaltodoqueela,oqueerabom,muitobom,porquequeriadizerqueosseusfilhosseriamaltostambém,oquelheagradava.Murmurou:

- Conte-me o que vê, porque não vejo mais do que as suas costasquentes...

-VejoapaisagemmaisbonitadaTerra,nopaláciodequemais gostodetodos os palácios portugueses. Era aqui que queria viversempre - disse,virando-seeabraçando-acomforça.

-Alémdomais-acrescentou-,amaioriadosseuspolíticosdesistedeamaçarquandoestáaqui...

Mariadeuumagargalhada:

-Excetoomaisimprevisíveleloucodetodos,quedaquiameia horaestáaíaaparecerparaoconvidaravisitarasobrasdacasaquefaznaserra.

Fernandojuntou-seaoriso:

- Saldanha é irresistível, mas pre iro mil vezes a sua versãoempreendedora, as suas obras mirabolantes e economicamentedesastrosas,doqueenquantopolítico,ou,piordoqueisso,conspiradornaoposição...

Mariavoltouparaacamaepuxousobresiacolchapesada.Podia falardasmil eumaaventuraspolíticasdopaís,maspreferiu falardo tempo, otempo era sempre um tema seguro, aprendera-o ainda em pequenina na

suapassagemporInglaterra.

- Odeio o calor de Lisboa, e todos os anos quero fugir dele o maisdepressa possível, o que parece ridículo dito por uma carioca, mas,sinceramente, como é que é possível que em agosto, em Sintra, se tenhafriosemumamantaporcimadospés?

-Milvezesestenevoeiromisterioso -disseFernando,deolhosde novona serra. - Quero comprar o castelo e a cerca da Pena. E transformar oconvento,queencontreiemruínas,nonossopaláciodeverão.

-Odinheiroéseu,eavistaládecimaédeslumbrante,vê-seLisboa,orioTejo, Mafra, o mar da Praia das Maçãs, os monges sabiam escolher osmelhoressítios...

-Queroque estepalácio tenha tudoque vi demais bonito em todosospaláciosdoMundo, tudonumsó.Contoconsigoparaajudaraescolher asplantasparaograndeparquequequerofazeremredor, e,claro,apensara divisão das salas e dos quartos, dos sítios onde osnossos ilhos vãobrincar...

Mariagostavadeovertãoentusiasmado.Sabiaqueaagitaçãopolíticaoconsumia, que desesperava por a ver constantemente emreuniões,obrigada a chamar este para substituir aquele, e depoisaquele parasubstituir o primeiro, em negociações e conciliábulos quenão levavam anada.Temiaqueas inançasdopaísnãosuportassemmuitomaistempoafalta de produtividade, a falta de consistência nas leis, as mudançasconstantes,semumrumo,umaestratégia.

Construirumpalácio,pensou,eraumaboaideia,queformabrilhantedeo ter ocupado com alguma coisa que ele adorava, e simultaneamenteengrandeceropatrimóniodopaís.SópodiamficargratosaoseuFernando.

OpontodeencontroeraaquintaondeSaldanhainvestiaagoraoseutempo,poucoacimadavila,próximodaFontedaSabuga.Omarechalesperavaosreis,empéemcimadeumarocha,oóculoencostadoàcara,acenandoàpequenacaravanaquefaziaestepasseio.Fernandoentusiasmou-serapidamentenaconversacomosarquitetos,masSaldanha,semcerimónia,puxouobraçodarainha,paralheapontar,numterrenomaisabaixo,aCasaItaliana,construídasobreumatorremedieval,

quedestinavaàmãe.

- Vai fazer uma escadaria de centenas de degraus daqui para lá? -perguntou,estarrecidacomaescadaquedesciapelaencostaabaixo.

Omarechaldeuumaenormegargalhada:

-Majestade,queoutramaneirahádeterumamãeporperto,e logoumamãe ilha do ilustre marquês de Pombal? A minha pobre esposa já fazmuito em aturar-me, imagine o que seria da vida dela, sea sogra cápudessedarumsaltinhoatodaahora?

Marianãoconseguiapararderir.

-ÓSaldanha,nãosedêaotrabalhodefazermaisdegrausatélábaixoaopaço, porque prometo que só o visitarei com convite formal - comentou,irónica.

Mas Saldanha ingiu não dar pela ironia. Apontou para a estrada ecomentou:

-Senhora,olhequemaívem.ODr.MiguelForjaz,omaisdistinto clínicode Sintra, o único que ainda me faz acreditar na medicina, porque amaioria dos médicos são uns vigaristas, que escondem aignorância comvaidade.Digo-lhequeandoaestudarumamedicinaalternativa,esuspeitoque as propriedades aqui da Fonte da Sabuga são bemmais potentes doque mil desses elixires que nos fazem engolirquando nos apanhamdoentes.

A rainha sorriu ao recém-chegado. Das loucuras de Saldanha nãoesperavanada,masconcordavacomomarechal:Forjazerabom homem,eenquantoestivesseaquiemSintrapreferiarecorreraosseus cuidadosdoqueaosdequalqueroutro.

Nessanoitesoubeanotícia.OduquedePalmelafizeraonegóciodasuavida,aocontratarocasamentodeDomingoscomapequeninafilhadocondedaPóvoa,quemorreradeixandoumadasmaioresfortunasportuguesas,bemmaiordoqueadacoroa.Acriançaaindasótinha10anos,eforaentreguepelamãeàduquesadePalmelaparaaeducar,enquantoesperavaosdoisanosaquealeiagoraobrigavaparaa

consumaçãodocasamento.

Fernandofranziuosobrolhoquandoescutouotomcomqueo marquêsdeFronteira contava a história à rainha, e percebeuque mais uma vez aqueriam envenenar contra Palmela. Maria seria sensível ao veneno,pensou,enciumadaporverumacriançaentregueaoscuidadosdasenhoraD. Eugénia, que considerava como umamãe, zangada porque o seuprotetor fazia arranjos sem a consultar, descon iada com o poder e ariqueza que um dos seus nobres acabava de conquistar. Fernandosuspirou,cansado.Ocicloviciosodasinvejasnãotinhafim.

O tio Leopoldo está preocupado com o estado de Portugal, onde ainstabilidadeameaçacomumanovarevolução.Marianãofaladenadanassuas cartas, mas o nosso embaixador garante que a tem avisado dodescontentamento da população, e de como essa insatisfação está a sermanipuladapelaesquerdamaisextremista.Haveráeleiçõesembreve,masasuspeitaemrelaçãoàseriedadecomquesãorealizadaségrande.

O tio Leopoldo pede-me que tente, discretamente, dizer a Maria queFernandoprecisadeumlugardedestaque,paranãosesentirhumilhadojunto de uma mulher tão poderosa. A verdade é que os homensconformam-semal a uma rainhano trono. E este é ummomento ínico naHistória da Europa: emEspanha, a pequenina Isabel é rainha, e a rainhaCristinaaregente,emPortugal,Maria,eemInglaterra, talvez unidia sejaeu. Este é o tempodas IrmãsRainhas, comoo tio Leopoldonos chamaàstrês.

Tenhode ir,porquehojeéaminhaúltima liçãodecantocomLablache,foramvinteeseisaotodo,epensojánoprazerquetereiemretomá-lasnapróxima primavera. E o melhor cantor de ópera do Mundo, e sou umaprivilegiadaporotercomoprofessor.

N.B.:Quandoumdiamandarvoumudaraidadeemqueascriançaspodemtrabalhar-hojeachaminédomeuquartofoilimpaporunirapazinhode5anosquetrepoupordentrodelaacima,comobrutodoseu«dono»aespicaçar-lheospéscomavassoura,paraquefizesseotrabalho

maisdepressa.ODashladroucomoloucoaopatrão,porissoachoquetambémeleécontraestacrueldade.

PaláciodeKensington,9deagostode1836

PaláciodasNecessidades,10e11desetembrode1836

multidãoiacrescendonoterreirodasNecessidades,gritandoinsultoscontraarainha.Maria,encostadaaosvidros,olhavaastochastrazidaspelamultidão.Comoeramsemelhantesospovos,lembrava-sebemdaagitaçãoquedominaraoRiodejaneiro,levandoopaiaabdicareadeixaroBrasil.Eraoqueaesperava?

Passouamãopela testa.QuandoVitória lheperguntavapeloestado dopaís, respondia invariavelmente que estava tudo bem, masnão valia apenanegarasimesmaacriseeconómicaesocialquePortugal vivia.Nãovaliaapena.Sabianãoeraarainhadetodos osportugueses,sabiaque,aoprotestar contra a fraude das últimas eleições, o povo apenas exprimia arevoltacontraacarestiadevida, contrao inquali icávelaumentodopreçodo pão. Mas que podia elafazer? Em tom de troça, já perguntara aosministros se queriam que sereunisse com os padeiros e lhes impusesseumvalor.Porqueeraaela queinsultavam,quandooscabeçasdeabóboradosdeputadoséqueeramincompetentes?

Umsomdevidropartidofê-ladarumgrito.

-Calma,minhaquerida.-Fernandoestavaatrásdesi.Háquanto tempoaliestaria?-Foisóumcriadoquedeixoucairumcopo...

- Calma?Não lhedisse que as eleições sãouma fantochadanestepaís?Olhesóparaoqueaconteceu!Istoestáplaneadopelosmesmosdesempre,os que me querem fora daqui, e aproveitam-se do desembarque dosdeputadosvindosdoPorto,paracriartodoestebarulho-vociferavaMaria,peranteumPalmelacabisbaixoeumSaldanhaqueacenavaquesimcomacabeça, concordando. Se não tinham apedrejado já o palácio, em breve ofariam,pensouFernando,insistindoquearainha icassesentadanocentrodasala,procurandosossegá-lacomosseusargumentos.

- Maria, quando não há dinheiro, quando os soldados não recebem há

meses, quando se decidiu um imposto sobre os vencimentos dosempregados públicos e o preço do pão dispara, deixando muitos comfome... Quando, aomesmo tempo, se assiste às dotações generosase aosrendimentosdostitularesdealtoscargosdaadministração... Quando tudoistoestáassim,opovovaiemqualquerconversa...

Maria,zangada,protestou:

- Com tantosministérios que já tivemos, cá paramim não há já famílianenhumaquenão tenha enchidoosbolsos à contada rainhaedaNação.Nisso, estou com o povo. Olhe, Fernando, sou capaz deme juntar àmultidão,masparadar«morras»aospolíticos!

Saldanha não conteve uma gargalhada, mas os olhos de Palmelabrilhavamdeirritação.

-Talvezsejamelhordesistirdocargodecomandante-chefedoExército,talvez tenha sido isso que desencadeou esta sublevação daGuardaNacional,edequalquerformaébemvisívelquenãotenhopodernenhum-atalhouopríncipe.

Mariafulminou-o:

-Defacto,senhorD.Fernando,agoraoquenosfaltavaerademitir-se.Jánãobastaestarna iminênciademeverobrigadaaabjuraraCarta, aindalhesvoudardemãobeijadaoseulugar!

Dietzolhavaparaarainhacomorgulho,eFernandosentiuque ambosoreprovavam.«Seráquenãoviaqueotinhaofendido?», perguntou-se,masa Maria pouco importava as sensibilidades deste oudaquele, o que eraparasedizer,dizia-se,equemestavaaserinsultadaeraela.

-E a Guarda? Onde está a Guarda para conter estes insurretos? Está aconfraternizarcomeles,estáainsultarasuarainha.Nãofoi paraistoqueatravesseioAtlânticotantasvezes!

-Poisnão,Majestade -avozcansadadePalmelaousava interromperosdevaneios da rainha. - Não foi para isto que tantos lutaram, perderamvidasefortunas.

-D. Pedro, de fortunas falamos depois, mas será que se esqueceramtodos de que sou uma rainha limitada pela Carta? Convoqueieleiçõeslivres, como é meu dever. Diga-me, diga-me o que se espera mais darainha?Quepossomaisfazer?Irempessoacontrolarcada urna?Sehouvedesacatoseburlas,queseaverigue.OuentãoquesequeimemasCartaseopodervolteabsolutoparaosmonarcas!

- Senhora, felizmente esse tempo terminou - disse Palmela perante oolhar irado da soberana. - Os deputados do Douro, onde a oposiçãoalcançou maioria absoluta, desembarcaram ontem em Lisboa. Nem ossurdospoderiamdeixardeouviro alarido, a festadospopulares. Vieramcomosalvadoresdapátria,comohomenshonradosquevêmimporamoralaLisboa.QueremretomaraConstituiçãode1822,eéissoquefarão.

-Nãocedo,senhores,nãocedo!Soumulher,masnãocobarde.Nãoháumhomemquemedefenda?Nemnestasala,nemnoreino?

Fernando olhou de novo para o terreiro, onde as chamas das tochastremiamaovento,ouviuosgritos,percebeuosinsultos,paraestes insultososeuportuguêschegava.Virando-separaarainha,insistiu:

- Maria, o mais sensato é embarcar na esquadra inglesa, que está ànossa espera. Seguros, abordo, reunimos forças, decidimosoque fazer aseguir.

Arainhaolhou-o,furiosa.Nãofariacomooseupai,nunca:

-SeosenhorD.Fernandoquerpartir,parta.ArainhadePortugalmorrenotrono.

Noquarto,sozinha,depoisdeterdispensadoasdamaseasaçafatas,Mariadesfaziaolaçoquelheprendiaorabodecavalo.Láfora,ouvia-seojúbilodopovo.Horasantesinsultavam-na,agoralouvavam-naporquetinhaassinadoaordemdepromulgaçãodaCartaConstitucionalde1822.Desprezava-osnasuainstabilidade.

Pegou na escova de prata com que desde pequena se penteava, erecordou-se de como gostava de escovar os longos cabelos da mãe. OcheirodoRiode janeiro inundou-lheos sentidos.Masnoespelho não eraMaria da Glória que estava re letida,mas umamulher pálida,as olheiras

da noite sem dormir vincadas na pele clara. Era Maria II de Portugal,cansada,masrainha.

Aportarangeunosgonzos.Semsevirar,MariareconheceuLurdinhas,asuaúnicacriadadecon iança,queentravasemnadadizer. Estendeu-lheaescova,eLurdespenteou-lheoscabelos,emgestossuaves.Eacadagesto,Maria pensava para si mesma como era inadmissível a humilhação quetinha sofrido nessa madrugada. As forçasmilitares a que ordenara quecontivessem os insurretos, em vez de lutarem pela rainha,confraternizaramcomeles.Masomaisduro aindaestavaparavir.Àsduasdamadrugada,entraraumadelegação degentinhaqueaobrigaraanegaraCartaeaaceitarumaConstituiçãorepublicana,ouquase.

Fora de uma coragem a toda a prova, recusando os apelos do corpodiplomático e do marido para que se refugiasse num dos barcos daesquadra inglesa, postada no Tejo. Fernando insistira, nervoso, quasehistérico,queembarcassem,masMariaargumentara,zangada,que nãoiafugir, nem abdicar de uma coroa que tanto trabalho dera a obter.«Esquecem-sequefoiaminhamãequeassinouaIndependênciadoBrasil,disseaomeupaiparaserevoltarcontraospésdechumbo queaqueriamintimidar?»,protestara.Preferirareceberacomitiva, assinaradeclaração,orostogeladoeimpenetrável,impressionando osembaixadoresquealisehaviam reunido. «E nem 18 anos tem»,ouvira-os murmurar, e fora umpequenoconsolo.

Lurdesconseguialerospensamentosdarainha:

- Majestade, todos viram como é corajosa e todos são testemunhas decomofoiforçadapeloExércitoaaceitaraConstituição.Opaísvaireagir,vaiver. O país é pela Carta que o senhor seu pai nos deu. E tenho a certezaqueamanhãessesdiplomatasestrangeirosqueaí estiveramvãoespalharpeloMundo comoa rainhadePortugal écorajosaeos seusprimos todosvêmemsuadefesa...

-Atélá,Lurdinhas,évestir-meparaapalhaçada inal...Chamaas damas.Queroovestidopretoeodiadema.SourainhadePortugal!

Noseuquarto,Fernandopensavanamulherqueosdiplomatasdomundolhetinhamarranjado,cheiodeadmiração.Nãoseorgulhavadopapelquedesempenhara,masoseudevereraprotegerarainha,enadao

preparara,nemossermões,nemospapéisdotioLeopoldo,parareinarnumpaísondenãohaviaordemeoExércitoeracompostoporumbandodehomensquedesobedeciamàssuaschefias,eondepolíticossediziamedesdiziam,semsombradelealdadeparacomossoberanos.Suspirou,olhandoopovoqueagoracantava«vivas»àrainha,horasdepoisdepedirasuamorte:quemlhederavoltarparaassuasmontanhas,queembreveestariamcheiasdeneve.

Mariadesceuasescadasdopaçonumvestidodesedapreta,abandaencarnadaeverdeadar-lhecor,asinsígniasreluzentes.Ocabelopresonoaltodacabeçacomumdiadema,ascostasdireitaseopescoçocomprido,altiva.Ninguémadiriaprisioneira,queeradefacto.Fernando,vestidoarigoraoseulado,comumtiquequeofaziapestanejarcompulsivamenteequeprocuravadisfarçar,pensavaqueseaomenospudessepegarnolápiseretratarestascriaturas,sentir-se-iamenosansioso.Dietzacompanhou-osàporta,ondeaquelesquesedavamagorapelonomede«patriotas»ofizeramestacar:

-Osestrangeirosnãosãoparaaquichamados-exclamouum, barrandoDietz.Maria trocouumolharderaivacomomestre.«Não se enerve, eleshãodepagá-las»,dizia,sempalavras.

Os reis entraram para a carruagem, cercada por homens a cavalo, aespadanamão,abrindoalasporentreumamultidãoque,estranhamente,já não gritava, como que envergonhada perante o olhar frioda rainha.Num coche atrás, alugado à pressa, seguia-os o visconde de Sá daBandeira,hápoucoempossadonache iadonovogoverno,maisum,quearainhaforaobrigadaanomear.

- Já reparastequemnos segue?OnovoministrodaNação, como Judas,negando três vezes Nosso Senhor Jesus Cristo - sussurrou Maria a umFernandoindignado.SádaBandeiraassistirasilenciosoàintimaçãoqueosseus correligionários haviam feito à rainha, obrigando-a a ir à CâmaraMunicipal jurar a Constituição, como se as humilhaçõesda véspera nãotivessemchegado.

Efoisilenciosoqueassistiu,também,aojuramento,numasalaarranjadaà pressa, no meio de vozes, gritos e gargalhadas, incapazesde fazersilêncioparaouvirarainha.

-Tantomelhor-murmurouparasimesmaMaria,enjeitandoo braçodeumhomemandrajosoquepretendiaajudá-laadescerunsdegraus:

-Váfazerabarbaevestir-se,antesdetocarnarainha-disse-lheMaria,irritada, pouco lhe importando o murmúrio que se seguiu aoseucomentário. - Finalmente consegui calá-los - rematou com umsorrisoirónico, perante o ar estarrecido do marido e das damas que aacompanhavam.

Fernandodeslizousuavementeparadentrodosseuslençóis.Mariaescondiaacaranasalmofadasemdesalinho,exaustadepoisdevinteequatrohorassemdormir,destruídaevencida.Chegou-separaumadaspontasdacama,semdizerumapalavra,eencolheu-seaotoquedamãodomarido.Queconfusãodesentimentos,aquenãosabiadarnomes.Porumladotinhavontadedeoexpulsardasuacama,aomaridoeaosseusavisos,àssuascautelas,àssuasprecauções,queatinhamdeixadoasentir-setãovulneráveledesprotegidaduranteestesdias,masporoutro,comopodiadesligar-sedohomemaquemprometeratodooseuamor,aquelequerepresentavaaindaaesperançadeviraconstituirumafamília,umoásisnomeiodestasuavidaconturbadaeaflita,destainstabilidadepolíticasemfim,eque,apesardetudo,ficaraaoseuladohoraapóshora?

Estavadesiludidaconsigomesma,comtodososquearodeavam,comogoverno,oExércitoqueaabandonara,obrigando-a acomportar-secomoousurpador,oseutioMiguel, jurandouma Constituiçãoquenãotencionavacumprir, renegando aquilo em que acreditava, e isso doía-lhe, doía-lhemuito.Sabiaquenãotiveraoutra alternativa,diziam-lheosamigosquenãotinha outra alternativa, masera isso que não lhes perdoava, essedeixarem-na sem saída. Não era parva, estava consciente de eranecessárioesperarparacontra-atacar,masquemestariaaseulado?

Era verdade que as che ias da função pública se haviam demitido aosaberem dos acontecimentos, e que ao paço tinham acorrido muitos dosnobres a oferecer-lhe a sua lealdade, mas tudo isso era depois. Depoishavia sempre gente que jurava dar a vida por ela. Mas na altura, nomomentodaverdade,osministrostransformavam-seem traidoreseoseumarido num ser gelatinoso, Palmela cansava-a com osseus apelos anegociações e conciliações, e os embaixadores, de ondepodia vir a força,alinhavamcomoduque,fazendohomiliassobreavantagemdamonarquia

constitucional,comosefosseelaoobstáculoaquefuncionasse.Devia icaragradecidaaFrançaouaInglaterraporteremumafragataprontaacobrira sua fuga, a salvar-lhe a vida,masque se recusavam a desembarcar osseushomenspara lutarcontra quematentavacontraela,paradefenderaCarta, a sua coroa? Nãolhe parecia, pensou enraivecida, empurrandoFernando,queatentavabeijar.

-Deixe-me!Tenhodepensar,tenhodepensar...

Fernando não desistiu, e, puxando-a contra si, continuou a tocar-lhe ocorpo, a passar-lhe asmãos pelos cabelos, «abençoado Fernando, senãoserve na frente de batalha, pelo menos que me dê prazer na cama»,pensoucomumapontadeamargura,antesdesedeixarlevar...

Maria agradece-me o apoio da esquadra britânica, mas muna cartaamargurada,revoltada.Onossoembaixadordiz-mequeasruasde Lisboavivem namais completa anarquia, toca a rebate e os soldados e os civissaem armados às ruas, e osmais competentes da nação, comoPalmela eSaldanha, não conseguem fazer cair o regime revolucionário que seinstalou. Os militares passam frente ao paço e insultam a rainha, e oembaixador garante-nos que as che ias não conseguem manter osseussoldados nos quartéis. Enquanto isto, Fernando é supostamenteocomandante-chefe deste Exército desaustinado, que não obedece aninguém, muito menos ao príncipe, muna desautorização que só podecorroerasuaimagem.

Escrevi a Maria a pedir-lhe calma, que é aquilo que o tio Leopoldorecomenda que lhe implore. Tudo se deve resolver através de eleiçõeslivres, e a rainha não se pode envolver em nenhuma conspiração pararestabelecer a Carta, pormuita vontade que tenha de o fazer. Julgo queescrevicomdiplomaciaecautela,mastemoquenestemomentointerpretetodos os conselhos como críticas. Vou escrever a Fernando, talvez estejamais recetivo às sugestões dos políticos ingleses, que não têmnada aganharemverPortugaltransformar-sedenovonumcampodebatalha.

PaláciodeKensington,20desetembrode1836

PaláciodeBelém,4denovembrode1836

arfaignoraraasrecomendaçõesdeVitória,doreidosbelgas,.dosembaixadoresemLisboa.Escutarasemosouvir.Paraquelheserviamosseusconselhosse,obviamente,nãoentendiamnadadarealidadeportuguesa,seimaginavamqueestestrastes,estespolíticosgananciosos,apoiadosemjornalistassembaias,sepodiamcompararaosdeputadosdosseusparlamentos?DePortugalpercebiaela.Nosúltimosmesesreunira-secomogovernoquenomearasobcoação,comosenadafosse.Assinaraoquelhepediamqueassinasse,falava-lhescordialmente,procurandodarideiadequeseconformara.Àsescondidasconspirava.Pelaportadastraseirasdopaçoentravamhomensdasuaconfiançacomquempreparava«ogolpe»querestaurariaaCarta.Dietzeradosseusbraços-direitos,eFernando,envergonhadopeloseupapelnaquelesdiasterríveis,desgostadopeloqueviaos«seus»soldadosfazer,correndoacidadecomosefossembandidos,encorajaraospreparativos.Palmela,informado,reagiracomcautela,dizendoqueeramelhoresperar,seguirosconselhosdeInglaterra,masMariajáochamavapelascostas«aVoz»eacusava-odesermaispapistadoqueoembaixadoringlês.Fernandolembrava-lheque,odiadocomoera,oduqueteriatudoaperdersealgumacoisacorressemal,masarainhaencolheraosombros,comdesprezo.«Maisdoqueeu?»,perguntara,masnarealidadenãopunhasequerapossibilidadedequenãocorressebem,certacomoestavadequeopaísestavadoseulado,esenãoopaís,pelomenosLisboaeamaioriadoseuExército.

Hoje era o grande dia.Maria encostou-se à balaustrada da varanda doPalácio de Belém, frente ao Tejo onde estavam ancorados as esquadrasinglesaefrancesa.

- Foi anunciada a restauração da Carta, anunciado o novoministério, eLisboapermanececalma.Asforçasestrangeirasmetem-lhes medo,nãosevãoatreveraprotestar-dissearainha,alegre,para FernandoeDietz,queestavamaoseulado.

-Esses patriotas, que de patriota não têm nada, assustaram-se comaideia de que os ingleses e os franceses estãomesmo dispostos a acabarcomaanarquia-respondeuDietz,igualmentesatisfeito.

Fernando olhava preocupado para os soldados que tomavam posiçõesemredordosmurosdestepaçoqueconheciamal:

-Ainda é cedo, e se é verdade que temos connosco os políticosmoderados,olheparaaguardaquenosdefende.Oitocentoshomens, nãoémau, e por cento e cinquenta deles estou disposto a jurar,mas os outrosserãoleais?

O golpe estava dado. Nomeara um dos seus camareiros ministro, eproclamara a Carta, refugiando-se em Belém, nos arredores de Lisboa,ondeadefesadopalácioeramaisfácil.

-Amultidãoaquisóchegadebarco-riaDietz,apontandoparao caisdeBelém,ondedelongealongedesembarcavaumdosaristocratascomcasaporesteslados.

Mariadeuumagargalhada.Hádoismesesqueesperavaestemomento...

Saldanhaentroupelasala,vermelhocomoumpimento:

- Se apanho o verme que informou estes tipos de que os ingleses eosfranceses tinham ordens para não desembarcar, corto-lhe a cabeça eespeto-anumpau-vociferava,peranteumarainhalívida.

LordHoward,oembaixadoringlês,queconversavacomarainha, pôs-sedepé,aterrado:

-Oqueéquediz,marechal?

-Digooqueouviu.Queosrebeldesjánãotêmmedodosseussoldados,quecorreanotíciaquesóaquiestãoparasalvara família real.Edigo-lhemais: a guardaque aí vemamarchar está comcara dequerer facilitar otrabalho ao rei de Inglaterra, mandando-lhe uma menina-rainha para osbraços.

Mariabateuopé,foradesi:

- Porque é que está a dar a batalha por perdida? Temos soldados àporta,eoConselhodeEstadoreúne-sedentrodeumahora.

-Tinha, Majestade, tinha, porque preparam-se para debandar, e dequalquer forma são 800 contra 13 mil, fora a ralé que não perde umaoportunidadedeentrarnestascoisas,evemacicatadacoma ideiadequeosestrangeirosqueremtomaropaís.EquantoaoConselhode Estado,pelomenosummembrojánãoaparece.

Mariaolhou-o,assustada:

-Quem?-perguntou,angustiada.

- Agostinho José Freire foi assassinado pormilitares que omandarampararacaminhodeBelém,e lhederamtrêstiros-aacusaçãoéa de queeraummilitarquefaziapartedasfileirasdousurpador.

Mariasentiuqueperdiaochão:

-Assassinado? - repetiubaixinho.Freire já foraseuministro,mas quemnãoo fora,pensounumsegundode ironia.Voltamosà guerra civil, à lutadeirmãoscontrairmãos,éistoqueestagentequer?

Fernandopôs-lheamãosobreoombro,numgestorápido,egarantiu:

- Não vai acontecer nada, Maria, vou descer ao encontro doshomens,aindatemosumaguarniçãoforte...

Fernando ia pegar na espada, tudo o que desejara em setembropassado,mas se eramorto como JoséFreire? Seo seuFernandomorria?SemCarta,semFernando,semcoroa,comoficaria?

O embaixador inglês puxou a cadeira e a rainha sentou-se. O som doscascos dos cavalos em corrida, o barulho das espadas desembainhadas,deram-lheumimpulsodeforça,esemqueninguéma pudessedeterabriuasportasdevidroparaavaranda,edaliassistiu aFernando,osgalõesdafarda e a espada a brilharem sob o sol de inverno, a avançar com umgrupodehomensparatentaremimpedir umbatalhãodedesertar.Opeitoencheu-sedeorgulho.Fernandolutavaporela.

Notícias terríveis de Portugal. Que pena tenho dos meus primos.Estávamos a litíssimos com a situação, porque Carl Dietz escreveu tunacarta desesperada à minha mãe, em que dizia que estava tudoacabado.Felizmente chegou logo depois, muna das nossas fragatas, o duque dePalinela, obrigado de novo ao exílio por o terem «colado»ao golpe deEstadoquefalhou,eteveasimpatiademevircontartudopessoa]rnente-pobrehomem,garantequesempreseopôsaestaaventura,quedefendeuqueseesperasseporeleiçõesparaderrotarogoverno revolucionário,masque ninguém lhe deu ouvidos. E quando tudo estoirou, os «patriotas»aproveitaramasorte,pedindoasuacabeça.Aconselhodarainha,partiu,sozinho,deixandoemPortugalafamília.

Pelo que me disse, Maria e Fernando pediram-lhe que me viesse ver,temendo que as versões dos jornais e dos nossos embaixadores nãofossem su icientemente iéis, como raramente são. A contrarrevoluçãoabortou, e a rainha foi obrigada a voltar às Necessidades, ladeada peloExércitoqueatemmantido,paratodososefeitos,comorefém,ea nomearnovamenteumgovernoderadicais.Domalomenos,conseguiramchegarauni acordo, em que os rebeldes aceitaram que o novo Parlamento redijauma Constituição que resulte da fusão da Carta coma Constituição de1820, o que signi ica que mantém unia monarquiaconstitucional.Simplesmente,em trocadestacedência, compeliramaminhapobreMariaa escrever unia carta de agradecimento à Guarda, imagine-se ahuunilhação.Palmeladisse-mequea rainha foideumacoragemedeunisangue-frio extraordinários, admiro-lhe muito essa força, embora nasdecisões pareça por vezes insensata. Lorcl Palmerston, o ministro dosNegóciosEstrangeirosmaisperigosoqueaTerra viunascer,escreveu-meumrelatórioemquediz,ecito,queasituaçãodarainha«émelhordoqueaquelaqueera,menosmádoquepoderiater icadodepoisdeunisarilhocomo este, e não tão boa como poderia ter sido se D. Maria tivesseesperadopacientementeatétudoestarmaduroparaaação».

ComenteicomD.Pedroqueonossoprimeiro-ministroteceraos maioreselogios aomeu querido Fernando, dizendo que se tinha comportado comuma presença de espírito admirável e uma coragem extraordinária, mas

estranhamente Palinela não me soube dar maisdetalhes. Pareceu-memuitocansadoedesiludido.

Bem, tenhode ir leros jornais,queaminhamãe incluiuagoranomeuhoráriodeestudos,peranteosprotestosdosmeustutores,quedizem quea minha educação é mais talhada para uni príncipe do que para umaprincesa.Tenhodelheagradecerqueincpreparebemparaatarefa difícilque me espera, e a situação da Maria deixa bem claro que para tunamulherreinarcomodeveprecisadesaberodobrodeunihomem.

PaláciodeKensington,19denovembrode1836

PaláciodasNecessidades,14denovembrode1836

arfaentrounasalaqueFernandotransformaranumatelier,astelaspousadasnoscavaletes,eviu-osentadonamesaondeospincéisestavamordenadosmetodicamente,concentradoaescreverumacarta,nopapeltimbradocomasarmasreais.

O príncipe deu um salto, como uma criança surpreendida a fazerumaasneira, e pôs-se de pé para a abraçar. Maria deixou-se abraçar,procurando perceber com um olhar para quem era a carta, subitamenteciumenta:porqueaescreviaaqui,enãonasala,ondeescreviam juntosaofimdodiaepartilhavamsempreoqueiamdizendo?

Subitamente recordou-se da mãe, de como ingira não ver aquelesversosordináriosqueopaiescreviaàsmulherescomquemtinhadormido,decomoserecusarasemprealerascópiasdascartasquelhetraziamascamareiras,achandoquelhefaziamumgrandefavor,oucomodesejodeamagoarem,sabialáelaaos7anosdistinguirintençõescomoessas.

-Oqueéqueatrazaqui,minhaquerida?-perguntouFernando.

Mariapediu-lhequefosseverahorta,queachuvaeoventodosúltimosdias pareciam ter destruído. Quando o marido saiu, Mariaprecipitou-separaamesaeleuoqueestavaescrito.

Osolhospicaram-lhede lágrimas, lágrimasde raiva.Fernando escreviauma carta formal à rainha anunciando a sua demissão docargo decomandante-chefe do Exército, aquele por que ela tanto lutara, dizendoque o que presenciara na semana anterior deixava claro que não podiacomandar uma tropa desordenada, de homens que não conheciam apalavra«disciplina».

«Se tenho então de ser eu a comandá-los, que seja», rosnou para simesma,pousandoopapel.Depois inspirou fundo.Pelomenosnãoera um

recado para uma amante. E não era um marido dedicado e iel o quequeria acima de tudo? Para a tropa arranjaria outro, oumarcharia ela àfrentedossoldados.

Maria escreve-me tuna carta curta. Pela letra, escrita à pressa. Diz-mequeestátudobem,masnãopodeestarcomademissãodeFernando.OtioLeopoldo diz que era a imnica saída inteligente, porque não podiacontinuar ciunplice de uni Exército de insubordinados, e desta forma aresponsabilidade destes atos intoleráveis ica com quem os comete, masnão acredito queMaria sinta as coisas assim.Mas comonão pode atacarFernando, volta-se contra os ingleses. Garante-me que os portuguesescontinuamaamara suarainha,eque foramosmarinheiros inglesesqueprejudicaram o golpe, assustando os portugueses. Só me posso rir edesejarqueonovoanoqueestáprestesacomeçarnostragaapazdequetantonecessitarmos.

PaláciodeKensington,20denovembrode1836

PaláciodasNecessidades,20dejaneirode1837

criadaentrounoquartoeabriuascortinasemsilêncio.Aportaficaraentreaberta,sinalquetinhamcombinadoentreelasparaassinalarque«ocaminhoestavalivre»,ouseja,queopríncipejárecolheraaoseuquarto.

-Lurdinhas,éstu?-perguntouMaria,dofundodoslençóis.

Lurdes chegou-semais próxima da cama e, para seu espanto, a rainhamandou-asentar-se:

-Aquinabeiradacama,mulher,quejáestáscomigohátanto tempoqueés quase minha irmã - insistiu Maria, um peso no peito,uma vontadeimensadechorar.Agoraquesecomeçaraahabituarà suacamareira-mor,aos Ficalho e aos Melo em seu redor, tivera de os despedir, porquesuspeitavaqueadesbragadadaMargarida,quetãogenerosamente izerasua dama, tentara seduzir Fernando. O marido icara contente com aexpulsão da «camarilha», como lhe chamava,o que a deixara maissossegada - talvez Margarida não tivesse feitoestragos, pensou, aliviada.Bemtinharazãoamãeemnuncacon iarnasdamasquearodeavam,queestavamsempredo ladodequemtinhaopoder, aproveitavamaamizadepara pedir lugares, terras e títulos, ou para desviar os maridos,imaginandoquedalitirariammaislucro...

Lurdes, habituada às excentricidades da sua rainha, deixou-se icar depé, não fosse entrar por ali alguma dama e despedi-la por abuso decon iança,mas ingiu endireitar os lençóis e os cobertores, num gesto decuidado.

-Diga,senhoraD.Maria...

-Tensfilhos?-perguntouarainha.

-Ósenhora,tenholáeu,comoseasenhoranãoestivessefartade saberque não, mas a minha irmã é mãe de uma catrefada de catraios queenchemumacasa,emais.

Mariariu,edepoisdesviouoolhar,concentrando-onodosselque cobriaacama:

- Se ao menos pudesse falar disto à senhora D. Eugénia, mas a pobreestá tão angustiada com o Manuel, que tem exatamente osmesmossintomas do Alexandre, Deus lhe valha. De que é que estoupara aqui afalarcontigo,quedisparate,oque tequeroperguntaré: comoéqueumamulher sabe de certeza que está de esperanças? Vi aminhamãemuitasvezesemestadointeressante,massósabiaquandoabarrigaficavagrandeejánãocabianaroupadocostume...

Lurdesabriuumsorrisoenorme:

-Aiquebom,ummenino, seiquevai serummenino...Temaíumfilho,eu sei que tem, graças ao Altíssimo, já descon iava por não verhámuitotemponemasuacama,nemasuaroupamanchada.

Mariasentou-se,levantandoumamãoàcabeça,estonteada:

- De esperanças? Vou ter um ilho? Lurdinhas, não digas a ninguém,senãoponho-tenarua,etraz-meaimagemdaSenhorada Glóriaparaquelhebeijeospés...

Lurdesapressou-sea irbuscá-la, comtodososcuidados,eMaria rezouumaoraçãodeAçãodeGraças.

Estava grávida, ia dar um ilho a Fernando. No meio das convulsõespolíticas,dashumilhações, foracapazdeengravidar.Deusestavacom ela,eotronodePortugalrecebiaumherdeiro,adinastiacontinuava.

PuxouLurdinhasparasiedeu-lheumbeijonatesta:

-Agoranemumapalavra,ouviste?Querosereuadizeraorei.

Maria e Fernando escreveram-me a contar que Maria está em estadointeressante. Um príncipe herdeiro, porque Fernando, muna nota derodapé, disse-me que ambos torcem para que seja uni rapaz. MandeiimediatamentetunacartaaMaria,adar-lheosparabéns,ejápediàminhaqueridaLehzenparalhecomeçaratricotarumcasaquinho,masnãopossodeixardeacharestranho,quaserepugnante,engravidar,comoseráteruniilhodentrodenós?Eoqueéquesefazcomaquelesnovelosengelhadosquesãoosrecém-nascidos?

OtioLeopoldoandaatrásdemimparaquemedecidaacasar,egostodoAlbert,sinceramentegosto,eescrevemo-nostodososdias,masnão tenhovontade de icar presa pelos votos do matrimónio, etemo que o povobritâniconãomerecebabem,sabendo-mecasada,aindaporcimacomumestrangeiro. Hoje esteve cá Mendizábal, oministro espanhol que já foiembaixador em Portugal, e disse-me queeu era isicamente muitopareciada com Maria. Nunca tinha dado por isso, o meu cabelo é maisescuro do que o dela, e sou mais baixa, emenos gorda, mas temos osmesmosolhosazuis!

Mendizábal elogiou muito o Fernando, e disse-me que Maria lhetemtinia amizade e uma obediência enormes, ao menos isso, porquetêmambostãopoucasortecomasituaçãodopaís.Deu-meaboanotíciadequeacamarilhaqueenvenenaosouvidoseasaçõesdarainhajásaiudopaço.Talvez assim Maria oiça apenas o marido, e gente commais bom senso,embora Palmela continue no e-xilio, Saldanha mude deideias como umcata-vento,omaugéniodeLavradioo torne imprevisível, eamaioriadosrestantespolíticostenhapoucosentidodeEstado.

Tenhode irparaaminhaauladecanto.Adorocantar,ecanto todas asnoitessozinha,porqueéamelhormaneirademelhoraravoz.Elembro-medeAlbert enquanto canto, porque ele e Fernando têm asmelhores vozesdebarítonoqueconheço.

PaláciodeKensington,26dejaneirode1837

PaláciodasNecessidades,2defevereirode1837

rainhaentrouemcasacomumramodecaméliasbrancasnamão.Fernando,quechegavadeumamanhãdecaça,subiuosdegrausdasescadasquedavamparaojardimadoisedois.

- Comoéque se sentehoje? - disse-lhe, beijando-ana testa edeixandodiscretamenteamãoescorregar-lhesobreoventre.

Mariadissealto:

-Desdequedeixouaminhacamaháumashoras?Voubem,senhor meumarido.

As duas damas que a acompanhavam apressaram-se a entrar. Asintimidades dos reis deixavam-nas embaraçadas, porque é quecontinuavamadormirjuntos,eatocarem-sedestaforma,quandoarainhajáestavacomfilho?

MariaapontouparaasraparigasassustadasedisseaFernando:

-QuebemquefazosoleocalordoBrasilaoscorposeàsalmas,mesmotão longe do Rio de janeiro continuo a sonhar todos os diascom ascachoeiras e as praias de areia branca. Sabe que recebi hoje carta daminhairmãJanuária?ImaginequeamanaXicaseapaixonoupelopríncipedeJoinville.

-AXica?Masasuairmãteráagoraquantosanos?Doze,treze?

-Trezeanos!Masissonãoimporta,oqueeraimportanteeraque eleseapaixonasse por ela e a trouxesse para a Europa. Já imaginou, Fernando,seaminhamanafavoritaviesseparapertodemim?

Fernando anuiu, entusiasmado. Sabia bem o que era ter saudades decasa,epercebiaqueparaMariaoBrasilera,nofundo,essacasaperdida.

A rainha pediu uma jarra, e começou a fazer o arranjo das lores emcimadacómodadepau-santoquevieradoPaçodeSãoCristóvão,quandoDietzpediulicençaparaentrar.

-SenhoraD.Maria,tenhotristesnotíciasparasi.

Mariasuspeitavadoquese tratava.HáváriosdiasqueManuelPalmelalutavacontraumaafeçãodospulmões.

Tirouduascaméliasdoarranjoqueacabaradecompor:

- Não digamais nada,meu bomDietz, vou levar estas lores a casadasenhoraD.Eugénia.

Fernandopassou-lheobraçopelosombros:

-Vouconsigo,Maria.Aindaporcimaoduquecontinuaexilado,pobreD.Pedro,que icasemmaisumdosseus ilhos,semsequertera consolaçãodesedespedirdele.

Mandei um bilhetinho ao duque de Palinela com osmeus sentimentos.Manuelmorreu,eoduqueaqui, longeda família.Quepena,agora que asnotíciasquemedãosãodeumaLisboacalma,edeuniFernandocadavezmaispopular.Mariaescreveu-meacontarquesãomuitobemrecebidosnoteatro, e que a cena de que os jornais falaram há dias, de tuna pedraatirada sobre o príncipe quando ia a entrar no São Carlos, não foi umprotestopolítico,masunigestodetunlouco.Umpedinteaquem, imagine-se,Fernandodava frequentementedinheiro,eaquem onegounessedia.Pobresdosreis,aquemtodaagenteculpadetudo.

Como sabia que o assuntome interessavamuitíssimo, omeuprofessorde Ciência Política usou hoje o caso de Portugal, oumelhor, o que lê nosjornais ingleses sobre aquele país. Diz que a grande diferença entre onossoeodeleséqueaquiopovotembemconsciênciadequeosoberanotempodereslimitados,equecabeaogovernogovernar,sendoresponsávelpelos resultados das suas políticas. Se tuna determinadaleiprovocamaisdesemprego,oufome,aculpanãoédorei,masdo partidoemexercício.E

pedem-lhecontasnoParlamentoounaseleiçõesseguintes.EmPortugalonome da rainha é usado para tudo, e a forma como os jornais falam dossoberanos é tão brejeira e insultuosa, que por aqui daria direito a tunprocesso de difamação e a tribunal.É verdade que o feitio impetuoso deMarianãoajuda,masissonãodisseaomeuprofessor.

Claremont,12defevereirode1837

PaláciodasNecessidades,4deabrilde1837

stochasiluminavamopátioondeascarruagensdeixavamos.convidadosparaobailedos18anosdarainha.Desdearevoluçãodesetembroquenaopiniãodosaristocratasopaçopassaraaserfrequentadoporgentemalvestidaedenascimentoduvidoso,masmesmoessestinhamdeixadoemcasaacasacaeolençopreto,paraapareceremcomomelhorqueascostureirasdeLisboaouosimportadoresdeParislheshaviamconseguidoarranjar.Naportadeentradaardiamtochas,easescadariademármorequelevavamaoprimeiroandareramiluminadasporgigantescasvelascolocadasemcadadegrau.Enormesarranjosdeflores,evasoscompalmeirasefetos,decoravamoscorredores.

Mariaestava feliz, abarrigaproeminente,numcorpoque todososdiasmudavade forma,amãoconstantementeestendidaparaobeijodos seussúbditos.

Saldanhadobrou-senumavénialonga:

- Majestade, pensar que andei consigo ao colo - exclamou, no seutomteatraledramático.

Mariaprotestou,divertida:

-Marechal,aos9anosjáeraumbocadinhopesadaparaisso,até porquesemprefuigrandeparaaidade,edá-meaimpressãoque, comafomequeesteestadomeprovoca,voutransformar-menumaverdadeirabaleia.

Saldanha olhou-a como quem pondera a questão, e teve de ser omarquêsdeFronteiraaatalhar:

-SenhoraD.Maria,nuncaavitãobonita.Soudaquelesqueacham queagravideztornaasmulheresradiosas.

Mariaagradeceu:

- Sabem o que é queme tornava radiosa? Terministrosmenos tolos equemedessemmenosdoresdecabeçacomassuasbirrase caprichos, ejá agora que os cofres não estivessem vazios e que alguém quisesseemprestardinheiroàcoroa.

Os convidados que a rodeavam tossiram, sem saber o que dizer. Nosúltimosdiasosjornaisnoticiavamquearainhaofereceraasjoias dacoroaparaajudarasituação inanceiradopaís,masqueoshomens denegóciosda cidade, apesar de instados pela soberana, se haviamrecusado a abriroscordõesàbolsa.

Fernando,percebendoomelindredasituação,deu-lheobraço:

-Julgoqueeratempodecomeçarojantar,senãoobaile...

MariafezsinalaSaldanha:

- Hoje quero que seja o senhor marechal a acompanhar-me, já que éaquelequemeconhecedemaispequena.Diga-melá,quandoéquetemoscondições para pôr isto na ordem? - perguntou baixinho a Saldanha,enquanto os convidados os seguiam com o olhar. Estavam certos de queconspiravam.

OmarquêsdeFronteirasussurrouàmulher:

- Não há aqui uma pessoa que não entenda que a rainha não seconformaaquelhetenhamabolidoaCarta.

-Ounão fosse ilhadeumhomemque,pesem todososdefeitos,nuncaesteve quieto - respondeu amarquesa, enquanto baixava a cabeça numasaudaçãoaD.Fernando,que icaraumpoucoperdido comoabandonodamulher.

- Quanto ao príncipe, vai entretê-lo com ilhos e arranjos lorais! Ohomem da casa, suspeito que será esse alemão casmurro que, como ela,ambicionamaispoder.

Mariafazhojeanos,18anos,evivetunagravidezdetrêsmeses. Nodia24 de maio será a minha vez. E aí serei livre, absolutamente livre. A tiaAdelaide veio hoje buscar-me, mas não parou para visitar aminha mãe.Desde que o rei soube que tinha ocupado o andar de cimado palácio,contra as suas ordens, cortou relações com ela e proibiu a rainha de lhefalar,eeumetidanomeiodisto,atentargerirasofensasdaminhafamíliacompinças.Arainhadisse-mequeoreiquer fazer umgrandebaileparaosmeus18anos,desdequesobrevivaaté lá,acrescentouentre lágrimas.Acho que ela gosta mesmo dele. Sinto tunamistura de pena e deentusiasmo,serápecado?RezotodososdiasparaqueDeusmeajudeaseramelhordasrainhas.Tenhoestudadotanto.

PaláciodeKensington,4deabrilde1837

PaçoRealdeSintra,26dejunhode1837

alditaescadadecaracol.Descê-laacorrer,comumabarrigadecincomeses,eraumaloucura,mastinhadeencontrarFernando,tinhadeserelaadar-lheanotícia,nãoqueriasequermandarumcriadochamá-lo,porqueassimasurpresanãoteriaomesmoefeito.

Ofegante, encontrou-o junto do lago no Pátio dos Tanquinhos, emconversacomumdosseusarquitetos.

- Fernando, preciso de falar consigo - disse-lhe, quase sem fôlego, e oarquitetoafastou-sediscretamente.

- Por amor de Deus, minha querida, desce assim as escadas, e correcomoumacriança,esquecidadonossofilho?

Mariaencolheuosombros:

-Nãomeinterrompaeoiça.Vitóriajáérainha.

Fernando,eufórico,esqueceu-sedasrecomendações:

-Não icabemcelebraramortedoreicomtantaalegria,massão notíciasformidáveis.

-Reimorto, rei posto, e o pobre do rei estava num sofrimento horrível.Chegou a carta agora. Foi há uns dias, e, apesar da emoção, Vitóriaconseguiu tempo para nos escrever - disse, acenando com a carta, quetrazianamão.

Fernando sentou-se na borda do lago de pedra, a ler o que a primacontava. O rei morrera aos 71 anos, durante a noite, e o arcebispo deCantuária,quelhevinhadaranotícia,foiobrigadoaesperaratédemanhãnumasaladeKensington,porqueaduquesanãodeixou queacordassemafilhamaiscedo.Quandosoubequeestavamàsuaespera,Vitóriadesceude

camisa de noite e roupão, e percebeu tudo, quando se ajoelharam e lhebeijaramamão,dizendo«Vivaarainha».

Maria olhava por cima do ombro do marido, e apontava para umaslinhasmaisàfrente:

- Veja aqui, onde diz que a primeira ordem que deu foi a de quetirassema camadoquartodamãe.Extraordinário,nãoé?Vitória teve deesperar para herdar o imenso ImpérioBritânico para conseguir o direitodedormirsozinhapelaprimeiraveznavida.Eaindanoschamamloucosanós!

Fernandoacenoucomacabeça,eMariacontinuou:

- Não ique preocupado, Vitória vai mandar em tudo e em todos.Setivessevistoacenaquemefezquandoeutinha9anosemeatreviatocarna sua casa das bonecas sem lhe pedir licença, não temia nemumbocadinhoporela-comentou,sorridente.

Sou rainha! Escrevo-o com emoção e medo. Mas escrevo-o na mesma,porque apesar de a minha vida ser agora tão, tão atarefada que nemtempotenhoparadarumafestaaoDasli,querocontinuaraanotartudo nomeudiário.Éumexercíciodere lexãosobreoquesepassa,queacreditoquemepodeajudaramanteracabeçafria.Disseistomesmonacartaqueescrevi a Maria e a Fernando, e que espero que já tenham recebido. Eagoratenhoafelicidadedesaberqueninguémlêoqueescrevo. Quemseatreveriaa lerodiáriodarainhadoImpérioBritânico?Aminhamãenão,certamente,quejáaafasteidomeudiaadia,eoodiosospyyJG,expulsei-odecasaeesperonuncamaistornaravernavida.

Tenho passado o dia em reuniões e a ler documentos, mas estou tãoagradavelmente surpreendida com o meu primeiro-ministro. LordMelbourne,quedecidiqueapartirdaquiseráreferidocomoLordM., é ohomemmais encantador que já conheci em toda aminha vida.Tem tunapaciênciaimensaparamim,etodootempodomtmdoparameexplicarascoisas,porqueéviúvo,esem ilhos,esintoquesouagrandeprioridadedasua vida. Vou escrever a Maria, a dizer-lhe a sorte que tenho. Se a

pobrezinha tivesse um lord M. por perto, muitas das desgraças do paísseriam certamente evitadas. É preciso con iar emalguém com maisexperiência, porque só tenho a sabedoria dos livros.Mas lordM. diz queaprendodepressaeparecemuitosatisfeitocomigo.

PaláciodeKensington,26dejunhode1837

71

PaçoRealdeSintra,15dejulhode1837

arfaacabavadereceberumembrulhodoBrasil.Olhouparaoremetente,epediuàsdamasquebordavamcomelaquesaíssem.Nãoqueriatestemunhasdacomoçãoquesentiriaaoabri-lo.

A marquesa de Aguiar mandava-lhe, do Rio de janeiro, as roupinhasdaquele que fora o seu enxoval de bebé, acompanhadas de uma carta,escritanasualetrasegura:

«Dona Mariana deixou-me entrar no paço e procurar nos baús decânfora as suas roupas de criança, porque estava certa de que a suamamãeguardaraoscueiroseosvestidosdasuaMariadaGlória.Não meenganei,eaquivãoporumportadorseguroqueMareschalme encontrou,lavadas e engomadas, na esperança de que levem a essacriança todo onossoamor,omeu,odassuasmanas,edetodosos queaamamos,comosvotos de que esse menino, ou menina, lhe dêtoda a felicidade que aSenhoranosdeuanós.»

Aslágrimas,tãorarasqueàsvezessupunhatê-laschoradotodas nodiadamortedamãe,oupelomenosnadopaioudeAugusto,caíam-lheagorapela cara, e enxugava-as com a manga do vestido.Maria da Glória! Háquanto tempo não se lembrava dessa sua identidade perdida, dameninaquecorriaaaladaigrejadasuapadroeira pelamãodamãe,aclamadanavarandadopalácio,aprincesinhaaqueosbrasileirosestavamdispostosadaro torno.«Mãe,conte-meoutravezodiadomeubatizado»,eorisodamãe ressoou dentro de si, trazendo consigo a memória do ribeiro ondeafugentavamocalor.

Passou a mão suavemente por cada um dos vestidos, das toucas,dasbotinhas bordadas, e escondeu a cara numxaile branco que, podia jurar,traziaconsigoocheirodojacarandáemflor.

Deixou-se assim icar, e o bebé que vivia dentro de si pareceu sentirtodaaquelaemoção,agitando-sesemlhedardescanso:

- Pedro, vou ser umamãe tão boa para si, como aminhamãe foi paramim, e umdia, quem sabe, talvez tenha a sorte de conhecer opaço ondenasci, de conhecer o seu tio Pedro, que deixei tão pequenino, sem pai esemmãe, o imperadordoBrasil de quemmorrode saudades e de quemherdouonome.

Nessanoite,nosbraçosdeFernando,disse-lhebaixinho:

-Vamoschamar-lhePedro...

AMaria diz-meque tema certezadeque vai ser um rapaz.Não seiseessas coisas se podem sentir, mas parece tão segura... Atendendo a quetanto ela como eu nascemos raparigas, quando os nossos paisdesejavamacimade tudouni rapaz, descon iodaprevisão,maspouco importa, ela eFernandoparecemtãoentusiasmados.

Tãoentusiasmadosquenemfalamdepolítica.FoiotioLeopoldoquemecontouquedepoisdesucessivosgovernosquesãonomeadosesedemitema tuna velocidade assustadora, e de uni descontentamento social queresulta da falta de dinheiro nos cofres do Estado, o instável do Saldanhaencabeçouumanovarevoltaemconjuntocomoutrosmarechais,favorávelàrainhaeàCarta,masque tempoucashipótesesdecorrerbem.LáestáPortugal,denovo,àbeiradeuniaguerracivil,elogonesteverãoemque apobre rainha precisava de sossego. Talvez a poupem, e seja Fernando afalarcomospolíticos!Comolhesdesejavaasortequetenho.LordM.étãointeligente,temtãobomcoraçãoeétãohonesto.Consulto-oatodaahora,e guio-me pelos seus conselhos desinteressados. De há unias semanasparacáqueinstituiohábitodeoconvidarparajantarpelomenosumavezporsemana,porquemeparecebemmostrarpublicamentequeoestimoecon io nele. Bem omerece.Mas, de facto, tomar decisões com o apoio deumhomemcomoeleémuitomaisfácil,emboraotioLeopoldomedigaqueestá certo de que tenho o bom senso su iciente para fazer as melhoresescolhas. E uma escolha que me pede é que proteja as duas rainhas da

Península,quenãotêmaminhasorte.Jáestavadecididaaisso.

PaláciodeKensington,18dejulhode1837

PaláciodasNecessidades,10deagostode1837

alomensageirochegassedeveriaserencaminhadodiretamenteparaasuasala,ordenouarainha.Fernando,queouviuorecado,quissaber:

- Está à espera de notícias dosmarechais? Não acha que devia deixarque fosse eu, ouDietz, a tratardesse assunto?Omédico recomendou-lherepouso...

Noúltimomês,Mariaescreviaerecebiacartastodososdias,mensagensdafrente,dabatalhaquecontinuavaentreSaldanhaeaqueles quequeriaver afastados do poder. Há pouco mais de uma semana, osmarechaishaviam chegado até ao Campo Grande, mas Lisboa nãoos acolheu, edecidiramrumarmaisanorte.

-Nãoposso abandonar os que lutampormim - disse baixinho,porqueparatodososefeitosarainhadeviamanter-seimparcial.

-Maria...

- Já sei, já sei, uma rainha constitucional não toma partido. Veja lá se,depoisdetantossermões,aVitóriacumpreoquepregou?NãofalademaisninguémsenãodoseuqueridolordMelbourne,todasassuasdamasforamsugeridaspor lordMelbourne, quero ver o que vai acontecer quando foreleitoumgovernodeoposição,eprotestarem queestárodeadaapenasdemulheresafetasaoamordasuavida...

Fernandodesatouarir.Nãohaviacomodesmentirqueasúltimascartasda rainha Vitória falavam incessantemente do seu queridoprimeiro-ministro,edefactonãoviacomoiageriras invejasqueresultariamdestaparcialidadeóbvia.

- Coitada da Vitória, nunca teve pai, e esteve tantos anos em cativeiro,que é presa fácil de um homem cheio de charme como lordMelbourne.

Embora lhe coubesse a ele, já com mais de 50 anos,protegê-la dasconsequênciasdestaóbviapaixoneta.

Maria sorriu, triunfante. Gostava de ganhar batalhas domésticas,embora, verdade sejadita, se as tivessedeperder,preferiaperdê-las emcasa do que contra os seus ministros, sempre as perdia a favor do seuqueridoebonitomarido...

- Tenho mais sorte do que a pobre Vitória. Tive pai e agora tenho omelhordosmaridoseconselheiros-disse,inclinando-separaobeijar.

Fernandoaproveitouparalhemostrarodesenhoacarvãoqueacabavade fazer: Maria, a barriga redonda, sob um vestido verde largo, que lherealçavaacordosolhos,asmaçãsdorosto rosadaseosolhos brilhantes,estavadeslumbrante.Pelomenosaosseusolhos.

Mariacomoveu-se:

- De repente pareço-memesmo com a minhamãe... sabe que ummêsantes do grande momento, ela lá longe, do outro lado do Mundo, semfamília, nem ninguém em quem con iar, e o meu pai mandou embora omédicoquevieradeViena,entregandoa responsabilidade dopartoaumcarniceiroqueaiadesfazendo.

Fernandotranquilizou-a:

-Masparaonascimentodonosso ilhoterátodososmédicosque quiser,já contei oito que estarão presentes, entre eles o Kessler, que é muitoexperiente...

Marialevantou-se,subitamenteenérgica:

-Tivesseeutantascertezasemrelaçãoaosmeusmarechais.Vou paraaminhasalaescreveraSaldanha.

Fernando suspirou, frustrado. Nem agora conseguia que a mulherdeixasseogovernodopaís,outivesseabondadededelegarnomarido...

Dietzchegou,e,aovê-loalavarospincéis,perguntounumtomcortante:

- A rainha não devia estar deitada, e o príncipe a escrever a carta aosmilitares?

Fernandovirou-lheascostas,irritado:

-O tioLeopoldoensinou-mequenumpaís constitucional os reisdeixamessastarefasaospolíticoseleitos.

Dietzabanouacabeça,desesperado:

- Neste país, com estes políticos, se não forem os reis a governar,desgraçadodopovo!

Esaiuàprocuradarainha.Fernandoolhouparaaportaquese fechavae,zangado,murmuroubaixinho:«Vai,vaipassarhorasa discutirbatalhasperdidascomarainha,queesteteualunosóserveparalavarpincéis.»

Mariaeosseusmarechais.Maisumaveznãoresisteameteracolher nocaldeirão, e vai queimar-se. A rainha de Portugal é persistente nas suaslealdades, mas falha nas táticas, e apostar tudo num soldado comoSaldanhaémeiocaminhoandadoparaadesgraça.Lisboarecusou-lhe todooapoio,eSaldanhaeosseushomenstentamagoraqueoNorteceda,masMaria está cegaaos sinais. FernandoescreveuaAlbert, preocupado,masnão tem conseguido demovê-la, e con idencia que Dietztudo faz paradeitarmaislenhaparaafogueira.

Quantoamim,volteiàsminhasliçõesdemúsicacomoLablache,eagoraduas vezes por semana, o que é tuna distração de que preciso tanto. Hádias em que sinto a cabeça estalar, tal a quantidade de papéis edocumentos que li, as decisões que tomei, as pessoas que ouvi e aquemtive de dar opiniões e conselhos. Lembro-me muitas vezes davoz doFernando,edecomocantávamosbemjuntos.Mariadiz-mequecontratouuni professor de canto, mas coitada, com a confusão emque o país está,duvidoquetenhamuitotempoparapraticar.

Gostava de ir mais vezes à ópera, mas é sempre tão cansativo ir«oficialmente»,tantossalamalequesecomprimentos,quejáporduasvezesfui sem dizer que ia, mas o meu incognito não correu como esperava, eacabouporseraindapior.LordM.planeoucomigoasminhas tentativasdepassar despercebida, mas agora está arrependido, e suspeito que o tioLeopoldo lhe escreveu a repreendê-lo pela inconsciência. Dizem-me quepode ser perigoso. «Só se toda a gente perceber quemsou, e nesse casotambémnãotemgraça»,respondi-lheumpouco agressivamente,confessoqueamuadapor ele se terdeixadopressionarpelosmeus «tutores», queseesquecemdequemsou.

PaláciodeBuckingham,10deagostode1837

PaláciodasNecessidades,16desetembrode1837

arfa,levantadasobregrandesalmofadões,ouvia,vindasdasalaaolado,asvozesdassuasdamas,querezavamoraçõesàVirgempelamulherquedavaàluz.Deixandoosmédicosperplexoscomasuaserenidade,arainhasuportavaasdoressemumgrito,eentrecontraçõesencontravaaenergiaparatroçardasua«comitiva»,comolhechamava:

-Com oito médicos e dois cirurgiões à minha volta, o meu ilhotem émedodenascer-dizia,peranteoolharembaraçadodosmédicos,quenãosabiam o que dizer. A rainha desconcertava-os sempre. Se alguma coisacorresse mal, estavam certos de que não seriam tratados com a mesmabenevolência.

As bacias de água quente rodeavam a cama, e o fumo de incensosenevoava o ar quente, quase irrespirável, porque os reposteiros estavamcorridos,asportadasfechadas,comoseládeforapudessemvirdoençasepestes.

Astoalhaslimpasaqueciamnumtoalheiro,colocadosobreuma braseira,eoboticáriorealmontaraumamesacomtodososquímicos epreparadospossíveiseimagináveis.

Àmedidaqueasdoresseforamtornandomaisfortesemaispróximas,Mariaperdeuascores,empalideceu,eosseusolhosazuis pareciamfaróisnumacarapálidaesuada.

Comodesejavaali terLeonordaCâmaraeaduquesadePalmela,comodaria tudoparaquena suamãoestivesseamãodamarquesade Aguiar,nasuatestaosbeijosdeFlorica,asmagiasdeRosaCabocla,asoraçõesdefrei António. Como sentia saudades do entoar das cigarras, o estranhocantarcomquesempremitigaraador.

OlhouaimagemdeNossaSenhoradaGlória,queLurdinhascolocaraem

cima de uma mesa próxima, a Senhora que velara pelo seu nascimento,pelonascimentodosmanos,pelamortedamamãe.Mordeuolábioquandomais uma dor lhe tomou o corpo, e respirou fundo para não chorar. «AMariadaGlóriachorava,choravanosbraçosda suamãe,dasuaama,masaMariaRainhadePortugal edosAlgarves,quedáà luzoprimogénito, opríncipereal,nãochora»,dissebaixinhoasimesma,eosdedosmorderamcommaisforçaoslençóisquesegurava,numenxovalho.

A respiração tornava-se ofegante, e as vozes dos médicos que aencorajavam soavam cada vez mais distantes, os pingos de suor aescorrerem-lhepelacaraabaixo.

-Está quase, está quase, VossaMajestade - dizia, caloroso, o Dr. SoaresFranco, omais afável de todos, e teve pena de não lhe poder dar amão,mas a rainha não toca nos seus súbditos homens, arainha tem de sercorajosae forteeprovarqueocupao tronoporque omerece, pensava, oaraapitaraosairdospulmões,contraídoscomoesforço.

-Jáestá,acabeça,vejoacabeça,jácáestáfora...

Eogritodeumbebécortouoar,eMaria,estonteadaesemar, estendeuosbraços:

-Deem-mo,deem-mo!

Asparteiraseosmédicostrocaramentresiolharessurpresos.Primeiroerapreciso limparorecém-nascido,apertar-lheas ligadurasem redor doventre, vesti-lo condignamente com os seus cueiros de rendas, passá-lo àamade leiteedepois,depoissim,seriamostradoàmãe, jácompostinho ebonito, sem marcas do sangue e dos líquidos de umanatureza que sequeriacamuflada.

AvozdeMariatornou-semaisforte:

-Nãoouviramoquedisse?Deem-meoPedroagora!

Os médicos entreolharam-se: como sabia que era rapaz? Como podiaestartãocerta,quenemperguntarasequer,eagorachamava-opelonome,semque sequer as águas dobatismo tivessem corrido sobrea cabeçadacriança?

ODr. Soares Franco retirou o bebédo colo da parteira que o lavava, edeitou-onosbraçosdarainha,efoicomsangue,suorelágrimasqueMariaoabençoou.

Sentindo-o aconchegado, a rainha passou-lhe um dedo suavementesobreonariz, tãopequenino comoumpedacinhodepão, a boca, tãocor-de-rosa, e olhou-o ixamente nos olhosmuito abertos e claros. Cantou-lhebaixinhoumacançãodeninar,comodizia,porqueostermosdainfânciasóos sabia em brasileiro. «Vai-te coca, vai-te coca, sai de cima do telhado,deixa dormir o menino um soninho descansado»,entoava, afastando opapãodavidadoseu ilho.Comoqueparalisados, todosaquelesmédicos,cirurgiões,damasecriadasolhavamparaamãeeoseumenino, comoseestivessempintadosnumatela,eninguémsabiaoquefazer,interrompidososrituaisquelheseramfamiliares.

AvozdeMariaquebrouofeitiço:

-Agorasim,agorapodemlevá-loparaomostraraopaieaos48o iciais,maiscoisa,menoscoisa,queseimpacientamnaantecâmara.

Estendendoobebéparaaama,insistiu:

-Nãosedemorem,quero-oaquinoberçoaomeu lado.Omeu ilhonãosaidomeulado,ouviram?

Os tiros de canhão que chegavam dos barcos ancorados no Tejo, osfoguetesquecortavamocéu,eossinosdasigrejasareplicarnãodeixaramouvir mais nada. Lisboa celebrava o nascimento do herdeiro do trono. Adinastiatinhasucessão.

Fernandoolhouembevecidoparaopríncipe.Desdequenascera, sentia-se omais feliz dos homens, pai de um rapaz, como tanto desejara. Já seimaginavaaensiná-loaescalaraserradeSintrapelas rochas,amontaracavalo e a caçar, a partilhar consigo o gosto pela arte. Que Deus fosselouvado.

- Um dia, vou levá-lo a conhecer as montanhas do meu país - disse,sorrindoparaMaria,quelheestendeuamãonumgestomeigo:

- Imagino o que sente por não ter cá os seus pais,mas vamosmandar

fazer umaminiatura do pequenino, para que vejam depressa como é tãobonitocomoVossaMajestade?

Fernando corou, as patilhas mais ruivas ainda contra o vermelho daface:

-Nãobrinquecomigo,Maria.

- Não estou a brincar, Fernando. Por a rainha lhe ter dado um ilho, osenhor é rei dePortugal. Pensebem,meuquerido, que se tivessecasadocomVitória,nuncapoderiaambicionarotítulo.

Fernando pegou no bebé, encostando-o ao seu ombro e passeando-sepela sala, para esconder o misto de prazer e nervosismo que o novoestatutolheprovocava.Desviandoaconversa,protestou:

-VairepetiroutravezqueVitóriaseapaixonoupormim,equenão foraeujáestarcasado,meteriapropostocasamento?

Mariaolhou-o,subitamentemuitoséria:

-Não,nãovou,Fernando,emboratenhaacertezadequeéverdade,masnão tenhovontadenenhumadeestragar anossa felicidadecomcenasdeciúmesdisparatadas.Diga-meantesoquesemurmura noscorredoresdopaço.

Fernandodeixou-secairnumcadeirãomaisconfortável,deitandoobebésobreosjoelhos:

-Dizemquenuncaseviucoisamaisestranhadoqueumpaieumamãe,aindaparamaisreais,tomaremcontadoseubebé,apenascom aajudadeumaamaedeumacriada...Quenuncaseviucoisamaisestranhadoqueumamãe e umpai que instalamo seu recém-nascidono quarto contíguoaosseusaposentos,equenãooperdemdevistatodoodia,impedindoquefiqueentregueaestranhos.

Mariariu,deliciada:

- Tem tantas teias de aranha na cabeça, esta gente. Porque é que fazmaissentidoqueumacamarilhamaisoumenosdesconhecidaseaproprie

do príncipe, e os seus pais se mantenham distantes, quasevisitas decerimónia?Fuieducadaaocolodosmeuspais,sócomaminhaFlorica,eaminha mãe, arquiduquesa da Áustria, nunca aceitouseparar-se de mim,nem dos meus irmãos, por isso não vejo o que é queestas damas mepodemapontar.Venhamcádizer-mequesãocostumes burgueses,queeuconto-lhes!

Aportaentreabriu-se,eacarecadeCarlDietzsurgiu:

-Nãoincomodo?-perguntou.

MariaeFernandosorriram-lhe,comafeto:

- Entre, Dietz, o senhor também vai educar este príncipe - exclamouMaria.

Dietz ajoelhou-se junto da cadeira onde Fernando segurava o bebé, etocou-lhe com o indicador na mão, e o pequenino Pedro prendeu-lhe odedocomforçanoseupunhocerrado.

-OsenhorD.Pedrojásabequevouseromelhordosseusprofessores.Semopermitissemcomeçavajáaensinar-lheasprimeiras letras,paraquesejamaiscultoemaiseducadodoqueosseussúbditos.Oquenãoédifícil-acrescentou, irónico. Maria, que os observava, enterneceu-se ao ver oalemão,sempretãohirtoecomposto,adesfazer-seemgestosmeigosparacomoseufilho,paracomofilhodeFernando.

- Veja lá,Dietz, se conseguedizer o nome completodonosso ilho,comuma pronúncia portuguesa que se apresente. Fernando já parece umindígena-comentouarir.

E Fernando repetiu: PedrodeAlcântaraMaria FernandoMiguel RafaelGonzaga Xavier João António Leopoldo Victor Francisco de Assis JúlioAméliodeBragança,BourboneSaxe-Coburgo-Gotha.

Maria,comalgumaamargura,comentou:

- Precisava de ter mais nomes, Dietz, porque Pedros de Alcântara é oque mais há neste Mundo, graças à fertilidade e aos maus costumesdomeupai.

Dietzdeuumagargalhada:

-Acredite, senhora D. Maria, não há de facto rainha nenhuma comoVossaMajestade.

Mariaacabaradeajudaraamaaenfaixarobebéeavesti-locomumdosvestidosderendaqueamarquesadeAguiarlheenviaradoBrasil,quandoumcriadolheanunciouqueummensageirodeSaldanhachegaraaopaço:

-Cremilde,acabadedeitaropríncipe,aconchega-obem.

Aamadobrouacabeçanumavénia,pegandonomeninoaocoloevendosair a rainha. Nas casas onde servira as senhoras icavam deitadassemanas a io, mas a senhora D. Maria parecia uma das mulheres lá deCabeçadeCarneiro,quepoucodepoisdedarà luz jáestavama tratardoserviço,«queavidanãoparaeháquedardecomeràspitas»,comodiziaasuamãe.

Discretamente recebeu o soldado, e quando o criado lhe perguntou seprecisavademandarchamaralguém, fez-lheumsinaldesilêncio.Sentou-se na sua sala de trabalho, a luz a entrar pelas duas janelas, quente eacolhedora,eleuamissivarabiscadadeSaldanha.Raios, enfureceu-se,emTrás-os-Montes os marechais haviam sido derrotados pelo exército dosinimigos da Carta, dos seus inimigos.Mordeu o lábio, zangada. Quando ojudasdoministroSádaBandeira chegasseaopaço,para triunfantementelhedaranotícia, teriadeorecebercomosenadafosse.Comoseavitóriade uns ou de outros lheimportasse damesma forma. Escrevinhou umaslinhasdeapreçoaosmarechais, incitando-osaquenãodesistissemnunca,esperandoquenãofossemintercetadaspelocaminho.Quelheimportavamas regras de uns homem que desprezava? Se em criança fora capaz defugir pelajanelaeconvencero Jaimea levá-laàmarquesadeAguiar,nãoera aos 18 anos, rainha e mãe do príncipe herdeiro, que ia deixar quemandassemnela.Dobrouopapel, fechou-onumenvelopelacradoedeu-oaomensageiro,comordensdequesóaentregassenasmãoscertas.

Li o relatório do nosso embaixador em Lisboa. Se o partido da rainhanãotivessesidoderrotado,depoisdemesesdemaisumaguerracivil, tudoestaria a correr bem aos reis de Portugal. Mas o cenário político édesastroso, as inanças da nação tuna lástima, e Maria está isolada,tãoisoladacomoháumano,masmilvezesmaishumilhada.LordPalmerstondiz que estamos a fazer os possíveis para ajudar Portugal,mas que sãosurdosaosbonsconselhos.Todos,acomeçar,ousobretudo,pelarainha.

O nosso embaixador trabalha para que se chegue a um acordo e ossoldados, e os seus marechais, possam voltar aos quartéis, e tudo seesqueçasemenvergonhardemaisospartidáriosdarainha.

MariaeFernandoescreveram-meacontartudosobreopequeno Pedro,notíciasbemmelhoresdoqueasdopaís.Umdiaéclaroque tereidecasar,massóesperonão icar logoàesperadebebé. Játive anosdemaispresaemcasa,paramesujeitardenovoaocárcere,que tunacriançanãoémaisdoque isso.Querogozarde todaa liberdade, eeste foioverãomais felizdaminhavida.AdoroWindsor e os camposemredor,onde todososdiasmonto a cavalo com lordM., que fez abondadede aceitar omeu convite,porquesabequeprecisodeaprendermuitomaisesóelemesabeensinar.Caçámos,dançámosediscutimospolíticaatodaahora,dopequeno-almoçoàceia.Dashaceitoubemapromoçãoacãodarainha-garantoquenãolhesubiuàcabeça!

CastelodeWindsor,18desetembrode1837

IgrejadasNecessidades,1deoutubrode1837

ernandosentou-senofundodocanapéemqueMariaestavadeitada,porordemdomédico.Exageraraaoquererfazertudodeumavez,eumahemorragiaobrigara-aadeitar-sedenovo.FernandosuspeitavaqueoqueadeitararealmenteabaixoforaassinaturadaConvençãodeChaves,quedavaporterminadaeperdidaarevoluçãodosmarechaiseobrigavaSaldanhaeTerceiraaabandonaropaís,massabiamentepreferiaevitaroassunto.

-Querque lhe conte comocorreuobatizadodonosso ilho, ouprefereler nos jornais de amanhã? - perguntou, enquanto balouçavacom o pé oberço de madeira de pau-santo, com as armas dos Bragança, em quedormiaopequeninoPedro,jálivredovestidoderenda comqueasuamãetambémforabatizada.

- Descreva tudo em pormenor, para que um dia o possa contar aopríncipe,comoaminhamãemecontavaamim.

- Quer a versão dos contentes ou dos descontentes? - perguntou orei,comummeio-sorrisocansado.

-PoramordeDeus,Fernando,conte-meadoscontentes,queadaquelesque estão sempre a dizer mal de tudo já me desespera. Deixe-meadivinhar, os que levaram o pálio icaram contentes, os que não levaramnemopálio,nemosaleirodeouro,nematoalhabordada,disserammal?

Fernandoacenouquesimcomacabeça:

- Émais oumenos isso. Devíamos ter encontrado um objeto para cadanobredestacorte.

- Emesmo assimdiscutiriam.Umdiria que o saleiro eramais pequenodoqueaconchadaágua,ouqueocírio,porquetema itabranca comasarmasdePortugalbordadas,eramaisimportantedoque...

Fernandojária:

- Tem razão, tem razão, nãohá formade contentar todos.Quando tudoestavaprontoomarquêsdeSantaIria,vestidodedamasco,levou obebéàpiabatismal,eoPedroportou-secomoumpríncipe,osolhosmuitoabertoscomoseestivesseavertudo,mascomaquelacarasériaqueeletem,sabe,aquelaemqueparecequeestáaavaliartudoetodos?

- Entãonão sei? Escreva o que lhe digo, este vai ser bonito quandoforrei.Atéosministrosvãotersaudadesminhas-disseMariaarir.

- Pareceram-me bem os três Grandes do Reino, com as três toalhasrendadassobreoombroesquerdo,vestidosarigor,assimcomoos quatroque levaram o pálio, embora o marquês de Fronteira use sempreestampadonacaraumsorrisoligeiramentetrocista...

- Trocista? Esse também nunca sabe de que lado está... Se osverdadeiramente grandes cá estivessem, se Saldanha, Terceira e Palmelanão estivessem exilados, pode ter a certeza de que o Fronteira não teriachegadoateresseprivilégio-disseMaria,sempretãosensívelàcrítica.

Fernando arrependeu-se do comentário. A rainha não o esqueceria, e,para dizer a verdade, achava o sentido de humor de Fronteira bemrefrescantenumacortetãomacambúzia.Mariachamou-oàrealidade:

-EoDr.MiguelForjaz?Viuseaáguadapiabatismalestava morna, ouvaionossofilhoficarconstipado?-perguntou,ansiosa.

Ohumordoreidesanuviou,edeuumagargalhada:

-DosenhorD.MiguelForjazgostoeu,vê-semesmoquevemde Sintra,de onde, desculpar-me-á, são os melhores desta corte. Deviatê-lo visto,muitocompenetrado,apôrocotovelonaáguaeamandarocriadojuntar-lhe água fria, e depois quente, até que exclamou«Agradabilíssima» emandouapressaracerimónia,antesqueaáguaarrefecessedenovo...

A rainha sorriu. Fizera questão de que estivesse no batismo do filho,ignorandooprotestodomédicodequenãosepodiaafastardasuaserra.

-Olhe,aíestáumquese ingesaloio,sóparasedivertiràcontadosque

aqui andam a armar ao que não são, burgueses e nobres deslumbrados,quegastamriosdedinheiroaprocurarcompetircomoqueimaginamsero luxo dos paços. Depois chegam aqui, e desiludem-seao descobrir-nospelintras. Esses sim, são verdadeiros provincianos e venenosos que nemboitatás - as cobras de fogo do Brasil - explicou sorrindo, como sorriasemprequeusavaumtermodoseupaísnatal.

Fernando não resistiu a comentar, divertido, como piscara o olhodiscretamenteaomédicoquandooviraacompanharacriançapara asalacontígua à capela, onde um berço estava preparado para o príncipe, quecomapenasquinzediasdevidanãoaguentariaolongosermãodocardeal-patriarca.

-Sorteteveele,Maria,escapouaocalorinsuportávelqueestavanaquelaigreja, porque a guarda não conseguiu limitar o número de pessoas queentravam.

-Eacapelaestavabonita?

Fernando torceu o nariz. Haviamentiras que lhe custavam, e de facto,habituadoàpompaecircunstânciadeViena, tinhaalgumadi iculdadeemnãosercríticodascerimóniasportuguesas.Atéporqueasuasensibilidadeartísticanão lhepermitia ser indiferente, emesmosemquerer davapeloburaco na tapeçaria ou pelo coçado de umtecido, feria-lhe a alma umestuqueasoltar-sedaparede,ouoarranjo apressadodeumfrescooudeumfrontão.

Mariaindignou-se:

-Jáviqueestavatudomuitodesleixado...

Fernando não desejava con litos, não queria despedimentos decamareiros, nem ver o pobre domordomo-mor repreendido. Esqueceu ocomentárioqueouviraomarquêsdeFronteirasegredaràmulher, dequeadesorganizaçãodava ideiadequeopaçosehaviaconvertidono paláciodopresidentedeumarepública,etentouqueavozsoasseconvincente:

- Não, que disparate. As paredes, das escadas até à capela, estavamforradas de tapeçarias e a capela tinha as paredes cobertas de veludocarmim. E o povo, o povo estava entusiástico e feliz, entrou na capelaaté

ondepôde,egritavanoterreiro.Devetê-loouvido?

FoiavezdeMariafranzirosobrolho:

- Confesso-lhe que de ouvir o povo no terreiro estou eu cansada,sobretudo quando lhes dá para vir para aqui aos «morras» - disse arainha,queaindaretinhafrescaaagitaçãoqueaobrigaraanegaraCarta.

Fernandofez-lheumafestanamão:

- Esqueça tudo isso, Maria, agora temos que educar o Pedro, e depoisdestesdiasdeagitaçãopodemosvoltaraosnossospasseios.

Maria olhou-o, e suspirou. Para o seu queridomarido era sempre tudotão simples. Apontou em direção ao papel e ao tinteiro pousados naescrivaninhaepediu-lhequeospusessenamesinhaaoseulado:

- Vou contar tudo a Vitória, ela vai querer saber... e antes que osembaixadores se ponham a escrever que os reis de Portugal nãoconseguemdarumafestadebatismoemcondições,émelhorquelheconteaminha versão. A minha versão do batizado de Pedro, e da RevoltadosMarechais-sussurroumaisbaixo.

Fernando ingiu que não a ouviu, e, debruçando-se para lhe dar umbeijonatesta,encorajou-a:

-Fazbem,minhaquerida.

Mariasegurou-lheacaraemambasasmãosebeijou-onoslábios:

-Agoratemostudoparasermostotalmentefelizes.

Fernando não podia estarmais de acordo. Se aomenos os políticos seentendessemeodeixassemgozaramulhereofilhoempaz.

Asmásnotíciasprimeiro, edepois asboas.A líricapseudorregência deSaldanha acabou, e o governode SádaBandeira teve a satisfaçãodever

partir para fora de Portugal dois dos «grandes» do regime liberal. ComoPalmelacontinuaemParis,FernandoeMariaestãomaissozinhosdoquenunca. O acordo pressupõe o perdão para os o iciais, que serãoreintegrados no Exército, mas se passará de letra escrita num papel àrealidade, ainda se está para ver. Embora terrível e secretamentedesiludidos, talvez a rainha e Saldanha aprendama lição, e a oposição seunaparaconcorrereganhareleições.

Asboasnotíciassãoqueobatizadodoprínciperealcorreubem. Acartade Maria chegou depois da do nosso embaixador, que descreveu obatizadodopríncipecomotunacerimóniacomovente,participada,masumpoucocaótica.Aoqueparece,foramgenerososnosconvites, enassalasdopaláciotantosepodiaencontrarummerosoldado, comounimarquês,eocorpodiplomáticonãofoitratadocomgrande deferência,jáparanãofalarde que não havia talheres para todos. Pareceu-me mesquinha a carta, ecompreendoaqueixadeMariadequeosembaixadorestêmumaposturamuitas vezes desagradável,como se fossem superiores aos «nativos».Aindabemqueosmeusqueridosprimosconvidarammuitagente,egentediferente, desde queisso os tenha feito feliz e aumentado a suapopularidade juntodoseupovo.FoioqueMariamedissequeaconteceu.Pareceu-memuitofelizcomafesta,ediz-mequeomeuqueridoFernando,queeumaisdoqueninguémseiumartista,elogiouadecoraçãodacapela,as vozesdo coro, por isso devem realmente ter sido admiráveis. Maisimportantedo que tudo, o bebé portou-se como um anjo, e nem chorouquandoodestaparamparaotingiremcomosóleossagrados.Mariadiz-mequeémuitobonito,queosolhosea testa sãodopai, eabocaeoqueixodela, e prometeu enviar-me um retrato dele logo que possível. Talvez lheenvieiindosnossospintores,paraqueassegureaqualidadedotrabalho.

CastelodeWindsor,10deoutubrode1837

PalácioFronteira,15defevereirode1838

m homem alto, magro, o nariz aquilino e as sobrancelhascarregadas, elegantemente vestido, 30 a 35 anos, não sabia dizer, pediulicença para a cumprimentar. A sua voz era forte e envolvente, e haviaqualquer coisa na sua pose que deixava Maria desarmada. Porque sesentia sempreagradavelmentedesconcertadaquandoovia?Costa Cabralnão fazia aquelas vénias que tanto a enervavam, e tinha umasegurançaque se impunha. Não tinha sequer razões para con iar nele, porque,embora lhe parecesse mais moderado por estes dias, pertencera aosrebeldes que a haviam obrigado a jurar a Constituição. E, no entanto,icava-lhe sempre a sensação de que podia con iar nele, quaseumamemória de reconhecimento, mais do que de conhecimento, nãosabiaexplicarporquê.

- António Bernardo da Costa Cabral, ao serviço de Vossa Majestade -disseohomem,deixandoqueamão icassenasua,pormaistempodoqueeradelicado.

Semcerimónias,CostaCabral falou-lhedepolítica.Nãodafesta,nemdotempo,nemtão-poucodonascimentodopríncipe,masdepolítica.

-Seiquenãotemrazõesparacon iaremmim,masqueriadizer-lhequehoje me arrependo de ter contribuído para dar tanta força à GuardaNacional, que agemais comoumbandodemalfeitores do quecomo umaforçadoExército.

Arainharespondeu-lhe,numtomcínico:

-Respeitoumhomemquereconheceosseuserros,sobretudose estiverdispostoaemendá-los.

- Se não estivesse não a incomodaria com este assunto. Na juventudecometemosatosdequenemsemprenosorgulhamos,enãomeorgulhode

terestadoassociadoaumgrupoqueobrigouarainha,sobameaça,ajuraro que a rainha não desejava jurar. Mal vai um país onde os reis sãoobrigados a submeterem-se à vontadedeumExército desgovernado, aoscaprichos de uma populaça manipulada quegrita o que lhe ordenaremquegrite,paranodiaseguinteclamarocontrário.

Maria procurava esconder o fascínio, o fascínio que sempre sentira emrelaçãoaestehomem,umasensaçãodequelheerafamiliar,tão agradáveleprotetoramentefamiliar.Mesmoquandooodiara.

FernandoeDietzaproximaram-se,eCostaCabralbaixouacabeça numavéniaaorei:

- Vossa Majestade, é um prazer voltar a vê-lo - disse, sem excessivadeferência,mascomumaeducaçãoirrepreensível.

Evirando-separaDietz,apertou-lheamão,comoseoconhecessebem.

Depoisafastou-se,eoolhardeMariaseguiu-o.

Fernando,incomodadocomoseusilêncio,protestou:

- Não vai dar crédito a um homem bem-falante, de uma inteligênciabrilhante,reconheço,mastosco.

Maria não lhe respondeu logo. Sabia bem que António Bernardo daCostaCabralera ilhodeumlavradordeFornosdeAlgodres, fosse lá issoondefosse,quesetinhadistinguidonocursodeDireitoemCoimbra,lutarapelosliberais,masaliando-sedesdeaíàesquerdaqueelatantoodiava.

-Diz-mequemudou.Falou-medanecessidadedepôraGuardaNacionalemordem,ea irmouquesearrependedemeterfeitojurar aConstituição-comentouarainha,comosefalandosozinha.

Fernando enrolou os olhos e levantou-os ao céu. Quando Maria falavaassimjánãohavianadaafazer.Dentrodediasarainhahaviadeonomearpara qualquer lugar importante, e os seus aliados icariamsemcompreenderporqueéqueforaescolherumhomemàs ileirasdo inimigo,sentindo-sezangadosetraídos.Masnãotevetempodedizernada,porqueoanfitriãopedia-lheahonradequecantasse,enãopodiadizerquenão.

Enquanto a sua voz enchia a sala, a rainha pensava que lugarpoderiadaraohomemdonarizaquilinoeolhospenetrantesqueviera oferecerosseusserviços.Falaradaguardacomtantadecisão-poisbem,nomeá-lo-iaadministrador-geraldeLisboae logoseveriadoque era capaz.Edequeladoestavarealmente.

Nessanoite, o sonoda rainha foi agitado.As almofadas rolavam para ochão, os cobertores desalinhados. Costa Cabral e a sua voz envolventelevavam-naparaopassado,para sítiosondenãoqueria, nãodevia ir.Umhomem que entrava na sala de trabalho damãe, e que os seus olhos decriançaseguiam,umhomemdevozenvolventequeconsolavaaimperatrize lhe dizia que velaria por ela, que aguardaria, a ela e ao seu reino.Umhomem corajoso, de costas direitas, forte, que não tinha medo doimperador, que não se assustava com os seus gritos e não vendia a suaaliança com aquela que amava comrespeito, aquela a quem admirava ainteligência, a forçaea coragem. Abalaustradademadeirarodopiavaemfrentedosseusolhos,osdegrauscomendo-seunsaosoutrosnumvórtice,osolhosdelepresosaosolhosdela,eapromessasilenciosadequenuncaaabandonaria.E depois a morte, o caixão na noite escura, e a mão fortesobre o seuombro de menina, as lágrimas que caíam como um ribeirodepois daschuvas, porque desaparecia a mulher que era dona do seucoração.

Amãocomosdedosabertossobreacara tapavaosolhos,comose nãosuportasse acordar para a luz de Lisboa que entrava pelas frestas nasportadas:

- José Bonifácio de Andrada - chamou baixinho. Era oministro da mãequeCostaCabrallhelembrava.

Mariaescreveu-metunacartamuitomaissentimentaldoqueaquiloqueé costume. Fala-me de um tal Costa Cabral, que a parece ter tocadoparticularmente.Dizque lheencontrouqualidadesdeumestadista,equelhe lembraumdosnossosministros,muito sério e semperder tempo emdeferências inúteis. Percebi que a conquistou à primeira vista, por issocertamente tem charme e o dom da palavra. Maria deixa-se levarpela

lisonja, já percebi isso. Espero que Maria se dê ao trabalho de conhecermelhor o homem, antes de decidir nomeá-lo para qualquercargo. Voupediraonossoembaixadorquesaibamaissobreele.

PaláciodeBuckingham,25defevereirode1838

PaláciodasNecessidades,20deabrilde1838

edrosaltavasobreoseujoelho,asgargalhadasaencheremoquarto,osolhosazuiscomoosseus,acabeçacareca,ondesecomeçavaaverumapenugemloira.Aosseismeseseraumbebédelicioso,vivoeinteressado,quejádizia«gugu-dada»emalemão,brincavaFernando,paracontentaroincansávelDietz,desejosodequeoseurealpupilofalassealínguadopaiantesdequalqueroutra.Mariaafagou-lheanucameigamente.

-Tardanada,Pedropequenino,estequartovaiterumnovo ocupante.Oqueéqueomeninoquer,umamanaouummano?

Aos 19 anos, acabados de fazer, esperava o seu segundo ilho. Filho,porquetantoelacomoFernandoqueriammuitoquefosseumoutro rapaz.Pedro adormeceu-lhe nos braços. Com a respiração serena do ilho tãopróxima, e outro dentro dela que anunciava a sua presença com oocasional pontapé, deixou os olhos correr pelo quarto, decorado comgravurasqueVitórialheenviara.

Acriadaentroue,fazendoumavénia,anunciou:

-OsenhormarquêsdoFaialpedeparaserrecebido.

Mariadeuumsaltodealegria:Domingosvoltara?Seguiraoseu paiparaLondres e Paris, e ouvia mais dele pelas cartas de Vitória doque pornotíciaschegadasàcorte.

Tocou a campainha, e passou o bebé adormecido à ama, levantando-sedevagar,tantoquantoopesolhepermitia:

-Diz-lhequeentreaquiparaaantecâmara-ordenouaumacriada quejá não se chocava com a falta de protocolo, nem com o facto de arainhareceberaspessoasmaispróximasnosseusaposentos.

Maria controlou a vontade de o abraçar. Ainda nem tinha 19 anos, enunca seria tão bonito como Alexandre, mas era elegante, e estava tãoricamentevestidoquesepercebiaqueacabaradedesembarcar vindo deParis.

A história do seu casamento ocupava as conversas da corte de hádoismesesparacá-dadoqueoherdeirodosPóvoamorrera,afortunapassavaintegralmente para a mulher de Domingos, e a família de origemesforçava-se por todos os meios para anular o casamento, coisa que oduquedePalmela estava absolutamentedecidido a impedir. Pudera, comestegolpedesorte,afamíliaPalmela icariaamaisricadePortugal,muitomais rica do que a coroa, pensava Maria, comalguma irritação.Escondendo-a,perguntou:

- Domingos, conte-me tudo. Dizem-me que a sua mãe voltou e estáescondidacoma suanoivaatéaodiaemquea criançapodeconsumarocasamento.NemaGuardaaencontra,masagoratambémjá sófaltamdoisdias.

Domingossorriu,pedindolicençaparaacenderumcharuto.Sabiaqueoassunto era delicado, e que a rainha tinha chocado os pais, por lhes darpoucoounenhumapoionosúltimostempos:

- Como sabe, amãe adotou aminhamulher, tratando-a como ilha nosúltimosdoisanos.Comestevolte-face,apobrecriançaestavaaterrorizadacom a ideia de ser raptada por tios que nunca viu, e quesó estavaminteressadosnoseudinheiro.

Arainhatossiu,divertida.Domingos,sincero,riutambém:

- É claro que o meu pai também pensa no dinheiro, e fez disto a suacausa, com aquela inteligência estratégica que lhe conhece, masconvenhamos que contratou o meu casamento quando ela não era aherdeira, e ao longo destes anos afeiçoou-se-lhe grandemente. É meiga,afetuosa,não faziasentidodeixarquea internassemnumconvento,comoestãoaprocurarfazer,comoteriamfeitoseaminhamãenãofugissecomeladeFrançaenãoseescondessememLisboaatéaodiaemquefará 12anos, e a lei permite que o casamento seja consumado. Cinco semanasescondidas,semqueninguém,nemomeupai,saibaonde...

-Temtantagraçachamarmos-lhecriança,nãotem,Domingos? Lembro-me de como me sentia crescida, aos 9 anos, quando vosconheci emInglaterra.

Domingosinclinou-separaafrentenacadeira,eatreveu-seafazer umafestanamãodarainha:

-Vaidar-measuabênção?

Mariaolhou-ocomternura:

- Espero que seja tão feliz no casamento como sounomeu. É omelhorquelhepossodesejar.

- E pode desejar que a Guarda, que tem um mandado comprado aotribunal,nãoencontreaminhamulhernavésperadocasamento,quandoaminhamãe a trouxer para Xabregas. Até à última hora, estaremos todoscomocoraçãonaboca,masacreditoqueacerimóniasevairealizar.

Maria viu-o partir com uma imensa nostalgia. Era feliz, mais doquealgumavez imaginara ser,mas comoerapossívelqueo tempo tivesse dealgumaformadesfeitoaintimidadetãoprofundaquea ligavaaosPalmela?Teria ciúmes da atenção que a senhora D. Eugénia, a sua D. Eugénia,dedicava agora aos ilhos que continuava a ter, e sobretudo a esta nora?Seria por isso que, na verdade, pouco ou nada izera para defender acausadapequeninacondessadaPóvoa?

Encolheuosombros:enquantoelesenriqueciametratavamdasua vida,arainhaeraobrigadaatrocaroseusossegoeoseuconfortopelo governodo país. Bem gostava de ter o dinheiro e a vida dos Palmela,pensou,subitamentezangada.

Fernandoescreveu-meadizerquegostavadeterumcavaloárabe, que,estranhamente, parecem não existir em Portugal. Vou tentar mandar-lheumdosnossos,provavelmenteoHamlet,etalvezpossacriá-los,porquemedizquenoPaláciodeMafrateriamuitascondiçõesparaofazer.Mariatem

tunaéguacalmae segura, enãoestá interessadaemmudardemontada,mas talvez uni dia possa ter uni dos ilhosdaquele que agora ofereço aorei.Adorocavalos,etenhodoisqueadoro, equesãoperfeitos,emtodosossentidosdapalavra.Sãobonitos,cheiosdegenica,masdóceis,calmosenãotêmmedodenada.Gosto tantodemontar,que tenhomontado trêshoraspordia,oqueme faz tanto,tantobem,sobretudose fornacompanhiadealguém como lorcl M.,que adora cavalos, como eu. É claro que depois,quando chego a casa,vejo o trabalho todo acumulado, mas vale a pena.Ainda por cima estaprimavera tem sido tão perfeita, que só apetececantarolar e icar ao ar livre, a apanhar sol.Voumesmomandaro cavaloao Fernando. Bemprecisa de arejar a cabeça, e de ter alguma surpresaagradável.

PaláciodeBuckingham,abrilde1838

PaçoRealdeSintra,28dejunhode1838

enhotantapenadenãomepodermeternumpaqueteeiraLondresassistiràcoroaçãodaVitória-queixou-seMaria,enquantocomumatigeladepapanamãodavadecomeraPedro,sentadonumpequenomurodepedranumdospátiosdopaço.

Numbanco,oblocodepapelsobreumaperna,olápisacorrerdepressa,Fernandoprocuravaapanharestacenaqueodeliciava.

-Nãosedistraia,porquesenãoessemeninofechaabocaeenche-lheovestidodeaveia-dizia,rindo,enquantoMariasezangavacomo ilho,quefaziasemprebirrasàhoradasrefeições.

- Deve sair a si, com esta falta de apetite, porque a mim não sai,quesempre adorei comer, como se vê pela igura com que estou - disse arainha, dando uma palmada na mão de Pedro, que procurava deitar oprato ao chão. - Mas diga lá, não tem inveja do duque e da duquesadePalmela?

Apesar de as relações estarem inexplicavelmente frias, Maria decidiraque não havia mais ninguém à altura de representar Portugal numacontecimento tão importante, e pedira aos duques que estivessempresentes.

Fernandoacenouquenão,nãotinhainvejanenhuma.PelaprimeiravezdesdequechegaraaPortugal,nãoqueriaestaremmaisladonenhum.

Maria sorriu, feliz. Pressentia esse contentamento, que a deixavamuitomais sossegada. A explicação estava ali, no topo da serra, ondeo reiencontraraasruínasdoantigoconventodaPena,quecompraraaoEstado,assimcomoaterraqueoenvolviaeoCastelodosMouros, cujasameiasseviamdalidebaixo.

- Já temarquitetoparaoprojeto? -perguntouenquantopousava Pedro

no chão e o deixava pôr-se de pé agarrado à borda do pequeno lago,chapinhandonaáguacomamão.

Fernando há dias que não dormia, entusiasmado com os planosparatransformararuínanumpalácio,numpaláciocomoosdasuaterranatal.

-ObarãodeEschwegeaceitou.Nãoéumpro issional,masviajoumuito,esteve no Brasil, no Reno, em Sevilha, em Granada, e tem talento, temmuitotalento.ConvideitambémJoséCinatti,ocenógrafodoSãoCarlos,umitaliano cheio de gosto, e entre os dois acho que aPena vai icarmemorável.

- Não lhe falta inspiração em Portugal - disse a rainha, ligeiramenteenervadacomaconstantereferênciaapaísesquenãooseu.Nãoadmiravaque Costa Cabral, nas conversas que tinham sobre o país e o futuro, aalertasseparaoperigodeoreipareceralheadoda realidade,procurandoconverteropaísnumEstadonórdico.

Fernandoolhou-a,surpreendidocomoseutomfrio:

- Claro que sim. Tomar, os Jerónimos, este paço, tenhomuito por ondemeinspirar,masjáviu,minhaquerida,comoascriançasvãoser felizes láem cima? Tem deme ajudar a pensar os quartos e as salas, oquarto debrinquedosdosrapazes...

Mariariu:

-Olhequedestaveznãotivenenhumavisão,não lheposso jurarqueéumrapaz.

OrostodeFernando,domeubomeadorávelFernandopensoua rainha,iluminou-se:

- Desta vez a visão éminha. Tenho a certeza de que é um rapaz, nempodia ser de outramaneira. Tanto eu, comoDietz, não saberíamos o quefazercomumarapariga...

Não quero descrever a cerimónia, porque não tinha palavras quechegassempara isso.Queriasóregistaraqui,mas julgoquenuncameheideesquecer,quetivetantomedo,tantomedodetropeçar,de nãodizeraspalavraspelaordemcerta,demeenganarnosnomes daspessoas,denãoserdignada coroaqueme colocavamna cabeça.Denão ser a rainhadoImpérioBritânicoque todaagenteesperaqueseja, dedesiludirLordM.,dedesagradaraomeutioLeopoldo.FelizmenteDeusestevecomigo,enãohouvefalhas.Duranteasseishoras dacerimónia,sentia-meacordadeumviolino,quepodiapartir-seaqualquermomento.Masosensaiosservirama sua função, e aqui estouem Buckingham, a primeira ocupante destepalácio lindo que omeutionunca, chegouahabitar, e a retomara rotinadiária, tão intensaecansativaqueacordoàsseisdamanhãedeito-meàsonze da noite,não fazendomais nada senão ler papéis e ouvirministros.Consegui,apesar de tudo, quinze minutos para receber os duques dePalmela,dequegostotanto.ForamcuidadososnasreferênciasquefizeramaMariaeaFernando,nãomeparecendocontentescomoestadodopaís,nemcomain luênciacrescentedeumtalCostaCabral,dequearainhasóme fala de passagem nas suas cartasmas que, ao que parece, temmaispoderdoqueelaquerdeixar fazercrer.Foicaindonasentrelinhasque étinihomemdeorigensdemasiadohtmlildes,ambiciosoecalculista,emborainteligente, julgoquePalmela se lhe referiumesmocomobri lhante. LordM. disse-medepois que os duques pagaramdo seu bolsoas viagens e oscustos de alojamento, e suspeito que inclusivamente opresente quePortugalmeofereceu.Parece-meumadecisãomesmo àMaria, como seuespírito prático: a inal, se os Palmela têm dinheiro, e a coroa portuguesaestá falida,porquenãopedir-lhesquepaguemdoseubolso,enãose falamaisnisso. LordM. e eu aindanos rimos.NãohánoMundooutra rainhacomo ela. Quanto a Fernando, julgo que omeu querido primo ica meioembaraçado com estas decisões, mas peloque entendo só é informadodelasaposteriori.Felizmenteestáfelizcomumprojetodeumpalácioquevai construir, segundo escreve Dietz. Quanto a Dietz, interessa-se porpolítica.HámuitacoisadoavessonoreinodePortugal.

PaláciodeBuckingham,28dejtuúiode1838

PaláciodasNecessidades,31deoutubrode1838

ernandoentrounoquartocomPedropelamão.Desdeosonzemesesqueopríncipeandavasozinho,paraorgulhodospais,eaostrezemesesjáfalavaalemão,ealgumaspalavrasdefrancês.Arainhaestavasentada,recostadasobregrandesalmofadas,eabraçouoseufilhomaisvelho,beijando-onatesta.

-Pedro,olheo seu irmão -disse-lhe,mostrando-lheopequenino Luís, agoladefolhosaemoldurarasuacaradequerubim.

Mariadesatouarir:

-Nãoachagraçanenhumaaumacriaturaenrugadaefeia,quenão fala,nemfaznadaqueseveja,nãoé?

Pedro, de facto, estava muito mais interessado em brincar com oscordõesdodosseldoqueemprestaratençãoaorecém-nascido.

-Pedro,oseuirmãovaichamar-seLuís.Digalá«Luís».

-Lipi,Lipipi-disseopríncipe.

-Lipipi?Estáaouvir,Fernando?OPedrojábatizouo irmão.Éo quedáestamisturade línguasque a pobre criança ouve - sabe-se lá sedizLuísemalemão,francêsouportuguês.

Fernandopassou-lheamãopelocabelo,queascriadastinhamacabadodepentear,osuordashorasdetrabalhodepartoatornarem-nopegajoso:

-Estámuitocansada,minhaquerida?-perguntou,meigo.

- Sinto-me sem fôlego, forammuitashoras, não sei que invenção é estade dar à luz deitada. As índias e as caboclas nunca deixavamque asdeitassemnoGrandeMomento,maspronto, jáestá,enãoénadaquenão

passe comuma canjadeperdiz, seo tolodomédiconãomantiver a ideiadequedevocontinuardejejumpelodiafora.

Fazer a rainha passar fome era um ato de grande ousadia, pensouFernando,quesepreocupavacomavidapoucosaudáveldamulher. Bematentavaconvencerafazerexercício,amontaracavaloeasairmaisàrua,mas, para lá dos passeios no jardim com o ilho, a rainha estava sempredemasiadoocupadaareceberosministrosdoreino,adiscutirosassuntosde Estado com Dietz, ou a escrever cartas a Vitória ouà sua irmã Xica.Infelizmente, a vida sedentária não lhe tirava o apetite,e devorava comgosto os nove pratos que os cozinheiros lhe preparavam todos os dias,apesardosprotestosdeFernando,queabriaoslivrosque iarecebendodeViena, procurando provar-lhe que uma alimentação saudável exigiamaissaladas e legumes, emenos pernas de borrego e empadões de codorniz.Masnãoerahojeodiaderecomeçarassuaslições...

Fernando está feliz com o seu segundo ilho rapaz. Escreveu-me umacartatãodivertida,emquediz:«Estamosmuitofelizes,particularmenteeu,que desejava que não fosse tuna rapariga, o que, confesso,me seria unibocadinhodesagradável,porque,esóentreascrianças, note-sebem,gostomuitomaisderapazes,quesãomaisalegresemais saltitões.»Temgraça.Conta-mequeoreideFrancavaiseropadrinho, eamãedeFernando,aminha tia Augusta, amadrinha. Infelizmente,na carta que lhe escrevi devolta, fui obrigada a falar-lhe de política,pedindo-lhe que tanto ele, comoDietz, procurem que a rainha seja mais razoável no con lito com a Grã-Bretanha a propósito da abolição do transporte de escravos. Fernandoripostou imediatamente, insultandoo nosso embaixador em Lisboa, comumaviolêncianadahabitualnele,porissoohomemdeveserrealmentedopior que há. Dei-a a ler ao meuquerido lord M., que me garante queemboraosenhormereçacertamenteosepítetosqueoreidePortugal lheconfere,énecessárioapelaraumentendimento.Tãocuidadoso,aproveitaamensagemparamepedirqueprotejaaminhasaúde,eaconselha-meapassearmaisnojardim.Nãoseioquefariasemele,eparadizeraverdadesubitamente nãotenho grande vontade de receber de novo os primos.Lord M. diz que épreciso muito cuidado, porque os meus súbditosdetestamestrangeiroseeuprópriasóagoracomeçoaseramadaporeles...

Estoumelancólica.

PaláciodeBuckingham,novembrode1838

JardinsdaPena,Sintra,26deagostode1839

ernando,empéemcimadeumaenormerocha,disseparaSaldanha,aoverosburrosemfilaasubiremaserra:

-Arainhaestáaíachegar.Aindahápoucoparaver,masestáumdiatãobonitoqueaindabemquepodemosfazerumalmoçosobrearelva.

Saldanha, que regressara do exílio em Inglaterra e andava tãoentusiasmadocomooreicomasobrasnasuaquintanaencostada colina,mandouqueoscriadosestendessemamantasobreosfetos,rindo:

- Piquenique, senhor D. Fernando, é como lhe chamam agora emInglaterra, e estámuito namoda. Só que por lá levam uns ovosmexidospara pôr dentro do pão, e nós, por aqui, o mínimo que servimos é umensopadodeborrego,seguidodeumcozido.

Fernandosaltou,ágil,derochaemrocha,paraaterrarpróximodo localescolhidopelomarechal:

-Esperoque tenhamais jeitoparaescolheros seus camposde batalhado que a decidir onde vai sentar senhoras e crianças num«piquenique».Querveroprínciperealeosseus ilhosacaíremdaqui abaixo-protestou,mandando chegar as toalhas deitadas no chãopara mais longe doprecipício.

Saldanhaencolheuosombros:

-Osmeus ilhoseosinfantessabemmelhordoqueseatirarporcolinasabaixo...

Saldanhasentou-se,virandoacaraparaoSol:

-Perigoso, perigoso é andar nos corredores do Paço das Necessidades.Fujo de Lisboa para não me cruzar com os ministros de Sua Majestade,

sobretudocomaqueleCostaCabraleoirmão,queédamesmaestirpe.

Fernandofranziuosobrolho:

-Sequerpazesossego, façacomoeuenãofaledessesenhoraopé darainha.

Saldanhaolhou-odesoslaio:seráquenãosabiaquearainhanão ouviamais ninguém, não respeitava mais ninguém senão esse seuministro,embora em família ingisse não suportar os seus modosgrosseiros eautoritários? Guardaria esse trunfo para outro dia, porque hoje o céuestava azul, e não queria estragar o dia ao rei. De qualquermaneira, osburros, cansados e suados, chegavam ao pico daserra, e Saldanhaadmirou-se que o pobre animal conseguisse trepar aquilo tudo com arainha a cavalgá-lo. Estava cada vez mais pesada,e embora retivesse aexpressão de menina, e o vestido fosse do melhorbom gosto, o corpodeformava-se com as gravidezes e os jantares opíparos. Um piqueniquefar-lhe-iabem,pensouomarechalcomvontadederir.

Pedro e o bebé Lipipi, como agora todos os da casa lhe chamavam,chegarampoucodepoisdecarruagem,comDietzeumaama. Juntaram-seàsoutrascrianças,enquantoosadultossesentavamnatoalha,ea rainhanum pequeno banco que fazia parte dos apetrechostransportados paraestarefeiçãoaoarlivre.

Maria suspirou fundo. Mesmo antes de subir a serra, recebera umacarta de Costa Cabral e outra de Vitória. Uma e outra eram sobre a leiapresentada no Parlamento britânico a autorizar os navios inglesesaintercetar os navios portugueses que transportassem escravos, ou, maisprecisamente, «suspeitos de transportar escravos». A de Costa Cabral,aconselhava-a a protestar, a enviar Palmela a Londres para discutir oassunto;aoutra,adeVitória,pedia-lhecalmaeserenidade.

Dietz,encostadoaumtroncodeumcarvalho,observava-a.Hojeaoserãoperguntar-lhe-iaoqueapreocupavatanto.

As cartas de Maria são únicas, não me canso de o constatar.Sinceramente comovem-me, desesperam-me, fazem-me rir, mas nemsempremerionaspartesaquearainhadePortugalachagraça.Adehojeé de deixar qualquer um perplexo. Elogia Fernando, e ele é tão elogiávelquenãomeespanta,dizendoqueconstróiopaláciomaisbonitodaEuropa.Depois,quandonadaofazesperar,lança-semunadiatribefuriosacontraahipocrisia britânica, dizendo que não aceitaque os navios britânicosintercetem os portugueses, que a falsa moral britânica lhe mete nojo,primeiroporquenãoháescravosnosseusbarcos,edepoisporqueoqueos ingleses querem é pura e simplesmente que as colónias portuguesasnãotenhammãodeobra,produzindomenos.Esquecequeestadecisãofazparte de um acordo pelo qualPortugal recebeu há dois anos a módicaquantia de 600 mil libras para indemnizar eventuais perdas com aaboliçãodocomérciodeescravos, queaceitaramsemprotestoegastaramentretanto, certamente semdeixar rasto, daí não se lembrarem! Aingenuidade com que a rainhase lança nestes discursos é tão genuína,argumentando sempre quefala desta forma porque eu aos 9 anos deidade lhe terei dito quegostava da sua franqueza, que nem me consigoofender.Nomeiode todaadiatribe temalgumarazão,eesforço-meparatransmitir assuas opiniões (de forma mais organizada!) a Palmerston.Graças àminha intervenção já amenizaram alguns dos artigos daconvenção.Mantém-se,noentanto,aameaçadequeseatédia15demaionãoaassinarem,aGrã-BretanhatomaráaspossessõesdeGoaeMacau, enão tenho poderes para desautorizar o Parlamento, nem tão-pouco paraimpedir que façam cumprir os acordos. Tentei explicar a Maria que aquestãodosescravostemumimpactograndenaopiniãopública britânica,equenãoévantajosoparaPortugalquesepensequeopaísnãocumpreoprometido e, mais do que isso, que pratica um crime tão abjeto comotra icar vidashumanas.MasMarianementendeporque é quenãopossofazeroquemepassapelacabeça,dadoqueéaquiloqueelafaz!

Por mais extraordinário que pareça, esta carta tão política acaba comconsiderações acerca de tuna outra em que lhe contei que gostavaextraordinariamente de dançar. Não resisto a transcrever para o meudiário este parágrafo: «Pois a mim cansa-me muito dançar, e quando aprimativerfilhoscompreenderámelhoroquelhedigo,everácomoédocetratardascrianças.»Nemmeatrevoacontradizê-laatéesta desagradávelhistóriadaescravaturaestarresolvida,ouarrisco-mea quemeproíbadedançar!

CastelodeWindsor,26deagostode1839

PaláciodasNecessidades,18deoutubrode1839

ConselhodeEstadoocuparatodoodiadarainha,e,piordoqueisso,deixara-airritada.Comoéqueerapossívelqueàscartasdogovernoinglêsenviadasemabrilemaioaindanãosetivessedadoresposta?

- Os senhores não sabem despachar os assuntos? Vê-se bem que têmmulheresecriadasemcasaatomarcontadosfilhos.

Os ministros olhavam-na, já habituados ao tom despótico darainha,quando alguma coisa virava o seu humor. E de dia para diaMaria sentiamenos paciência para estes políticos caprichosos,que não se entendiam,numcorrupiodegovernosaqueperderaaconta.

-Eoqueéqueossenhorespensamfazeremrelaçãoaoacordo sobreocomérciodeescravos?-perguntara,furiosa.

Ribeira de Sabrosa assoara o nariz, tossira duas vezes, e acabara porresponder,numtominsolente:

-Nada,senhoraD.Maria.Os inglesesqueremmaisumavezdar ordensnumpaísquenãoédeles!

Mariaprocuroucontrolarairritação:

- Não pensámos nada disso quando recebemos e gastámos odinheirodeles, senhor ministro. E os senhores vão pôr em risco as possessõesportuguesas, pela incapacidade de responderem a uma carta no prazoestipulado?

Osilênciodosministrossentadosàsuafrentefezsaltaratampa. Pôs-sedepéeaproximou-sedajanela,olhandooTejo:

-Têm medo de perder as próximas eleições, de perder o lugar nosvossos clubes, se derem a impressão que compactuam com Inglaterra -

suspirou a rainha, bem consciente do ódio que os jornais espalhavamcontraaGrã-Bretanha.-Narealidade,atévoseraconveniente?Ficávamossemasnossascolóniaseossenhoresatéganhavamcomisso.Quetristeéanossapolítica,queinteresseirossãotodos,elesevocês- suspirou, fazendoumgestodequeareuniãoestavaterminada.

Os ministros, zangados e humilhados com esta rainha de 20 anos quelhesfalavaassim,saíramcabisbaixos.

OcriadoanunciouAntónioBernardodaCostaCabral.Recebia-otodasastardesnasuasaladetrabalho,queabriaparaoterraçoondecolocaracadeirasparasesentaralernosdiasmaisensolarados,infelizmentedeespaldardireito,porqueoespartilhonãopermitiaoconfortodeumacadeiradeverga.

Costa Cabral entrou e beijou-lhe amão, os olhos nos seus, e a sua vozgraveeserenafoidiretaaoqueaperturbava:

-Nemprecisademedizernada, senhoraD.Maria. Já sei que lhes deuumacoça,eachoquefezmuitobem.

Maria suspirou, aliviada. Ao almoço, Fernando dissera-lhe que foraexcessiva,masagoraCostaCabralelogiavaasuacoragem.Decididamente,gostavadestehomem.

-Procuro jogarnosdois campos.Detestoo embaixadorde Inglaterra epassoosdiasadizê-loàminhaprima,arainhaVitória,masdepois,quandosouconfrontadacomodesleixodosmeuspolíticos, oqueéque lhepossoresponder? Como é que posso defender queintervenham menos, seestamossempreaprecisardoseudinheiro,daproteçãodasuaarmada,detudo e mais alguma coisa? Não passa maisum mês sem que corra comtodos,eonomeieasiparameuministro, dizia-eCostaCabralprotestava.Masfaziaplanos.

Entendera que a rainha gostava de quem lhe falasse sem rodeios,mostrasse coragem e determinação, e era assim que lhe falava,envolvendo-analisonja,teiaemqueerafácilenredá-la.

Nos últimos tempos Dietz encontrava sempre forma de entrar na salaenquantoconversavam,eacabavaporficar.

GostavadeCostaCabral,eachava-oumhomemdepulsoforte.Eeradepulsofortequeestepaísprecisava!Dissoestavaacadadiamaiscerta.

Os frescos da casa de jantar estavam prontos e amesa que Fernandoencomendara chegara na véspera. Desde que viera para Portugal queprotestava contra o costume das mesas retangulares, alegando que asmesas redondas tornavam o ambiente mais íntimo, e muitomais fácil aconversaentretodos.Aospoucos,eàmedidaqueacerimóniaquefaziaseforadesvanecendo,atrevera-seacomentarqueo paçoprecisavadeobras,de remodelações que o tornassem um paláciomais digno, e não apenasaquilo que era, o refúgio de um rei que vinha em romagemuma vez poranoàSenhoradasNecessidades,comoseuchãodetijoleira,oslambrisdeazulejo,eosseustetosemabóbada.

Mariaacolheraoprojetodenovocomentusiasmo,umpassatempo paraosmesesdeinverno,emqueoreiseviaobrigadoainterromperasobrasemSintra,eaoserãodebruçavam-seosdoissobreos esquissosquefazia,discutindo as soluções que Fernando imaginava.Mostrara-lhe o desenhode uma mesa para doze pessoas, em madeira de cerejeira, e Maria riraabertamente quando lhe dissera que as paredes teriam parras de uvasdouradas nas portas,mas que imaginavapintar frescos nas paredes comrabanetesecouves,aoladodasmaisconvencionaisfrutasepeçasdecaça.

Agora a mesa chegara, e Fernando espreitara no seu quarto de vestirparalhedizer:

- Maria, mandei fazer uma cadeira alta de bebé e vou sentar Pedro àmesa-sóhoje,paraainauguraçãodanossanovacasadejantar.

As criadas olharam, espantadas. Era de facto um tempo diferente, esteem que meninos de 2 anos vinham à mesa e a hortaliça era temadedecoraçãonasaladosreis.

Mas quando Maria se sentou, Pedro na cadeirinha ao seu lado,Fernando,Dietz,aimperatrizeaprincesaAmélia,convidadasparaestediamais íntimo,nãoconseguiu falardasnovasobras, talaexcitação que umacartaquechegaradeVitórialhecausara:

-Fernando,temosdebeberàsaúdedeVitóriaeAlbert.Arainhapediu-oemcasamento-dissecomumagargalhada.

Fernandoergueuocoponumbrinde:

- Ganhei a aposta, bem disse que a única questão era com qual dosirmãoscasaria...

Mariariu,encantada:

-Mas iz a aposta quando o reiWilliam estava vivo! Agora nada podiaimpedir o tio Leopoldo de levar a sua avante. E desde aquelaprimeiravisitaqueeravisívelqueAlberteraopreferido.

-Também é o meu, desde pequeno que é o meu primo favorito. Éinteligente,temvontadeprópria.

-Só o facto de ter sido ela a pedi-lo em casamento é divertido. Masninguémpodefazerumatalpropostaaumarainha-disseMaria,feliz porternascidorainha.

Fernandonessanoite,aconchegando-seaelanacama,brincou:

-Nãomequerpediremcasamento?-eambosseabraçaram,rindo.

RecebiuniacartadeMaria,adar-meosparabéns.Comoveu-me.Dizquemequerfelicitarpelaminhaescolha,equecomomeubomcoraçãotemacertezadequevouser felizcomomereço.Tão felizcomoela.«QueAlbertsejacomoFernandoeaminhaqueridaprimaseráperfeitamentefeliz.»Ésempre tão generosa. Fernando não me escreveu ainda. Não sei se teráicadoumpoucociumentocomestemeucasamentocomoseuprimo,comeste nosso primo, porque é tantomeu, comodele. Talvez seja vaidadedaminhaparte,masseráquenãopensaquepoderiatersidoeleoescolhido?Durante muito tempoconfesso que por vezes pensava nisso, mas agoraperceboqueAlbertémaisvelho,maisculto,emaisfirmedoqueFernando.Tenhoa certezadequevamosser felizes,amo-otanto,mastemoquenãolhesejafácilocuparumlugarsubalterno,queserásempreoseu,porqueopovodestanaçãonãoaceitaquedividaomeupodercomninguém.TenhodeiradespachocomlordMelbourne.Confesso,sóaquinomeudiário,queme custoudar-lhe anotíciadomeu futuro casamento. Podia sermeu pai,

diz-me sempre Maria, mas liga-nos qualquer coisa de tãoprofunda quenada,nemninguémsepodecolocarentrenós.

Não sei se 9lbert icava contente se soubesse que dei a lordM. o anelcontraomau-olhadoqueMariamemandouhátempos,umanelqueasuairmãXica lhemandoudoBrasil.Enviou-mequasecomo tunabrincadeira,porquenemela,nemeu,acreditamosnestassuperstições,masaverdadeéque tive unia vontade irresistível de que fosse lord M. a usá-lo. Pedi-lheque me desse a alegria de o colocar no seu porta-chaves.Estou ansiosapelonossoencontrodeamanhã-seráqueovaiusar?

CastelodeWindsor,18denovembrode1839

PaláciodasNecessidades,26denovembrode1839

aldanhachegoudeSintra,asbotasenlameadas,obigodegelado,ocabeloencaracoladoecinzentoalisadopelachuva.Arainhamandara-ochamar,aeleeaPalmela,eambossabiambemoquepretendia.

-Nomeeiumnovoministério,comRodrigodaFonsecaàcabeça-disse-lhes.

Saldanhaacenouacabeça,deacordo,naqueletomirreverentecom quefalavasempreàrainha:

-Bemlhedissequeeraoquedeviafazer.Osinglesesjánãosuportavammaistempoasevasivasdogovernoanterior.Aameaçacontinua,enãomeparecequeestejamdispostosafazerfiguradeparvos.

Palmela concordou com a cabeça. Não usaria as palavras de Saldanha,nem teria incluídoCostaCabral na pasta da justiça,mas entendia a forçaquearainhavianaquelerapazde35anos,determinadoasubirnavida.

- Mas só um dos senhores, ou os dois, serão capazes de dissuadir osingleses, são os únicos que lord Palmerston conhece e respeita, por issoquerosaberqualdosdoislávai...

Palmelasentiuumcalafrio.Estaeramaisumadaquelasviagensdifíceis,que a rainha contaria que saísse do bolso do embaixadorenviado, maisumaemqueorepresentanteportuguêschegariaaLondresdemãosepésatados, sempoder garantir que aquilo que decidisseseria cumprido peloministériodeLisboa.

-TenhoacertezadequeéumamissãoparaomarechalSaldanha. Aindaontemosdeputadosfalavamdequeeraoúnicoportuguêscapazde levaracaboumatarefacomoesta.

Fernando,queestavasentadoaumcantodasala,emsilêncio, trocouum

olhar divertido com o duque de Palmela: não tinha dúvidanenhuma dequeovaidosodomarechalcairiaquenemumpatinhonestaartimanhadosenhorD. Pedro.O pobre homem, vítimade dois exílios, comuma famílianumerosa, a que tinham nascido entretanto dois ilhos pequenos, bemmereciaumpoucodepazesossego.

Saldanhamordiaoisco,exuberante:

-Alguémtemdesercapazdeacabarcomestedisparate.Nãopodemoscontinuarafazerpolíticaapenasparaosvotos.VossaMajestade sabequearriscoomeunomenestaoperação,porquenestemomentoosinglesessãoosbodesexpiatóriosdacrise,comoacontecesemprecomosestrangeiros.Mas só aceito partir se me forem dados plenospoderes - acrescentou,virando-separaPalmela,comosefosseoduquequesepudesseopor.

Palmela, que aceitara voltar a tomar o seu lugar nas Câmaras, anuiu,encorajador, con iante que estava no novo ministério, que acreditavapoderfinalmentetrazeralgumapazaoreino.

-Seassimnãofor,nãovaleapenairtãolonge-afirmou.

Saldanhainchoudecontente.Paradizeraverdade,jáestavacansadodaagricultura que tentava praticar em Sintra, mas que apesar dosinvestimentos não dava em nada, e estava cheio de vontade de voltarapartir.Pediulicençaàrainha,parairtratardaviagem.

MariaretevepormaisunsminutosoduquedePalmela.Nãoseolhavamnos olhos, como antigamente, não sabia bem explicar o quese tinhapassado entre eles. Palmela podia ter-lhe explicado que icaramagoadocomaindiferençaquemostraraaoseuexílio,aosdramas docasamentodeDomingos,eamilpequenosdetalhesquerevelavamquelongedavistadarainha,longedocoração.Masarainhanãolhe deuoportunidade.Limitou-seadizer:

- Senhor D. Pedro, peça por favor à senhora D. Eugénia que cá venhahoje à tarde com os mais pequenos. Queria muito que Pedro e Luísbrincassemcomosseusmaisnovos...

O duque, transformado em moço de recados, baixou a cabeça eprometeutransmitiramensagem.

Fernando, que riscava mais um plano nos papéis estendidos sobre amesa, naquela sala onde havia luz até mais tarde, sentiu-se angustiado.Palmelanãoesqueceriaeste tratamento,enãoseria fácil levara rainha aperceber a injustiça com que o tratava - em muitas coisas herdara otemperamentodopai.

Nessa noiteMaria foi aos aposentos dos príncipes, já depois dojantar.Gostava de os ver dormir, a sua respiração ritmada e suave descansava-lheaalma,ajudava-aadescontrairdediascomoosdehoje,tãotensos,tãocomplicados,comtantojogodecintura.Quandoabriusuavementeaporta,viu a luzdavela a cintilarnoescuro, soba imagemdeNossaSenhoradaGlóriaqueinsistiaemternoquartodospequenos,esobressaltou-secomavozdePedro:

-Mãe?

Apressouopassoatéàcamadoseufilhomaisvelho:

-Oqueéquefazacordadoaestahora?-perguntou,amãoprocurandooscabelosfinosdoseupríncipe.

-Mãezinha,nãoconsigodormir,conte-meumahistória.

Mariasorriunoescuro.

Sentada na beira da cama, Maria fechou os olhos e começou acontarcomo a avó Leopoldina partia em expedições pela selva, ondeosmacaquinhos saltavamde ramoemramo, acompanhando-apelo caminho,e os camaleõesmudavamde cor paranão se distinguirem das folhasporondepassavam.

-Eospapagaios,mãe,fale-medospapagaios.

Mariamergulhounamemória:

- Por vezes aminhamãe levava consigo o Jaime, ou algum dos nossosescravos,equandoviaumpapagaiodepenasbrilhantes,domaiscoloridoamarelo aos tons de azul da cor do mar, construíam armadilhas eapanhavam-no. A avó queria mandar os mais bonitos para obisavôFranciscoouparaatiaMariaLuísa,mas,antesdeencontrar umportador

seguro, guardava-os numa gaiola enorme na varanda, a que eu chamavadevarandadospapagaios.

-Aquetinhaarede,mãe?QuandoéquepedeàtiaXicaouaotioPedroparanosmandaremumarede,mãe?

Mariaaconchegou-o,dando-lheumbeijonatesta:

-Amanhãmesmoéomeninoquevaiescreveraoseutio,oimperador,apedir-lheuma.Masagoradurma,esonhecomoBrasil,que umdia talveztenhaasortedeconhecer.

-Quandoforrei,mãe?

Mariariu:

- Não tinha a intenção de lhe deixar o trono assim tão cedo, preferiaviver mais um bocadinho e que o menino Pedro lá fosse antes deeumorrer.

Edebruçando-se,beijou-odenovo:

-Agoranemmaisumapalavra.

Pedroobedeceu.

Gostava que Maria aqui estivesse hoje. Sinto-me sozinha, com tantascoisasporresolver.Albertestáa levantarproblemaspornãoter nenhumcargo o icial que lhe permita intervir a bem do país, diz quenão querandar aí pelos cantos sem fazer nada, logo ele que tem tantasideias decomopodemoscontribuirparaumasociedademaisjustaemaisequitativa.Quer construir casas para os pobres que a luem a Londres e às grandescidades na esperança de encontrar trabalho nas fábricas, tem ideias decomo a revolução que chegou já à indústria podeser estimulada, mas averdadeéquepormaisvoltasquedêàcabeça,pormuitoquefalecomospolíticosquemerodeiam,com lordM.eo tioLeopoldoemparticular,nãoparecepossívelqueseja,para já,mais doque tinipríncipeconsorte...que

monta a cavalo, vai à ópera e jogaxadrez.Maria faz troça, e diz quemedevolve os conselhos que lhe deia elaquando se casou, e temrazãoquelhedissequenenhumhomemdaestaturadeFernandoeAlbertaceitariaandara roçar-sepelasparedes semnadadeútilpara fazer.Ridiculariza-me, a irmando que nãopercebe porque é que ela tem de reinar emconjunto com Fernando, eeu quero unia coisa diferente para mim. Nãopercebe que não sou euque quero, é este país, este sistema que não opermite.

Albert protesta que quer trazer consigo os seus conselheiros,mas estáfora de questão. Os seus conselheiros terão de ser homens que contemcom a aprovação do nosso Parlamento, e tem sorte, porque o secretárioquelordM.teveabondadedelhesugeriréumhomemexcelente.

Mariadizqueavidadetunarainhacasadaémuitofácil.Sóseforadela,quefaztudonascostasdomarido,mantendoaaparênciadeesposadócileobediente.MasAlbertnãoéFernando.

CastelodeWindsor,27denovembrode1839

PaláciodasNecessidades,20dejaneirode1840

edrochegoucomumlivronamão,umlivrocomasletrasdoalfabeto,igualaoqueatiaLuísalhemandaraempequenina.

Mariaexclamou,satisfeita:

-Amãeaprendeualerporesselivro!

Pedro,apesardeterpoucomaisde3anos,olhou-amuitosério:

-Mãe,estão-mesempreainterromper,eoDietzmandou-mesaber tudoistoatélogoàtarde-disse.

Mariariu:

-Que disparate, ilho. Venha cá para a mãe o pentear, porque está nopaço um grande pintor que a prima Vitória mandou para lhes fazer oretrato. Queremos tê-los prontos para os oferecermos como presente decasamento.

Epuxandoo ilhoparajuntodesi,penteou-lheocabeloloiro,uma franjaque insistia em cair para os olhos azuis, subindo-lhe a gola defolhos, eendireitandoovestidobrancoderenda,comumcintode pele,asbotasdecamurça nos seus pés ainda tão pequenos. Beijou-ona testa, emandou-oavançar pela mão da aia para o escritório, ondeHenri Grevedon jáprepararaocavalete,atelaeospincéis.

- Quando ele lhe disser para estar quieto, não se mexa, ouviu? -recomendou-lhe.

Pedrovoltou-se,comumaexpressãotrocista:

-Precisademedizerumacoisadessas? IssoéparaoLuís,quenão vaiserrei...

Aslinhasdorostodarainhaendureceram:

-SenhorD.Pedro,issonãoémaneiradefalarnemcomasuamãe, nemdo seu irmão, ouviu? Mais uma gracinha como essa e vai direito para acamasemcomer...

Pedro baixou os olhos. Sabia que a mãe não brincava, e a aia que olevava pela mão baixou-os também. A rainha era meiga, mas implacávelquandopressentiaamenorfaltadeeducação.

Maria desviou a atenção para o bebé Luís, tão diferente do irmão. OvestidodeLipipieraparecidocomodo irmão,mascintadopor uma faixadesedadeumazulsuave,asbotasminúsculas,queatéseadmiravacomoé que o sapateiro as fora capaz de fazer. Soltou-lhe os caracóis com osdedos,paraosdeixarmaisleves,enumavozmaissuaveinsistiu:

-EomeninoLuís,vaificarquietocomoomano,nãovai?

Lipipiabanouquenãocomacabeça.Mariariu.

-Vai,simsenhor, icasossegadootempoqueosenhorpintoro mandaricar, está bem? Quero que a prima Vitória veja como os dois príncipesportuguesessãolindosebem-educados...

Lipipi choramingou quando a aia o tirou do colo da mãe para o levarparaasalaondeHenriconversavacomPedro.Nãofaziaoutra coisasenãopintar o retrato das cabeças coroadas da Europa, sempre a mando darainhaVitória,quequeria todososprimosnasuagaleria,e se retratarosinfanteseraumprazer,pintararainhaMariadeforma a lisonjeá-la jáeramaisdi ícil.Apelesuaveeosolhosexpressivos icavambemnatela,masoexcessodepesotornavaasfeiçõesdemasiadoinde inidaseproeminenteoduplo queixo, para não falar nas formas avantajadas do corpo. Aos 21anos,ameaçavaperderrapidamenteabelezadajuventude.Felizmente,sólhetinhampedidoumaminiaturadorosto,eoseusorrisoeraencantador,suspirou,aliviado.

OqueHenriGrevedonnão sabia, e que a própria rainha sóperceberahá dias, era que estava de novo à espera de bebé. Maria confessara-oapenasontemaFernando,quandoelevieraaconchegar-senasua cama,apretexto de que o paço estava frio e húmido e que o seu quartoainda

cheiravaa tinta frescadasúltimaspinturas.O rei icara feliz, seria pai deum terceiro ilho em tão pouco tempo, erammesmo abençoados, dissera-lhe, entusiasmado.Depois, tinham rido juntos, ela coma cabeçaaninhadacontraoseupeito,sentindoosseusdedosapentearem-lheo cabelo, numgestosuave,dedosqueforamdepoiscorrendooseucorpo, atéqueofrioeahumidadedesapareceram.QuandoFernando,comum gemido,sedeixoucairsobreoseucorpo,Mariatapou-lheaboca,arir:

-Nãoestáfartodesaberquesónospodemosunirparaprocriar?

Fernando reboloue icoudeitadoao seu lado, osolhosnaspinturas doteto:

-Eparaquetenhamos,juntos,tantoprazer?

Arainhariu:

- Se fosse a si não contava nada disso ao seu confessor. Se lheperguntarem,digaapenasquesódormecomigoparaasseguraradinastia.

-E a senhora que justi icação tem? - perguntou-lhe, fazendo-lheumafesta.

- Submeto-me aos prazeres da carne, para que o meu marido nãoprecisedeirprocuraroutrasmulheres-dissearainha,subitamenteséria.

Fernandoenterrouacabeçanoseupeitovolumoso:

-Maseunãoquerooutrasmulheres...

Maria sentiu os olhos encherem-se de lágrimas. Ninguém algumavezfora, ou seria, tão bom como o seu Fernando. Como gostaria de acreditarque as suas artes superavam as das mulheres que nalgumas ruas dacidade de Lisboa ofereciam o corpo... temia-as, temia que o rei acabassepor se fartar dela e procurasse outra. Era preciso entretê-lo, cansá-lo,pensoupelamilionésimavez.

- Como vão os seus projetos para a Pena? - perguntou, como que porinstinto.

Fernando, entusiasmadamente, falou das suas obras. Fossem elas assuasrivais,pensou,satisfeita,arainha.

Confessei a Maria a minha primeira guerra com omeu futuro marido.Albert queixa-se por não passarmos a lua demel longe deLondres,masesquece-sequeé completamente impossível a rainhaestar longemais doqueunioudoisdias.Alémdisso,ficotunapilhadenervossenãoestivernocentrodosacontecimentos,deformaapodervereouvirtudooquepassa,e até a querida tiaAdelaide, rainha viúvae quepassoupor tudo isto, dizquetenhodecomparecernacorteaosegundodia.Mariarespondeu-nieadizerquemecompreende,masquenãomedevoesquecerdequeomeumaridoestaemprimeirolugar.Confessoque iqueiirritada,porqueéumarespostamuitosonsa,vindadealguémquenuncasaidecena,nemdeixaopobreFernando dizertunapalavrasobrenadaqueimporta.Suponhoquesómequeria ajudar, equeestápreocupada comaminha felicidade,masnão deixode sentir que quer passar sempre a imagem de tuna esposaobedientee servil, quando todos sabemos que não delega o poder, nemporumminuto.

Mas à parte esse pequeno parágrafo, só de facto uma carta da primaMariamepodiafazerrir.Tinha-lheditoqueesperavaserpoupadaa tunagravidez tão cedo, até porque a ideia de tun partome horrorizava e nãotinha especial gosto por crianças, preferindo mil vezes ter tempopara omeuadoradoAlbert,eparaosassuntosdomeupaís.Oquefuidizer!AboadaMaria icou tãochocada,quemeescrevede formaveementee sentidaque quando se ama alguém se deseja ter ilhosdessa pessoa. Discordo,masnãovoucairnaasneiradelhefalarmaisnoassunto.

PaláciodeKensington,20dejaneirode1840

PaláciodasNecessidades,14defevereirode1840

ernandopuxouacadeiraparajuntodalareiraeabriuoenormeenvelopequeacabaradechegar.Maria,comumvestidoazulsolto,estavasentadajuntodele:

-Seháumacoisaqueadoronesteestadointeressante,époderlivrar-medoespartilhoe sentar-medenovo comoumapessoanormal - suspirou. -Quecartaéessa,Fernando?

- Da minha mãe, a quem pedi que nos contasse todos os detalhesdocasamentodeVitóriaeAlbert-suspeitavaquequisessesabertudoomaisdepressa possível. E Vitória certamente não lhe poderá escrever nospróximostempos...

Mariadeuumagargalhada:

-Achaquesim?-EtiroudobolsoumacartadeváriasfolhastimbradascomasarmasdarainhadoImpérioBritânico.

Fernandoespantou-se:

-Issoéqueéterumtrunfonamanga!Quandoéquearecebeu?

- Hoje de manhã, e é um bocadinho íntima, não sei se lha possoler -disseMaria,comumarmisterioso.

Fernandoabriuacartadamãeepareceuindiferente:

-Sepreferirnãoaler,entendoperfeitamente.

Mariaatiroumaisumapinhaparaalareira:

- Nunca percebi como é que controla a curiosidade dessamaneira. Euseriaincapaz.

Fernandofranziuosobrolho,aexpressãomaiscarregada:

- Isso sei eu! Explique-me porque é que continua a espreitar pelasfechaduras, como se fosse uma criança, e uma criançamal-educada,paraser franco? Descon ia precisamente do quê, quando vigia asminhasreuniões com os arquitetos? E já se comenta que é apanhadafrequentementeaespreitarascriançasabrincarnoquarto...

Maria corou, varrendo omármoreda lareira coma vassoura pequena,para disfarçar o embaraço. Nem ela sabia dar resposta à pergunta domarido.Lembrava-sebemdecomoescutaraas conversasdopainaqueledia em que demitira amarquesa de Aguiar e frei António, e de tantas etantas outras vezes em que num impulso irresistível chegava o olho àsfechadurasouoouvidoàsparedes.

Olhandoaschamasda lareira,voltouaveraquele imde tardeem queouvira,pordetrásdaporta,opaiagritarcomamãe,ocorpodamamãeacairnochão,ospassosrápidosdeRosaasocorrê-la.Sentiu umavertigem,epôsamãonacabeça,deixandocairacarta.

Fernandoapanhou-anosseusbraços:

- Pouco importa a explicação, Maria, estou aqui, estou aqui -disse,assustado,apertando-acontrasi.

Mariamordeuolábiocomforça,comtantaforçaqueabocalhe soubeasangue,e levouodedoà feridaque izeranos lábios.Nãogostavadedarpartedefraca,nãogostavadeperderocontrolo,desentir acabeçaesvair-sepor causadeumapergunta tão simples.Deixou-seestar, encostadaaoombro forte de Fernando, e depois pediu-lhe ajuda para se mudar paraumacadeiramaissólida:

-Estebancoéperigosoparaumamulhergrávida-foidizendo enquantose sentava na outra, pegando nas folhas que Fernando lhe colocava nocolo.Desviouoassunto,comoeraseuhábito:

- Vou ler-lhe a carta de Vitória, mas lembre-se de não comentar nadadistocomela.Éumacartaentremulheres.-Ecomeçoualer:

«Maria,tudooquemediziaéverdade.Dacerimóniadocasamentona

ChapelRoyal,acapeladavossaqueridaD.CatarinadeBragança,nãosoucapazdecontarnada,estavadetalmaneiranervosa,eduroutantoetantotempoquelevariahorasapôrtudoporescrito,porissonemtento.Digo-lheapenasquecomentamqueomeuvestidoeralindo,equeeuestavamuitobonita,masnãopossoassegurarseéverdadeoulisonja.Oqueécertoéquedepoisdobanquete,edeterdadoamãoabeijaramilharesdepessoas,fiqueicomumadordecabeçatãoterrível,daquelasquemetomamquandoficonervosa,ederegressoacasafuicompelidaadeitar-me.JulgueiquenãovoltariaaveroAlbertatéàmanhãseguinte,maseleapareceunomeuquartoeestevesempreaopédemim.Maria,nuncamasnunca,passeiumanoiteassim.Omeuquerido,querido,adoradoAlbert...oseuamoreoseuafetoprovocaramemmimasensaçãodequeestavanoparaíso,nuncasentiraantestantafelicidadeealegria.Nemsequersonharaqueapodiasentir.Albertabraçou-meebeijámo-nosvezesevezessemconta!Asuabeleza,asuagentileza,osseusgestossuaves-comopossoagradecerosuficienteporterumtalmarido?Prima,ouvi-lochamar-menomestãoternoscomojamaisescutarafoiumafelicidadeparaládoimaginável.Estefoiodiamaisfelizdaminhavida!»

Puxandodolencinhobordado,Mariaenxugouosolhos,eatéFernandopareciacomovido.EnquantoMarialia,levantara-seepusera-lheosbraçosemredordopescoço,direitoealtoatrásdasuacadeira,eagoradebruçara-separalhedarumbeijo:

-Esperoquenãolhetenhaescritoumacartatãoíntima-dissebaixo.

Mariaacenouquenãocomacabeça:

- Seria incapaz de escrever como Vitória escreve, Fernando. Sou umamulher que não aprendeu a usar desta forma as palavras, pormuitosromancesdaJaneAustenqueelamedesseparaler,masque lheconfessoqueficaramsempreameio...

Devolveuobeijoeconfidenciou-lheaoouvido:

-Nestacasaoartistaéorei,massabeoquesinto,nãosabe?Porsi,meuqueridomarido,davaavida!

Maria respondeu à minha carta de felicidade. Diz-me o que o tioLeopoldo lhe recomendou como receita para um casamento feliz: nãodeixarmmcaqueumanoitepassesobretunmal-entendidoouumazanga.Pormaisinsigni icantequeseja.Garantequeéoqueemfeito,comótimosresultados.Estoucasadahá tãopouco tempo,mas jápercebiquenãosoutunapessoafácil,eAlberttambémnãocedenassuasopiniões,porissonãome posso esquecer do conselho. Não gosto de daro braço a torcer, masnãoqueroperderoamordomeumarido.

Maria diz-me que seAlbert for como Fernando eu serei perfeitamentefeliz,equesómedesejaumafelicidadetãocompletacomoadela,masnãohá dois casamentos iguais, porque não há duas pessoas iguais. Albert eFernando tiveramamesma educação,mas são radicalmentediferentes, eMaria e eu somos como o vinho e a água.Aparentemente, a rainha dePortugaltemmuitomenosdi iculdadedoquearainhabritânicaemaceitarqueéohomemquemandaemcasa,mesmoquandoamulherusaacoroa,mastalvezsejasómaiscapazdoqueeudelevaraáguaaoseumoinho.

Confessoque lhe escrevi tuna carta emque aminha irritação aosseussermões sobre as alegrias da maternidade devia transparecer de formacruel,porquemerespondeuquenãotornariaadesejar-me ilhos, porqueviaquenão tinhanenhumavontadedisso.Epronto, ládizqueme desejaentãoqueomeucasamento«sejatãofelizquantoumcasalsem ilhospodeser».Seestivesseàminhafrentehaviaalturasemquelhebatia!

PaláciodeBuckingham,26defevereirode1840

PaçoRealdeSintra,18dejunhode1840

entadaàmesadasaladejantarcomFernando,Mariatomavaumsuculentopequeno-almoço.Eraasuarefeiçãopreferida,talvezporquelhetrouxessetantasmemóriasdospequenos-almoçosnoPaçodeSãoCristóvão,emquejámaiorotomavasozinhacomoimperador,naquelesdiasdeliciososerarosemquetinhaopaisóparaela.

Ocriadoentroucomosjornais,earainhacalçouasluvasdepelica fina,queusavasempreparaevitarsujarasmãosaoleraquelespasquins,comodizia. Mal os olhos caíram sobre a primeira página deu um grito, eempalideceu.

Fernando puxou apressado a cadeira para trás e aproximou-se,exclamando também em alemão, como fazia sempre que alguma coisa oapanhavadesurpresa.

- Não é possível? Vitória está bem? - exclamou, enquanto Maria lia anotíciasobreoatentadoàvidadarainha.Tinha20anos,acabara decasar,estava grávida de algunsmeses, e agora um louco de 18 anos dispararasobre ela, quando saíanuma carruagemabertaparao seu passeio diáriocomomarido.

- Foi salva por Albert, que se lançou sobre ela impedindo o tiro de aatingir-leuMaria.

-Albertfoiferidoeaindaestáemperigo-acrescentou,aflita.

- Vou mandar um criado ao cais, pode ser que já haja cartas - disseFernando, incapaz de icar quieto perante uma notícia como esta. E saiupela porta, aberta pelos criados atentos, e Maria, a mão sobre o ventreonde sabiaquemaisum ilho crescia, ouviu-odescer as escadasa correrparaopátiodoscavalos.

EscreviaMariaapedir-lhequerezeàSenhoradaGIOria.e111que temtantaFé.LaraquesalveoAlbert.Osmédicosdizemqueotirofoideraspãoequeaferidavaicicatrizarsemprobleinas.liasaverdade équeardeenefebre. e eu não tenho deixado a sua cabeceira. Aminha querida 1 ehzendiz que tudo isto pode fazermuito real ao bebé. uras pouco nu' importa.Nemsequerqueriaengravidareconforiuo-umelealcomainjustiçadetericadologocom ilho.semtempoparatitilarsozinhaconeoAlbert.Eagoraisto?Estoucheiaderemorsos.oqueéqueorepossuiuparadaroanelqueMariameenvioucontraouratr-olhadoalordiM1..enilugardeoofereceraomeuquerido.aoaurordaurinhavida?

PaláciodeI3uckingham,18dejunhode1840

PaláciodasNecessidades,4deoutubrode1840

arfaordenouquefechassemascortinasdasuacama.Fechouosolhoscomforça,etapouosouvidoscomasmãos,enquantolevavamdoquartoasbacias,astoalhastingidasdesangue,todooaparatoetodaagentequedurantehorasencheraoseupequenoquarto.Tapouacabeçacomumaalmofada,paraafastarobarulhodopequenoberçoaserarrastadopelochãodemadeira,paralongedali.Mordeuoslábiossecosegretadospeloesforço,quandopercebeuquedobravamovestidinhoderendasquetodosospríncipesusavamànascença,edeuporsicomamãosobreospeitosdoridos.

Durante horas seguira as ordens dos médicos, suportara as doreslancinantessemumprotesto,masquandosentiradeslizardedentrode sio bebé que há nove meses sentia crescer, percebeu que já não vivia.Endireitara-sesobreosalmofadões,atempodeverosdoismédicos queaassistiamamassajaremopeitodapequeninaMariadaGlória,masosseusbraçossemforça,comoosdeumabonecadepano, disseram-lheoquenãoqueriasaber.Antesquetivessemcoragemde lhedaranotícia,aliviara-os,dizendo:

-NossaSenhoradaGlóriaquislevá-la,quislevaraminhaMaria.

Nãosabia,ninguémsabia,comodescobriraqueeraumarapariga, masarainhanãoprecisavaquelhocon irmassem.Hácoisasqueumamãesabe,murmurara apenas. O padre batizara-a, jurando-lhe que a sua almaescapara ao limbo pela água abençoada, mas a rainha sabia que lhementiam. A pequenina nascera já morta, mas estava certa deque DeusTodo-PoderosoeasuaVirgempadroeiranuncapermitiramamaldadedequeuma criança inocentepairasse alguresperdida.A sua ilhaestavanoCéu,juntodaavóLeopoldina,eseaimperatrizprecisavadeumaMariadaGlóriapequeninajuntodesi,cedia-lha,comooutroracederaasuaqueridaboneca,queaconchegaranocaixãodamãeparalhefazercompanhiaatéàvidaeterna.Agorasóqueria icarsozinha,masamanhãestariapronta,de

novo, para viver. Fernando, Pedro e Lipipi precisavamdela, e Portugal, oque seria do país sesucumbisse ao desgosto, como tantas mulheresfaziam?Sacudiuacabeça,procurandoafastaratristeza.

Depois icara em silêncio. Exigira icar em silêncio, até que Fernandochegara suavemente, sentando-se na borda da cama, as lágrimas arolarem-lhe pela cara, sem dizer nada. A rainha passou-lhe a mãosuavementepeloscabelos:

- Fernando, vá dar um enterro condigno à nossa ilha - disse-lhe,baixinho.

-Seráquetiveculpa?-respondeuorei,baixinho. -Seráquetive culpa,porquesempredissequequeriaterrapazes...

Mariaencolheuosombros,denovoelamesma:

-Nãocomececomisso,Fernando.Tardanadachegarãoaíos médicosaacusar-medenãoterdescansadoosu iciente,detercomidodemaisoudemenos,comoseoshomenspudessemtrocarasvoltasàvontadedeDeus.

Fernando icou em silêncio,mas jurou a simesmo que na próxima vezobrigariaamulherarepousar,aevitarosConselhosdeEstado,a fugirdasconspirações, a não se desgastar em indignações inúteis contra osembaixadores,asuportaroscaprichosdeministrosesoldados.

Mariafezumgestodeimpaciência:

-Eraoquemaisfaltava,quemeacusassemdemataraminhafilha.

Não sei avaliar o desapontamento de Albert,mas dei-lhe tuna ilhaemlugar do rapaz por que ambos esperávamos, mas sei avaliar o meu, e aeste meu diário posso confessar que iquei francamente desiludida.Masagorapouco importa,Vitóriaéumabebésaudável,queronrona como umgatinho,atéàsvezeschamamos-lhePussy.0atentadocontra aminhavidaeamortedobebédeMariadeixaram-mecomaconsciênciadequeavida

é tnn bem precioso, a que quando tudo corre bem damos pouca ounenhumaimportância.

Masnadadissodiminuiofactodeopartotersidodetestável,deixando-me descontrolada e histérica. Não posso aceitar que num paísonde amáquina a vapor já existe, e a ciência encontra cura para tantasenfermidades, asmulheres continuem sujeitas a uni tormento como este,semqueseprocurealiviar-lhesosofrimento.

Por enquanto trazem-me aqui ao quarto a bebé para que a veja, eespero que se transforme muna criatura mais bonitinha. Decididamentenão os acho coisas bonitas, os bebés, embora reconheça que osmaisformosos,desdequevestidos,nãosãotãodesagradáveisàvista.SeMariame ouvisse, meu Deus, ela que me anda a tentar catequizarpara asdoçuras da maternidade. Quero recompor-me depressa, mas ainda mesintotãotristeetãocansada,etodasasnoitessouassaltadaporpesadelosdetunanovagravidez.Quecrueléquetunamulhertenhadeaceitarquecomoprazerquelhedáunir-seaoseumaridovenhasempreaameaçadenove meses de um estado a que ironicamente chamaminteressante,seguidodeumparto,ficandoporfimcomtunacriançanosbraços.

A noite já tinha caído sobre nós, como faz sempre nestes longosmesesde inverno,quandome trouxeram tuna cartadeMaria. «Tenho pena quefosse tuna rapariga, porque eu e o Fernando preferimos mil vezesrapazes»,escrevearainhadePortugal,comaquelafranqueza queatédói.As coisasqueestanossaprimadiz, e logourumêsdepoisde terperdidouma ilha. Mas junto com a carta enviava-me um vestidinho lindo, e unssapatinhosbordadosporela,pedindo-mequelhemanderapidamenteumretrato da pequenina, que a irma amar como se fosse sua. Será que estegozo que temnas crianças nasceude tertido tantos irmãos, enquantoeuas estranho, porque cresci sozinha, sem irmãos ou outras crianças porperto?Aindamelembrodequandonossentávamosnochãoabrincarcomas minhas bonecas, e enquantome preocupava com as roupas, elaembalava-as e dava-lhes beijinhos.Tenho de reconhecer que o instintomaternaldaminhaqueridaMariaébemmaisfortedoqueomeu.

PaláciodeBuckingham,26denovembrode1840

PaláciodasNecessidades,23e24dedezembrode1840

abetochegaradeSintrahádias,escondidodascriançasdopaçoeclandestinamenteintroduzidonograndesalãoporD.Fernando,paraespantodoscriados.

- O que é que o rei vai fazer com uma árvore dentro de casa? -murmuravamascriadas,tambémelasproibidasdeentrarnosaposentos.

CarlDietz,porseulado,chegaradaalfândegacomumacarruagemcheiade caixas de madeira que, contavam os criados na cozinha, eramincrivelmentelevesdetransportar.Nodiaseguinte,apalhaeaspaletes demadeiraapareceramnocorredor,masninguémsabiaoquelátinhaestadodentro.Nosdias a seguir chegaramgrandes embrulhospara os reis, queforamcolocadosnasala,aindafechados.

-Arainhamandouquefossemdeixadosnaantecâmaradosalão,e nemamim disse do que se tratava - queixou-se Lurdinhas, que todos sabiamseramaisbeminformadadopaço.

Asdamaseasaias, osmordomoseos camareiros, e atéospadres queprestavam serviço à capela, não estavam incluídos no segredo,mas asenhoraD.Mariatinhanoslábiosumsorrisopermanente,que contrastavacomosobrolhofranzidodomêspassado.

-Sejaoquefor,tirou-lheacabeçadosassuntosdanação,louvado sejaoSenhor, que ela dormia um sono tão agitado que até temi que lhe dessealguma coisa má - con idenciava Lurdes à criada dos banhos,enquantoenchiam a banheira que o rei encomendara para o quarto de vestir darainha.

PedroeLipipisentiamaagitação,eandavamespecialmenteirrequietos.Aos 3 anos o príncipe real já cantava em alemão O Tannenbaum, e emlatimoVeniteAdoremus,porquearainhainsistiraque decorasseacanção

de natal favorita de D. João IV, «o primeiro da nossa dinastia», comorepetia. Luís, com2anos, era absolutamente a inado,masengoliametadedas palavras, balouçando o corpo e oscaracóisdourados ao colodamãe,virando para ela os seus olhos azuis, e a rainha derretia-se com o seusegundofilho,sempretãomeigo.

Mas na tarde de dia 23, algumas das crianças do paço, vestidas comfatosverdesechapéusembico,queninguémsabiadeondetinhamvindo,correram os cantos do paço distribuindo convites, escritos na letramagnificamentedesenhadadorei.

«Amanhã,depoisdaMissadoGalo, todososmeninosestão convocadospara o grande salão, para verem a árvore de Natal e receberempresentes», leu,comumsorrisonacara,aduquesadePalmela, que vieraaopaçodarasboas-festasàrainha,abarrigaproeminentedosnovemesesquaseaterminarem,adécimasegundagravidez, apesardejáterpassadoos40anos,eumfilhopequenodemãodada.

-TemosumasurpresanamanhãdeNatal?-perguntouaum senhorD.Fernandoquesepôsdepédeumsaltoparaacumprimentar, deixandonochãoLuísePedro,quepintavamcartõesdeNatalparaosavóspaternos.

Oreisorriu-lhe,divertido:

-Tenhodematarsaudadesdaminhaterra,senhoraD.Eugénia. PorláobomSãoNicolautrazoseusacocheiodepresentesedeixa-os emredordagrande árvore do Natal, aqui sem neve, infelizmente. Traz presentes aosqueseportarambem -acrescentou, rindoepuxando parasiFrancisco,omais novo do clã Palmela, e, reparando no ar preocupado do príncipePedro,passou-lheamãopeloscabelos,dizendo:

-Masnãovejonestasalanenhummeninoquenãomereçaumpresente.

A duquesa de Palmela estava curiosa. EmPortugal, até agora, aárvoreerauma laranjeira,eospresentesdosmeninosmaispobres uma laranja.Quantos aos outros, recebiam do Menino Jesus qualquer coisa simbólica,masnadatinhaoardefestaquesesentianaqueledianopaço.

ArainhadesceuaescadadecaracolqueligavaoandarprincipaldasNecessidadesaosaposentosdosfilhos,comopequenoLuísaocolo,e

Pedrovinhaatráspelamãodorei.Mariainsistiraqueseriamospaisadeitá-loshoje,porqueandavamtãoagitadoscomachegadadoNatal,quedeoutraformanãoadormeceriam,argumentou.

Pedro jámudara para uma cama baixa, recusando a de grades, e Luísherdaraacamadegrades«domanogrande»,comodizia.Mariaobrigou-osaajoelharem-seearezaremjuntodascamas.

-«Anjodaguarda,minhacompanhia,guardaiaminhaalmadenoiteededia»-dissePedro,emalemão.Amãeinsistiu:

-Agoravairepeti-loemportuguês,queédosportuguesesqueomeninovaiserrei.

EPedrorepetiu,semprotestos,aoração,paradepoisregressar à línguaalemã,asfrasesbemconstruídas,quenemDietzaceitavaoutracoisa:

-Paizinho,achaquevouterocavalinhodepauquepediaSãoNicolau?

Fernandofezumaexpressãodeespanto:

-Comoquerquelheresponda,meuquerido?Tambémlhepedi lápisdeceranovos,massóamanhãsaberei...

Quandofecharamaporta,Mariadeu-lheumbeijolongo:

-Obrigadapornostornaratodostãofelizes.

Fernando trazia-lhe a memória dos livros que a mãe lhes lia semprenestanoite,livroscomilustraçõesdemontanhasaltasecheiasde neve,deárvores de Natal cheia de pequenas velas de luz, e rebuçados redondos,com papéis coloridos, da estrela no cimo do abeto, por cimade umpresépio de musgo verde, onde Nossa Senhora e S. José velavam peloMenino. No calor ardente do Rio de janeiro não era fácil imaginar ummundoondetudoaquiloeraverdade.Mashoje,Fernando fazia-aacreditaremmagia.

Jantarampelasseishoras,edepoisdaMissadoGalodoiscriadosfardadosarigorabriramasportasdograndesalão,deixandoentrardezenasdecrianças,osolhospresospelaluzdaárvoredecoradacomo

nuncatinhamvistonenhuma.Oreiinsistiraquefossemosmaisnovosaentrarprimeiro,sozinhos,semadultosquelhessegurassemasmãos,criançasricas,nosseusvestidosdeveludo,enassuasgolasderenda,criançaspobres,filhosdoscriadosdopaço,nosmelhoresfatosqueasmãeslhesconseguiramarranjar,poucoimportava,todasficavamhipnotizadaspeloreflexodosespelhos,osdouradosdostetos,naquelasaladeportadasfechadasereposteiroscorridos.

Educados, reprimidos pelas ordens dos pais que lhes haviamrecomendadoque acimade tudo, e antesdemais, não semexessem,nãofalassem,nãosaíssemdolugar,semordemdoreioudarainha,uma rodade crianças olhava a árvore, os mais pequeninos sem resistirem aestenderemamãoeatocaremnosramos.

- Pica - choramingou Francisco Palmela, e a mana Margaridaaconchegou-oasi,colocandoumdedodesilênciosobreaboca.

A porta que ligava aos aposentos da rainha abriu-se de repente, e porela passou uma igura alta, de um homem com uma túnica comprida, demangaslargas,sapatospretoscom ivelas,abarbabranca quecontrastavacomunsolhosazuispenetrantes,umcapuzcomumapenademuitascoresnaponta.

Oprínciperealfoioprimeiroagritar:

-SãoNicolau,éele,éele,por favor, trouxeomeucavalode madeira? -masasoutrascriançasnãosabiamdoquefalava,ealgumasassustaram-see, indiferentes às instruções recebidas, corriam para o colo dos pais,escondendo a cara nos vestidos de seda das mães, queos tentavamsossegar,emboraestivessemtãosurpresascomoelas.

São Nicolau aproximava-se de cada um dos meninos e dava-lhe umbrinquedo tirado do saco, uma boneca para as meninas, um carrinho demadeiraparaosrapazes,umaespadademadeiraparaosmais velhos,umlivro para as raparigas com idade de já saberem ler. Mas o barulho dascriançasfoisilenciadoporumgritodopríncipe:

-Mãe,mãe,olheomeucavalo!

Maria olhou, enternecida, para o cavalo malhado, com selim erédeas,

montadosobreumaplacacomrodinhas,queofilhomalconseguiaarrastarpelasala.

Pegou-lheaocolo,indiferenteaoamarrotardoseuvestido,edisse-lhe:

-Vê,meninoPedro,comooMeninoJesusselembradosmeninos queseportambem?

-FoioSãoNicolau!

Maria olhou Dietz, num relance disfarçado. Sabia bem que por umdestesdiasosjornaisfalariamdoNataldacorte,einsinuariamqueafestacatólicaforasubstituídaporalgumritoprotestante,ouheresia, oqueparaaqueles que lessem o pasquim seria amesma coisa. Masque importava,nãosepodeagradaratodos,esabiabemqueopreceptordosseus ilhosnuncaostentariadesviardafécristã.Estavacertadisso.

Pedro não a deixou muito tempo entregue aos seus pensamentos.Despachado,montou-senocavaloeproclamou:

-Souumpríncipeguerreiro...

Maria procurou Lipipi com os olhos. Sentado no meio das pessoas,brincava sossegado com um barquinho. Pediu à ama que lho pusesseaocolo,porquenãoseconseguiadobrarsobresimesma,entrea pressãodasbarbasdoespartilhoeosquilosquehaviam icadodaúltimagravidez.Osseus olhos subitamente toldados com a memóriada princesa pequenina,tãobrancaeserena,queforaobrigadaadeitar numcaixão,paraumsonoeterno.Estremeceue,pondo-sedepécomalgumesforço,anunciou:

-Nãoétempodecomermosqualquercoisa?

Oscriadosabriramasportasdanovasaladejantardeparemparparaumaceiadignadodiaquesecelebrava.

Estou exausta, mas foi o melhor Natal que algmnia vez vivi. Albertinsistiuemcolocarumabetonasalaprincipaldopalácio,tiniaárvore linda,

que decorou com velas, bolas de vidro, rebuçados e caramelos quechegaram da sua terra. As pequeninas velas ardiam na ponta dos ramosmuitoverdes,eaomeulado,demãosquaseatocarem nasminhas,AlbertcantouOTannenbaum, eVickv, que está a cada diamais bonita, abriu osolhos como se lá dentro coubessem todas asestrelas do céu. A sala foiaberta aos ilhos das damas da corte, e quefelizes estavam aquelascrianças,enquantoprocuravamsobasárvores unipresenteembrulhadoecom o seu nome. Albert diz-me que Mariae Fernando estarão a fazer omesmo em Portugal, e é bom sentir quesomos quatro primos unidos efelizesapesardasdistâncias.

Estava tão feliz, que até consegui rir com a carta-raspanete querecebido tio Leopoldo. Tanto ele, comoMaria, suportammal asminhasqueixascontraamaternidade,masaverdadeéquesintoraivaquando pensoquenãoconseguiaproveitarcomoqueriaesteanocomomeuadoradomarido,porque estive «ocupada» a gerar uma criança. Diz-me que compreendeque me sinta surpreendida por me ter transformado tão rapidamententnnamulher casada emãede tunameninapequenina,mas recomenda-mequedêgraçasaDeus,emlugardemelamentar,jáquetunadoençamepoderia ter causado os mesmos incómodos,e deixado igualmenteenfraquecida,massemproveitonenhumparaanação!Temrazãoquandomelembraqueunisoberanosemdescendência,equandoaindaporcimanão tem nem irmãos, nem irmãs, éU soberano frágil, a quem qualquertormenta ou contratempopoderoubaro trono.Alémdisso, recorda-me,oafetoqueos ilhostêmpelospaisnãoseconseguedeestranhos,masdissosei pouco, sinceramente,porque omeu paimorreu tão cedo, e o quemeumeàminhamãeétãopouco.AminhagrandeligaçãoéaLehzen,maselae Albert odeiam-semutuamente. Não sei o que fazer. Ela tem ciúmes dapaixão que tenhopelomeumarido,eeleachaquedeveseromeumaiorcon idente,suportandomalqueelaapareçanomeuquartoa todaahora,entreameiodosmomentosemqueestamosjuntosparadiscutirtrabalho,ousimplesmente para conversar. A tia Adelaide veio cá para me dar asboas-festas,mas percebi que tambémparame dizer que era tempo de amandar embora. Defende que não é justo obrigar o Albert a suportartambémisto,quandojábastaolugarsecundárioaqueospolíticosingleseso obrigam. Racionalmente compreendo, mas seria da maior ingratidãodespedir quemme serviu tantos anos e tão bem. Hoje nãoquero pensarnisso.

PaláciodeBuckingliam,26dedezembrode1840

PaláciodasNecessidades,10dejaneirode1841

arfaolhou-os,comovida.Pedroestavasentado,muitodireito,àmesadoalmoço,oguardanaponocolo,comoumagrandepromoçãodosbabetesqueserecusavaausar,eLipipi,empoleiradoemcimadealmofadasparachegaràmesa,comiajácomafacaeogarfo,enquantoFernandoosdesenhavaacarvão,maisumamemóriaqueficava,maisumdesenhoqueenviariaàavóSaxeouaVitória,queconstantementepedianovasdospequeninosportugueses,comolheschamava.

Fernandoeraomelhordospais.Nãolevavaosfilhosàscavalitas,nemoscobriadebeijoscomooseupai izeracomelaecomosmanos,masestavasempre presente, sempre interessado, e os seus olhos brilhavam tantoquando lhes ensinava a pegar no lápis ou a montar o pónei,quandobrincava com eles às escondidas pelos corredores do paço, ou pedia aPedro, orgulhoso dos seus 3 anos, a ajudá-lo a levar os livros para abiblioteca,quetodososdiascrescia.

Maria sentia-se feliz, nesta vidadomésticapacata, emque se sentavamos dois na sua sala, ou na dele, a escrever cartas e a comentar asrecebidas, passeavam com as crianças pelo jardim das Necessidades, emqueelaescolhiaas loresaplantar,eorei faziaplanosdefontese muros,de jardins escondidos e escadarias, para depois jantarem com Dietz ealgunsamigosmaispróximos,eaoserãoouviremFernandoacantar,entreacoscuvilhicedas senhoras.Depoishaviaosdiasdoteatro,daópera,dosbailesemcasasdenobresque tinhamoprivilégiodepodercontarcomapresençadarainha.

PorvezestinhasaudadesdeLeonordaCâmara,eaindahádiasenviaraa ama com Pedro e Luís para a visitarem na quinta onde vivia nosarredoresdeLisboa.Porqueéquenãoforacomos ilhos?, perguntara-lheFernando, eMaria encolhera os ombros, desculpando-se com o trabalho,alguémtinhadegovernaropaís,oupelomenosgarantirquehaviaquemogovernasse.Masaverdadeéqueestavacansadadesesentiremfaltaem

relação a tudo e a todos. Mandava-lhe os príncipes, que sinal mais fortequeriadasuaamizade?QuandoLuísvoltaraaqueixar-sedequeamestradamãetinhaumabarbaquepicava,cheiravaabolasdenaftalina,equeosensopara com as lágrimasque chorara sobreos seus fatosnovos, sentiraremorsospornãoteridoempessoa.

Como gostaria de ter mandado a mesma comitiva à chácara damarquesa deAguiar, que todas as semanas lhe escrevia do Brasil, e queenvelheciaconsoladapeloamordeMareschal,finalmenteassumido.

Mentiria a si mesma, e fazia-o frequentemente, se não admitissequeCosta Cabral a levava a estremecer por dentro, e quando há dias,ousadamente, lhe tocaranamão, numgesto fugaz e passageiro, sentira ocoração bater descompassadamente, retirando-a rapidamente, para apousarnocolo,baixandoosolhosparaolharosanéisque lhecobriam osdedos, como se o toque tivesse icado visível, como o arranhão de umaroseira, uma dor que marca a sua presença e nos garante que nãoimaginamos o ferimento. Dietz e Costa Cabral eram, agora, presençaconstante no seu salão, e por muito que quisesse prestar atenção aosoutrosconvivas,esoubesseque iasercomentadaaatençãoquedavaaosfavoritos, não resistia a chamá-los à parte e a perder-se em discussõessobre o estado da nação. Qualquer um deles odiava oembaixadorbritânico, e ela colara-se aos seus ódios, acreditando que ele conspiravacontraarainha,querecebiaemcasatodaaoposição, equenãopartilhavadoseudesejo,odesejoíntimoehátantoescondido,derestauraraCartaedevolveraomonarcaaforçaeopoderquelhecabiampordireito.

«Porquesãopoucos,muitopoucos,osqueemPortugalestãopreparadosparaassumiropoder»,diziaDietz,nastiradasviolentas contraoreinoqueo acolhera e que cada dia mais desprezava. Costa Cabral, esse, era maissubtil,masoseucharmeeramuitomaispoderoso.Dizia-seumhomemaoseu serviço, e Maria acreditava que dariaa vida por ela, que colocaria asuadeterminaçãoeasuainteligênciaaoseuserviço.«Serve-meamimouaopaís?»,perguntavaporvezes,desejandoardentementeouviraresposta,quesabiaser«Servi-laasiéserviranação».

Também gostava de Saldanha, que regressara da sua missão, com umacordoquebasicamenteprotelavaospagamentos,eseinstalara emSintra,de novo entregue aos seus projetos megalómanos. Tinha com ele uma

intimidademaisdepaiede ilha,eomarechaltratava-a comumà-vontadequeprovocavamurmúriosnacorte.Nãoeratão enfadonhocomoPalmela,sempre comos seus sermõesdemoderação, sempre a incitá-la a ouvir, anegociar. Negociar, ouvir? Não se lembrava dos insultos que lhe tinhamfeito, de como a tinham obrigado ajurar aquela abjeta Constituição, decomo a tinham humilhado? Saldanha, não, Saldanha fazia-a rir, e aindaontemlheenviaraumbilheteapedirqueconvencesseoseumaridoairauma tourada, espetáculo aque o rei se recusava atender, talvez porqueaproveitasse o tempo emquea sabia ali retidaparapassearpela cidade,observando os corposdas mulheres mais esbeltas do que ela, ou quemsabeparairesperar algumacantoraàsaídadeumespetáculo,comoumadassuasdamaslhejuraraacontecer.Aoreceberestesbilhetes,omarechalnão perguntava mais nada, e lá vinha ele arrastar o rei pelo braço,mantendo-odebaixo de guarda, e piscando descaradamente o olho àrainha,comoquemdiz«missãocumprida».

Maria tinha consciência de que não perdia tempo com remorsos ouliçõesdemoral.Confessava-seasvezesqueconsideravanecessárias,ederesto,pensousorrindocomironia,opadreMarcos,capelão dopaço,comoseu amor ao garrafão e aos excessos, não estava em posiçãode lhe fazergrandes sermões. Se lhe dessemais do que duasave-marias, que rezavacom todo o gosto, seria ela a dar-lhe uma penitência pesada, pensou,divertida.

Fernando acabara o desenho dos seus pequenos à mesa. Beijou-a natesta,sempretãomeigo,tãoadorável,tãocultoeinteressado.

-Possomandá-loaVitória?-perguntouarainha,comumsorriso.Aindaontem recebera uma água-forte da pequenina Vitória, que,muitofrancamente,nãotinhaabelezadosseus.

Fernandosorriu:

- Claro que sim, amanhã faço outro para enviar à minhamãe e ao reiLuísFilipe,queinsisteemterumretratodoafilhado.

Mariainsistequesereiumaótima«mamand'unenombreuse famille»,eomeu tioLeopoldodizomesmo.Estão loucos. Já respondiaambosqueétudo o que não quero, que uma família numerosa é tudo o que não nosconvém, nem a nós como família, nem ao país,para já não falar no meusofrimentopessoal,novemesesemestadointeressante,depoisohorrordoGrande Momento, e inalmente aquelatristeza profunda que me assoladepoisdeobebéjáternascido,equedemoratantotempoapassar.Mariadesprezaessaminha fraquezade ânimoapósospartos,edizqueresultaapenas do facto de os médicosingleses me obrigarem a estar deitada econ inada ao quarto por muitotempo, e que se seguisse o seu exemplo,que ao im de dois dias estáa pé e a fazer a vida (quase) normal, nadadisto aconteceria. Rematasempre estas palestras com a beleza do seujardim,ondenascemaisumaespécievindadostrópicos,masnãomeajudanada, porque mefaz sentir muito incapaz e choramingona, quando nãotenho nenhumcontrolo sobre esta falta de energia queme tolhe e tornatãodi ícilcontinuarcomomeutrabalhoecumprirosmeuscompromissos(masquectnnpro,bementendido).Alberttemsidotãocompreensivo,masatécomelemesintogelada,talvezporquereceiequequalquerintimidadeproduzaumnovo ilho...ParaMaria tudoparece tão fácil,enãoquero serinjusta, porque não sabemos nada do sofrimento dos outros, mas até amorte da pequenina Maria da Glória foi aparentemente superada comfacilidade.Achoqueoshomensraramentepensamemcomoé duropassarpor tudo isto constantemente, e a primaMaria, pelos vistos, pensa comouuihomem,masen im,seráfeitaavontadedeDeus,eseEledecretarquetenhamos muitos ilhos, então teremos que oseducar para serem uniexemploeúteisàsociedade.

QuandovejooAlbertadançarcomanossa ilhanosbraços(está linda,enorme e pesada de mais para que seja eu a trazê-la), e como a minhapequeninaVitória ica feliz ao colodele, atéme sinto tentadaamudardeopinião.

CastelodeWindsor,15dejaneirode1841

PaláciodeMafra,10desetembrode1841

escobrirahápoucoqueestavadenovográvida,easnáuseasnãodeviamajudaraohumor.Hojesentia-setristeepensativa.

EacartadeVitória,igualmentegrávida,irritara-a.

Quemteriasidoacoscuvilheiraquelheescreveraadizerquedançara avalsa? A verdade é que Vitória vinha agora perguntar-lhe, num tomtrocista, porque lhe garantira semprequeodiava aqueladança, deque arainhadeInglaterragostavatanto,seagoraera«apanhada»adançá-la.

Arespostaerasimples,masnãolheapeteciadá-la.Nãodançava avalsaporque prometera a Alexandre nunca mais a dançar senão com ele, tãosimples como isso.Ou tão complicado.Uma rainha quenãodança a valsaporque prometeu aos 12 anos que não a voltaria a dançar? Não queriaouvirasgargalhadastrocistas,mesmoquelhechegassemporcarta!

Então porque a voltara a dançar? Porque o arquiduque Ernest lhepedira, no baile que deram em sua homenagem no Palácio dasNecessidades. O pedido de um primo de Fernando, que não queriadesiludir, escrevera a Vitória. Mas sabia que não era só isso. Pormomentos,no salão iluminado por mil velas, Ernest parecera-lheAlexandre,eenquantorodopiavacomelepelasala,eviaore lexodosdoisnogrande espelho da parede, sentira-se de novo nos braços dele. E eraissoquenãoqueria,nempodiapartilhar.

Ascriançasestavamcomosseusmestres,Fernandoocupadocomasobrasderemodelaçãonopaço,edaúltimavezqueoviraestavaemcimadeumescadote,apintarelepróprioummedalhãonotetodeumadassalas-umpainelparacadacasaemquetinhavivido,explicou-lhe.Mariasentou-senasuavarandaviradaparaoTejo,erespiroufundo.

Palmela viera visitá-la ontem, comnotícias de que lordMelbourne fora

substituído por lord Peel, e discretamente, como era seu timbre, deixaraentenderqueamudançanaliderançapolíticabritânicaagradavamuitoaopríncipeAlbert,cansadododomínioquelordM.exerciasobrearainhahátantos anos. Segundo constava, o antigoprimeiro-ministro fora intimadoadeixar a cena política, e sobretudoa conter-se de in luenciar a pobrerainha, evitando escrever-lhe, fazer comentários sobreosministrosqueaiam servir, e «conspirar» com ela, e reagira com uma fúria imensa,negando-se a acatar qualquerdestes conselhos, até que percebeu quevinhamdopríncipe,equeacontinuaçãodestaproximidadeiriaprejudicara sua soberana. Queera preciso dar-lhe espaço para que aprendesse aconfiaremsirRobertPeel,enonovogoverno.

«PobreMelbourne,aos62anosarainhaeapolíticasãotudooque temnavida, eVitória vai insistirparaque semantenhaao seu lado,mas sim,imagino a irritação do pobre príncipe Albert, de cada vez queVitória lhediziaqueiaperguntaraoseuqueridoprimeiro-ministrosepodiaserassimou assado», comentara a rainha, e ambos riram, numa cumplicidade quehámuitonãosentiam.

Palmela,ultimamente,nãopareciatãoobstinado,eCostaCabral dizia-lheque o duque colaborava com ele no seu trabalho nos ministérios e nasCâmaras.MariasuspeitavaqueosenhorD.Pedroadmirava noministroasmesmasqualidadesqueela,eopulsofortecomque inalmenterestauravaaordemnopaís.

Quando lord M. me devolveu as chaves da caixa onde passa a nossacorrespondência, onde segue sempre a correspondência entre a rainha eos seusministros, emedisseque jánãohaveria cartaso iciais entre nós,mantive a cabeça direita, os olhos ixos no in inito, e permiti-lhe que mebeijasse a mão como se fosse um outro político qualquer. Mas quandobaixeioolhareviquenaquelemolhoestavaoaneldasortequelhedeiháuns anos, o anel do Brasil que Maria me ofereceu, tive vontade de lhesaltar ao pescoço e pedir-lhe que nãome deixe, que não sei o que fazersem ele. Agora, no meu quarto, acabei de escrever aMaria a contar-lhecomoestoudesolada.Tireioaneldoporta-chaves,evoudevolvê-loaomeu

querido lordM.por correio seguro,não suporto a ideiadeque ique semalgtuna coisa minha. Não é um abandono,deixou claro que lhe possocontinuaraescreverequeosecretáriode Albertlhefaráchegarascartas,masentendiemtudoistoqueéAlbertquemequervermaislongedomeuministro...

Lorcl M. já me izera os maiores elogios ao meu adorado marido,encorajando-me a con iar nele, a pedir-lhe opinião em tudo, e sei queomeuanjomeamaprofundamente,masAlbertnãoéinglês,nãoconheceosmeandrosdapolíticadestepaís,nãomeacompanhadesdeoprimeirodia,ea ideiadeterde lidarcomumoutroprimeiro-ministro desola-me.DeviasermaiscompreensivacomMaria,quandomefaladotalCostaCabral,quelhetemdadotantosossego.OsrelatóriosdeLisboadizemqueédemasiadoambicioso, que se quer aproveitar darainhadePortugal, e que enche osbolsos à sua custa. Será?O que seié queo lugarde tuna rainha émuitosolitário.

PaláciodeBuckingham,10desetembrode1841

PaláciodasNecessidades,13denovembrode1841

rainhaestavanumdianostálgico.Nãoeracomum,reconhecia,mastalvezopartoqueseaproximava,eomedodequetambémestebebénascessemorto,aperturbassem,nãosabia,masaverdadeéquepediuparaficarsozinha.Completamentesozinha.

Escreveu a Vitória a dar-lhe os parabéns pelo nascimento do seu filhoAlbertEdward.«NãoseadmireseapequeninaVitória izermais birras echorarquandoavirpegarnoirmão.Sãociúmes,perfeitamentenaturais,eo Pedro teve imensos em relação ao Luís. Apanhei-o a beliscá-lo duas outrês vezes, e quando não estava ninguém a olhardeixava-lhe cair nacabeça um brinquedo qualquer», escreveu. Pobre Pedro, pensando bem,sótinha1anonaalturaemqueLipipinascera,exatamentecomoaVicky.

Pousouapena.Seráqueosseusciúmesjátinhampassado?Nãogostavade perder muito tempo a pensar nisso, mas a verdade é que secorrespondia quase todas as semanas com os manos Pedro e Xica, epassavameses,paranãodizeranos,semescreverduas linhasàpobre daJanuária, que aindapor cima sabiabemqueera aquelaquemaissofrerapor ter uma irmã rainha aos 7 anos, a que mais abandonada sesentiracomafugadopaidoBrasil.Mariaestremeceu,echegouparasiamantadequadrados de que tanto gostava: «Como é que omeu pai foi capaz de osdeixar a todos, durante a noite, sem um aviso sequer?»,perguntava porvezes a Fernando, que abanava a cabeça, perplexo. Nunca conhecera osogro, mas francamente não se via a deixar os seus pequeninos nestaLisboa revolucionária e sossegadamente a fazer-seaomar para voltar àssuasmontanhas.

TinhaacabadodeassistiraumabirradaminhaqueridaVickv, quando

recebi a carta de Maria, em que me falava na possibilidade deque elativesseciúmesdonovobebé.Encaixavatudonaperfeição,écuriosocomoela sabe tanto destas coisas, sendo uma pessoa tão direta,por vezesmesmo bruta, com tuna maneira de ser que não se associa aestasensibilidade. Julgo que é por isto que ela e o Fernando se dão tãobem,contra tudo o que alguém que os conhece imaginaria. Não metenhoandado a sentir muito bem, mas felizmente não tão em baixo quenãoaprecie o meu novo bebé, mas só consigo falar com franqueza da formacomomesintoalordM.,quemeentendeperfeitamenteporque tambéméassaltadoporestasnuvensescurasdetristeza.HojepediaunidosnossosretratistasquefizessetnnprimeiroesboçodeBertie(comolhechamamos)para omandar àMaria, e constatei que émaiordo que a Vicky era comesta idade, uns olhos enormes e azuis muitoescuros, um nariz bemdesenhado, embora um pouco grande, e tuna boquinha bem desenhada.Esperoerezoquesejaparecidocomoseu adoradopai.MasmentiasenãodissessequeaVickyaindaéafavoritacádecasa,étãobonitaetemtantagraça.

PaláciodeBuckingliam,20denovembrode1841

PaláciodasNecessidades,10dejaneirode1842

ulgoqueéestaanossaoportunidade,Majestade.Repare,opaísestáfinalmenteemordem.Ostribunaisfuncionam,acabámoscomainjustiçaflagrantequesefaziaàIgreja,privando-adassuaspropriedadesedosseusdireitos-diziaCostaCabral,sentadonogabinetedarainha,nacadeiraquejáassumiacomosua.

Mariaacenavacomacabeça,entusiasmada.

-AvitórianoPortodopartidoqueadvogao regressodaCarta tem umsigni icadoimportante,parece-meserumsinaldequechegouotempoderetomar a Carta que o senhorD. Pedro nos outorgou. Já não faz sentidoscontinuarmosa reger-nosporumaConstituição feitaàpressa, juradaporumarainhaameaçada.

Maria reagia sempre impulsivamente à menção daquele episódio, eCostaCabralsabia-o.

- Não podemos retomar a Carta exatamente como ela foi redigida em1826, mas com algumas pequenas alterações... parece-me viável, parece-mequeéaquiloqueopovoestavaàespera.

Os olhos de Maria brilhavam. Também ela estava absolutamenteconvencidadequeopaísentraranumanovaera,oúltimo verãodecorreraempaz,desdeque chegaraaPortugalnunca tivera umperíodo tão longode sossego. Pôs a mão sobre a barriga, discretamente, como num afago,sim, este bebé nasceria bem, tinhaa certeza, e a Costa Cabral devia aserenidadecomquedecorreraagravidez.

-Masoqueéquepropõe,senhorministro?

CostaCabralsabiaquetinhadesercuidadoso,nãopodiadardemasiadainformação à rainha, que a deixasse numa posição di ícilquandoquestionadapelosembaixadoresestrangeiros,quandoaprópriarainhade

Inglaterra lhe colocasse questões. Maria sabia o mesmo,e apressou-se aajudá-loasuperaroproblema:

-Já sabeque temcartabranca,mas tudo temde serdiscreto, feito commuitocuidado,comosabe,arainhanãopodeestarassociadaanada...

Costa Cabral levantou-se e beijou-lhe a mão, devagarinho,enquantomantinhaosseusolhosnosolhosdarainha:

-Sãoapenasosinteressesdarainhaquememovem,esperoqueo saibasempre,dêomundoasvoltasqueder...

Mariacorou:

-Nãotenhodúvidanenhumadisso,senhorministro,façaoqueentendermelhor,queaquiestareiparalhedaroapoiodequenecessita.

NessanoiteMariadormiuumsonoagitado.Fernandoprocurou sossegá-la:

- O que é que a preocupa, minha querida? - perguntou-lhe, ansioso.Estranhara o longo encontro com Costa Cabral, não gostara do sorrisosatisfeitocomqueovirasairdasaladetrabalhodarainha,eainda menosda conversa entusiasmada que Maria tivera com Carl Dietzdepois dojantar.

É sóoGrandeMomento -disse-lhe,meiga. -E comohoje aduquesa dePalmeia tevemais um ilho, um pequenino Filipe, tudo estámais vivo naminhamemória.

Fernando sabia que lhe mentia, ou pelo menos não lhe contavatudo.Temiaquesetivesseenvolvidodenovoemconspiraçõesprecipitadas,masnãoerahoradediscussões.

- Vai correr bem, vai tudo correr bem - sossegou-a o rei, e ingiuadormecer,mas de olhos semicerrados percebeu queMaria semantinhaacordada,osolhosfixosnodosseldacama.Conhecia-a,sabiaqueplaneava.Enãoeradi ícilsaberoquê,oumuitoseenganavaouimaginavaverCostaCabralregressaraLisboa,montadonumcavalo branco,asforçasmilitaresdeLisboaa saudá-lona rua,opovoagritar«VivaaCarta,VivaaRainha,

VivaaCarta,VivaaRainha».Tomaraqueosseussonhosserealizassem.

Namanhã seguinte, Palmeia veio dizer-lhe que oministro CostaCabralpediadesculpamasadoençadamãeobrigara-oasairdeLisboa,semtertempodesedespedirpessoalmentedeSuaMajestade.Mariaagradeceuorecado,ePedrodeSousaHolsteinsaiudopaço preocupado.Conheciabemde mais esta menina, para que lhe passassedespercebido aquele brilhonosolhos.

Quandochegouacasa,desabafou:

-Eugénia,mesmoaos setemesesdegravidez, edepoisde tudodequeelaeopaíspassaram,asenhoraD.Marianãoaprende.

Passandopeloberçoondedormiaoseu11.° ilho,fez-lheosinaldacruzna testaepediuaDeusqueas loucurasda rainhaedeCosta Cabral nãoobrigassemaumnovoexílio.Merecemossossego,desabafou.

ChegámosaWindsorsainset saufs, comtodaacomitivaea tralhaqueterduascriançaspequenasexigem.Estavaumdiadechuvahorrível,masdepois fez-se um céu azul lindo e saímos todos para arua como presospostos em liberdade. Escrevi a dizer isto mesmo aomeu queridoMelbourne,quemeparecemergulhadomunadepressãoaindapiordoqueaminha,etalvezsejaestacompreensãomútuaquenosume.Dequalquermaneira tenhoescritomenos,porque jápercebi queaminha ligação comeleperturbadealguunaformaoAlbert.Mastambémnãoaceitoabrirmãode uni amigo tão dedicado, depois de tersido «obrigada» a despedir aLehzen,porqueomeuqueridomaridojánãoasuportavamais.E,defacto,desdequeaVickynasceuelatornou-seaindamaispossessivaeestranha,fazendobirrasecenasatodaahoraecriandoumclimaverdadeiramenteinsuportável. Falei comela,de lágrimasnosolhos,mas fui irme.Recebeuumapensãomuitogenerosa,edecidiuvoltaràsuaAlemanhanatal,comapromessa, quevou cumprir, de receber unia carta minha todas assemanas. Porque éque épreciso sempre escolher?Tenhouni casamentofeliz, uun maridomaravilhoso, e uma ilha encantadora (tão coquete quefez charme aosdois soldados que escoltavam a carruagem até aqui!)., e

devo dar graçasaDeuspor ter tanto.EsperoqueLehzenencontreapazdequeprecisa.

Estranho não ter una carta da Maria há muito tempo. É sinal dequeanda demasiado ocupada com a política. O que é que estará aplanear?Tremosódepensarnisso.

CastelodeWindsor,30dedezembrode1841

PaláciodasNecessidades,27dejaneirode1842

ernandoentrounasala,enfurecido,tãoenfurecidocomoarainhanuncaovira.

-Nãoqueroacreditarqueasenhoraestejaenvolvidanisto.

Evirando-separaCarlDietz,protestouaindamaiszangado:

-Eosenhor,osenhortambémsabiadistoedeuapoioaumprojeto tãolouco?Lávamosnósdenovoparaumaguerracivil,éisso?

Arainha trocouumolharrápidocomopreceptordosseus ilhos, comoquem faz um pacto de negar qualquer compromisso, e respondeu, a vozserena:

-SenhorD.Fernando,queagitaçãoéessa?

- Agitação? Nenhuma, comparada com aquela em que o país jáestágraçasaosvossosjoguinhosinfantis.

Maria pôs-se de pé, a barriga de oitomeses enorme, e disse, num tomirritado:

-Faladomeupaís,senhorD.Fernando?

Fernando sentiu-se gelar. Não esperava um golpe tão baixo, masrecuperouaenergiaeprotestou:

-OembaixadorbritânicoacabademedaranotíciadequeCostaCabralencabeça uma revolta a favor da Carta, uma revoltamilitar, e prepara-separamarcharsobreLisboa.

Maria tevedi iculdadeemesconderoentusiasmo,procurando camuflá-locomumacessodefúriacontraoembaixador:

-Equeméqueesse senhor se julga?Vemaopaço, fala como rei, semquearainhaestejapresente,edá-lhenotíciasquenemeuconheço?

Dietzapanhouadeixa,eperguntou:

-Umpronunciamentomilitar a favor da Carta lideradopor um homemtãocompetentecomoCostaCabraléumaboanotícia,não?

Fernandodeixou-secairsobreumcanapé:

-Desisto-exclamou-,desisto.Háquantotempofalávamosemconseguira restauraçãodaCarta atravésde eleições?Quantas vezes é que Palmeladisse que era possível uma solução política? E agora isto? Não bastamtodososgolpesfalhadosquejáexperimentámos?

Mariairritou-se:

-Palmela,oembaixadoringlês,issoétudoamesmaescola.MasqueméquelhedissequeeuouopobreDietztemosalgumacoisaavercomisso?Não conhece su icientemente bem Costa Cabral para saber que ele nãoprecisadeordensdeninguém?

Fernandotapouacaracomasmãos,desesperado.

- O homem é ambicioso, nunca se arriscaria a nada que pusesseaconfiançadarainhaemrisco!

Mariasorriu,satisfeita:

- Lá isso é verdade. Acredito que até a vida estaria disposto a dar pormim.

Fernandopôs-sedepéevirou-lheascostas:

-Por lealdadeparaconsigo,voumanterquea rainhadePortugal seriaincapaz de fugir aos seus deveres, apadrinhando umpartido, umacausa,umhomem,masnãomevolteacontarhistórias,porfavor. Senãomequerpedirconselho,éconsigo,maspelomenosnãomeminta.

Mariaviu-oabandonarasala,preocupada:

-Emtantosanosdecasamento,nuncareagiuassim.

Dietz parecia igualmente perturbado, e manteve-se em silêncio,masquasesorriuquandoarainha,numasaídatãotípica,resmungou:

-Eunãodigoqueaqueleparvalhãodoembaixadorbritânicoéquetemaculpa de tudo! Vou arranjar maneira de que nunca mais fale comFernandosozinho.

-Éclaroquetemosderesistiraumgolpemilitar,masoquepossofazer,quandoogovernoremodeladosedemitiu?-argumentouarainhanoConselhodeEstado.

Osconselheirosolharam-na,semsaberoquedizer.Nãopodiamacusara rainha de conluio com o seuministro, muito menos quando assumia aoposiçãoaogolpe.Vendo-oscalados,Maria,segura,continuou:

- Julgo que, mais uma vez, terei de pedir ao bom do senhor duquedePalmelaquetenhaabondadedeformarmaisumministério.

Palmelabaixouosolhos, tala irritaçãoquesentia.Só lheapeteciabatercomaporta.Sabiaqueeraumaarmadilha,sabiaquenãopodiadizerquenão a um pedido direto da rainha,mas estava plenamente consciente dequeoseuministérionãoduraria,porqueosplanosdasenhoraD.Mariaedo seu homem de mão, António Bernardoda Costa Cabral, eram outros.Faziam dele, e do governo que teriade formar, o governo do Entrudo, agraça que andaria nas crónicas dos jornais e nas bocas do povo nesteCarnaval.

Recebi carta da duquesa de Palinela. Percebi que os parabéns pelonascimentodomeufilhoerammnpretextoparadesabafarcontraatraiçãoqueMariafezaoseumarido.Oministérioquearainhalheimplorouparaformar, e que ele aceitou, como diz a duquesa, por «devoção à rainha»,duroudoisdias.Doisdias!Nãose faz tunacoisadestasaunihomemquenos serve desde criança. Mas Maria está, pelosvistos, completamentehipnotizada por Cabral, que lá conseguiu levaro seu golpe por diante,

«obrigando-a» a proclamar a Carta, alegandoque era amicamaneira deevitartunaguerracivil,jáqueasguarniçõesdeLisboasealiaramaCabral.Diz-me o nosso embaixador que ohomem, ainda mais arrogante epomposo, foi recebido na capital comtuna manifestação de entusiasmopelo povo da cidade, que também,francamente, não sabe o que quer. Arainhafezopapeldesurpreendida,eládissequenãotinhaoutroremédiosenão pedir ao vencedorque formasse um novo ministério!! Et voilà,Cabral voltou ao poder. O nosso embaixador diz-me que agora ninguémmais o tira de lá, porque conta com o apoio total da rainha, e arranjarámaneiradedaquiparaafrentecorrompertodasaseleições.

QuantoaMaria,nãoescreve,comoacontecesemprequeestádemasiadoentusiasmadaafazerpolítica.Albert,noentanto,recebeuunialongacartadeFernando,emquenegaqualquerenvolvimentodosreis emtodosestesacontecimentos. Não sei se acredita no que diz. Mastenho de tirar ochapéuàminhaprima:aosoitomesesdegravideztemenergiapara tudoistoemuitomais.

CastelodeWindsor,10defevereirode1842

PaláciodasNecessidades,16demarçode1842

ãe,comoéquelhevamoschamar?-perguntouPedro,muitoaltoparaosseus4anos,enquantosedebruçavasobreoberçodoirmãoacabadodenascer.

-João,comotínhamoscombinado,nãoachabem?

Pedrodeuumafestanocabeloralodobebédepelemuitobranca:

- Parece-me bem. Pedro e João são nomes de apóstolos, só Luís é quenãoé...

Mariadeu-lheumcarolonacabeça,eofilhoesfregou-a,ofendido.

-Quandoéqueomeninovaiacabarcomessascenas?OseuirmãoLuísolhaparasicomumaadoraçãosem im,eomeninoestásempre adeitá-loabaixo?

Pedroamuou, silencioso, eFernandopuxou-ocomgentilezae colocou-oàsuafrente,olhosnosolhos:

- O que o Pedro quer dizer é que vai tomar sempre conta deste seuirmãoJoão,comaajudadoLuís,nãoé,meufilho?

Pedroacenouquesimcomacabeça,aproveitandoasaídaqueo pai lhedavaparaobecoondesetinhacolocado.

-Querpegar-lheaocolo?Nãoseisetemforçaparatanto,porque oseuirmão émuito pesado - provocou amãe, sabendo que amuonenhum doprínciperealresistiaaumdesafio.

Pedrosorriu-lhe,entusiasmado:

-Euconsigo,mãe,euconsigo...

-Eutambém-disseLuís,deixando-sedeslizardacamadamãeondesetinhasentadoparareceberasfestasnocabelodequetantogostava.Aos3anos,continuavacomardequerubimsaídodoaltar.

Fernandosentouum,edepoisoutro,numacadeira,epousou-lhes àvezobebéaocolo.

- Tenho pena que não aguentemmais tempo, senão desenhava-os já -disse,sorrindoparaMaria.

Quando as crianças saíram, levadas pela aia, Fernando ajoelhou-se aoladodacamadamulhereestendeu-lheumapequenabolsadeveludoazul.

-Éparasi,pormedartantos ilhosetãobonitos,pelacoragemcom queviveestesmomentos-disse-lhe,beijando-lheternamenteamão.

Mariabeijou-ona testa, e depois, sentando-separa trásnas almofadas,abriu a bolsinha, como uma criança que abre um presente de Natal. Nocolo caíram-lhe três pulseiras de ouro, cada uma com um medalhão aocentro,miniaturasdePedroeLuíseMaria.

-FaltaadoJoão,quemandofazerlogoquetenhatempodedesenharonossomaispequenino.

Arainhabrincavacomaspulseirasnamão,disfarçandoacomoção quesentia.

-Umaporcadaumdos ilhosquemedeu...insistiemquefossemquatro,porqueapequeninaMariaserásemprenossa ilha,uma ilha quepreferiupartirparaDeusmaiscedodoquenós...

Mariainclinou-separaobeijar.

-AindabemquenãoseesqueceudaMariadaGlória...

E segurando na pulseira com a miniatura do ilho mais velho, virou-aparaomarido:

-Fernando,jáviubemcomooJoãoétãoparecidocomoPedro?

Sorriu:

-Esperoquenãotenhaofeitiozinhodopríncipereal,viucomo elepôsopobre Luís de lado? Aqueles ciúmes não passam, temos de odomesticar,não é admissível que passe a vida a humilhar o irmão, seique ainda sãopequenos,mas...

Fernandoconcordou.

- Tenho de falar com Dietz, acho que tanto ele, como os outrosprofessoresseentusiasmamtantocomascapacidadesdoPedro,que édefactobrilhante,quecorremoriscodeotornardemasiadoconvencidodesimesmo.

Maria balouçou a pulseira nova no braço, feliz com o novo adereço, e,depoisdeunssegundosdedistração,voltouaPedro:

- Suspeito que sei o que se passa, acontece semprenas famílias reais -suspirou. -Omais velhoéoherdeiro, o futuro rei, todaa gentequer quesejaomaisbempreparado,eaomesmotempocultivamaamizade queumdialhespodeserútil.

Fernando entreteve os olhos nos seus dedos longos. Não queria dizerque certamente já alguém contara a Pedro a «maldição» dos Bragança, alenda de que os primogénitos da família estavam destinados a morrernovos,eoseulugaraserocupadopelosfilhossegundos.

Maria leu-lhe os pensamentos. Roendo as unhas, como faziaquandoalgumacoisaaafetavadeverdade,protestouimediatamente:

-Nempensenumacoisadessas.Omeupaicortoucomessamaldição.

Fernandopôs-sedepé,desviandooassunto:

-VouescreveraVitóriaadar-lheaboanova.

Mariatorceuonariz:

-Deveestarfuriosaporquenãolheescrevoháséculos.Aestahora estáenvenenada por aquele inacreditável homem que cá mantémcomodiplomata...

Fernando não respondeu. Era típico da sua querida Maria, julgar queeram todos cegos à sua volta, e encontrar sempre alguns bodesexpiatórios.BemdiziaoduquedePalmelaque,nalgumascoisas,asenhoraD.Mariaeraigualzinhaaopai.

AcartacomasarmasdosOrleãesanimou-a.EradeClem,dasuaqueridaClem,comquempartilharaaquelesmesesemParis,acompanhiadeAlexandre,asangústiasdaguerra.Entusiasmada,abriuosobrescrito,eoqueleuteveocondãodelhemudarohumor.Ficavacontentequandooseutalentodecasamenteirafuncionava,ejáháalgunsanosque«conspirava»comVitóriaparaqueaprincesacasassecomAugusto,umdosirmãosdeFernando.Talvezfosseingenuidadesua,porqueotioLeopoldopareciabatê-laaospontosnestacapacidadedenegociarcasamentos,masoqueimportavaeraqueasuaqueridaamigalheescreviaacontarqueaceitaraapropostaequeiasersuacunhadadefacto.

Segurou a carta contra o peito, e respirou fundo. Lembrava-se bem datardeemqueelaeClemtinhamsonhadoqueumdiaseriamastrês primasentre si, e os seusmaridos ligados pelo sangue. Ela, Vitória eClementinaeramagoraprincesasdeSaxe-Coburgo.Sóapequenina IsabeldeEspanhaescaparaaosarranjinhosdoreidaBélgica,eoresultadonãoerabom.

Mariatevemaisumrapaz.Escreveu-me, inalmente,edizque, porelaepor Fernando, gostavam de continuar a ter apenas rapazes.Meteu nacabeça que eles são mais espertos, mas se visse as minhasmeninasmudavadeideias.OpequeninoJoão,pelodesenhoacarvãoqueFernandomandou dele, é uma beleza, cabeça muito redonda, e onariz que maispareceumamigalhinhadepão,edefactoMariadizqueémaispequenoemenos gordo do que os irmãos. Ri-me muito quandome contou que osmais velhos estão excitadíssimos porque os pais lhes disseram que opríncipetinhavindodeumafontedosjardinsdaPena,ondegostammuitode ir. É divertida a ideia, e antes fossem as crianças transportadas porcegonhas,queDeusosconservenasantaignorância.Écuriosoquesóvoltaaescrever, comentusiasmo,quandoépara falar sobre crianças, jurando-

mequeapolíticaaentediamuitoequeprefere deixaros relatos sobreoestado do país a Fernando. É tão convincenteque até o tio Leopoldomeescreveuadizerquetendeaacreditarqueo embaixadorbritânicoempolao envolvimento da rainha nas questõespolíticas, de tal forma são«caseirinhas» as suas cartas. PobreMaria,até eu tenhomedo, por vezes,de estar a ser injusta, e a verdade é queluto pelos seus pontos de vistajunto dos políticos, que, compreensivelmente, preferem sempre acreditarnosdiplomatasquetêmemcampo.

OduquedePalmelatambémescreveuadizerquefoinomeadoparavira Londres como ministro plenipotenciário discutir o tratado de comércioentrePortugaleoReinoUnido,julgoqueémnrebuçado queMarialhedápara calar a consciência, eparao senhorD.Pedro uni pretextopara sairdaquelecaldeirãodeintrigas.

PaláciodeBuckingham,marçode1842

JardimdaEstrela,10dejunhode1842

ipipi,oqueéquequerqueamãebordenafraldadomano?Umaletra,umbarquinho...-perguntouMaria,sentadanumbancoaosolnorecém-inauguradojardimdaEstrela,ondefaziaagoraquestãodevirnosdiasdecalorcomosseusfilhos.Pedroandavadefolhadepapelnamão,atomarnotadasespéciesdeárvoresquealitinhamsidoagoraplantadas,enquantoLuísbrincavacomocavalodepauqueoirmãojánãousava,eJoão,comquatromeses,rechonchudoebem-disposto,treinavaosprimeirossonsdeitadonocarrinho,comrodasgrandeselargas,queamãedeFernandolhesenviaradaAlemanha.

-Umpeixe-disseLuís,eMariariu,porqueo ilhoestavaobcecadoporpeixesdesdequeosdescobriranotanquedojardim,para ondefugiaseodeixassemdoisminutossemvigilância.

- Luís, o menino e a água, um dia cai lá dentro e afoga-se... é muitoperigoso.

Luís tentou sairde cimado cavalinho, e a amaapanhou-oantesque seestatelassenochão.

Maria riu, divertida, e trocou um sorriso com duas senhoras quepassavamenãoconseguiamtirarosolhosdarainha,espantadascomasuapresençaentreocomumdosmortais.

Recusava-sea icarpresanopalácio, comoa suamãesempre icara noPaçodeSãoCristóvão.Era rainha,nãoo esquecia,mas tambémmulher emãede família,egostavadeveredeservista.Dequeserviagastar umaverdadeirafortunaafazerumparqueparaqueos lisboetassepudessemencontrar, passear e conversar, como em Madrid, Paris ou Londres, sedepois a própria rainha não se dignava frequentá-lo - depois de terincitadoàobra,tinhadeseraprimeiraajustificarasuaconstrução.

Além do mais, a Estrela tinha todas as vantagens, a cinco minutos de

calechedopaço,bemmaispertodoqueoPasseioPúblicodoRossio,eemfrente da basílica onde gostava de ouvir missa. Voltou a atenção para obordado, que sempre lhe dava uma desculpa para não estar sempre acumprimentar alguém, e deu por si a pensar que estetinha sido,decididamente,omelhoranopolíticodesempre.

Emmaio, indiferente aos protestos daqueles que chamava de rebeldesencapotados,porqueosmaisdescarados já tinhamsidocorridos dos seussalões,nomearatrintanovosparesdoreino,ouseja,trinta novosmembrosda Câmara Alta, deputados da sua con iança e que,estava certa,defenderiam as suas causas. Os jornais publicaram osbrados indignadosda oposição, acusando a rainha de ter escolhidoapenas nomes próximosde Costa Cabral, e que assim lhe garantiam, à partida, o controlo doParlamento, mas a rainha izera ouvidos demercador. Era o que faltava,prestaratençãoaumgrupodegente,edejornais,quesólhetinhamfeitoa vidanegranosúltimos anos.CostaCabral reformavaa justiça,oensino,punhaemordemamalditaGuarda,faziaaspazescomaSantaSéesólhedava boas notícias, emlugardea cansar comdisputas ehesitações comoos outros - porque não havia de con iar que os nomes por ele sugeridoseramosmelhores?

Depois vieram as eleições gerais, e teve a prova de que agia bem. OsdeputadosdalinhadeCostaCabraltinhamsidotodoseleitos,numavitóriaretumbantedoseuministro.Agoranãoapodiamacusar deterumvalido,comotãodesagradavelmentealguns jornais insinuavam.Valido?Seopaístodoodesejava?Infernizavam-lheavidaporquedecidiapelasuacabeça,edepois, quando desejava o mesmoque os portugueses, chamavam-lhenomeseacusavam-nadequererumaditadura.

Picou-se no dedo, e deu um grito de dor. Era o que dava não estarconcentradanoquefazia.Chupouosanguequecorriadapicada,evoltouaobordado.UmpeixequeriaomeninoLuísna fraldado mano,umpeixeteria.

Em Portugal os assuntos parecem ter acalmado, embora me tenhamchegado notícias de que as eleições foram tuna fraude, completamente

manipuladasporCabral,queobjetivamenteagecomouniditador. Ao queparece,atéoseuirmão,atéagoraaliadoindefectível, jásepassouparaashostesdaoposição,quesequeixamdequeas liberdadesestãocoartadas,e que, como sempre acontece, uniram muna só força as posições maisantagónicas.PerceboodesesperodeMaria,porqueaté osmiguelistasqueaindatêmpodernopaíssealiamcomaesquerda,comose comungassemideias. O que comtmgam é propósitos, ou seja,desestabilizar o país eenfraqueceracoroa.

O primeiro-ministro, suponho que in luenciado pelo nosso embaixador,queixa-se sobretudodeCarlDietz.OpreceptordoFernando, e agoradospríncipes,fazpropagandadeCostaCabralemtodosos lugares,dosalãodefestas ao jantar entre diplomatas. O pior é que os jornais e a oposição jáperceberam que têm ali um ilão, e escrevem constantemente queFernando não é mais do que um fantoche dosingleses, e que éinconcebível que os príncipes sejam educados porum estrangeiro, e quefalemmelhoroalemãoeofrancêsdoqueoportuguês.Otolodoprofessor,em lugar de se manter quieto e calado,faz gala da sua in luência, eproclamaqueosreisnadadecidemsem oconsultar,queosseusatemosorespeitam muitíssimo, e que aindabem que falam línguas mais úteis aoengrandecimentodePortugaldoqueoportuguês.OAlbertestáforadeside fúria, e escreveu ao primoFernando a pedir-lhe que corra dali comDietz.Acartaquerecebeuemrespostaédeumaimprudênciatotal.Dizoreique icariamuitoinfelizde icarsemele,equenãoteriaamenorpenade sair de Portugal. Dizeristo é uma loucura e perigoso, não vá um diaacordareperceberqueosportugueseslhefizeramavontade.

CastelodeWindsor,10dejunhode1842

PaláciodasNecessidades,4deabrilde1843

arfaestavazangada.Nadalhecabia,nenhumdosvestidosdagravidezanteriorapertava,enemsequerconseguiavestiroscasacos,oucalçarossapatos,eaindaparamaisdiscutiracomFernando,queachavaperigosaanomeaçãodeAntóniodaCostaCabralcomoconselheirodeEstadoefetivo,comosearainhadevessedarouvidosàmá-línguaeaosjornais.Faziahoje24anos,esentia-sefeia,gordaeirritadacomtodososquearodeavam.

As criadas empurraram Lurdes para dentro do quarto. Só ela é queconseguiasossegararainhaquandoestesraros,masintensos,ataques defúriaaassolavam.Mariaviu-a,echamou-a:

- Porque é que ninguémme disse que já nada me cabia? - protestou,indiferenteà faltade lógicadoseuargumento. -Nãoqueremque seja eu,comtudooquetenhopara fazer,quetambémdêavoltaaos vestidosnasarcas e perceba o que está bom e o que é para transformar em panos,não?Paraqueservetercamareiras,edamassenemistosabemfazer...

Lurdes concordava com tudo, mas, como quem não dá grandeimportânciaaoassunto,iaabrindoumaarcaquepermaneciafechada:

-Temtodaarazão,senhoraD.Maria,masachoqueseesqueceram destevestidoverde,quelhe icatãobem.Lembra-se,aquelequediz semprequetemacordovestidoque lhe izeramnoRiode janeiro paraosbailesdascortesdeLondres.

Mariarecuounotempo,distraída.

-Mascabe-me?-perguntou,numtomsuave,triste.

- É claro que cabe,Majestade, até porque seguiu aquelemodelo que arainhaVitórialheenviou,lembra-se,odosatilhosquesealargamàmedida

queagravidezavança...

- Gravidez, menina Lurdes? Que palavras modernas são essas? Umarainhaestánumestadointeressante...

-...oudeesperanças,temtodaarazão,senhoraD.Maria-disse Lurdes,com a expressãomais séria do mundo, enquanto chamavauma criada emandavapassaraferroovestido.

Mariajásetinhaesquecidodazanga:

- Lurdes, sabes que hoje recebi uma carta daminha irmã Francisca, amanaXica.

A criada apontou para o quadro pequeno que estava no seu lugar desempre, por cimadamesade cabeceirada rainha, juntodosde Januária,PaulaePedro.

-Éaterceiramenina,nãoé,senhoraD.Maria?

Mariasorriu:

-Aquarta,ouestásaesquecer-tedemim?Semprefoiaminhafavorita.Eagoravaicasar,imagina,comopríncipedeJoinville,umdos ilhosdo reiLuísFilipedosfranceses,opadrinhodomeninoLuís.Eamelhornotíciadetodas é que vem para a Europa, Lurdinhas, e vindo para a Europa vemcertamentevisitar-me.Aminhairmãquenãovejohátrezeanos.

A pobre Lurdes já estava baralhada com as genealogias, mas o queimportava é que a rainha tinha esquecido a sua fúria. Lurdes olhou-a eentendeu o desespero da rainha. As sucessivas gravidezes (estadosinteressantes!,repetiuasimesma)eoapetitedevoradorquemanifestavaquando estavapreocupada (e estavamuitas vezes, que aquelesministrosbem a exploravam até ao tutano, pensou a rapariga) tinham-na feitoengordar para lá do que era normal em todas as mulheres que tinhammuitosfilhos.

Quandoentrounosalão,estavaescurocomobreu,masderepenteacenderam-sedezenasdevelas.Aamatrouxe-lheopequeninoJoão,queacabaradefazer1ano,epassou-lhoparaosbraços.Luísavançou,noseu

fatodemarinheiro,eofereceu-lheumasflores,ePedroestavacoradodecontentecomoquetinhaparalhedar:umagaiolaenorme,quasemaiordoqueele,comumpapagaiodecoresgarridas.Mariaacolheu-osatodosnumenormeabraço.Sentia-seamaisfelizdetodasasmulheres.

Albertdeu-mealeracartadeumamigoqueesteveemLisboa,SintraeMafra comos reisportugueseseos ilhos.Tenho tantasdecisõesa tomaremrelaçãoaPortugal,quesequerocontinuaraproteger osmeusprimos,precisodeinformaçõesquenãomecheguemnemdiretamentedeMariaeFernando, nem dos nossos embaixadores ou comerciantes, que têmsemprealgumnacoisaadefender(eaesconder).Acartaerapraticamenteum relatório, de tão detalhado. Descreve o país comopobre, falido e compoucosrecursos,oPaláciodasNecessidadescomonãosendocondignodeser palácio real, elogia os reis, a beleza e a elegância de Maria, massimultaneamente a sua mais absoluta simplicidade, o que me agradaporque corresponde exatamente à memória que tenho dela e à imagemqueaquiloquemeescrevetransmitedesi.ElogialongamenteopequeninoPeter, Pedro deveria dizer, e diz que aos 5 anos mostra uni grau deeducaçãoedesagacidadequetrazconsigoapromessadequevenhaaserele o soberanoque consolida a monarquia constitucional no país. Fiqueiperturbadaquando diz «que Deus lhe conceda uma vida dilatada».Provavelmenteégraça,porquerecuperaraeconomiaportuguesaétarefade muitosanos, mas incomodou-me, talvez porque desde que sou mãetodos osdias tenho pesadelos com a possibilidade de algiuna coisaacontecer aosmeus ilhos. Não passa tuna semana que tuna criançaconhecidanãomorradesarampo,ouvaríola,devaricelaoudepneumonia,por muitosbons médicos que a assistam. Mas não posso, e não queropensar nisso.Fico feliz por ter enviado para Portugal oWilliam Barclay,para que inalmente possa ter retratos que façam justiça à beleza dospequeninosportugueses,quetodaagentegabatanto.

PaláciodeBuckingham,4deabrilde1843

PaçoRealdeSintra,30deabrilde1843

ernando,osenhoréquevaiconversarcomopintorenviadopelaprimaVitória,porqueamimparece-meumarrogante,convencidodequenosfazumfavor-disseMaria,entrandonoescritóriodomarido.

O rei franziu o sobrolho. Maria andava particularmente irritável porestes dias, descon iava que cansada de novo dos zunzuns da política,outalvez fosse só da gravidez, mas era o que faltava que começasse aembirrarcomo fantásticoBarclay,comquemsetinhaentendidotão bem,ansioso que estava sempre por gente vinda de fora, com uma conversamaisinteressantedoqueadamaioriadosportuguesesquefrequentavamacorte.

Arainhanãoesperouquelheperguntasseoquesepassava:

- O senhor decidiu que não quer fazer retratos separados, mas umacomposiçãoemqueosenhoreeuestamosincluídos,aproveitando-eusouuma voz trocista - «amagní ica profundidade da Sala dos Cisnes»,mas amimparece-meumdisparate...

Fernandocompreendiaafrustraçãodopintor,constantemente obrigadoa fazer a mesma coisa, de corte em corte, mas suspeitavaque desta vezMaria e Vitória estariam de acordo, e que se o pobre homem chegasse aLondressemasminiaturasaindaalguémlhecortavaacabeça.

Mariapercebeuqueganharaabatalha,emagnanimamentesugeriu:

- Vá lá, meu querido, os pequenos já estão prontos, vestidos a rigor, eportam-semuitomelhorseforosenhoradar-lhesordens...

Fernandosuspirou.Eraexatamenteocontrário,tendiaasermuito maiscondescendentecomosfilhosdoqueamulher,masfingiuacreditar.

-EoJoão,tambémláestá?-perguntou.

Mariaacenouquenãocomacabeça.TinhadecididocomVitóriaquenãovalia a pena retratar uma criança tão pequena, de feições ainda tão maldefinidas.

Maria sentou-se na sala onde descobrira, na parede do fundo, umburaco do qual se via tudo o que acontecia na Sala dos Cisnes. «Tive umantepassado tão curioso como eu», pensou a rir, enquanto, cheia deorgulho,viaPedro,comapenas5anos,sentar-senobancoqueBarclaylheapontava.Defatodeveludocordetijolo,degolabranca,comabandaeainsígniadasTrêsOrdens,eraacriançamaisbonitaque algumavezvira.ÀexceçãodeLuís,claro,pensouarir.Pelaprimeira vezmandara-lhecortaro cabelo à rapazinho, e o infante, vestidocomoo irmão,masnum fato deum azul cor do mar, a cor dos seus olhos, era de se comer. «Tomara aVitóriaterunsfilhosassim»,pensou,felizporteracertezinhaabsolutaquea prima se roeria de inveja.Depois teve remorsos. Coitadinha, estavaprestes a dar à luzmais umbebé, acontecimento que odiava, e esperavaquedestaveznãoselheseguisseatristezaqueaacometiasempre.Coisasde mulheres quenunca tinham vivido nos trópicos, pensou a rir,encostandodenovooolhoaoburacopeloqualpodiaverosseuspríncipes.

Acabei de enviar unia carta para Maria a contar-lhe que inalmenteconheciasuaquerida«mana ica».Vai icarcheiadeinveja,masseiqueafaráfeliz.Fizquestãodeconvidarosrecém-casadosapassar porcáantesde irem para Franca. Confesso que, para lá das razões diplomáticas,moveu-metunacuriosidadeimensaemsabercomoseriaestaprincesadequeMariafalaincessantemente.Esperavaencontrar tunaversãodeMariaquandonova,mas nãopodia sermais diferente, isicamente e de feitio. Éelegantíssima,muito bonita, e vai ser adoradapelos franceses. Demo-nosbemimediatamente,maisquenãosejapelolaçoinvisíveldeMariaquenosume.Émuitomaisponderadaquea irmã,evê-sequenãofoitãomimada.Fiquei fascinada com a paixãode ica por Maria, que sorte deve ser teralguém que gosta de nós tãoincondicionalmente... Ainda bem que VickytemoBertie e agora abebéAlice. Já retomei asminhas rotinashabituaisdesdeoparto,commuitassaídasaoarlivre,esinto-memuitomaisforteemelhor doque comosoutros. Seráporqueagora, embora continueanãoachartanta graça aos recém-nascidos como às crianças mais crescidas,

comoa minha querida Vicky, já sei que de pequeninas vão passar amaiores, e encaroo seu futuro commuitomais entusiasmo.Eo curioso éque parece-me que Maria tem razão quando diz que os bebés sentemquandonosinteressamosverdadeiramenteporeles,porqueaAlice parecemuitomais despachada do que os outros namesma idade. Vou dizer-lheisto tudo quando lhe escrever, porque sei que icará feliz. Até me rio aopensasnocomentárioquefará,qualquercoisadoestilo«Éclaroquetinharazão!».

PaláciodeBuckingham,15dejtuúiode1843

PaláciodasNecessidades,21dejulhode1843

arfaolhavaparaasuaMariaAna,emrendinhasefolhosqueVitórialheenviara-tinhamsidodapequeninaVicky,explicouaFernando,quenãocabiaemsidecontente.

- Depois de três rapazes, já lhe fazia falta umamenina, que o seguisseportodaacasacomolhosdeadoração,gostassedemúsicaedearte,elhepedisse vezes sem conta que a balouçasse nos seus joelhos - disse-lhe,naquele seu tom ligeiramente trocista com que escondia sempre acomoção. Vivera o parto com uma ansiedade imensa, enão conseguiraesconder as lágrimas quando o choro da bebé enchera o quarto. «Umaprincesa,cheiadesaúde»,disseraomédico,eratudooquequeriaouvir.

Fernandopegounabebéaocoloebeijou-lheatesta:

-Queriamuitoumaréplicadamãeeestacriançaétãoparecida consigo,minhaquerida.-Esentando-se,comabebéaocolo,procurounobolsoumembrulho, já aberto. - O meu pai mandou-me umretrato da sua novacunhada. Prepare-se! - Maria retirou o papel que envolvia a moldura, edeuumgrito:

-É feia,horrível,nadaparecida comaquiloqueomeu irmãoPedromedescreve.

Fernandofranziuassobrancelhas,dandoumagargalhada:

-Eomeupaidiz-meque jávemaquimuito favorecida,porque, ao queparece,alémdissoébaixaecoxeia.

Marianãoconseguiucontrolarumagargalhada:

-Porestaseporoutraséquepintamsempreapenasacarada princesa,quandose tratadeacasar...Diga lá,Fernando, sentiu-se enganado como

meu?

Fernandosorriu:

- No seu caso, juro-lhe que foi uma agradável surpresa, mas isso eraporque o seu pintor era mau. Mas o seu irmão vai ter um ataque denervos.Todaagentedizqueélindo,aos18anos,comummetroe noventa,olhos azuis e cabelos loiros, e chega-lhe lá, ao outro lado do oceano, umamulhercomoesta!Nãomeadmiravaqueserecusasseacasarcomela.

- Recusasse a casar?Mas o truque está aí, e eu não posso dizer nadaporque já o usei consigo: já estão o icialmente casados, D. Pedro II,imperador do Brasil, e Teresa de Duas Sicílias. O meu irmão parece-mebem-educado de mais para a rejeitar, mas lembra-se de lhe ter contadoqueomeupaipunhaabelezacomoaúnicadasquatrocondiçõesdequenãoabdicava?

Fernandoriu.Tinhapenadenuncaterconhecidoosogro,queera umapersonagem.

- Pode ser que sejam muito felizes, quem sabe, depois do primeiroembate-disse,voltandoariràsgargalhadas.

-Porque será quenãomepediramparamediar este casamento? Afinalsourainha,airmãmaisvelha,etenhobomgosto...Masagora adúvidaquesepõeéseescrevoàmarquesadeAguiarouàsenhoraD.Marianaeaviso.

-Nãomeparecenadasensato.Talvezsetransformenaviagem...

Mariariu:

-Andaa lermuitashistóriasaospequenos,éoqueé.Transformarestarapariganumabelezaécoisaquenemnoscontosdefadas.

Escrevi ao primeiro-ministro a protestar contra a ideia, que continua aser veiculada em todos os papéis o iciais que são apresentadosao

Parlamento sobre Portugal - e que misteriosamente chegam sempre aosjornais! -, dequeD.Mariadáo seubeneplácito à ditadura e à corrupçãoalegadamentelevadasacaboporCabraleosseushomens.Felizmente,noentanto, algum estranho acontecimento se deu, porque o nosso próprioembaixadoremLisboaparecevir agoradizerqueos reiso têmrecebidodeforniaencantadora,aceitandoconversarcomelesobretudo.Talvezsejaoprincípiodemelhoresrelações.

QuantoaMaria,diz-mequefezaspazescomasmeninas,porquetemacerteza de que a sua Maria Ana será muito querida. Apeteceu-meresponderquehámuitoquelhedigoomesmo,masaverdadeéque nemtentocompetircomelanoqueàmaternidadedizrespeito.Elalevatodasasmedalhascomomãe.Masnãopudedeixarderepararquediz que«estáatornar-senagrandefavoritadoFernando,comoprevia», paraacrescentar«quase sempre os pais gostam mais das ilhas». Será que reage àsraparigas,comoamadrastadaBrancadeNeve?Curiosamente,tambémeusintouninónoestômagoquandoimaginoqueomeuadoradoAlbertpodeamar outra mulher mais do que a mim,mesmo sendo a nossa ilha.Disparates.

CastelodeWindsor,20dejulhode1843

Viagempelopaís,outubrode1843

oraFernandoqueprepararaaviagem,comaajudadosprofessoresdosinfantes.Nãofaziaqualquersentidoqueospríncipes,esobretudoopríncipereal,nãoconhecessemopaís,nuncativessemsaídodeLisboaearredores.Pedroestavaentusiasmadíssimocomosquinzediasdeviagem,ehádoismesesqueestudavatodosossítiosquevisitariam,porquenãoqueriaserapanhadodesprevenido.

-Nãoseioqueéqueomeninolávaifazer,sejásabetudo.Por amordeDeus, não fale às pessoas com esse ar de pedante - repreendeu-oMaria,logonaprimeirahoradeviagem.

Aos 6 anos, Pedro podia ser o maior dos encantos, mas tambémumacriançapetulante,convencidadequeasabedoriadoslivroseratudo,equesóelesabiaconsertaromundo.

Mariainsistiu:

-Estouafalarasério,Pedro.Omeninovainestaviagemparaver, ouvireaprender,nãoéparadarpalpites.Lembre-sequeaspessoas quetemàfrente não lhe podem responder à letra, por isso fale com cuidado erespeito.

Pedrocoroudefúria,eescondeudamãeoblocoonde,desdeaportadasNecessidades,apontavanotas.

-Dietzdizqueomaldopovoportuguêsénãoterninguémquelhedigao que fazer, e como se faz. Estamos atrasados em tudo, olhe para estasestradas, mãe, e nem sequer temos caminhos de ferro, e os vapores sãoimportados...

Mariasegurou-lheobraço,eapertou-ocomforça:

- Senhor D. Pedro, os portugueses são bons em muitas coisas, serão

menosemoutras,masomenino,umacriançade6anos,nãovaipassarospróximosquinzediasahumilharaspessoas,eadarrazãoaos que dizemqueoseuprofessornãogostadopaísemqueviveeoensinaadesprezaropovosobreoqualvaireinar.

Pedroficousubitamentebranco:

- Não, o Dietz não tem culpa, ele só me diz a verdade, não lhequeroarranjarsarilhos.

-Masarranjasecontinuarassim,porissodigo-lhe,pelaúltimavez:tomeas notas que quiser, mas só fala delas ao rei e à rainha, e aos seusprofessores,eemparticular,ouviu?

Pedrobaixouosolhospelaprimeiravez,econcordoucomacabeça, massemdizerumapalavra.

- Que alívio, calou-se - disseMaria a Luís, que não se atreveu arir dagraça da mãe com medo das represálias do irmão. E durante as trêssemanasdeviagem,deLisboaaoAlentejoeaoAlgarve,edepoisdevaporpara o Norte, Pedro procurou distância em relação à rainha. Eescrevinhava furiosamente no seu diário. «Esta fábrica com metadedosempregados era mais produtiva», leu Fernando, por cima do ombro doilho.Comcalmafechou-lheocadernosobreosdedos,emurmurou-lheaoouvido:

- Aprenda a usar a memória, meu ilho, porque os papéis escritos sãosempreperigosos.

EscrevitunacartaaMariaacontar-lhequeencontreiváriasminiaturasde Catarina de Bragança quando era nova, e que é espantosa a suaparecença com a ica, de quem gosto tanto. Prometi-lhemandar-lhe tunacópia,paraverquenãoexagero.Semprefoitunacartadiferentedoqueashabituais trocas de recomendações e protestos, que cansativa é a políticaportuguesa. Distraí-a com histórias dos meus ilhos e mandei-lhe asmedidas de Bertie, porque quer mandar fazer-lheuni capote alentejano,

quenãoseibemoqueé.Atrevi-meacontar-lhequeBertieéfrancamentebonito, Vicky é linda, e Alice tuna bolaredonda e divertida. Pelo menosquando escrevo a Maria sei que nuncame considera presunçosa porelogiarosmeus ilhos.É,aliás,oqueelafaztodasassemanasquandofaladosdela,comomaiorà-vontade.

CastelodeWindsor,24deoutubrode1843

PaláciodasNecessidades,23dedezembrode1843

ãe,venhadepressa,estáacomeçar-disse-lhePedro,

Oquartodebrinquedosestavaàsescuras,ea luzquevinhadastochasdocorredordeixavaverapenasascadeirasquetinham sidopostasumasatrás das outras, como num teatro. Para espanto da rainha, a maioria jáestava ocupada, porque o príncipe arrastara para a sua peça todos osprofessores,asaiaseasdamas,eatéLurdinhasestavaláatrás,depé.

Opalcoforaconstruídocompaletesdemadeira«roubadas»às obrasdopalácio,eascortinasimprovisadascomaajudadacostureiradopaço.

Quando a viram chegar, os espectadores levantaram-se, para sesentaremdenovoaumaordemsua,eMariaocupouo lugarque lhe forareservado na primeira ila, ao lado do rei e de Dietz, cada um maisorgulhoso do que o outro. O programa, numa letra desenhada e perfeita,anunciavaonomedapeçaempalco.

«JacódeBerinhão»,leuarainha,divertida.

-FoiescritapeloPedro?-perguntoubaixinhoaomarido.

-Escreveu, encenou e produziu - respondeu Fernando, enquanto Mariafolheavaembevecidaaspáginas impecavelmenteescritas, semum borrãoouumamancha.

-Devíamos tê-lo encarregue da construção do novo Teatro D. Maria II,quenuncamaisestápronto-disseDietz,eostrêsriramdiscretamente.

Ouviu-seas trêspancadasdeMolière,eascortinasabriram. João era apersonagem principal, um papagaio amarelo, de asas azul-turquesa, umpapagaio de pronúncia brasileira, num fato encomendado em segredo àscostureiras. Luís era o comerciante, encarregado de enviar o bicho paraPortugal, e a pequenina Maria Ana, com o seucabelo loiro-arruivado, a

damaqueapanhavaospássaroseosembarcavaparaatiaemItália.

Maria sentiu um nó na garganta. Quantas vezes contara históriasdoBrasil, falara dospapagaios, daquela sua terra, e agoraPedro reproduziatodas as suas memórias numa peça... E ele próprio faziao papel do«Marquês de Trucutchim», uma cópia de Barbacenamisturado com umbocadinho de Mareschal, pedaços das descrições que lhe fazia. Toda agentebateupalmas entusiásticas, e ospríncipesvieramagradecê-lascomvénias,comosefossemverdadeirosatores.

Depois, eles próprios serviram um pequeno lanche, sentando o pai, amãe e o preceptor em cadeiras decoradas com azevinho e folhas decaméliadojardim.

-Fernando,PedrodeuopapelmaisridículoaoLuís-murmurou Maria,perplexa.

Dietz encolheu os ombros, como quem diz que o infante D. Pedro aténisso era inteligente e compreendia que o seu irmão não era dos maisdotados intelectualmente, optando por dar destaque a João, omaisparecidoconsigo...

Mariafranziuosobrolho:

-Dietz,falamosdepois.

- Não arranje problemas onde eles não existem, olhe como Luís estácontente-protestouFernando.

-Nãose importaporque tembom feitio,masse calhar importa-semaisdoqueparece...

- Mas Pedro deu-lhe uma parte em que toca violino, e sabe comoelegostademúsica.

Mariaencolheuosombros:

-Nãosuportocriançasvaidosas,ealémdomaisnãoéboaideiainvestirapenasnoprimeiro-disse,comdureza.

- Maria, não faça premonições assustadoras. Pedro vai ser um reiextraordinário-disseFernando.

Mariaprotestou:

- Claro que vai, mas não quero rivalidades entre os meus ilhos. E oPedro tem 7 anos, por amor de Deus, aos 7 anos eu já era rainha dePortugal!

Fiquei contentepor saberqueaminha favorita icaestáao cuidadodotio Leopoldo. Não me posso esquecer de dizer a Maria que otio gostaimenso dela, e que é conhecida em todo o lado onde vai como«a BelaFrancesa».Émuitobonita,defacto,mastemanaturalidade deMaria,queencantasempre.

Voltámos de tuna visita à Universidade de Cambridge, e raramentefomos recebidos com tanto entusiasmo, sobretudo pelos undergraduates,osqueestãoaestudarparatunalicenciatura.Receberamo meuanjocomimensoentusiasmo, oque é importante, porque tenhoconsciênciadequeestes jovens terão todos, a seu tempo, um papel importante adesempenhar no progresso do país. Estou certa de que acontecimentoscomoestesdeixamtunamarca.

Foibomvoltaracasa,eascriançasestavamtodasbem,masa«bucha»da Alice (que está mais bonita de dia para dia) está cheia dedores deouvidos,coitadinha.AVickyjásabeoalfabeto,eatéjáconseguelertunaououtrapalavra.Fiqueiemocionada.TenhodecontaràMaria,aotioLeopoldoeatodaafamília.

CastelodeWindsor,23dedezembrode1843

PaçoRealdeSintra,agostode1844

odososdiassubiamàPenaparaveroavançardasobras.Opátiojáestavafeito,ecomeçavamagoraaconstruiroedifícioprincipal,eospríncipescorriamentreasrochas,enquantoFernandodiscutiaplanoseinspecionavaasobras.

Mariasentava-seàsombra,numacadeiraquejáeracativa,comalgumasdassuasdamas,econversavam,faziamcrochet,emantinhamumolhonascrianças. «Pobre Saldanha, e pobre Augusto», comentou a rainha,recordando-sedomarechalqueadoravaestaserraequeem Viena, ondeestavacomoembaixador,perderahámeseso seu ilho mais velho, vítimadeumataquedebexigas.

-Jáosmandeivoltar,porqueapobremulhertemdireitoavirpara casadepoisdeumatragédiadestas-comentou.Ouvindoosgritosdospríncipesmaispróximos,olhouparadeondevinham,elevantou-se,zangada.LuíseJoãosubiamedesciamdeummontedeareiadasobras,comosefosseumadunanapraia,eespalhavam-naportodoolado,enquantoosconstrutoresosolhavamsemsaberoquefazer. Pousoua linhaeaagulhaefoiemsuadireção,furiosa:

-Querempararcomissojá-gritou,eospríncipesdeslizaramaté aochãoepuseram-seempé,sacudindoosfatos.

- Quero lá saber dos fatos,meninos. Já viram o que izeram à areia deque estes senhores precisam para o seu trabalho? Já pensaram natrabalheiraquedáacartaraquiparacimaareiaquevemali dapraia? -eapontavanohorizontedistanteoazuldomardaPraiadasMaçãs.

E pondo uma mão no ombro de cada um dos ilhos, virou-os paraenfrentaremosembaraçadosconstrutores,queprotestavamquenão faziadiferença,eordenou:

-Peçamdesculpa,eperguntemcomopodemajudararepararomalque

fizeram.

Luís e João balbuciaram uma desculpa, embaraçados, desculpa que ostrabalhadoresaceitaramcomvergonhaesurpresa.

- E agora desandem daqui, porque o que não faltam são árvores erochasaquepodemtrepar-disse-lhes,voltandoparaasuacadeira.

De um talhão mais acima, o rei olhou-a, embevecido. Admirava a suarainha.

Mariatransformaraaantecâmaradoquartonumpequenoescritório,ondetrabalhavacomFernandoaofimdamanhãeaoprincípiodatarde.HaviasempreummensageiroquetrazianotíciasdeLisboa,eMariafingiaprotestarporaincomodaremnestesdiascomafamília,masaverdade,eoreisabia-o,équedavaordensaCostaCabralquetodososdiasainformassedoquesepassavaemLisboa,nagovernaçãoenasCâmaras.

Hojeoenvelopeeragrosso,earainhaabriu-o,curiosa.Fernando, queiaaentrar,espreitouporcimadoseuombro:

-Umnovodiploma,ameiodoverão?-perguntou.

Mariaestendeu-lheasfolhas:

- Nãome quer dar uma opinião? Costa Cabral diz aqui que éum novodecreto que vai pôr ordem nos tribunais. Depois de mais uma revoltadestescabeçasdeabóboraemTorresNovas,queainda porcimauniutodaa oposição, é preciso endurecer medidas, senão depressa voltamos àanarquia.

Fernandopegounaspáginasquearainhalhedava,esentou-sea lê-lasnumdosbancosdepedradasjanelas,dequetantogostava.

-Perigoso,perigoso-repetia.

-Poupe-me,Fernando,tardanadavai-medizerquesecalharos inglesesachammal.

-Esedissereméporqueprovavelmentetêmrazão,minhaquerida. Têm

muitomaisexperiênciadoquenósnestetipodedocumentos...

- Mas por lá é tudo fácil, não têm de aturar estas criaturas, que semescrúpulossealiamcontraarainha.QueriavercomoéqueVitória reagiase vivessem num país onde os defensores do usurpador do seutrono secoligassem com a ala esquerda, tudo à mistura, só para fazer cair umministério,queaindaporcima inalmentepõeascontasemdiaepagaaosseusempregados.-Fernandonemrespondeu,continuandoaler.

-Não sei porque é queme criticampor con iar emCosta Cabral. Sómefaltavaquearainhade Inglaterra,quenãomexiaumapalhasem pedir aopinião do seu querido Melbourne, aceite que o seu governocontinue ainsinuarquearainhadePortugaltemumvalido-disse,furiosa.

Fernando levantou a cabeça dos papéis e, numa voz serena, tentouacalmá-la:

-Perceboqueessa insinuaçãodos jornais inglesesa irrite.Nãoimaginacomomeirritaamim?

Mariadesviouoassunto.Não,nãoqueriaimaginarcomooirritavaaele.

Umdoscriadosbateusuavementeàporta,paraanunciarachegadadoduque de Palmela. Maria murmurou entre dentes, para que só o rei aouvisse:

-Vemmesmoemboaaltura,edecertezinhaparafalardomesmo! Vejalá se em dois dias de ministério não conseguiu uma nomeaçãopara ogenro...

Fernandorevirouosolhosaocéu:

- Maria, não sei porque é que dá ouvidos aos intriguistas do costume.Queméquenomeouogenro?Arainha!Porissosódizmaldesimesma,demaisninguém.

Mariavirou-lheascostas.MalpormalaturariaPalmela,quepelomenosnãolherespondiatorto.

MasPalmela,naqueledia,respondeu-lhetorto,foimesmoinsolente.Para

ele este decreto, esta ideia de sujeitar o poder judicialao poder dogoverno,eraumprimeiropassoparaumamonarquia absolutista.Eseeraisso que a rainha queria, ele teria de aliar-se àoposição, porque foracontraoabsolutismoqueele,etantosoutros,tinhalutado.

Arainhaprotestou,efinalmente,zangada,mandou-ocalar.

Palmela,pelaprimeiravezdesdequese lembravade tersidorecebidapor ele à chegada a Inglaterra, olhou-a com toda a frieza, e aquelefriogelou-lheaalma.Masnãopodiaceder,comopodiatrairCosta Cabral,queassegurava a paz do reino? Com aquela habilidade que Fernando aacusava de requintar a cada dia, virou rapidamente o bico ao prego,enumerandomentalmentetodasosdefeitosdohomemqueoseupai izeramarquês e depois duque, e convencendo-se de que tinharazão, e queafinalestavafrenteaumoportunista,exclamou:

-Osenhorduquefaráoqueentender,queaconsciênciaésua. Sequeralinharcomosinimigosdarainha,élivredeofazer...

Palmela olhou-a, exasperado. Como é que lhe podia explicar que,aoalinhar-se completamente com o seu ministro, dava o lanco aosque aacusavam de ter delegado todo o seu poder naquele homem?Depretenderreinarcomele,numregimeabsoluto?

Procurandocontrolaraira,dissedevagar,soletrandocadapalavra:

- Não pode ouvir-me só quando lhe interessa o que digo, VossaMajestade.Oucon iaemmimparaaaconselhar,elhedizeroque acreditosernoseumelhorinteresse,ouentãoémelhorquenãomeescutedetodo.

MasnemPalmelaestavaàesperadafriezacomquearainhalhedisse:

- Tire as conclusões que quiser, e agora boa tarde, senhor D. Pedro,porquetenhoummontedecartasparaescrever.

OduquedePalmelaaindafezmençãodelhebeijaramão,masarainhajátinhasaídodasala.Duranteunsminutossentiuvontadedecorreratrásdela, como umpai vai atrás de um ilhomal-educado, eobrigá-la a pedirperdão.Maseleeraosúbditoeelaarainha,eos temposemqueeraumacriançaaseucargotinhamacabado.

Desceu as escadasprincipais dopalácio lentamente, os olhos postosnocimodaserra,ondeasameiasdocastelobrilhavamàluzdosoldatarde.

Nodiaseguinte,naCâmaradosPares,PedrodeSousaHolstein voltouàoposição.

Mariadepressaesqueceuodecreto,PalmelaeatéCostaCabral.ReceberaumacartadasuaqueridamanaXica,aanunciarquechegavadentrodedias.XicaeJoinvilleemsuacasa,emSintra,nemqueriaacreditaremtantafelicidade.

«Fernando, vai adorar a minha irmã. Tem o cabelo escuro, os olhosverdes, e é tão alegre, tão simpática...», exclamava, vinte vezes por dia,enquantomandava arranjar os quartos, punha jarrasde lores pela casa,escolhiaasroupasqueosfilhosdeviamusar.

Comocoraçãoabater tãodepressaquesentiuquetinhadepôr amãonopeito,Maria viu a carruagem chegar, e a suaquerida irmã, elegante etãobonitacomoaimaginara,sairdeumsaltoecorrerpelas escadasacimaparaaabraçar.

As damas entreolharam-se: a princesa de Joinville era de factodeslumbrante,massaíaàirmãnodesrespeitopelosprotocolos.Durante assemanas seguintes, asmanas foram inseparáveis, e as crianças trotavamatrásdelasdaPenaparaMafra,deMafraparaasNecessidades, as longastardesdeverãoemconversasememóriassem im,conta-mecomoestáoJaime, diz-me o que aconteceu àRosa, e amarquesade Aguiar como vai,semprecasacomMareschal,eosjacarandás estavamem lorquandodelásaíste,eomuseudamamãecontinuaintacto,ePedro,Francisca,conta-mecomoéoPedro, respeitam-no?, asperguntasemcatadupa,aqueamana,na sua voz cantada, respondia com entusiasmo, enquanto puxava MariaAna para o seu colo, oufalava com Luís da aventura de atravessar osoceanos.«Pedro,sabiaqueéomeusobrinhomaisvelho?Quandosoubedoseu nascimentofuia correrà IgrejadaSenhoradaGlória, a capelinhadasuamãe, eacendiumaveladeste tamanhopor si»,diziaaopríncipe real,fazendoogestodotamanhodavelacomamão.

-Queboméfalardenovoemportuguês-disseumdiarindo,enquantoabraçavaairmã.

- Mana, se soubesse comome sabe bem voltar a falar o portuguêsdoBrasil,parecequetudoficamaisbonito,easpalavrasondulamaosabordoventonotopodaspalmeiras-exclamouMaria.

Fernando olhou, espantado, para a mulher. O brasileiro quase que atransformavanumapoetisa.

A «praga» de fertilidade que Maria me lançou tem funcionadoimpiedosamente, e quer queira, quer não, sou a mãe de tuna munerosafamília, como a rainha de Portugal profetizou - Alfred nasceu há dias, evoltei a protestar contra os médicos. Não há meio de inventarem tunanestésico para as dores, mas en im, já passou, não quero pensar maisnisso.ApobreMaria,pelomenos,écoerente,porquedesejapara siaquiloque prega aos outros. Diz-me, em tom de brincadeiramas percebi que oassunto é sério, que os médicos lhe recomendaram todas as cautelas,porque está muito gorda e temem que um bebé excessivamente grandepossamorrerantesoulogodepoisdoparto,pondotambémemriscoavidada mãe. Recomendei-lhe todos os cuidados,mas suspeito que não teránenhuns, e Fernando diz-me que continuaa envolver-se na política detodososdias,vivendocomintensidadecadamomento.Suspeito,paramais,queestesnovemesesserãomaisagitadosdoqueaquelesemqueesperouMariaAna, porque a situaçãopolítica emPortugal volta a estar viradadoavesso. Houve tuna revoltaem Torres Novas, que o nosso embaixadorclassi ica de muito grave, eas medidas tomadas por Cabral parecem sótendentes a agravar o descontentamento.Mas aquilo a queos reismmcase referem é à acusação crescente de que o ministro e a sua famíliaenriquecem a olhos vistos,um enriquecimento ilícito que não resistiria aumainvestigação.Echocantecomocolocaafamíliaeosamigosemtodososlugares,desdeosdiretamenteligadosaopoderatéaospostosimportantesnas repartições públicas. E o pior, se é que é possível haver pior, é quedepoiscada um dos seus apaniguados faz o mesmo, e a árvore donepotismotorna-semunafloresta.

Felizmente,Mariatemestadodistraídacomavisitadefica.Agoraéavezde a sua irmã Januária casar com o Luís de Duas Sicílias, príncipe deNápoles, tuna troca, no fundo: a irmãdeLuís será imperatriz doBrasil, e

vaiacaminhodoRiodeJaneiro,eJanuáriavemparaa Europacasarcomoseuirmão.TenhodepediraMariaquemedêmaisdetalhes.

CastelodeWindsor,agostode1844

PaláciodasNecessidades,26dedezembrode1844

urdinhastratoudobanho,apedidodarainha,queestavacan(sadaegelada,abarrigajáenorme,oarafaltar-lheporvezes.Nosúltimosdias,comospreparativosparaoNatal,estiverahorasdemaisempé,oudebruçadaafazerembrulhos.ParouporminutosparaolharparaascaixasdesoldadinhosquemandaracomprarparadaraPedroeLuís,eramtãoengraçados,tinhadelhespedirparaadeixarembrincarcomeles,pensouarir.Masvaleraapena,sóparaveraexcitaçãoeoencantamentosobretudonacaradosmaisnovosquandoFernando,vestidodeSãoNicolau,entrarapelasalaparalhesdarospresentestiradosdoseusaco.ApequeninaMariaAnacorreraparaocolodaama,assustada,eJoãoestenderaasmãos,ansiosoporreceberaflautaqueescreveraapedir,masàcautelaencostara-seàspernasdePedro,quelhepuseraumamãoprotetorasobreoombro.Osmaisvelhosjápercebiamqueeraopai,obviamente,masmantinhamoentusiasmo,comosenãoquisessemcrescer,nemdeixaramagiaescapar-se-lhesentreosdedos.HojeestiveranacerimóniadenomeaçãodeAntónioBernardodaCostaCabralcomopardoReino.ÉclaroquesabiaqueSaldanhaePalmelaestavamamuados,assimcomoquasetodososoutrosaristocratasdoreino,masquerialásaber.Oseuministrobemmereciaadistinção,eescrevera-lheumbilhetetãosentidodegratidão,queoleradezvezesdeseguida.Podiamdizeroquequisessem,masnãoseriacomoopai,queafastaraodedicadoJoséBonifáciodeAndrada,oúnicohomemquedefactoseinteressarapelodestinodoimperadoredasuafamília,sóporqueosintriguistasdacortesesentiamincomodadoscomasuacompetênciaeverticalidade.AtéVitórialheescreveraarecomendarcuidado.Cuidado?Cuidadodeveriatê-lotidoelaquandoseentregavacegamentenasmãosdelordMelbourne,enessaalturaela,Maria,nãoatinhacriticadoumaúnicavez.

A rainha de Portugal perguntou-me como é que osmeus ilhosrezam.

Provavelmentecuriosidadedequemnãoentendebemasdiferençasentreas nossas igrejas, e julga que a Igreja anglicana é muito diferente daromana, e será nalgumas coisas. Disse-lhe que rezam à noite, nas suascamas, mas sem se ajoelharem, porque me parece absurdo que sejaprecisoporem-sede joelhosparaqueassuasorações sejamouvidaspeloAltíssimo ou se tornem mais sagradas. A Vicky estáa aprendê-las muitodepressa,masoBertieémaislentonaspalavras doqueairmã.Mariadiz-me que as raparigas costumam falar maisdepressa do que os rapazes,masquetambémhágrandesdiferenças entreeles,equeenquantoPedrofaloumuitocedo,omaisnovo,opequeninoJoão,émaispreguiçoso.Eri-meda forma franca comoprotestou contra o que lhe escrevi, argtnnentandoqueoAltíssimomereciaquenosajoelhássemosperanteele,simsenhora,equelhepareciaestranhotuncomentáriodessesdeumarainha,aquemossúbditos faziamvénias e dobravam o joelho para beijarem a mão.Reconheçoque,comasuasimplicidade,acabamuitasvezesporterrazão.

CastelodeWindsor,28dedezembrode1844

PaláciodasNecessidades,17defevereirode1845

ntóniaMariaFernandaMicaelaGabrielaRafaelaFranciscadeAssisAnaGonzagaSilvériaJúliaAugustadeSaxe-Coburgo-GothaeBragança»,recitouomanoPedrodeumfôlegosó.LuísriuàsgargalhadaseJoãoeMariaAnajuntaram-seaocoro.

Arainhaolhouparaasua«trupe»,comoagora lheschamava, e juntou-seaoriso.Pedroeraaltoparaosseus7anos,Luís,mais largodoquealto,aos 6 anos lembrava-lhemuito como fora na idade dele, João, com 3, eraumsoldadinhosempreacopiarosirmãosmaisvelhos,eMariaAna,comassuastrançaslouras,umaboneca quesóapeteciaapertaredarbeijinhos.Eagora Amónia, com este longo nome o icial, estava certo e sabido que iaacabar por se chamar «Tonica», comoosmais novos já a chamavam. Eratão rosada equerida, adormecidano seuberço, imperturbável apesardaalgazarraqueascriançasfaziamemredordelanestequartotransformadoemnursery,ondeosmaispequenosobjetivamenteviviamdiaenoite,soboolhardasamasenoaconchegodeumasalamandragrandeque Fernandomandarainstalar.

Deixou-se balouçar na cadeira que comprara especi icamente para sesentarconfortavelmente,enquantoosviabrincaràsuavolta,edeugraçasaDeuspelafamíliaquetinha.Fechouosolhospormomentosepensouemcomo o imperador do Brasil, o mano Pedro, estaria a esta hora tambémdebruçadosobreumberço,paideumAfonso,que esperavasinceramentesaíssemaisao ladopaternodoquematerno,pois, emboraconformadoaocasamento, o imperador continuava consternado com a mulher que lhecalharaaosdados,comodiriaamãeseestivesseviva.

Bateu palmas, e o silêncio caiu sobre a sala. As amas olharam-na,invejosas. Tomara a elas conseguirem que os infantes se calassem tãodepressaquandolhesordenavamsossego.

- Já chega de festa à volta da mana. Pedro e Luís, não são horas de

lições?

Virando-separaaaia,dissenumtomdevozquenãoadmitiadiscussão:

-Seiqueospóneissãocalmos,masoJoãonãomontaacavalosemusarotoquequeSuaMajestadearainhaVitórialhemandou,ouviu?

Luís,aoouvirqueoirmãoiaandaracavalo,protestou:

-Hojeésábado,mãe,nãopossoircomele?

-Omeninoachaqueéasuamãequedecideohoráriodassuas lições?Seosseusprofessoresperdemoseutempoaensiná-lo,quemé omeninoLuísparadizerqueprefereirmontar?

Luísnãovoltouainsistir,masaslágrimassaltavam-lhedosolhos. Pedro,numgestoinusitado,pôs-lheobraçoàvoltadopescoçoesussurrou-lheaoouvido:

- Não seja tonto, nunca se pergunta à mãe coisas dessas. Faça ostrabalhosdepressaevaiverqueopaiouoDietzodeixamirmontar...

Mariaolhousatisfeitaparaaama,e,certi icando-sequeosseus ilhos jásetinhamafastado,disse-lhe:

-Aténemmeimportodefazeropapeldemá,secomissoPedroformaismeigocomoirmão.

Aamasorriu:

-Estãoacrescer,Majestade.

Mariasuspirou:

-Felizmente,tenhoosmaispequeninosqueaindagostamdetreparparao meu colo, e ir comigo ao Passeio. Espero que já estejam prontos, quequero apanhar ainda o sol, que só os portugueses é que icamem casanestesdias,dizendoqueestãofriosdemaisparasesairàrua.Haviamdeter morado como eu em Londres, onde, apesar da neve e do gelo, aoprimeiroraiodesoltudoandaláfora...

Aamaolhou-a,divertida.Eradiferentedasoutrasmulheres,esta rainha.Jásecomentavaporaíquederainhatinhapouco,detalformainsistiaemandar vestida de fazendas grossas e chitas, sentando-senum banco doparque a fazer renda, com os ilhos de volta a brincar, como qualquermulherburguesa.Burguesanão,pensouaama, rindoparadentro:oqueas burguesas não lhe perdoavam era este jeito simples, que deixava aparecer ridículos os seus fatos vindos de Paris oufeitos pela madameLevaillant, a que toda a Lisboa chique ia. As más-línguas diziam queacabaria como a imperatriz Leopoldina, gorda, precocemente envelhecidaportantasgravidezes,en iadaemvestidoscoçados,comosetivessemaisoquefazerdoqueperdertempoemgrandesarranjos.

Maria percebeu que o olhar da ama estava preso nela e leu-lhe ospensamentos:

- Ó rapariga, deixa lá o que dizem as víboras, que essas hão de estarsempredescontentes,eprepara-meéosmeninos,quedaquia nadaoSolpõe-seenemsaímosdopaço.

Finalmente encontrei tempo para responder ao pedido do Pedro dePortugal. Achei graça que aos 8 anos quisesse uma lista das espécies depatos que temos emWindsor, e também dos cães e de todos os animaisque possuímos, embora Maria acrescentasse logo que se dessemuitotrabalhonão izessecaso,masaverdadeéquetratodistocom gosto. Nãoseiparaqueéqueaquer,mascomoéunirapazinhosério ecircunspecto,suponhoqueseráparaalgmntrabalhocomplicado. NoNatalpediu-meumatlasgeográ ico,paraele,eunigloboterrestre paraoLuís,tudopresentesmuitoacadémicos.Confessoque iquei felizquandoMariamedissequeoJoãoqueriaumcavalinhodepau,pelomenosdesejammbrinquedo,oquemeparecesaudávelmunacriançade3anos.

Primeiro pensei que eram fantasias da Maria, que gosta sempre decompetir em tudo,mas Albert corresponde-se com Pedro e diz que ele émesmo assim, e parece admirar de facto o seu empenho e capacidadesintelectuais.Suponhoqueéporissoquehádiasemqueovejoolharparaonosso Bertie com irritação - o pobre do nosso ilho tem di iculdade em

aprender, e a culpanãoédosprofessores, que jámudámos várias vezes.Parece preguiçoso, e enerva-me imenso que enerve o seu adorado papá,quenãomereceterumfilhomimadoeindolente.

PaláciodeBuckingham,20defevereirode1845

ConventodeTomar,10desetembrode1845

medidaqueosmaisvelhoscresciam,maioreraaexcitaçãocomestemêsabanhos,passadoaliondeaságuasdoTejocorriamcalmasequentes.Pedrouçoseraapraiaperfeita.

A mudança implicava preparativos, um ror de criados, cozinheiros erestantepessoalqueliteralmenteandavamcomopaçoàscostas, tornandoesta instalação provisória numa casa real com o máximo de confortopossível.Astapeçariaserampenduradasnasparedes,as cómodaslevadasemombros,ascamasmontadasedesmontadas,osespelhosencostadosàsparedes,eoscanapésarranjadosnumasalaimprovisada.

Este ano Pedro, que estava prestes a fazer 7 anos, insistira em trazerconsigooslivros,ogloboeosmapas,acoleçãodeinsetosembalsamadoseo compêndio de Botânica, tudo em duas arcas que guardava com a vida,insistindo em viajar na mesma carruagem que elas, nãofossem os seustesouros perder-se. Luís e João troçavam do «mano marrão», e estavameraansiososqueosprofessoresseperdessempelocaminhoparapoderemmergulhar todo o dia e brincar na praiacom os ilhos dos membros dacorte que tinham casa ali perto, oualugavam-na para seguirem oscostumesinstituídospelafamíliareal.

AduquesadePalmelaaconselhara-lheumasbraçadeirasdecortiça, queagoraoreiinsistiaqueosfilhosusassemnosbraços.

-Sevejoalgumdosmeninospróximodaáguasemestasboias,prometo-vosquevãodiretosparaasNecessidadese icam ládecastigoorestodoverão-diziaaosrapazes,numtomdeterminadoqueraramenteusava,eosrapazes, percebendo que o pai não faria concessões, usavam-nasreligiosamente.

«Ainda tenho pesadelos quando me lembro de como o Pedro se iaafogandonaqueletanqueemMafra,convencidodequeaos6anosjásabia

nadar, e nós todos ali à volta à conversa, sem darmos por nada»,justi icava-sevezessemcontaaDietzouàrainha,paraexplicarporqueserecusava a ir a banhos para a Praia das Maçãs, onde o mar eraexcessivamenteperigoso.

Mariaprotestavacomoexcessodecuidados:

- Fernando, quermesmo que o Pedro acabe uma lagarta dos livros? Acriança estragaos olhos com tanta leitura, e daqui a pouco é omotivodetroça das crianças todas das redondezas, porque não aprende a nadar,nemandacáforaacorrer,apanhandooarfrescodequeprecisa!

Dietz interrompera a discussão, prometendo que quando os reisestivessemforainsistiriaemqueoinfantepassassemaistempolongedoslivros. Dietz icaria responsável pelos príncipes enquanto os reisestivessememcasadeCostaCabralemTomar,decidiraarainha.

Maria tinha consciência de que os jornais iam fazer primeira páginadesta sua estadia. Era aprimeira vezque a rainha icava foradeum dosseuspalácios,enobreseburguesesroer-se-iamde invejaporo escolhidoparaacolherosreisser,exatamente,oseuministromaisdetestado.Aqueleque,juravam,construíraumpaláciodignodeSuaMajestade,comdinheiroroubado. Mas a rainha ignorava avisos. Que lhe importava que unspapalvos, como gostava de lhes chamar, tivessem posto a circular unsversos medonhos, em que a incitavama voltar ao aconchego do lar e aocuidadodosfilhos,emlugardesemeteremcasadeumvalido.

Filhos, lar? A rainha de Portugal era muito mais do que mãe eeducadora,erarainha,ponto inal.Eumarainha iaondequeria, e achavaquedeviair.

Temera que Fernando se deixasse in luenciar por estas maldadesviperinas,mas o rei estava ansioso por ver o Convento de Cristoao vivo,certodequepoderiacopiarumapartedaarquitetura,adaptando-aàPena,como já izera comváriosdoselementosmaisbonitosdaTorredeBelém,alémdequequalquerpretextoparasairdeLisboaerabem-vindo.

Finalmente o seu querido Costa Cabral teria a oportunidade delhemostrar o novo palácio, e, mais do que isso, que obras deixava-as aomarido, teriamtodoo tempodomundoparadiscutiroestadodanação, a

política do governo, o futuro, em passeios pelos jardins loridos, ou nosserões, cheios demúsica e alegria. Sorriu, iria surpreendê-lo dando-lhe otítulodecondedeTomar.

Onossoembaixadorescreve,preocupado.Comosenãobastassetorná-loconselheirodeEstadoefetivoepardoReino,Mariadecidiuirpassarumasemana ao palácio de Costa Cabral e dar-lhe o título deconde de Tomar.Mal sabe ele que a rainha me escreveu de lá a contar, muna felicidadeadolescente, que Costa Cabral deu a um cruzamentonovo de caméliasbrancas dobradas o nome de «Maria Real». Palmela confessou comdesgosto ao nosso embaixador o quão desesperado icouquando soubedesta visita, perguntando-se como era possível que ela se lançasse assimpara as mãos de um homem tão ambicioso e autoritário.Tenho de dizerqueme espanta a insensatez,mas talvez não estejam aperceber bem osobjetivosdeMaria.NãoseráqueéelaqueusaCostaCabralparasevingarde todos os que a têm humilhado ao longo dosanos? Compreende-se aamarguradePa]rnela,masaverdadeéque sintoarainhadesesperardassuas hesitações, como se irrita com asminhas. Temo, no entanto, quevenhaapagarumpreçodemasiadoaltoporestaconcessãoaumcapricho.Ohomeméodiado,eprotegeralguémquerecolhesobresitantoódionãoésensato.Avervamos.Maistunavez.

CastelodeBalmoral,15desetembrode1843

PaláciodasNecessidades,15dedezembrode1845

médicoacabaradechegarparaaver.

- Não me diga que me vai perseguir durante os próximos setemeses,Teixeira - dissera-lhe Maria, com uma familiaridade simpática, mas quedisfarçavamalaimpaciência.

-Parecequesim,senhoraD.Maria.Têmsidomuitasgravidezesseguidas,e...

- Ai, Virgem Maria, não me vai dizer que nove pratos por refeição édemasiado e que ganheimuito peso, pois não? É que para isso bastaumespelho,nãoéprecisochamarumfísico!

Omédiconãoconseguiadeixarderircomasrespostasdarainha. Tossiuparadisfarçaragargalhada,einsistiu,sério:

-Ia pedir-lhe que não passasse tantas horas de pé, e em reuniões tãolongasecansativas...

-Pormimnãopossoestarmaisdeacordo.Porqueéquenãoreceita aopaístrabalhoepaciência,paraversedeixamdesairàruaaprotestarportudoepornada...

Omédicosorriudenovo:

-Possotentar,Majestade,massuspeitoquenãoseriasóarainha a ingirquenãomeouve.

Foiavezdearainhasorrir:

-Destavezomotivodarevoltaédoseupelouro,senhordoutor. Ocondede Tomar decretou a proibição de enterrar em igrejas, por razõespuramente sanitárias, uma coisa que qualquer pessoa entende,e esta

gentalhaameaçao trono?Temalgumnexo,umacoisadestas?Masamimnãomeenganam - istonãoéopovo,porqueopovogostada rainha e dapaz que oministro lhe trouxe, isto é coisa da oposição, e quando é paradizermaljuntam-setodos,atéosmiguelistas...

A pele branca do seu rosto tornara-se vermelha, o sangue subia àsmaçãs do rosto e deixava-lhe os olhos brilhantes de convicção e fúria.Omédicoacenouacabeça,preocupado:

- Senhora D. Maria, vê como lhe fazem mal estas a lições? Deixe-memedir-lheopulso.Vêcomooseucoraçãobaterapidamente? Faz-lhemalasi,efazmalaobebé.

Mariasentou-separatrásnacadeiraemordeuolábio:

- Não seja agoirento. Olhe lá como a minha trupe brinca aí peloscorredores, não os ouve? Gente commais saúde, graças a Deus, e é comsaúdequeopróximohádevir, eagoranãose falamaisnisso, quehádetermaisdoentesaprecisaremdesi.

Omédicofez-lheumavénia,beijando-lheamão:

-Umhomemsabequandoumarainha lhedáordemdemarcha- disse,rindo.

-UmfelizNatalparasi,Teixeira-disseMaria,rindo.

Volto aomesmo,nãopossodeixardevoltar. Équenão sei oque passanacabeçadeMaria,ouseránocoração?Agoradeuumtítuloa urnirmãode Costa Cabral, nomeia outro para a Câmara dos Pares, e até o pai já édeputado. Enquanto isto, Fernando mantém-se impávido,o que aindaagravamaisaopiniãoqueemPortugalenoestrangeiro delesetem,omeuqueridoFernandoquetodossabemosqueétãopuro decoração,masquevive iludido emal aconselhado por CarlDietz, quenunca escondeu a suapreferência por um regime absolutista. Infelizmente, não dão ouvidos aonosso embaixador, eMaria escreve-me que ele alinha com a esquerda, o

que até podia ser verdade, não fosse arainha também desprezar osconselhos de Palmela, de Lavradio e detodos os homens reconhecidoscomo leais e sérios, dentro e fora de portas. Albert está zangado, porquedizquetantoFernando,comoDietztinhamaobrigação,pelaformaçãoquetêm, de saber analisar as inanças do país, os impostos cobrados erecebidos, as contas do Orçamento, a falta de crédito nacional einternacional, e aí icariam semdúvidasnenhumas. ÉquePortugal está àbeira da bancarrota, os impostos subiram astronomicamente, e se éverdadequeonovoministrofoicapazdetornarmaise icazoaparelhodoEstado e os mecanismosde cobrança, não émenos que quando se aliammais impostosemaisburocraciaàvidadetunpovo,esimultaneamenteacoroa e os governantes parecem menos sérios, a mistura é explosiva.AcaboesteanonacertezadequeparaPortugalopróximovaiserdifícil.

CastelodeWindsor,20dedezembrode1845

PaláciodasNecessidades,10deabrilde1846

ostaCabralentrounasaladetrabalhodarainhaesentou-senacadeiraàsuafrente.

Mariasorriu-lhe,felizporover:

-DaquiapoucooseuamigoSaldanhaentraemguerraconsigopor lheroubaracadeira-disse-lhe,divertida.

CostaCabralfingiufazermençãodesepôrempé:

-SehácoisaqueumhomemnãoqueréserinimigodosenhorduquedeSaldanha, e é verdade que há mais cadeiras na sala, mas o que quer,senhoraD.Maria, nãoháhomemnenhumno reinoquenão desse a vidaparasesentarmaispertodasuarainha.

Mariaolhou-odireta,seduzindo-ocomumsorrisodequase-menina:

-Masporenquantoaindaéarainhaquedecidequemquerterpertodesi.

CostaCabraldebruçou-see,segurando-lhedenovonamão,beijou-a, earainha deixou a sua mão na dele por uns segundos, uns deliciosossegundos, pensou, antes de a retirar de novo, pousando-a sobre a suabarrigajábemvisível.

-TrazaíoIllustratedLondonNews-comentou,desviandoaconversa.

Costa Cabral pareceu embaraçado, colocando o jornal entre os outrosdocumentos,emlugardeoestenderàrainha:

- As intrigas do costume, senhora D. Maria. Dizem que uma revoltaacontecerádentrodedias,queopovoestádescontente.

Arainhaexaltou-se:

- Não têm com que se entreter por aquele império fora? Revolta aqui?Nãomedigaqueéaconversadoscemitériosdenovo.

Oministro concordou com a cabeça, arrumando o jornal entre os seusoutros papéis, não fosse a rainha pedir para ler, e discorreu sobrecemitérios.

Mariaencolheuosombros:

- Quando deviam era estar a falar da inauguração do Teatro Nacional,que inalmente está pronto, essa sim, era a notícia do dia, mas o senhorembaixador britânico essas novidades não acha por bem mandar aosenhorlordPalmerston,queopaísatépodiaparecercivilizado.

E,corandoligeiramente,perguntou:

-Dá-nosahonradeficarnonossocamarotenainauguração?

CostaCabral,numavozdequecaíamel,murmurou:

-Queimportaoqueestáempalco,sesólávouparaprestarhomenagemàquelaquedeuonomeaoteatro.

Maria pôs-se de pé, apoiando-se nos braços da cadeira, mas deixandoque o ministro acorresse a dar-lhe o braço, «com sua licença», que seapressouadar.

Fernandoesperouquearainhasesentasseconfortavelmentenacarruagem,tapou-lheaspernaseabarrigagrandequerevelavaosseismesesdanovagravidezcomumamantaporqueanoiteaindaestavafria,esódepoislhedissequeestavamuitopreocupadocomarevolução.

-Asmulherespegamemarmas...

Mariaolhou-o,preocupada:

-Teráomeutiovoltado?Seráistoumlevantamentomiguelista?

Fernando hesitou. Valeria a pena contar-lhe o que se dizia, que o

culpadodetudoistoeraCostaCabral?Aindahápoucoestivera fechadonoescritório a discutir a situação com Dietz, e o mestregarantia-lhe queCabral era a única esperança para Portugal, além de que ele próprioestudaraasnovas leis,eosnovossistemasde impostos,ereconheciaqueera a primeira vez que se tentava fazer uma reforma com pés e cabeça.Inclinava-se, muito mais, para a ideia deque era apenas umaproveitamento da oposição, talvez mesmo dosmiguelistas, comosuspeitavaMaria.

- O seu tio não voltou, seguramente, teríamos notícia disso, maséprovável que sejam os seus apoiantes a espicaçar asmulheres doNorte.Vamosveroqueaconteceaseguir,vamosesperar.

Mariapuxouamantaparacima,comumsúbitocalafrio.Pareciam estarsempreavoltaràestacazero.

CostaCabralentrounasuasaladetrabalho,evinhazangado.

Maria esperava-oansiosa.AindaontemescreveraaVitóriadizendo-lheque estava preocupada, mas não muito, mas na realidade percebiaperfeitamentequeFernandoeDietznãolhetinhamqueridocontartudo.

- Não se pode fazer nada, num país em que o Exército é liderado porgente que não obedece à rainha - vociferou, sabendo queMaria reagiriacomindignaçãoaqualquerideiadedesrespeitopeloseupoder.

-Masnãoospodemosobrigaraobedecer?-perguntou.

Oseuministrotinhajáarespostanapontadalíngua:

-Semeautorizar,vouláeupessoalmente!

Arainhapôs-sedepé,entusiasmada.

- Como gostaria de poder ir também, em lugar de ter de icar aquisentada à espera de notícias. Nisso devo sair ao meu pai, detesto icarquieta, e não tenho medo - o meu pai não tinha, sabe? No dia antesdeabdicar, com o Rio de janeiro em polvorosa, atravessou a cidade váriasvezes,dandoacara...

CostaCabralnão lhequis recordarqueabdicaranamesma,ea rainhaestavademasiadoempolgadaparaseperderemmemóriastristes.

-Éclaroquetemtodosospoderesdequeprecisaemaisalguns. Mas,ehomens?Encontrahomensqueembarquemconsigo?

Costa Cabral estendeu sobre a mesa os papéis onde tinha já o planotraçado.PartiriaparaoPortoimediatamente,com600soldadosque se lhemantinham iéis.«Fiéisàrainha»,explicou.EMariadeixou-o partircomosseuspoderes,«poderesextraordináriossobretodasas autoridadescivisemilitares», e a sua bênção por cima. Este homemsim, este homem eracomoJoséBonifácioeomarquêsdeBarbacena,homensleaisqueestavamdispostos a dar o corpo às balaspara salvara causados seus soberanos,pensou quando no dia seguinte, da janelado paço, viu partir o vapor emqueseguiamparaoPorto.

O Illustrated London News estava cheio de razão, o que justi ica adescon iançadeMariadequeonossoembaixadoremLisboaestádefactointeressadoemdenegrirasuaimageminternacionalmente,oualguémporelenogovernodeSuaMajestade,oquenãomedeixanadasossegada.

Mariaescreve-meadizerquesetratadeummovimentopopularque seestende a toda a província do Minho, e que resulta do novo sistema decontribuições,queopovovêcomdescon iança,emboralhesejavantajoso.Fala de que podem ser os miguelistas a provocar esta revolução, o queinfelizmenteteráum indodeverdade,porquequandoa pobrezaégrandehá sempre uni desejo de voltar ao passado,mas, comose esperava, nemtunapalavrasobreCabral,ouasacusaçõesdecorrupçãoenepotismo,massempre o mesmo argumento, que é a oposiçãoque osmanipula para seaproveitar do barulho que fazem. O nossoembaixador escreve umrelatóriobastantemaisesclarecido,explicando queomovimentodaMariada Fonte, como lhe chamam, foi acolhidocom grande entusiasmo,sobretudo pelas mulheres. Ao que parece, até nos salões de Lisboa háquemcante«vivas»àrevoluçãoe,evidentemente,«norte»aoscabrais.Ouseja,oquepodeatétercomeçadoporunitumultofoidefactoaproveitado,e agora é tuna luta contra o governo de Lisboa. Infelizmente, o Exército

parece ter alinhado pelarevolução, e agora a rainha deu mais poderesainda a Costa Cabral, oque o nosso embaixador considera que será amachadada inalnasuacredibilidade,não fazendomaisdoquedarrazãoaosqueclamamqueéoministroqueditaasregrasdojogo.ApobreMariasofreaindaopreconceitocontraasmulheres.Embrevevãoacusá-ladetercomeleumarelaçãopoucoprópria, incapazesdeaceitarqueumamulhertenhaumconselheiroprivilegiadosemqueissosigni iquequedurmacomele.Sei-o bem, porque tentaram insinuar tudo isso emuitomais, quandonão tinha mais ninguém, exceto lord Melbourne, em quem con iar. Mastambémeusofriasconsequênciasdaminhaingenuidade.Umarainhanãopode ter favoritos, por muito sozinha que se sinta. A mim, valeu-me ainteligência e a determinação de Albert. Maria fez mal em nãodar maisoportunidadesaFernando...

PaláciodeBuckingham,abrilde1846

PaláciodasNecessidades,18demaiode1846

rainhanãoconseguiadormir.CostaCabralvoltaradoPortosemresultadosnenhuns,earevoluçãoalastraraaopaístodo.OConselhodeEstadodeontemdeixara-lheosnervosemfranja.QueriamquedemitisseCostaCabral,diziamtodos,vira-casacaseoportunistasmurmurouentredentes,quePortugalnãoquerianadacomoministroquedurantequatroanostrouxerapazeprosperidadeaoreino.

Fernando pressentira o seu nervosismo e aparecera no seu quarto,deitando-se ao seu lado e aconchegando-a junto a si. Não tivera coragemdelheexplicarqueapreocupaçãomataodesejo,e,emboracom acabeçanoutro lado, aceitara cumprir o preceito, disfarçando como podia o seudesinteresse. Chocara-a que ele não parecesse dar pela sua ausência deentusiasmo,adormecendocomosetudoestivessebem.

Enãoestava.Beméquenãoestavanada,eenquantoelepareciadormir,Maria procurava uma saída, uma solução que lhe permitisse manter ogoverno,mantertudocomoestavahápoucomaisdeummês.

Fernandosurpreendeu-a,aodizer-lhebaixinho:

-Seiqueédifícil,masvaiterdeodemitir.

Mariaolhou-o,incrédula:

-Acordaparadizerumacoisacomoessas-exclamou,ezangada, comaraivaaencontrarumbodeexpiatório,vociferou:

-Ouveogalo,láfora?Aquiogalosoueu!

A expressão de surpresa e dor de Fernando fê-la cair em si. «Estoulouca?Oqueéquedizia?Porqueéque tratava assimopobreFernando,sempretãopacienteeprontoaapoiá-la?»Arrependida,pegou-lhena mãoecolocou-asobreasuabarrigadesetemeses.

- Perdoa-me, perdoa? Juro-lhe pela minha saúde, e pela saúde destenossofilho,quenãoqueriadizeraquilo.

E,chegando-semaisperto,beijou-onaboca.

-Desculpa-me?Tempaciênciaparaumarainhacansadaedesesperada?

Fernandoretribuiuobeijo.

-Voutendo-disseentrebeijos-,voutendo.

CostaCabralestavanoseugabineteàsoitodamanhã.

Maria indicou-lhe a cadeira, comumsorriso triste, e oministro sentou-se,tentandosorrirtambém.

- O meu lugar vai ser ocupado, Majestade. Bem dizíamos quehaveriaquemoinvejasse.

Maria, sem conseguir esconder as lágrimas, acenou que não com acabeça,enumavoztremidagarantiu:

-Essacadeiravaisersempresua!Hojemesmovoumandá-latirar daquieguardá-laparaquandovoltar.

- Parto hoje,mas volto, senhora D.Maria, volto porque aminha vida éservirarainhaeopaís.

Mariamordeuasunhas,enraivecida:

-Vouvingá-lo,porquedizbem,arainhaeopaísprecisamdesi,e tudoistoéobradeloucosedeinvejososquesópensamnasuaambição.

Mais calma, tirou do bolso um anel e entregou-lho, um anel contra omau-olhado, como aquele que enviara a Vitória há tantos anos.Os seusdedos tocaram os do conde, quando lho entregou, e Maria sentiu umarrepio.Respiroufundoesorriu:

-Ésóumabrincadeira,pedi-oàmarquesadeAguiar,quemo envioudoBrasil - e, esforçando-se por rir, acrescentou: - Não tem valor, não sepreocupe,nãovãoacusá-lodecorrupçãoporcausadisso...

CostaCabrallevantou-seebeijou-lheamão,comovido:

-Estarásemprecomigo,asvinteequatrohorasdodia.

QuandoPalmelarecebeuacartadarainha,suspiroufundo.JásabiadademissãodeCostaCabral,edoefeitoquetiveranopaís.AcabavaaMariadaFonte,agoraqueoseuobjetivoforaconseguido,masosbancosestavamquasefalidos.Nosúltimosdiasacorridaaosdepósitoseatrocarasnotaspormetalenchiaospasseiosdegenteemfilaàespera.Sabiaqueasreservasestavamamenosdemetade,eraprecisoagirdepressaesuspenderospagamentos.Suspeitava,aindaporcima,queoburacodadívidaseriafundo.VirabemcomooscorreligionáriosdeCostaCabraltinhamamãoleve.

Partiu o lacre e abriu o envelope lentamente e leu o que a rainha lhedizia.

-Tenho de ir? - perguntou à mulher, que tricotava na cadeira à suafrente,semcomentaroquevia.

- Se tem de ir? Se há resposta que não precisa que lhe dê é essa -respondeuenquantodesfaziaumnozinhona lã queusavapara fazer umcasacoquentinhoparaafilhamaisnovadeDomingos,queaindanemtinha1ano.

-Vou serdenovousado!Carnepara canhão.Équenemsequerme vaiouvir.Evairecusar-seafazeraúnicacoisaquepoderiasalvartudoisto...

-Queé?-perguntouaduquesa,comironia.

-Pôr-seàcabeçadestemovimento,dizerqueconcordaqueéprecisoumgoverno de conciliação, que são queixas justas a que é precisodarresposta...

Eugéniapousouasagulhasnocoloeolhou-o,incrédula:

-Achaqueaceitaráumacoisadessas?

-Estádemasiadoindecisaenervosaparatermuitaescolha.Vou propor-lhe um governo comigo, Saldanha e o Terceira, porque sem ele não

conseguimossegurara tropa,queCabralseencarregoude comprar paraoscabrais.

- Então se já tem uma ideia certa, melhor. Vá lá depressa, antes quepercacompletamenteavontade.

O duque levantou-se da cadeira e pôs asmãos nas costas, esfregandoparaassustarumapontada:

-Jánãotenhoidadeparaisto-disse,epôs-seacaminhodaporta.

-Nempaciência!-comentouamulher,voltandoatricotarfuriosamente.

Nopaço,Mariaqueixava-seaFernando:

- Não basta o desgosto de ver quatro anos de trabalho atirados pelajanelaempoucosdias,comoagoraaindaterdeencontrara pachorraparaaturar Palmela. Vai ver que chega aí a dizer que temos de agradar agregosetroianos,queéprecisoumdaqui,umdali.

Omaridozangou-se:

-Vejalácomootrata,Maria.OduquedePalmelaéumhomemsensato,eseaceitarolugar,seaceitar,notebem,sóofazporamoràrainha.

-Poramoràrainha?Todossó fazemtudoporamoràrainha,eé oquesevê...

Fernando teve vontade de lhe lembrar as acusações que se faziamcontra Costa Cabral, mas estava com pena da mulher. Grávida de setemeses, a braços com uma crise destas, mas com a mesma genica desempre,sópodiamesmoeraadmirá-la.

Deu-lheumafestanobraçoepediu-lhequenãoseenervasse.

- Já escrevi a Saldanha a pedir-lhe que regresse. Tenho a certeza quePalmelaovaiquerernoministério-disse-lhe.

Mariaatirouacabeçaparatrásemsinaldedesespero:

- Saldanhamandado regressarpara salvar aPátria.Hajaquemo ature

comavaidadecomquenosdesembarcaaí.

Fernandoriu.Reconheciaquetudopareciavoltaraomesmo.

«Mas não volta, porque não deixo. E Madrid é mesmo aqui ao lado»,pensouMariaparaconsigo.

Sótenhotempoparatunaslinhas.CostaCabralpartiuàforca,mas paraum e lio dourado como embaixador português em Madrid. Mariaestázangada, zangadíssima, mas disfarça, e manda-me tuna mecha doseucabelo,comolhetinhapedido.Háunstemposvitunapulseirade ica, feitacomcabeloda sua trança, tãobonita,quepenseiem fazeromesmo,paralha oferecer de presente. Nomeio disto ri-me com tuna nota na carta deMaria que dizia que João, com 4 anos, me manda dizerque os ilhos doHamlet são cavalos soberbos. Maria acrescenta que opequeno seconsideraumespecialistaemcavalos.Temgraça.

CastelodeWindsor,maiode1846

PaláciodasNecessidades,31deoutubrode1846

tempoestavatãobom,quearainhamandouquepusessemmesasecadeirasnojardim,paraafestados8anosdeLuís.Mariaembalavaoseufilhorecém-nascidonumjoelho,cantarolandoumacançãobrasileira.

- O que é que querem? Todas as canções de embalar que conheçoforam-mecantadasoupelaFloricaoupelaRosa,porissonãoseinenhumano português de Portugal - justi icava-se perante as damasda corte, quebebiam o seu chá, enquanto as crianças corriam à voltade um comboio,«um comboio que leva gente dentro a sério», comoexclamava o infante,radiante com a Lilliputianne, umaminiatura do comboio particular do reideFrança,queamandarafazerparaofereceraoafilhado.

Os ilhos mais novos de Palmela corriam com os outros, mas arainhaignorava ostensivamente a duquesa, que o rei veio salvar com a suadelicadezaesimpatia.

Maria ingia não ter olhos senão para o seu pequenino Fernando, queaostrêsmesespareciaumaréplicadopríncipeJoão,apeleclara, osolhosdamãe, «esbugalhados», comoaprópria comentavadivertida, e a cabeçaaindamuitocareca,masondeprometianascerumcabelomuitolouro.

- Um pobre príncipe que nem a um batizado condigno teve direito,porqueaqueleshomensdasesquerdasquenosgovernamnãogostam damonarquia - comentavaa rainha, comoseestivessea falar coma criança,mas fazendo corar os presentes, que percebiam perfeitamente que arainhanão resistiaa embaraçarD.Eugénia.Estava zangada com Palmela,desde que o duque formara um ministério com homens politicamentedistantesdeCostaCabral, que aindapor cima tinham tidoodesplantedeexigirqueoscabraisfossemdemitidosdoConselhodeEstado,umaafrontaa queMaria se opusera por tanto tempoquantopodia, acabandopor serobrigadaaceder.

QuandoSaldanhachegou,osbigodesbempenteados,afardaimpecável,e na sua voz alta de militar habituado a arregimentar os seussoldadoschamou por Lipipi, a duquesa de Palmela sentiu uma náuseavinda dofundo. Enquanto o príncipe desembrulhava o presente, eexclamava desurpresa e alegria ao ver um barco dentro de uma garrafa, Eugénia,visivelmenteincomodadacomaconversa,despediu-sedarainha.

Maria, durante segundos, não conseguiu tirar os olhos do chão. Tevevontadedelhepedirdesculpa,de lhedizerqueistodapolíticatornavaaspessoasmesquinhas;pormomentosquisvoltaraseraquelameninade9anosqueentraranasalaquentedeSouthAudley,efora acolhidaporumamãe,amãedeAlexandre...

Mas depois não disse nada. A inal, pensou, somos as duas vítimasdomesmo oportunista. E com esse pensamento, sentiu que todos osseusplanossejusti icavam,efoidenovotomadapeloentusiasmodeos levaràprática.

Nessa noite, quando o duque chegou a casa, Eugénia beijou-lhe atestacomespecialcarinho.

-Oqueéqueaconteceu,paraserrecebidocomestafesta?-perguntou,cansado.

- Estou ansiosa por o ter mais tempo em casa, temos todos muitassaudadessuas...

Palmela nem sequer precisou de lhe perguntar como tinha corridoafesta.

Nessanoite,arainhaconvidouSaldanhaparaojantardeaniversáriodoseusegundofilho.Quandoamadrastaeameia-irmã,astiaseosprimostinhamsaído,Dietz,SaldanhaeMariadiscutiamasituaçãopolítica.Saldanha,indignado,garantiaquesenãosefizessealgumacoisa,seriacertamentefuziladoearainhaperderiaotrono.«NinguémgostadePalmela,quedesconfiamserumfantochedosingleses,emuitomenosdestegoverno»,diziaSaldanha,eMariarecordava-se,comoaindahádiaslhetinhamgarantido,queeraPalmelaquediziamaldarainha,queaachavaumacriançamimadaemal-educada,queaos27anosaindanãoconheciaasregrasdeetiquetaerespeito.Comoatinhammagoadoessas

palavras,pensava,enquantomordiaolábiozangada,semquerersaberseeramverdadeoumentira.

Dietz, por uma vez, estava silencioso. Mas quando falou, recomendoucautela. Lembrava o golpe de Belém de há uns anos, tinha medodosarroubosdomarechal,sempretãosegurodesi.

Mariariu-se:

-Agoravem-mecommedos?ÓSaldanha,deixe-olá,emande-o paraumconvento de freiras. Pre iromil vezes sair para as barricadas e perder acoroaalutardoquecontinuaraserinsultadadestamaneiratodososdias.

No bolso do vestido tinha a carta que recebera de Costa Cabral,garantindo-lhe que a tropa de Lisboa estaria do seu lado, e prometendoregressarmalovoltasseachamar.

Palinela foi substituído por Saldanha, e dias depois convidadopelarainha a sair de Portugal, enviado para uni terceiro exílio, pobre homem,depoisdeumgolpepalacianoquenãopossoaceitar,que nenhummonarcaconstitucional deve aceitar. As eleicões estavam marcadas para breve, eMariadecidiuagirantecipadamente,commedodosresultados.

É verdade que há meses que Albert me dizia que Palmela estavacondenado,desdequeparaevitarafalênciadanaçãopassouunidecreto aproibir o Banco de Lisboa de trocar notas e foi obrigado a revogar oimpostodasestradasque inanciavaaCompanhiadasObrasPúblicas, quelogofechou.Albertgarantequeadívidapúblicaéenorme,e,comodiz,nãohámelhorformadelevarosricosasolidarizarem-secomospobresdoqueindo-lhesaobolso.

O pior de tudo isto, se pior é possível, é que por muito que Saldanhaizesse promessas de acabar com impostos e de não se associaraosministros que a revolução da Maria da Fonte demitiu, o inevitávelaconteceu:os indignadoscomestamaneiradefazerascoisasformaram aJunta Provisória do Supremo Governo do Reino, e declararam guerra ao

governo de Lisboa. A ideia pegou de estaca, e neste momento hájuntasiguaisportodoopaís.Ouseja,denovoaguerracivil!

ArainhadePortugalapressou-seaescrever-me,paramegarantir queoqueestavaemcausaerasalvarotronoeadinastia,equepreferiamorrerem combate. Tem uma veia operática, que só pode ter herdado do pai.Como sabe que a sua atitude em relação a Palmela meiria chocar desobremaneira, até porque me lembro de como defendeu a sua causa etomoucontadelaaquiemLondres,diz-mequenãotemdúvidasnenhtunasde que é uni traidor, conivente com os revoltosos. Hámomentos em quemeperguntoseteriasidotudodiferenteseAlexandrePalmelanãotivessemorrido. Não me parece que Maria jáse pergunte a si mesma nada,desgastada por políticos egoístas, portanto insulto, tanta demagogia eloucura,gentequepareceamarmuito poucoasuaPátria.Seriaigualaqui,senãohouvesseumpassadoconstitucionalmaislongo,porqueanaturezahumana, essa, deve seruniversal. Quanto a Saldanha, foi feito duque,juntou os seus homens epartiu para o combate, tendo a inteligência defazercomquearainhanomeasseFernandocomandante-chefedoExército.Realiza o sonho darainha, e simultaneamente defende-se, colocando nosombros do rei a responsabilidadeúltima.Mas fezmais, jápediuaonossoembaixadorquetratedelheenviarsoldadosbritânicos...

CastelodeWindsor,25deoutubrode1846

PaláciodasNecessidades,26dejaneirode1847

arfaestavasatisfeitacomosprogressosdeSaldanha.Depoisdeumaprimeiravitóriacontraastropasdajunta,equeresultaranaprisãodemuitosdoscabecilhas,queplaneavamandarparaodegredoemÁfrica,comomerecequemserevoltacontraarainha,continuaraparanortecomassuastropas,eestavaacampadopróximodoPorto.Quantoàjunta,cadadiasetornavamaisevidentequeeracompostapormuitosmiguelistas,eachegadasecretaaPortugaldobraço-direitodeD.Miguel,ogeneralMacDonnel,sóconfirmavaasuspeitadequetudoistonãopassavademaisumgolpedousurpador.Aliadocomosdasesquerdas,queafinaleramtodosdamesmamassa,comodiziaaDietz,tãoinflamadocomoelapelosucessodacontraofensiva.

AprimaVitóriaeosinglesescontinuavamaprotestarcontraaviolênciade novo à solta, e insistia em enviar-lhe dois conselheiros: um talcoronelWylde, um militar que Albert gabava como sendo um extraordináriodiplomataeumhomemdebem,fundamentalparanegociarum imparaaguerra civil; e o primo Alex, conde de Mensdorff, que,na sua opinião,basicamente vinha intrigar contra Dietz. E o que maisa irritava é queVitória não izera caso dos seus protestos. Voltou a pegar na carta que arainha inglesa lhe escrevera, perdida num dos bolsos do vestido largo aque a gravidez, e os quilos acumulados,obrigava, e releu-a, furiosa.Fernandomereciaouvi-la!Talvezfosse cruelrevelar-lheoquearainhadeInglaterra pensava dele, mas, poroutro lado, esperava que o picasse areagiratantaintromissão.Atéopreceptordos ilhossesentiamnodireitode demitir! Procurou o rei e encontrou-o fechado no escritório queremodelara recentemente, as estantes cheias de livro a chegar ao teto, eimplorou-lhe:

-Faça-meumfavoreoiçaodesplantedeVitória.-Nãolhedandosequertempoderesponder,tratoudeler:

«QuantoaoquedizesdafaltadeconfiançadafamílianoFernando,és

injustacomtodos,porqueconhecemosbemdemaisassuasqualidadesparanãolhefazerjustiça.Espalha-se,defacto,aideiadequeéfraco,comgrandepenadafamília.MasessaopiniãonãoéoresultadodeumavisitadoprimoAlex,masdofactodeFernandoterdebutadonomundosobatuteladoseuantigopreceptoremesmoagora,onzeanosdepois,seacreditarqueaindaestásubmetidoàsuatutela.SequeresrealmentequeoFernandosejareconhecidopeloméritoqueatantostítulostem,fazcomqueDietzpartaequeFernandosemostreindependente.»

Ofegante,ecorada,continuouperanteumFernandopálidoeindecifrável:

«Aopiniãopúblicaportuguesa,tãociumentadeestrangeiros,queconstantementedizesquedevorespeitar,aprovarádesobremaneiraumaresoluçãocomoesta.»

Fernandolevantou-se:

-Peçodesculpa,mastenhodeiracabarosplanosdaPena.Estounafaseda atribuição dos quartos, e o arquiteto passa cá daqui a poucopara osrecolher.

Arainhapousouacartanocolo,subitamenteaflita.

- Os nossos icam ao lado um do outro, espero? - perguntou numa vozmeiga.

-Não,poracasonão icam.Estavaapensarem icarcáembaixo, ligandoosmeusaposentosaoatelier,edar-lheosmelhores láemcima, com vistaparaomar,eascriançaspróximas,comogosta.

Mariasentiu-segelar,eantesquetivessetempodepensarnoquefazia:

-Nãoqueroquesejaassim,meuquerido.Quero-opertodemim.

Fernandosaiu,semlhedarresposta.

Maria zangou-se. Será que o marido não percebia que fazia tudo istoparaodefender?Paradefenderos ilhos,quecorriamoriscode perderomelhordosprofessores?

Nessanoite,foielaqueoprocurounacama,eoamouatédemadrugada.

«Emtempodeguerranãoselimpamasarmas»,pensou.Faria tudoparamanter a harmonia em casa... menos ceder Dietz. Ou CostaCabral, claroestá.Nãolhepareciapedirdemais.Afinal,nãoeraelaarainha?

Namanhãseguinteasuadeterminaçãocresceu,quandoDietzdeixoucairsobreamesadoalmoçoumalongacartaqueopríncipeAlbertlhedirigira.Irónica,trocista,pedia-lhequedesseaprovasupremadequeamavadefactoafamíliarealportuguesa,ouseja,quepartisse.Amesmachantagemqueusavamcomela,comentou,enfurecido.

Mariapousouacarta,encarnadacomoumpimento:

-Albert não sabe do que fala. Fernando mal preparado? Fernandosufocado? Impedido de ter amigos portugueses? Isto não tem limites.FernandoestáemPortugalhámaisdeumadécada,éumreiamado pelosportugueses,eagoraoprimoAlbert,príncipeconsortehátãopoucotempo,achaquelhepodedarlições?Eatribuir-lheasculpasasi,Dietz?Nãoligue!Équenemresponda...

Dietz escondia a cara nasmãos,magoado, e a rainha a ligia-se só de overassim:

- Não vai agora deixar-se acabrunhar pelos disparates que essesembaixadoresinventam,poisnão?JánãomebastaafaltaqueCostaCabralme faz,eagora também icavasemohomemquemelhoremaisdepertomeaconselha?

Oprofessornãolevantavaacabeça,murmurando:

- Se os ingleses pensam que é melhor partir, se o príncipe Albert e arainha Vitória me exigem que o faça, como é que posso dizer que não?Majestade,jápensouqueprecisadaajudadelesparatudo?

Mariaolhou-o,indignada:

- Não exagere. Saldanha vai ganhar esta guerra, e se está a falar nobarcoquemehádelevarsemequiseremforadaqui,esqueça,porque nãovoupartirassim.Otrabalhoquemedeuparacáchegar-dissejá comum

sorriso. - Mas tem razão, não vale a pena antagonizar os nossos primos.Protelamos, encontramospretextos para quenãoparta. PelaminhapartevouescreveraVitória,aexplicar-lhequeseoDietzseforembora,depoisdacampanhaqueos jornaisháumano fazemcontrasi, seráconsideradoumsinalde fraquezadaminhaparte,eosrebeldessentir-se-ãoapoiados,oquenãopodeser.

Fernandoentrounaquelemomento,eviuacartaemcimadamesa, comacaligrafiadeAlbert.Olhouparaumaeparaooutro,paraamulhereparaoseututor,epercebeutudo.

Como sempre, ninguém lhe pediu opinião. Levantando-se, Mariaentregouacartaaoprofessor:

-Guardeláisso,ouqueime-a,quetalvezaindasejaomelhor. Daquinãosai.Éumaordemdarainha.

Virando-separaFernando,numtommaisdoce,disse-lhe:

-MaisdisparatesdosenhorembaixadordeInglaterra,Fernando. Daquipara a frente oumudam o homem, ou não entra nas nossas salas. Era oquefaltava,darguaridaagentedestalaia.

Recebimais tuna daquelas «cartas àMaria», como já Lhes chamo.Diz-mequeestácontenteporverque inalmentechegueiàconclusãodequeoembaixador em Lisboa é pouco imparcial. De facto, os relatos que faz doestadodanaçãoportuguesa,edoscomportamentoedasideiasdarainha,parecem-me bastante tendenciosos. Decididamente, a família real não oseduz,nemconcordacomaformacomofazpolítica.

Maria pergunta, com alguma razão, porque é que a Inglaterra desejaquetrateosrebeldescomosefossemseusamigos,quandoforam elesquese revoltaram contra a rainha.Não parece compreender, no entanto, queparaevitarmaisanosdeguerracivilsangrentaequedá cabodoquerestadas inanças do país, onde a população em lugar detrabalhar peloprogresso gasta o tempo em bandos armados, é preciso ceder, ou pelo

menosnãoseguir tunaestratégiadevingançaaberta.Fechadanopalácio,Maria provavelmente julga que o país está comela, mas os nossosemissários garantem-nos que não está, e que estemovimento contra oscabraisépraticamenteunânime.

Eu e Albert demos unia gargalhada quando lemos o parágrafo em quepergunta, a inal, o que é que a Inglaterra tem a ver com o que por lá sepassa!Teriatodaarazãoseacartaqueamanhãhádechegar, comoaquechegouontem,nãofosseapedironossoauxílio.

Felizmente, tem tini feitio delicioso, porque depois de me insultar,porquenãoháoutra formadechamaràquiloquemediz,agradece-me ospresentes que mandei às crianças, e conta-me que Maria Ana é muitoparecida comela, e aAntónia igual aopai. Infelizmente, recebonotícia deque Maria se cansa muitíssimo e que se queixa do coração, mas a mimnunca me diz nada, talvez porque não queira que a tome por frágil, outenha pena dela. O tio Leopoldo diz que a gordura raramente é sinal desaúde, e de factoMaria parece ter engordadomuitíssimo.Mas quem nãoengorda com tantas gravidezes? Os homens querem as mulhereselegantes,masnãopensamnomalqueoseudesejolhesfaz,enemsequerdão valor àquilo por que elas passam para gerar os seus ilhos. Fico meporaquiporquesenãolárecomeçoaqueixar-medomesmo.

PaláciodeBuckingham,29dejaneirode1847

PaláciodasNecessidades,30dejaneirode1847

criadoanunciouachegadadocoronelWylde.Teriadeoreceber,deoconquistaredeolevaraperceberoseupontodevista,pensouMaria,masnãohaviarazãonenhumaparanãoofazeresperar!Queapreciasseosmuraisdasaladosembaixadores,eseentretivessecomosbibelotsespalhadospelamesa,porquenãolheiadarailusãodequeoaguardava,semnadamaisdeimportanteparafazer.

Fernando insistiria em estar presente, estava certa disso, como tinha acerteza absoluta de que o coronel o tentaria apanhar sozinho, tentavamtodos,porqueFernandoeramaisdelicadodoqueela,gostavadeosouvirede dar opiniões, era dono de um espírito conciliador, mas quedecididamentenãoeraaquelequeconvinhaaomomento.

Bastavam as cartas de Albert, armado em primo mais velho, a darpalpites.

Chegou-se mais perto da lareira que ardia, para aquecer as mãos.Choviacopiosamente,edeixou-seembalarpelobarulhodasgotascontraavidraça.Os soldadosdeSaldanhaaestahoraestariamensopados até aosossoseasestradasatoladasdelamaatornarmaisdi ícilassuas incursões.Suspirou,impaciente.BemdiziaCostaCabralqueopovoraramentesabiaoquelheconvinha,eestarevoltaeraprovadisso.Quem équeganhavacomtudo isto, para além dos miguelistas e dos radicais, que queriam maispoder,porqueopoderlhespermitiaencherosbolsos?

O relógio deu as onze horas, e Maria pediu ao criado que chamasse osenhor coronel, abrindo a porta para a sala onde recebia os políticos. Abocaabriu-sedeespantoquandooviuentrarjáemcompanhiadorei,emamenaconversa.ComoéqueFernandoselheantecipara?Quantotempojáteriamconversado?

Wyldepercebeuoincómododarainha,eapressou-seabeijar-lhe amão,

dizendo-seportadordoscumprimentosdeAlberteVitória,dequemtraziacartas.

Arainhasentou-se,epediu-lhequeofizessetambém:

- Não sou de perder tempo, senhor coronel. Em primeiro lugar, aindabem que cá está, e vamos ver se faz melhor serviço do que osenhorembaixador,quemedesagradaextraordinariamente.

Fernando fazia menção de a corrigir, mas Maria não lhe deuoportunidade:

-Éprecisoquerelateascoisastaiscomoelassão,enãocomoas lê nosjornais,ouasouveemcasadesteedaquelesenhor,quecertamenteoujáoconvidaram,ousepreparamparaoconvidarparasuascasas.

Wyldemantinha-se respeitosamente atento, dando ar de quem tomavanotade tudooquea rainha lhedizia.Finalmente, tentouexpressar a suapreocupação com o destino que a rainha pretendia dar aos rebeldespresos,deportando-osparaÁfricaemcondiçõesdesumanas.

-Ósenhorcoronel,achaque tenhocaradeserumamulhercruel? Quecrueldades é que os portugueses praticam, comparadas com asatrocidadesqueosinglesesfazempeloImpério?Masnãoquercertamentequemandeparaocampo,ouapanhar lores,homensque querematentarcontraavidadarainha,poisnão?

Fernando olhava para Wylde, preocupado com a impressão que afranquezadamulherlheprovocaria,masomilitarpareciasereno.

-Compreendoperfeitamente,VossaMajestade,mashouveum acordo,eestaquebradeumcontrato choca a opiniãopúblicadomeu país, e tornamaisdifícilconseguirapoiosparaPortugal.

Mariaolhou-o,osseusolhosazuisfrios:

-Se tem alguma queixa a fazer contra os tribunais portugueses,sugiroqueafaçaaostribunais.

Wylde não se atreveu a falar de Dietz, o outro ponto da sua agenda.

Ficariaparaoutrodia,afinalesteprimeirojánãocomeçavanadabem.

Maria também achou que era melhor dar o encontro por terminado.Sabiabemqualeraosegundopontodaagenda!

Oreiapertouamãoaocoronel,agradecendo-lheefusivamenteaajuda,eprometendo encontrar-se com ele em breve, para discutirem em maisdetalheoestadodaNação.

Maria icou no seu lugar, matutando em como conseguiria impedir oencontro.Haveriadeencontrarmaneira.

Relato do dia: Wvlde escreveu e diz que a rainha de Portugal não odeixou nem cinco minutos sozinho com Fernando, nem no primeiroencontro,nemnosqueaconteceramdesdeaí.Entendinasentrelinhas queaconsideratunamulherteimosaedi ícil,masdetunacandura irresistível.QuantoaDietz,conta-nosquenemacartadeAlbertodemoveu,pobredomeu querido Albert, que tem perdido tanto do seuprecioso tempo aprocuraramelhorformadeajudarosprimos.

MasWvldeadmitequeMariatemrazãoemmuitasdasqueixasque faz,e uma delas é o ódio ao nosso embaixador. Realmente, os seus últimosrelatórios sobre a situação em Lisboa revelam que o homem estáescandalosamente a favor da Junta do Porto e das reivindicações quefazem.Albert até comentou quemais parece uni demagogo portuguêsdoqueumdiplomata.Provavelmentecontagia-se.

Sejacomofor,averdadeéqueosseuspontosdevistafazemféporaqui:ogovernobritânico,eaopiniãopública,colocamCabral,Dietzearainhanomesmo saco, ou seja, como absolutistas. Quanto às decisõesde Maria eSaldanha, são descritas como caricatas. Faço o que posso,e ainda hojeescrevi um memorando ao primeiro-ministro a desmentir tudo isto,recordando-lhe a necessidade de apoiar os reis portugueses. Disse-lhe, ecito,que«Inglaterranãopermitiráqueotronodarainha ouasuadinastiasejamdepostoseporissoseopõeaqualquertentativafeitanessesentidopelosinsurgentes».

Tenho andado tãopreocupada comessapossibilidade, que voltaram asdores de cabeça. Hoje vou à ópera com Albert, e espero desanuviar oespírito.

PaláciodeBuckingham,13dejaneirode1847

PaláciodasNecessidades,9defevereirode1847

urdinhas,quandoveioabrirascortinas,disse-lhequeTonicanãopassarabemanoite.Maria,agitada,protestou:

- Estão todos desvairados? A minha ilha de 2 anos está doente,eninguém me vem avisar? Chama as criadas para me vestirem, que casaesta...

- SenhoraD.Maria,não sea lija, oDr.Kessler já lá foi edissequeé sóumaerupçãodepele...

-Mandamchamaromédicoaosseusaposentos,semchamarprimeiroamãe?Umaerupçãodepelepodeservaríola,rubéola,tantacoisa...

Quando,poucodepois,entrounoquartodascrianças,MariaAnacorreuparaela,feliz,eMariadeu-lheumbeijonatesta,puxando-lheocabeloloiroparatrásdaorelha:

-Ai,meuDeus,queestácadavezmaisparecidacomamãe-exclamou,arir. - Até nesse cabelo ino e despenteado! Vá pedir à ama que lhe façatranças,vai,filha?

No berço de grades, que fora dos irmãos, sorria-lhe Amónia, a caracobertadepintasencarnadas.

Maria retirou-a do berço e apertou-a contra si, chegando os lábios àtesta:

- Está sem febre, graças a Deus! Mas que isto nunca mais volte aacontecer.Quandoum ilhomeuestiverdoente,nãohácáchamarmédicosantesdefalaremcomigo,ouviram?

Aamaapressou-seajustificar-se:

-OsenhorD.Fernandoestevecádemanhãcedoevoltoupouco depoiscom o senhor Dr. Kessler, e pediu-nos que não incomodássemos VossaMajestade,queprecisavadedescansar.

Mariaencolheuosombros:

- Descansar? Alguma mãe está cansada, quando o assunto é umfilhodoente!Masdigaláentão,oquedisseomédico?

-Quenãoédoençagrave,masdeve icarnoquarto,longedosoledoarfresco. Não é contagiosa - acrescentou, a lita, temendo que a rainha seenfurecesseporopequeninoFernandoestarnoberçoaolado.

Sentando-se com a ilha ao colo, olhou em seu redor, satisfeita. Eramlindososseusfilhos,aomenosporissopodiadargraçasaDeus.

-Quero que o Fernandinho e aMaria Anamudem de quarto, diga lá oquedisseromédico,pelomenosatéaspintasdesaparecerem- ordenou.-Aliás, levo agora comigo a Maria, porque lhe quero experimentar umvestidoqueaprimaVitóriamandou.OdeTonica icaparamaistarde,queà criança apetece-lhe tudo menos andar a mudarde roupa com a peleassim-disse,entregandoamaispequeninadassuas ilhasàamaedandoa mão a uma Maria Ana feliz pelo privilégiode poder subir ao primeiropiso comamãe, ao «andar dos grandes»,comodiziamuns aos outros noquartodebrinquedos.

Saiudoquartocomafilhapelamão,enquantolhecontava:

-Sabe,Maria,quandotinhaasua idadeeraa irmãdaminhamãe,a tiaMaria Luísa, que nosmandava para o Brasil vestidos e livros. Mas icavamuitasvezestriste,porque,comoeragrandeparaaidade, nuncanadamecabia...

- Mãe, conte-me histórias do Brasil - pediu a criança, e a rainha,deliciada, regressava de novo à sua infância, ao colo da mãe, àsbrincadeirascomasmanas,aosmorangosquecresciamnojardimeeramdevoradosantesdechegaremàcozinha.

Ocriadoanunciouachegadadeummensageiro.MariaeFernandoentreolharam-se,preocupados.

-Mande-oentrar-ordenouFernando,levantando-sedeumsalto.

O homem, ensopado e enlameado, entregou à rainha uma carta com aletradeSaldanha.Mariadepositou-anasmãosdeFernando:

- Leia, por favor - disse-lhe, deixando-se cair numa cadeira. Nãosuportaria mais más notícias, queria uma vitória certa, os inimigosderrotados, queria Costa Cabral de novo em Portugal, paz e sossego deuma vez por todas. Queria atirar à cara dos ingleses uma vitóriaretumbante, queria não depender nem de espanhóis, nem de franceses.Estavacansadadeserhumilhadaeinsultada.

OrostodeFernandoiluminou-se:

- São boas notícias. Saldanha garante estar cada vez mais irme e dácontadamortedeumdoslíderesmiguelistasquemaisnospreocupavam.

Mariaarrancou-lheobilhetedamãoeleu-osofregamente.

-Não dissemos que havia miguelistas metidos nisto? Ninguém queriaacreditar, os franceses e os ingleses convencidos de que o inventávamospara conseguir que interviessem nesta guerra, em nossa defesa, e agoraestáaquiaprova...

Fernandocoçouabarbaloira,ondeaos30anosjáseviamalguns pelosbrancos:

- Podemos invocar a Quádrupla Aliança, Espanha, França e Inglaterraterãodenosprestar apoiomilitar, caso seprovequeo tronode Portugalestásobameaçamiguelista -pensoualto. -Mashámaisa entendernestarevolta do que apenas uma insurreição miguelista.Muitas das queixasfeitasparecem-mejustas,

A rainha resistiu a protestar. Se Fernando concordava com ela numassunto tão importante, se escreveria a Albert defendendo a intervençãoinglesa, o auxílio do Exército inglês, então não valia a pena discutirdetalhes.Conciliadora,respondeu:

-Terão alguma razão, nalgumas coisas, mas nada que justi ique ocomportamentoquetomaram,nemarevoltacontraarainha,porisso, meu

queridomarido,jáhámuitoqueperderamarazãoqueeventualmentelhesassistia.Mas embom tempo se verá... agorao importante équeSaldanhadêogolpedemisericórdia...

NessatardeescreveuaVitória,comumaalegriaquehámuitonãosentia.Emlugardascurtaslinhasqueultimamenteeramhábito,pornãoquereradmitirderrotas,nemprovocarconflitos,alongou-senadescriçãodasbatalhasdeSaldanha,ejuntou-lheashistóriasdosfilhos,doscãesedahortadopaço.Derepente,sentiavontadedevoltarafalardetudo...

Até de Dietz. Estava certa que Vitória, percebendo como enganadoestava o seu governo a respeito dosmiguelistas envolvidos, e de comoarevolta a inal era, como sempre dissera, uma tentativa de colocar Miguelno poder, aceitaria que os mesmos informadores também se podiam terenganadoarespeitodeDietz.

Roendoocantodapena,interrompeualeituradeFernando:

-Oiça,querido,vejalásenãolhesoabemoqueescreviàprimaVitória. -E leu alto: «Quanto a tudo o que me dizes sobre o Dietz, sótenho umaresposta a dar-te, e é que estando, como estás, sempre mal informadaquantoaosnossosassuntos,nãomeespantanadaquetuoestejasquantoaumindivíduo.»

Satisfeita,continuouaescrever,semrepararqueFernandoselimitaraafazerumesgar.Sinceramente,estavacansadodetudoisto.

Minutosdepoisvoltouachamá-lo:

-Também aproveitei para dizer que não queremos cá, de novo, o seuprimoAlexandre,quenosémandadocomoúnicoobjetivodemassacraropobre Dietz. Disse-lhe que não quero que venha! Além do mais é todobonitinho,comoseubigodinhosedutor,epõeaquias damasdecabeçaàsavessas. Paranão falar nas saídas que faz todas asnoites.Dizem-mequefrequentalocaisduvidosos...

Fernandodeuumagargalhada.Ah,entãoeraisso,ciúmes,comosempre!Bem suspeitara que os provocaria quando, por várias vezes, decidiramostrarosencantosdeLisboaaoprimoalemão.

-O monstro verde, minha querida? - perguntou, levantando-se ebeijando-adescaradamentenaboca.

Maria deixou-se levar pelo beijo, que retribuiu com paixão. Que sortetinhaemseramadaporumhomemtãobomepaciente.

Penteouoscabelosrevoltospeloabraço,epegando-lhenamão chegou-aaosseuslábios,murmurando:

- Como não me há de indignar que o queiram diminuir? Que osseusprimossintamanecessidadedemandarumconselheiro,comoseoreidePortugalprecisassedeconselhos?

Beijou-o de novo, para quenão tivesse hipótese de lhe responder. Massim, não o podia confessar, mas temia a in luência do primo no seuFernando,quequeriasóparasi.

Conseguimos fazer a surpresa que queríamos à rainha de Portugal,mandando-lhe um novo embaixador, um homem da nossa con iança. SirHamiltonSevmiouréumdiplomatasério,epessoalmenteacho-oeducadoedemodosencantadores,queseiquevãoencantarMaria.Acreditoquevaiser capaz de a levar a chegar a um acordo, sem sentirqueperde a face.Espero que ele, Wvlde e Alex ajudem os reis a tomarem decisões maissensatas, porque sinceramente Saldanha é tão cego pela vaidade que ahistóriasópodeacabarmalselheforementreguesosdestinosdopaís.

Na última carta que recebi de Maria, a própria rainha pareceu-memenos entusiasmada com os sucessos do marechal, embora vá dizendoqueagoraavançaparaoPortoequetemesperançademeanunciaro fimdestaluta.

Albert comentou hoje, e com razão, que temos de nos distanciar unipoucomais da situação portuguesa, porque a inal temosmil outros casosprementes para resolver, e, entre os nossos compromissos sociais e osmeus encontros de Estado diários, pouco tempo sobra para as crianças.Vickyestálindaeémuitointeligenteerápida,masBertie,apesardosseus

6anos,temdi iculdadesemaprendereénãosómaislentodoquea irmãmais velha, como também de Alice, que aos 4 anos já falabem francês.Temosdesermaisexigentescomele,porquea inaléo herdeirodacoroabritânica, um lugar que sei, à minha própria custa,ser o mais di ícil daTerra,sófacilitadoporunimaridotãoextraordinário.MandeicolocartunasecretáriaparaAlbertfrenteàminhapara trabalharmosjuntos,depoisdemais uma discussão em que se queixoude que não o deixo fazer nada.Esperoqueasinsegurançaslhepassemcomestegesto.

VoltoaomeudiárioparaassinalarareceçãodeuniacartadoreidePortugal,sempretãoquerido.AgradeceomeuinteressepelasituaçãoemPortugal,econfessaqueSaldanhaostemimpacientadocomassuasdecisõeserráticas,tomadassemconsultarninguém.Insistequenãonospodemosesquecerquesãoosúltimosinteressadosnaguerracivil,elembraquesenãoacaba,aculpanãoédeles,masdaobstinaçãodosinsurgentes.Coitado,fiqueitristeporqueterminaadizerqueestãobemdesaúde,masqueavidaquelevam«nãoénemdivertida,nemfeliz».Pobreprimo,oseutométãodiferentedodarainha,quemantémaideiadequeestátudonomelhordosmunidos,equemaisfeliznãopodeser.PensomuitasvezesseotioLeopoldofezbemempromoverestecasamento,enviandoFernandoparaunipaístãoingrato.

PaláciodeBuckingham,15defevereirode1847

PaláciodasNecessidades,10demarçode1847

urdestrouxe-lheacorrerumabacia,paraquevomitasse.Passaraamanhãcheiadenáuseas,masameaçavamandaracriadadevoltaparaaterra,seapobreseatrevesseacontaraalguémquenãoestavabem.

Estavadenovográvida,massentiaquenãoeraaalturaderevelar asuaoitavagravidez,nestemomentodi ícil,emqueatodaahora seesperavamnotícias de Saldanha e dos confrontos pelo país. Só lhefaltava que osmédicosandassematrásdesiarecomendar-lherepouso, menoscomida,ocostume.

Estava prestes a fazer 28 anos, sabia-se gorda de mais, estava à vistaque herdara a tendência da mãe, e mentiria a si mesma se nãoreconhecessequeasfaltasdeareramcadavezmaisfrequentes,mas tudohaviadepassar.Quandotivessemaistempodariaospasseiosa péquelherecomendavam, e reduziria a ementa dos jantares no paço de nove paracincopratosporrefeição....

Limpou a cara a uma toalha molhada que Lurdinhas lhe passava, edeitou-separatrásnasalmofadas,pensativa.Haviaoutromotivopara nãoconfessar que dentro de si crescia uma nova vida: os comentários dasdamas da corte, os olhares de soslaio no São Carlos, os sussurros que sesilenciavam quando a viam chegar, como se não entendessem porque éque continuava a dormir com o marido, quando já tinha seisfilhossaudáveis,quatrodelesrapazesaindaporcima.

Lembrava-se de ter perguntado a Fernando, na última vez que setinhamamado:

- Será que não têm prazer quando estão com osmaridos? - Fernandoafagara-lhe o cabelo loiro e sedoso espalhado pela almofada, responderaque talvez não, talvez os maridos lhes roubassem o seu próprio prazeresquecendoodelas,outalvezaculpafossedospadresquepregavamquegozarerapecar,que«aquilo»sósefaziaparaprocriar.

Recordava também, entre vómitos, como Fernando lhe dissera queestavadisposto à abstinência, se osmédicos con irmassemquemaisumagravidez seria perigosa. Comovera-se ao ouvi-lo dizer que não podiamarriscar, que a sua vida era demasiado importante para ele, para ascrianças,paraopaís,eporestaordem.

Não lhe dera ouvidos, mas agora, quando estava certa de esperar umnovo ilho, secretamente angustiava-se: e se morresse de parto, como amãe? O número oito enchia-a de receio e superstição, seria agora, seriadestavez?Oqueseriadasuatrupe?

Lá de fora chegavam-lhe as vozes dos três ilhos, que montavam nopicadeiro,ediscutiamcomodecostume.

-Lurdes,ajuda-meavestir-me,porquequeroirverosmeusfilhos.

Antes de a ajudar a levantar-se, a criada estendeu-lhe um gomo delaranja,aúnicacoisaquesuportavacomernestasmanhãsdeenjoo.

Mariapô-lonaboca,eriu,divertida:

-Olha,Lurdes,senãovomitassenestesprimeirosdias, imaginaa baleiaquenãoseriadaquiaunstantos?!

Quandodesceuasescadasparaopátio,quasechocoucomLuíseJoãoquefugiamdachuvaqueosapanharanopicadeiro,nesteinvernoamaldiçoado,emquenemachuvapoupavaopaís.Asduascriançasfizerammençãodeabeijar,masMariaafastou-as,entregargalhadas:

-Osmeninoslivrem-sedefalaràvossamãeantesdemudaremderoupaeestaremsequinhos.

PondoamãonasamarradeLuís,exclamou:

-Luís!Estiveramabrincaràchuva,estábomdever.Aos8anos, játinhaidadeparaterjuízo,nãoacha?Ondeéqueestáovossocriado?

Luís olhou para João, alto para os seus 5 anos, e respondeu, quaseinsolente:

- Ó mãezinha, juízo é para o mano Pedro, que aos primeiros pingosaproveitou logo para vir embora.Nós gostamos de imaginar que estamosnamata,comaavóLeopoldina,àprocuradeanimaisraros.

Maria sentiu o coração apertar-se com as memórias das chuvastorrenciais do seu Rio de janeiro, mas manteve o sobrolho franzido, eempurrou-osemdireçãoàportadosseusaposentos:

-Nãosejatontoevámasémudarderoupaantesquefiquedoente.

Os dois rapazes correram para a porta, que um criado já abria, mas,subitamente, Joãoestacoucomoseumpensamento lhe tivesseocorrido, einesperadamente voltou para trás. Desobedecendo-lhe, abraçou-a comforça.

-Mãezinha, não se preocupe com nada, porque estou aqui para tomarcontadesi!

Mariapassou-lheosbraçosemredordopescoço,poucosepreocupandocom o vestido que se molhava, os olhos cheios de lágrimas.João eraespecial, sempre tão intuitivo, tão sensível. Como percebera que estava asentir-se frágil, nervosa?A rainhadePortugal orgulhava-se de ser capazde esconder os seusmedos, os seus amores e os seusódios.Mas não deJoão,nãoerapossível:

- João, vámudar essa roupa antes que se constipe,menino - disse-lhe,numa voz que não admitia lamechice, a única que era capaz deusarquando se sentia comovida. Ficou a vê-lo correr, tão crescido nas suasnovasbotasdemontardecarneira.

-Botas,sapatos, tantossapatos,estascriançasarruínamumorçamento.Olha,pelomenososapateiroqueserveopaçovai icarcontenteporsaberque vem aímais um a caminho - disse a si mesma.E subitamente a boadisposiçãovoltou.

Aboadisposiçãovoltou,masnãodurantemuitotempo.NessatarderecebeuumamensagemdeSaldanhaaameaçardemitir-se,senãolhefosseenviadomaisdinheiro,searainhaaceitassequalquertipodeacordocomosrebeldes,seossoldadosinglesesnãoviessememseuauxílio.Demitir-se?Agoraquetantoprecisavadele,agoraquelhederaoseuaval

público,chamando-lheosalvadordaNação.Fernandoficaratãozangado,comonuncaovira.«Fazchantagemcomarainha!Falaaosreiscomosefossemseuscriados!»,berrara.QuandochegaraavezdeDietzleracarta,oalemãoabanaraacabeça,lamentandomaisumavezodiaemqueCostaCabralforaexiladoparaMadrid.

Quando todos saíram da sua sala, Maria deixou-se cair sobre umacadeira,umamãosobreoventre,aoutrasegurandoacartadomarechal.Como ia explicar a Vitória este volte-face, como explicaria aosembaixadores,aoprimoAlex,queohomemaquemderatodooseuapoioagoraexigiaquearainhavendesseas joiasparapagaras suas incursões,que as senhoras da corte se des izessem de tudo o quetinham de valorparapagar aos soldados?Fechouosolhose respirou fundo.Precisavadepensar.

AlbertrecebeuhojeuniacartadeWvlde,queseencontrou inalmenteasóscomorei.Fernandoestavatãofuriosoquefalouabertamente,dizendo-lheque tanto ele como a rainha se sentiam indignadoscoma condutadeSaldanha,masquea rainhanão tinhaquemo substituísse, estandoà suamercê. Confessou a Wylde que estavam a pensar em pedir ajuda aEspanha.Opobrecoroneltentoudissuadi-lode tamanhaloucura,dizendo-lhe que se o izessem perderiam a causa darainha, tanto aos olhos dosportugueses, como dos britânicos. Disse-lhetambém que, por ele,concordavacomanossasugestãodequefosseoferecidaaosrebeldestunaamnistia geral, mas que Maria não aceitava tal solução, por nada destemundo.Wvlde acreditaque a rainha vai ceder às exigênciasde Saldanhaporque não quer dar o braço a torcer. Suspeita que escreveu a CostaCabral,hábitoquemantém,esóagirácomconselhodele,masCostaCabralnão tem interesse nenhumem conciliações, quer voltar para um paísdesfeito,comoosalvadornacional.Paraagravartudoisto,Dietzcontinuaadizer a quem oquiser ouvir que vive nuunpaís de imbecis, e que a nicasolução paraPortugal é a importaçãodepolíticos emilitares com cabeça,ainda porcimaatrevendo-se a falar semprenoplural, como se apalavradele ea dos reis fosse a mesma. Não se entende como pode ser tãoinconsciente, acicatando a intriga e alimentando a ideia que os príncipes

sãoeducadosporuniprofessorfacciosoe,sinceramente,poucointeligente.

CastelodeWindsor,15demarcode1847

PaláciodasNecessidades,26demarçode1847

igo-lheumacoisa,seosenhorcondeAlexandreMensdorffentraporessaporta,eusaiopelaoutra-ameaçouMaria,aumFernandocontristado.

Pedro, que chegava à sala da mãe, deixou-se icar por detrás doreposteirodeveludopesado,imóvel.Láestavamospaisadiscutirde novo.Sabia que a prima Vitória enviava o primo Alex, com o objetivodedespacharoseuprofessoradorado.Fechouospunhoscomforça, esentiuo sangue subir-lhe ao rosto. Porque é que toda esta gente semetia nassuas vidas? Porque é que queriam decidir quem é que oensinava oudeixavadeensinar, essagentequenãoeranemseupai, nem suamãe, enem sequer portuguesa? E porque é que Saldanha nãocumpria o seudever e dava cabodesses rebeldes que se atreviama dizer o quediziamdasuamãe?

Aos 9 anos, 9 anos tão precoces que não havia professor nenhum quenãosedeslumbrassecomarapidezcomqueaprendiaecoma maturidadedas suas análises políticas, sentia-se às vezesmais competente do que amãe,maiscompetenteatédoqueopai,paragovernaropaís.

Masagoraaqui,atrásdeumacortinaescondido,osolhosenchiam-sedelágrimas, pobremãe, pobre pai, se aomenos pudesse fazer alguma coisapara os ajudar. Teve vontade de se desvendar e protestar que era opríncipe herdeiro, e que o príncipe deveria ter alguma coisa a dizer naescolhadequemoensina.Masnãoseatrevia.

Agoraeraopaiquelevantavaavoz.

-Maria,oAlexandreéótimapessoa,enãomesintonadaofendidoporoter cá em Portugal, pelo contrário, gosto de ouvir as suas opiniões, hácoisasqueelesabequeeunãosei...

Pedroabanoua cabeça, desesperado.Comoéqueopai, que tinha sido

aluno de Dietz, que vivia com ele desde pequeno, podia aceitarque oquisessem mandar embora? Mas porque é que a mãe falava daquelamaneira, tão grosseira e pouco educada? Admirava a sua força, mas porvezes falava como se fosse uma mulher comum, diziadisparates e faziabirraspioresdoqueasdamanaMariaAna.

Quandopercebeuqueopai iasairpelaportaondeestava,escapuliu-separaasalaaolado,escondendo-sedenovo.A lito,percebeuqueali estavaoembaixadorbritânico,quefalavabaixocomocoronelWylde. Esforçou-separaouviroquediziam:

-Oreié,de longe,omaissábioeomaismoderadodestepaço - dizia oembaixador.

-Mas ninguém o ouve, e sobretudo nunca vence - respondia o coronelWylde.

-Da última vez que iquei sozinho com ele, tentei convencê-lo deque,como marido e como pai, tem o dever sagrado de agir segundoas suasconvicções-insistiaoembaixador.

-Pobre homem, olhe que não é fácil fazer-se escutar, quando a rainhatem esta força. Não tenho dúvida nenhuma de que prefere enfrentar operigo,sairparaarua,avergaroseuespíritoBragança.Maisdepressavaipara Espanha do que se verga à junta do Porto, para ela já só importavergá-los-diziaavozquePedroreconheciacomopertencendoaocoronel.

- Perdem-se tantas oportunidades, comestasdemoras todas, e amaiorpartedasvezessintoqueestamosafalarsozinhos.Nãoseiselheaconteceo mesmo, mas quando falo com D. Maria tenho a certeza de quesó meouvepordelicadeza,porqueosseusplanosestão feitosenadadoque eupossafazeroudizerospoderiamudar-respondeuoembaixador.

Pedro sentiadi iculdadeem respirar, umadornopeitoque se tornavamais intensa, teve medo de perder os sentidos. O que aconteceriase odescobrissem? De repente, uma mão forte caiu sobre o seu ombro, e opríncipeestremeceu.

-Quantasvezeslhedissequenãooqueroaescutaràsportas?-zangou-se em alemão o preceptor, arrastando-o silenciosamente dali para fora.

PelomenosDietznãoodenunciara.

LordPalmerstonacabadememandaracartadonossoembaixadoremLisboa, que deixo entre estas páginas, porque a quero reler com maistempo.

«Hojeoreienviou-metunamensagemapedirquefosseaopaço,porquemequeriafalarsobreasituaçãoatual,agravadapelaapreensãodosnossosbarcosnacostaportuguesa.Quandocheguei,paraminhasurpresa,oreiearainhaentraramjuntosnasala,edepoisdenoscumprimentarmosarainhadeixouoreipormomentosasóscomigo,enquantoseafastavaatéàjanela,comoseestivesseaverqualquercoisanoterreiroemfrente.ApenastivetempodemurmurarqueachavaquedeviamchegarauniacordocomaJunta,porqueopaísnãosuportavaaruínadestaguerra.0reinemtevetempoderesponder,porquearainharegressaraparajuntodenós,edandosinaisclarosdemuitaimpaciência.Faleientãodosnossosbarcosapreendidos,earainharoíaasunhasfingindonãomeouvir.Acertaaltura,depoisdeseteragitadonacadeira,comentou,numtomtrocista:

- Sabe, isso não nos diz respeito, nem a nós, nem aosministros. Isso éassuntoparaostribunais.

0reiapressou-seadesviaraconversa,dizendo-mequeosportuguesessesentemmuitoagastadoscomafaltadeapoiodosingleses,eeu,sabendoperfeitamente que a rainha, embora aparentemente distraída, meescutava,declareiquelamentavaqueassimfosse,masqueestranhavaqueo dissessem, já que a minha presença em representação do governo deSuaMajestade, a rainha de Inglaterra, deveria ser su iciente para provarquantoseenganavam.

Arainha ignorouaminha resposta,masquandomedespedido rei, eledisseeminglês,línguaquearainhatemmaisdificuldadeementender,quegostava de me falar noutra altura. Acho que o rei icou morti icado pelaforma como fui recebido e por ter testemunhado asujeição em que é

mantido,oqueéumapena,porquemepareceser a ínicacabeçasensatanopaço.Oquelhefaltanãoébomsenso,masresolução.Fiqueiaindamaisconvencidodeque tinha razão,quandoà tardeoreimeenviouumanotasimpáticaemquesemanifestavamuitovexadoporeuterchegadonaquelaaltura, que me pedia desculpa porque a visita devia ter sido muitodesagradável,masqueaverdadeéqueeleearainhatinhamacabadoderecebermais uma cartade Saldanha, queos aborreceramuito. É fácil deentenderqueSuasMajestadesestejamzangadasporsesentiremsobumaditadura de ummilitar prepotente.Mas o queme parece é que a rainhanãoentendequejánãoérainhadePortugaledosAlgarves,masdeLisboae Sintra,e que vai icar sem dinheiro, sem comida, e perante odescontentamentodeunipovocadavezmaismiserável.»

CastelodeWindsor,28demarçode1847

PaláciodasNecessidades,6deabrilde1847

noiteestavaquente,invulgarmentequenteparaabril,efinalmenteaprimaveradavaaresdequereraparecer.MariaaindanãocontaraaFernandoqueestavagrávida,masaverdadeéquenãotinhamtidoummomentoasós,comtodaestaagitaçãopolítica,enãolhequeriadaranotíciadechofre.Sabiaquenãoseimportavadequeafamíliacrescesse,masnestemomentodeinstabilidade,emquemaisumavezsediziaqueotronoestavaemcausa,nãoqueriasomarmaisumapreocupaçãoàsmuitasquejátinha.

A rainhapassouamãopeloventre,ondeporvezes já sentiao pontapédo seu bebé, e inspirou fundo. Ofendia-a que ninguém dessepela suagravidez,pelabarrigaaumentadadejáváriosmeses,sinaldequeestavajátãodisformequeninguémreparavanosquilosamais,ouamenos.

Havia dias em que se sentia francamente doente e cansada, masenquanto os seus homens lutavam por esse país fora, o quemaisfaltavaeraque izesseopapeldamulher frágil edesvalida.Tinha assuntos paratratar. E o de hoje era particularmente duro. Combinara com Dietzencontrar-se, depois do jantar, na varanda da sua sala de trabalho, eencostara-se ao muro virado para o rio, onde as luzes dos barcos dospescadorespareciampirilampos.

Aoouvirospassosdoprofessorvirou-separaoreceber,comum sorrisocaloroso. O professor beijou-lhe amão, com a cerimónia que tantos anosdepoisde terchegadoaPortugal,eapesardoencontrodiário, insistia emmanter,eencostou-setambémaomurete.

-Ojasmimcheiratãobem...-comentouarainha,apanhandoum raminhodefloresbrancasdatrepadeiraquecobriaaparede.

-VoutersaudadesdeLisboa-murmurouoalemão-,masnãovejooutrasoluçãosenãopartir.Asmanobrasdilatóriasjánãoconvencemosingleses,eoapoiodosaliadoséfundamental.Saldanhasozinhonãovaichegarpara

derrotar a junta, muito menos sabendo aJunta que conta com o apoiointernacional.

Mariaestavainvulgarmentesilenciosa.

- Não sei como agradecer-lhe a lealdade com que me defende,Majestade,masemtemposcomoesteshásemprevítimasinocentes,esouumadelas!MasnãovaleapenacontinuarahostilizararainhaVitóriaeopríncipe Albert, que se batem como leões para defender afamília contraumgovernoqueéadversoaPortugal...

Mariamanteveosolhosnohorizonte:

-Sabe,Dietz,nuncaconsigoolharparaoTejo,paraomar,semme sentirum bocadinho angustiada. Durante muito tempo, no Brasil, aminha mãefalou-me do que havia para lá domar, e disse-me que na Áustria viviamhomens irmes, educados, príncipes no verdadeiro sentido da palavra.Falava do seu país, e da Europa, com tanto orgulho, que cresci a pensarque era aqui que estava a razão, omundo perfeito. Depois aminhamãemorreu, a relação com o meu pai era acidentada, e vi-o tantas e tantasvezesceder,abrirmãodosseusamigos,deixar cairaquelesqueotinhamservido com lealdade, até ao dia em que osabandonou a todos, inclusiveaos meus irmãos, fugiu a meio da noite,sem sequer a coragem de lhesdizeradeus.Jureiamimmesmaquenãofariaomesmo,quenuncatrairiaquem me servisse com lealdade.Talvez por isso tudo não goste demudanças,sinto-mebemcomomeumaridosérioegeneroso,quenãometraz o coração sempre em sobressalto, sinto-me feliz com a minha trupepertodemim,comosmeusamigospróximos,masaomesmotempoperdiomedo, sabe?Percebi que a vida continua, por grandes que sejam ossofrimentos.Porissonãoestoudispostaacedertudo,nemadeixarquemeinsultemehumilhem,semresistir.

Dietzolhava-a,sobaluzdaLuaquesubiranocéu.

-Admiro-amuito,senhoraD.Maria,mashámomentosemqueé precisoabrirmão de algumas coisas, para conseguir obter outras. Não sinta quemetraiu,pormeentregar.Percebo-a,seicomquesacri ício medeixair,etalvez,quemsabe,sejasóumapartidatemporária...

OrostodeMariailuminou-se:

-Talvez.CostaCabralvaivoltar,emaisbrevedoqueimaginamos,vaiver.

Dietz sorriu-lhe, a esperança no coração. Há trinta anos que serviaFernando,Mariaeos seus ilhoserama sua famíliae a sua razãode ser.Aterrorizava-oovaziodasuavidasemeles.

Mariaanimou-se:

-Masnão lhesvamosdizer jáqueaceitapartir.Hãode icarna dúvidaaté à última hora, Dietz, todos eles, o conde, o embaixador, o coronel,Vitória,Albert.EatéFernando,Dietz,atéFernandonãodevesaber.

Nessa noite a rainha dormiu um sono agitado. Tinha tantos segredosparaguardar.SeaomenosaliestivesseFloricaeosseusbeijos quentes,seao menos ali estivesse a mamãe e os seus braços protetores, mas nãoestavam, e nesta casa era ela, e só ela, que podia proteger os seusocupantes.

Recebi tuna carta de Palmerston queme deixoumuito agitada. Diz-mequeD.MiguelestáemLondresdesdeaúltimaquarta-feira,escondidoemcasa do capitão Bennett, que foi a Itália propositadamentepara o trazerconsigo para Inglaterra, disfarçado de criado. Palmerston informa que jádeu ordens à polícia para o vigiar, e que, pelo que conseguiu apurar, aintençãodeD.Miguelé juntar-seaos seusapoiastesemPortugal, quandoestesestiveremmaisforteseorganizados.

Estanotíciaterácertamentein luêncianaopiniãodePalmerstonsobrearainha de Portugal, a quem tem acusado de inventar que hámiguelistasassociadosàJuntadoPorto.Tornamaislegítimaasuarecusaemnegociarcomos rebeldes, e reforça a convicçãodeque ospaísesqueassinaramaQuádruplaAliança têm legitimidade paraintervir emdefesada rainha, jáque se comprometeram a fazê-lo se o trono liberal algiuna vez fosseameaçado. Vou aguardar. Não vou dizer nada a Palmerston, que é maisteimosodoquearainhadePortugal,emenosbemformado...

NovacartadelordPalmerston,contandoquetinitalM.Saraivalhepediu

tunaaudiênciaparalhecomunicarqueD.MigueldesejavavirparaInglaterraeserrecebidopeloministrodosNegóciosEstrangeiros.Palmerstonfez-sedesentendido,comosenãosoubessequejácáestá,erespondeuquenãopodiapermitirquetalacontecesse,equenãoteriacomelenenhtunaligação,diretaouindireta.Cínicocomoé,acrescentouquerecomendavaqueD.Miguelpensassebemnasdificuldadesdessaaventura,porquearainhaVitórianãolhedariaqualquercobertura,nemmmcaoreceberia.

Pa]rnerstonacrescentaumanota emquemedizque seosmiguelistasnão fossem tão loucos e desorganizados, ainda dariam muitotrabalho,porquenoestadoemquePortugal está, e comoapoioquetêm juntodospadresedopovo,seriamrecebidosdebraçosabertos.

AlbertdizqueaJuntacomeçaarevelarquenãopassadeumbandodeinsurretos, mas sem um propósito comtun, e que a opinião públicabritânica inalmente percebeu que tem sido vítima de uma enormedemagogiaquequerretratararainhadePortugalcomoumatirana. Talvezascoisascomecemamudar.

CastelodeWindsor,10deabrilde1847

PaláciodasNecessidades,10deabrilde1847

arfaleudenovoacartaqueacabaradereceberdeVitória:

«Estacartavaiporvapor,emrespostaaoteupedidode socorro.Esperoque as condições que o governo britânico propõe aPortugal para aceitarsanaraguerratepareçamsatisfatóriasesejam su icientespara terminaressa terrível luta. Esta démarche de Inglaterra é uma grande exceção àsregras da política inglesa, e espero que vejas nisto a prova de que aInglaterraésemprea ielaliadaeamigada rainhaedoreinodePortugal,umnovolaçoquevaiunirmaisintensamenteosnossosdoispaíses.»

Maria suspirou. «Pobre Vitória, sei que tem feito tudo o que pode pormim e pela nossa família, sei que não tenho outro remédio senão aceitareste acordo, que se o recuso mais uma vez o Fernando perde de vez apaciência comigo, mas como gostava de derrotar os meusinimigos, semconcessões», pensou. Na festa dos seus 28 anos, celebrados há dias,impacientaraoreiporvirarascostasdeliberadamenteaocoronelWylde,que icaramuitomagoado.Masseassimera,porqueéque tinhaditomalda rainha nos jantares destinados a conspirar contra ela?, em casa doduquedePalmela,logooduque,logoaduquesa,emquecon iaratanto.Emvão Fernando lhe dissera que eram intrigas, nadamais, masMaria bempercebiaqueosPalmelanãolhefalavamcomomesmocarinhodeoutrora,esuportavamalaimaginadatraição.

Irritada, levantou os olhos para o retrato damãe, pendurado por cimada pedra da lareira, e sentiu-se serenar, conseguindo sorrir-lhe: «Eu sei,mamãe, que a Senhora da Glória não gostava de ver a sua a ilhada tãovingativa,mas vingo-me amime a si, e a todas asmulheresque não sãorespeitadas porque os homens olham sempre para elas comomenores emaisfracas.»

PousouacartadeVitória,esaiuparaseencontrarcomFernando, queaesperava comas crianças, já prontos para partir para umpiquenique naTapada.Dietz levavaaopescoçoosbinóculos,Pedroum livrogrossopara

identificarospássarosquevissempelocaminho,LuísumlivrodeBotânica,e os mais pequenos faziam vezes a segurar a mãodo pai, que lhesensinavaonomedasplantas.

A madrasta e a sua meia-irmã juntavam-se-lhe, e Maria sentia-setãotolerante,queatédeuobraçoàpequenaAméliaepercorreuos caminhosemamenaconversa.ViviamhabitualmenteemSantaMarta,masapretextoda festa do seu aniversário, celebrada pacatamentecomo convinha a umpaís em guerra, convidara-as para passar umas semanas nasNecessidades, e até agora, pensou divertida, não tinhaimplicado comnenhumadasduas.Estava, de facto, a icar combomfeitio, riu. Fernandoleu-lheospensamentos,esorriu-lhe,encorajador.

Pelomenos, por agora, a família estava completa, e não pensaria,nempor umminuto, na partida do professor. Mas logo à noite teria de dar anotícia às crianças. Fechou os olhos, e sentiu a escuridão dentro de si.Fernandoquetratassedisso,que icasseeleoresponsávelpela partidadeDietz aos olhos de Pedro e Luís, porque ela, nisto tudo, era uma vítimainocente.

Dietzdeixou-seficarparatrás,edisse-lhebaixinho:

-Jápediopassaporte,eocoronelWyldedizquetemumbarcoà minhaespera.

Pedro, que não ia longe, tropeçou numa das raízes do grande plátano.Seráqueospaisimaginavamquenãosabiaoquesepassava?Podiamsertão ingénuos, ao ponto de acreditar que as crianças nãotinham ouvidos,queoprínciperealnãopercebiaoqueaconteciaàsuavolta?

Mas a rainha não lhe deu a oportunidade de falar no assunto.Acelerando o passo para se aproximar do ilhomais velho, pousou-lhe amãonacabeça,numgestoterno,enquantorefilava:

-MeninoPedro,quandoestáaoarlivre,éparaverondepõeos pés.Tireláacabeçadoslivros!

FoiDietzquemmeentregouumgrandeenvelope como selode Maria.Beijou-me a mão, e ctunprimentou Albert com a maior cordialidade, eAlbert respondeu com afabilidade, como se nada se tivessepassado, e a

sua chegada a Londres resultasse de tuna decisão livre. Nunca mais sedirá tunapalavra sobre este assunto, e convidámo-lo a icar o tempoquedesejar.Tenhopenadopobrehomem,quederepente icousemninguém,mas quando pediu para ver as crianças, porque a senhora D. Maria lhesolicitara que as descrevesse em detalhe, iquei furiosa: sei que os quercomparar com os príncipes portugueses, e testarse estão ou não maisavançadosdoqueosmeus.Albertcondescendeualevá-loàsaladeestudodos mais velhos, e não tenho dúvidas de queos interrogará como munexame.

Pelaminhaparte sentei-me a ler a carta deMaria. Recomenda-mequeoiçaoqueDietznostemparadizersobrePortugal,sublinhando queessa,sim,seráapuraverdade.Edepoisacusa-nosdetermossido injustos comele, de deixarmos Pedro e Luís de coração partido, e sem ninguém quedirija os seus estudos, pelo menos com a mesma qualidade. Fala de umnovopreceptor,tinitalviscondedeCarreira,mas queestáemParis,éunihomemde idade, e aindademoraráa chegar. Confessoquepercebioseudesespero, bem sei o que senti quando aminha querida Lehzen foiobrigada a partir porque Albert a achavademasiado controladora e asintrigas da corte se viraram contra ela, mas esquece-se a rainha de quetivedeprescindirdela,equeopróprioAlbertnãosepoderodeardosseushomens de con iança, porque poraqui também não se suportamestrangeiros de volta dos príncipes. Mas nem vale a pena recordá-lo aMaria,quenestemomentoestádemasiadoferidaparacompreender.Aliás,basta ver o último trecho da suacarta, que não resisto a transcrever,sempre sem pontos ou vírgulas. DizMaria: «E alémdisso esta partidadeDietz faz-nos imensa pena porque pela sua viagem perdemos um amigodevotado, e isso é tuna coisapreciosa nos tempos que correm sobretudoquanto a política é o que énão tenhomaisnadaadizer-te anão serquemeaborrecefuriosamenteeoFernandoescreveráaAlbert.»Éninaforçada Natureza, como jánão existe nenhuma, como se queixa o pobre doduque de Palmela, quediscretamente a acusa de o ter abandonado,acreditando nas intrigas deDietz. Termina a carta pedindo-me que lheenvie sementes de amores-perfeitos, e oferecendo em troca pés de rosaparaaminhacoleção.Voutratarjádelhasenviar.

CastelodeWindsor,20deabrilde1847

PaláciodasNecessidades,21demaiode1847

entiuqueacabeçalhefugia,eaflitaestendeuamãoparaobraçodeFernando,queasegurouimpedindo-adecair.Ocoraçãobatiacomtantaforçaquepareciasaltar-lhedopeito,easriscasdasedaquecobriaasparedesfundiam-senumasó,umaimagemdifusa.

O embaixador britânico, com quem discutia as últimas birras deSaldanha,olhou-aempânico,semsabersedeveriaajudaroreiasuportaropesodarainhaou ingirquenãoderapelodesmaiodeMaria.Optouporpuxardeumacadeira,ondeFernandoasentou.

Aos poucosMaria recuperou as cores e, aceitando o copode água comaçúcarqueoreipediraparaela,deudoisgoloseretomouaconversa,nopontoexatoondeadeixara:

-Dizia o senhor embaixador que o senhor duque de Saldanha oradizbranco,oradizpreto?

Henry Seymour, ainda abalado pelo susto, concordou, e a rainharematou,rápidacomosempre:

-Nãomedigaquenãolhediztambémencarnado!

Fernandodeuumagargalhada,eoembaixadorjuntou-seaoriso.

Mariasaboreouoefeitodesconcertantedassuaspalavrasnodiplomata,eacrescentou:

-Comovê,nãomeensinanadaquandovemparaaqui falardocaráterdeSaldanha,conheço-ocomoaspalmasdasminhasmãos,masaosdefeitosjunto a qualidade de ser, apesar de tudo, o único queme defende noterreno.

Oembaixadornãoseatreveuadizer-lheque,nasuamodestaopinião,o

marechal pensava mais em si próprio do que na rainha, preferindorecordaroqueotraziaaopaço:

- Tenho aqui, Majestade, o protocolo de Londres, onde os seus aliadosfranceses, britânicos e espanhóis de inem as condições para intervir afavordapaz.

MariaaceitouospapéisqueSeymourlhepassava,nãofazendoqualquermençãodeosler:

-Tenhotempoparaoslercomatenção,masoquemeimportaé saberoque vai ser feito contra a junta do Porto, porque esses é que são os queprecisamdeumalição.

Seymourtevedi iculdadeemesconderodesesperoqueaobstinaçãodarainha lhecomeçavaaprovocar,depoisdestesmesesdeencontrosquasediários. Recordou-se do desmaio, e hesitou. Era visível que a indiferençaquemostrava era apenas uma fachada, devia estar tãopreocupada comoele com o desfecho desta guerra. Tossiu, e, no seu francês cheio desotaque,informou-adequebarradoDouro seriabloqueadapelaMarinhabritânica, como forma de pressão para que aceitassem as decisõesinternacionais. Maria dobrou os papéisque tinha no colo. Sabia bemqueaquilo que as potências estrangeiras propunham era um acordo, e nãouma derrota em toda a linha dosinsurgentes. Nem precisava de os lerpara ter a certezaque lhe iriampedir que amnistiasseos revoltosos, queaceitasseconvocareleiçõeslivres,eporaíadiante.

Estendeu amãopara que o embaixador a beijasse, e prometeu-lhe umcomentário ao protocolo proposto para os próximos dias, mas sabia quetinhasido,maisumavez,derrotada.

Maloembaixadorsaiudasala,Fernandodobrouosjoelhosebaixou-se,deformaaqueosseusolhosficassemaoníveldosolhosdarainha:

-Oqueéquesepassa,Maria?

Amulherestendeuasmãos,edeixouqueomaridoasentrelaçasse nassuas:

-Esperoumnovofilho,meuquerido.

Fernando corou, a pele da cor da barba arruivada, sem saber se decólerasedeemoção:

-Háquantotempoéquesabe?

Mariaencolheuosombros:

- Há algunsmeses, mas sabia que se lhe dissesse o ia preocupar, queinsistiria em chamar o Kessler, que me vigiaria noite e dia, e soudemasiado necessária ao país para que me coloquem numa redoma devidro...

Fernandozangou-se:

- Sabequeadeixo tomarasdecisõespolíticas,quenãome imiscuonassuas reuniões com os políticos, exceto quando me pede opinião,masesconder-mequeesperaumfilhomeu,issonãolheadmito!

Levantou-see foiatéaopiano, levantandoebaixandoatampa,comoseprecisassedeumgestofísicoparaesconderasuairritação.

Mariabaixouosolhos,comoumameninaapanhadaafazerumaasneira,echamou-odevolta:

-Nãomedeixeaqui,Fernando.Nãoqueriamagoá-lo.

-Masmagoou.Epõeasuavidaemrisco,eadonosso ilho,eissonãoéadmissível - disse o rei, aproximando-se e pondo-lhe a mão suavementesobreabarriga.-Jádápontapés?-perguntou.

Mariasorriu:

-Mexe-semuito,vaisermaisumrapazcheiodegenica.MasFernando,tenhotidotodoocuidado,eatécomidomenos,comoseiqueosmédicosmevãorecomendar....

Escondeu-lhe os seus medos, não lhe disse que esta oitava gravidezaassustava muito mais do que as outras, que a todo o momento serecordavadaquelesdiasemSãoCristóvãoemqueamãeperderaprimeiroo bebé, e depois a vida. Quanto menos falasse dos seus medos,mais

depressaseiriamembora,estavacertadisso.

Fernandobeijou-lheatesta,comoseaquisesseabençoar.

-VouchamaroKesslereoTeixeira.

Mariasuspirou,conformada:

-Eusabia!Quevenhameles,comosseuspalpitesdehomensquenuncapassarampornadadisto!

Fernandoriu.Amulhernãoresistiaatersempreaúltimapalavra.

Albert diz que Maria deve ter esticado tuna perna para que Alextropeçasse nela. O pobre partiu tuna perna, e agora está pelo paço, depernaestendidaecheiodedores.FoiFernandoquemeescreveu acontaro acidente, e a implorar-nos que não prestemos atenção ao que a rainhanosescreveusobreonossoprimo.Diz-nosqueMarianofundogostamuitodele,equeéporamoraomaridoquereageàsuapresença,porque«ntunpaístãoforteemcancãscomoPortugal,a longapresençadeAlexpodedefacto dar lugar a todos os tipos deinterpretações». Comoveu-me que adefenda assim, mas a verdade éque alguém tem de lhe dizer as coisascomo elas são, e não podemosvergar-nos às suas ordens. A presença docondeéfundamentaleelanãopodedeixarqueosseuscaprichospessoaisinter iram com aquiloque, aindaporcima, resultaemseubene ício.Nemlhe posso permitirque seja tão injusta comuni homemque cumpreumamissão a custopróprio, porque sinceramente estaria bemmais divertidona corte emViena do que em Lisboa, ainda para mais em plena guerracivil. Porisso peguei na caneta e escrevi-lhe o que a seguir aquitranscrevo:

«MinhaqueridaMaria,

Quanto a Alexandre, não percebo porque é que o persegues de talforma. Nunca te deu mais nada senão provas de amizade, a ti e aoFernando, prestando-vos um serviço fundamental através dos seus

relatóriosserenoseimparciaisqueservirampararetificaraideiaqueaquise tinhasobreoquesepassaemPortugal,permitindoqueagíssemosemvossofavor.

Decididamente,nãoémuitoencorajadorserteuamigo,setudooqueserecebeemtrocaéqueixaseprotestos.PobreAlexandre,fazes comquesesintaumpesoparati,oqueépositivamenteindecente.Esqueces-tequeeleé o representante de toda a família, e que ntunmomento tão críticoconsideramosqueécontrárioaonossodever deixá-lopartirdeLisboa.Sea sua presença te incomoda assim tanto,tenho a certeza de que ele seretiradopaçoealugaumacasanacidade. Bastadarem-lheumsinalnessesentido.

Peçodesculpaporteescrevercomtantafranqueza,massópossodizeraverdade,sendo,comosou,atuadevotadaprimaeamiga,

Vitória»

Castelode1Vindsor,21demaiode1847

PaláciodasNecessidades,31demaiode1847

arfaleuacartaquereceberadeVitóriaesentiu-seenvergonhada.Incomodava-aqueVitóriaaachasseingrataemáamiga.Sabiaquefaziatudooquepodiaporela,equeseconfrontavacomosministrosdoseupaísporcausadela.EopobreprimoAlex,quecontinuavapelopalácioacoxearagarradoàsbengalas,nãoera,narealidade,assimtãoinsuportável.Alémdomais,riuparasimesma,agorainválidonãodesencaminhariaFernandoparaladonenhum,eimpedidodemontaracavalonemsequerdariamporelenasruasdeLisboa.Malpormal,sempreensinavaestratégiamilitaraPedro,efalavaalemãoeinglêscomospequenos.

DesejosadefazeraspazescomVitória,sentou-separalheescrever umacarta de amiga, sem política à mistura, porque bem dizia que a políticadestruía todas as relações. Na manga tinha dois trunfos quesabiaimbatíveis.Anotíciadasuagravidez,aindaporcima já tãoavançada, e ashistóriasqueCostaCabral,comoministroportuguês emMadrid,devezemquando lhe contava sobre o casamento instável de Isabel II de Espanha,quejátomavaproporçõesdeescândalo. A«rainhairmã»tinhaaos17anosuma vida muito mais colorida doque a delas, escreveu, sabendo queespicaçava a curiosidade da prima.Em poucas palavras, o assuntoresumia-se ao facto de o marido, Francisco de Bourbon, cumprir mal osseus deveres matrimoniais, preferindo, ao que se dizia, a companhia deoutroshomens.Arainha,por despeito,ouporqueeraesseoexemploquerecebera da mãe, teria omesmo gosto do que o esposo, ou seja, porrapazesbonitos.

Numtommaissério,revelavaaVitóriaqueapobrerainhadeclararaaoseuministroaintençãodeseseparardomarido.Erematava:«Deussabeoqueaindaestáparaacontecernaquelepaísecomoéqueépossívelquesetenha uma ideia destas, sobretudo num lugar como oseu. Nós as duas,felizesnocasamento,nãoentendemosestascoisas.»Comestacarta,estavacerta,ganhavaalgunspontos.

A situação em Portugal parece estar inalmente a resolver-se, e hojemesmoseráassinadaanortedoPorto,numlugarchamadoGramido, umaconvenção que selará a paz. A Junta levou tempo a desarmar, sendonecessáriovercomosseusprópriosolhososnossosbarcosàentradadoDouroparacapitular,masarainhadePortugaleosseusamigos tambémnão gostaram das condições que foram impostas, nomeadamente a deconvocareleiçõeslivreseamnistiarosrebeldes.Mariaaindatentou fazer-sededesentendida,mas,aoperceberqueSaldanhaestavaperdido e quenósnãocedíamos, foiobrigadaa fazerproclamartiniaamnistiageral,quetenho a certeza não faz a menor intenção de cumprir e quesomará àshumilhaçõesdequesesentealvo,equesecretamentejuraum diavingar.Contudo,averdadeéquecedeu,eacreditoqueterásido,emgrandeparte,porque lheenvieiasatas integraisdosdebatesdoParlamentobritânicoarespeitodelaedasituaçãoportuguesa.Lamenteiquefossetãomaltratada,chamando-lheaatençãoparaqueapenas tun,e tuniinico,ministro falaraemsuadefesa,contratodososoutrosqueacusavamarainhadePortugaldeseraconspiradora-mordetodosestesgolpes,deseassociaraoodiadoCosta Cabral, com o objetivo de fazer caira monarquia constitucional,pintando-acomotunasoberanaabsolutista,caprichosaepoucointeligente.Sei perfeitamente que não terá passadoda quinta linha dos documentos,por isso lhe disse tudo isto muna cartapara me certi icar de que amensagemchegava,masestoucertadequeFernandoaleutodaelheterálidoaltoasferroadasmaiscontundentes.

0 dia de amanhã é um grande dia, e se Maria não o celebrar é tonta,porque pouco faltou para que perdesse o trono. Começa agora a di íciltarefa de vigiar que as condições são cumpridas,porque reconheço quePalinerston tem razão quando diz que a partir do momento emquepusemososelodanossacredibilidadenesteacordo,nãopodemos permitirquenosdeixeficarmal.

CastelodeWindsor,29dejunhode1847

PaçoRealdeSintra,27deagostode1847

êcomoPalmelaéambicioso,eaceitatudo?

- V Fora obrigada a recorrer de novo ao duque para presidir ao novogoverno, aquele que teria de preparar eleições, como estavam obrigadospelaConvenção.

Oreiolhava-a,incrédulo:

-Parece impossível,Maria.Pede-lheencarecidamentequeaceite, depoisdeumaguerraquedeixoumaisumavezopaísderastos,e agorachama-lhenomesporqueaceitou?

Marialevantou-seecomeçouaandardeumladoparaooutrodasala:

-Muitofrancamente?Oqueéqueeuqueria,defacto?QueCostaCabraltivesseregressadoatempo.JáomandeivirdeMadrid,mas...

Fernandopôsasmãosnacabeça,desesperado:

- Costa Cabral, Maria, vamos começar tudo de novo? Já se esqueceuporqueéqueaguerracomeçou?

Pedroestavaaouvir.Emagreceramuitonestesúltimosmeses,e andavanervosoemelancólico.

- Mãe, o pai tem razão, a mãe não vai começar já a desobedecer àscláusulasdaConvençãodeGramido,poisnão?

Mariasobressaltou-se:

-Eoqueéqueomeninosabedesteassunto?-perguntou-lhe,irritada.

Pedro começoua recitarde coraConvenção, eMariaolhava-o com ummistodeorgulhoedeirritação.Venceuairritação:

-Sabeoqueacho?Queomeninovaiserumgrandepedante!

Pedroendireitouas costas, como faziaquandovestia a fardae passavavistoriaàGuarda,emanteveoseuolhar:

-Pedantetalvez,masmaissensatodoqueasenhoraminhamãe.

Mariasentiuumavontadeenormedeoesbofetear:

- Hoje vai para a cama à hora dos seus irmãos pequenos - disse,autoritária. - E agora desande daqui, e livre-se de se ir en iar nos livros!Subaaumaárvore,rapaz,queunsarranhõessólhefazembem.

Fernandoolhou-acomreprovação.

-AiFernando,nãocomecetambém.Acriançaébrilhante, todosos diasdou graças ao nosso querido Dietz, mas precisa de levar nas orelhas,porque daqui a pouco não há ninguém que o ature. Ainda nem 10 anostem,ejáfalaassim?

Edepois,maismeiga:

- É assim tão reprovável que deseje que volte a Portugal, e assuma opoder, o único homem capaz de servir o país? Já viu como todos secomportam desde a Convenção? Tudo na mesma, como se a guerranãotivesse acontecido. Não tenho feito tudo para que as condições secumpram,nãochameiPalmelapara formarumministério,procurei que ogoverno tivesserepresentaçãode todasaspartes?Mas todaa gente sabequemuitoscozinheirosestragamasopa!

Fernando tinha de concordar com a mulher. Os políticos portugueseseraminsuportáveis.Conciliador,sugeriu:

-EseamanhãfôssemosverasobrasnaPena?Aindanãoviuajanelaqueimita ada sacristiadoConventodeCristo emTomar, em queme inspireiquandovisitámosCostaCabral.

Mariaentusiasmou-se.

-Osmaisvelhosjápodemirmontadosnosseusprópriosburrinhos,mas

eunesteestado-disse,apontandoparaabarriga-sópossoirdecaleche.

PelajanelaviuonevoeirodescersobreoCastelodosMouros:

-Tenhamosesperançasdequenosdeixemempazporumassemanas...

OsolhosdesceramaencostaepararamnaQuintadoSaldanha.Seráquejá tinha voltado? Teria notícias de Costa Cabral? Mandar-lhe-ia umamensagem para que, como que por acaso, se encontrasse com eles naPena.

PaláciodeMafra,16desetembrode1847

edrofazia10anoshoje.«Já10anos»,pensou,abrindoosolhosdevagarinho,asvozesdosfilhosaecoaremnoscorredoreslargosdoPaçodeMafra,dequetodosgostavamtanto.Levantou-sedevagar,tentandoevitarumadastonturasquesetornavamcadavezmaisfrequentesequepreocupavamosmédicos-unsdiziamqueosanguenãochegavaàcabeça,porqueiatodoparaobebé,outrospuxavamdeenciclopédiasparaargumentarqueerasangueamaisquelhecongestionavaocérebro,fazendo-aperderoequilíbrio,equeacriançapoderiasofrercomasuafalta.Lurdesajudou-aaendireitar-se,eascriadasvieramvesti-la.

- Deixem-se de detalhes, quero o vestidomais largo, mais solto emaisconfortável, poucome importa se é omais velho e coçado.No estado emque o país está, se todas as senhoras dessempara os cofres do Estado oquegastamemtrapos,nãotínhamosmetadedosproblemas-protestou.

Naoutrapontadoquartodevestir,viusurgirMariaAnaeTonica, cadauma trazianamãoum ramodemargaridas e camomilas, as suas trançasloiras e os seus vestidos azuis a balouçarem com a corrente de ar quefelizmentesetinhalevantado.Mariaabriu-lhesosbraços,easpequeninascorreramparaoseucolo:

- Não esmigalhem o vosso irmão - disse a rainha, divertida,aconchegando-asnocoloepedindoaLurdesquepusesseas loresnumajarrinha.

- O pai disse que asmães é quemereciampresentes nos dias de anosdosfilhos-disseMariaAna,queaos4anoseraaltaparaaidade.

Maria recordou-se dos sete partos que tivera, e do oitavo que estavaparachegar,eacenouquesimcomacabeça:

- O pai tem toda a razão! Obrigada, Maria, mas agora temos de nos

despachar,porquevamosdaropresenteaomanoPedro.

- O que é? - exclamou Tonica, tão engraçada com o seu vestido deorgansina branca e os sapatinhos de ivela ainda tão pequeninos.Mariafez-lhecócegasedeixou-aescorregarparaochão:

-Curiosa!Vamosver,éumpresenteparameninoscrescidos...

Nasala,Fernando,Pedro,LuíseJoãojáesperavamporelas.Olhou paraos seus rapazes comum imensoorgulho, eabençooucadaumdeles, que,diligentes, dobraram o joelho para a bênção quando se aproximava decadaum.

-Pedro,deixe-meolharparasi.Tãocrescido,meufilho.

O príncipe escondia ainda mal a ansiedade, e Maria piscou o olhoaFernando:

-TemopresentedoPedro,ouesqueceu-sedeleemLisboa?

Fernandosorriu-lhe.Gostava tantodeaver felizebem-disposta,sem airritabilidade que lhe provocava a política, longe da sua sala detrabalho,das reuniões do Conselho de Estado, do diz que disse doscorredores doPaçodasNecessidades.

- Está tão bonita como há dez anos - disse-lhe, sedutor, e Maria coroucomosetivesseos18anosdeentão.

- Acho que omenino Pedro estámais interessado no presente do quenospiroposdoreiàrainha.

Pedrosorriu-lhe,deixandopormomentosorostofechadoepreocupadoque tantas vezes tinha. Quando Fernando foi atrás da cortina buscar opresenteelhoentregou,deuumgritodealegria,eLuís precipitou-separacimadoirmão:

-Nãoacredito,quesorte!

O príncipe sentou-se na cadeira mais próxima com uma caçadeira namão,mais pequena do que as dos adultos, passando-lhe amão porcima

comosefosseumaobradearte.

- A primeira perdiz é para o meu jantar - disse-lhe a mãe -, mas nãoqueroessaarmaemcasa,nempertodosseusirmãos,ouviu?

Fernandochegou-semaisperto:

-Vire-adooutrolado,eveja.

Pedroexclamoudenovo:

-Temomeumonogramaaouro,éminha,mesmominha-e,virando-separa Luís, atirou: - E o senhor D. Luís nunca lhe há de pôr as mãos emcima.

Luís,sempreconciliador,encolheuosombros:

-Serve-mebemaespingardaantigadopai,comquecaçosempre.

João, que invejava as idas à caça dos seus irmãos mais velhos, quetinhamodobrodasuaidade,aproximou-seepassouodedoindicador nasletrasemrelevo:

-OmanoPedroensina-meadisparar?

Mariaiaprotestar,masFernandointerveioprimeiro:

-Opaiensina,João,massóparaoano,sóquandotiver6anos,estábem?Poragoratemdeaprenderatreinaroscãeseamontarmelhoracavalo.

Radiante,oprínciperiu:

-Maspossocomeroqueelescaçarem,nãoposso?

Mariadeuumagargalhada.Aquiestavaumfilhocomoela.

OpequeninoPedro,opríncipeportuguês,fazhoje10anos,eoFernandoescreveuacontarquelheiadarumaespingardacomoseumonograma.O

Albert icou tão entusiasmado, que lhe mandou umacapa para aespingarda.EsperoqueaMariaconsigadescansaremMafra,porquetemoque,comtantaagitaçãocomoaquetemvivido,acriançapossanãonascerbem, e que ela própria não sobreviva a mais este parto. Há tantasmulheresquenãoresistem,quenãomeparece sensatoimaginarquenãonospossaacontecerqualquercoisaanós.

Já lhe recomendei repousomil vezes, enviei-lhemis artigosque saíramaquinos jornaissobrea importânciadequeestesmesesdeespera sejamserenos e sem preocupações, mas ela sóme respondeu que eram coisaspara burguesas, porque nem as rainhas, nem as mulheres do povo sepodiamdaraesse luxo.Temalgumarazão - tambémeuestou grávida denovo, e ninguém me dá uni momento de sossego por causadisso. MasMariaestátãopesada,conta-meoprimoAlex,quereceioporela...

CastelodeWindsor,3desetembrode1847

PaláciodasNecessidades,24deoutubrode1847

eninos,seoiçoumabirra,umalamúriaouumchoro,nuncamaisvãocomopaiaumavisitadestas-disseMariaaosdoisfilhosmaisvelhos,vestidosapreceito.

-Mãe,queméatiaAdelaide?-perguntouJoão,curioso.

-Oqueéque isso interessa, oque importa équevamosestarnaquelebarco fabuloso - disse Luís, apontando para o grande navio ancorado noTejo,frenteàsNecessidades.

- Deixe lá o barco, menino Luís, e oiça mas é a minha resposta àperguntaqueomanoJoãoteveainteligênciadefazer-dissearainha.

-Posso respondereu,mãe?OviscondedeCarreira explicou-nos tudo, oLuíséquenãoouviu!

-Sóporessecomentário,agoranãoexplicanada-disseMaria,zangada.-Explicoeu.AtiaAdelaideéaviúvadoreiWilliamdeInglaterra,queerairmãodopaida rainhaVitória, e foimuitobondosacomamãe,quandoamãeesteveemLondres...

-Eusei,jámelembro...convidouamãeparaumbailenopaláciodela,eamãe icou a dormir nos aposentos da tia Adelaide, quandovoltou asegundavezaInglaterra-disseinesperadamenteJoão.

Mariasorriu-lhe:

- Issomesmo,meu ilho, e agora venha para dentro e deixe o pai e osmanosirembora.

João voltou para o quarto de brinquedos, e Maria, encostando-seàjanela, pôs Tonica de pé numa cadeira, para ver melhor, e pegou emFernandoaocolo.Queorgulhotinhanasuatrupe:

- Temos de arranjar uma carruagem maior, porque quando formostodosaalgum lado, jánão caberemosemnenhuma - comentou coma aiadosmeninos.-Dentrodeummêsvamosserumafamíliadedez,queDeusnosabençoe.

Tonica começou a choramingar que também queria conhecer a tia«Delaide»,comodizia.Mariaeaaiariram:

-Maislogo,minhaquerida,atiavemcáacasa,evamosdar-lheumramodeflores,queagoravamosapanhar,estábem?

Tonica parou de chorar, saltando para o chão. Ia pedir ao jardineiroloresparaasjarras,quequeriaserelaafazer,eaindatinhadeconversarcom o professor de inglês dos mais velhos, para que lhe dissesse quaiseramosversosqueiamrecitarantesdoalmoço...

A tia Adelaide escreveu-me a dar notícias da sua visita a Lisboa.Éengraçadocomoorelatodasmulheresétãodiferentedodoshomens, tãodiferenteoquevalorizam,oqueachanaimportanterealçar.Masaverdadeé que icamos com uni retrato muito mais vivo das pessoas e dos locais.Mariaea famíliatransparecememcadalinhadeumaforma tãoviva,queicocomtunapenaenormedenãoospodervisitar.Atia Adelaideescrevedeformatão luida,comtantosdetalhes,munaletracertinhaefácildeler.Colo a carta à folha destemeu diário, porque dizmais do que eu algumavezpoderiadizer.

«Minhaqueridasobrinha,

oreiveiofazer-metunavisitaabordonasexta-feiraàtarde.Está muitomaisbonitoeéagoratnihomemmuitoagradável,maislargo deombros,etemtunabarbacomoumsapeur,quenoentanto lhe ica particularmentebem.Estavaacompanhadodosseusdois ilhosmaisvelhos,rapazesmuitobonitos e simpáticos, nada envergonhados e capazes de conversar comtoda a gente. São muito bem-educados, e falamportuguês, alemão efrancês igualmentebem.Depoisde tunavisitadetunahoraoreivoltouaterra, e fomos ao meio-dia prestar os nossos respeitos à rainha. Fomosrecebidos com grande pompa, embora eu tivesse repetidamente pedido

que aminha visita não fosse consideradadeEstado,masnão faltaramascarruagens de seis cavalos, as fardas degala, escolta e todas as honraspossíveis. Quando desembarcámos, entremil saudações, o céu estavaespantosamenteazuleosolbrilhava,masmuitoquente.D.Mariarecebeu-nos de formamuito graciosa, rodeada pelos seus ilhos, que são de factomuito bonitos. Foi um prazer vê-los a todos e iquei deliciada com todoseles.Araparigamaisvelhaémuitoparecidacomarainhaquandoavimospela primeira vez em Londres, e a mais pequenina é um amor enitidamenteafavoritadopapá.

OPaláciodasNecessidadesfoirecentementedecoradodenovo,emuitobemmobilado,estáesplendorosomesmo.

Arainhanãomudounada,masnestemomentoestáobviamenteenorme,comoseesperade tunagravidezdeoitomeses.Perguntoumuitoporsiepelosseus ilhose foimuitoqueridacomigo.Voltámosabordopelasduashorasedepoisdoalmoçoaminhairmã,sobrinha,etc.,voltaramaterradenovo para ver os monumentos, enquanto iqueiaqui a descansar, masrecebitunavisitacalma,serenaeamigáveldorei,que icoucomigoatéquetodos tivessem regressado. Pareceu-me contente por ter tuna conversacalmaesemperturbaçõescomalguémquese interessamesmoporele,eagradeceu-merepetidamentetê-losvindovisitarnestemomento.

Ontemfuiinterrompidajánãoseiporquêeagorapegonacanetaparacontinuarapartirdeondefiquei.Oreiémuitoquerido,muitobom,echeiodeboasintenções.Parece-memuitomagoadoporsertantasvezesfalsamentejulgadoedaremdeletunaimagemdeturpada,coisaqueoofendeprofundamente.Tambémlhecustamuitoquandodescobrequeaquiloquefaznãoérecebidocomaprovação.Ficocomaimpressãodequeémuitoamadonestepaísqueconsideraseu,edefacto,aspessoasfalammuitobemdele.AgoradepositagrandesesperançasnasCortes,quesereunirãoemjaneiro,equedecorrerãodaseleiçõesqueacontecemnopróximomês.

Fomos às Necessidades de novo, e o rei e a rainha mostraram-nos ojardim, que é lindo, e voltámos a encontrar lá todas as crianças, semchapéu,pescoçosebraçosàmostra,enempor issoqueimadospelo sol, oqueésurpreendente.OpôrdoSolderegressoaobarcofoilindo.

Amanhã vou logo cedo com o rei a Sintra ver o castelo que me vaimostrarpessoalmente,easobrasnopalácioqueestáaconstruir.

Daqui de Lisboa seguimos para a Madeira e o rei talvez vá connosco,porquenunca,viuailha,eassimiaenquantonósláestávamos.»

CastelodeWindsor,31deoutubrode1847

PaláciodasNecessidades,28deoutubrode1847

ostaCabralchegaraaLisboahaviadias.Discretamente,procurandonão atrair a atenção sobre si, e Fernando insistira que era cedo demaisparaquefosseconvidadoaopaço,temendoasintrigasquecomeçariamdeimediato.Mariaconcordara,queremédiotinha, masespreitavaomomentoemqueopudessever.Hoje,Fernandosaíra paraSintracomospríncipesmaisvelhos,asdamaseoscamareiros,acomitivatodaqueacompanhavaatiaAdelaideeafamílianavisitaaSintraearredores.Usaraagravidezeocansaço comodesculpa, epedira aLurdinhasque entregasse emcasadosenhor conde de Tomaruma nota sua, pedindo-lhe que viesse àsNecessidades, pelas onze damanhã. «Manda entregar isto, sem dar nasvistas, ouviste?», recomendara. Depois ordenara que a rapariga oesperassenaportaquedavaparaacalçadaeotrouxesseparaasuasaladetrabalhoomaisdepressaquepudesse.

-Nãomeolhesassim,mulher,nãoénenhumencontroclandestino.Ésópara essas línguasmalditas não começarem a tagarelar, quemetade doscriadosdestacasa,descon ioeu,recebemsoldodoembaixadorbritânico,aoutrametadedofrancês,epelomeioháosqueacumulamcomoespanhol.

Quando o reposteiro correu para o lado e Maria o viu entrar, quasecorreu em sua direção. Abriu-lhe o seu maior sorriso, e ele retribuiu-o,beijando-lheamãoprolongadamente.Nãolhedissequesentiraasua falta,e o conde de Tomar, por seu lado, agiu como se tivesse saído dali navéspera, e minutos depois estavam embrenhados numa acesa discussãopolítica. Era preciso desobedecer ao acordo de Gramido, preparar aseleições que aí vinham, para que trouxessemde novo ao poder quem defactomereciaassumi-lo,sublinhavaarainha,feliz.

-Chegadedisparatesnestepaís,enãosãoosestrangeirosque sabemoquenosconvém-insistiaMaria,enquantoCostaCabralasossegavaquantoaofuturo.ACartahaviadevigorar,eoscanalhas quelhetornavamavidanuminfernohátantosanosteriamdepagar.

Tomara amimque as notícias dePortugal fossem todas tãoboas comoas que a tiaAdelaidememanda. É di ícil saber quemmente equem falaverdade, eatéquepontoa rainhaé sincera.LordPalmerston diz-me quenãopossocon iarnaboa-fédarainha,eacrescenta,muito sonso,quebemgostavadenãoterrazão,masquenumassuntodesta importânciapreferesercauteloso.DefendequearainhadePortugalse inclinadenovoparaopartido cartista, expondo-se a ela, ao trono e aopaís a grande perigo aofazê-lo, mas protestei contra a sua intenção de anunciar ao nossoParlamentoque«arainhadePortugalestáemperfeitoentendimentocomos cabrais, e estabeleceu com eles um acordo secreto». É uma acusaçãogravíssima,semfactosqueasustentem,equepodeenganartantoonossogoverno, como os ministros em Lisboa, lançando novas achas para afogueira. Rebati os seus arguunentoscontando-lhe que, ainda ontem, opríncipe Albert recebeu uma cartado rei de Portugal (que ele próprioreenviouaPalmerston,paraquea lesse),emqueexplicaopontodevistadacorte,queéodeuniaabsoluta idelidadeàConvençãodeGranido.Alémdisso,recordei-lhe,éonossopróprioembaixadorquea irmaqueéprecisodeixaroatualministériofazeroquepode,porquequalquernovamudançalevaria aunia nova revolução em Lisboa, provavelmente incitada pelospróprioscabrais. O que não disse a Palmerston,mas confesso às páginasdestediário, é que se Maria em vésperas de ter o seu oitavo ilho, eenquantorecebe a tia Adelaide e a família, ainda tem tempo paraconspirações,tiro-lheochapéu.

CastelodeWindsor,30deoutubrode1847

PaláciodasNecessidades,4denovembrode1847

mcriadosaiuacorrerparaavisaromédico.Arainhaentraraemtrabalhodeparto,duassemanasantesdaquiloqueseesperava.«Doqueosoutrosesperavam»,diziaMariaaLurdinhas,encontrandocoragemparalhepiscaroolho,porqueambassabiamcomodemoraraaanunciaraquelagravidez.

- SenhoraD.Maria, olheparao tamanhodeste rapagão!Quantas vezeslhe disse que era preciso cuidado? - repreendera o Dr. Kessler horasdepois, enquanto limpava a testa com o lenço, tal o nervosismoque asurpresaeadificuldadedopartolheprovocaram.

Mariaaconchegouaocolooseupequenino,oseuoitavo ilho,beijou-lheatesta,passando-lheamãopelacabeçacobertaapenasporumapenugemclarinha,erespondeucomasuacostumadainsolência:

- Haja paciência, senhor doutor! Em lugar deme dar os parabénsporum ilho lindo e saudável como este, está para aí em sermões e arecomendar dietas! Deixe-se disso, e peça mas é que me tragam umacanja,quejápassadaumaemeiadatarde,enãocomonadadesdeontem.

Omédicoabanouacabeça,preocupado:

- Agora, por favor, muito cuidado, não pode levantar-se com a pressacomquese levantoudosoutros, tivemosdecortarmuitopara queobebépassasse,umahemorragiaseriafatal.

- O senhor aborrece asmães todas com esta conversa, ou guarda-a sóparaarainha?Deixe-seládessesdetalhesdocortaedeixadecortar, quenãoqueroouviressascoisas...

Opobrehomemcorouatéàraizdoscabelos.Assistiraaosnascimentosde todos os príncipes, e admirava a coragem desta mulher que não sequeixava nunca, mesmo quando os nascimentos eramlongos e

complicados, mas icava sempre atrapalhado quando lhe falava destamaneira,sabendoperfeitamentequenãolhepodiaresponderàletra.

Fezumavénia,earainhanemoviusair, tãoembevecidaestava com oseubebé,maisumrapaz,comogostava.

Quando Fernando entrou e a abraçou, deixou-se aconchegar por ele.Tivera tantomedo. SóLurdes sabia comonasúltimasnoites rezara à suaSenhora da Glória, como pedira a intercessão da suamãe do Céu para apoupar da morte. E agora, que o rei a beijava com tanta ternura, com aternura que lhe dedicava sempre, sentia o coração rebentar de comoção.Porque aquilo que esquecera, aquilo que tentava sempre varrer da suamemória,eraqueamãenãomorreradeparto, amãeabortarao ilhoquetraziadentrodesi,porqueoseupai,oseu própriopai,aatiraraaochão,amagoaracomosseusgestosimpensados,asuafriezaeoseuegoísmo.

Espantado,Fernandopercebeuqueamulherchorava,eeratãoraroverMaria chorar, um choro silencioso e magoado, que se transformou aospoucosemsoluçosabertos,comoosdeumacriançaperdidaesemconsolo.

-Estábem,minhaquerida,querquechameomédico?

Maria encostou a cara ao seu ombro e deixou-se embalar, o bebé nosbraçosapertados.Maiscalma,murmurou:

-Nãoprecisodemaisninguém,sóprecisodesi.

Nessanoite,Fernando,sentadocomosseusfilhosmaisvelhosàmesadejantar,anunciou:

- O mano vai chamar-se Augusto, como o meu irmão, que será opadrinho

-EatiaClem,amadrinha?-perguntouLuís,eopaisorriu-lhe:

- Tem sorte, não tem? -A tia Clemera amais popular de todas as tias,sempre pronta a deixar fazer tudo o que queriam, e a enchê-los depresenteseguloseimas.

MasPedro icoucomumartãosérioque,quandoosoutrosjáse tinham

idodeitar,Fernandopuxou-oparajuntodalareiraacesae, pondo-lheumamãonoombro,perguntou-lheoquesepassava.

Pedro,deolhosnochão,dissebaixo:

-Semprequenasceumnovobebé,lembro-mequeseráumdos manosaocuparo trono,enãoeu.Sonhocom issomuitasvezes,eésempreo Joãoqueéaclamado.

Fernandobaixou-seaoníveldosolhosdeste seu ilho,queaos 10 anoslhelembravatantoasuaprópriamelancoliaquandocriança,e,disfarçandoaemoção,repreendeu-o:

-Filho, semprequeamãe temmaisumbebé, todos tememospelavidadela,masamãesóvaimorrerquandoforvelhinha,daquiamuitos,muitosanos, e aí o senhor D. Pedro já será um homem maduro, sem medo denada... Quanto ao resto, isso é conversa de gente inculta,que repetiahistóriasjulgandoqueomeninoerapequeninodemaisparaasperceber.

-ParaperceberqueoprimogénitodosBragançamorresempre...

-Omitodequeoprimogénitomorre sempre!Masomenino,que é tãoesperto, não se lembra do seu avô Pedro? Vê como não passa de umdisparate?Ealémdisso...

-Alémdisso,secalharosBragançajánãoreinamemPortugalpor essaaltura.

Fernando atirou mais um cavaco de lenha para dentro da fogueira,procurandoganhartempo.PobrePedro,sempretãosérioecompenetrado,àsvezestãocheiodesi,masoutrastãoaflitoeangustiado.Averdadeéquenão podia deixar de viver agitado por dentro comtodas as guerras,revoluções, manchetes de jornais, comentários ouvidos, não podia deixarde ser contagiado pela insegurança em quetodos viviam. A inal, o barcocom a bandeira britânica continuavaao largo, semprepronto a acolher abordoumafamíliarealfugidademaisumarevolução...

-Osportuguesesamamos seus reis, amama suamãeeo seupríncipereal-disse,numavoz irme.-Tudoorestosãocrisespelas quaisospaísespassam, nesta evolução tão rápida que nos vai tornarem breve numa

Europamaisjusta,maiscivilizada,maisdesenvolvida,commenospobreza.

Depois,dando-lheumbeijonatesta,mandou-oparaacama:

-Estáproibidodeterpesadelostãodisparatados,ouviu,meufilho?

Maria confessou-me que queria convidar a mim e a Albert parapadrinhos do seu pequenino Augusto,mas não o pode fazer porque nãosomos católicos. Fiquei cheia de pena, e com uni bocadinho deinveja deClemeAugusto,masparamimestepríncipeseráporissosempreespecial.A inal, a intenção é que conta, e a rainha diz-me queera o sinal de queFernando e ela estão muito gratos por termos feito tudo para os ajudar.Maria conta-mequeomeua ilhado, porque éassimqueo vou chamar, émuito grande, de olhos enormes, de uniazul muito escuro, e de cabelomuito,muitoloiro.Dizquenuncachora equecresceaolhosvistos.Julgueiquefossemuitopesadoporqueamãeengordoutantoduranteagravidez,masenvia-measmedidasdacriança,ea inalnãoéassimtãomaiordoqueosmeus.

Maria escreve, comaquela energia que tanto lhe invejo, a dizer que«ograndeacontecimento»sedeumaiscedodoqueesperava,mas quesofreuapenas duas horas. Garante que está completamente restabelecida, quedoisdiasdepoisjápasseavanojardim,e,comaqueleseutomdemestraoudeirmãmaisvelha(commaisummêsdeidade!),prega:«Desejodetodoomeu coração que sigas o meu bom exemplo em tudo e que te possasrestabelecertãodepressaquantoeu.»Francamente,nuncaseisedizestascoisassemperceberquememagoa,ouseasusaparameenvergonhar,jáquesabequesofrosempreumarecuperaçãotãolentaemelancólica.Faladotempobonitoedeautênticaprimavera,comos lilases loridoscomoseestivesse em maio, e confessoque ico com inveja - tenho a certezaabsoluta, e oAlbert diz que osestudos cientí icos apontamnesse sentido,queohtunordeumpovoécondicionadopeloclima.

Maria agradece os retratos que lhemandei das nossas crianças, e comisso deu-me tuna ideia: logo que o pintor esteja disponível vouenviá-loparaLisboa,paraquepinteospríncipesportugueses.Gostava deterdeles

todos uns retratos bem feitos, porque só tenhominiaturas dePedro e deLuís.

CastelodeWindsor,15denovembrode1847

PaláciodasNecessidades,20dedezembrode1847

arfaacordoucomumbarulhoestranhoquenãoconseguiadescrever.Nemtevetempodepensarnoqueeraaqueleestranhotremor,porqueFernandoentroupeloseuquartoadentro,decamisadenoiteedescalço,ordenando-lhe:

-Foi um tremor de terra, é provável que se sintam as réplicas. Ascrianças!Éprecisotirá-lasládebaixo,vamosparaojardim.

As vozes dos criados e dos moradores das travessas mais próximasouviam-senarua:

-Nempensenisso.Nãopodemosandardeumladoparaooutrodopaço,éprecisoaproveitarospontosfortesdaestrutura, iqueaí juntoda janela,quevoulábaixosaberdospequenos.

-Eraoquefaltava,vouconsigo.

Masnão tiveram tempode sairdaporta,porquePedro,Luís e João, decobertores por cima dos ombros, apareceram na soleira da porta,assustados.

Fernandozangou-se:

-Oqueéquefazemaqui?Quantasvezesensaiámosestasituação?Agoraicam com a mãe, que vou buscar os manos. A mãe não sossegase nãoconfirmarqueestãobem.

Mas nem chegou a atravessar o corredor, porque o camareiro-morescoltava as amas comMaria Ana em lágrimas e Tonica divertida comopasseio noturno, Fernando estremunhado ao colo de uma aia, e o bebéAugustonaalcofa,adormecidocomoumanjo.

-Foisóumsusto,trêstremorespequenos...

Mariaabriraaportadasala,emandaraquetodossesentassemali.

-Seráseguroacenderalareira?Porquesenãomorrermosdotremordeterramorremosdefrio-perguntou,mantendoaserenidade.

Fernando hesitou, mas acabou por ordenar a um dos criados queacendesseofogão,mandandooutroàcozinha:

-Seaindaláestiveralguém,pedecháeleitequenteparaosmeninos.

Pedroestavaencostadoaoparapeitodajanela,eexclamou:

-Mãe,vemaíoSaldanha.

Minutosdepoisomarechalentrounasala,sorrindoparatodos:

-Quealegriavera famíliareunida-brincou. -Podemestarsossegados,jápassou.

Mariadeuumagargalhada:

-Faltavacáosenhormarechalparanoslerasina!

Fernandotevevontadedese juntaraoriso.Paraobemeparao mal,afranquezadeMariaeranotável.

Saldanhariutambém:

- É a vantagem de já ter vivido muito, Senhora. Mas se preferir podejuntar-seàscentenasdelisboetasquejáacampamnasruas,emorrercomumapneumonia.

Pedro, que se mantinha encostado às cortinas, corou. Não gostava daforma como Saldanha falava com a mãe, mas a rainha não pareciaimportar-se.

- Pre iro morrer aqui, embora, com a inabilidade que este criado tempara acender lareiras, se esteja aqui dentro com tanto frio como na rua.Fernando,jápodemosmandaratrupetodaparaacama?

Umporumforambeijadoseabençoadospelamãe,easamas levaram-

nosparabaixo,antesqueseconstipassem.

Mariasuspirou:

-Preparem-se,queamanhãosjornaisvãodizerquetudoistoé obradoreiparamatararainhaeficarcomopoder,comoconstaaípelasvielas.

Saldanhavoltouarir,masFernandomanteve-sesério:

-Nãomedigaqueoreiacreditanestaconversa iadaqueparaaí anda?-perguntouarainha,intrigada.

Fernando,subitamente,deuumagargalhada.

- Que a senhora me exaspera às vezes é verdade, mas não tanto. Equantoaopoder,minhaquerida,deixo-lho todoparasi commuitogosto -disse, sorrindo-lhe, e ela sentiu-se a mulher mais feliz da Terra. Queestranhoefeitotinhasobresiestehomemtãodiferentedetodos osoutros,pensou.

Nosdiasseguintesaterravoltouatremer,masnuncadeformatãoforte,eafamíliarealmanteve-senopaço.NavésperadeNatal,enquantoFernandoacabavadeenfeitaraárvore,Mariasentou-seaescreveraVitória:

Minhaqueridaprima,

ApenasduaspalavrasparateapresentarosmeusvotosdeumBomAnoNovocheiodecoisasboasparatieparatodaafamília.AgradeçomuitooslindosvestidoecasacoparaopequeninoAugusto,quejáforamusadosnodiadobatizado,emqueosenhorAugustosecomportoumuitobem.Sabequeméquerepresentouopadrinho?OsenhorD.Pedro,muitoimportante,comoirmãoaocolo,lárespondeuatodasasperguntasqueocardeal-patriarcalhefez.

EstamosmuitofelizescomaaberturadasCortesemuitotranquiloscomoresultadodaseleições,queforamasmaislivresquealgumaveztivemosnopaís,pormuitoquehajaquemdigaocontrário.Oanode47acabacomseteabanõesdeterraemquatrodias,algunsfortes,massóummuitoforte,easpessoasassustaram-setantoqueacamparammais

detrêsdias,masnósficámosporaquieesperoqueistoporagoratenhaacabado.

Quantoaoresto,todasassaúdesdegrandesepequenosestãoexcelentes,eascriançasnafelicidadedaantecipaçãodaárvoredeNatal,coisaqueeuprópriaaprendiaamardesdequeadotámosestecostumealemãotãobonitoparaascrianças.Adeus,minhaqueridaVitória,pedem-meacarta.DesejaaoAlbertBomAnoNovopormim.

Maria

Encho os pulmões de ar, e expiro frente a este caderno, o centésimocadernoqueescrevoesteano.Muitodoqueguardeiparamemória futuraésobrePortugal,nesteanotãoinacreditavelmentedi ícilpara aquelepaís.QuandoaConvençãodeGramidofoi inalmenteassinada,convenci-niequevinhamaítemposdepazeprogresso,masdepois fuivendocomoarainhaconseguia protelar as eleições livres, e em novembro entendi que nãoseriam livres coisa nenhtuna. Os resultadosmaioritariamente a favor deCostaCabralnãomedeixaramdúvidas dequetinhamsidounia fraude,edesespereidevezquandoviquenomeavamSaldanhaparache iaronovogoverno. Saldanha, meuDeus, depois da irresponsabilidade quedemonstrou durante a guerra civil, depois de Maria e Fernando teremreconhecido que fazia chantagem, que era um cata-vento perigoso. CostaCabral, inteligente comoé, e todos reconhecemos que tem todas asqualidades de um políticohabilidoso, deixa que o marechal seja a caravisível deste ministério,alimentando-lhe a vaidade, mas icando com ocontrolodoscordelinhos.

Onossoembaixadorcontaqueoreitemconversadocomeleequeestáconscientedequeoscabralistassãoperigososeoodeiam.Aliás,nem temformadenão saber,porque falamde formadesbragada contraele, comose Fernando fosse uni perigoso revolucionário, e já nem se esforçam poresconder nada. Diz SeN-rnour que alguns dos líderes conservadoresinsultaram o rei no Passeio Público, virando-lhe as costas, e repetindo ogesto, não fosse ele não ter dado por ele. Quanto aos rtunores de que

estaria disposto amatar a rainha para icar com a regência, ninguém osparecelevarasério,mascirculam.PobreFernando.

CastelodeWindsor,30dedezembrode1847

PaláciodasNecessidades,12demarçode1848

redrofoioprimeiroavê-los.AndavaaindamaissorumbáticodesdequeháumassemanasaRepúblicaforaproclamadaemFrança,eosOrleãeshaviamsidoobrigadosafugir,porissoquandoviuatiaXica,otioJoinvilleeosprimosasaíremdeumacarruagemnopátiodopaço,julgouqueestavaaalucinar.

Xica acenou-lhe, entusiasmada, aquela tia brasileira tãoparecida com amãe, na ausência de protocolos rígidos, quase disparatada, pensouenquantocorriaparaelaesedeixavaabraçar.

- Tia, tia, está bem? Aquelas cabeças de abóbora izeram-lhe mal? -perguntou,enquantoapertavaamãocomforçaaotioJoinville.

- Felizmente, conseguimos fugir sem que nos acontecesse nada,masdeixámostudoparatrás-disseJoinville,enquantoiamsubindoasescadas.

Maria, ao ouvir a voz cantada da irmã, correu pelo corredor fora, nãoquerendoacreditar:

-EmLisboa?FugiramparaLisboa?Masquegrandeideia,mana- disse,abraçandoairmãcomentusiasmo.

Xicariu:

- Só estamos de passagem, mas imaginei como deviam estarpreocupadoseinsisticomoJoinvillequeeraprecisoqueobarcoaportasseaqui.Jávisteomundo,entãonóspassamosavidaamudardecanto...

- Mas no outro canto tínhamos um tempo melhor do que este -disseMaria,arir,apontandoparaarua,ondechoviaacântaroseo ventoquasederrubavaasárvores.

- Ficam até quando? - perguntou, enquanto os criados punhammais

lugaresàmesa,ondeoalmoçoiamesmoserservido.

-Atédaquiatrêshoras,seéquecomestetemporalconseguimossairdabarra. Jáparaentrarabarra foiumsarilho, as criançasaté vomitaram. Epor cá, está tudo calmo? A loucura em França não contagiou os vossosrevolucionários?

Fernando deu-lhe o braço. Gostava muito desta sua cunhada, tãogenuína e bonita.Maria olhou-os juntos e sentiuumapontadade ciúmes.Francisca era tãomais bonita do que ela, e, apesar das duas gravidezes,estava magra e alta, tinha a igura do pai. Encolheu os ombros, ela queesperasseporteroito ilhoselogohaviadever.Esatisfeita, entrouparaasala,sentando-seàmesa,paracomerasuarefeiçãofavorita.

Nasceu aminha ilha Luísa, e ao sexto parto tudo continua igualmenteterrível.Aiqueegoístassãooshomens,sãoelesacausadanossadesgraça,se soubessemaquilo pelo que as suas pobres escravas passam para lhesdar ilhos. Tanto sofrimento, tanta humilhação dos sentimentos delicadosdeumapobremulher,comosmédicosaobservarem-na eatocarem-lhe,oqueéquase tãomauoupiordoqueasdoresemsi.Quandome falamnoorgulho de dar vida a uma alma imortal, apetece-me assobiar para o ar,pois pois, não me venham com essa conversa,porque no momento doparto imagino-me muito mais tuna vaca outuna cadela! O Albert icachocadoquando faloassim,masdigo-lhequemedeveadoraçãoeterna, eeleri,masnãoestouabrincar.

En im, sinto-me melhor depois deste desabafo. A minha queridaVickyicou tão contentede termais tuna irmãpequenina,queatéme espantei,julgando que por esta hora estivesse mais do que fartade crianças nanursery.Aos8anosémuitomaismaternaldoqueeu,emborahojeemdiaeuosejamuitomaisdoqueeraquandoaminhaprimeirafilhanasceu.

AgorarezoparaqueoAltíssimomepoupeatunanovagravidez, eparaque a «praga» de uma família numerosa que o tio Leopoldo eMaria medesejaramsedesfaça.

Finalmente, ontem recebi de novo tuna carta da rainha de Portugal, ereconheçoque já tinhasaudades.Emboravádizendoqueme desejou onirapaz em lugar de tuna rapariga, não sei porque acha que quatroraparigas para dois rapazes é tuna conta fraca, elogia-me por terrecuperado tão depressa, melhor do que ela, chega a dizer, o quefrancamentemedeixapreocupada-tenhoacertezadequemesmo quesesintadoente, não conta aninguém, enãomeparecedecidida adeixar deengravidar,apesardetodososriscosqueosmédicospreveem.QueDeusaabençoe. Quanto a política, lá conta que o país está perfeitamentesossegado,quenãosevoltaramaversintomasdeagitação,egarante,comaquele seu espírito prático, que «o povo está pací icoe acho que não selevanta mais de novo, mas falta dinheiro para lhe pagar, e como é tunacoisaquenãotemosmuitoporaqui, icaumgrandemal-estar:poroutro,ébom,porqueassimémaisdifícilhavertumultos».

Volteiaver, inalmente,a«manaXica»,nãoaviadesdequeémãe,e osilhos sãomuito educados e simpáticos. E elamantémaquela alegriaque,cadadiameconvençomais,équalidadequevemdostrópicos.

Quando recebemos notícia da revolução em França, e que os reisestavamdesesperadosnacostadaNormandianaesperançadeembarcarclandestinamente, enviámos-lhes uru barco, e foi graças à coragem docapitãoqueosconseguimostrazer.Nadocaestavaapolícia,que percebeu,já tarde demais, que tinha deixado escapar os reis Luís Filipe e Amélia,maschegarambemaNewhaven,edelávieramde comboioatéLondres.0tio Leopoldo cedeu-lhes Claremont, e a rainha,apesar da idade, pareceestaraadaptar-sebem, temuma forçaenorme,comosempre teve,masorei está destroçado, e Albert tem sido visita frequente. Mal esteja maisfortevouconvidarosmaisnovosparavirembrincarcomosnossos.

Os últimos anos têm sido turbulentos na Europa e já se esperava umarevolução assim. Comentei o caso comMaria, na esperançade que ela seassuste coma lição,masela respondeu-meadizerque souinjusta, queopovo francês foi terrivelmente ingrato, e ainda me dá uni raspanete,lembrando-me: «Mesmo quando os reis querem fazer o que acham quedeveserfeito,muitasvezesnãolhesdeixamfazê-lo.»Edepois,acusandootoque,diz:«Tendosempresidocitadocomouni modeloderei,deviasaberbemo que fazia,mas,minha querida Vitória, tuna vez que se émalvisto,tem-setodososdefeitos.»Coitada,sentemaisdoqueninguéma injustiça

dojuízoalheio.Fiqueicontentecomanotíciadequeomeua ilhadinhoestáenorme. Tenho de lhe mandarum presente, para não se esquecer damadrinha.

CastelodeWindsor,28demarçode1848

PaláciodasNecessidades,20deabrilde1848

criadoanunciouqueDomingosPalmelapediaparaqueorecebesse.Esperava-o.Erafrequentecruzar-secomele,convidavasempreassuasfilhasparaasfestasdosinfantes,masmentiriaasimesmasenãoadmitissequefugiaaolhá-lodiretamenteouaconversarcomele.Nemum,nemoutro,podiamserindiferentesaoquesepassaracomopai.

Massabiaporqueavisitava,jásabia.

Levantou-se da cadeira e atravessou a sala para o receber, a luz desteabril tão quente que parecia junho, o cheiro das roseiras e do jasmim aentrarpelajanelaaberta.

Viu-o entrar, alto e bonito, mas nunca tão bonito como Alexandre, osolhoscheiosde lágrimas,eos seus, tão raramentemolhados, comoveram-setambém.

Deixouquelhebeijasseamão,mandou-osentareperguntou:

-Foiumamorteserena?

Domingos,apanhadodesurpresa,comoéquearainhapodia saber,nãopassavamaisdeumahora, foi incapazde encontrar a voz, limitando-se aacenarquesimcomacabeça.

Marialevantou-see,chegando-seaele,inclinou-seebeijou-lheocabelo,afagando-ocomosefosseumdosseusmeninos.

- Foi a melhor das mães dos seus quinze ilhos, nos bons e nosmausmomentos.Sabequemesentiaumbocadinhofilhatambém-murmurou.

«Uma má ilha», teve vontade de dizer, mas não foi capaz. Nunca avisitaranestadoença,nãolhemandaraumcartão,nemumas lores doseujardim,foraincapazdeultrapassarabarreiradasoberba,ou davergonha,

masmandava sempre alguém discretamente perguntar, estava sempre apar de tudo, de como acompanhava os mais pobres,das suas obras decaridade,daFécomquesuportavaamortedostrês ilhos,edaresignaçãocomquesuportaraesteslongosmesesdesofrimento,daidaparaParisembuscadeummédicoquelhepudessesalvarospulmões,daviagemparaaMadeira, numa última tentativa,das idas e vindas de D. Pedro, queacompanhava a mulher com quecasara há trinta e oito anos e de quemtiveraquinzefilhos.

Domingos, estranhamente, compreendia. Levantando-se, beijou-lhe amãoesaiu.Maria icouavê-lo ir, e teveumavontade imensade estar noRio de janeiro, de subir à sua Senhora da Glória e deixar aos pés daVirgem um ramo de lores coloridas, como só havia naquela sua terra,pedindo-lhequedissesseaosPalmelaoqueelaeraincapazdedizer.

Soube hoje que a duquesa de Palmela pediu paramorrer no seu país,emsuacasa,rodeadados ilhosedosnetos.PobreD.Eugénia,e pobre D.Pedro,que decidiu que esta tragédia o obriga a voltar para Portugal, pormuitoquemepareçaquelhefaltatodaavontadedeofazer.Escreveu-mea agradecer os meus pêsames, e conta-me queretomou o seu lugar naCâmaradosPares,masdiz-mequenuncamais voltaráapôrocoraçãonapolítica, e percebe-se uma grande amargura, tuna grande desilusão.Dizem-me que a rainha não lhe mandou umcartão, nem lhe disse nada.Recuso-me a acreditar, até porque na sua última carta refere-se àmorteda duquesa, e lamenta-a profundamente.Estranhos os caminhos dasrelações humanas, mas o que Maria tantasvezes parece não perceber équeumlugarcomoonossonãopermitecaprichos,nemestadosdealma,eoqueécorretoedeveserfeitotemdeserfeito.Casosejaverdade,éumaindignidade, e o duque tem razãopara se considerar insultado, masninguémmelhor do que ele para lhodizerpessoalmente.Voumanter-meforadestaguerra, jáquesou obrigadaaestarenvolvidaemtantasoutras.Por aqui os tempos estãoagitados também, com manifestações dedesempregadoseoperários,in lamadospelapublicaçãodoManifesto.OtioLeopoldo diz que Karl Marx é uni homem perigoso, e que os seusseguidores ainda velo virar o inundo elo avesso. De facto, as revoltas do

continente, solrrelrrrlo asreais recentes emFrança, ameaçamchegar atécá, ruas acrerlilo (pieo nosso exemplo será su icientemente forte pararesistireinspiraraFturoga.

Castelode.Wirldsor,29deabrilde1848

PaçoRealdeSintra,28dejulhode1848

finalmenteumverãoemquenosdeixamempaz,quebemprecisamosdedescansaracabeça,grandesepequenos-comentouMaria,enquantoiatrocandoasmoldurasdelugarnaSalaMouraondegostavadepassaratardenestesdiasquentes,eesteestavaaserumdaquelesverõesdecalorafricanoquetantodetestava.Fernandoabriuacaranumsorriso:

- Nem tenho palavras para lhe dizer como gosto de a ver assim,descansada, sem a agitação de Lisboa, de como gosto de nos ver a todosaqui sossegados, por uma vez, desde há anos, sem cartas a chegar e apartir, decisões a tomar, correligionários de uns e de outros a pediremparaserrecebidos.Esteano,nemoSaldanhameapetecever...

Mariadeuumagargalhada:

-Masvai terdeover,porqueeleestáaorganizarmaisumpiqueniqueláemcimanaquintaedizquelhequermostrarumsistemadedesinfeçãodaáguaquemandouvirdaAlemanhaequeevitamuitasdasdoençasdebarrigaquetodostemossemprequandonosmudamosparacá.

-AFonteda Sabuga, parao senhorduque, transformou-senuma fontesagrada, tarda nada põe um imposto a quem lá for encher a bilha - riuFernando.-Comosenãochegasseagabaroliceemtudo, agoratemosdeoouvirpregarsobreosbene íciosdahomeopatia,de quesetornoufanático.0pobredoKesslerfogedelesemprequepode...

Mariadesviouoassunto.FalardeSaldanhaera falardeCosta Cabral, edo «seu» governo, e se não atalhasse a conversa em breveestariam adiscutir.

-jáviuestalitogra iadoBertie,vestidodemarinheiro?OLuís icoucheiode inveja, já escrevi a Vitória a dizer-lhe que Lipipi continua apaixonadopelomar,eela insisteemquemandemososmais velhospassaroverãoaInglaterra.Masacho-osaindamuitonovos...

Fernandolevantou-separaaajudaramudarumquadromais pesado,epegouna litogra iadamanaXica ede Joinville, que aprimatambém lhestinhamandado.

-É mesmo bonita esta sua irmã - comentou, e Maria atalhourapidamente:-Éaúnicamulherqueestáautorizadoaelogiar,eéporqueestálonge!

Fernandopassou-lheumbraçopelacinturaebeijou-a.

-AgorapediaVitóriaquememandeumretratode IsabeldeEspanha,porque quero fazer aqui um cantinho - disse Maria, apontando umaparedeaindavazia-comastrêsrainhasdaEuropa.

Fernandoabriuaboca,incrédulo,eMariaripostou,rápida:

- Se me disser que é vaidade, respondo-lhe que é, sim senhor, masvaidademerecida.Éummomentohistórico,comodiriaoseu ilhoPedro -acrescentou,eomaridolevantouosolhosaocéu,comoquemdizquenemmãe,nemfilho,tinhamcura.

Ignorando-o, a rainha tentou amuar,masmais uma vez não conseguiuficarcaladamaisdoqueunsminutos.Entusiasmada,contou-lhe:

- Sabe que a Isabel está de esperanças? Um herdeiro para o tronoespanholvairesolvertudo,acabamdevezasintrigasparalheroubaremotronoedarem-noaocunhadofrancês.

-Asintrigasnãoacabamnunca,minhaquerida,porquesenão,comsetefilhos,jánostinhamdeixadoempaz.

Arainhasorriu-lhe:

-NocasodeIsabel,atéredobram.Quemseráopai?

Fernandoencolheuosombros,ecomum«vocêsmulheres»despediu-se,beijando-lheamão.

Mariapuxou-oparajuntodesi,emurmurouaoouvido:

-Eporfalaremfilhos...

Albertchegouháunsdiasàminhasaladetrabalhocomanotíciadeumjornal, mn artigo sobre uma nova forma de anestesia, descobertapelomédico John Snow. Li-a com avidez. Um homem que se preocupa emretirarasdoresdepartoaumamulheréumhomemsensível, inteligente,que admiro mesmo sem saber muito sobre ele. Snow já anestesiou comclorofórmio 77 mulheres durante o trabalho de parto. Não aplica aanestesia imediatamente, esperando pelas dores mais intensas, e tem ocuidado de não adormecer completamente a mulher, para que ela possafazerforçaeempurrarparaforaobebé(queideia tristeteveoCriadoraoimaginar o nascimento assim!). 0 artigo diz quetem tido uni enormesucesso, sem efeitos secundários quer na mulher, quer no bebé, e atécomenta que tudo se passa mais rapidamente assim- pudera, semsofrimentoqualquer tuna colaboramelhor.OAlbert comoveu-me, porqueestava tão entusiasmado como eu, talvez a inalentenda melhor do quepensoosofrimentopeloqualumamulherpassa(também,senãoentende,nãoéporfaltademeouvirdizê-lo!),edizquevaifalarcomanossaequipamédica, para que se encontrem com este anestesista para saberemmaissobre este assunto. Mas uma coisaé certa: vou tentar adiar tuna novagravidez omais tempo possível,pormim até para sempre, deixando quesejam outras felizardas a ter a oportunidade de passar por tunaexperiênciamenosdolorosa.

Vou começar a catequizar aMaria, e, se tiver provas de que é seguro,sereiaprimeiraaenviar-lheoclorofórmioetodasasindicações.0Kessler,queoAlbertconhecebem,podemesmoviraLondresaprendera técnica.Suspeito, no entanto, que a rainha de Portugal me vai chamartunamariquinhas pé de salsa, e garantir que não precisa de anestesias paranada. Ou, mais ainda, que as mulheres devem dar à luz comdor, comoprega amoral católica. Não compro essa história, porque mmca deve terfeito parte dos planos de uni Deus misericordioso que asmulherespassassemportudoisto.

CastelodeBalmoral,julhode1848

PaláciodasNecessidades,10dejaneirode1849

condedeTomarentrounasaladetrabalhodarainhacomosemblantepesado.BeijouamãoaMaria,numgestoautomático,enemsequerfezumdosseushabituaiscomentáriossedutores.

- Já vi que nem repara em que cadeira se senta - comentou a rainha,desconsolada.

-Éoquefazapreocupação-respondeuoministro,semtentar emendara mão. Maria olhou-o angustiada, pronta a fazer suas asdores do seuministro. Já lera os jornais damanhã, e sabia que a oposição abrira fogocontraoministro,acusando-odemeteraobolso dinheirodoEstado,deseaproveitardasuaposiçãoparacomprar terrenosecasas,comaagravantede que agora partiamde umdos seusirmãos, que, depois dos bene íciosrecebidos através dele, se tornara no seu mais visceral inimigo. FicarafuriosacomFernando,quandooreipousaraojornalelheperguntaraqualeraatraduçãoparaportuguêsdeumprovérbioalemãodequequandoascomadres se zangam,tudo se sabe.Nemo digni icara comuma resposta.AgoraconsolavaocondedeTomar.

-Tamanha ingratidão faz mal à alma, até um título tem graças a si! E,além demais, é um crápula ao associar-se assim àqueles que o queremderrotar,ignore-o,queéoquefaçoatodaaestagentesemprincípios.

CostaCabralsentia-setraído,masagoraqueria,acimadetudo, minoraros efeitos catastró icos desta passagem para o inimigo de um dos seus.Mas,decididamente,nãolheinteressavaentraremdetalhes comarainha;havia coisas que era melhor que ela não soubesse. Para preparar avingança, bastava-lhe perceber que as notícias dos jornaisnão haviamabaladoasuaconfiançanele.

-Saldanhavaicontrolarosdanos,temjeitoparaisso,gostade almoçarejantar com os diretores dos jornais, e está decidido a tirar do governo

todososquesemostremalinhadoscomestasacusaçõesesubstituí-losporgentecommaiscabeça.

Mariaconcordou,entusiasmada:

-Játemosnomes?

Costa Cabral pareceu reconfortado. Com o apoio da rainha seria maisfácil levar a cabo a limpeza a que se propunha, tornar aindamaisCabralum ministério já tão cabralista. À saída inclinou-se sobre a mão da suasoberana,ejurou-lhefidelidadeeterna.

Maria acabou a manhã de trabalho com o coração mais leve. Sentiu amão correr para o seu ventre e acarinhá-lo, como quem observa de foraumgestoconhecido,quaseumritual.Estavagrávidadenovo.Nãodesejaraeste bebé como desejara os outros, pela primeira vez na vida entendia oqueVitóriasentiaquandopercebiaque iaserdenovomãe,umdesânimopordentro,umperguntarporquêamim, porquêagora,masnãochegajá,comoseocorpoeaalmarecusassementregartodaasuaenergiaa fazercrescer uma nova vida. A ligiam-na estes pensamentos indignos,confessara-os de passagem apenas àprima, dizendo-lhe que dispensavabemeste aumentona família,maspara logoatalharqueoque importavaera que viesse bem, e que comorecebera este, receberia todos o que oAltíssimolhedesejasseenviar.

Levantou-secomcuidado,astonturaseramagoramaisfrequentes, e foiatéàjanelaparaaabrir.Estavaumdialindo,verãoemjaneiro, asárvoresaabanarem lá foraaumventoquente,oqueseriadas colheitas este anocom este calor fora de tempo. Puxou uma cadeira, e dobrou os braçossobre o parapeito, como via fazer asmulheres de Lisboa, e olhou para orio. O seu pequenino Lipipi, agora com11 anos, ia embarcar em brevenuma viagem até à Madeira, a primeira viagem, a primeira vez quepassava uma noite que fosse fora de casa.Andava entusiasmadíssimo, aver mapas com o Fernando, a preparar a «mala» com livros e bússolas,mas, estranhamente, quem estavaem baixo era Pedro, que reagia comenorme tristeza à perspetiva daseparação daquele que era na práticaquaseumgémeo.

«Tem mais é que se habituar», murmurou para si mesma, irritada,impedindo-sedemergulharna angústiaqueumbarco apartir, deixando

quemseamaemterra,semprelheprovocava.Malditasmemórias.

Omédicosaiudoquartodascriançaspreocupado.

-Odiagnósticodaamaestavacorreto.AprincesaD.MariaAna estácomrubéola,jápediqueaisolassemnumoutroquarto.

Mariatapouaboca,assustada:

-Masvaificarbem,nãovai,senhordoutor?

-Claroquesim,masoproblemaquemepreocupanãoéodela, senhoraD.Maria,éoseueodorei.Lembro-mequenemum,nem outrojátiveram,pelomenosquantosesaiba,adoença,enoestadointeressanteemqueseencontra não pode arriscar-se a apanhá-la. Nãosabemos muito, masestamosjácertosdequearubéolafazmalàscriançasaindanoventredamãe.

Marialevouamãoàbarrigajádeseismeses,preocupada.

-Quandoosmeusfilhosestãodoentes,ficosemprepertodeles.

Omédicovoltouaacenarquenãocomacabeça.

-Aliás,deviaevitarestarcomqualquerumadascrianças,porquetodaselaspodemestarcontagiadas.

Mariaacenouquenãovigorosamente:

-Nãoexagere,senhordoutor,quinzediassemvernenhumdeles? JámecustadeixaraMariaàsamas,apobrecriançavaiacharquefugimostodoseadeixámosparaaídesterrada...

- Escrevemos-lhe cartas, e mandamos-lhe presentes - disse Fernando,quechegaraatempodeapanharofimdaconversa.

Maria sentiu uma súbita irritação pelo bebé que tinha dentro de si,eroeuasunhas,culpada.

Omédicoconsolou-a:

- Este ano a rubéola, felizmente, é suave, e benigna, é consequênciadestetempoquente,tãoestranho,há66diasseguidosqueocéuestáazule o Sol escaldante. Mal venha a chuva, passa. Mas é precisocuidado,porqueatacanovosevelhos,emboranãotenhaprovocadomortes...

Mariaolhou-o,horrorizada:

-Mortes? Ó doutor, por favor, bata aí três vezes na porta demadeira.Nãoqueremosmortes,nemaqui,nemnacidade.

Fernandopassou-lheamãopelacintura:

- Vamos para cima, minha querida, que a Maria Ana ica bem,maisdedicadadoqueaamadelanãohá.

-Nãoacredito,Fernando,estesvestidosdaVitóriadão-nosazar-disseMaria,meiaarir,meiaachorar,enquantodesembrulhavaduastúnicasbrancasqueaprimamandaradeLondresparaFernandoeAugusto,quehádiassetinhamjuntadoàsirmãsmaisvelhasnocorredordosdoentes.Atrupetodaestavacomrubéola,earainhaacadadiamaisangustiada,porquecontinuavaproibidadeosirver.

- Se fosse para apanhar já tinha apanhado - protestara, mas o médicoforaabsolutamente irme,ecomopodiapôroseubebéemrisco?Estiverapara lhedizerqueodeverdeumamãeeraparaosque estavamcá fora,mas envergonhara-se e calara-se. Fernando, sabendo como lhe era di ícilobedecer,vigiava-acautelosamente:

-Selhetiroosolhosdecima,estáláembaixodoisminutosdepois-dizia.

Contravontade,Mariaatépediraàmadrastaparavirparaopaço, eelaeasuameia-irmãAmélia,traziam-lhenotíciasdospequeninos.

Com tudo isto, decidira que Luís a inal não embarcaria. «E se pega adoença a todos os outrosmarinheiros», dissera a Fernando, que acabaraporconcordar.«Temtempo, ilho,temtempoparairpara longedafamília,agora precisamos de si aqui», dissera-lhe ao ver como icara triste comaaventura roubada. Pedro estendera-lhe a espingarda com o monogramaqueestavaa limparedissera-lhe:«Jáque ica,mano,podemos iràcaça.»Maria ainda se comovia quando pensavanisso. Os ilhos unidos, era tudo

quantoqueria.

Já passaram dois meses mas ainda não recuperei da morte do meuquerido lorcl Melbourne, se é que alguma vez vou ser exatamente amesma, porque sinto que morre sempre um bocadinho de nós quandodesaparecealguémdequemgostamosedependemostanto.Sentia-ocadavezmaistristeedeprimido,masacaboupormorrerdeumatrombose.Nãoquero escrever nemmais tuna página sobre esse assunto que já encheutantas domeu diário. Amorte contrapõe-se à vida, eMariaestá de novográvida, e pelaprimeira veznão anunciouo acontecimento coma alegriade sempre, e eu ainda não sei o su iciente sobre o clorofórmio para lhevaler.Maria entra na sua nona gravidez, aos 29 anos, nove longosmesesem que o corpo se transforma, em que aospoucos o vamos deixando dereconhecer, icando a sensação de que já não atrai nem o nossomarido.Mas quando atrai, e ele nos continuaa procurar, não podemos, nemqueremos dizer que não, gratos que ainda nos deseje, esquecidos pormomentosdequenanursery'estãojátantos.Mariaparece-me,apesardetudo, dedicarmuitomais tempoà sua tropadoque eu àminha. Passo àsvezes três meses a io sem osver tomar banho, sem rezar com eles aodeitar,entrereuniõeseconselhos,compromissossociaiseinaugurações,emesmo quando tenhotini intervalo no trabalho, por vezes o tempo nãochega para atravessar este palácio frio e desconfortável e ir surpreendê-los na nursery. Vicky, Bertie e Alice já nos acompanham em muitascerimónias,mas osmaispequenospassamdemasiado tempoentregues aamasemestras,masoquepodearainhadeumImpériocomoestefazer?

Pediu-me as medidas de cada um deles, porque me quer fazer uniasupresa...Bemlhedissequenãosemetesseemtrabalhos,porquevestir osmeus seis ilhos todos já equivale a fardar um exército. Contou-me queLuísa inalnãovaiembarcar,porqueascriançasestiveramtodas doentes.Sabiaqueiaencontrarumpretextoparaoreter.Éengraçado como,tendoviajado tanto em pequena, tem horror a se separar dos ilhos, por tunanoitequeseja,emesmoFernandonãotemautorizaçãodedormir foradecasa, e falo assimmas tambémme custa terrivelmente quandoAlbert seausenta,mesmo que por um curto espaço detempo. Somosmulheres de

família,éoqueé.

Conta-me que o meu a ilhado é agora conhecido por Gusty, umdiminutivocomqueosmanosmaispequenosobatizaram,porque ospetitnoras são tuna constante nas grandes famílias, e nas famílias felizes. E afamíliadosmeusprimosportuguesesparece-memuitofeliz.

Masoquetêmdepazemfamília,têmdeagitaçãopolítica.Mariajustificaafaltadecartasporandarhorrivelmenteocupadacomuniarecomposiçãoministerial provocada por circtmstâncias que diz, com um paternalismoinsuportável, que nem vale a pena explicar-me,porque seriam demuitodi ícil compreensão para quem não vive em Portugal. Não precisou dedizer mais nada para que eu entendesseimediatamente, mesmo sem ainformação do nosso embaixador, que acabadedarmaispoderao condedeTomar.Edepoisdistrai-me,comosedistraitunacriança,contandocomootempoestáquenteemaravilhoso,comomeescreveàsseisdatardecoma janela abertaao ar quente. Temo que tuna nova tempestade esteja aformar-se nohorizonte, equeopovoque fez aMariadaFonteporodiarCabral façapior ao ver que Cabral tem hoje ainda mais poder, e que oacordoquemediámosfoiabsolutamentedesrespeitado.

PaláciodeBuckingham,10defevereirode1849

PaláciodasNecessidades,6deabrilde1849

esdequeoperigodarubéolaestavaultrapassado,Mariadecretaraqueascriançassubiamàsuasaladetrabalho,depoisdolanche,paraqueosreisvigiassemosseustrabalhosescolares.PedroeLuíschegavammaistarde,porqueohoráriodoseudiaadiaacadémicocomeçavacedoeprolongava-seatémaistarde,maspassavamsemprepelasaladeestudo,ondeFernandodiscutiaoquetinhamaprendido,eMarialheseringavaojuízoparaqueescrevessemaosparentes.r,-111,1

-Luís,nãoqueromaisdesculpas,peguelánopapelenapenaeescrevaeminglêsàprimaVitória.Elivre-sededarumerrodeortografiaqueseja-dizia ao seu segundo ilho, que, cansado de livros, queriadeixar-seescorregar para um canto ondepassasse despercebidopara brincar comJoão.-Aliás,teremosdecompararavossaletracoma dosprimosingleses.JápediaVitóriaquememandasseumexemplardaletradecadaum,paracomparar.

Fernando levantouosolhosaocéu, incrédulo.A letrados ingleses paracompararcomosseus,ondeacabariaestacompetiçãoridícula?

Maria,percebendoacrítica,desconversou:

- Vitória e Albert estão sempre a perguntar por ele, e a mandarpresentes, ainda agora mandou uns binóculos ao Luís, não acha que osdeveagradecerconvenientemente?

Luís,quedetestavapressentirospaiszangados,sentou-semaisdireitoàmesa, e começou a escrever. Pedro invejara os binóculos, e de qualquermaneiranãotinhamuitooquedizeràrainha:

- Pre iro escrever ao primo Albert. Estou a contar-lhe que vamosorganizaraquiemPortugalumaexposiçãoindustrial,achabem,pai?Nãoésegredo,poisnão?

Fernandosorriu:

-Nãoésegredonenhum,ealiásfoiAlbertquemedeuaideia.Elesestãoa preparar umaGrande ExposiçãoMundial, e para escolher o que temosdemelhorparaenviarparaInglaterra,lembrei-medeanteciparanossa...

João estava deitado de barriga para baixo no chão, a brincar com umcarrinho, o cadernodos ditados ao lado, semque lhe prestassenenhumaatenção.Mariadobrou-seepuxou-lheasorelhas:

-Deixeláocarrinho,voueumesmafazer-lheoditadodefrancês.

João, cujo tempo letivo aumentara agora que tinha 7 anos, exclamounumavozdramática:

- Mãe, já iz um ditado em inglês, outro em alemão, e agora amãe vaifazer-meumemfrancês...

- E se o menino não se senta direito à mesa, faço-lhe a seguir umemportuguês,esedererros,sãodois.

Joãogemeu,masobedeceu,antesqueocastigoseagravasse.

Pedro,omaisvelho,queouviraetornaraaouvirashistóriasda infânciadoBrasil,aindatentouviremauxíliodoseumanofavorito:

-Amãecomaidadedele...

Maria piscou-lhe o olho, enquanto fazia sinal de que se calasse.O ilhotinha toda a razão, como se lembrava bem das insistências de Leonor daCâmara para que icasse quieta a fazer os trabalhos, das cartas do pai arepreendê-la pelos erros da missiva que lhe mandara, e isto era aos 9anos,porqueaos7nãohaviamestranenhumaquea conseguissemanterquieta mais do que dez minutos. Quando a mamãeinsistia que izesse oditado na varanda dos papagaios, arranjava sempre maneira deescorregar para o seu colo e pedir-lhe que lhe contasse histórias do seunascimento ou batizado, ou saltava da varanda para omato e corria porentreasárvores,escondendo-senumcantofrescoatéaoanoitecer.

A sua Maria Ana já tinha quase 6 anos, era parecida consigo, pensou,

enquantoaobservavaaagitar-senacadeira,olápisconstantementeacairnochão,comoela lutuandodaalegriaàtristezaevice-versa,numabrirefechardeolhos.Escreviaemfrancês,alemão eportuguês, tãobemquantoasuaidadeopermitia.MasTonica,queacabaradefazer4anos,haviadeaultrapassardepressa,pensou.Amónia continuava tãoparecida comopai,que ele encontrava todosos pretextos para a puxar para o colo e lhe lerumlivro,ouparaa sentarnumbancoaopianoeensinar-lheasprimeirasnotas. Fernandoe Augusto, o seu pequenino Gusty que já sabia andarsozinho, brincavam sempre um com o outro, tão próximos um do outrocomoPedroeLuíseramentresi.

Passou a mão pela barriga, pensativa. E o pequenino Leopoldo,quetinham decidido nomear em homenagem ao rei dos belgas, comoseria?Teriadeesperarparaver,masestavacerta,eacertavasempre, queseriadenovoumrapaz.

Mariaacabade fazer30anos, e euestouquase lá.Trintaanos,como otempo passou a correr. Mas era justo que a vida das rainhas contasse adobrar,porquetudooque jávivemoscorrespondea tuna vidanormaldealguém com 60 anos, rugas incluídas. É verdade quetemos as refeiçõesservidasnamesa,nãodobramososjoelhoscomoascriadasparaapanharas cinzas da lareira dos senhores, e sobretudo nunca passamos fome, etemosmédicosparanos trataremnadoença, masa responsabilidadequesentimossobreosombroséimensa.Tenho acadaminutoaconsciênciadequeumadecisão, aminhaassinaturaapostaaunidocumento importante,podedecidirofuturodemilharesdepessoas.

EmPortugal,Mariahá15anosnumaagitaçãopermanente,emqueasuaprópria vida corre risco. Na última carta diz-me que o país está em paz,mas a Imprensa dá conta exatamente do contrário. Mantemos os nossosbarcosnoTejo.

CastelodeWindsor,6deabrilde1849

PaláciodasNecessidades,7demaiode1849

padreungiaatestadorecém-nascido,seguronosbraçosdeumadasdamas.Mariasabiaqueestavamorto,quenascerajámorto,oumorreralogodepoisdenascer.Estranhara,quandonãosentiravontadedeoexpulsardedentrodesi,comoseocorposoubesseoqueiaacontecer,eprocurasseprotegeroseufilhopormaisumbocadinho,procurassemanterailusão.Quando,finalmente,omédicooretiraradeixara-secairsobreasalmofadasaltaseesperaraochoro,ogrito,quelhedevolviasempreaenergiaqueforasugadanaquelashoras.MasLeopoldonãochorou.Batizavam-noàpressa,temendoqueasuaalmafosseimpedidadeentrarnoCéu,condenadaaumlimboeterno.Agoraopadrerezavasobreocorpodoseufilho,envoltoempanos,eMarianãoconseguiapedir-lhequelhodessemparaocolo,nãosuportavaolhá-lounicamenteparasedespedirdele.MasLurdinhas,queiaevinhaapretextodastoalhaslavadasequentes,aproximou-sedasuaqueridasenhoraeimplorou-lhe:

-Beije-o,beije-o,senhoraD.Maria,paraqueváparaoAltíssimo, com obeijodamãe.

A rainha ergueu-se com esforço na cama e estendeu os braços para oseu ilho, que relutantemente a dama lhe entregou. Ainda estava quente,aquelebebéquecresceradentrodesi.Desenhou-lheosinalda cruzcomodedo polegar na testa, beijou-o e murmurou: «Vai em paz, meu queridoLeopoldo, que a avó Leopoldina espera por ti!» Durante uns segundosembalou-o, até que lho tiraram dos braços e nunca mais o viu. Diria aFernandoqueplantasseumalaranjeiraporesteseu ilho,comoapequenaMariatinhaumacerejeira,ondeiasemprenaprimaveracolherasflores.

Fechouosolhos,masaslágrimasnãocaíam.

Fernandoolhou-adesoslaio,preocupado.OnascimentoeamortedeLeopoldotinhamsidoháapenasduassemanas,masMariaestavadepécomosenadafosse,reunindodenovocomSaldanhaeocondedeTomar,

mergulhadanofundodasintrigasedoscombatespolíticos.Ajudava-aaesquecer,seriaisso?,talvezfosseumaformadeaafastardador,eporissoestavagrato.OcondedeTomarabrira,elepróprio,umjornal,eOPopularretiravasurpreendentementeoapoioaogovernodeSaldanha.Omarechalespumava,nosencontroscomarainha,edepropósitosentava-senacadeiraquesabiaserdeCostaCabral,comoquedeixandoclaroqueeranele,esónele,queMariadeviaconfiar.MasFernandosabiaqueaconfiançaeoafetodarainhaestavamcomCabral,equeembreveovaidosoduqueteriadereagiràafrontadequeeraalvo.Foraapenasumafachadadeconsensoqueointeligenteemaquiavélicoministrousaraparasedimentaroseupodereatirarareiaparaosolhosdaspotênciasestrageirasquetinhammediadoapaz.Quemjulgavaelequeenganava,perguntouasimesmo,enãogostoudaresposta:arainhadePortugal,decididamentearainhadePortugalqueriaserenganadaporele.

EscreviaMarialogoquesoubedamortedoseurecém-nascido,quemefoicomunicadaporumacartaemocionadadopobreFernando. Agradeçoasortedenão ter sido sujeita a talprovação, enodia emquemederamanotícia desmarquei todos osmeus compromissos e, depois de tunamissapelaalmadeLeopoldodePortugal, fuidireitaaosaposentosdas crianças.Nestes momentos, em que a morte nos rouba avida, entendemos comotudo é efémero, e se algtnn serviço nos presta, é tornar-nos maisconscientes das bênçãos que nos foram dadas. Alfred, Helena e Luísareceberam-mecomunisorrisotãogrande,largando todososbrinquedosecorrendoparamim com tanta alegria, que jurei amimmesmaque daquipara a frente vou tirar mais tempo para os meus pequeninos. MesmoVicky,com9anos,Bertiede8anoseAlice,de7anos,precisamdemim,ereparoqueéassimpelaansiedadecom quesealinham,direitos,àesperademebeijaremamão.Vickyéaqueestámaisàvontade,aminhaqueridaVitória que andava connosco depalácio em palácio, nos tempos em quetodoséramosmaisnovos,emaisdisponíveis.

Entretanto, hoje, recebi ina]rnente urna carta de Maria. Abri-a comansiedade, sinto,pressinto talvez sejamelhordito,que se sentirá culpadaporque,a inal,foiestaaprimeiravezquesentiu,ouseatreveua dizer-me,que a gravidez não era a mais desejada. É claro que deve ter sido um

problemamédico,tenhopensadomuitosenãoteráapanhado rubéolasemdar por isso, o que poderia explicar a fragilidade destebebé, mas quemsoueuparafazerdiagnósticosàdistância?

Mas jádevia conhecerMariahá tempoquebaste,paraesperara cartaquerecebi,emquedizapenasquesabequeeuseidatragédia, quetemaconsolaçãode saberque fez tudooqueosmédicos lhe recomendaram, edepois discorre sobre a educação das crianças em geral, e a do nossosobrinhoFilipeAugustoemparticular,o ilhodoirmãodo Fernando,queédefactoinsuportável.Concordocomelaquandodizquesãoloucosospaisquedeixamos ilhosfazertudooquelhespassapelacabeça,porque,alémdomais, vão transformá-losemadultos infelizes, dequemninguémgosta.SuspeitoqueseFernandoeducassesozinho,educariacomooseuirmão,equeéMariaque impõe,ebem,adisciplinadoméstica.NuncameesqueçodequandoAlexandremecontouqueela,aoverunidos ilhosarespondermalaunidoscriados,oobrigouapedir-lhedesculpa,dizendo-lhequenãoadmitia que emcasa dela se falasse assim a fosse quem fosse. Às vezespensocomolhedeveserinsuportávelterdeaturarministrosmalcriadosearrogantes,quandoosseuspadrõesdeexigênciasãotãoaltos.Seioqueamimmecusta,eàsvezesquetenhovontadedevivernoséculoxivepodermandardecapitarunstantos.SeMariameouvisse,pensoagoraarir, dizia-mequeascortassemesmo!

CastelodeWindsor,17demaiode1849

PaláciodasNecessidades,10dejulhode1849

aldanhaentrousembater,deixandoocriadoestarrecido,commedodequeafúriadarainhasevoltassecontraele.Masomarechalempurrou-oparaforadasalaefechouaportacomestrondo.

Mariarecebeu-o,osolhosgelados:

- O senhor comporta-se como uma criança mimada - começou,mas omarechalnemaouviu.

Sentou-seostensivamentenacadeiradeCostaCabral,semquea rainhaomandassesentar,e,zangado,protestou:

-Senhora,vaideixarqueumhomemambiciosoesemescrúpulos,queopovoportuguêsodeia,comandeosdestinosdopaís,despachandooamigodoseupai,queatemservidocomabsolutalealdade...

Maria,gelada,interrompeu-o:

-Senhorduque,oqueestádecididoestádecidido.

- Mas tem consciência do que faz? Se não fosse eu a garantir aestabilidade do governo após a Maria da Fonte, trinta meses deestabilidade,coisaqueestepaísnãoconhecehádécadas...

Marianãosecomoveu.Estavadeterminada,eerguera,comosabiafazerbem,umamuralhaimpenetráveldedefesa:

- Era o que faltava que me desse ordens. O que fez, está feito eagradecido,agoraéavezdocondedeTomar.

Saldanha,incrédulo,pôs-sedepédeumsalto,mudandodeestratégia:

-Vaiarrepender-se,masescusademepedirpara icar,porquenão fico.VouparaSintra,tenhoasminhasvacaseaminhaquintaparacuidar.

E,comumasombradeumavénia,retirou-se.

Maria roeu as unhas com raiva. Saldanha era impossível, que fossecuidardogadoedosseusprojetosmegalómanos,queseriamumfracassotão grande como tudo o resto em que se metia. E que levasse com elePalmela, Lavradio e todos os amigos do pai, que sinceramente nãoprecisava deles. Nenhum tinha amodernidade e a visão deCosta Cabral.Abriu a janela e ajeitou de novo a cadeira, como quelibertando-a daprofanação. Em breve chegaria Costa Cabral, e ele sim, tinha toda alegitimidadeparaaocupar.

Suspiroufundo.Esperavaháanosporestedia.

Atelaestavanocavalete,eLuíspintavaumcockerspanielquedormianochão,umfilhodeDashqueVitórialheenviaradepresentehádoisanos.

-DrogouoLuky?-perguntouorei,rindo,pedindodesculpaao professorAntónioManueldaFonseca,oprofessordepintura,porlhe interromperaaula.

Luísdeuumagargalhada:

-Parece,nãoparece?Masjuroquemelimiteiadizer-lheque icasse aliquietinho, e ele é tão vaidoso que icou. Quer icar imortalizadopara aposteridade.

O professor juntou-se ao riso. Preferia claramente o feitio soalheiro deLuís, com pouca paciência para a altivez e sobranceria de Pedro, e o reiestavacertodequeesseeraumdosmotivosque levavamoseusegundoilhoadedicar-setãoapaixonadamenteàarte.Lipipidesistirahámuitodeconcorrer com o irmão, que o superava emHistória, Retórica, no alemão,nogregoe emnão sei quantasmais coisas, eprocuravaáreas emque sepudesse diferenciar e destacar. Quando pegava nos pincéis via como osolhosdopaiartistaseiluminavam.Queriacontinuaraseroseumotivodeorgulho:

- Pai, que tinta usava para o fundo? - perguntou, desejoso de umpretextoparareteraliorei.

Oreifoi icando.Tambémprecisavadesealienardaagitaçãoque ianos

corredoresdopaço,dosConselhosdeEstadoquearainha convocava,dasentradasesaídasdeCostaCabraledosseuscorreligionários.Preferiamilvezes as telas e os pincéis. Como o ilho, tambémele procurava terrenoseguro.

Maria deixou-se convencer de que era preciso fugir de Lisboa. Que atrupeprecisavadecorrernoscorredoresdoPaláciodeMafra,decaçarnatapada, de apanhar o ar fresco do campo. Partiram com as bagagens àscostas, carruagens e carroças com tudo aquilo de queprecisavam, astapeçarias, as panelas, os lençóis para a cama, os baúscheios de roupa.Maspartiam,pensouFernando,enquantoviaacidadedeLisboacadavezmais longe. Abençoado conde de Tomar, pensou, que com o seu pulsoirme, o seu espíritodecidido e a suacapacidadede implementar as suasdecisões, permitia que os reis fugissem para uns dias de descanso longedospolíticosedocalordacidade.Porissooreiestava-lhegrato.

Estivemos na Irlanda, e agora viemos passar uns dias à Escócia, quecomeça a ser omeu sítio preferido. É tão bom fugir da cidade e passearcomascriançasporestescamposverdes,oslagostãoazuiseprofundos,emontamos em longas caçadas a que os mais velhos já se juntam.Masmesmo aqui chegam notícias de Maria. Conta-me que agora é omeua ilhadoquetemrubéola,serápossívelaindaserrubéola,nãosei,masaoque parece não está nada bem, e a situação agrava-se porque tem aindamuitosdentesanascer.

Quanto à política portuguesa, diz o nosso embaixador em Lisboaque aprepotência de Costa Cabral raia níveis insuportáveis, e mal o tempoarrefeçaeospolíticosvoltemàcidadehaverásarilhos.Maria diz-mequeoministériovaibem,o«nossoministério»comolhechama,equeocondedeTomarmostramuito tato emoderação. Deve ser a única portuguesa quede ine as decisões de Costa Cabral com estestermos, mas coitada, averdade é que, como diz Fernando a Albert,é para ela um alívio quealguémtomecontadopaís.Compreendo-a.

CastelodeBalmoral,20dejulhode1849

PaçoRealdeSintra,10deagostode1849

ãe,mãe,venhaver-chamouPedro,enquantoentravapela.salaondeMariafaziamalha,trazendonamãoumagaiolacomumpássarocoloridoládentro.

Mariaapontouparaamesaondepousaraosjornaisdodia:

-Pouse-aaí,quepelomenososjornaisservemparaalgumacoisa-disse,rindo,echegou-semaispertoparaolhar.

- É uma poupa, uma Upupa epops, é bonita, não é? É o nono pássarodiferente que eu e omano Luís apanhámos para omuseu, este foi lá emcima na serra, que escalámos toda a manhã. O pai seguiudepois para aPena, mas está todo contente, diz que a nossa coleçãojá merece servisitada.

Maria sorriu-lhe.Os pássaros portugueses não tinhamnemo tamanho,nemascoresdaquelesqueamamãemandavaapanharnoRiodeJaneiropara enviar para os museus do avô Francisco e da tia Luísa, mas desdeque Pedro e Luís se tinham dedicado à ornitologia começava a perceberumbocadinhomaissobreeles.

Naverdade,poucolheinteressavamosanimais,aspedras,asplantas,osmusgos eos líquenesque todososdias lhe apareciamna sala,mas simoentusiasmodosfilhosporcolecionar.

-TemosdeescreveraotioPedroparanosmandarmaiscoisasdo Brasilparaoseumuseu.

Ficousubitamentetriste,eofilho,angustiado,perguntou-lhe:

-Aconteceualgumacoisa,mãe?Estavaalembrar-sedaavó,eraisso?

Pobre Pedro, sempre tão sensível aos seus estados de alma. Deu-lhe

umafestarápidanobraço:

- Às vezes tenho saudades, pena que a avó Leopoldina não vostenhaconhecido, gostaria tanto de si, Pedro, era mesmo o neto com que elasonhava.

AexpressãodePedroiluminou-se:

-Eu tambémgostomuitodaavóLeopoldina, e lembro-me sempre de amãe falar do museu - e, fazendo uma careta, acrescentou: - Desdepequenino que tenho pesadelos com a sua descrição daquele homemembalsamadodentrodeumacestadevime...

Mariadeuumagargalhada:

-Metiamenosmedovistodoquedescrito,esecalharfaleideledeumamaneirasempretristeporque...

- ... foiemfrentedelequeofreiAntóniolhedissequeaavóacabarademorrer.

Maria segurou a mão do seu primogénito, do príncipe herdeiro dePortugal,entreassuas,numgestoraro,ePedrodeixou-seescorregar paraochão,sentando-seemfrentedela:

-Mãe,lembro-metambémdemefalardeummantodepenas...

- O manto do rei das Ilhas Sandwich? Era lindo, e o seu avô Pedromandou-mevesti-loeeusenti-meapessoamais importantedoMundo.AiPedro,gostavatantoqueomeninopudesse iraoRiode janeiro,ao Brasil,vercomosseusolhososítiomaisbonitodoMundo.

Pedrofezumsorrisopreocupado:

-Seumdiativermosdeabdicarefugirdaqui,talvez.

Maria recolheu as mãos e pousou-as no colo, subitamente tensa ezangada:

- Era o que faltava! Deixei o Brasil por Portugal, e é aqui que voumorrer, deixando-lhe o lugar para que continue e faça ainda melhor do

queeu,olhaquehistória.Eagoralevedaquiessepássaro,edê-lhe águaecomida,senãoobichomorreantesdechegaraLisboa.

Aquiemcasaestamostodosàspintasencarnadas,ecomumacomichãohorrível. Fui a primeira a apanhar varicela, e não há dúvida que quandoapanhamosdoençasdecriançaemadulto, sãodezvezespiores,ou talvezsejaapenasquenossabemosqueixarcommaispalavras.Agora temososmaispequeninosdoentes,eéprecisocalçar-lhesluvasnasmãosparaquenãococemasborbulhas,porque icatunamarca paraavida.ALuísafoiaque icou pior, coitadinha, e a ama dava-lhe banhos de águamorna combicarbonatodesodaváriasvezespordiaparaaliviaracomichão.

Recebi uma longa carta da Maria, que quando soube da doença peloAlbertseapressouamandar-nosasmelhoras,asossegar-medizendo quea varicela é benigna, que só faz bem e não tem problema nenhtun,piorseriasetivéssemosapanhadovaríola.Defacto!Felizmente,depoisdiscorresobreasagitaçõesnacorteespanhola,querealmentedavam tunromance,eum romancepesado, porque agora é o rei que, fraca igura como é, fazcenasàmulher,dizendoqueo ilhonãoédele,coisa que,aliás,só lhe icamal, atendendo à faina que já tem de não sermuito dado aos encantosfemininos.Pobrerainha Isabel,oseucomportamentoéde factoduvidoso,maslembro-medetantasvezesperguntaraotioLeopoldocomoéqueerapossível aquela criança crescerbem, quando a mãe a abandonou e adeixou rodeada de gente pouco recomendável. Abandonou-a, casou comum mero soldado, de quemteve uma dezena de ilhos no maior dossegredos,edepoisfugiuparaFrança.Albertri-sequandofalodela,porquediz que se vê nos meusolhos como tinha vontade de ser como ela, epergunta-mesemprecomqualdosmeusguardaséquevoufugir,edepoisrimos muito, mas no imdo, no fundo, acho que tanto eu, como a Mariasonhamos às vezesem livrar-nos de tudo isto e podermos, como diria aMaria,darogritodoIpiranga.MeuDeus,oqueescrevo,deveserdafebre.

CastelodeBalmoral,18deagostode1849

PaláciodasNecessidades,10denovembrode1849

urdesentroupéantepé,eespreitouarainhaquedormitava,umpachodeáguafriaestendidosobreatesta,tãopálidaquesefundiacomobrancodoalgodãodaalmofada.Mariaouviu-a,echamou,baixinho:

-Lurdinhas,éstu?Dói-metantoacostura,nemconsigorespirar.

Acriadaaproximou-sedacamae,enquantotrocavaopanomolhadoporumnovo,foidizendo:

-SenhoraD.Maria,oreijámandouchamarnovamenteoDr.Kessler.

Maria tentou re ilar,mas não conseguiu. Tudo começara com a azia docostume, depois os vómitos, que temera sinal de uma novagravidez, einalmente dores tão violentas que até ela, que detestava serexaminadapor médicos, tivera de os mandar chamar. Ao palpar-lhe a zona doestômago, o Dr. Kessler encontrara uma massa grande, os colegaschegaramdeurgênciaparaoperar.

Lurdesassistiraa tudo,e juravanascozinhasquearainhaerade umacoragem como não havia. «Abriram-na com uma faca, andaram para lá acortar, sangrou tanto quemolhou dez toalhas, e fecharam-na de novo, eSuaMajestadesemumai,nemumui»,contavacomadmiração,peranteoolharenojadodosoutroscriados.

Agora a boca estava seca, os lábios gretados, e quando Lurdes lheaproximouocopodaboca,bebeuavidamente,deixando-secairdenovonaalmofada.

- Isto foi dos nervos com os preparativos da exposição, de certezaabsoluta.Edepoisdo frio.AqueleArsenaldaMarinhaéparamarinheirosfardadoscomaquelesuniformesquentes,nãoépara senhorasdecapelina- disse, confortada pela nova pilha de travesseiros com que a criada lhelevantaraacabeça.Acriadatevevontadederir.Arainhapreferiaatribuir

um abcesso, que tivera de ser drenado, a uma corrente de ar, do que auma alimentação desregrada e demasiado copiosa, como os médicos lhehaviamdito.Masquemeraelapara recordarhistóriasqueasuasenhoranãoqueriaouvir?

- Mas foi bonita a exposição, não foi, senhora D. Maria? - perguntouLurdes,ansiosaporverasuasenhoraarrebitar.

- Foi ideia do senhor D. Fernando, sabes? Tinha um espaço para cadaumadas indústriasportuguesasmostraroque faz,eolhaquesãomuitasmaisdoquepensamos.Era issoqueoreiqueria,mostrar aos lisboetas, eaos estrangeiros que aqui vivem, que o país está a desenvolver-se, aprogredir. Se não fosse o senhor conde de Tomar, andavam aí emescaramuças, em lugar de construírem estradas e trabalharem nasfábricas.-Mariajápareciaoutra,entusiasmada.

Lurdesdeu-lheabeberoxarope,earainhatomou-ocomouma criançaque se entrega aos cuidados de uma mãe. Estava tão gorda e pesada,pensouacriada,queatétinhadi iculdadeemajudá-laalevantar-se,comoestavadiferentedequando,hátantosanos,entraraparaoseuserviço.

Mariapercebeu-lheoolhar:

-Seestavasapensarnomeupeso,alegra-tecomestaoperação, porqueháseisdiasquenãocomonada,maisdietadoqueistonãopodemdesejar- comentou, amargurada, e a criada corou, envergonhada.MasMarianãoqueriaperdertempoemassuntosquelhedesagradavam:

-Olha,tenhoédemepôrboaparareceberaminhairmãXica, lembras-te dela? Esteve muito, muito doente. Pelas cartas do meucunhado e darainha Vitória, tive medo que não resistisse, mas agora parece bem, erecomendaram-lhesol.AiLurdes,eratãobomqueviesseporummês,doismeses,parapodermospôraconversaemdia.

ODr.Kesslerentrounaquelemomentoe,sorrindo,comentou:

-Vejoque jánão souaquipreciso!Daqui adias, a senhoraD.Maria jávaivoltaraoseujardim.

Estou tão preocupada com Maria. Fernando escreveu-me tuna carta

desolada,adizerquearainhatinhasidooperada.Osmédicostemiam quefosseumttnnor,masfelizmenteeraumabcesso,quetevedeser drenado,imaginoasdores.ParecequelhetentaramdarvinhodoPortoeálcoolparaque as sentisse menos, e estivesse meia a dormir quandoa operassem,masarainharecusoueviveutudoaquiloacordadaesem droganenhtuna.Nãosabemseoexcessodepesoéacausaouuniaconsequência,masoreidiz-me que amulher continua a comer demais, e as gravidezes não têmajudado,queodigaeu,queacadadiareconheçomenosaminha iguranoespelho,asancasaalargar.Eaqui porLondres,amanaNicacontinuaemperigo. Lembro-me sempre de Maria me dizer que era absolutamentenecessário para a saúde dairmã levá-la para Portugal, comparando-a aunia«pobreplantadostrópicosaqueosol fazfalta».Temtodaarazão,ejá disse a Joinvillequepode contar comuni navio inglês para a levar atéLisboa,malsesintacapazdaviagem.

Talvez seja tuna bênção que esteja retida no seu quarto, sem poderreunir-secomninguémeproibidadelerosjornais,porqueosrelatóriosdoembaixadorqueaquitêmchegadodizemqueaImprensanãofaladeoutracoisasenãodo«escândalodacaleche»,tunacarruagemluxuosacomqueoministro se exibe emLisboa, e que a imprensa o acusade ter recebido atroco de tun favor. É que ao contrário dos palácios, do luxo que dentrodelessevive,doscriadosedosbailes,acaleche, todosaveem,é comosefosse um sinal exterior da corrupçãode que há anos o acusam. Aproximidade deMaria a Costa Cabral vai acabar por a atingir, dentro dopaísefora.

Diz-me Palmerston que a oposição, manobrada obviamente poruniSaldanha ressabiado e que todos estávamos certos que se vingariadahtunilhação de que foi alvo, prepara-se para entregar à rainha umrequerimentoapedirademissãodocondedeTomar.Comoéqueo condede Tomar subestimou a capacidade de fazer sarilhos de Saldanha, e arainhaadesonestidadedeCostaCabral,sãomistériosquemeultrapassam.O braço de ferro vai começar. Espero sinceramente que Fernando e osmédicos saibam manter Maria longe de tudo isto, omáximo de tempopossível.

PaláciodeBuckingham,20denovembrode1849

PaláciodasNecessidades,5dedezembrode1849

omumacapadepeledeursosobreosombros,oscabeloslourosarranjadosnumcarrapitopresocompérolas,MariadavaumpasseiopelaTapadadasNecessidades,pelobraçodeCostaCabral.

-Temacertezadeque jápodesairdecasaparaumpasseio tão longo,senhoraD.Maria,nãoseriamelhorvoltarmosparacasa?- dizia-lhe,meigo,ocondedeTomar.

-Óhomem,porfavornãocomecetambém...Temosdefalaraqui fora, ládentro há sempre gente a entrar e a sair, ouvem as conversas todas,repetem, amanhã está nos jornais, por isso diga lá o que tinhapara medizer.

-Queria pôr o meu lugar à disposição, porque preferia morrer aprejudicararainha-disseCabral,osolhosnochão.

Mariaestremeceudeirritação:

- Demissão? Mas que disparate, senhor conde, que disparate. Nãofalámosjádistotantasvezes?0senhorfica,eéparaficar.

- SenhoraD.Maria,peço-lhequepensenessapossibilidade,porqueseiqueSaldanhavaimandarpublicarnosjornaisacartaquelheescreveu!

Mariacorouderaiva.

-Aquelacartasemnome,emquemedizqueéosenhorcondedeTomarquepõeemriscootronoeadinastia?Hajapaciência.Quantasvezeséquejámedisseramomesmo?Ésempreaconversadequemme querassustaradecidirparaoladodeles.Oiçoistodesdeos9anos,senhorministro,achaqueaindamedeixoamedrontar?

CostaCabraltinhadificuldadeemesconderasuasatisfação.

-Maspromete-mequedispõedemimsesentirqueassiménecessário?-insistiu.

- Prometo-lhe que ponho é o Saldanha na ordem, que é tempo deaprender a saber falar com a rainha. Ele que publique o que quiser! Játodaagentesabequedeixeidelerosjornais.

É triste o dia em que damos razão a Saldanha, a carta que escreveu àrainha é gongórica, como todas as que escreve, mas verdadeira. Diz-lheque a quer salvar dela própria, e acho que é disso mesmo que setrata.Comosenãoestivessemaisdoqueavisada,efrenteastodososescândalosquetêmsurgidoemredordonomedeCabral,Mariadecidiu afrontartodaagente,enomearumnovogrupodepares,todoselesaliadosdocondedeTomar, enchendo a Câmara Alta dos seus correligionários, promovidos anobresecomdireitovitalício.Garanteassim a in luênciadeCabral, sejamquais forem os resultados de futuras eleições, e ofende todos os antigospares,quesesentemhumilhadosporestanovafornadadegentequenãotemméritos reconhecidos,nemnome,nemantiguidade.Tudoapedidodeumhomemquenãohesitamemchamardeseufavorito,insinuandoopior.Tanta faltadesensoéperturbadora,emaistunaveznemeu,nemAlbert,entendemos comoé queFernandopermite que tudo isto aconteça.O seuprestígio nãopodedeixardeserabaladoaoapresentar-seperanteopaíscomoumhomemfraco,quedeixaqueamulhertometodasasdecisões,senãoforpiordoqueisso...

Oembaixadordiz-nosquejásefalaemexigirquearainhaabdiqueemfavordopequenoD.Pedro.Nãomeadmiranada.

Vou escrever-lhe a implorar que não subestime o poder e adeterminaçãodeumSaldanhahtunilhado.

PaláciodeBuckingham,10dedezembrode1849

PaláciodasNecessidades,25dejaneirode1850

ostaCabraltrouxera-lheumartigodojornalinglês,umtalMorningChronicle,dequenuncaouvirafalar,elançou-osobreoseucolo.

- Leia, Majestade, leia o que aí se diz sobre o seuministro, e o que seinsinuaemrelaçãoasi...

Asmãosdarainhatremiamquandolhedevolveuojornal:

- Por favor, leia-me alto o que aí se diz, oumelhor, traduza, que nuncameentendibemnessalíngua...

-Otextoétodosobreaminha«ascensãometeórica»,eaminhasupostafortuna, aquilo que roubei, que, dizem os senhores, é metade doOrçamento do Estado, mais coisa, menos coisa. E porque é que, segundoeles, me é permitido roubar impunemente, quer saber? Tudograças «aolevianoprocederdeumaAltaPersonagemparacomeste rasteirofavorito,circunstânciadequesabeaproveitar-sebemparafirmarasuainfluênciaepoder».

Mariaabriaosolhos,estarrecida:

- Issovemescritoassim,num jornal inglês?Mas comoéqueépossívelumdesaforodesses,comoépossívelquedigamessascoisassobresi,equeasinsinuemsobremim?EstábomdeverqueselimitaramapublicaroqueSaldanha lhes ordenou que publicassem, com o conluiodo embaixadorbritânico.Maseagora,oquevamosfazer?Comolhevamosresponder?

Arainhareagiacomoseoinsultofosseparaambos,registouo ministro,satisfeito. Endireitou as costas, mais largas com o passar dosanos, ecomeçouaandarparatráseparaafrenteaolongodasala:

-Estejadescansada,Majestade,quenãodeixoquemanchemassimasuahonra.Nemaminha-acrescentou.-SouumhomemdeDireito, educadoe

com conhecimento das leis, embora queiram fazer demim um tipo toscoquechegouaLisboasemsaberler,nemescrever.

-Masoquevaidizer?-insistia,nervosa,arainha.

-Quenãoestouondeestoupornenhumarazãoimprópria,quea rainhadePortugalnãomefavoreceupornenhumoutromotivo,senão odeacharquetenhocompetênciaparaolugarqueocupo.

Mariabateupalmas,rendida.

- Não vou dizer nada a Fernando sobre a sua resposta, senhor conde,porquequantomenosgenteestivermisturadanisto,melhor- sussurrouarainha.Nestepaçoasparedestinhamouvidos,eomarido reunia-sevezesde mais com os embaixadores. A resposta de Costa Cabral seria umasurpresaparatodos.Estavaansiosaporaverpublicada.

Nessa tarde escreveu a Vitória, a pretexto da nova gravidez que lheanunciara. Sabiabemque, por esta altura, a prima já teria lidoo jornal erecebido uma catadupa de relatórios do embaixador em Lisboa, aqueledetestávelSeymour,queganhavaavidaafazerintrigase arepeti-lasondenãodevia.Tinhadeprocurarreporaverdade.

QueridaVitória

Soubequeestásdenovonumcertoestado,eDeusqueiraquesejasmuitofelizatéaofim.Jánãoseimaissetedevafelicitaroutelamentar,porquesintoquepodiasteresperadomaisumbocadinho,maspaciência.

PorumacartaqueFernandoescreveuàtuamãesaberásqueestamosemperfeitapaz,masqueanossaoposiçãojogouumamiserávelcartadanoassuntodocondedeTomar.Comoéquesepodeacusaralguémderoubaredepois,quandosepedequequemacusaexpliciteaacusação,daformaqueaCartaexige,nãoopodefazerporfaltadeprovas?Érevoltanteeescandaloso.

EsperocomimensoprazeraXica,Joinvilleeosrapazes,equebemfaráàXicafalarasualínguaepassearsobocalordoSolqueelatantoama.

Adeus,minhaqueridaprima,

Beijos

Maria

Fernando não queria acreditar no que lia. Era assunto de primeirapáginade todos os jornais portugueses, ali pretonobranco, a declaraçãojurada que o ministro português mandara em resposta ao artigo doMorning Chronicle, e que os jornais portugueses davam à estampa,certamentecomomaiordosprazeres,taloescândaloquerepresentava.

«OcondedeTomarsentesobremaneiraterdenomeararainhadePortugal,masjulgadoseuestritodevernegardomodomaissoleneeeficazaquelasescandalosasafirmaçõespublicadas.DistintaepositivamentenegaquefoinomeadoministroporcausadequaisquersentimentosimoraisdapartedarainhadePortugaloudelepróprio;equejamaisdapartedeSuaMajestadeoudelehouverelaçõesimoraisouimpróprias.»

Obarulhodassuasbotasecoavapelocorredor,enquantosedirigiaaosaposentosdeMaria,comojornalnamão.Quemsejulgavaestacriaturaparausarassimarainha.Sentimentosimorais,relaçõesimpróprias,comoseatreviaainsinuartalcoisa,edepoisanegartudoistoemseunomeeemnomedarainhadePortugal?

Abriu a porta do quarto de vestir da rainha e ordenou às damas ecriadas que saíssem, deixandoMaria com o cabelo despenteadosobre osombros,asmeiaseossapatosporcalçar.Arainhareagiupreocupada:

-Oquefoi,Fernando,quecenafoiesta?

Orei,foradesi,acenoucomojornal:

- O louco do Costa Cabral escreveu uma declaração indigna, para sedesculpardasacusaçõesqueoMorningChroniclelhefez...

OsolhosdeMariaincendiaram-se:

-AiocondedeTomaréqueélouco!

Fernandoretorquiu,aindamaisfurioso:

- Certamente não leu o que diz aqui! «Nega que foi nomeadoministropor causa de quaisquer sentimentos imorais da parte da rainha dePortugal...»

Mariaencolheuosombros:

-Eémentira?Queriaquedissessequehaviasentimentosimorais?

Fernando atirou os braços a ar, desesperado. Por vezes perguntava-seseMariaeraburra!

-Maria,istotudoéinadmissível.Umministronãopodesequeradmitirahipótese de relações imorais ou impróprias com a rainha. Não vê que aonegá-las admite a possibilidade de terem existido? Nãopercebe queninguémvaiacreditarquetenhaescritoistosemoseuconhecimento?

-Ah,maséclaroqueédomeuconhecimento.OcondedeTomar pediu-meautorizaçãoparaescreveressedocumento,eeudei-a!

Fernandoempalideceu,deixando-secairnumacadeira:

- A senhora autorizou esta declaração abjeta, que a ofende a si, emeofendeamim?-perguntouemvozsumida.

Maria icou a lita. Nunca vira o marido tão perturbado. Levantou-se eestendeu-lheamão,masFernandolevantou-sedeumsalto,eprotestou:

- Esse homem deu-lhe a volta à cabeça! Acredite, o inferno a sériovaicomeçar.Istoéumaguloseimaqueatiraaosleões,Saldanhaaestahoraéohomemmaisfelizdomundo.

Aexpressãodarainhaendureceu:

-Nãotenhomedodosmeusinimigos,seéissoqueopreocupa.

Fernandovirouas costasàmulhere saiuda sala,batendoaporta comestrondo.

É amaior loucura queMaria já cometeu. Começo a achar que defactoestáenfeitiçadapeloseuministro.Comopodetercometidotalingenuidade,sem consultar ninguém, e como é possível este homemnão se demitir nomesmomomento,depoisdeterafetadoobom-nomedarainhacomochefedeEstado,mulher,esposaemãe.Seiqueos jornaisportuguesesdizemistomesmo,maséverdade.Éclaroque Saldanha já transformoutudo istoemmunições contra o seu novoinimigo,masmesmo gente tão sensata comoPalmelaeLavradioestãohorrorizados,elevantaramaquestãonaCâmaraAlta.OcondedeTomarusoude todaasuaarrogância,nacertezadequetemascostasquentes,e,revelandotodaasuabaixacondição,foiinsolentecom osparesdoReino, usandouni vernáculoqueosparesdoReinonãousam.Os deputados ofenderam-se, ou ingiram ofender-se, e foi umttunultono Parlamento. A moção que pedia a discussão do assunto nasCâmarasfoi vencida por tuna margem pequena, mas ica um mal-estarimenso.

PaláciodeBuckingham,28dejaneirode1850

PaláciodasNecessidades,10defevereirode1850

ernando,comoéqueépossívelqueestapolémicadureháquaseummês?EsabequeméqueselevantounaCâmaradosParesapedirjustificaçõesaCabral?Saldanha.Nãobastavaacartaabertaquemandoupublicar,emque,apretextodeatacarCabral,mecondenaamim,comoagora,sabendocomoonomedarainhaestáenxovalhadoaquieláfora,éelequeselevantaapedirexplicações,adeitarmaisachasparaafogueira?

Fernandoacenavacomacabeça,preocupado.SereprovaraainsensatezdarespostadeCabralaojornalinglês,se icarazangadocom aformacomoa mulher lhe escondera o assunto, não podia estar deacordo quetransformassemumerrodeumministronumerrodarainha.ESaldanhadeviamaislealdadeàcoroa.

- Vou demiti-lo de mordomo-mor! Está decidido, não merece o cargo -insistiuMaria.

Fernandoprotestou:

-AsuadecisãovaiserinterpretadacomomaisapoioaocondedeTomar,que...

-Emuitobem!Porqueéissomesmoqueé.Ouachaquevoudeixarqueumsoldadoambiciosocometaumatamanhainjustiça,umhomemqueestáaomeuserviçoesevoltacontramim...

- Contra si, não, contra o seu ministro, contra um político é uma coisadiferente, e convenhamos, Maria, as acusações merecem, nomínimo, serinvestigadas.

Arainhavirou-separaomarido,vermelhadefúria:

-Nãovaicomeçar,poisnão?Estádecidido.Escrevotrêslinhasa demiti-

lo,nãomais,paraqueentendaquesequisermandá-lopara Sintrapastarvacas,tenhopoderesparaisso.

Fernando viu-a sair disparada para a sua sala de trabalho e deixou-secair na cadeira. Que falta lhe fazia o primo Alex, Dietz, gente comquempudesse conversar e trocar ideias. Sobrava-lhe o embaixador Seymour, emandá-lo-iachamarhojeàtarde,semquearainhadesseporisso...

Saldanha escreveu a Palmerston e a todos os seus amigos ingleses,certamente para que algiun delesme izesse saber o que pensa de tudoisto. Julgo que nunca imaginou que a rainha chegasse a este ponto,eprotesta, com razão, que esta demissão é ilegal, já que o cargo demordomo-mor é vitalício, e por méritos passados, não sendo passíveldeserretiradoassim.Aliás,nuncaantesnaHistóriadePortugalo foi.Comoéque o próprio conde de Tomar, já que Maria não parece ouvir maisninguém, não a aconselha a sermais ponderada, a inal éum homem dasleis, tem a obrigação de lhe dizer que não faca coisasde que se virá aarrepender. Mas nisso Cabral e Maria são parecidos, igualmenteobsessivosnosseusódios.AargumentaçãoqueSaldanhavaiusarcontraarainha é correta: o título só lhe poderia ser retirado se tivesse cometidotuncrime,esetivessecometidounicrimeteriaodireito,enquantomilitar,ajulgamentonumtribunalmarcial.Masnadadistoaconteceu.

Albert já escreveu a Fernando, mas não faço ideia de como a rainhapodevoltaratrás.Eparaafrentesóvejooprecipício.

Espero que, apesar de tudo, Saldanha seja su icientemente honradoparanãosealiarcomaquelesquelhevãopedirparausarapopularidadedequegozanoExércitopara levararainhaaabdicaremfavor dePedro.QuemcontinuaimpassíveléCostaCabral.Umamonarquia assiunidamenteabsolutanãoseriamaisabsoluta.

PaláciodeBuckingham,15defevereirode1850

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PaláciodasNecessidades,10demarçode1850

arfadeuobraçoàmanaXica:

- Tenho de andar muito a pé, são ordens dos médicos, mas canso-medepressa,edói-meaqui-disseapontandoparaopeito.

Francisca parou, preocupada. Estava a par de todo o escândalo queenvolveraarainhaeovalido.

- Maria, a mamãe não foi assim acusada, quando icou regente eBonifáciodeAndradaeraoministro?

Mariasentiuosanguesubir-lheaorosto:

- Julga que nãome lembro disso todos os dias, julga que não abominoaindamaisestasinsinuaçõesporisso?AindamelembrodecomoBonifáciome abraçou no dia da morte da mamãe, como me olhavasempre, tãocúmplice,tãoamigo.

Xicaafagavaobraçodairmãcomternura:

-Mana,nãoseagitequelhefazmal.

-Mal?Mal faz-melembrarcomoaspessoassãodesleaisecobardes. Dequem é que o papai se voltou a lembrar quando precisou de alguém decon iança para entregar os ilhos na noite da fuga, para nomear tutor doPedro?Pelomenos,Fernandonãoécomoopapai-desabafou.

Xicaencostouacabeçaaoombrodairmã,enquantocaminhavam:

- Mas este Costa Cabral é José Bonifácio, mana? É que dizem tantascoisasdele

Mariaempalideceu:

- Insinuações ementiras. Fez negócios, quemal tem enriquecer? Sabe,Xica,aquiosaristocratassóligamaosangue,falta-lhestervividonoBrasil.

Franciscaprocuroumudardeassunto.Eraprecisodistraí-lada política.Ficara chocada com a obesidade da rainha, diziam-lhe que quanto maisagitada, mais comia, e os vestidos largos e de mau corte,amarrotados ecom nódoas, eram resultado de uma cabeça demasiado tomada pelasguerrasdosseusministros...

Mariavirouosolhosaoscéus:

- Xica, por amor de Deus, não vai começar a olhar para o gosto dovestidoouparaasnódoas,poisnão?Éaminharoupade trazerpor casa.Comcriançassempreaocoloealimparemassuasmãossujas debolachasoudeterraaoquetenhonocorpo,ouquerqueandepara aquiemsedasechiffons?

Airmãdeu-lheumbeijoapressado,enegou:

- Que disparate, estava era preocupada com as dores no peito, serácoração? Venho para aqui parame tratar, e a inal quem está doente é amanaMaria.

Mariaencolheuosombros:

-Nãomeadmiranadaquesejacoração,comasafliçõesqueestepaísmedá!NadacomparadocomoqueFrança fezaosseusreis, coitadadesi,doseumaridoedosseusfilhos,masnãovamosfalardetristezas.

Mariasentou-senasuacadeirafavorita,viradaparaoTejo.Aindaestavademasiadofrioparaabrirasportasparaoterraço,masocéuestavaazul.DepoisdeumamanhãapassearpelaTapada,fechara-senasuasaladetrabalhocomFernandoparacumpriroqueplaneava:autorizarademissãodetodososcargosqueomarechalSaldanhaaindaocupava.Objetivamente,eraFernandoqueagoraodispensavadeajudantedecampo,edoSupremoTribunaldejustiçaMilitar,eoreipegounapenaváriasvezes,massóparalogoapousar.

-Fazemosbem?

Mariacontestou,zangada:

-Aindapergunta?Depoisdetudooquesetempassado?Ouviuoqueoconde de Tomar contou do que ele disse nas Cortes? O senhor, que seindignoutantocomaqueledesmentidoqueCabral fezao jornal inglês, vaideixarqueohomemquepreparouanotíciaquelhedeu origemandeporaíadizerquetemasuacon iança?Comoseoreiconcordassecomoquediz,comainsinuaçãodequeémeuvalido?

O rei icou pálido, tal a raiva contida. Eram, de facto, inacreditáveis asintrigasqueSaldanhaalimentava.

-Seiquetemtodaarazão,minhaquerida,eseioqueatemfeitosofrertudo isto, mas já pensou em como Saldanha vai retaliar? Continua a serextremamente popular, sobretudo junto do Exército, será sensatocontinuaraantagonizá-lodestamaneira?Oembaixadorbritânicoavisou...

Mariaenrubesceudefúria:

- Nemme fale de embaixadores britânicos, nem desse país, Fernando.Queméquepublicouoartigoquedeuorigemaestesarilhotodo?Nãomeadmiranadaquetenhasidoeleaescrevê-lo.

Fernando não conseguiu deixar de rir. Quando Maria decidia tomaralguémdepontanãohavianadaafazer.Pelomenosporenquanto. Pegounovamentenapena,molhou-anotinteiro,eassinou.

Diasdepoisodecretoerapublicado,eSaldanhatornava-seo icialmentena vítima de uma soberanamal aconselhada, e de um soberano que nãoencontravaforçaparaselheopor.Oduqueesfregouasmãos decontente.«Queosjogoscomecem»,disseasimesmo.

Depois do jantar em família, com a alegria de ter os Joinville àmesa,depoisdeumanoitede cartas,pianoemúsica, equebem tocavapiano eviolinooseuqueridoLipipi,ocriadoentraracomumacarta,numabandejadeprata.

Marialevantaraosolhos,nervosa,paraorostodeFernando.Seria jádeSaldanha?

Olacrequefechavaoenvelopenãoeraodomarechal.

- É da marquesa de Ponta Delgada, de Leonor da Câmara, lembras-tedela, Xica, ou eras muito pequenina na altura? Já tem 71 anos, mas estáótima-comentou,animada.

Masaoleroquedizia,umasombradesceusobreoseurosto.

-Morreu.Nemsabiaqueestavadoente-disseengolindoemseco.

Agora, deitada na cama, sentia di iculdade em adormecer. Há quantotemponãoviaamulherquededicaratantosanosdasuavidaaensiná-la,protegê-la, guardá-la, e que tão injustamente o pai afastara da corte?Tanto, quenemera capazde apontar umadata.Mordeuo lábio, zangadaconsigo mesma. Quantas vezes prometera a si mesma não ser daquelaspessoas que usam os outros e depois os esquecem. E Saldanha? «Nãomistures as coisas», disse a simesma, zangada.Ouviuaporta ranger, eocorpodeFernandoencostar-seaoseu.Deixou-seabraçar,agradecida.

Convideiosdoispríncipesportuguesesmaisvelhosaviajarcomosmeusno Roval Yacht, mas Maria recusou. Diz que não podem afastar-se tantotempo dos estudos, que são pequenos de mais para saírem de casa, eargumenta,eaídou-lhealgumarazão,queoseupequenomarinheironãodeve embarcar num barco britânico antes de o fazer num português,pergunto-me é porque é que ainda não o fez em Portugal...De qualquermodo, Pedro vai fazer 13 anos, Luís 12 anos, e Maria comesta idade jáatravessara quatro vezes o Atlântico. Tenho pena, porque acredito queestaviagemseriaimportanteparaospequenos...

Entretanto, têm lá estado os Joinville, e agora é Clem e Augusto quepassampor láacaminhodeSevilha,eembreveserãoosNemours.Mariatemavantagemdelheserpossível icaremcasa,porquetodaagente lhebate à porta. E com estas pequenas coisas que percebemos o interesseancestraldosbritânicosnumportodepassagemcomoLisboa.

Não sei se foipor lhe ter escritoa falar emviagens,masMariacontou-

meumahistóriaquemeemocionou.Dizquepasseavano jardimdaPena,quando pressentiu, como nuns sonho, que eu estava comela, e juntascomentávamosasplantaseas lores,debaixodeuru céu azul tranquilo epuro. Comove-me ser assim parte da sua vida, comoela é da minha, etenho pena de não ser como ica ou como a Clero epoder apanhar unibarcoeaparecerdesurpresa.

Quantoàpolíticaportuguesa,diz-mequeestátudobem,maséclaroquenãoestá, enãoacreditoquenãoo saiba.Onossoembaixador temestadocom Saldanha e diz que o marechal está fora de si de fúria, que umavaidadecomoaquelanãosuportaashumilhaçõescomoasquetemsofrido.Sevmour está convicto de que vai encabeçar tunarevolta, e o país queodeia Costa Cabral estará disposto a secundá-la. Ao que parece, como seprevia, já recebeu propostas de gente que está disposta a inanciar ummovimento que deponha a rainha e a substituapelo príncipe real. Sãotempos perigosos, como o exemplo de França testemunha, e Maria eFernandoescolhemsempreocaminhoqueoslevapelofiodanavalha.

PaláciodeBuckingham,15demarçode1850

PaçoRealdeSintra,5dejunhode1850

ernandoentrounoquarto,pálido.Aos35anos,continuavaumhomemlindo,ocabeloloirosemumamadeixaforadosítio,aspatilhaslongasearruivadas,osolhosmuitoazuis,pensouMaria,satisfeita.Casarabem,eescolheraomelhorpaiparaosseusfilhos,queeramtodostãobonitoscomoele.Aos31anos,estavabemmais«estragada»doqueele,masrestava-lheaconsolaçãodequesacrificaraocorpoadar-lheoitocriançasmaravilhosas,cincorapazesaindaporcima,emaisestequetraziaagoradentrodesi.

Bateucomamãonocolchão,pedindo-lhequesesentasseaoseulado:

-Quecaraéessa,senhorD.Fernando?-perguntou.

-OsjornaisdehojedãonotíciadequeVitóriafoivítimadeumatentado.

Mariasentou-senacama,aflita:

-Vítima?Vítimacomo,Fernando?Morreu?

-Não,fezsóumferimentonacabeça,estábem,maséhorrível.Emplenacidade de Londres, um louco, ex-o icial do Exército ao que parece, saltouparacimadacarruagemebateu-lhecomumcassetete.

-Bateunarainha? -Maria tapouaboca,horrorizada. -Masonde chegaestemundo,Fernando?FoiarevoluçãoemFrança,agoraisto,aimeuDeus,tenhode lhe escrever imediatamente... Bemmedizia elaque só se sentiaseguralongedacidade.

Fernandobeijou-a:

-Digoomesmo!ComomesintomelhoraquidoqueemLisboa.Nãoquerir comigo à Pena?As obras já estão quase a acabar, temos de começar apensaremmobilarosquartos,emdecorarassalas.

Maria deixou-se encostar ao seu peito. Que bom era quando Fernandoestava feliz e escolhiam os dois os objetos, os quadros, os tecidos dascortinasaencomendar.

-Sempreémaisdivertidodoquecomprar lanelas,sapatosebotas. Seispares de botas gastou o Pedro este ano, com o pé sempre a crescer! Aomenososquadrosficamquietosnasparedes-disse,arir.

Soubehojequeo tribunalcondenouo loucoquemeatingiuaseteanosdetrabalhosforçados.ConcordocomMaria,quandoelamediz quesenãosetivessecomprovadoqueeradoentemental,aindamais assustadorseriaparamim,paratodosnós.Escrevequeadmiraa minhacoragem.Coragemtemela,comtudoaquiloporquetempassado,edizem-mequeapesardesesaber insultadapelos jornais,deemtodasasesquinas se insinuarquemantém tuna relação imprópria com oministro, e de a acusarem de darcoberturaaoseuenriquecimentoilícito,vaiparaoPasseioPúblicocomascrianças à volta, e ali ica abordar ou a fazermalha, provavelmente unicasaquinhooutunatoucaparaumdosmeus ilhos,queacabeidereceberuniaquemeenviouparaArthur.QuandolhedeianotíciadamortedesirRobert Peel,aproveitou imediatamente parame dizer se numa nação dotamanhodo Reino Unido é di ícil encontrar homens de caráter, queimagineadi iculdadedelaemfazeromesmontunpaístãopequeno!Dar-lh e - iarazão se não conhecesse Palmela, que tem desprezadocompletamenteembene íciodeumhomemcomoCabral.Masqueseieu?Écontramimqueosloucosatentam.

Decididamente, sóMariaparame fazer rir. Escreve: «Não compreendonadadagravidezdarainhaIsabeldeEspanha. Jáestáno 11.°mês,quaseuniano,mastusabesqueemterradosnossosvizinhostodasascoisastêmuniladorisível.»LialtoaAlbert,queficoumeiahoraarir.

CastelodeBalmoral,25dejunhode1850

PaláciodeMafra,10desetembrode1850

arfaodiavaestecalor.«SeráqueestamosemÁfrica?»,protestava,enquantomandavaabrirportasejanelasnatentativadeconseguirumacorrentedear.Abarrigacrescia,maseraafaltadenotíciasdeCostaCabralqueaindispunhadestamaneira.ApesardosapelosdosseusministrosparaquevoltasseaLisboa,ondeapolíticaaqueciaàmedidadatemperaturaqueostermómetrosmarcavam,ocondedeTomarpareciadeterminadoamanter-selongedaquilotudo.Escrevera-lheváriasvezes,adar-lheânimo,ainsistirquenãodesistisse,massentia-odesanimado.Oquefariaseaabandonasse?QueméquegovernavaopaíscontraSaldanha,queatodososdiasaindignavamais?EmSintrarecusara-seairondequerqueomarechalfosse,eatéevitavaajaneladeondeseviaaQuintadoSaldanha.«TãoloucocomooqueatentoucontraVitória!DeveseroExércitoquelhesdáavoltaàcabeça»,murmuravaparasimesma,fechandoasportadascomforça.

Abanando-se com um leque, mudou-se para a sua escrivaninhaecomeçouaescreveraClem,aquemtinhadedarospêsamespelamortedamãe, a pobre rainha de França que acabara de falecer no exílio emInglaterra,edepoisaVitória,para lhecontarosúltimos êxitosdePedroeLipipi. A Vitória, escreveu «devias ver como Pedro e Lipipi seimortalizaramnacaça,matandocadaumdelesdoisgamos,algunscoelhosepombosselvagens,imaginaoprazer,estavamloucos dealegria».Pousoua pena. Pobre Pedro, bem podia entreter-se a caçar enquanto podia,porquemais dia,menos dia, herdaria este trono, este peso! Esperava tertudoresolvido,opaísemordem,quandoessediachegasse.

Voltou à carta: «Toda a minha trupe se porta muito bem, embora umpouco abatida pelo horrível calor,mas encantada por começar os banhosdomar,eutambémostomareiporordensdomédico.»Ecom oregressoaLisboa,esperavaoregressodocondedeTomar,pensoumasnãoescreveu.

Continuamos em Balinoral. Albert está tão encantado com estecastelo,aqui no meio de nada, onde podemos passear sem ver vivalinadurantehoras, que agora quer comprá-lo, para o remodelar e fazer obras,inspirado certamente nos relatos entusiasmados de Fernando e o seuPaláciodaPena,masmunaversãomaissóbria,digoeu.

Ontem juntei as crianças nas escadas, para qne fossem retratadas, deVicky a Arthnr, doze anos de diferença, sete ilhos, Albert olhou-me comuniarsatisfeito,esatisfeitodeveestar,porquelhedeiafamília nuunerosaquetodosqueriam.

Mas não é por estarmos aqui que a rotina dos dias é mais lexível.Acreditoqueéprecisomanteroshorárioscertoseorigordas lições. NãoconfessoaMaria,masBertienãotemnadadoseuPedro.Detestaos livros,distrai-se com facilidade, tem di iculdades na ortogra ia, e prefere osdesportosaoarlivreatudooresto.Albertdizqueexagero naquantidadedevezesque lhedigoparaseguiroexemplodasua irmãmaisvelha,masseéverdade?Nofundo,temoquesepareçauun diacomosmeustios,quegastaram o tempo e a fortuna em vidas semsentido, de festa em festa,passando do copo de brandy para o cálice de vinho do Porto, sem teremfeito nada que valesse a pena. Nesse sentido,agradeço àminhamãe ter-medadoumaeducaçãomuitodiferente,nãomedeixandosequerconvivermuitocomeles.Hácoisasquesóquandosomosmaisvelhosagradecemosaos nossos pais. Espero queVicky, Bertie e todos os outros, um dia,tambémreconheçamaminhaseveridadecomoumacoisaboa.

CastelodeBalinoral,10desetembrode1850

PaláciodasNecessidades,12deoutubrode1850

senhorduquedePalmela»,anunciouovelhocriadocomavoztrémulapelaemoção,eMarialevantou-separareceberDomingos,onovoduquedePalmela.

-Morreuempaz?-perguntou-lheMaria.Domingosanuiucomacabeça:

- Apanhou uma pneumonia dupla, quando chegou de Paris, nãohavianadaafazer.

A rainha pediu-lhe que se sentasse. Chegava agora do Cemitério dosPrazeres,ondeocorpodosenhorD.PedrodeSousaHolstein,1.°duquedePalmela, fora depositado ao lado da mulher, um cemitério bonito, tantoquantooscemitériosopodemser,pensouMaria.

Há meses a io que não falava com o duque, anos até, e com muitafranquezaachavaqueatinhatraído,incapazdesedeter irmeaseu lado,semprecomosseusconciliábuloscomosembaixadoresbritânicos.Diziam-lhe que até a Vitória escrevia, talvez fosse ele a fonte detantasmentirasqueaamigalherepetiacomoverdades.

Domingosolhavaparaasmãos,quetorciaumanaoutra.

- Não tinha a quem dar os meus pêsames, exceto a si - disse-lhe.Domingosagradeceu.Portodaacidadesefalavanaausênciadarainhanofuneral do seu maior homem de Estado, dizia-se que nem umcartãoenviara,enemsequeroreicomparecera.

Mariaroeuasunhas,angustiada,masDomingospoupou-aaexplicações:

-EueosmeusirmãossabemosqueasenhoraD.Mariatinhaomeupaina maior estima, que não esqueceu tudo o que ele fez pelosenhor D.Pedro,tudooquefezporsi.

A rainha assentiu com a cabeça, com vontade de acrescentar quetambémnãoerapoucooqueelatinhafeitoporele,aavaliarpelafortunaetítulosqueagoraDomingosherdava.Mas conteve-se.Não era alturapararancores,queDeusotivessenasuapaz.

Palinela morreu, pobre homem. Maria escreveu a dar-me a notícia. 0nossoembaixadorcontaqueestãotodosmuitochocadoscomosilênciodarainhaperanteamortedestehomemqueaserviutodaavida.

Não sei o que se passa, porque a mim conta-me como esta morte lheprovocou imensa, imensa pena, e como lamenta a falta que fará a toda afamília.Custa-metantoentendercomoestasuaformaimplacáveldeserseconciliacomocarátergenerosoquesemdúvidatem.Eentendomalasuaincapacidadedepôrdeladorancorespessoais,quandoo deverdeEstadoassimoexige.Nãofazsentido,masvoutransmitiraoembaixadorquepelomenosàrainhadeInglaterradeunotadasua dor,paraqueele«espalhe»a notícia, procurando de algtuna forma controlar os danos do seucomportamentoinsensato.

PaláciodeBuckingham,19deoutubrode1850

PaláciodasNecessidades,15dedezembrode1850

uístocavaumasonatadeChopinnopianoqueamãelhederanosanos,eosmaispequenosbrincavamàvoltadarainha,ansiosospormaisumNatal.ParaGusty,agoracom3anos,seriaoprimeirocomidadeparaapreciaraárvoreiluminada,eopequeninoFernando,tãocrescidoparaosseus5anos,perguntava-lheconstantemente,numamisturademedoeexcitação,seoSãoNicolaulhetrariabrinquedosnoseusacogrande.Oanopassado,pensouMaria,afagando-lheocabeloloiro,opobrepequenomorrerademedoquandoviraohomemdebarbasentrarnasala,correndoparadebaixodeumamesaparaseesconder,paradivertimentodosmanosmaisvelhos,queotinhamcumprimentadosemsedesmancharem.DesconfiavaqueMariaAna,com7anos,jáperceberaqueeraopai,masninguémqueriaestragaramagiadestedia,eacertezadeque,sedescobrisseaverdade,Tonicaficariatriste,erasuficienteparacontrolaralínguadamanagrande.

Quando o rosto do conde de Tomar surgiu à porta, Maria sentiu ocoraçãoacelerar:

- Bem-vindo, senhor conde, há quantos dias não o via - acenou-lhe,indicando-lheacadeiraemfrenteàsua.

- Fernando, tire os seusbrinquedosdaí - disse ao ilhoquepousara ossoldadinhosdechumboemcimadoassentoestofado.

OcondedeTomarfoidistribuindofestasesorrisos.Conhecia-osatodosmuitobem,eascriançasnãoestranhavamassuasvisitas.

- Vinha aqui despedir-me de VossaMajestade, porque, como lhe disse,voupassarasfestasaTomar-disse-lhe.

Maria olhou a expressão cansada do seu ministro. Também não aadmirava nada que estivesse exausto, sempre fechado no seu gabinete a

trabalharpeloprogressodopaís.Derepente,ocorreu-lheumaideia:

-Sabeoqueprecisava?Deumacasadecampomaispróxima deLisboa.EsefosseparaaQuintadoAlfeite,dequegostoutantoquantoláfoivisitarapropriedade?

Costa Cabral recusou a ideia, que disparate, disse, isso é que seriabonito, que a rainha emprestasse ou alugasse ao seu detestadoministroumaquintaqueestavadestinadaaolazerdacoroa.

Tocara-lhe no ponto sensível, e o conde de Tomar sabia-o bem. Mariasentiu-sedesafiada:

-Daquiloquemepertencedecidoeu,eraoquefaltava.Paraque équeaquilo ica para ali ao abandono? Os cofres não precisam de dinheiro?Então,osenhoralugaaquinta,porumpreçobaixo,epor umtempolongo,nãoseioqueéusualnestascoisas...

Tomarfezumarcontristado:

- Bem, os contratos habitualmente são por noventa e nove anos,mas épossívelestabeleceroprazoqueseentender.

AMariapareciamuitobemosnoventaenoveanos.Paramobilar acasa,investirnosterrenos,faziasentidoumperíodogrande.

-Olhe,éomeupresentedeNatalparasi-disse,visivelmentesatisfeita.-Eaquimaispróximo,podemosvisitá-locommaisfacilidade.

CostaCabralsaiudopaçosatisfeito.Amanhãmesmoiriadenovovisitaro Alfeite. Parecia-lhe um presente justo, dado a um homem cuja únicamissãonavidaeraservirarainha.

QuandoamulherlhecontouopresentedeNatalqueofereceraaocondedeTomar,Fernandofranziuosobrolho.

-Nãomevai dizer quedevíamosmodi icar o nosso comportamento, sóporcausadaquelaescandaleiradojornalinglês?

Rindocomvontade,acrescentou:

-Receiaquedigamque éumninhode amor?A rainha grávidade oitomeses, com esta catrefada de ilhos agarrados às saias... Poupe-me,Fernando.

Oreideixou-secontagiarpeloriso:

- De facto, não podemos deixar de ser agradecidos para quem nosmerecegratidão-disse.Tentavaqueasuaavaliaçãofossejusta, edefactoo Exército inalmente entrara na ordem, os ordenados dos empregadospúblicos eram pagos, e os tribunais funcionavam.Se Maria lhe queriaarrendar o Alfeite, que arrendasse, sempre era melhor do que deixaraquiloaoabandono.

Não quero acreditar que Maria e Fernando tenham cometido ainconsciência de alugar uma propriedade da coroa ao conde de Tomar.QuandooAlbertmeleuanotíciadoMorningChronicle iqueiaolharparaeleincrédula-éclaroqueojornal,depoisdoescândalo dacaleche,nuncamaisvailargarCostaCabral,aindaporcincaporqueotribunalnemsequerobrigou à publicação de um pedido de desculpas, mas não é o unico apegar no assunto. Novas do embaixadorchegaram logo depois. Portugalestádenovoaorubro.Aoposição,quenestemomentoéopaísinteiro,nãovaideixarqueistopasseembranco.

Quando recebi tuna carta deMaria, julguei que se ia justi icar, ou pelomenos dar conta da agitação instalada. Ainda alimento estasesperanças,como se não a conhecesse como a conheço. Nem menção aoAlfeite, equanto ao clima nacional, garante-me que «tudo está em pazabsoluta».Porque age assim quando sabe, perfeitamente, que temosinformaçõesconstantes de Lisboa? Ou será que realmente não conhece a realidade?Albert diz que Fernando lhe tem escondido os jornais,porque não querquesea lijanestemêsantesdoGrandeMomento.Masnãoacredito.Mariareúne-secomosministros,comoConselho deEstado,enestamesmacartareferecomoSaldanhasetemaliado àoposição,sabetudooquefazedeixade fazer, como é possível que não saiba da agitação nas Câmaras, quetiveram de ser evacuadas, porcausa de toda a agitação em torno do

Alfeite?

Não me diz porque não quer ouvir os meus comentários. E quantoaopaís, suspeito que quer levar ao limite a provocação. Quer que todossaibamquearainhadePortugalfazoquelhedánacabeça,pontofinal.

Só que, apesar de todos estes disparates, continuo a preocupar-me,preocupo-me com ela e sobretudo com o bebé. O tio Leopoldo estáconvencidodequeelanãoestábemdesaúde,eaNicacontou-mequesequeixamuitodocoração.

CastelodeWindsor,18dedezembrode1850

PaláciodasNecessidades,3defevereirode1851

arfaembalouapequeninaMariadaGlórianosbraços,antesdeaentregaraomédico.OseurostorígidoesemexpressãocontrastavacomodeFernando,que,detãodestroçado,nemsequertentavaenxugaraslágrimasquelhecaíampelacara.Comumavozfirme,perguntou:

-Étãobonita,tãobonita,etãoforte.Porquê,senhorDr.Kessler, porqueéqueistoaconteceu?

Omédico alemão olhava para os outros doismédicos que o ladeavam,comoquepedindoajuda.EfoioDr.SoaresFranco,dequem Mariagostavatanto,queseatreveuaumaexplicação:

-Foiumpartolongo,talvezabebénãotenharecebidooxigénio durantetempodemais-disse-lhe,comtodaagentilezadomundo.

Maria prendeu o olhar no in inito, como se estivesse a observar atextura do tecido que forrava a parede do quarto, como se não estivesseali.Derepente,reagiu:

- Morreu porque foi essa a vontade de Deus, porque eu, eu iz tudo oque os senhores me recomendaram - disse, como que pondo um pontofinalnoassunto.

NessefimdetarderecebeuavisitadePedro.Napenumbradoquarto,oseufilhomaisvelhopareciaaindamaispálidodoqueohabitual,ratodebibliotecaquenãoapanhasol,comolhediziatantasvezes,carinhosamente.Oprínciperecusou-seasentar,epareciadesejosodesairdali:

-Pedro,acoitadinhadasuairmãiareceberonomedamãe,sabia?

Pedrodissequesim,masnãoacrescentoumaisnada.

-Lembra-sedecomolhefaleidaIgrejadaSenhoradaGlória,no Riode

janeiro?

O príncipe deixou que os cantos da boca subissem na ameaça deumsorriso,masaexpressãomanteve-seséria.

-Tenhomuitapenadamana,maspodiatersidopior,mãe,podiatersidoa mãe a morrer - desabafou, e o tom era de censura. Só faltava que arecriminassepordormircomopai,pensouarainha.

-Dequeladoéqueomeninoestá?NãomedigaquesealiouaLavradioeaSaldanha,equerver-me foradocaminho...Bemmecontamquesãoafavordequesejaorei.

Pedrocorou,zangado:

-Não tenhonadaa ver comesses senhores, enãoacreditoqueo povoqueiraqueasenhoraabdique,mas...

Mariafezumsinaldedesprezocomamão:

-Claroqueopovonãoquercorrercomigo,Pedro,issosãoinvençõesdomarechal e dos meus inimigos. Veja lá se o conde de Tomar lhe conta amesmacoisa?Nãoconta...

Pedroinsistiu:

-Masnãomeparece...

Mariainterrompeu-o,altiva:

-QueomeninosecorrespondacomAlbert,achomuitobem,eaprendacom ele tudo sobre a indústria, as linhas de caminho de ferro, e essascoisas todas, mas não se lhe meta na cabeça que sabe mais doque osministrosdoreino,ouqueasuamãeeoseupai!

Pedromordeuolábio,esforçando-separanãochorar:

-Masopaiestavaadizer istomesmoaoembaixador inglês -dissesemseconter.

Maria,desconfiada,retorquiu:

- Outra vez a escutar às portas? O senhor D. Pedro precisa de lavarmelhorosouvidos, e agoradesandedaquipara fora, e estejadescansadoqueamãenãomorre...

Pedro saiu como coraçãopesado.Não sabia emquemdevia acreditar.QuefaltalhefaziaDietz.

-QueroumamissapelaalmadeMariadaGlória-decretouMaria,dandoordemaumadascamareirasparaquefosseavisaropadre.Passaraumasemanadesdeamortedapequenina,earainhajáselevantavahádoisdias.

-Lurdes,leva-meaVirgemparaacapela,queroqueaminha padroeiraedaminhafilhaestejanaigreja.

Virando-separaumaoutradassuasdamas,ordenou:

-Aviseosprofessoreseasamasdascrianças.Quero-asvestidas paraamissa,edigaaosmestresdePedroquepoucome importaque o príncipedigaquenãopodeinterromperosestudos.

Nesse im de tarde, o rei, a rainha, Pedro e Luís, João, Maria Ana,Amónia, Fernando eAugusto sentaram-se nos bancos da frente da Igrejadas Necessidades. Maria olhou-os com orgulho. Que Deus lhelevasse osrecém-nascidos, era triste, mas se fosse a moeda de troca para não lhelevarosgrandes,estavadispostaaaceitá-la.

FiqueiestarrecidacomamortedapequeninaMaria.Fernando pareceu-memuitoabatidonacartaqueescreveuaAlbert,ejulgoquetemeudetalmaneiraperderamulherquesó falaemcomoébomvê-la restabelecida.DepoisrecebiacartadeMaria,escritaquinzediasapósonascimento,eapobre sente a necessidadede se justi icar, garantindo-meque se consolacomacertezadequenãocometeuqualquerimprudênciaeobedeceu,emtudo,àsordensdosmédicos.PobreMaria,comosetivéssemosculpadestastragédias. Assusta-me é que diga queestá ótimaenunca se restabeleceutão depressa, porque temo que volte a engravidar, e de facto três bebés

mortos à nascença, e dois de seguida,são avisos a que é preciso prestaratenção.Eu,quetantomequeixodospartos,equenãoqueriatunafamílianumerosa e já vounomeusétimo ilho,nãosereiexemploparaninguém.Depoisdeterlidoumasnotíciasnosjornaissobreumnovoanestésico,pediaosmeusmédicosqueme informassemde tudo.Pediram-me tempoparasabermais,masresta-mea esperançadequea ciência tenhadescobertouma forma dealiviar estesmomentos tão dolorosos. Tudo o que souber,partilhareicomasminhasprimas...

Albert jáestáàminhaespera.Nãomepossoesquecerde lhedizerqueagradeça a Fernando os mármores que nos mandaram de Portugal. Sãomagní icos, eestamosapensarusá-losnas remodelaçõesdeBuckingham.Mariapergtuita-meoqueacheideles,einsistequesãoaprovadequeemPortugal não estão tão atrasados comoos fazemos. Se o país pudesse terpolíticos da mesma qualidade do que as suaspedras, de certeza quePortugalsósaíaaganhar!Tenhodeir...

AcaminhodobaileemcasadelordArcher,Albertcontou-metunahistóriamuitodiferentedadeMaria.Jádeviasaberquequandoelafaladosfilhos,dosmármores,edotempo,edizqueacenapolíticaestácalma,éporquetunatempestadeseavizinha.Seacrescentaque«depolíticaescreveoFernando»,entãoéporqueestámetidaatéaopescoçonaconspiração.Querconvencer-nosqueéapenasmãeedonadecasa,equeéoreiquetomatodasasdecisões,maséamaiordasmentiras.

Albert veio com uma história muito mais grave. 0 nosso embaixadorconta como teve tuna grande conversa com o rei, que estava sozinhoapenas porque a rainha estava con inada aos seus aposentos depois doparto, emqueFernando lhe con idenciouuni enormedesconforto comasinformações que lhes chegavam de uni plano revolucionário para fazercair oministérioCabral, e emque, comoé evidente, omarechal Saldanhaestava envolvido. Ao que parece, o golpe não aconteceuainda, o que, naopinião do embaixador, signi ica que o conde de Tomar continua a terespiõesemtodoolado,etunadeterminaçãoquefazcederaoposição.AtélordPalmerstondizagoraquePortugalnão vailácomarainha.Nãoquerocrer,mas tenhodeconfessarqueme parecequeelaesticoudemasiadoacorda. Como é que é possível continuar a sustentar um homem que éodiadopelopaísinteiro?

Como acabei de escrever ao tio Leopoldo, que triste é tudo isto.Fernando e Maria são de facto insensatos. Privarem Saldanha todos osseuscargos,emvirtudedasuacondutantunParlamentoquesedizlivre,éunia nova machadada na imagem interna e externa de Portugal.Sejuntarmosaistoasinsinuaçõesdequeháuni«caso»entreMariaeocondede Tomar, tudo se torna perfeitamente trágico, e suspeito queirremediável.

CastelodeWindsor,18defevereirode1851

PaláciodasNecessidades,7deabrilde1851

aldanhacomeçouaguerra-dissePedro,solene,aosentar-separaalmoçar.

Amãefulminou-ocomosolhos:

-Eondeéqueouviuisso?

-Nascocheiras.PartiuparaSintrae...

-Euseimuitobemparaondepartiu,eporquepartiu,queriaera sabercomoéqueomeninosabia...

Fernandoestendeuobraço,cobrindoamãodarainhacomasua. Mariarespiroufundo,edeixouomaridocontinuar:

- Há uma sublevação militar, mas não acredito que se torne numaguerra...dequalquerforma,voupartircomoExército.

Pedro e Luís olharam-no, espantados. O pai montava como ninguém,caçavacomonenhumoutro,maspartircomoExército?

Fernandofezumaexpressãodedesagrado:

-Nãofazmuitoomeugénero,eusei,massoucomandante-chefe, tenhodesereuasair...

Mariaolhava-ocomorgulho:

-Opainãodeixaqueosenhorduquenoscomaaspapasnacabeça!Vaiterdi iculdadeemencontrarregimentosquetomemoseupartido, quandosesouberqueéparalutarcontraorei.

Fernandonãopareciatãocertodisso:

- Esperemos que não, esperemos que tudo isto ique só entre nós eSaldanha,queosliberaisnãoselhejuntem...

-Ouopovodescontente-dissePedro,comsobranceria.

-Eoqueéqueomeninosabedopovodescontente?-irritou-sedenovoMaria.

Pedronãorecuou:

- Sei que Saldanha é um vaidosão, que se vinga da maneira comofoitratado, e pouco se importa com o que pensam as pessoas, mastambémtenho consciência absoluta de que o povo não gosta do condede Tomar,queachaqueenriqueceuàcustadoscofresdoEstado.

Mariaestavacorada,pareciaumbalãoprestesaexplodir:

-Eraoqueme faltava,ouvirosargumentosdaoposiçãoàrainha nestacasa.

Luís, nervoso, puxavaobraçodomano, implorando-lhequemudasse aconversa,masPedronãotiravaosolhosdosolhosdamãe:

-Nãosoucontraarainha,massóqueriaavisarquevamosperder estaguerra,enãoteremosoutroremédiosenãoengoliroSaldanha.

Fernandotentoudeitaráguanafervura:

-OSaldanhaéumpavão,masnãoéumcriminoso,querprovarque foiinjustiçado,vingar-sedoministro,masmaisnada.Seeusairàliça,percebequenãopodecontinuarporestecaminho,epodemosreconciliar-nos.

AgoraeraMariaquegritava:

- Reconciliar-nos? Saldanha é meu inimigo para sempre, não volta aentrar neste paço, ninguém que se chamemeu amigo lhe fala maisumavezqueseja.EFernando,oreisaiparaganharaguerra,nãoéparafazerapaz.

Fernando endireitou as costas. Estava em frente dos seus ilhos, nãopodiacederàmulher,tentouserfirme:

-Saioempaz,Maria.Estepaísjáteveguerrassuficientes.

Mariapegounacolherparacomerasobremesa.Abatalhadomésticaiaser longa, e não valia a pena enfrentá-la de barriga vazia. Espantados, omaridoeosfilhosficaramavê-lacomer.

O inevitável aconteceu, mas não deixa de ser terrível. Maria deu-meanotícia, e está em pânico porque Fernando acaba de a deixar paracomandarastropasquepartemcontraSaldanha.Confessa-sedesesperadaezangadadeoverenvolvidomunaguerracivil,masgarantequenãotinhaoutra hipótese, atendendo a que ninguém acreditava que as tropas sebatessemseoreinãofossecomelas.Agoraqueoviupartir,estácheiademedodeque lheaconteçaalgumacoisa,epede-me, inclusive,queaviseopai e os irmãos de Fernando. Conta-mequenão se separoudelemaisdoqueumdia,desdequecasaramháquinzeanos.Éadmirável.

Contudo, a teimosia ultrapassa o amor. Julgo que agora nem é tanto alealdadequesenteparacomCostaCabral,maso seudesejodevingança.Saldanha desa iou-a, e Maria responde, decidida a vencer. E se tiver desacri icaromaridoa essa vingança, estou certadequeo fará.Com pena,massemhesitações.Onossoembaixadorestámuitopreocupado.Partilhada opinião da rainha de que Saldanha é uni pavão, eque julga que arevoluçãocomeçaeacabanele,oque,obviamente,nãoéverdade.OnossohomememLisboasuspeitaqueestaguerrapodecustarotronoaMaria.

PaláciodeBuckingham,9deabrilde1851

PaláciodasNecessidades,10deabrilde1851

condedeTomarfizera-seanunciarlogodemanhã.Tiveraocuidadodeenviarumbilhetesecretoàrainha,perguntando-lheseachavasensatoqueseapresentasse,agoraqueoreiestavafora,easmás-línguasafiadascomonunca,masMarianãohesitara:«Façatudocomonormal.Nãotenhonadaatemer,nemaesconder.»11.11f111

Quando o viu à soleira da porta, fez-lhe um sorriso cansado.Pouco ounadadormirananoiteanterior,porqueosonoerainvadidoporpesadelos,em que via o seu querido Fernando a cair docavalo, atropelado pelacavalariaemgalope,edespertavaalagadaemsuor.

-Estáaíacadeira,àsuaespera-disse-lhe,apontandoparaacadeira depau-santoforradaaazul.

O conde estava impecavelmente vestido, como sempre, o cabelo liso eescorrido penteado para trás, mas também as suas olheiras marcadasdenunciavamapreocupação.

-ApenasdoisregimentossejuntaramaSaldanha-contou-lhe, earainhasentiuumpesoenormesair-lhedosombros.Omarechal nuncadisparariaumabalacontraorei,massabia-lheamúsicatomar conhecimentodequeos soldados não tinham fugido dos seus quartéispara se juntarem aomarechal.

-Eoscivis?Estãoarmados?

CostaCabralinspirou,enchendoopeitodear:

-Nãoestão,não,Majestade.Podemchamar-mede tudo,masdasmuitascoisas boas que iz, uma foi disciplinar o Exército, e retirar as armas aoscivis. E de qualquer forma, Saldanha sabe que o povoarmado é umperigo...

Mariasorriu-lhe:

- Um perigo que se podia voltar contra ele. Tenho a certeza de que opovosabebemtudooqueosenhorministrofazporele,dasestradas aosordenadospagosatempoehoras.

OcondedeTomartossiu:

-Nãocontecomisso,Majestade-disse,fingindomodéstia.

Mariapôs-sedepéeaproximou-sedajanela:

- Tenho a certeza de que isto estará resolvido em dois tempos. Nãodevíamos enviar mais tropas de Lisboa para atacar as posições domarechal?

O ministro esperava a pergunta. Porque era óbvia, e porque tinha arainhaporinteligente.Masaverdadeéquenãopodiapermitirqueatropaqueestavanacapitaldaquisaísse,porquesenãocomo icariaadefesadopaço,asuadefesa?Alémdomais,estavacertodequenenhumsoldadosevoltariacontraSaldanha.OódioquelhetinhanãooimpediadereconhecerqueoprestígiodeSaldanhajuntodastropaseramuitomaiordoqueoseu.

- Por ora não, Vossa Majestade. Vamos ver como correm as coisas. -Depois,beijando-lheamão,disse-lhecomumavozpreocupada:

-Quero que descanse! É preciso que durmaumpouco, porque o reinoprecisadasuarainha.Deixetudocomigo.

Maria sentiu-se mais sossegada. Estava certa de que o seu queridocondedeTomarvelariapelasoberana,amulhereamãe.

Recebi uma carta de Fernando, enviada de Santarém, onde está com oExército. Tem a htunildade de reconhecer que aconteceu aquilo em que,apesardemuitasdenúnciaseavisos,nãoquisacreditar.Embora continuea insistiremqueopaísestavaemcompletapaz,equesetrataapenasde1miatodevingançapessoaldeSaldanha.Seráqueainformaçãonãochega

ao paço? Será que também eu julgo que sei oque se passa nomeu país,neste Império que me foi con iado, e estoualienada da realidade? É porissoque,pormuitoquemedesesperem,continuoalerosjornais.

FernandopõeodedonaferidaquandodesabafaoseumedodequeosliberaisaproveitemaloucuracriminosadeSaldanhaemseufavor,porqueseofizeremestaguerravaidurarmuito,eoresultadoseráimprevisível.

É inimaginável o rei à frente do Exército, como se tivéssemos recuadocem anos no tempo.Mas, pelas descrições de Fernando, Portugal fora deLisboa está de facto um século atrás. Conta-me que os caminhos sãoimpraticáveis,queachuvaea lamaimpedemastropasde avançar,equenemvaleapenafalarnadi iculdadedemoveraartilhariapesada,queseatascanoscarreiros.

Concluo que saem pouco ou nada do paço, exceto para os palácios emredordeLisboa,econhecemmuitomalopaís.OreidizterentendidomaisemdoisdiassobreoPortugalrealdoquenosúltimosdez anos,econfessaque esta incursão o deixa ainda mais indignado como dinheiro que segastanestas«revoluções»,dinheironecessáriopara investirnoprogressodo país, no bem-estar do povo. Vou rezar com as crianças, antes que sedeitem,eteremosFernandoeMariapresentesnasnossasorações.

PaláciodeBuckingham,10deabrilde1851

PaláciodasNecessidades,12deabrilde1851

rainhapediuaoembaixadorbritânicoqueviesseaopaço,erecebeu-ocomcháebolachas.Seymoursorriupelaingenuidadedaarmadilha,masfingiu-seencantado.

-FoiosenhorqueconvenceuocondedeTomaratercomigoa conversaqueaconteceuhojedemanhã?-perguntou-lhe,diretacomosempre.

Oembaixadorolhou-acomgenuínaestupefacção:

-Equeconversafoiessa,Majestade?-perguntou.

- Não se faça de sonso, homem! O conde de Tomar veio dizer-mequeestá disposto a pedir a demissão, porque não quer ser pretexto pararevoluções e desentendimentos. Foi o senhor que o chantageou nestesentido?

OembaixadordeugraçasaDeuspelosanosdeexperiêncianapro issão,quelhepermitiamcontrolaroriso.Sóbrio,franziuosobrolho:

- Não me parece que o senhor conde de Tomar seja uma pessoasuscetível de ser in luenciada seja por quem for, Majestade. Exceto pelarainha-atalhou,comumapontadeironia.

Mariagostoudaalusãoaoseupodersobreoministro:

-Olhequenãonasciontem.Acabodefazer32anos,esourainhadesdeos7anos.Disse-lheounãolhedissequeeraimportantedemitir-se?

Oembaixadordecidiu-sepelafrontalidade:

-Éverdadequeodigo,masdigo-ohápelomenostrêsanos, senhoraD.Maria. Seria muito lisonjeador para mim pensar que essa tal conversaresultoudealgumaqueeupossatertidocomosenhorministro.

Arainharoeuasunhas,procurandoganhartempo.Pousandoobraçonocolo,virouosseusolhosazuisparaoembaixador,edisparou:

-Agradecia-lhequenãovoltasseaaconselhá-lonessesentido,porqueavontadedarainhanãoéessa.

Seymourdobrouacabeçanumavénia.Infelizmente,opaíspareciaestarabsolutamente indiferente à vontade da soberana. E Costa Cabral à sua.Ainda ontem estivera até às nove da noite a procurar convencê-lo ademitir-se.Quetivesse faladonoassuntoàrainha,nãoera decididamentebom sinal, umamanobra para conseguir que a soberana o impedisse deconcretizar a ameaça. Inteligente, este condede Tomar, que, não fosse odiabo tecê-las, ia já dizendo que condicionava a demissão ao im darevolução.

Faziam um belíssimo par, pensou enquanto descia as escadas demármoreeatravessavaoarcoparaaluzdaprimavera,queenchiaoLargodasNecessidades.Fazendodamãoumapalaquetapavaosol,observouoTejo. Ali estava atracada a fragata inglesa, preparada para a fuga dafamíliareal,segundoordensdiretasdarainhaVitória.Domalomenos.

Não reparou, no entanto, que, da janela do primeiro andar, a rainhaseguia os seus passos, e também ela via a esquadra ancorada. Quelevassemaesquadra,quenãotinhaamenorintençãodepartir.

Passam os anos, e continuo a olhar para Maria com um misto dedesespero,comoseolhaparaum ilhoimpetuoso,edeadmiração,pela suacoragem de defender aquilo em que acredita. O embaixador Seymourescreve que a rainha se comporta nestes momentos de crise com tunaserenidade e tuna calma admiráveis. É infatigável, nem sequer se deita,recebe e fala comministros, embaixadores, soldados, decide e planeia. Opioréoquedecideeplaneia!

Seymourparece-medividido:sabequeoseupapeléconvencerocondedeTomarapartir,masreconhecequeaperspetivadever Saldanhacomoprimeiro-ministrolheprovocaagonia.

QuantoàrelaçãodarainhacomCabral,jánãoseioquepensar. Escreveque morre de saudades de Fernando, que nunca imaginou que aseparação fosse tão dolorosa, mas lá vai dizendo que ainda bem que omaridosedecidiuaarriscaravidaparasalvarumgovernodeunihomemquejáprovouqueausaparaseuproveitopróprio.Maria utilizaFernandopara salvar o conde de Tomar? Ou, no luido, acredita que o conde deTomar é o imico capaz de a proteger a ela, aos ilhos, e a Fernandotambém?

PaláciodeBuckingham,18deabrilde1851

PaláciodasNecessidades,23deabrilde1851

assearnojardim,comosmaispequeninospelamão,sossegavaarainha.Olhavacomatençãooscanteiros,paraperceberquaiseramosbolbosqueestavamprontosaflorir,retiravaasfloresmortasdosrododendrosedasazáleas,eparavaparamostraraosfilhoscomoembreveosrebentosdasglicíniasseabririamemcachos,easfloresdascerejeirassetransformariamemfrutos,«quetemosdeapanharantesqueospássaroslhescheguem».Aslinhasdacaratornavam-semaissuaves,quandoolhavaparaTonicaquelhemostravaumninho,ouparaGustyqueapontavaparaofiodacordadaroupaondeasandorinhaspousavam,fazendoumruídoinfernal.

- Já viu, Maria Ana, parecem os manos a discutir quem é que comeoúltimobrigadeirodechocolate.

Maria Ana riu, e continuou pelo caminho de terra a saltar à corda, assuastranças loirasasaltaremcomela.Mariasorriu,comternura, quandoviuosseusmaisnovosprecipitarem-separaumcampodescampadoondeaervacresciaaltaeasazedas,comassuascabeçasamarelas,baloiçavamàbrisa,gritando:

-Mãe,vamosapanhartrevosdequatrofolhasparaopai.

Que saudades tinha de Fernando, e damaneira como sabia envolvê-lacomoseuotimismo.

Vindo na direção de casa, numa correria, apareceu João, ofegante, acamisa fora das calças, os atacadores das botas, já coçadas na ponta,desapertados:

-Mãe,mãe,trago-lheumacartadopaiqueacaboudechegar.

Mariapegounoenvelope,ansiosa,aletradesenhadadeFernando,maisbonitanãohavia,ebeijou-a,pondo-adeseguidanobolso.

Oseuterceirofilhoprotestou:

-Nãoavailer?

Mariapuxou-oparasiecompôs-lheagola:

-Eseomeninoapertasseossapatos,esemetessenasuavida?-disse-lheenquantolhepassavaamãoternamentepelocabelo.-Opaiseescreveéporqueestábem!Váapanhartrevoscomosmanos,que oseupai,asuamãeeopaísbemprecisamdeles.

Tocou com a mão na carta, para se certi icar de que ainda estava lá.Gostava que Fernando lhe escrevesse estas cartas românticas, estasdeclaraçõesdecomonãopodiaviversemela,comose fossemnamoradosinseparáveis. Mas perdia a paciência quando se queixava demais. Aindaontem respondera aos seus queixumes dizendo: «Fernando, tenha maispaciência.Oqueimportaéqueestáacumpriroseudever.»

Mariagritoucomocriadoquelheabriuaportadasuasaladetrabalho:

-EstouàesperadosenhorcondedeTomaredemaisninguém, ouviste?Não sais da frente dessa porta, e não dizes que aqui estou,nem queapareçaporaíopapa,estásaperceber?

O pobre homem limitou-se a acenar que sim com a cabeça. Quandoarainhaestavazangada,omelhoreranãolhecruzarocaminho.

Enquanto esperava que Costa Cabral chegasse, Maria andava de umlado para o outro da sala, demasiado ansiosa para se conseguir sentar.Como é que era possível que Fernando tivesse tomado uma iniciativadestassemaconsultar, limitando-seacomunicar-lheadecisãoporcarta?A ela, a rainha? Subira-lhe à cabeça o poder, julgando que, por ter umaespadanamãoeumExércitosoboseucomando,agoradecidiaofuturodopaís?Semlicençasua,atrevia-seaescrever aocondedeTomarapedir-lhequesedemitisse,equesedemitisseimediatamente?

QuandoocondedeTomarentrou,estendeu-lheasduasmãos,e deixouqueassegurassenassuas:

- Peço-lhe que não dê importância às palavras que o rei lhe escreveu,

estánervoso,longedecasa...-disse,numavoztrémula.

CostaCabralnemprocuroudisfarçaroseudesagrado:

- É uma enorme injustiça, reconheço-o. E uma estupidez - atreveu-se adizer,earainhanãoocontrariou-,masseéavontadedorei,éavontadedorei,e,comoviupelacópiaquelheenviei,apresenteiaminhademissão,eadomeugoverno.

-Masnãopodeser,nãopodeser...nãomepodeabandonarassim! Achabemdeixar-menasmãosdeummarechaldoido?

CostaCabralsentiadi iculdadeemmanter-sesentadona«sua»cadeira,e,sempedirautorizaçãoàrainha,levantou-seefoiatéà janela,virandoascostasàsoberana:

-Desdeque aminhademissão é conhecida, opaís, aoqueparece,estáem festa, e Saldanha vai entrar no Porto, para ser aclamado em ombros.EmbreveestaráemLisboa...

Mariaescondeuacaranasmãos:

-FernandodizqueoacolherammalemSantarém,edepoisem Coimbra,que as pessoas odeiam oministro da rainha, e que era necessária a suademissão,masnãoconcordo.Achoqueopovoémanipuladopelosjornais,por essa dita elite que escreve discursos in lamados,mas não tem degovernar...

Costa Cabral não estava disposto a facilitar a vida à rainha. Sentia-semagoado e traído pelo rei-artista, que de repente decidira comandarexércitos, mas que capitulava para fugir ao desconforto das tendas, aomolhado da chuva, ao convívio com soldados que não cantavamópera. Oqueoreiqueria,percebia-obem,eraagradaraosinglesese vir-seemboradaliomaisdepressapossível.

-Ademissãoestádada!-rematou,seco.

Mariaolhou-o,estarrecida:

- Talvez tenha de ser assim por uns dias, por umas semanas, para

enganaroinimigo,masprometo-lhequeavingançanãotarda.Não saiadeLisboa,fiqueperto,porquevaiverqueconsigodaravoltaatudoisto.

CostaCabralbaixouacabeçanumcumprimento,esemdizermais nadasaiu da sala. Maria, desconsolada, viu-o partir sem poder fazernada.Afrontavam-nadenovo,eagoraeraoprópriomaridoqueo fazia,quelheimportavaqueescrevesserepetidamentequenãoconseguiaser felizsemela, que só pensava em voltar a casa, que morriade saudades, ou lhemandasse loresapanhadasnojardimBotânicode Coimbra?Nemele,nemos outros esperariam pela demora. Saldanha, só enquanto tivesse de ser.Usaria a vaidade do marechal contra ele próprio, deixaria que seestatelassedenovonapolítica,eentãoCostaCabralvoltariaemombrosaolugarquelhepertencia.

0condedeTomardemitiu-se,masvaideixarumasituaçãoinsuportávelao sucessor, que ainda por cima será sempremuitomenos hábil do queele.Mariadeveestar foradesi,porquenãosótevedeaceitar ademissãodo«seu»governo,comoaceitarqueocondedeTomarlhe«devolvesse»apropriedadedoAlfeite.Conheçoarainha,eseiquevaijogaroseupapelnaperfeição,enquantoplaneiaocontra-ataque.Hojeatémeescreveuadizerque talvez o devesse ter dispensadohámaistempo,mas não acredito nasua sinceridade. Talvez a tenham tocado ahtunilhação que o rei sofreuquandoosseusprópriossoldadosdebandarameseviusemexército,eosseus relatos do descontentamento dopovo com Cabral, mas, apesar dagravidade de tudo isso, duvido ainda.Costa Cabral partiu para Madridcomoministroplenipotenciário, oqueéuniprémioquenãocondiz comoafastamento de uni homemtão odiado, e também aí Maria vai ter tunadesilusão, porque o paísnão suportará essa distinção. Dentro de diasicará sem o seu exíliodourado, garante-me o embaixador Sevmour.Entretanto, pediu aoduque da Terceira para formar governo, munatentativadesesperadadenãoserobrigadaadarolugaraSaldanha,masésótunaestratégiadilatória,porque,pelaformacomoomarechalestáaseraclamadoportodoolado,seráonovoprimeiro-ministrodePortugal.

Seymourdizquenuncaviuarainhatãocordialesimpática,afalardorei

comooheróidasituação.Oembaixadornãoresistiuacontar, emboranoscompetisse repreendê-lo pela indiscrição, queMaria escreveu aomaridoquandoestavanafrentedebatalha,apedir-lheencarecidamentequenãocantasseparaosseussoldados,porquesenãopodiam achá-loestranho.Oudescon iar que era demasiado lírico para andar em batalhas. Albert atécorou quando leu esse parágrafo, e parece-me que durante semanas serecusaráaacompanhar-meaopiano.

RecebiagoramesmotunalongacartadeFernando,aagradeceronossoapoioaPortugaleàsuafamília,masemquerebateomeuargumentodequeSaldanhatinharazõesparaagircomoagiu.Acusa-odesubornarosmilitarescomordenadosepromoçõesquenãolhecompetefazer,tudoaseubel-prazer,edefingirqueusaaespadaemdefesadafamíliareal,quandoofazapenasembenefíciopróprio.Epior,acusa-odeagoraseestarafazercaroedenemsequerapareceremLisboaparaassiunirolugardeministroparaoqualarainha,commuitocusto,oconvidou,porquesabequeospartidospolíticosmaisàesquerdalhefarãoavidanuminferno,enapráticanãosabecomoháderesolveroproblema.Noentanto,doquediz,oquemepreocupamaiséqueexigemquearainhaabdique,equeosjornaisjápublicarammanifestosnessesentido.PobreFernando.«Éasituaçãomaisnojentaquejávi!»,confessa-meemdesespero.Pelomenosestarádeacordocomarainha,oucatequizadoporela,quandodizquecresceomovimentoquedesejaTomardenovonocargo.Mariaestarácertamenteàcabeça.

Acabo de receber tuna nota de Palmerston. A rainha de Portugaldevolveu ao marechal de Saldanha o cargo de mordomo-mor, e todos osoutros que há unsmeses lhe tirou. PobreMaria, que hmnilhação. Mesmosabendo que faz disparates, lamento-a, e não imagino o quesentiria emsituaçãoigual.

PaláciodeBuckingham,25deabrilde1851

TeatrodeSãoCarlos,15demaiode1851

rainhaestavapálidaeexausta.OsúltimostempostinhamsidodurosparaasuaamadaMaria,pensouorei,olhando-acomternuraeapertando-lheamãocomforça.Nãosóperderaoseuministro,comoforapressionadaaprivá-lodolugardeembaixadoremMadrid,queaomenosseriaumaformadeocompensarpelainjustiçasofrida.Ecomoseissonãochegasse,todasassuastentativasdeformargovernossemomarechalhaviamfalhado.Acadanomesugerido,láestavaoprotestodomarechal,quemandavadizer,emcartaspolidas,quenãoempunharaaespadaparaqueocondedeTomarvoltasseaopoderdentrodeseismeses,oqueaconteceriacertamentesearainhacontinuassedeterminadaaescolherparaogovernohomensquelheestavamligados.

OlábiodeMariasangrara,detantoomorderdeirritaçãoeraiva, nodiaem que fora obrigada a escrever-lhe uma carta a «agradecer-lhe» o seuserviço à Pátria, pedindo-lhe, no entanto, que não se aproveitasse dasituaçãodefragilidadeemqueestava,aoqueomarechal responderacompáginasepáginasdeprosa in lamada,manifestandoa vontadede chegarrapidamente a Lisboa para lhe beijar as mãos e os pés. Leal, ser-lhe-iasempre,comooforaaseupai,enuncase ligariaàquelesquepretendiamroubar a coroa à rainhaque jurara servir. «Sonsodeumraio», explodiraMariaaoleraresposta.

Masagoranãoeramletrasemfolhasdepapéis,masumencontro caraacara, sob o escrutínio de quem ia ao São Carlos.Maria e Fernando eramobrigadosaassistiràrécita,porqueSaldanhaanunciaraasuapresença.AcaminhodoSãoCarlos,numChiadojáiluminadopelosnovoscandeeirosagás,arainhaprotestava:

-Fernando,vãoignorar-meegritar«vivas»aogrão-vizir,inchado comasuavaidade.

O rei não contivera o riso. Maria agora só se referia ao duque deSaldanha como o grão-vizir, e o nome assentava-lhe às mil maravilhas.

Puxou-apara juntode si, e a rainhapousoua cabeça sobreo seu ombro,inspirandooseuperfume.

- Meu amor, é preciso fazer das tripas coração, não há outra soluçãosenãoreconquistarSaldanha...

Mariamanteve-se em silêncio. Quemmelhor do que ela sabia pôrumacara e ter outra? Infelizmente, aprendera a arte da duplicidade com ospolíticosportugueses.Esperavaqueaartenãoadeixasseficarmal.

MariaolhavaparaFernandocomimpaciência:erainacreditávelquepassassemquinzeminutosdahoramarcadaeacortinanãosubisse,porqueSuaExcelênciaoGrão-Vizirnãosedignavaaparecer.

-Fazdepropósito,querqueosreisestejamnocamaroteeasala cheia-murmurouentredentes,eFernandopousouasuamãosobre adela,paraaacalmar.

Também ele tinha vontade de esmurrar a cara do duque de Saldanha,que passava muito para lá dos limites, mas estava certo de que opiorainda estava para chegar. O silêncio com que haviam sido recebidos, eagoraisto,faziampreverumanoitedifícil.

Maria pegou nos binóculos e virou-os discretamente para o camarotedos ministros, exatamente no momento em que a orquestra começava atocarohinoeumaovaçãoimensacorriaasala,comoumaonda.

-Chegouaestreladanoite, levantamo-nos,que remédio -murmurouarainha.Os«vivas»eos«bravos»repetiam-se,enaplateia todossetinhamvirado para o camarote onde Saldanha, fardado a rigor, agradecia aovação,aqueseseguirammaisovaçõesaohomemquevenceraocondedeTomar, obrigando os soberanos a icar de pé, transformados em igurassecundárias,toleradasapenas,numahumilhaçãorepetida.

-Queroverdaquiaunsmesesseaindalhecantamonome,ospapalvos-murmurouarainha,eFernandoconcordou.

Afaltadedecorodomarechal,quedeixavaassimhumilharasua rainha,revelava a personalidade de um homem que não aprendia nada. O reirecordou-se de como o embaixador Seymour se esforçara para levar

Lavradio a aceitar um lugar, de como se tinha esforçado para encontraralternativasaestebarrildepólvora.Daquiaunsmeses, sim,daquiaunsmesesjáninguémselembrariadasovaçõesfeitasaqui,entreoveludodascadeiraseosdouradosdostetos,eacortinacairiaparaumnovoato.

Nessanoite,Fernandoabriuaportadoseuquartoemsilêncio,edeixou-seescorregarentreoslençóis.Mariachorounosseusbraços,eFernandosecou-lheaslágrimascomosseusbeijos.Masarainhaqueriamais.Desejou-ocompaixãoeraivaeoreideixou-searrebatar.

-Nãovolteparaoseuquarto -pediu-lheMaria,eadormeceramos dois,atéquealuzqueentravapelasfrinchasdasportadasosacordou.

Finalmente consegui escrever a Maria para lhe falar da GrandeExposição.Contei-lhequeainauguração,nodia1demaio,foimimdosdiasmaisgloriososdasnossasvidas,aquecomorgulhoealegriaviassociadoonome domeu adorado Albert. Foi um dia que encheu omeu coração degratidão...

OparqueondeoPaláciodeCristal foiconstruídoestavacheiodegente,atravessadoporcarruagens,pessoasapéeacavalo,e,claro,os batalhõesdosdiversosramosdasForcasArmadas,detalformaque pareciaodiadaCoroação,efoipormimvividocomamesmaansiedade.

0diaestavaluminoso,esentia-seumaenergiaespecialnoar. Àsonzeemeia da manhã, a comitiva de nove carruagens de Estadosaiu deBuckinghamemdireçãoaopavilhão.AVickyeoBertie foram nanossa.AVickyestava linda,comumvestidoderendasobreseda branca,comumapequenacoroaderosinhasbravasnocabelo.0Bertie,vestidoarigorcomoumescocês.

GreenPark eHvdePark eramuni tapete de gente, gente alegre e comumimensoentusiasmo.NuncaviHydeParkassim,amultidãoaperderdevista.Quando saímos de casa apanhámosuns chuviscos,mas quando nosaproximámos do Palácio o Sol brilhou, ihuninandoo gigantesco edi ício,sobre o qual esvoaçavam as bandeiras de todas as nações do Mundo.

Contei a Maria que a portuguesa estava bemvisível, o azul e o brancomarcados pelas armas dos Bragança, de tuna elegância que registosempre. Também lhe dei a satisfação de saber que parei para admirar,maistunavez,osmármoresportugueses.

Confesso que tão excitada tenho estado com o sucesso desta iniciativabrilhante do meu marido, de que os jornais dizem maravilhas,reconhecendo o seu trabalho pelo que vale, e considerando-o cada vezmenos como uni «estrangeiro», que nem a situação portuguesa me temtirado,comodecosttune,osono.

PaláciodeBuckingham,15demaiode1851

PaçoRealdeSintra,7dejunhode1851

arfa,Fernando,Pedro,Luís,João,MariaAna,Antónia,FernandoeAugustoesperavamostioseosprimos,escondidosdocalornasombradasescadasdopalácio.ArainhaqueriaqueasuaqueridacunhadaClemvisseatrupeassimmesmo,todosalinhadosedireitos,disciplinados,mesmoosmaispequeninos.

Fernandosorriu-lhe,trocista:

-Nãoresisteadarumaliçãoàsuaqueridacunhada!

MariaafagouocabeloaPedro,disfarçandooriso:

-Quallição!Gostoqueosmeusfilhossesaibamcomportar,erecebamasvisitas com alguma dignidade. Se a Clem e o Augusto acharemque, porcomparação, faltaalgumacoisaàeducaçãodos ilhosdeles,aí oproblemajánãoémeu.

Fernandodeuumagargalhada,ePedro,quejáestavadaalturada mãe,juntou-seaoriso:

- Coitados dos primos, devem vir cheios de energia depois de diasenfiadosnumbarco,porisso,mãezinha,sejapaciente.

Mariadeu-lheumpiparotenabochecha:

-Olhe,omeninobempodeéentretê-los, levá-losparaa serranas suasexcursões em busca de pássaros e insetos, para ver se a pobre tiaClementinadescansaumbocadinho.Sótemtrês ilhos,masemdisparatesvalempordez!

Pedro ia re ilar, lembrandoquequeriaera ir comopaieo tioAugustoparaaPena,masJoãointerrompeuaconversacomumgrito,«Estou avê-los, estou a vê-los», apontando para o char-à-bancs, puxado por seis

cavalos,quedesciaaestradavindadeSãoPedroedoArrabalde. AfamíliaOrleãesSaxe-Coburgo-GotharegressavaaSintra.

Mariafechouaportadoquartoàchave,esentou-senumacadeira,ofegantepelasubidaapassorápidodasescadasemcaracoldoPaláciodaVila.Ansiosa,abriuoboletimdesaúdeacabadodechegardeLisboa.Benzeu-se.GraçasaDeusqueosseuspequeninosestavammelhores.ForaobrigadaamandarAmónia,FernandoeAugustoparaLisboa,porquetinhamapanhadocoqueluche,umaformasuave,masmesmoassimperigosa,detosseconvulsaeosmédicosinsistiramemsepará-losdosirmãosedosprimos.Edamãe!

Masnãoeratudo.Sabiabemqueestaagitaçãointeriornãoseexplicavasócomadoençadascrianças.

Não resistianemmaisumdia. Fossequal fosseopreço apagar, sentiaumimpulsoirresistíveldeescreveraCostaCabral.Erapreciso assegurá-lode que os seus sentimentos não haviam mudado, era preciso que lheescrevessetambém,queavisitasse.Pegandonopapeldecartaenapena,começouaescrever:

«Meuqueridoconde»,caligrafoudevagar,procurandoquealetraficassebonita.Tudoorestosaiudesupetão,comoumdesabafohálongotempocontido:

«Tereimuitasmásqualidades,masnão sou ingrata e sei ser amiga. Hámuito que desejava escrever-lhe, mas nunca tinha achado umaocasiãosegura,mashojetenhoumaeaproveitoparaofazer.

O que eu tenho sofrido por todos os modos é impossível descrever.Tenho sofrido não só como rainha, mas também como mulher. Estou só,rodeadade inimigos,nemaomenoso tenhoasiparadesabafar. Acrediteque agora tenho visto que sou mais sua amiga do que cuidava. Tive asmaiores saudadesemSintraeMafra,masesperemosque ainda havemosdeterdiasfelizes.TiveomaiorgostodeternovassuaspelomeucunhadoJoinville, que é bem seu amigo. A "Pessoa" faz dóde tão triste e acho-omagríssimo. Falamosmuitas vezes em si e na verdade é bem seu amigo.Acreditequeelefoiatraiçoadoinfamemente,masahorahádetocarparaavingança.Setiverrespostaaestacarta,escrevereimaisvezes.

Nuncaseesqueçademim,poistenhosaudadesverdadeiras.»

Hesitou.Estariaaserdemasiado«oferecida»,comotantasvezesLeonordaCâmara a acusavade ser?Não chamavaFernandopelonome,usandoantes«Pessoa»,nãofosseacartaser intercetada,masseomaridoa lesseentenderia que se referia a ele. Poderia duvidar dela?Pouco lheimportava.Voltoucomapenaaopapel:

«EsperoquevenhaquandoabriremasCâmaras,olhequenecessito quetodososmeusamigosestejamapostosnestaocasião.

Adeus,meuqueridoamigo,acredite-meamesma-M.»

AgoraeraprecisomandarchamarLurdinhas,antesquesearrependesse,epedir-lhequefizessechegaranotaaCostaCabral.ComonoutrostemposRosalevaraascartasdamamãe,paraasentregaraoembaixadordaÁustria,naesperançadequechegassemàtiaLuísaeaoavôFrancisco.Quedenadalhetinhamvalido,pensoucomraiva.MasocondedeTomarnãoseriacomoeles.

Que bem me sabe estar de novo aqui na Escócia, só nós, longe doburburinho da cidade, e sobretudo da curiosidade e da indelicadezadosjornalistas, que não nos deixamdar umpasso semnos viremnoencalço.As crianças estão radiantes, entre passeios a cavalos e piqueniques, e otempotemestadomaravilhoso.Finalmenterecebiumacarta deMaria,quepede desculpa por tanto tempo sem me dizer nada, masagradeceefusivamente o apoio que lhe demos durante esta guerra, mais estaguerra.Perceboquelhecustasseescrever-me,porquesabeperfeitamentequeonossoembaixadorpressionouCostaCabralàdemissão,equemesmoa detertninação com que Fernando agiu desta vez foi muito influenciadaporAlbertepormim.Infelizmente,todossuspeitamosqueSaldanhanãoéasolução.

Para fugir à política, no entanto, fala dos «Augustos», e tenho dedizerque concordo em absoluto com ela. Vejo-os com frequência, e pensoexatamente o mesmo da educação que dão às crianças - ri-me,porque

Mariadizquesãodemasiado«franceses»,oquenãoédeadmirarsendoamãeuniaOrleães,mas seiqueobreve tempoquepassouna corte do reiLuísFilipe lhedeua impressãodequeosmeninoseasmeninas faziamoque bem entendiam, e eram demasiado precoces nas liberdades quetomavam.

Omais divertido, no entanto, foi que tambémme chegou uniacarta deClem, que se queixa de que Maria não para de lhe dar lições de comoeducaros ilhos,aacusadeseregoístaenãorespeitarsu icientementeosdesejosdeAugusto, de serumaesposapoucoabnegada e obediente, nãolhe dando o prazer que elemerece. Quem conheçaMaria só se pode rir.Abnegadaé, e faz tudoparaqueFernando se sintabememcasa,dando-lhe ilhos,oqueparamimjáémaisdoquealgumhomempodepagar,masobediente...sonsaseriaapalavramaisindicada.

Hilarianteaindaéacomparaçãodoquedizemsobreaaparência alheia.Ainda bem que não estava lá, porque também eu começo a teralgunscabelos brancos, e as gravidezes destruíram a beleza das minhas ancas,deixando-memaiscomoumbarrilsemforma.DizMariaqueClemestáumbocadinhoenvelhecida,epede-meencarecidamentequenãorepita,eCiemescreve que Maria está «gorda como uma vaca», uni comentário nadasimpático,convenhamos!

Maria,porseuturno,dizqueAugustoengordouimenso,masressalvaasua alegria eboadisposição, e o entusiasmoquedemonstrapelaobradomanonaPenaésu icienteparalheganharocoração. Compreendo-a.SintoomesmoquandoalguémfaladoPaláciodeCristaledaGrandeExposição.

Quantoaoestadodapolíticaportuguesa,Saldanhache iaogoverno,masaagitaçãocontinua.OembaixadorSevmourdescreveasituação,comtunafrasequeresumetudodetunaformafabulosa:

«Portugal é umpaís onde a revolução é omeio de protesto de alguémin luente que se quer queixar de alguma coisa, ou tem uma ambiçãoporctunprir.»

Pelo que me conta, a pobre Maria tem passado um mau bocado,obrigadaadar-secomaquelesqueavilipendiarameaquiseramderrubar,e até a oferecer uni baile em Belém para o qual teve de convidar estascriaturas. Pelo menos agora distrai-se com os cunhados. A famlia é, de

facto,oímicorefúgiodosreis.

CastelodeBalmoral,20dejunhode1851

PaçoRealdeSintra,10deagostode1851

súltimassemanastinhamsidoagitadas.MaisumgovernodeSaldanhafalhara,eMariaenchera-sedeesperançadequealguémselembrassedesugerirqueeratempodepediraocondedeTomarqueesquecesseaofensadequetinhasidoalvoeconsiderassevoltar.Fernando,maissensato,dizia-lhequeeraimpossível,echamava-lheaatençãoparaasqualidadesdeRodriguesdaFonsecaMagalhãesedeAntónioFontesPereiradeMelo.Mesmoqueoministériocontinuasseaserpresididopelo«grão-vizir»,diziaarir,averdadeéquepelomenossurgiamdoishomensdiferentes,equepareciamtergrandesqualidades.

«Percebemqueoprogressosefazconstruindoestradaselinhasférreas,enãonasCâmaras»,explicava-lhe,eMariaencolhiaosombros, insatisfeita.Que se izessemestradas e comboios achavamuitobem,mas o que tinhaessaideiadenovo,quandoocondedeTomartantoinsistiranela?

A nomeação de Lavradio para embaixador em Londres foi motivo deconversaentreosdois.«Agoraésupostoeugostardele,é?»,perguntavaarainha, que nunca se esquecera dos acessos de mau génio do primo deLeonordaCâmara, paz à sua alma. «Édas esquerdas, recusou-se a fazerpartedoministériodeCostaCabral,lembra-se?Porqueéqueheidesereuaperdoar-lhe?»Fernandoimpacientava-se.Arainharecusava-seaaceitaroquenão tinharemédio.Estavacansadode lhedizerqueavingançanãolevava a lado nenhum, queum país não podia icar refém dessessentimentosmesquinhos,eMaria ingiaouvir,ecomiamais,sempremais,comoseafogasseasmágoasnacomida.

VemaíocondedoLavradio.SeiqueeraparentedeLeonorda Câmara,está desde sempre envolvidona luta liberal,mas vivia em Paris, e só nosconhecíamos de passagem. Maria escreveu a dizer queme dá o senhor

como presente, que nãome diz nada sobre elemas que espera aminhaopinião,osu icienteparaentenderqueéumaescolhadelaquenãopassouporela,equequerquedigamal.Vamosver. JádisseaPalmerstonqueoquero receber com honras, até porque Albert diz que tem muito paraconversarcomele.

Aliás, o senhor parece estar a trabalhar intensamente, porque desdequechegoujáinformouMariadequeD.MiguelpartiudaquiparaPortugal,mas é a própria rainha que inc diz que certamente não passa de umrtunor, e, pelas informações que recebodomeu gabinete, não é verdade.Pelaminha parte, achei absurdo, porque imaginei que aos 48 anos, e naiminência de casar com a princesa Adelaide Lowenstein-Werthehn-Rosenberg, que tem apenas 20 anos, o tio de Maria tivessevontade deassentar e ter ilhos. Porque, a inal, com a descendência queMariaassegurou,eapesardaagitaçãodopaís,julgoquenuncaestaráemcausaalinha de D. Pedro. Mas é verdade que o mundo dá muitas voltas, e tunexiladonuncaperdeodesejodevoltaràpátria.

CastelodeBalmoral,15deagostode1851

PaláciodasNecessidades,10denovembrode1851

arfaacordoucomohumortãocinzentocomoodia.Choviaacântaros,equandoLurdinhasentrou,fez-lhesinalparaquenãoabrisseasportadas.

- Hoje não saio da cama - declarou, e a criada olhou-a, preocupada. Arainha detestava icar deitada, e quanto mais pesada se tornava, maisdificuldadesentiaemrespirardeitada.

-Nãoolhesparamimassim,mulher.Traz-memaisalmofadas para pôratrásdascostas,epedeopequeno-almoço.Ecomgoiabada,ouviste?

Lurdessorriu.Arainharecusava-seachamaramarmeladapelonome,enão valia a pena dizer-lhe que era diferente da brasileira, porque nãomudavadeideias.Eragoiabada,eragoiabada.

Reparounasolheirasfundaseescuras,masnãoseatreveuaperguntarse devia chamar o médico, sabia bem a causa da noite maldormida,porqueforaelaque,ontem,lhetrouxeraacartadoseu antigoministro.Hámesesqueacorrespondênciaentreelescirculava.

Saiudoquartoparafazeroserviço,eMariavoltouapegarnacarta,queescondera debaixo do travesseiro. O conde de Tomar recusava-se aescreveraFernando,comolhesugerira.Comtodaa frontalidade dizia,doprópriorei:«Repugna-meescreveraoqueémeuinimigo capital,aqueméa causa principal dasminhas, e das suas própriasdesgraças, a quem dábeijoseabraçosaostraidoresqueoobrigaram afazeramaisdesgraçadaiguradomundo,aquemmandouanunciarpelosseusajudantesaminhaqueda como um acontecimento nacional e geralmente desejado, a quemdesde que chegou a Santarém formouo plano da minha perda, a quemantecipadamente tinha conferênciassecretas com Saldanha, a quemescreveu ao mesmo Saldanha declarando que aprovava a sua oposiçãoviolenta na Câmara contra mim, a quem nunca foi meu amigo, muitoembora eu lhe desse as maiores provas de amizade, de estima e

veneração!»

Mariaengoliuossoluços.OquehaviadefazerquandoocondedeTomarsequeixavadequeoseubomFernandootraírae,aotraí-loa ele, traíraamulher?

Voltou à leitura: «Perdoe-me este desabafo,mas tenhoo coração muitooprimidocomumprocedimentotãoingrato,enãopossodeixardedizeroque sinto a quem talvez ainda tenha pormim algunsrestos de amizade!Fui na verdade muito infeliz neste último ministério, sendo ministro sópara condescender com a soberana vontade de Vossa Majestade. Foisempremalvisto o ministério pela "Pessoa" e vi-me cercado de traidoresquetinhaporamigos.»

Como podia suportar que Costa Cabral se sentisse assim, que pudessepôremcausaosseussentimentosporele,aamizadeprofunda...

Tapouosolhoscomasmãos,exausta.Amanhãvoltariaaescrever-lhe,atestemunhar-lhe a sua gratidão, e talvez um dia ele lhe perdoasse. E elaperdoariaaFernando?

Hoje recebi tuna nota que acompanhava duas cartas que recebi dosenhorSaraiva, tunaparamiraeoutraparaAlbert.Tivea tentaçãode asabrir, mas ele aconselhava-me que não o izesse. Dizia, raposa como é.«Como D. Miguel não está em posição de enviar estas cartas a VossasMajestades, essas cartas devem ser devolvidas por lord Palmerston aosenhor Saraiva, com a informação de que não podem ser presentes aVossaMajestadeeaSuaAltezaRealoPríncipeAlbert.»

Pelos vistos, enganei-me quando supus que D. Miguel se conformaracom a situação, mas estranho que, sabendo das nossas relações deparentescoeamizadecomos reisdePortugal, imaginassequede algiunaformaopudesseouviroufavorecer.

Albert e eu decidimos que nem sequer falaríamos desta tentativadecorrespondência aos primos, porque era o su iciente para incendiar denovo a imaginação de Maria. De qualquer forma, informámos o

embaixadorSeymour,paraquefiqueatento.

Eaindabemquenãoo izemos,porqueacalmapareceterregressadoaPortugal, as eleições foram livres, ganhas pelos moderados, e o governoescolhido icousobapresidênciadeSaldanha,munamanobra hábilparaomanter satisfeito, permitindo que gente mais e icientetome conta daspastas decisivas. É claro que a rainha me escreveu a dizer que osdeputados de Lisboa lhe parecemgentemuito «exaltada»,e a derrota deCabraldevedesesperá-la,mas,apesardetudo,parececonformada.

TenhodeprocurarespingardasdequalidadeparamandaraPedro e aLuís, que já caçam muito a sério. Maria conta que Luís apanhoutunaraposa enorme em Mafra, o que o deixou completamente maluco, naspalavrasdamãe.Esteanonão lhesmandeipresentespelosanos, por issojáseioqueescolher.

PaláciodeBuckingham,18denovembrode1851

PaláciodasNecessidades,2defevereirode1852

aoconseguiaadormecer.Pelabandeiradevidrodaporta,aluzdeumavelaacesaprojetavanasparedessombrasdisformesqueaassustavam,orangerdasjanelassobressaltava-a.Massefechavaosolhos,viasaltar-lheaocaminho,entreasárvoresdoPasseioPúblico,umvultosemcara,eoterroreratãograndequeabriaosolhos,pingosdesuoraescorrerempelatesta.Nãoeracapazdeestaracordada,enãoeracapazdedormir.Decidida,tateouamesadecabeceiraparaencontraracaixadepausdefósforoqueFernandomandaravirdaÁustria,eriscouumdelescontraalixaáspera,acendendoavelanopequenocastiçal.Eraprecisoircertificar-sedequeosguardastinhamtrancadoosportões,queasjanelasestavambemfechadas,eraurgenteirláabaixoaoquartodospequenosverificarqueoscriadosdormiamnosquartosdospríncipes,eraprecisoconfirmarquenãohavianinguémescondidoatrásdaestátuadoleão,oudaquelevasograndecomapalmeira...

Deixava que as pernas pendessem para fora da cama, preparando-separasairdela,quandoouviuaportadoquartoabrir,egritou.

Fernandoolhou-a,espantado:

-Oquesepassa,minhaquerida,ondevai?

Mariacomeçouatremerdescontroladamente,avozpresanagarganta:

-Tenhodeirverseascriançasestãobem,senãoháassassinosdentrodopaço.

Oreiafagou-lheocabeloeajudou-aadeitar-sedenovo,cobrindo-acomoscobertoresquentes:

-Minhaquerida,estãotodosemsegurança,venhodeláagora...

-Masas janelasdosquartosdosbebéssãonopiso térreoedãopara a

rua,éperigoso-soluçou.Oreiabraçou-a:

- Os guardas estão de vigia, os criados dormem nos quartos, estejadescansada,minhaquerida.

- Mas a rainha Isabel também estava em casa. Dentro do paço, com opríncipe ao colo, a caminho da igreja para batizar o ilho, e os guardas àporta avisados, e mesmo assim ele entrou, deixaram-se enganar pelasotaina,eleentroueesfaqueou-a,Fernando.

Oreiaconchegou-acommaisforça:

-FoiemEspanha,minhaquerida,enósestamosemPortugal.

Maria, sossegadapelo calordo seu corpo,pela suapresença,protestoujámaislúcida,comoquemacordadeumpesadelo:

-Osloucosnãotêmnacionalidade,Fernando.Comoquetêmditodemimpode haver por aí alguém, muita gente mesmo, que acreditenessasnotícias, nesses versosque se cantamna rua, dequeCostaCabral émeuvalido,queajudoospolíticosa roubar,quenãoquero saberdos que têmfome...-Fernandosossegou-a:

- Tudo isso já passou, minha querida, o país está calmo, ninguémlhequerfazermal...

-Vitóriajásofreuatentados,agorafoiavezdeIsabel,dastrêsrainhassófaltoeu-constatou,comoquemaceitaumainevitabilidade.

-Ascoisasnãosãoassim,querida,oatentadonãoéinevitável,comoumadoença de criança, daquelas que todos apanham. Masprometo-lhe queamanhã me reúno com o capitão da Guarda e revemos a segurança dopaço,malnão faz,e icamostodosmaissossegados -disse,beijando-anoslábioseapaziguando-acomfestas.

-MeuDeus, faz comque apobre Isabel nãomorra -murmurou Maria,antesderetribuirobeijo,esquecendopormomentososseusmedos.

É terrível a notícia do atentado à rainha Isabel. Um padre louco, quealguns chamamde santo, com cadastrode cadeia por violência,escondeumn cutelo a iado por baixo das vestes e atacou a rainha nomomento emqueelalevavaopríncipeabatizarnaAtocha,masnãoferiuobebé.PobreAfonso,nãobastaaagitaçãodocasamentodospais,aagitaçãodopaísemque nasceu, que, tal como Portugal, não se sabe se cai para o lado dosliberais ou dos conservadores, e agora isto. A rainha ainda não está livrede perigo, a ferida tinha mais de 15 centímetros de comprimento e eraprofunda, mas foi salva pelo medalhãode ouro que trazia ao pescoço eserviudeescudo.Maria escreve-meemestadode choque,não sóporqueteme ser também ela vítima deum desvairado, como também porquereceia qualquer agitação emEspanha, que rapidamente se contagiaria aPortugal.Sabe,comotodosnós,queopríncipeAfonsoéfundamentalparamanterunidoaquelepaís.A criança temunimês, eaindanãose calaramosrtunoresdequenãoéfilhodopai,noquesinceramenteacredito,dadoohistorialdeFranciscodeBourbon,mastalvezsejasómaldade.

Marialembra,ebem,queofanatismoéumaepidemiaqueseespalha,ea faca ou a pistola são o argiunento de quem já não acredita emnada.Depois do susto que apanhei, confesso que não há dia em quesaia emcarruagemabertaquenãoprocureentreosrostosnamultidão aquelequedelápodesair,decididoaassassinar-me.

Temo que nós, mulheres, incitemos ainda mais o ódio destes padres,desteshomensquenãoacreditamquesejamoscapazesdegovernarcomacabeça,enãocomocoraçãoouocorpo.

PaláciodeBuckingham,8defevereirode1852

PaláciodeMafra,15demarçode1852

ueroessesnarizestodosassoados.Gusty,venhacá,quenãovaitirarumretratocomessenarizdemeninopobreapedirnarua-disseMaria,puxandoparasiofilhomaisnovoelimpando-lheacaracomumgrandelençobranco.

Fernando e Pedromontavam amáquina de daguerreótipo em cima deum tripé, excitados com o novo brinquedo que chegara há dias, enviadopelomanoAugusto.

- Pai, como é que isto funciona? - perguntou Luís, curioso, masPedroarrancou-lheachapadasmãos.

- Não ponha dedadas nisto! É uma placa sensível à luz, que registaospontos iluminados e os escuros, e... - explicou Pedro, que passara a noiteanterioralerasinstruções.

Fernandoatalhou:

-Primeiro,nãoémaneiradefalarcomoseuirmão,edepois,não éumacoisasimplesdeperceber. -Ecomcalmacomeçouaexplicar aos ilhos asmaravilhasdanovamáquina.

- O que o pai quer dizer é que é magia - disse João, entrando nadiscussão.

Fernandoriu:

-Émaisoumenosisso,João.

-Os índiosnoBrasilnãoqueriamserpintados,porquediziamque lhesroubava a alma, imagino o que hão de sentir quando lá chegarem comessasmáquinas-pensoualtoarainha,enquantopuxavaparasi oseuLuísdecaracóis loiros. -Masantesque lheroubemasuaalma, ilho, deixe-me

pentear-lheocabelo.

Luís, meigo, deixou-se empurrar para a cadeira, sentindo os dedos damãeasoltar-lheocabelo.Aindabemqueeraoúnicodecabeloondulado,dequeamãetantogostava, jáquenãotinhaaespertezadePedro,nemagraçadeJoão.

Estavam há dois dias em Mafra, depois de terem passado por Sintra,para mostrar a Leopoldo, o irmão mais novo de Fernando, o Palácio daPena, agora quase terminado, magní ico no topo da serra, com as suastorres e abóbadas acima do recorte das montanhas, num contraste decores garridas com o verde-escuro do mato e o cinzento das enormesrochas.Maria achava-omagní ico, e enchia-a de orgulho que tivesse sidoFernando a construir um palácio tão igual aosdos contos de fadas doslivrosqueatiaLuísalhemandavadaEuropaparaoBrasil.

Mas ali, emMafra, a geada cobria os campos, e dentro de casa estavamaisfriodoqueláfora,garantiamasdamaseascriadas,e estavacertadeque tinhamrazão.Ascasasnemchegavamaaquecer, eeraumdisparateandar a passear por palácios gelados nesta alturado ano,mas FernandoestavaansiosoporsairdeLisboa,eaverdadeéque,entreascaçadaseascorrerias nos corredores do palácio, as crianças pelo menos estavamsemprequentes.Opioreraela,quesentiaa cabeçapesada,eonariz jáapingar, só lhe faltava uma constipação valente para deitar ainda maisabaixoohumor.Procuravadisfarçar, ecomumatrupecomoestanãoeradi ícil ter momentos de imensaalegria, mas por dentro sentia-se triste emagoada.Trocava cartascomocondedeTomar,maseramcadavezmaisraras:dequevalia repetir-lheincessantementequesentiaasuafalta,quesonhava com odia em que voltaria ao poder e se sentaria de novo nacadeira azul quelhe continuava exclusivamente reservada, se a políticapermanecia nasmãos de políticos que não escolhia mas que, eranecessárioreconhecê-lo,pareciamdarcontadorecado?

Quanto a Saldanha, de cada vez que se cruzava com ele, e cruzava-semuito,odia icavaestragado.Eraobrigadaavê-lopavonear-sepelos seussalões, ingindo a maior das subserviências, beijando-lhe a mãocom milvénias,enchendo-lheosouvidoscomelogiosegalanteios.Conviviacomele,que remédio tinha, e havia alturas em que até se conseguia abstrair detodos os seus crimes,mas sempre que o via fazergala nos privilégios de

mordomo-moroudeajudantedecampodeFernando,todososprivilégiosque fora obrigada a devolver-lhe, a raiva voltava. Se ao menos pudessesoarahoradavingança.Masnãosoava.

Desistira, também,deconvencerocondedeTomarda inocência do rei.Sabia que Costa Cabral efabulava quando imaginava um conluio entreFernandoeSaldanha,masentendiaquearapidezcomque lheperdoara,afacilidadecomqueacumplicidadeentreelesvoltara, podiamdar ideiadeque tinham estado feitos um com o outro. Mariaentendia. Saldanha eradesvairado,masconseguiamanipulartodosàsuavolta,comoseucharme,a suaexcentricidade,os seusnovosprojetos.Fernandodiscutia comeleaexploração da quinta em Sintra, as obras nas casas, o leite que as vacasdavam ou deixavam de dar, os avanços da medicina, a sua paixão pelahomeopatia,etantasetantascoisasqueotornavamdiferentedetodososoutros cortesãos,que enfadavam o rei com as suas conversas decircunstância. Pobre Fernando, sabia bem que, ao im destes mais dedezasseis anos emPortugal, não deixara de ter saudades de Viena, deLondres, de Paris.E, no entanto, não se queixava nunca, e continuava adedicar-lhe omesmo amor, amesma proteção, omesmo sorriso todas asmanhãs.

Levantouosolhosparaoverdispararmaisumavezamáquina, felizporse ver rodeado dos seus ilhos, contente por ter junto de si umdos seusirmãos,esorriu,satisfeita.A inal,erasóistoqueambicionara parasi,umafamília feliz, nadamais. Seria? «Deixa lá a política aospolíticos, e o ajustedecontasaDeus»,murmurou,zangada.

Recebi inalmente os daguerreótipos dos príncipes portugueses.Percebe-se que as crianças sãomuito bonitas, o Pedro e o Luís estão tãocrescidos, mas estes retratos são da pior qualidade. Fernando ainda temmuito que aprender, mas já lhe escrevi a dizer que até se aperfeiçoarpre iro que me mande os seus desenhos e aguarelas, porque sãofrancamentemelhoresdoqueisto.

Dequalquermaneira,estoudeterminadaaterminiaturasdetodos eles,

paraaminhacoleçãodefamília.Enchiuniaparedeinteirada saladeestar,commolduraspequenascomcadaumdosmeusparentes, dosmaioresaosmais pequenos, e dá-me uma satisfação enorme icarsentada frente àlareiraaolhá-losumporulm.Àsvezeslevanto-me paraveralgumdetalhe,e divirto-me a encontrar as semelhanças entre pais e ilhos, e entre osprimos. E tão curioso como algumas características parecem saltar uniageração,ousurgirnuunsobrinho,emlugardenuun ilho.Nestemomentojátenhooitenta.Paraunia ilhaímica,háumprazerenormeemdescobrirque a inal faz parte de um grandeclã. Para o qual, diga-se de passagem,contribuicomsetefilhos,nãofoinadamau.

Mas voltando aos portugueses, estou decidida a enviar-lhes WilliamRoss,quepintoumuitosdosmelhoresretratosquetenho.Julgoque Mariavaigostar.

Quanto à política portuguesa, Maria voltou a sentir-se mais à vontadeparadizeroquepensa,eosseuscomentáriossãosarcásticos.Não resistialer a Albert a parte da carta em que diz: «Os nossos assuntosvãorazoavelmente, não diria que as nossas Câmaras trabalham muito, masaqui é hábito trabalhar pouco, e em geral os que engordammais do queaquelesquenãofazemnadasãoosqueaindafazemmenos.»

Pediu-me a opinião sobre o conde do Lavradio, Francisco de Almeida,mas suspeito que não lhe agradou muito que lhe tivesse ditoque oachamos agradável e competente. Na volta do correio pede-nos para lhedarmos uma palavra, porque, ao que parece, o embaixador se ameaçademitir,porqueogovernoportuguêstemagoraum ministrodosNegóciosEstrangeiros, um escritor chamado Almeida Garrett. E Maria conta queLavradio amuou, porque, como ambos são «Almeida», é possível que noestrangeiro os confundam, e recusa-se a ser confundido com um pobrecoitado, quenão temo seu sangueouestatuto.A rainhaprotestaque lheparecemridículos«essesorgulhosdenascimento»,etenhodereconhecerqueo espírito igualitáriodeMaria,aquempouco importaoberço,émaisconforme aos tempos emque vivemos. Albert admira-amuito por isso, edizqueresultadeseraímicarainhaeuropeiaquenasceuforadaEuropa.Talvez seja essa aexplicação, mas descon io que passou a pensar assimdesdequeCostaCabral,vindodeumaterraperdidanoNortedopaís, lheconquistou ocoração. Talvez seja só maldade minha. Como diz Mariamuitasvezes,«oqueéquequeres,todaagentetemdefeitos».

CastelodeWindsor,30demarçode1852

ViagempeloNortedePortugal,abrilde1852

scriadoscarregavamasmalaseasarcasnacarruagem,eospríncipesmaispequenospuxavampelasaiadarainha,aanteciparapartida.Esteanoafamíliadividia-seesóosdoismaisvelhosiamcomospaisfazerumadigressãoaoNortedopaís.JoãoeMariaAnaestavamtãozangadosporficaremparatrásquenemsequertinhamqueridovirdespedir-sedospais,maseraimpossívelviajarcomtantascrianças.

O programa da digressão era ousado, com o embarque em Lisboa, novaporqueoslevariaatéVilaFranca,depoisseguiriamde carruagemparaoPorto,edaíparaoMinho,regressandoaLisboa apenasdaquiaummês.Era importante que Pedro conhecesse o reino que era seu, e que osportugueses fossem apresentados ao príncipeherdeiro, defenderaFernando, um dos grandes impulsionadores da visita. Saldanha, noentanto, insistia que a rainha devia ao seu povoum agradecimento pelosanguederramadoemfavordasuacausa,oquedeixaraMariairritada.

«Comoéquedistingooquefoiderramadoameufavordaquelequeofoicontramim? Agradeço aos partidários deMiguel? Ou aos que foram nosarroubos do senhormarechal, que quer é um agradecimento público, depreferência frenteaomaiornúmeropossível degente?»,protestara.Oreiencolhera os ombros, o passado era passado, e o que importava era queMariaconhecesseopaíseopaísconhecesseasuarainha,insistira.

Partiam,estavaassente.

Pedro passou pelamãe, com um caderno grosso numamão e um sacocheiodelivrosnaoutra.Mariasoltouneleasuaansiedade:

- Nãome diga que vai tomar notas de tudo, para comparar com o quevemescritonesseslivros-disse-lhe.

Opríncipeolhou-a,espantado:

-Maséclaroquevou,mãe.Vouapontartudooquefaltaàsfábricas,aoshospitais,nasexploraçõesagrícolas,oestadodasestradas...

Mariasorriu:

-Poupe-me,meufilho,queingénuafuiemperguntar!

Sabia bem que nas próximas semanas o ilho mais velho, decidido amodernizar o país, ia transformar esta viagem numa visitade estudo,recolhendotodaainformaçãopossívelparadebatercomAlbertnaslongascartas que se escreviam. Havia momentos em quenão sabia bem o quepensar de Pedro, achava-o por vezes enfadonho,e outras demasiadotrocista, como se nem a mãe, nem os mestres, nem ninguém, talvez àexceção do pai, estivessem à sua altura. Aproveitaria estes dias em queestavamsemprejuntosparaopôrnaordem,pensou.

Háquantotemponãosentiaabrisadomarnocabelo,ossalpicosdaáguanacara,encostadaàamuradadeumbarco?Aúltimaviagemfizera-aaoPorto,enãogostavadeselembrardaentregadocoraçãodopaiàcidade,decomosesentiafrágiledesprotegida,nummundoondetudoeranovo.Antesdisso,foraachegadaaLisboa,achegadaaPortugaldepoisdeanosdeespera,comDomingosaolado,eamortedeAlexandreaindatãovivanocoração.Comotudomudaradesdeentão.DomardaPalhaolhavaparaocasteloeparaSãoVicente.Percebia-secomoacidadecresceranestaúltimadécada,nassetecolinassurgiampaláciosimponentes,eascasasalastravamentreosmontes,começandoacobrirosterrenoslivres.

Umagaivota sobrevoouobarco,emvoobaixo,vindadomar,que nestaaltura do ano ainda estava agitado. Era pelo mar que lhe chegavam ascartas de Vitória e da mana Xica, as notícias do mano Pedro,coitado domano Pedro, o coração partido pela morte dos seus dois únicos ilhosvarões,seriamaldiçãodosimperadoresdoBrasil?

Aolongeviaabarra,enquantoobarcosubiaorioTejo,ealegrou-secoma notícia que há dias chegara: Januária prometia inalmente visitá-la.Diziam-lhe que não era bonita,masmuito bondosa,mãe dequatro ilhos.Seráqueareconheceriavinteeumanosdepois?ComoescreveraaVitória,quandoduaspessoassedeixamemcriançasesevoltamaver,émaisumconhecimentodoqueumreconhecimento.

Distraiu-se a ver como Pedro e Luís disputavam os binóculos paraobservar as margens, onde o povo se juntava para lhes acenar. Comoseriamrecebidosporessepaísfora?

Maria mandou-me um coração de ouro, em iligrana portuguesa,magní ico.Diz-mequeéumajoiadaregiãodoMinho,e iqueimuitogratapelo presente. Escreve-me de Barcelos, no Norte do País, e, pelo quemeconta,aviagemtemsidotriunfal,aopontodeFernandoseterreconciliadocomCoimbra,queosrecebeuapoteoticamente.

Mariadiz-seespantadacomoMinho,egarantequenuncaviunadatãobonitoetãopitoresco.EstáadmiradaporquePedroéoprimeiro duquedeBarcelos a visitar a vila, desde que o ilho deD. João IV o fez hámais deduzentos anos, e ico com a certeza de que a dinastiade Maria estáassegurada quando estes momentos icam consagrados na memória dopovo. A rainha conta, desolada, que o velho paláciodos duques deBragança está em ruínas, e que talvez Fernandopossa ajudar, como seuengenhoearte,apôrdepétmidosmaisantigosbastiõesdafamília.

De resto, sóme fala nomau estado das estradas, e de como é precisomelhorá-las.O que importa é quemeparecemais feliz doque a sinto hámuitotempo,fez-lhebemmudarradicalmentedeares,maslamenta-sedassaudadesdos seus cinco ilhosdeixados emLisboa.Semprequedou comestes seus desabafos compreendo que sou muitomais desprendida dosmeusfilhosdoqueela.Continuaarecusarqueosdoismaisvelhosvenhampassaruniverãoconnosco,oqueétunapena.Escreve-me,maistunavez:«Podesestar certaquequandoosnossos izeremaprimeiraviagemserápara ti, mas só queremos que vão quando puderem tirar dela toda autilidade. »Embrevevoltarei a convidá-los.Tenho imensa curiosidadedeosconhecerpessoalmente.

CastelodeBalmoral,10demaiode1852

PaçodaRainha,Sintra,12desetembrode1852

ueroocabelobemlavadoearranjado-refilouMaria,enquantoascriadastraziamaáguaquenteparaatinacolocadanoquartodevestir,eLurdespreparavatudoparaolavar.

-Duaságuas,queroqueopassesporduaságuas,paraque ique soltoeluminoso, e põe-lhe aquelas gotas de limão que lhe dão semprebrilho -insistia.

Lurdinhas, paciente, ia respondendo a tudo, enrolando o cabelo numlençoldelinho,esfregando-ocomforçaparaosecarbem,eajudandoasuasenhora a sentar-se no toucador, onde uma das damas o começou apentear.

- Com o verão que temos tido, não há maneira de secar. Já viste ahumidadeque estáno ar?Calornosquartos e vento e chuva lá fora,nãoadmiraqueapobredaminhameia-irmãtenhaadoecidodos pulmões,queDeus a conserve, porque senão é que a minha pobremadrasta ica semnada.

Maria sentia-se a cada dia mais angustiada com a saúde da suameia-irmã, que partira há dias para a Madeira, na esperança de que o ar acurasse,masdescon iavaquejáeratarde.Sacudiuoscabelos, paraafastarosmauspensamentos.WilliamRosschegaraaLisboa,enviadoporVitória,comamissãodelhesfazeroretratoatodos,de grandesapequeninos,eoseueraoprimeiro.

Concentrou-sedenovonoespelho:

-Queroocabelonumcarrapito,atiaraqueomeupaimedeua prendê-lo,edepoisaquelearranjoalinanuca-disse,apontandoparauma lorderenda, com itas azuis e brancas, que condiziam com o vestido passado eprontoavestir.

-Esperocabernumaminiatura,massesobrarparafora,cortam- disse,rindo, e Lurdes e as damas icaram sem saber se haviam de rir oucontrariararainha.Marianãolhesdeutempo:

-Ascoisassãocomosão,emaisvalegordaecomsaúde,doqueeleganteebonitacomoaminhameia-irmã,mas...- iadizer«mascomospésparaacova»,masconteve-se.

O vestido de seda azul, a que se sobrepunham duas golas de renda,presascomumbrocheemformade lor,comumapérolapendente, ficava-lhe admiravelmente bem. Olhou-se no espelho, e gostou do queviu.Lurdinhasfez-lheumsorrisodeadmiração:

-OsenhorD.Fernandovaigostarmuito.

Maria corou, subitamente consciente das muitas vezes em que nãosearranjaraparaomarido,masrespondeucomironia:

-Agoraoque interessaéqueosenhorRossgostedoquevêeme façajustiça na pintura, ou a melhore mesmo, porque não estou para ouvir aprimaVitóriaamandar-mefazerdieta.

Fernandosubiaasescadascomosmaispequeninospelamão.PedroestavafardadodeoficialdoExército,comaplacadasTrêsOrdens,eLuíschegou,sentindo-semuitoimportantenafardadeguarda-marinha.

- Todosmuito elegantes - observou a rainha, satisfeita. - E asmeninasondeestão?

Joãosurgiunumacorreria,atempoderesponder:

-AMariaAnaamuou,porqueaTonicadisse-lhequeovestidolhe ficavamal.

Mariafezumgestodeimpaciência:

-Comoéqueovestidolhepodeficarmal,seéigualparaasduas?

Joãoencolheuosombros:

- Também lhe disse isso, mas a Tonica respondeu que a ela lhe ficava

bem,equeàMariaficavamal!

Fernando e Maria esconderam a gargalhada. Antónia era uma artistacomaspalavras,eapobreMariaAnaeraumavítima.

Entregando os rapazes mais pequenos à mulher, Fernando anunciouqueiabuscá-las.

-Nãodissesemprequeasraparigaserammuitomaisdi íceisdo queosrapazes? Olhem se estas pieguices aconteciam convosco -comentou arainhacomosseuscincorapazes.

Oscincoacenaramquesimcomacabeça,eMariadeuumgrito:

- Ai Santíssimo, agora é que estou a ver. Parecem todos gémeos, comessescabeloscortadosàtigela.TenhodeexplicaràprimaVitóriaque,empaíses quentes como os nossos, os meninos não podem andarcom oscabelospelosombros...

PedroeLuístrocaramentresiumolhardetroça.Cabelosàmenina, emdoismilitarescomoeles?Amãevinhacomcadacoisa.

WilliamRossestavaentusiasmado.Ospríncipeserammuitobonitos,eportavam-seadmiravelmentebem.Quandoamãelhesdiziaparaficaremquietos,ficavam.PintouasminiaturasquearainhaVitórialheencomendara,masnãoresistiuadesenharasduasraparigas,queengraçadaseramMariaAna,muitomenina,detrançasesorrisoaberto,easuairmãAmónia,decabelomaiscurto,presoatrásdasorelhascomumgancho,adeterminaçãoemtodasaslinhasdorosto,aprimeiraparecidacomamãefisicamente,maseraasegundaquenitidamenteherdaradelaapersonalidadeforte.

Osdoisrapazesdomeioeramigualmenteirresistíveis.João,opalhaçodafamília, livre da pressão dos dois mais velhos, quase gémeos e emconstantecompetição.Exigirausara fardae insistiacomopintor quenãoseesquecessederetrataraespada,queseguravanamão junto ao corpo.Fernando era uma boneca, quase feminino nos traços, uma casaca develudo azul, rodada a partir da cintura, a camisa branca de punhos derenda,ascalçasembalãoapertadasacimadojoelho,aspernasàvistaeossapatospretos,debailarina,delicadoscomoele.

Nodia emquemostrou o trabalho inal aos reis,Maria sentiu os olhosencherem-sede lágrimas, lágrimasdeorgulho, lágrimasde felicidadeporter uma trupe assim. Fernando passou-lhe o braço pelos ombros eaconchegou-aasi:

-Obrigada,minhaquerida.

Não quero acreditar, estou grávida de novo. Como foi possível? Peditanto que não acontecesse. É aminha oitava gravidez, agora que julgavaqueaidademesalvariadestesuplício.Aprimeiracoisaque izquandotivea certeza foi chamar Albert e dizer-lhe que quero,ordeno, que os meusmédicos aprendam tudo o que há a aprender com o tal Snow, sobre aanestesia com clorofórmio. Não volto a passarpelas dores, nem pelahtunilhação, nem por mais nada. O pobre Albertqueria dar-me osparabéns,abraçar-me,masempurrei-oparalongedemim.Nestemomentonão o quero ver nem perto. Ele que cumpra a sua parte, que trate decolocaraciênciaaomeuserviço.

Háanosqueleiotudooquesaisobreasnovasanestesiaseestoucertade que é seguro, tanto para a mãe, como para o bebé. Vou escrever aMaria,voudar-lheanotíciadestagravidez,naesperançadeque ique desobreaviso e tenha toda a cautela. Clero, que voltou a Lisboa há poucotempo,garante-mequecomedesalmadamente,equetunanovagravidezapoderiapôremrisco.

AgoratenhodeiraoenterrodomeuqueridoamigoWellington,chorareipor ele e por mim. Maria enviou o duque da Terceira ao imeral, comoforma de agradecer os serviços que o almirante prestou a Portugaldurante as invasões napoleónicas. São sempre muito atenciosos nestasquestões, muito gratos, e Maria tem a acrescentar a isto umamemóriapoderosa,paraobemeparaomal.Contou-mequenuncase esquecerádoencontroquetevecomeleaquiemLondresaos9anos,massobretudodecomogostavadeusarasbotasdeborrachacomoseunome,umpresenteque recebeu de Alexandre. Já vivemos muito, e quanto a ilhos,sinceramente,tivemosanossaconta.

CastelodeWindsor,10desetembrode1852

PaláciodasNecessidades,4deabrilde1853

urdesentrounasala,ondeasdamasdavamosparabénsàrainha,assuasbochechasdemoçoiladocampocoradasdevergonha.Aproximou-sedarainhaeestendeu-lheumpequenoembrulhodeseda,presocomumafita,atadanumlaço.

Mariaolhou-acomternura.Deviamuitoaestaalentejana,queháquasevinte anos lhe dedicava a vida. Chorara com ela, rira com ela, seguira assuas gravidezes e os seuspartos, as suasdoenças e angústias, levara-lheem segredo as cartas, mimara-a sempre que a sentia em baixo. E agoraentregava-lheumpresentedeaniversário,nestediaemquefazia34anos.

Sorrindo-lhe,abriuoembrulho.

-Nãoénada,Senhora,sóumlencinhoquebordei.

Num impulso, Maria puxou-a para si e beijou-a na cara, e mostrou olenço às damas que entravam, como se fosse o melhor presente quealguma vez lhe tivessem dado. Lurdes saiu da sala, num pranto. A suasenhorabeijara-a,coisaquenãofaziaanenhumadasdamasdacorte.

Nessa noite, sentada na cama, Maria teve a certeza de que o seupressentimento estava certo.Atribuíra as «faltas» a tudoquanto se podiaimaginar,desdeasralaçõescomamortedasuameia-irmã Amélia,queaos21anosdesapareceraparasempre,atéaoseupeso, quesabiaquepodiaalterar o modo de funcionamento do corpo deuma mulher. Mas agoraestavacertadequenãoseenganara.Esperava denovoum ilho.Asduasúltimas gravidezes tinham terminado comtrabalhosdeparto demorados,sofrimento,eodesgostodeverosseusbebésmortos.Novelongosmesesàesperadeencherdenovooseucolo,deterasatisfaçãodeaconchegarasiumbebé,comaquelecheiroderecém-nascidodeque tantogostava,paranãolherestarmaisdoqueumberçovazio.

Agora, iriadenovoàsarcasbuscarosvestidos, as rendaseos cueiros,

envoltosempapeldeseda,eocheiroaalfazemaeacânforatraria consigoa esperança num desfecho diferente. Não se permitia pensar de outromodo,nemqueaassustassemcomprognósticos terríveis, insinuando queasuavidatambémcorriarisco.

Sobreviveria a tudo. Devia-o à mãe, devia-o aos ilhos, devia-o aFernando, e devia-o a Portugal. Enquanto respirasse, pensaria sempreneles, antes de pensar em si. E até icaria feliz se fosse uma menina,pensou enquanto se aconchegava na cama e sorria com a ideia deprovocardenovoairritaçãodeVitória.

Estou rendida ao clorofórmio, quero erguer uma estátua ao Dr. JohnSnow,porqueLeopoldo,omeuoitavo ilho,nasceusemumador.Insisti emque fosse Snow a administrar-me o anestésico. Colocava umas gotasdadroganum lençoe cobria-meonariz comele, semprequeasdores erammaisfortes.Depoisretirava-oentreascontrações,pelomenosé oquemedizAlbert,porqueacertaalturanãoestavanemcá,nemlá,felizmente.

Snowinsistequenãodeveseroprópriocirurgiãooumédicoaaplicaroproduto, mas alguém que se encarregue apenas disso, para estar maisvigilante, dado que em quantidades excessivas pode fazer perder aconsciência, o que não se pretende de todo. Se assim for, explicou-me, amãenãoconsegueajudarobebéanascer,fazendoforçaparaquedesça.

A certa altura teve de interromper por momentos a administração,porque o meu médico o avisou que as contrações estavam a tornar-semenos fortes e corriammesmoo riscodeparar,mashámuitos casos emque todo o trabalho é mais rápido, não se sabe bem porquê, mas talvezporque amulher, livre daquelas dores terríveis, colaboramelhor. Amimpouco importa omotivo, que o estudem osmédicos, limito-mea usufruirdosbenefícios.

Sei que padres e bispos têm feito sermões de domingo a alegar queoparto sem dor é contra a vontade de Deus, mas nenhum mo veio dizerpessoalmente, porque lhes responderia que blasfemos são eles, poracreditaremqueDeus é cruel e vingativo. PorquedesejariaEle, um Deus

de misericórdia, que as mulheres sofressem ainda mais do que sofrem?Nãomeconstaquepreguemsermõescontraaanestesiaparaaretiradadetumores,ousequerdedentes!

Só espero queMaria não se deixe in luenciar por estas conversas, quesão completamente contra a ciência e o progresso, e aceite usar oclorofórmiono seupróximoparto,queestáprevistoparanovembro. E sealguémprecisa,emerece,éela.

Nãoseiseosmédicosquearodeiamestãopreparadosparaanovidade,porque quando aqui oiço alguns dosmédicos da Real Câmara a dizeremmalde tudooquenão conhecem, suspeito semprequenãoquerem icarmalvistos por não saberem nada sobre a nova descoberta. É muito maisfácil recolherem-se na ameaça de que pode ser perigoso. Assim, seaconteceralgumacoisa,ésempreculpaoudaNatureza,ou deDeus,enemuni,nemoutro,costumamresponderemtribunal.

PaláciodeBuckingham,15deabrilde1853

PaláciodasNecessidades,10demaiode1853

arfalançouacartaparacimadacadeiraquetinhaaolado.

-Fernando,estasuaprimaéboapessoa,masédoida.Qualclorofórmio,qual carapuça. Diz que estava meia a dormir quandonasceu o pobreLeopoldo. Até escreve que assim não teve de ver acriança nua eensanguentada,massó jávestidinhacomfolhoserendas,emesmoassimgarantequeéo ilhomaisfeioquejáalgumavezteve.Massemumador-protestou,irritada.

Fernandoriu,eapanhouacartaparaaler:

-Massetiraasdores,enãoprejudicaamãe,nemobebé,porque équenãohádeserusado?

Mariatorceuonariz,trocista:

-Sabeoqueéqueoclorofórmio lhe tira?Omaugénio,nãoéasdores.Por isso é que ela está contente com aquilo.Mas não tenhomau feitio, enuncameandoparaaíachorarpeloscantosdepoisdenascerumfilho.

Oreideuumagargalhada:

- Lá isso é verdade. O pobre Albert queixa-se que Vitória nosmeses aseguir aos partos tem ataques de histeria incompreensíveis, e pelasúltimas cartas que recebi não está melhor, perde a cabeça com imensafacilidadeeculpa-odetudo.

A rainha icousatisfeita.GostavaqueFernandopercebesseque Vitória,apesardetodaasuainteligência,nãoeraperfeita.

Fernandobeijou-lheamão:

-Aminhaúnicaa liçãocomaminhaqueridamulheréquesequeixade

menos,eesconde-meossintomastodos.Quantasvezeséqueosmédicosjálhedisseramparaficarderepouso,easenhoranãoparatodoodia?

- Não quer que ique aqui meses a io de papo para o ar. Se calhargostavademedarataldrogajá!

- Há dias em que não era má ideia, para ver se era menos teimosa -retorquiuFernandoarir,masaconversaacabouali,porquePedroe Luísentraramcommaismineraisparaacoleção.

Maria icou a vê-los debruçados sobre as pedras, o pai e os dois filhosentusiasmadospelasmesmascoisas.Queesteseubebéviessebem,quecáestariaela,eopai,paralhedartudooqueprecisasse.

OlhouparaaparedeondependuraraoquadrodeFernandoque Vitórialhe mandara, a grande obra de William Ross. Choramingara um poucopara que a prima lho enviasse,mas valia a pena. Fernando agora estavacom barba, mais velho como ela, mas que bem lhe faziaolhá-lo naquelapinturamagní ica.Vitóriatinhaassuasmanias,reconheceu,masninguémamimavamaisdoqueela.

Quando abri a carta deMaria caíram-me no colo selos com o bustodarainha Maria II. São os primeiros selos postais em Portugal, e Albert vaiquerê-losparaasuacoleção.

Conta-mequetêmtidoumtempodeliciosoefeitograndespasseiosapéaté à Pena. Até à Pena, que todos me dizem ser no topo de tunaserraíngreme, quandoosmédicos lhe recomendam repouso!Não tem emenda,masnãoresisteairverosjardins,queafascinamtantooumaisdoqueoedi ício, que na realidade ainda não está terminado.Ao que me conta, amaioria dos visitantes ica mais fascinada pelasconstruções de conto defadas e não aprecia as plantas, os canteiros, as espécies raras, vindas detodas as partes do Mundo. Ri-me com a suadescrição das damas que,segtmdo diz, parecem chinesas, com os seuspassinhos pequeninos eodiandoandarapé-deondetirouaideia,nãosei.Quantoaoresto,sómefala de estradas e de que inaugurou unia via férrea, coisa que espera

«acalmeacabeçaquentedosdescontentes».Talvez.

CastelodeWindsor,25dejulhode1853

PaláciodasNecessidades,15deoutubrode1853

ernandofoitirandoapalhadedentrodapequenacaixademadeiraquenaquelatardechegaradaalfândega,rindodoscomentáriosdeMaria:

- Se acha que vou usar essa coisa, está muito enganado. Se Deusquisessequenãotivéssemosdores,tinhatratadodisso.

O rei afastou a poeira de serradura que cobria o frasco de vidro, econcentrou-se a ler a etiqueta. Estava tão preocupado com a décimaprimeiragravidezdasuamulher.Oventreeraimenso,muitomaiordo queforacomqualquerumdosoutros,eabarrigaconfundia-secom umcorpodilatadoedisforme.Mariacomeraumpoucomenosdoqueocostume,masnãousaraacintaqueosmédicoslhetinhamproposto paraimpedirobebéde crescer demasiado. Como é que uma criançaenorme conseguiriaencontraroseucaminhoparaaluz?-pensou,aflito.

Mariaolhouoclorofórmio,desoslaio.Éclaroquetinhamedo,masdesdeque superaraooitavoparto, aquelequemarcara amorte damãe, estavainteriormente convencida de que o pior já passara.E, de qualquermaneira, de que lhe valia a pena perdermuito tempo em considerações,tudosehaviadearranjar.

É claro que passeara pela serra durante o verão, e como é que podiarecusar montar o seu burrinho para ir com toda a família para a Pena,tornando-seumamulhermaçadoraequeixosa,arredadade todaaalegriadafamília,deixandovagooseulugarnacorte?Nãoseesqueciadecomoamamãeseisolaradetodos,fechadanoPaçodeSãoCristóvão,desiludidaetriste,semencontraracoragemdedesafiarDomitília,deixandoquefosseaoutraaocuparopalco.Nãotornariaavidatãofácilaumaqualquerrival,auma dessas cantoras de ópera que desembarcavam em Lisboa ehipnotizavamoshomenscomasuavoz,oseucharme,oseucorpo.Aindaagora os machos da cidade nãofalavam de outra coisa senão da belacontraltoquechegaradeLondres,Fernandomaisdoque todos,alegando

queeratudoamoràarte.Recusava-sea icarnosbastidores,averavidapassar.

-Fernando, livre-sedepôr issonasmãosdoKessler,doTeixeira ou doFaro, que, como todos os cirurgiões, se devem pelar por novasexperiências!

Oreipousouofrasconumaprateleiraaltaeaproximou-se,beijando-anatesta.Mariaretribuiuobeijoepuxou-oparasi.

- E se deixássemos ao Altíssimo aquilo que a Ele lhe compete?Depoislogofaladedrogascomoboticárioeosmédicos,masagora sente-seaquieconverseumbocadinhocomigo.

-Mãe,ensine-meafazermalha,porquequerofazerumasbotinhasparaomanoquevainascer-pediu-lheMariaAna,sentando-seaoseulado,navarandadospapagaios.

Mariasorriuparaassuasdamas,divertida:

- Se estivéssemos no Brasil, mandava-a apanhar morangos, que eraaquilo de que a minha mãe gostava de comer quando estava deesperanças,mascomestachuvanãotemosoutroremédiosenão icar aquia fazer crochet, por isso dê daí essa agulha e a linha que já lheensino -disse,afagandoocabelodasuafilhamaisvelha.

Tonica apressou-se a pedir omesmo, e amuou zangada quando amãelhe disse que tinha de ser uma de cada vez. Sentou-se num cantodavaranda,viradaparaojardim,osbraçoscruzadoseoqueixo encostadoaopeito.

-ÉsempreaMariaprimeiro,porquetemonomedamãe-resmungou.

Mariadeuumagargalhada:

-MeninaAmónia,sabeumacoisa,eueaminhairmãJanuáriaéramostalequalameninaeasuairmã,sempreàbulha,amediraqueméqueaavóLeopoldinaligavamais,numaciumeirasem im.Edepoisaavómorreu,euvimparaaEuropa,nãoavejohámaisde vinteanos,e todososdiasolhopara o retrato dela que tenho ao lado da cama, e penso que estúpidas

fomos,porquenospodíamosterajudado,podíamosterbrincadomais.

Tonicasaiudolugarondeestavaeagarrou-seàmãe,numpranto saídodocoração,ocorpotremiacomoseafebrelhetivessesubidoderepente:

-Mãezinha,nãomorra,mãezinha,nãomorra.

Aoseulado,MariaAnalargoualinhaedeixouacabeçacairsobre ocolodamãe,tambémemsoluços.

Arainhaolhava-as,incrédula:

-Masoqueéisto,minhasqueridas?Quedisparateéeste?-perguntou,avozzangada.

- Toda a gente diz que a mãezinha corre perigo - explicou, entrelágrimas,amaisvelha.

Tonicaacrescentou:

-Dizemque omano está tão gordo, e que amãe também, e que oseucoraçãovaiparar.

Arainhaabraçou-ascomforça.Eraoquefaltava,queandassem poraíaassustarascrianças,pensou,furiosaedecididaacorrerdopaçocomtodasasdamasecriadas.Olhouàvoltaeviuacriadadosmaispequeninos,comos olhos cheios de lágrimas, e começou o raspanete por ela. A partir dehoje, se sabia que alguém, fosse quem fosse,falava da saúde da rainha,estavanoolhodarua,gritou.

Nessanoite,MariarezoucomfervoràVirgemdaGlória.QueaMãedosCéusaprotegessenesteGrandeMomentoqueaívinha,que aconservassemais uns anos para poder cuidar dos seus ilhos. Depois levantou-se,deitou uma capa quente sobre os ombros e desceu aos aposentos dascrianças,e,nosilênciodanoite,beijouas suascabeçasadormecidas. Umapor uma. Ao inclinar-se sobre Pedro, o seu primogénito, a quem estavaunidacomtodaaforçaqueuneumamãeaoseuprimeirofilho,murmurou:«Que Deus esteja consigo, meu querido,e lhe dê toda a coragem esabedoriadomundoquando chegar a suavezdeusar a coroa.» Iadizer-lhe que se acautelasse sempre com osmarechais e os papalvos, mas

conteve-se. Pedro observava-os desdequenascera, nãoprecisavadequeninguémoavisassedenada.

PaláciodasNecessidades,11denovembrode1853

Senhorasemprevaiaoteatro?-perguntouLurdes,nervosa.Opartoseriaporestesdias,ouviradizeraoDr.Kessler,quenessatardevieracomdoiscolegasobservararainha.

- Não vais começar, também tu, com lamechices, rapariga. Dá-me ovestidodesedapreta,aquelequemandeipassar...

Virando-separaumadasdamas,ordenou:

-Maria, deixe-se deme olhar assim, e vá buscar aquela gola derendaque vesti para o quadro da primaVitória, pelomenos dá alguma graça aestepreto,paraquenãodigamqueestoudelutopormimprópria.

Vendoumaoutrasemnadanasmãos,ordenou:

-Queroomeubrochedeturquesas,quetemaquelesganchosda mesmacor,aquelequeaminhamãemedeu.

-Etu-dissevirando-separaoutradascriadas-,chega-meossapatosdetodos os dias, que não se dá por eles debaixo do vestido, e saltosebiqueirasapertadaséquejánãoaguento.

Fernandoolhou-acomorgulhoquandoaviuabriraportadoquartoesairparaocorredor.Desceramasescadasdemármore,iluminadaspelosenormesarchotespresosàparedeporcorreiaslargas,deixandoverosfrescosdasparedes:

-Estepaçoestámagní icodesdequeosenhortratoudele.Tenhomuitasorteemtercasadocomumreiartista.

Fernandocorou.GostavaqueMariareparassenassuasobras.

- Vai ter é um ilho artista, sabe. Estive hoje a ver os desenhos e as

pinturas do Luís, e são fabulosos. Não liga tanto aos livros como o irmão,mas temuma sensibilidadequePedronão tem.Vou encomendar-lheunsquadrosparaaPena.

Arainhaentusiasmou-se:

- Estou a fazer a lista de toda a roupa de casa que precisamos deencomendar. E a Vitória pediu-me se há algumamaquineta que nos façafaltaparaacozinha,equeelanospossamandarde lá.Atédizquetalvezvenhaparaainauguração,vejalá-comentou,entusiasmada.

Fernando ajudou-a a entrar para a carruagem, espantando-se com aagilidadequeamulherpossuíaapesardopesoqueganharanestesúltimosmeses.

Ailuminaçãopúblicatinhafeitomaravilhas,pensou,olhandopela janelaenquanto a carruagem subia a Calçada do Combro e chegavaao Chiado.Lisboa crescera e mudara muito nos últimos anos, e apesar da criseeconómica de que se falava todos os dias, e dos malabarismos que osministros se tinham visto obrigados a fazer à dívida, averdade é que odinheiro do Brasil e do Oriente chegava aos bolsos dos novos-ricos dacidade, que transformavam parte da riqueza emcasas magní icas, quedeixavamperceberlogonafachadaoluxodo seuinterior.Nãotinhanadacontranovos-ricos,muitopelocontrário,desdequefossemjustosparacomosseusempregadosepagassemosseusimpostos,emborasuspeitassequemuitosnãofaziamnemumacoisa,nemoutra.

O Largo do Chiado estava encantador, esperava que aceitassem oconselho de Fernando e plantassem mais árvores, porque as sombrasfaziamfaltanoverão,egostavasempremuitodestasigrejastãopróximas,quenunca a deixavamesquecer o terramoto. Fora alimesmo queopovose juntara para gritar contra Palmela, pobre Palmela, que já lá estava dooutro lado. Ainda hoje vira Domingos, capitão da sua guarda, e achara-oenvelhecido - sorriu para simesma, porque é que os outros envelheciamsempremaisdepressadoquenós?Comum soproembaciouumcantinhodajanelae,numgestodecriança,comodedodesenhouumA.Gostavadecontinuar a ver-se pelos olhos deAlexandre, alta para a idade, o cabeloloiroemduastranças,assardasquenuncaconseguiaapagardasuapelebranca,osolhosazuisebrilhantes,osgestosimpulsivos,tãocheiadevidae

decertezasdequeomundoseriaseu,seriadeles.

-Crise,qualcrise?Olheparaoteatrocheioàpinha.Vejaosvestidos,eascapelinas,eoscasacosdepeledoshomens.Easjoias?Vejam-meopescoçodaquela senhora, aquilo são pedras vindas do Brasil, garanto-vos eu.Decididamente, a traça não chegou ao bolso destagente - comentava altocom as suas damas que estavam no camaroteao lado, nada preocupadaque a ouvissem, enquanto o binóculo percorria os camarotes e descia àplateia.

Divertida,continuouasuaobservação:

- Olham todos cá para cima, e vejo-lhes a expressão. Leram todos asnotíciassobreaminhasaúdenosjornais,ejulgam-semédicos.ÓMariadasDores - disse para uma das damas -, hás de sugerir a estes senhores esenhoras que abram consultório, de tal maneira parecem sabidos noassunto. Santo Deus, parece que sou a única mulherque já viram emestadointeressante.

Fernando, discretamente, olhava em volta e percebeu que Maria tinharazão,eraparaelaqueseviravamtodasasatenções.Temiamquearainhamorressedeparto,pensou,subitamenteassustado.

Ouviu o marquês de Fronteira comentar com uma das damas que arainha lhe parecia com muito má cara, e deu uma gargalhada quando,rápida como sempre, Maria lhe respondeu que tratasse era de abafar amulherea ilha,eadeixasseempaz.Adoravaogéniotrocistadamulher,queserecusarasempreaprestar-sealisonjaselambe-botas. Desconfiavaque a corte de Lisboa se chocava com a brusquidão dasrespostas dasoberana, levando-lhe a mal que não quisesse «brincarcom elas aostrapinhos»,comoMariadizia.Nasceraecrescerado ladodeládoequador,sem dúvida nenhuma, e todos os dias Fernandodava graças por isso. Ocalor de Maria não tinha nada a ver com oSol envergonhado da suaAlemanha, e se a princípio a intensidadecom que a mulher vivia cadamomentoochocara,hojeadmirava-aprofundamente.

Quandosaíramdo teatro,deu-lheobraçoeapertou-ocom força. Mariavirouosolhosparaoseurostoesorriu.Umsorrisomeigoesuave:

- Está commedo deme perder, meu querido amigo? Não pense nisso,

queaindaaquivouestarmuitosanosparalheinfernizaravida.

Gosto dos dias de chuva e temporal. Hoje está uni dia tão agreste, quecancelei os meus compromissos, e passei a manhã a arruinar osmeusdiários por datas. Se calhar devia queimá-los, porque contêm osdetalhesmais pessoais, e às vezes indiscretos, daminha vida, mas também os detantasoutraspessoas.SóasreferênciasaMariadePortugal enchem umaboa parte deles, para não falar das pessoas de quem digocoisas bemmenos agradáveis, a começarpelo spy JC e a acabar emlord Palmerston.Masdepoisnãosoucapaz,écomosemeimolassepelofogo,parausartunaexpressão dramática, transformando em cinzas todos os meuspensamentos, as minhas experiências, os acontecimentos importantes. Edepoisháumdesejode imortalidade,quesecalhartodos temos,masquetunarainhasentemaisainda.Quero icarparaa História,edesejoqueunidiasesaibaoquerealmentepenseiesenti,comosefossetunadefesaporescrito, uni depoimento jurado, que fará frente às notícias dos jornais,quandoumdiaalgumbiógrafo contaraminhahistória.Por tudo isso,nãoos queimei, nem os rasguei, muitopelo contrário. Limpei-lhes o pócuidadosamenteearruinei-osordenadamentedentrodasarcas.

Agora, o trabalho feito, sento-me a escrever mais unia página, onderegistoomedoquepovoaosmeus sonhos: temoporMaria. Felizmente, oclorofórmiochegouatempo,porqueFernandojámoagradeceu. Mariadiz-meemtodasascartasquenãoovaiusar,esedefactoo partoforrápidoesem sofrimento, comoelame garanteque são sempre os seus, quenãoouse, mas caso contrário, espero que o rei tenha tido o bom senso depreparar a eventualidade com os médicos. Fernando diz-me que lheparece que há pelomenos unimédico que já usou clorofórmio para esteefeito,umtalMagalhãesCoutinho,quefazmuitospartos.

Não nos resta mais nada senão esperar e rezar. E rir, claro, porqueMaria teima comigo que vai ser de novo um rapaz, e eu desejo-lhetunarapariga,naquiloquehojenãopassadeunijogo,porqueambas queremosapenas que venham bem e que nós, as mães, não iquemosfeitasliteralmenteempedaçospeloseunascimento.

PaláciodeBuckingham,11denovembrode1853

PaláciodasNecessidades,14e15denovembrode1853

ntregouaLurdesumacarta,semlhedizermaisnada.Tambémnãoerapreciso,porquearaparigasabiabemondeaentregar.Nosúltimosdiasespreitarapeloóculonoteatronaesperançadeover,esemprequeatravessavaacidadedecarruagemolhavapelavidraçanodesejodeperceberoseuvultonumaqualquerrua,masocondedeTomarcumpriaaameaça,fechando-sesobresimesmo,fugindodeumacorteedeumacidadequeohaviamtraído.Asúltimasnotasbrevesquereceberadeleeramescritasdaquinta,ondediziadedicar-seaoscamposeaoslivros,eameaçavaredigirasmemórias.Mariaesforçava-sepornãolheescrever,certadequejálhedisseratudo,masontemànoite,quandoasdoresnosrins,odesconfortonocorpoeaansiedadenãoatinhamdeixadopregarolho,sóapenaeopapelahaviamsossegado.Rasgaraduasetrêstentativasdecarta,oraporquediziamdemenos,oraporquepecavamporexcesso,eacabaraporlhedizerapenasquesentiaasuafalta,pedindo-lhequerezasseporela.Precisavadassuasorações,desaberquepensavanela,desentirquepodiacontarcomoseuperdão.ErasóissoquediziaacartaqueentregavaaLurdes,ecomelaaesperançadeumaresposta.

-Paraqueéquememandaestarquieta,sesabequefuimordidaempequenapelobicho-carpinteiro?Porissoouvemcomigo,ouficaaqui-refilavacomumadasdamas,queaqueriaimpedirdedesceraopisodascrianças.Arainhainsistiaemirláabaixoassistiraoalmoçodosmaispequeninos,edepoisdissoqueriaverapastadosdesenhosdeLuís,dequeFernandolhefalaranooutrodia,ascomposiçõesdePedro,comoiamasbotinhasqueMariaAnafaziacomafinco,eafraldaqueTonicabordavaparaobebé.João,malaviu,arrastou-apelamãoparaoseuquarto,eapontou-lheumaaguareladeumpoldroquecolaranaparede:

- Está a ver, mãezinha, é um dos netos do Hamlet que nasceu agora.Possochamá-locomomesmonomedoqueomano,seforumrapaz,claro.

Mariadeuumagargalhada:

-Sóomeninoparame fazer riragora.Querumpoldrocomo nome doseuirmão?Estábemvisto.Eolhequeomanodevenascermaisoumenoscomotamanhodesseseucavalinho-disse,afagandooventre,epensandoem como Vitória se divertiria com este comentário do príncipe, ela quecomparava sempre as mães a dar à luz a um qualquer animal da suaquinta.

Quandosubiuacustoasescadasparaoprimeiroandar,percebeu queopaço jáestava todoemsentido.Malditascriadas,que tinhamfeito constarque os primeiros sinais do parto se haviam dado. A estahora, o exércitodomésticojáassumiaosseuslugares,eelanãotinhaoutroremédiosenãoocupar o seu posto. Era preciso preparar as tinas de água, as toalhas, osmédicosvinhamaí,etardanadaossalõesencher-se-iamdetodosaquelesquedealgumamaneiraestavamligadosàcorte.

«Já estão a tirar as fardas e os vestidos de gala da naftalina, quando oúnico que aqui merecia estar, sabes quem era, Lurdinhas? O sapateiro,essesim,équetemlucradodiretamentecomosmeusoitofilhos,queaindaontem voltei a ver a conta que nos mandou», comentoucom a criada,enquantoestaaajudavaadeitar-se,paratentardormirumbocadinho.

Acordoucomobarulhodaportaarangere,surpreendida,viu entrar aimperatrizviúva.Iaprotestar,insistirquenãosemortificassecommaisumparto,maismédicos,maissofrimento,masamadrastapousouamãosobrea sua e beijou-lhe a testa, dizendo: «Nestesmomentos, só queremos terperto de nós uma mãe, e sou o maispróximo de uma mãe que tem naTerra.» Maria olhou-a, agradecida. Leopoldina, a marquesa de Aguiar, aduquesa de Palmela, Leonorda Câmara, todas elas já estavam longe,demasiadolonge.Fez-lheumsorrisomeigo,masrespondeucomosempre:«Senãotemmelhorprogramaparaanoite!»

Amélia levantou a cadeira azul para se sentar junto da cama, eMariaabriu a boca para protestar, para lhe dizer que aquele lugar tinha dono,quando reparou que alguém prendera ao espaldar uma camélia branca.Era a resposta do conde de Tomar, o sinal de amor, de respeito, deconsideraçãoeterna.Fechouosolhos, feliz. Quandoestebebéestivesseaoseucolo,quando tudo istoestivesseacabado,voltariamaosseuspasseios,àssuasreuniõesnavaranda,aopassado.

Olábiojásangravadetantoomorder,easmãosagarravamoslençóisnumnovelo.Sentia-seofegante,terrivelmenteindisposta,masascontrações,emlugardeaumentarem,pareciamdiminuir.Respiravafundo,eaceitavaquelhemolhassemoslábioscomágua.Oquartoestavaquenteecheiodegente.Esforçou-separalevantaracabeça,egracejou:

-Ossenhoresnãotêmmesmomaisnadaquefazer?Jáaquiestãotodoshá horas, não sabem que estas coisas demoram? - disse a Rodrigues daSilveira, Inácio Benavides, Manuel Teixeira, Kessler, e a António Farto, ocirurgião.

Teixeira, de quem gostava tanto, pediu-lhe licença para lhe sentir opulso,mantendoo sorriso, apesardapreocupação.A criançaera enorme,bastavatocaroventreparateracerteza,eotrabalhode partoarrastava-sehájáseishoras,semquehouvesseomenorsinaldeprogresso.Obebénão semexia, nem descia, omais provável é queestivesse jámorto, e seestivessecomoopodiamtirardali?

Trocouumolhar angustiado comKessler, que se aproximouda cama ecom as mãos fez pressão na zona do estômago, procurando empurrar acriança.Baixinhodizia,comonumaoração,«mexe-te, rapaz,mexe-te».Masacriançanãosemovia.

Maria, o suor a cair-lhe pelo rosto, mal foi capaz de retomar a voz,protestou:

-ÓKessler,leveláparaforadomeuquartooseupessimismoalemão,ejá agora dê alguma coisa de jantar ao meu marido, que daquia poucoquemdesfaleceéele.

Kessler riu, nãoera ao imde todos estes anosque se chocaria comos«insultos» de Maria, mas que estava preocupado, estava. Mais doquealgumavezestivera.

A rainha não conteve um gemido, depois outro e outro, e outro, asfeiçõesdistorcidasparanãogritar,ocabeloaescorrerdosuoredaáguafresca dos pachos que Lurdinhas lhe colocava na testa. Depois pareceudormitar, demasiado cansada para reagir, como se até os pulmõesquisessemdesistir.

Fernando segurou o braço de Kessler, e fez sinal a Teixeira e a Farto,para que saíssem do quarto da rainha, passando para o salão que seenchiaaospoucosàmedidaqueanotíciadopartocorriaascasasnobres,e a corte, comoerado costume, vinhaaopaço saudar achegadadonovopríncipe.Fernando,recuperandooar,amãoachegarparatrásamelenaloiraquecaíaparaosolhos,apontounadireção dasuasala.Precisavamdeconversar.

O frasco de clorofórmio brilhava à luz do candelabro de cem velas, ovidro transparente e brilhante. Fernando segurou-o, como se estivesseenfeitiçado,eestendeu-oaomédicoalemão:

-Por favor,deem-lhe isto,deem-lhe isto.A rainhaVitóriadisse-me que,emmuitoscasos,aceleraoparto,nãopodemos icardebraços cruzados,éprecisofazeralgumacoisa.

Kesslerrecebeuofrasco,masTeixeiraabanouacabeça,contristado:

-SenhorD.Fernando,nempensar.Nãosãoasdoresquemepreocupam,masalassidãogeral,aincapacidadedocorpoexpulsaracriança.Comisso-disse,apontandoparaoclorofórmio-entãoéquenadafeito.

AntónioFartonãoestavadeacordo:

-Vamosserobrigadosausarferros,éterrível,masaquelacriança sósaia ferros... vai ser violento, atendendo ao peso da criança, quantomaisadormecidaarainhaestiver,melhor.

Teixeiravoltouaprotestar:

-Nãovamosjáparaosferros,aindanãopassoutempoqueo justifique,talvezarainhaacorde,talvezoestimulantequeagoralhedeiresulte...

O rei voltou a pegar no clorofórmio, e num gesto decidido pô-lo numaprateleiraalta:

-Marianãoqueria estadroga, nãovamosusá-lapara já.Mas ica aqui,icaaquiparaseasdoressetornareminsuportáveis.Nãopodemosdeixarquesoframais,nãoéjusto-dissenummurmúrio.

-FicavamaisdescansadosemeencontrassemoMagalhãesCoutinhoouoLuz-disseTeixeira,poucose importandocomoarofendido de AntónioFartoedeKessler.

Fernando,aopassarporSaldanhaeFronteira,pediu-lhes:

-Tragam-meoMagalhãesCoutinhoouoLuz.Depressa,depressa.

Maria continuava prostrada, as dores pareciam não ser fortes, e ascontraçõestinhamperdidooseupoder.

Asuacamareira-morestranhava:

-Dr.Teixeira,nuncafoiassim,estátudotãoparado.

Abrindoosolhos,arainharepetia,comonumaladainha:

-Nãoénadacomoasoutrasvezes,nãoénadacomoasoutrasvezes.

Fernandoafagava-lheocabelo:

- Mas não tem dores, pois não, minha querida, não tem dores? -perguntava,aflito.Dariatudoparaapouparaestesofrimento.

Maria acenou que não com a cabeça, e vendo a expressão vazia dosmédicos,quejáatinhampicado,drogado,sentadoedeitado,perguntou,avozroucamascomadeterminaçãodesempre:

-ÓTeixeira,sehouvesseperigo,dizia-me,nãodizia?

O médico disfarçou, prendendo-lhe de novo o pulso entre os dedos, edando conta de que estava cada vez mais fraco. Teria uma hemorragiainterna? Perdia as forças de minuto para minuto. O Sol já se levantara,passava das oito da manhã, e se havia esperança de salvara mãe, eraprecisoagirdepressa.

- Vamos tirar a criança, temos de tirar a criança - repetiumais alto, eFarto pegou nos ferros, naqueles horríveis ferros, não havia outrahipótese,eraprecisotirarobebé,fossecomofosse.

-Batizemomenino-ordenouaduquesadeBragança-,batizem-no,por

favor.

AntónioFartopousouosaparelhosepediuummomentodesilêncio.Asgotasdeáguacaíram,frias,sobreoventredeMaria:

-Eutebatizo,emnomedoPai,doFilhoedoEspíritoSanto.

-EutebatizoEugênio-sussurrouarainha,eocirurgiãorepetiu onome,enquantoFernandotapavaabocacomamãoparaconterochoro.

Decidido, o cirurgião avançou, o calor do quarto a embaciar oolhar. Acamareirasubiuparaacama,paraajudaraempurrara criança,porqueéqueacriançanãosaía,VirgemSantíssima?

Osanguejorravaeastoalhasensopavamumasaseguiràsoutras.

-Façaforça,Senhora,façaforça-imploravamTeixeiraeBenavides,masMariajánãopodiafazermaissenãorespirar.

- Não é possível, não é possível - dizia Kessler, agitado -, uma hora decarnificinaenada,ondeestáestacriança?

Os ferrosdilaceraram-lheocorpo,arrastandopara foradesium rapazduas vezes o tamanho de uma criança normal. Rasgaram-na, eahemorragianãoestancava,oslençóismolhadosdesangue,acama,ochão.

- Chamemopatriarca, umpadre, a rainha quer a extrema-unção, querconfessar-se - voltoua implorar amadrasta.Perderaa ilhahá menos denovemeses,conheciaossinaisdamorte.

Mariarecebeuaabsolvição,ossagradosóleos,aspalavrasbondosasdopatricarca,comonumsonho.Fernandoajoelhou-seaoseu lado, indiferenteàspessoasqueseacotovelavamàsuavolta,àspreces,aochorodasdamaseaosilêncioconsternadodosqueesperavamnasalaepercebiamqueeraofinal.Mariafez-lheumsorrisocansado,econsolou-o,comosemprefazia:

-Meuqueridoamigo,opiorjápassou,opiorjápassou,nãojulguequesevêlivredemim,agorasóquerodormirumbocadinho,nãopossomais.

Fernando olhou em redor, assustado. Queria ver esperança na

expressãodosmédicos,massóencontrouconsternação.ODr.Luz chegara,masnemdespiraocasaco.

-Querverascrianças?-perguntouorei,tentandocontrolaravoz.

Mariaabriuosolhosporunssegundos:

- Pobres crianças, não as traga para aqui! Depois, depois quandoacordar,entãosim,querovê-lasatodas.

Pedro saiu de trás do reposteiro, em soluços, Luís e João, logo atrás,incapazes de se manterem ali por mais tempo. Fernando levantou-se deumsalto,eabraçou-oscomforça.Pedrosoltou-sedoabraçoe ajoelhou-senochão,acaraenterradanos lençóis,oseuchoroa fazer tremera cama,comoseumventosetivesselevantadonaquelequartoabafado.Mariaveiodelonge,demuitolonge,doscamposdeervaalta,dasombradojacarandá,daáguafrescadacachoeira,davaranda ondeamãelhesorria,acolhendo-a na rede que balouçava ao saborda brisa da tarde, e, com o que lherestava de força, passou os dedos suavemente pelos cabelos do ilho,despedindo-sedoseupequeninoreidePortugal.

rainhaVitóriarecebeuanotíciacomestupefacçãoehorror,atravésdoembaixadorportuguêsemLondres,ocondedoLavradio.

O icialmente, mandou que cessassem todos os festejos da corte edeterminouquea corte sevestissede lutoduranteoito semanas,oqueoembaixador Lavradio considerou «um facto extraordinário, nesta corteondeoslutosnãopodemsermuitolongos».

Para Lisboa mandou um representante para assistir às cerimóniasfúnebres, e uma esquadra da Marinha, constituída por dois navios deguerraeumafragata,aquesejuntounasemanaseguinteoesquadrão doalmiranteCorry.Pretendiaassimmostrarpublicamenteaosportuguesesoquanto lamentava a morte da rainha, mas também dissuadirqualquermovimento revolucionário destinado a opor-se à nomeaçãode Fernandocomoregentedurantedoisanos,atéqueopequenorei, PedroV,fosseumpoucomaiscrescido.

Mas os gestos protocolares eram apenas um sinal exterior da imensador e perplexidade que Vitória sentia. Dor, e até talvez culpa, angustiadacomaideiadequeoclorofórmioqueenviarapudessedealgumaformaterdesencadeado a morte da rainha. Escreveu a Fernando palavras tãosentidas que o rei respondeu dizendo que não conseguia ler a sua cartasemdesatarnumpranto,agradecendo-lheaamizadeprofundaeconstanteà sua querida Maria, lamentando-se doque seria a sua vida agora queperderaamaisdedicadadasesposas.

«Oquetunãosabes,minhaqueridaVitória,eraaopontoaqueeueelaéramos ligados. Estes grandes afetos, quando são estilhaçados, deixamumavida tristeeumadordi ícildecurar.Tenhoosmeus ilhos, que amotanto, e que são tão bonitos e bons,mas umamulher que nos ama, nadapode substituir.» Disse-lhe que não tinha sido o sofrimento e as dores amatarasuaadoradaMaria,«masafadigaeafraqueza.Creio queosseusnumerosospartosenfraqueceramdetalformaoseuorganismo,quejánãosentianemmesmocontraçõesfortesedolorosas».

MasaosaberqueD.Amélia,duquesadeBragança, imperatriz viúva doBrasil e madrasta de Maria, assistira a tudo, enviou-lhe uma série decartas,ondeimploravaquelhecontassetodososdetalhesdatragédia, lherespondessea todasasperguntas.A imperatrizviúva agradeceuà rainhada Grã-Bretanha «o amor que há tanto tempo devota» à enteada, eassegurando-lhequenãolevavaamaltodasasquestõesquelhequisessecolocar, porque também ela sabia, por experiência própria, «como se faztudoparaconseguirosmaispequenosdetalhesdosúltimosmomentosdaspessoas que amamos e que perdemos por estar longe delas nestederradeiromomento».

Em três longascartas, aceitoucontar-lhe tudoaqueassistira.Explicou-lhe,pordiversasvezes,queforaafaltadecuidadosdarainhaemrelaçãoàdieta e às recomendaçõesmédicas que levou a que a criançaengordassedemasiado,sendo«orapazinhodemasiadoenormeparaver aluzdodia,easuamãenãoteveforçasnecessáriasparaometernomundo».Ode luxoquesofreudemanhã,eescondeudetodaagente,apossibilidadedeumahemorragia interna e a hemorragia provocada pelos ferros e que osmédicosnãoconseguiramestancar,terãofeitooresto.

Quanto ao clorofórmio, sossegou-a: «Ignorava que tinha enviadoclorofórmio a Fernando, mas será que nas circunstâncias queacompanharam o parto da nossa pobre Maria, sem dores e com estedesvanecimentoletárgico, teriasidoconvenienteaplicá-lo?»Eacrescentoulogo de seguida: «Mas, pelo que uma vez ouvi dizer a Maria, quandofoinecessário clorofórmioparauma situação completamentediferente desta,julgo que se recusaria a usá-lo, sobretudo aqui, onde não existe grandeexperiêncianasuaadministraçãosemperigo.»

Seismesesmaistarde,emmaiode1854,VitóriaeAlbertreceberamavisitadePedro,com16anos,edeLuís,de15anos.ApromessadeMariaerafinalmentecumprida.EmBuckingham,oreidePortugalencontroupenduradosnasparedesretratosdamãe,dopai,desipróprioedetodososirmãos.MasumdeleseraumpresenterecentedeAlberteparticularmentepreciosoparaVitória:umaminiaturadeMariacom9anosdeidade,ovestidoverdequeusaranobaileemquesevirampelaprimeiravez.

ADELAIDEDESAXE-MEININGEN,DUQUESADECLARENCE-Nascidaa13deagostode1792,foiduquesadeClarencee,posteriormente,rainhaconsortedeInglaterra,pelocasamentocomWilliam,queascendeuaotronocomoWilliamIV.Doseucasamentonãohouvefilhossobreviventes,peloqueasucessãoficounaprincesaVitória.AcabaráporfaleceremBentleyPriorya2dedezembrode1849.

ALBERT DE SAXE-COBURGO-GOTHA, PRÍNCIPE CONSORTE DEINGLATERRA- Albert, nascido em terras germânicas a 26 de agosto de1819, foiapresentadoaVitóriacomoumdospossíveispretendentesaumfuturocasamento.PrimodireitodarainhadeInglaterra,peloladomaterno,casarama10defevereirode1840,nacapelarealdoPaláciodeSr.James.AlberteratambémprimodeFernando,trocandoassíduacorrespondênciacom o rei,os embaixadores e os enviados pela família real a Portugal,nomeadamenteocoronelWylde,emaistardecomopríncipeD.Pedro,dequemgostavacomodeumfilho,segundoaspalavrasdeVitória.Morreriaa14denovembrode1861,noCastelodeWindsor,defebretifoide.

ALEXANDRINA VITÓRIA, RAINHA VITÓRIA DE INGLATERRA -Alexandrina Vitória, nascida a 24 de maio de 1819, ilha do príncipeEdward,duquedeKent,oquarto ilhodoreiGeorgeIII.Ambosmorreramem1820,sucedendonotronoGeorgeIV.Pelamortedaúnica ilhadorei,aprincesa Charlotte, Vitória tornou-se a herdeira presuntiva do trono.Educada longe da corte, pelamãe, a princesa Vitória de Saxe-Coburgo-Saalfeld, recebeu o seu primeiro diário da mãe, quando fez 13 anos. Osdiários deste romance histórico sãoinspirados nos verdadeiros, ondeescreve comentários a Maria II e à situaçãopolítica portuguesa, e naimensa correspondência que trocou com Maria, Fernando, a família,ministroseembaixadores.Aos18anosdeidade,Vitóriatorna-serainhadeInglaterra.CasacomopríncipeAlbertdeSaxe-Coburgo-Gotha,primodeD.Fernando,reidePortugal,em1840.Destecasamento nascemnove ilhos,e vinte e seis dos seus netos e netas casariam nas maisimportantesfamíliasnobreseuropeias,oquelhevaleuoepítetode«aavó daEuropa».Morreua22de janeirode1901,com81anosde idade,após 63anose7mesesdereinado.

AMÉLIA DE BEAUHARNAIS, IMPERATRIZ DO BRASIL, DUQUESA DE

BRAGANÇA -Amélia, nascida a 31 de julho de 1812, pertencia às novasfamílias aristocratas da Europa. Foi a eleita para segunda mulher de D.Pedro 1, imperador do Brasil, com o qual contraiu matrimónio, porprocuração, a 30 de junho de 1829. De regresso à Europa, partilhou oexílio com o marido e a enteada eteve uma ilha, a princesa D. Amélia.Procurou junto de D. Pedro II do Brasil conseguir uma pensão e oreconhecimento de ambas como parte da Casa Imperial Brasileira, maspara além de ser recusado o reconhecimento, foram proibidas de entrarnoBrasil. Só seriam reconhecidas namaioridade deD. Pedro II e, a 5 dejulho de 1841, integraram a Casa Imperial Brasileira. Amélia, irmã deMariaII,viriaafalecera4defevereirode1853.FicouaviveremLisboa,até à data da sua morte, 26 de janeiro de 1876. Os seus restos mortaisforamtrasladados para o Brasil, em 1982, jazendo agora na Cripta doMonumentoàIndependênciadoBrasil.

ANA ROMANA DE ARAGÃO CALMON, CONDESSA DE ITAPAGIPE -NascidanaBaía,a9deagostode1784,noseiodeumaimportantefamíliabrasileira, uniu-se por casamento ao português desembargador-conselheiroFrancisco XavierCabraldaSilva,conselheirodeD.JoãoVI.Deregresso ao Rio de Janeiro, entrou como dama da corte, tendo servido aimperatrizD. Leopoldina.A ascensão aopoderdeDomitília deCastro, dequem era amiga íntima, foi devidamente recompensada, sendo a dama,então já viúva, agraciada como título de baronesa de Itapagipe, a 12 deoutubrode1825,e, logoumanomaistarde,elevadaaotítulodecondessade Itapagipe. Foi dama-camaristada princesaD.Maria daGlória, a quemacompanhounaviagemàEuropaem1828.RegressouaoBrasilnamesmaarmada que levava a nova imperatriz,D. Amélia, de quem foimestra dePortuguês e camareira-mor. Após a partida de Pedro e Amélia para aEuropa, a condessa de Itapagipe continuou no Paçode São Cristóvão.Faleceua10denovembrode1862.

ANTÓNIA,PRINCESADEHOHENZOLLERN-FilhamaisnovadeD.MariaII,nasceua17defevereirode1845.Eraconsideradaumainfantarebelde,muito mimada, mas culta e educada. Aquando do casamento de Pedro eEstefânia,conheceLeopoldo,irmãodanovarainha,comquemviriaacasara12desetembrode1860,partindoparaoseuCastelodeSigmaringen.Jáviúva, regressou a Lisboa em 1887. Faleceria em Sigmaringen, a 17 dedezembrode1913,tendodadoàluztrês ilhos,umdelesviriaaserreidaRoménia.

ANTÓNIOBERNARDODACOSTACABRAL,CONDEDETOMAR-Filhodeummodestolavrador,nasceuemFornosdeAlgodresa9demaiode1803.Educado por um clérigo, conseguiu tão bons resultados académicos queentrouprecocemente na Universidade de Coimbra, licenciando-se emDireitocomapenas20anosdeidade.Liberalconvicto,alista-senashostesliberais em1828, seguindo para o exílio e o regresso à ilha Terceira,estando presente nocerco do Porto. A vitória liberal fê-lo regressar aosAçores, onde se tornoujuiz no novo Tribunal da Relação dos Açores, emPonta Delgada. Aí conhecea sua futura esposa, LouiseMitchellMeredithRead, enteada do cônsulbritânico nosAçores. Em1834 é o candidato daesquerda liberal da ilha às eleições, chegandoaLisboaem1836.Os seusdotes de orador começaram a ser elogiados, foi-se aproximando daesquerda moderada, tornou-se membro da Maçonaria e acabou por sernomeado administrador-geral de Lisboa para reorganizar as GuardasNacionais sublevadas. Costa Cabral protagonizou ministérios, golpes econtragolpes, sendo personagem principal desteperíodo de grandeinstabilidade política. Afastou-se dos Setembristas quetinha apoiado,começou a enriquecer e a favorecer parentes e apaniguados. Foi exiladoemMadrid,regressouaLisboa,edurantetodootempocontoucomoapoioincondicional de D. Maria II, que o nomeou conde de Tomar, dando-lhe,assim,lugarnaCâmaradosPares.OcupouaindaocargodeembaixadornoBrasileemRoma,sendoelevadoamarquês,porD.Luís1,a11dejulhode1878.

AUGUSTO,DUQUEDECOIMBRA-Nasceua14denovembrode1847efaleceua26desetembrode1889.Foioúnico ilhodeFernandoaaceitaro seu segundo casamento, tendo chegado a viver em Sintra com o pai ecomamadrastaeacompanhando-osemviagensinternacionais.Porsetermantido solteiro e sem ilhos, correram rumores de que estariaapaixonadopela jovemmadrasta;damesmaforma,disse-senaépocaquea doença que tinhavitimado os irmãos o tinha diminuído ísica epsicologicamente.

CARL DIETZ - Mestre de D. Fernando, acompanhou o aluno a Lisboaaquando do seu casamento com D. Maria II, com o objetivo de serprofessordos futuros ilhos. Conselheiro muito próximo dos monarcas,rapidamenteseviu envolvidonas intrigaspalacianasepolíticas.AcabariaporterdeabandonarPortugalenãomaisreencontrariaosseuspupilos.

DOMINGOS DE SOUSAHOLSTEIN,MARQUÊS DO FAIAL, 2.° DUQUE DEPALMELA- Sucedeu ao ducado por morte do pai, tendo já falecido oprimogénito da Casa, Alexandre de Sousa Holstein. Casou, em julho de1836, com MariaLuísa de Noronha e Sampaio, ilha do conde da Póvoa,icando detentor deuma vasta fortuna. Deste casamento nasceriam duasfilhas.

DUQUEDESALDANHA-A17denovembrode1790nascia JoãoCarlosd eSaldanha Oliveira e Daun, neto do marquês de Pombal. Seguindo acarreiradasarmas,lutoucontraaocupaçãofrancesa,aoladodosexércitosingleses.Rumou depois ao Brasil, tendo desempenhado importantesfunçõesnoRioGrandedoSulerecebendoelogiosdeD.Pedro.RegressadoaLisboaem1821,aípermaneceuatéàmortedeD.JoãoVI,sendoumdosmuitos liberaisque partiram para o exílio aquando da aclamação de D.Miguel.OseuprestígiomuitocontribuiuparaacausadeD.MariaII,masasituaçãopolíticaeraextremamenteinstáveleváriasforamassituaçõesdecon lito,chegandoarainhaaretirar-lheocargodemordomo-mordaCasaReal. Viria a falecera 20 de novembro de 1876, depois de terprotagonizadoosmaismarcantesepisódiosdoreinadodeD.MariaII.

D. PEDRO, IMPERADOR DO BRASIL, REI DE PORTUGAL, DUQUE DEBRAGANÇA- Segundo ilho varão de D. João VI e D. Carlota Joaquina,nascidoa12deoutubrode1798,tornou-se,apósamortedoprimogénito,príncipe real.Várias foramassuasamantes,antesedepoisdocasamentocomLeopoldinadaÁustria.AmaisfamosafoiDomitíliadeCastro.AmortedeD. JoãoVI,em1826, tornouPedro1 imperadordoBrasilemPedro IVrei de Portugal.D. Pedro, temendo a tentativa de golpe que o irmão D.Miguel poderiarealizar em Portugal, abdica da coroa portuguesa a favorda ilha, Maria daGlória, que se torna, assim, Maria II de Portugal. Oprojetoeracasara ilha comoirmão,D.Miguel,queseriaregentedoreinoatéà suamaioridade.MasD.Miguelnãoestavadispostoadividiro trono.EmLisboa,nasCortesdejulhode1828,éaclamadoreidePortugal.A7deabril de 1831, D. Pedro abdica da coroa brasileira no ilho,D. Pedro II, àdata com 5 anos de idade.Embarca para a Europa, onde procura apoiosparaacausadarainhamenina. AsGuerrasLiberaisarrastam-seaté1834,com avanços e recuos de ambasas partes. A 26 de maio de 1834, osmiguelistas capitulam pela Convençãode Évora Monte. Regressado aLisboa, viria a falecer a 24 de setembro de1834, deixando no trono doBrasilofilhoD.PedroII,enodePortugal,afilhaD.MariaII.

FERNANDO DE BRAGANÇA SAXE-COBURGO-GOTHA, INFANTE DEPORTUGAL -Sétimo ilhodeD.Maria IIedeD.Fernando,herdouonomedopai.Nasceua23dejulhode1846eviriaafalecercomapenas15anosde idade, noPaláciodasNecessidades, comamesmadoençaquevitimouosirmãos,PedroeJoão,nodia6denovembrode1861.

FERNANDODESAXE-COBURGO-GOTHA,REICONSORTEDEPORTUGAL-Nascidoa29deoutubrode1816,viu-sereiconsortenumdosmaisdi íceisperíodos políticos da História portuguesa. Repetidamente acusado de seafastar dapolítica, era chamado de rei-artista, e dado ao desenho, àpintura, à escultura e ao canto.O casamento comD.Maria II foi dosmaisharmoniosos. O seugrande projeto chegou aos dias de hoje, o Palácio daPena. Após a viuvez,assumiu a regência do reino na menoridade de D.PedroV.Em1869,casariamorganaticamentecomacantoradeóperaEliseHensler, feita condessa d'Edla, e passariam a habitar no Chalé daCondessa, no Parque da Pena.Este casamento foimal aceite pelos ilhos.Morre a 15 de dezembro de 1885 e é sepultadoao ladoda suaprimeiramulheremãede todosos seus ilhos.Comoherança,deixaria à condessad'EdlaoPaláciodaPena,quetinhaconstruídoasuasexpensaspessoais.Sóno reinado de D. Carlos se resolveu a questão e o palácio passou a serpropriedadedoEstadoemonumentonacional.

FRANCISCACAROLINA,PRINCESADE JOINVILLE-Sexta ilhadePedroeLeopoldina, nasceunoRiode janeiro a2de agostode1824, eMaria IIsemprereferiu a «manaXica» como a sua favorita. A 1 demaio de 1843casou, noRio, comFrancisco deOrleães, príncipe de Joinville e duquedePentièvre.Tornou-se, assim,noradoreideFrança,LuísFilipe.Nodiaemque a rainhade Portugal morreu, Francisca entrava no Tejo, para umavisitaàirmã.MorreuemParis,a27demarçode1898.

FRANCISCO DE ALMEIDA PORTUGAL, CONDE DO LAVRADIO - Oitavoilhodo 3.°marquês do Lavradio, nascido a 12 de julho de 1797. Foi umd o smais hábeis diplomatas do seu tempo. Em 1818, foi nomeadoconselheiroda embaixada portuguesa em Madrid, e posteriormente emParis. Liberalconvicto, recusouserministroemFrança,quandonomeadopelogovernoresultantedaVila-Francada.Em1824,parteparaosEstadosUnidoscomoencarregadodenegóciose,em1826,apósamortedeD.JoãoVI, é chamadopela infanta-regente D. Isabel Maria para conselheiro eministro em Portugal.Confrontado com a chegada de D. Miguel e a

usurpaçãodotrono,Francisco deAlmeidapartiuparaPariseapresentou,juntodosreis,assuascredenciais comorepresentantedaregência liberaldeD.PedroemnomedeD.MariaII, quenaalturanãoforamaceites.Foiogrande responsável pelo acolhimento aD. Pedro,D. Amélia eD.Maria II,promovendo encontros entre os liberais exilados, ajudando a organizar aexpediçãoaPortugal e regressando coma suarainha,queonomeou,a1dedezembrode1834, condedoLavradio e o escolheu comodiplomata anegociarocasamentocomD.FernandoII.Viria afaleceremRoma,aos73anosdeidade.

FELISBERTO CALDEIRA BRANT, MARQUÊS DE BARBACENA - Nasceuem 1792em Minas Gerais, ilho de um general. Estudou em Lisboa,regressando ao Brasil na comitiva de D. João VI. Após a declaração daindependência doBrasil, foi deputado às Constituintes; foi nomeadocomandante-chefe dasforças brasileiras que participaram na Batalha deItuzaingó. Em 1825 recebeuo título de visconde de Barbacena, e no anoseguinte foi elevado a marquês.Foi conselheiro de Estado, mordomo daimperatrizemarechaldoExército brasileiro,falecendonoRiodejaneiroa13dejunhode1842.Acartaqueescreveuaoimperadordizendo-lhequevaiacabarnummanicómio,citadanesteromance,éverdadeira.

GEORGE IV, REI DE INGLATERRA - Nascido a 12 de agosto de 1762,subiuaotronodeInglaterraapósamortedopai,GeorgeIII,a19dejulhode 1821.Casou com a princesa Carolina de Brunswick. Separaram-seo icialmenteapósonascimentoda ilha,Charlotte, em1796.O reiGeorgeIII decidiupediracustódiadanetaqueseriaherdeiradotrono,entrandopai e ilhanuma verdadeira batalha jurídica, que chegou a colocar emtribunalaprincesaCarolina,aquemacusavadetertidoum ilhoilegítimoapósaseparação.A ilha,Charlotte,casoucomLeopoldodeSaxe-Coburgo-Saalfeld, masa suamorte prematura, a 6 de novembro de 1817, deixouGeorge IV semdescendentes legítimos do trono. Viria a falecer a 26 dejunhode1830.

ISABELII,RAINHADEESPANHA-MariaIsabelLuísa,nascidaem10deoutubro de 1830, era a ilha mais velha de Fernando VII e de MariaCristinadeBourbon(sobrinhadomarido).FoicoroadarainhadeEspanhacom apenas 3 anos de idade, sendo declaradamaior aos 13 anos. O seucasamento,forçadoparatentarmanterapaz, foicomumprimo,o infanteFrancisco de Bourbon, que nunca semostrou disposto a conviver com a

esposa, chegandoahaver fortes rumoresdehomossexualidade.A rainharodeou-seentãodevários«favoritos»,sucedendo-seosamantes,oquelhereduziu apopularidade. A 17 de setembro de 1868, um golpe militardepõeIsabelII,queconseguiufugirparaParis.O ilho,AfonsodeBourbon,veioaserreideEspanha.IsabelcontinuouaviveremFrança.Divorciou-seo icialmente em1870, continuando, no entanto, a receber o marido e asustentá-lo.FaleceuemParisa9deabrilde1904.

JANUÁRIAMARIA,CONDESSAD'ÁQUILA-JanuáriaMarianasceunoRiodeJaneiro a 11 de março de 1822, ilha dos imperadores Leopoldina ePedro I.A28deabrilde1844, casariacomLuísCarlosdeBourbon, ilhodo reidasDuasSicílias,Francisco1.Viúvadesde1897,viriaa faleceremNice, a 13 demarçode1901,mãede três ilhos sobreviventes (emcincopartos).NuncavoltouaverairmãMaria.

JOÃODEBRAGANÇASAXE-COBURGO-GOTHA,INFANTEDEPORTUGAL-Quarto ilhodeD.MariaIIeD.Fernando,D.João,duquedeBeja,nasceua16 demarçode 1842. Seguiu a carreiramilitar. Acompanhouo irmão,D.Luís, nacomitiva do casamento da infantaD.Maria Amónia. D. João icoudoentepouco dias depois de chegar e acabaria por falecer a 27 dedezembrode1861.

LEONORDACÂMARA,MARQUESADEPONTADELGADA-Nascidaa30de maiode 1781, foi dama da rainha D. Carlota Joaquina aquando doregressoaPortugal.Reconhecidamenteliberal,foiconvidadapelomarquêsdePalmelaparaaiaemestradarainhaD.MariaII.Acompanhouarainhade Portugalaté ao Rio de janeiro, regressando com ela à Europa e atéLisboa. Poucotempo passou em Lisboa ao serviço da rainha, porque D.Pedro demitiu-a doserviço do paço. O duque de Bragança quis dar-lheuma generosa pensão, quea dama recusou. Seria recompensada por D.MariaII,queatornamarquesadePontaDelgada.Estãopublicadasváriasdassuascartas,integradasnesteromance,aoprimoFranciscodeAlmeida,mais tarde conde do Lavradio. Utiliza a expressão «o Homem» para sereferiraD.Pedro,eassuascríticasaoimperadorsãoacutilantes.

LEOPOLDO DE SAXE-COBURGO-GOTHA, REI DA BÉLGICA - Príncipealemão,nasceuemCoburgoa16dedezembrode1790.Trilhouacarreiramilitar ecasouem1816comaprincesaherdeirade Inglaterra,CharlottedeGales,única ilhalegítimadeGeorgeIV.A5denovembrode1817,teve

um rapaz,nado-morto, eCharlottemorreunodia seguinte.Depoisdeumsegundo casamento com uma atriz, que terminaria com a separação docasal, Leopoldocasou-secomaprincesa francesaMariaLuísadeOrleães,filhadeLuís1,reideFrança.Entretanto,aBélgicatornou-seindependentedos Países Baixos eo CongressoNacional daBélgica, analisando todos oscandidatosàcoroa,convidouLeopoldo,quesetornou,assim,a26dejunhode1831,«reidosbelgas».Foi«responsável»pelocasamentodeMariaIIede Vitória com doisdos seus sobrinhos. Faleceria a 10 de dezembro de1865, sendo sepultado nojazigo familiar no Cemitério de Laken, emBruxelas.

LOUISELEHZEN,BARONESADELEHZEN-Filhadeumpastor luteranod eHannover, Louise Lehzen, nascida a 3 de outubro de 1784, foi apreceptora de Vitória. Albert chamava-lhe «o dragão da casa». Em 1842,Louise Lehzené afastada do serviço da rainha e abandona Inglaterra,regressando à Alemanha, sendo sustentada por uma generosa pensãoenviadaporVitória, econtinuaareceberassíduacorrespondênciadasuaantigapupila.Morrea9desetembrode1870.

LUÍS1,REIDEPORTUGAL-Segundo ilhodeMariaeFernando,nasceunasNecessidadesa31deoutubrode1838, tornando-seduquedoPorto.Em1861,acompanhoua irmãMariaAnaatéLondres,deonderegressouporsaberdanotíciadamortedoirmãoFernando.ÀchegadaaLisboasabequePedromorreutambém,eéeleagoraoreidePortugal.D.Luís foiumreipopular, conseguiu equilibrar as várias facções políticas e obteve umreinadoderelativaestabilidade.CasoucomMariaPiadeSaboia,dequemtevedoisfilhos,eveioafaleceremCascaisa19deoutubrode1889.

LURDINHAS, ROSA, FLORICA E JAIME SÃO PERSONAGENSFICCIONADAS.

MARIAANA, PRINCESADA SAXÓNIAREAL - Nascida a 21 de julho de1843,foiquemsubstituiuamãenaorganizaçãodacasaapósamortedeD.MariaII, icandomuitopróximadetodososirmãos.Casoua11demaiode1859,nacapeladoPaçodasNecessidades,comFredericoAugusto,duquedaSaxóniaReal,indoviverparaDresden.Doseucasamentonasceramoitoilhos.Quando o mais velho, Albert, icou gravemente doente, a mãepermaneceusempre junto dele. O ilho curou-se,mas amãe sucumbiu àdoençaeaocansaço,vindoafalecera5defevereirode1884.

MARIAFRANCISCADEPORTUGALECASTRO,MARQUESADEAGUIAR-NascidaemLisboa,a24desetembrode1782,MariaFranciscapartiuparao Brasilcomospaisaquandodadeslocaçãodafamíliareal.Casariacomoseu tio,D.Fernando JosédePortugaleCastro, trintaanosmaisvelhoqueela.FoidamadarainhaD.Maria1edaimperatrizD.Leopoldina,estandonessaaltura já viúva. Foi mestra dos príncipes e amiga próxima deLeopoldina, quelhe dita a sua última carta-testamento, em que lhe pedequecuidedassuas«queridasfilhas».

MARIA LEOPOLDINADA ÁUSTRIA, IMPERATRIZ DO BRASIL - Filha deFrancisco1eMariaTeresa,primeirosimperadoresdaÁustria,Leopoldina,nascidaa22dejaneirode1797,cruzouooceanoparasecasarcomPedrod eAlcântara. Em 25 de abril de 1821, os seus sogros e cunhadosembarcamderegressoaLisboa.PedroeLeopoldina icamnoBrasil,comoregentes doBrasil. A situação política era já di ícil de controlar. A 13 deagosto de 1822,D. Pedro parte para apaziguar os levantamentos de SãoPaulo, nomeando-achefe do Conselho de Estado e princesa regenteinterinadoBrasil,compoderes legaisparagovernaropaísduranteasuaausência.ÉnesseperíodoqueaprincesarecebeinformaçõesdePortugal,emquesegizavaumataquemilitaraoBrasil.Leopoldina,apoiadaporJoséBonifácio de Andrada eSilva, reúne-se com o Conselho de Estado namanhã de 2 de setembro,assinando o decreto da Independência,declarandooBrasilseparadode Portugal.Ajáimperatrizenviaumacartaao marido, que acaba por dar ofamoso «Grito do Ipiranga»:«Independência ou Morte». Nessa viagem a SãoPaulo, D. Pedro conheceDomitíliadeCastro,comquemmanteráuma longarelação.Aúltimacartaqueescreveuàirmã,ditadaàmarquesadeAguiar(e queédefácilacessoatravésdaInternet),descreveatorturaeosmaustratos dequefoialvo,eaqueatribuiacausadasuamorte.

MARIANACARLOTAVERNADEMAGALHÃESCOUTINHO,CONDESSADEBELMONTE - Mariana Carlota Verna nasceu em Elvas em 1779.Embarcariapara o Brasil com a família real, sendo dama da princesa erainha D. Carlota Joaquina e, posteriormente, da princesa D. Leopoldina.Viúva desde 1823,D.Mariana foi afastadado serviçodopaçopor razõesatéhojeporesclarecer.D.Marianaseriadenovochamadaaopaço,apósamorte da imperatriz,para aia e mestra do futuro D. Pedro II. Comorecompensa pelos serviçosprestados, D. Pedro II torná-la-ia condessa deBelmonte,pordecretode5demaiode1844.FalecerianoRiodejaneiroa

17deoutubrode1855.

MIGUELDEBRAGANÇA,INFANTEEREIDEPORTUGAL-FoiosegundofilhovarãodocasamentodeD. JoãoVIeD.CarlotaJoaquina.Partiucomafamília para o Brasil, de onde regressaria em 1821. A família real foiobrigada ajurar a Constituição ainda antes do desembarque. D. Migueltornou-se uminfante rebelde, protagonizando vários golpes militares - omais famoso foia Vila-Francada, tentando acabar com as Cortes. Seria«exilado» em Paris,sob a capa de visita de estudo de um príncipe, e daípartiria para Viena deÁustria. É nessa cidade que, em1826, amorte dopai o surpreende, é aí quejura idelidade a D. Pedro IV e aceita ocasamentocomasobrinha,ejuraaCartaConstitucional.RegressaaLisboaemfevereirode1828,é jurado príncipe-regenteemCortes,masem julhodo mesmo ano era aclamado rei de Portugal. Seguem-se as GuerrasLiberais, de onde sai derrotado. A Convenção de ÉvoraMonte deixá-lo-iasem bens, sem títulos, banido de Portugalpara toda a eternidade(incluindo os seus descendentes). Em 1851, casou coma princesa D.AdelaideSofiaRosenberg,dequemtevesetefilhos.FalecerianaAlemanha,a 14 de novembro de 1866, sessenta e quatro anos exatos desde o seubatismo.

PAULAMARIANA-NasceunoRiodejaneiro,a17defevereirode1823,quinto rebento do casamento de Pedro e Leopoldina. Foi sempre amaisfrágildas irmãs, com acentuadas faltas de ar que o clima tropical nãoajudava asarar. Viria a falecer a 16 de janeiro de 1833, com apenas 10anosdeidade.

PEDRO E EUGÉNIA DE SOUSA HOLSTEIN, MARQUESES E DUQUES DEPALMELA-PedrodeSousaHolsteineramarquêsdePalmela.Exilou-seemInglaterraaquando do juramento de D.Miguel como rei de Portugal e, asuasexpensas,ajudouacoordenaras forças liberaisdefensorasdacausadarainha.D.MariaIIconviveuintimamentecomosmarquesesdePalmelaeseusfilhos,particularmentecomAlexandredeSousaHolstein,queviriaafalecer nos Açores, vítima de tuberculose. A ligação entre os dois é, noentanto, iccionada.De regresso a Lisboa, D. Maria II elevou o título aduque de Palmela. Palmelafoi chamadoa formarministérios emvários edistintosmomentoseviriaafalecera12deoutubrode1850.Casariaa4dejunhode1810comD.EugéniaTelesdaGama,nascidaa4dejaneirode1798.Destecasamentonasceriamquinze ilhos,entreosquaisAlexandre,

EugéniaeDomingosdeSousaHolstein.

PEDROII,IMPERADORDOBRASIL-Nasceua2dedezembrode1825etornou-se,comapenas5anos, imperadordoBrasil,pelaabdicaçãodopai,D. Pedro 1. Consagrado aos 14 anos de idade, Pedro II tornou-se numférreoimperador.Casoua30demaiode1843, comaprincesadasDuasSicílias,Teresa Cristina. Do matrimónio nasceram quatro ilhos: doismeninos e duasmeninas. Os dois rapazes morreriam em pequenos.Duranteasuagovernação,aboliuaescravatura,cumprindooacordocoma Grã-Bretanha. Apesar do grande apoio popular granjeado, Pedro II édeposto por um golpe militar. Exilado na Europa, vê a esposa falecerpoucos dias depois da chegada. Ficaentão a viver em Paris, com poucosrecursos,emhotéismodestos.Morreu emParis,a5dedezembrode1891.O corpo seguiria viagem até Portugal,para, em São Vicente de Fora,integraroPanteãodosBragança.Os seus restosmortais regressariamaoBrasil,em1921,apoucotempodocentenáriodaIndependência.

PEDRO V, REI DE PORTUGAL - Primogénito de D. Maria II e de D.Fernando,nasceunoPaçodasNecessidadesa16desetembrode1837.Nasuamenoridade,foiregenteoreiD.Fernando,oquepermitiuquePedroeLuís izessemocostumadotoureuropeu,numaviagemqueosconduziuaLondres,Paris eváriasoutras cidadesdaEuropa.CasoucomD.EstefâniadeHohenzollern,dizendo-semuitofeliz,masarainhamorreuaos22anosde idade. Quandocaçava em Vila Viçosa com os irmãos Fernando eAugusto,contraiuummiasmadasterraspantanosas.Oprimeiroamorrerseria Fernando, a 6 denovembro de 1861. Pedro faleceria a 11 denovembro.

PHILIPPE LEOPOLDO WENZEL, BARÃO DE MARESCHAL - Nasceu naÁustria,em 1784. Em 1819 foi enviado ao Brasil como encarregado denegócios daÁustria, cargo que exerceu até 1826, sendo promovido aministro plenipotenciário em 1827. Era muito próximo da imperatriz D.Leopoldina.De1819até1830,obarãoaustríacoacompanhouosnegóciosbrasileiros a título o icial. De 1831 a 1833, seria nomeado secretário deEstado do ducado deParma. Faleceria em 1851. A sua ligação amorosacomamarquesadeAguiaréficcionada.

VITÓRIA DE SAXE-COBURGO-SAALFELD, DUQUESA DE KENT - Aprincesa deSaxe-Coburgo-Saalfeld, Maria Luísa Vitória, nascida a 17 de

agosto de 1786, tornar-se-ia, pelo casamento, duquesa deKent emãe dafutura rainha de Inglaterra. Em julho de 1818 conhecia o seu segundomarido,opríncipeEdward,duquedeKenteterceironalinhadesucessãoaotronodeInglaterra. Em24demaiode1819dariaàluzafuturarainhade Inglaterra, mas a morteprematura do marido, vítima de pneumonia,deixou-a desamparada. Uma das pessoas que a acompanharam até àmaioridade de Vitória foi John Conroy, um o icial galês que se tornou noseu secretário particular e, segundo boatos,em seu amante. John Conroyabandonou,porvontadeprópria, Inglaterra, e aduquesadeKent foiumaavóextremosa.Faleceua16demarçode1861,com74anosdeidade.

WILLIAM LAMB, LORD MELBOURNE - William Lamb, 2.° visconde deMelbourne,nascidoa15demarçode1779,eraprimeiro-ministroquandoa jovem Vitória assumiu o trono. A relação dos dois foi sobejamentecomentada, chegando-se a apelidar Vitória de «lady Melbourne».Circunstânciaspolíticas ditaram o seu afastamento, em agosto de 1841.Apesardisso,acorrespondênciacomVitórianãocessoudeimediato.LordMelbournefaleceriaa24denovembrode1848.