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9 U m mundo sem arte não poderia enxergar a si próprio. Ficaria encerrado dentro dos limites de regras sim- plistas. É por essa razão que os regimes totalitários, uma vez instalados, censuram, proíbem e queimam. É assim que eles perfuram o olhar do pensamento, do sonho, da memória e da expressão das diferenças. A terra de onde nascem os artistas. Esse termo, que serve mais para qualificá-las do que para defini-las, suscita desdém e comentários. Se por um lado a Arte é nobre, maiúscula, simples e bela, por outro, o artista é minúsculo, objeto de desprezo e, frequentemente, de rejeição. É que o fundo foi muitas vezes apagado em bene- fício da forma. Desde os macacões de Picasso, as gravatas de madeira de Vlaminck, os chapéus de Braque, as arruaças surrealistas, alguns ingênuos e muitos maledicentes tomam a parte pelo todo, a fantasia pela obra de arte, e esquecem (ou ignoram) que a indumentária não conta, a não ser por aquilo que é: uma aparência. Tanto os pintores do Lapin Agile quanto os poetas do La Closerie des Lilas usavam, às vezes, roupas extrava- gantes, organizavam festas inusitadas, puxavam o revólver e provocavam o burguês de mil maneiras, por um motivo essencial: na época, o burguês não gostava deles. Estava rigidamente assentado numa ordem antiga, enquanto penas e pincéis aproximavam-se do anarquismo, assim como o farão mais tarde com o comunismo e o trotskismo. Eram mundos inconciliáveis. Mas a obra está além dos problemas da ordem e dos costumes. Antes de qualquer outra coisa, o artista produz

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Page 1: Esse termo, que serve mais para qualificá-las do que para ... · vez instalados, censuram, proíbem e queimam. É assim que eles perfuram o olhar do pensamento, do sonho, da memória

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U m mundo sem arte não poderia enxergar a si próprio. Ficaria en cerrado dentro dos limites de regras sim-

plistas. É por essa razão que os regimes totalitários, uma vez instalados, censuram, proíbem e queimam. É assim que eles perfuram o olhar do pensamento, do sonho, da memória e da expressão das diferenças. A terra de onde nascem os artistas.

Esse termo, que serve mais para qualificá-las do que para defini-las, suscita desdém e comentários. Se por um lado a Arte é nobre, maiúscula, simples e bela, por outro, o artista é minúsculo, objeto de desprezo e, frequentemente, de rejeição. É que o fundo foi muitas vezes apagado em bene-fício da forma. Desde os macacões de Picasso, as gravatas de madeira de Vlaminck, os chapéus de Braque, as arruaças sur realistas, alguns ingênuos e muitos maledicentes tomam a parte pelo todo, a fantasia pela obra de arte, e esquecem (ou ignoram) que a indu mentária não conta, a não ser por aquilo que é: uma aparência.

Tanto os pintores do Lapin Agile quanto os poetas do La Closerie des Lilas usavam, às vezes, roupas extrava-gantes, organiza vam festas inusitadas, puxavam o revólver e provocavam o burguês de mil maneiras, por um motivo essencial: na época, o burguês não gostava deles. Estava rigidamente assentado numa ordem antiga, enquanto penas e pincéis aproximavam-se do anarquismo, assim como o farão mais tarde com o comunismo e o trotskismo. Eram mundos inconciliáveis.

Mas a obra está além dos problemas da ordem e dos costu mes. Antes de qualquer outra coisa, o artista produz

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obras de arte. Picasso pode se vestir como quiser, Alfred Jarry pode puxar a arma tantas vezes quanto desejar (e ele o fez), Breton e Aragon podem ameaçar aqueles que despre-zam, todas essas bravatas pouco signifi cam se comparadas aos caminhos que eles traçaram. A arte moderna nasceu das mãos desses sublimes provocadores. De 1900 a 1930, eles não se contentaram apenas em levar essa vida de artistas que os tor nou detestáveis para alguns e que muitos outros invejaram: acima de tudo, eles inventaram a linguagem do século.

Foram igualmente odiados por isso. Os escândalos do Ubu roi, do Sacre du printemps, da “jaula das feras”, dos “cubistores” ou do Bonheur de vivre, exposto por Matisse no Salão dos Independentes, em 1906, dão a medida da violência suscitada pelas vanguardas. Stravinski, mil vezes ultrajado, admitia entretanto esses rompantes; ele achava que o público não tinha que se mostrar indulgente em rela-ção aos artistas, mas cabia a esses últimos compreender a perseguição da qual são, algumas vezes, objeto: ele mesmo teria dado de ombros se tivesse ouvido suas próprias obras um ano antes da sua criação.

As vanguardas sempre incomodam. Mas a sociedade acaba por assimilá-las. As tendências mais modernas fazem esquecer as audácias das gerações precedentes. No seu tempo, o impressionismo havia provocado o furor do pú-blico e da crítica. O neoimpressio nismo deixou-o bastante apagado, antes de aparecer ele próprio com cores mais desmaiadas diante dos horrores fauves que foram, por sua vez, varridos pelas monstruosidades cubistas. Na poesia, os românticos foram destronados pelos parnasianos, que foram substi tuídos pelos simbolistas, que Blaise Cendrars via como “poetas já ultrapassados”. Na música, Bach encerra a tradição barroca, Haydn, Mozart e Beethoven abrem a orquestra para as máquinas sinfônicas de Berlioz, que se tornaram harmoniosas em face do dode cafonismo. Quanto a Erik Satie, a crítica da época já achava o bas tante que ele tivesse o direito de ser chamado de músico...

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No limiar do século XIX, a França era a capital das vanguar das. Mas não era só isso. Duas escolas coabitavam em Montmartre. Uma delas se inscrevia sem rupturas na tradição de Toulouse-Lau trec: Poulbot, Utrillo, Valadon, Utter e outros nunca provocaram os raios que caíram sobre a cabeça dos inquilinos do Bateau-Lavoir. Lá, pintava-se formalmente. Aqui, as formas eram quebradas em busca da nova arte. Misturando línguas e culturas, cavando num terreno de incrível diversidade, os espanhóis Gris e Picasso, o holandês Van Dongen, o ítalo-polonês Apollinaire, o suíço Cendrars e também os franceses Braque, Vlaminck, Derain e Max Jacob escapavam das regras para liberar a pintura e a poesia de pesadas limitações.

Do outro lado do Sena, em Montparnasse, Modigliani, o ita liano; Diego Rivera, o mexicano; Krogh, o escandinavo; os russos Soutine, Chagall, Zadkine, Diaghilev; os franceses Léger, Matisse, Delaunay – entre muitos outros – também enriqueciam o patrimô nio artístico. Nos anos 1920, chega-rão os escritores americanos; Tzara, o romeno; os suecos, outros russos, novas nações... Paris se tornará a capital do mundo. Pelas calçadas, eles não serão mais cinco, dez ou quinze, como em Montmartre. Mas sim centenas, milhares. Um burburinho de riqueza nunca mais igualada, nem mesmo mais tarde em Saint-Germain-des-Prés. Pintores, poetas, escultores e músi cos, todos misturados. De todos os países, de todas as culturas. Clássicos e modernos. Ricos mecenas e marchands ocasionais. As modelos e seus pintores. Escri-tores e editores. Pobres e milionários.

Antes da Primeira Guerra Mundial, Picasso já enrique-cera, mas a maioria de seus companheiros vivia numa incrível pobreza. Depois de 1918, eles compravam carros Bugatti e residências de luxo. O tempo dos brilhantes aprendizes estava terminando. Guillaume Apollinaire, que morreu dois dias antes do armistício, leva com ele a época dos pioneiros. Modigliani, falecido em 1920, encerra o ciclo das vidas errantes que Villon e Murger conheceram. O búlgaro Jules Pascin fecha para sempre a porta dos trinta primeiros anos do século XX: o tempo dos boêmios.

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Eles tinham escolhido viver em Paris, cidade fraterna, gene rosa, que soube oferecer a liberdade a esse povo vindo de outros luga res. Hoje, Picasso, Apollinaire, Modigliani, Cendrars e Soutine não viveriam mais lá. Teriam sido re-pelidos para longe do Sena. O espa nhol por uso de drogas, o ítalo-polonês por receptação, o italiano por escândalo na via pública, o suíço por furto, o russo por miséria crô nica e mendicância mal disfarçada.

Poderíamos citar tantas outras razões. Todas demons-trariam que os artistas, hoje como ontem, andam quase sempre pelas beiras e não pelo centro dos caminhos. Per-manecem aquilo que nunca deixa ram de ser e que os torna tão peculiares. São pessoas deslocadas.

Falar daqueles de ontem é também amar os de hoje. A memória é reflexo, a sombra é uma projeção. Através das décadas, os artistas continuam irmãos dos seus antecessores.

A exigência é sua primeira companhia. Modigliani, Soutine e Picasso, que sempre se dedicaram apenas à sua arte, criticavam Van Dongen e alguns outros que queriam agradar à alta sociedade. Para eles, esses companheiros de época se renegaram, quase se comprome teram. Tornaram-se uma espécie de técnicos, de artesãos da pintura. Ora, os artesãos não seriam artistas. Pierre Soulages, um dia, me deu a chave da diferença: “O artista procura. Ele ignora o caminho que vai tomar para alcançar seu objetivo. O artesão, por sua vez, segue por caminhos que ele conhece para ir ao encontro de um objeto que ele também conhece”.

Brilhante.O artista trabalha sozinho, não emprega ninguém e

não tem profissão. Pintar ou escrever não é uma questão de profissão; trata -se de uma respiração. Até a ferramenta é incerta. Se a ideia morre, ou a imaginação, se a cabeça entra em pane, nada nem ninguém pode rá salvar o homem asfixiado pelo nada. E ninguém poderá substituí-lo: a obra de arte é única, assim como aquele que a produz. As cariá-tides de Modigliani não são comparáveis a nenhuma outra.

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Se aconteceu que Robert Desnos comprou um desenho a carvão de Picasso, vendido como se fosse uma composição de Braque, foi por que, durante o grande período do cubismo sintético, os dois artistas trabalhavam juntos.

Tanto um como outro procuravam. A dúvida constitui a eterna linguagem do artista diante de si mesmo. A nova obra nunca é adquirida. Ela não repousa sobre coisa alguma, nem mesmo sobre a obra que a precede. O sucesso e a curiosidade são efêmeros. É preciso sempre recomeçar do zero. O zero é um abismo. O artista vive apenas do seu fôlego. Se este lhe falta, tudo desmorona. É assim que funciona o homem em relação à obra nascente.

Bohèmes [Boêmios] nasce nos ateliês do Bateau--Lavoir e cresce sobre as calçadas da Ruche e de Mon-tparnasse. Ele cruza um romance, Nu couché [Nu deitado]. Preenche seus espaços, suas reentrâncias e seus mistérios não revelados.

Escrevi os dois livros ao mesmo tempo, durante vários anos, descansando de um no outro, incapaz de dividi-los, de separá-los. São dois irmãos siameses da mesma aventura literária: um é romance, o outro é crônica. Não teria podi-do escrever Nu couché sem escrever Boêmios, e Boêmios não existiria sem Nu couché. A história desses homens que fizeram brotar a arte moderna na terra das suas diferen ças é tão rica que apenas um livro não me pareceu suficiente para esgotar as peças do caleidoscópio que espio há tantos anos. São com panheiros extraordinários, mas persistentes. Frequentando-os, esque ci o motivo que havia me conduzido até eles.

Comecei escrevendo Nu couché. Na sua primeira versão, o livro me fugia. Escorregava sob seu próprio peso. O real afogava a ficção. Os personagens nascidos do meu imaginário depunham suas armas diante dos heróis do Bateau-Lavoir e do cruzamento Vavin. Aqueles valiam talvez um romance, mas estes também o mereciam.

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Recomecei. Retirei de Nu couché as escadas que per-mitiram tomar de assalto minha fortaleza. Coloquei-as em outro lugar. E es crevi os dois livros paralelamente.

Nu couché visita os ateliês, os cafés e os bordéis da época através de invenções que não pertencem apenas às testemunhas do momento. Ele é como uma criação fixada numa moldura.

Boêmios explora o quadro nas suas luzes e riquezas. Ele con ta os artistas de Montmartre e de Montparnasse pela voz do contador.

Não sou historiador da arte. O escritor tem sua própria linguagem. A minha é esta. Uma maneira de escrever um outro romance: o das pessoas, dos lugares, das obras que o século, virando a página, levaria para uma ilha deserta se quisesse ter o prazer de encontrar a si mesmo, à sombra da sua memória.

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...Dar um jeito, pelo menos durante algum tempo, de melhorar a aparência: roupa lim-pa, sapatos engraxados, cabelos penteados, cara mais simpática...

verLaine Para rimBaud

Dois homens estão subindo a rua Didot, em Paris, no XVI arrondissement. Eles têm apenas vinte anos. São

colegas de turma. Não tro cam nenhuma palavra. Andam rapidamente pela calçada.

À esquerda, erguem-se os altos muros do hospital Broussais. Eles passam pela entrada, seguem pelas aleias que os conduzem a um prédio, depois a outro, até uma grande sala onde alguém lhes pede que esperem. O homem que eles procuram, um antigo preso reincidente, não está ali.

Eles pedem informações. Esperam outra vez. Final-mente, uma enfermeira os conduz até uma sala não muito ampla onde se amontoam seis camas de ferro dispostas de um lado e do outro de uma janela que se abre para o jardim.

Aquele que eles vão visitar ocupa o leito do meio, à direita da janela. Sua identidade está escrita numa tabuleta, acima do tra vesseiro. Tem cabelos grisalhos, olhos de fauno, testa protuberante, barba malfeita. Usa um gorro e um avental grosseiro em que está escrito o nome do hospital.

Os dois visitantes se apresentam. O homem deitado ergue -se um pouco, sacode os jornais e os livros espalha-dos pela cama. Em seguida, levanta-se. Enfia umas calças surradas, um colete cheio de manchas antigas e, finalmente, um roupão do hospital que amarra na cintura.

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Percorre o corredor seguido pelos visitantes.Andam rapidamente até o pátio. Ali, conversam duran-

te mais de uma hora, enquanto passam por velhos doentes que olham com desconfiança para aquele estranho trio composto por dois es tudantes bem arrumados e um interno com jeito de mendigo.

Eles se separam.

Um ano mais tarde, o homem deixa o hospital Brous-sais. Anda com dificuldade, apoiado numa bengala. Numa rua de Montmartre, passa por um dos seus jovens visitantes e não o reconhece. Este para e se apresenta. Trocam algumas palavras.

“Me pague um trago”, pede o antigo preso.Abre a carteira puída e diz que aquele é todo o dinheiro

que tem. Algumas moedas... Diz também que um garçom acaba de pô-lo para fora de um bar, onde se sentara, por achá-lo malvestido.

Entram num café e pedem alguma coisa.“Onde você está morando?”, pergunta o estudante. O outro ergue tristemente os ombros.“Eu não moro. A noite me hospeda.”1

Assim falava o poeta. Não no final deste século, mas no do ante rior.* O sem-teto é Paul Verlaine. Aqueles que o escutam são Pierre Louÿs e André Gide. Hoje, Verlaine dormiria no metrô.

A miséria não poupa ninguém.

* Séculos XIX e XX. (N.T.)

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Os Anartistas da Butte Montmartre

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O maquis* de Montmartre

Bem no topo da Butte** de Montmartre ergue-se a basílica de Notre-Dame de la Galette. Essa enorme construção, uma das vergonhas da nossa época, domina Paris e caçoa dela – prova material de que os padrecos são sempre os todo-poderosos.

Le Père Peinard***, 1897

Quando o século começa, Montmartre e Montparnasse se olham: duas colinas de onde irão nascer as belezas do

mundo de ontem e também de hoje. Duas margens do Rio Haussmann****, que cons truiu prédios e avenidas para o bem--estar dos burgueses, empur rando as mazelas populares para a periferia de Paris. Velho método para valorizar o centro.

À direita, o Bateau-Lavoir.***** À esquerda, a fumaça do La Closerie des Lilas.****** Entre os dois, corre o Sena. E toda a história da arte moderna.

Montmartre ergue seu Sacré-Coeur. Bizâncio sobre o Sena. Uma massa branca que sobe, sobe, sobe, ultrapassando os moinhos de vento, os vinhedos e os pomares.

* Vegetação espessa característica de certas regiões mediterrâneas. O termo foi usado para Montmartre porque, na época, um imenso matagal com construções desorde nadas cobria grande parte do bairro. (N.T.)** Butte Montmartre: a colina de Montmartre. (N.T.) *** Semanário anarquista (1884-1902). (N.T.)**** O barão de Haussmann foi prefeito de Paris de 1853 a 1870 e empreendeu grandes obras que transformaram a cidade. (N.T.)***** Antiga fábrica de pianos desativada – em Montmartre – que serviu de moradia para artistas da época. (N.T.)****** Café localizado em Montparnasse. (N.T.)

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O senhor Thiers* fez soar as três pancadas. Ao pro-vocar Montmartre, desencadeou a Comuna. Os parisienses tinham con servado os canhões da cidade que estavam lá.** E certamente não foi por acaso que o Sacré-Coeur foi cons-truído exatamente no lu gar onde a Comuna começou: a água benta expiará o pecado revo lucionário.

A basílica coroa hotéis obscuros, cabarés cheios de risos, frágeis casebres de madeira ou massa de papelão e piche que sobem tomando a colina, entrelaçados a lilases e pilriteiros. No centro desse maquis escuso, Isadora Duncan e seus jovens alunos dançam como gregos, de túnica e pés descalços, saltitantes. Montmartre é um vilarejo. Nele se canta e se dança, come-se e dorme-se, sem gas tar muito di-nheiro. As mansões da avenida Junot ainda não come çaram a aparecer. As casas de prostituição funcionam abertamente na rua Amboise. Todos ainda sonham com as anáguas da Goulue, os quadris de Raio Dourado, os passos de Valentin, o Desossado, ajudante de tabelião durante o dia, dançarino à noite, único homem do Quadrille Réaliste, cujos volteios inflamavam as multidões do eixo Elysée-Montmartre, e que mais tarde se tornaria vítima das asas do Moulin-Rouge.

Bruant insulta os burgueses. Satie toca suas Gymno-pédies no Chat Noir, bulevar Rochechouart, onde Alphonse Allais faz suas primeiras aparições. Regência: Rodolphe Salis. Quando, quinze anos antes da virada do século, a casa cede sua vez ao Mirliton, o jornal Le Chat Noir continua a atacar em todas as direções. Allais chega a molhar a pena no tinteiro de alguém mais famoso: assina seus artigos sob o pseudônimo de Francisque Sarcey, que não é outro senão um crítico teatral em carne e osso, e muito atuante no jornal Le Temps. Só mais uma brincadeira entre tantas... Quanto a Jane Avril, amante do poeta, posa para Toulouse-Lautrec. Este pinta, mas não é o primeiro. Fantasmas famosos visitam o bairro: Géricault,

* Thiers foi presidente da França em 1871. Descontentes com suas ações, alguns socialistas e operários organizaram uma insurreição: a Comuna. (N.T.)** Em 1870, Paris havia sido sitiada pelo exército prussiano. (N.T.)

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Cézanne, Manet, Van Gogh, Moreau, Renoir, Degas... As sombras que começam a se distinguir ainda não têm nome. São ape nas silhuetas. Elas prendem a respiração, aprendem nos museus, instalam-se onde há lugar e esperam pela sua hora. Primeiro Mont martre. Depois Montparnasse. Em seguida, se as musas inspirarem, o mundo todo...

Seria para se proteger, para cultivar suas diferenças, que Montmartre se declarou Comuna livre? Pode-se ver nisso uma brin cadeira, e não deixa de ser. Mas não apenas. Há também esse desejo de singularidade, de liberdade, que, no limiar do século, levou alguns ingênuos do lugar a decidirem que a praça do Tertre seria a capital de um território autônomo.

Houve votação. A proposta foi aceita por maioria abso luta. Depois, elegeu-se um prefeito. Jules Depaquit, que se dizia desenhista, foi então escolhido como primeiro administrador da Comuna livre de Montmartre. Ele tinha se tornado uma persona lidade, alguns anos antes, quando passou pelas celas da chefa tura de polícia: dizia-se que tinha sido ele o autor do atentado contra o restaurante Véry, no bulevar Magenta.

Livre dessa acusação (os responsáveis eram, na verda-de, anarquistas que queriam vingar Ravachol, detido à mesa de uma cervejaria), ganhou uma notoriedade que cresceu com a eleição, a ponto de se tornar figura essencial da sua nova pátria: cantado por Francis Carco, elogiado por Roland Dorgèles, admirado por Nino Frank e por Tristan Tzara, que verá nele um dos precursores do movimento dadá. Iria também seduzir Picasso, que virá com fre quência ouvi-lo declamar poemas no Lapin Agile.

Jules Depaquit deixou uma obra que Satie musicou para a Comédie Parisienne, transcrita por Darius Milhaud e interpretada pelos Balés Russos, num cenário de André Derain, em 1926: Jack in the box. Essa pantomima mostra-va um homem com um enorme reló gio, que atravessava e tornava a atravessar o palco, em toda a sua extensão, sem que ninguém soubesse qual era o seu papel. Isso era somente revelado no final do último ato: o homem era um relojoeiro.

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Depaquit ganhava a vida vendendo desenhos humorís-ticos aos jornais especializados. E a perdia nos bares, onde entrava ereto e de onde saía curvado.

Ele organizava escrupulosamente sua agenda: uma semana de abstinência, três semanas de excessos. Não se sabe ao certo em que momento do mês lhe veio a ideia da palavra de ordem alta mente política, que iria mobilizar todas as suas energias oficiais: obter a independência de seu povo e a separação de Montmartre do Estado francês.

Os méritos desse novo estatuto foram louvados por ele em mil Comunas fora de Paris, a maior parte delas situadas no Seine -et-Oise, onde era convidado como o embaixador todo-poderoso de uma nação em marcha. No programa: vinhos e fanfarras.

No interior de suas próprias fronteiras, Jules Depaquit ha via desenvolvido um método infalível para beber de graça. Quan do não tinha mais nenhum tostão, entrava num café, triste e aba tido, casacão nos ombros, mala na mão. Alguém lhe perguntava:

“Onde vai, senhor Depaquit?”E ele respondia, uma lágrima entre os cílios:“Volto para minha terra.” “Onde fica sua terra?” “Sedan.”“Sedan, mas tão longe?”“Tão longe. Dá para compreender minha tristeza...” O desespero tomava conta de todos. Abriam uma

garrafa para se consolar, esvaziavam-na para se sentirem melhor. Quando já haviam esquecido, Jules Depaquit subia nas mesas e gritava:

“A Prússia entrou em Sedan, mas Montmartre resistirá!”Os copos eram erguidos, num brinde à valentia das

tropas do Tertre.Geralmente, se rendiam ao amanhecer, depois de brava-

mente encharcar seus rastros.* Depaquit, porém, aclamado pelos seus, não podia capitular. Ele não era Napoleão III.* Alusão à letra da Marseillaise. (N.T.)