espiritualidade, Ética e alteridade: de etty … · em não se omitir diante de circunstâncias...

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Departamento de Teologia ESPIRITUALIDADE, ÉTICA E ALTERIDADE: DE ETTY HILLESUM A EMMANUEL LÉVINAS Aluno: Yan Piorno Orientadora: Maria Clara Lucheti Bingemer Introdução O presente texto se vale do pensamento do filósofo judeu franco-lituano Emmanuel Lévinas e sua reflexão sobre a alteridade e a hospitalidade. Em continuidade com as pesquisas anteriores, as categorias propostas por Lévinas seguem sendo o ponto de partida para a abordargem de temas como como violência, criminalização, a estigmatização do outro e, com este arcabouço, pensar teologicamente os dramas que acompanham sujeitos socialmente marginalizados, pobres e desassistidos em contextos de violência urbana das periferias brasileiras, e qual o lugar da espiritualidade, qual o lugar da própria teologia no fomento ou ―neutralização‖ da consciência e do enfrentamento de tais contextos. Mais uma vez nos valemos também da experiência da curta, mas intensa, vida da jovem holandesa Etty Hillesum com sua vivência de solidariedade em um dos momentos mais obscuros do século XX, o Holocausto, e, tendo como fundo sua história, vinculamos com a história das mães que enfrentam os riscos, violência do Estado e do ―crime organizado‖, em defesa de seus filhos. Objetivos Fomentar a reflexão sobre a ruptura ética em nossos dias, tendo como referenciais os conceitos de alteridade e hospitalidade como propostos por Emmanuel Lévinas, e como a ―aniquilação‖ de tais conceitos estão no resultado da violência que consiste na ―produção‖ de sujeitos marginalizados, sujeitos ―matáveis‖, corpos expostos a todo tipo de violência e risco, fora do campo de alcance dos direitos e da memória. Denunciar uma mentalidade forjada com a semelhança do Holocausto, enquanto metodologia de distinção entre ―nós‖ e ―eles‖, ―cidadão de bem‖ e ―suspeitos/criminosos‖, que permite encarcerar e matar. Apontar caminhos, que tem na trajetória da holandesa Etty Hillesum, em meio a sua experiência durante o Holocausto, uma referência para pensar como o compromisso com a alteridade que inclui o outro e a hospitalidade que é solidariedade, e que é capaz de oferecer uma resistência à uma cultura de eliminação. Tal alteridade e hospitalidade como resistência, vê-se nos movimentos de mães que transformam a perda de seus filhos em motivo de luta permanente, que desvia da vingança e busca ver o exercício da justiça. Metodologia Em primeiro lugar, partimos a partir de uma apropriação do sentido e relevância dos conceitos de alteridade e hospitalidade em Lévinas (LEVINAS, 2006), e como ele aborda o risco de a alteridade se reduzir a um ―mesmo‖, ao invés de fomentar uma ética da diferença, que permita abrir-se para o outro e quem ele é com suas diferenças de mim mesmo. Lévinas também trata a hospitalidade como solidariedade, uma acolhida que se expõe aos riscos, mas que nega o fechar-se em si mesmo em busca de autopreservação. Aqui também se aplica a definição de força trabalhada pelo filósofo franco-lituano, em que a força, enquanto exercida (pelo estado, por um grupo social, por uma elite, por uma cultura, etc.), não se perde entre aqueles que a sofrem‖, ao contrário, ―ela está vinculada a personalidade ou a sociedade que a exerce‖ e sua força os faz crescer cada vez mais na medida em que subordina, ou subjuga os

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Departamento de Teologia

ESPIRITUALIDADE, ÉTICA E ALTERIDADE: DE ETTY HILLESUM A

EMMANUEL LÉVINAS

Aluno: Yan Piorno

Orientadora: Maria Clara Lucheti Bingemer

Introdução

O presente texto se vale do pensamento do filósofo judeu franco-lituano Emmanuel

Lévinas e sua reflexão sobre a alteridade e a hospitalidade. Em continuidade com as pesquisas

anteriores, as categorias propostas por Lévinas seguem sendo o ponto de partida para a

abordargem de temas como como violência, criminalização, a estigmatização do outro e, com

este arcabouço, pensar teologicamente os dramas que acompanham sujeitos socialmente

marginalizados, pobres e desassistidos em contextos de violência urbana das periferias

brasileiras, e qual o lugar da espiritualidade, qual o lugar da própria teologia no fomento ou

―neutralização‖ da consciência e do enfrentamento de tais contextos. Mais uma vez nos

valemos também da experiência da curta, mas intensa, vida da jovem holandesa Etty Hillesum

com sua vivência de solidariedade em um dos momentos mais obscuros do século XX, o

Holocausto, e, tendo como fundo sua história, vinculamos com a história das mães que

enfrentam os riscos, violência do Estado e do ―crime organizado‖, em defesa de seus filhos.

Objetivos

Fomentar a reflexão sobre a ruptura ética em nossos dias, tendo como referenciais os

conceitos de alteridade e hospitalidade como propostos por Emmanuel Lévinas, e como a

―aniquilação‖ de tais conceitos estão no resultado da violência que consiste na ―produção‖ de

sujeitos marginalizados, sujeitos ―matáveis‖, corpos expostos a todo tipo de violência e risco,

fora do campo de alcance dos direitos e da memória. Denunciar uma mentalidade forjada com

a semelhança do Holocausto, enquanto metodologia de distinção entre ―nós‖ e ―eles‖,

―cidadão de bem‖ e ―suspeitos/criminosos‖, que permite encarcerar e matar. Apontar

caminhos, que tem na trajetória da holandesa Etty Hillesum, em meio a sua experiência

durante o Holocausto, uma referência para pensar como o compromisso com a alteridade que

inclui o outro e a hospitalidade que é solidariedade, e que é capaz de oferecer uma resistência

à uma cultura de eliminação. Tal alteridade e hospitalidade como resistência, vê-se nos

movimentos de mães que transformam a perda de seus filhos em motivo de luta permanente,

que desvia da vingança e busca ver o exercício da justiça.

Metodologia

Em primeiro lugar, partimos a partir de uma apropriação do sentido e relevância dos

conceitos de alteridade e hospitalidade em Lévinas (LEVINAS, 2006), e como ele aborda o

risco de a alteridade se reduzir a um ―mesmo‖, ao invés de fomentar uma ética da diferença,

que permita abrir-se para o outro e quem ele é com suas diferenças de mim mesmo. Lévinas

também trata a hospitalidade como solidariedade, uma acolhida que se expõe aos riscos, mas

que nega o fechar-se em si mesmo em busca de autopreservação. Aqui também se aplica a

definição de força trabalhada pelo filósofo franco-lituano, em que a força, enquanto exercida

(pelo estado, por um grupo social, por uma elite, por uma cultura, etc.), ―não se perde entre

aqueles que a sofrem‖, ao contrário, ―ela está vinculada a personalidade ou a sociedade que

a exerce‖ e sua força os faz crescer cada vez mais na medida em que subordina, ou subjuga os

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demais. Com tal reflexão foi possível pesquisar, por exemplo, como uma perspectiva do

Holocausto enquanto mentalidade opera lógicas como os ―campos urbanos‖ que podem ser as

favelas e complexos de favelas em cidades como o Rio de Janeiro, onde um grupo está

―confinado‖ a viver, se divertir, desfrutar com toda a precariedade e só sair para trabalhar ou

atender demandas de burocracia que exigem o acesso a partes centrais da cidade. A cultura do

esigma sobre o ―suspeito de envolvimento com o tráfico‖, que passa a ser uma espécie de tarja

de identificação do mau elemento, e assim por diante.

Um outro campo de observação partiu do conceito que Lévinas desenvolve em Da

existência ao existente”. ―Condenados‖ ao anonimato e a invisibilidade, identificamos

aqueles que vivem a condição do ―há” levinasiano, vítimas da impessoalidade do poder, que

os inclui na existência mas não os reconhece como existentes (LÉVINAS, 1998). Não há

portanto passagem do ―há” para ―hipóstase”. É com esta impessoalidade que o poder do uso

―legítimo‖ da força policial entra muitas vezes nas periferias, sobe morros e favelas no Rio de

janeiro. Talvez por isso, temos em Etty Hillesum, não apenas uma jovem ousada e destemida

que neutralizaria de sua alma e de seu coração todo o medo e todo abalo da escolha de uma

alteridade. Viver no mundo exterior integralmente tem também esse caráter de compromisso

em não se omitir diante de circunstâncias por demais tenebrosas, as quais a jovem judia

holandesa experimentava com tantos outros irmãos. O convite à responsabilidade

desinteressada feita por Lévinas é então aceito por Etty Hillesum, no passo voluntário para

Westerbrork, e de lá para Auschwitz.

Por fim, nos aproximamos dos relatos e movimentos de lutas por direitos e justiça de

algumas mães cujos filhos foram vítimas de violência, acompanhando parte do processo de

suas lutas e como a espiritualidade também marca esse processo. A espiritualidade entra como

força motivadora, fonte de uma esperança que não se esgota e um conforto cotidiano em meio

à memória que envolve dor. Alteridade e hospitalidade se conectam aqui, identificados de

maneira diversas, não só na luta das mães, mas também no esforço de desconstrução de uma

cultura que estigmatiza sujeitos, principalmente jovens e pobres, constroem sujeitos como

ameaças sociais, riscos para o bom funcionamento da sociedade. Muitos destes filhos foram

vítimas a partir desta construção. A hospitalidade enquanto solidariedade, se abre para todo

grupo social marginalizado e estigmatizado, que podem ser alvo de um enquadramento.

Conclusões

O estudo teórico possibilitou a publicação de artigos que buscaram acrescentar no

debate da ética, da violência e do olhar sobre comunidades periféricas e grupos sociais

marginalizados.

A reflexão de Lévinas ganhou espaço em debates e grupos de discussão, auxiliando

inclusive numa revisão de significado da cultura periférica em espaços de debate e pesquisa

sobre o tema e uma contribuição significativa, no Rio de Janeiro em particular, para

ampliação de sentido de compreensão da violência.

Segundo David Harvey, a segregação socioespacial transformara as cidades em

territórios estanquizados. Territórios marcados, sobretudo, pelo tipo de sujeitos que neles se

distribuem. Áreas de fato muito ricas, áreas de fato extremamente pobres. Entre uma área e

outra, várias matizes da dinâmica social que vão compondo o cotidiano das sociedades,

grupos diversos, classes diversas. Atravessando todas estas matizes está a crescente sensação

de insegurança, o medo permanente da violência, o risco que ronda a vida nas cidades. Cada

vez mais, para o estado, para os gestores das cidades, o bem governar é conduzir bem a

segurança pública, mas que é notadamente a segurança de um público específico, enquanto

controla outros, a partir de seu monopólio da violência. Mas medo e risco são palavras

polissêmicas, de muitos sentidos, percepções e formas de se materializar. Elas podem

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inclusive constituir a própria política pública, podem estar inseridas como instrumentos de

controle no plano de governar.

Um exemplo comum à quase totalidade de países da América Latina é a política de

guerra às drogas. Usada como instrumento de conter o avanço da produção e do consumo de

drogas no continente, esta política se confunde com o cotidiano de violência nas periferias

destes países, onde estão concentrados grande parte de sua população pobre. A política de

guerra às drogas segue também um roteiro de estigmatização muito bem definido. Esse

roteiro é uma espécie de testamento que se mantém como uma herança de nossa sociedade

autoritária e desigual, profundamente hierarquizada e elitista, que se constituiu no continente

americano, como foi tão bem sintetizado pelo uruguaio Eduardo Galeano no clássico As veias

abertas da América Latina. Essa estigmatização é a construção de um ―perfil objetivo‖ de (A)

um grupo social, cuja relação com as drogas é vista como ameaça e crime; (B) territórios

específicos, cuja presença da droga, seja pela produção ou pela circulação, são vistos como

territórios ingovernáveis, sujeitos às arbitrariedades violentas que se revestem de força da lei;

e (C) corpos objetivos, cujo contato com a droga é peremptoriamente demonizado e

legitimador da repressão imposta.

Para estes é que o discurso passa a ser utilizado como poder. Como bem lembra a

venezuelana Rosa Del Olmo, ―o importante, portanto, não parece ser nem a substância nem

sua definição, e muito menos sua capacidade ou não de alterar de algum modo o ser humano,

mas muito mais o discurso que se constrói em torno dela‖1. Portanto, política de Guerra às

Drogas na América Latina está profundamente marcada pela manutenção da criminalização

da pobreza.

Exercício de poder, estigmas e criminalizações tornam-se instrumentos de ―produção‖

de sujeitos sem-rosto nas cidades, uma permanente invisibilização que começa com um não

reconhecimento e, em seguida, um remanejamento do outro para uma categoria dos sem

lugar. Vale-se do imaginário coletivo dos ―não-lugares‖ ocupados por indivíduos nas

sociedades urbanas: o preconceito geo-identitário a pobres, pretos, moradores de favela; a

hostilidade àqueles tidos como sendo de comportamentos desviantes, sejam traficantes,

pessoas em situação de rua, usuários de drogas, prostitutas, pessoas LGBT, menores

infratores. São muitos ―não-lugares‖ ocupados, delimitados não pela comunicação formal,

mas pelos estigmas interiorizados, a deportação para o anonimato e o não reconhecimento,

sem-rosto. Rostos que somem do reconhecimento do estado, da sociedade, das instituições, e,

pasmem, até das igrejas. Há uma silenciosa compreensão de uma parcela da sociedade de que

o ―corpo social harmonioso‖ vai encontrar seu equilíbrio com a eliminação — seja pela

execução, pela reclusão, ou pela marginalização invisibilizadora — dos que ―incomodam‖,

ou, como afirma a socióloga Vera Malaguti, com a amputação destes membros ―gangrenados‖

do corpo social.

Aqui vale insistir numa reflexão que fomente a desconstrução das periferias de nossas

cidades como ocasionais aglomerados de pobres, destituídos da presença do cuidado social do

1 Del Olmo, Rosa. A face oculta da droga. Rio de Janeiro: Revan, 1990, p. 22.

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estado. Antes, deveríamos entendê-las como o sociólogo francês Loïc Wacquant define os

guetos americanos que ele tão bem estudou: uma ―forma institucional‖. É preciso dar

visibilidade às sutilezas do estado, que mantém uma massa sob controle dissimulado,

lançando sobre eles a conta da ameaça institucional e da desordem social. É preciso dar

visibilidade a essa capacidade do estado de produzir medo e estigmas, bem como de

potencializar o medo e o estigma já existente na cultura da sociedade, para legitimar e

justificar a violência, a fé na punição e a militarização. Tais características teriam então o

papel de exigir, cumprir e manter o lugar da preservação da responsabilidade individual na

vida social. É ponsível pensar outra forma de cuidado e responsabilidade?

A responsabilidade constitui um dos mais desconfortantes desafios nos apresentados

por Lévinas. Desconforto quando pensada em um mundo e um ambiente de negação do

cuidado e afirmação da auto-preservação. Pensamento caro a Lévinas, a responsabilidade é

pensada como antes e acima da própria liberdade. Uma reflexão que passa desde suas leituras

talmúdicas até a sensibilidade tocada pela própria experiência vivida durante o holocausto,

experiência vivida e refletida em grande parte a partir de ―Da existência ao existente”. Em

seu livro “Quatro leituras talmúdicas‖ lemos:

A Torá é dada na Luz de um rosto. A epifania do outro é ipso facto minha

responsabilidade com respeito ao outro: a visão do outro é desde já uma

obrigação a seu respeito.2

Para Lévinas, a existência do ser não pode ser justificada com o seu fim em si mesmo,

mas em verdade em como o seu cuidado com o outro se manifesta. Momentos de horror

costumam suscitar não apenas o medo, mas também uma luta pela sobrevivência que cega e

ensurdece quanto à presença do outro, e principalmente quanto a sua vida dizer respeito ao

meu cuidado e responsabilidade. Esse distanciamento do outro é caminho de refúgio em

ocasiões de fechamento das liberdades, de perseguição e de avanço do terror que causa

desesperança.

A negação dessa responsabilidade passa a ser portanto, integrante deste corolário de

propagação da força impessoal da regra, da doutrina, do controle e do subjugo imposto ao

outro não compreendido como um de nós. Seguir o pensamento de Lévinas é perceber que tal

contexto esteve presente de maneira ativa não só durante o período de domínio nazifascista na

Europa, mas também em dias hodiernos, de intensa disputa pela esfera pública e reivindicação

de acesso ao poder. A negação da responsabilidade pelo outro ou a imposição da projeção do

mesmo no outro passa por essa herança do idealismo, mas tem desdobramentos que já se

distanciam dele. ―Existir, diz Lévinas, em todo o idealismo ocidental, refere-se a esse

movimento intencional de um interior para o exterior”. Isso o leva a concluir que, aqui, ―o ser

é o que é pensado, visto, agido, querido, sentido, o objeto”3. Essa objetivação que nega ao

outro o direito de ser, pode estar presente também em algo como o holocausto, mas a negação

da responsabilidade pelo outro ―neutralizou‖ mentes e corações para qualquer movimento no

sentido contrário, isto é, de reverter a indiferença diante do clamor do outro. Por isso, para

Lévinas, a liberdade não se mostra suficiente, ela não pode ofuscar a responsabilidade – não

entendida como um exercício de controle constitutivo de uma heteronomia, mas como a

generosidade fluente de uma autonomia. Ela é então o que se torna realmente importante, pois

2 LÉVINAS, Emmanuel, Quatro leituras talmúdicas, São Paulo, Perspectiva, 2003, pg. 97

3 LÉVINAS, Emmanuel, Da existência ao existente, Campinas-SP, Papirus, 1998, pg. 43

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para ele essa compreensão “é a noção de uma responsabilidade que precede a noção de uma

iniciativa culpável”4.

Lévinas leva a sério este eu deposto, a queda deste eu que cuida apenas de si mesmo,

que se entende no convívio social em detrimento do outro, ou deste próximo mantendo

distância. Este eu desvinculado de outro é uma espécie de ―equação falha‖, seu resultado não

pode apontar solidariedade. Seguindo o rastro deixado pela reflexão de Lévinas, se atento

estivesse a este chamado, seria essa a compreensão de Israel, herdeiro do patriarca Abraão:

Que outra coisa pode significar a descendência de Abraão? Lembremos a

tradição bíblica e talmúdica relativa a Abraão. Pai dos crentes? Certamente.

Mas sobretudo aquele que soube receber e alimentar homens; aquele cuja

tenda era aberta aos quatro ventos. Por todas essas aberturas, ele observava os

passantes para acolhê-los. (...) A descendência de Abraão: homens a quem o

ancestral legou uma vida difícil de deveres e, na relação com o outro, nunca

completada, uma ordem que nunca cumprimos totalmente, mas com a qual o

dever toma antes de tudo a forma de obrigações a respeito do corpo, o dever

de alimentar e de abrigar.5

Lévinas persegue esse compromisso com a responsabilidade que vem do apelo do

rosto de outrem. Mas isso não vem como uma escolha que possa ser feita ou recusada, ela é,

para fins de sobrevivência da própria humanidade, essencial e necessária. ―Para que o mundo

humano seja possível”, diz o filósofo franco-lituano, ―é preciso que se encontre, a todo

momento, alguém que possa ser responsável pelos outros”6. Isto é, sem este ser-responsável

tal mundo há de se tornar in-sobrevivível. A entrada do povo escolhido, segundo a narrativa

bíblica, na terra de Canaã só poderia ser compreendida pelo mesmo, se fosse não para pura e

simplesmente conquistá-la, mas para santificá-la, e santificar a terra tem exatamente, para

Lévinas, este compromisso de tornar a terra justa para todos7, ou seja, homens e mulheres que

adentrariam a terra não para subjugar os ali situados, mas para servi-los, sendo responsáveis

por ele.

Se o rosto levinasiano é caracterizado pela forte exigência ética, a negação do

reconhecimento do rosto de outrem traduz-se bem por ruptura ética. Exercício de poder,

estigmas, criminalizações, tornam-se instrumentos de ―produção‖ de sujeitos sem-rosto nas

cidades, uma permanente invisibilização que começa com um não-reconhecimento e em

seguida um remanejamento do Outro para uma categoria sem lugar. Vale-se do imaginário

coletivo dos ―não-lugares‖ ocupados por indivíduos nas sociedades urbanas: o preconceito

geo-identitário a pobres, pretos, moradores de favela; a hostilidade àqueles tidos como sendo

de comportamentos desviantes, sejam traficantes, moradores de rua, viciados, prostitutas,

gays, menores infratores; ―lugares‖ profissionais tidos como de menor importância no corpo

social como pedreiros, garis, serventes, domésticas. São muitos “não-lugares” ocupados,

4 POIRIÉ, François, Emmanuel Lévinas, ensaios e entrevistas, São Paulo, Perspectiva, 2007, pg. 90

5 LÉVINAS, Emmanuel, Do sagrado ao santo: cinco novas interpretações talmúdicas, Rio de Janeiro, Civilização

Brasileira, 2001, pg. 23 6 LÉVINAS, Emmanuel, Quatro leituras talmúdicas, São Paulo, Perspectiva, 2003, pg. 168

7 Será essa a leitura feita e proposta por Lévinas, em Quatro leituras talmúdicas, do conhecido episódio contido

no capítulo 13 do livro de Números: “Se Moisés nos tirou do Egito, se nos abriu mar e nos nutriu com maná, acreditam vocês, portanto, que sob o seu comando nós vamos conquistar um país como se fôssemos conquistar uma colônia? Acham vocês que nosso ato de conquista pode transformar-se em imperialismo? Nós vamos construir nessa terra uma cidade justa. Isso é santificar a terra. Santificar a terra é nela construir uma cidade justa”.

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delimitados não pela comunicação formal, mas pelos estigmas interiorizados, a deportação

para o ser em geral (o ―há”), anônimos, desconhecidos, sem-rosto.

É possível pensar a partir disso, o quão difícil se torna ter de ouvir as falas de mães

que perderam seus ilhós e hoje se organizam em movimentos coletivos de amparo e denúnica.

Os relatos sobre tiros que atravessaram a cabeça; da tortura com o saco e o afogamento; da

humilhação antes de morrer, e o corpo ignorado; da cena do crime violada e forjada para

simular um confronto; da acusação precipitada pela sociedade de ―bandidinhos‖ e ―envolvidos

com o tráfico‖; do funeral decente negado; da recusa de socorro. Cada vez que essas mães

narram o que aconteceu, fala-se sobre a sensação de que elas também ―morrem um pouco‖.

Mas a ressurreição delas parece vir cada vez que a memória dos seus filhos clama por justiça.

Em abril de 2015, o Rio de Janeiro recebeu a Comissão Parlamentar de Inquérito (CPI), de

deputados federais que investiga o extermínio de jovens negros e pobres no Brasil. Mas como

a CPI também é um instrumento do estado, ela tem sempre o forte risco de não corresponder,

uma vez que mostra-se incapaz de responsabilizar o próprio Estado, sobre os números

altíssimos de jovens mortos que o Brasil hoje possui. Assim sendo, a CPI acaba por se tornar

um investimento pouco eficiente, ao não tratar o racismo como elemento protagonista — e

não um mero detalhe — desse extermínio invisibilizado. Também não possui nenhuma

proposta concreta de responsabilização do estado. Porque todos os dados apontam como

sendo ele, o estado, quem mais mata. Mas como nunca mata apenas a vítima atingida, vai

matando aos poucos também a resistência dos que estão à volta, como nesse relato de uma

mãe vítima de violência no Encontro de Campanhas de Enfrentamento ao Extermínio de

Juventude Negra e ao Racismo:

Todos os dias eu penso que se eu morasse por perto da ponte Rio-Niterói, eu já teria me

jogado de lá, pra acabar com esse sofrimento. Desde que o estado tirou a vida do meu filho,

minha vida em casa, com meu marido, é um inferno. Apenas no meio de vocês, em atos,

manifestações e encontros como esses, eu tenho um pouco de felicidade.

Cada vítima da ―guerra às drogas‖ nunca é apenas ―uma‖ vítima. Jovens pretos da

favela. Jovens policiais pretos residentes nas mesmas favelas. Parece que a figura do estado

mata onde, quando e como quer, sem sujar as mãos, já que usa as mãos (e os rostos) de outros

para apertar o gatilho. Com essas mulheres, a academia precisa aprender a ser afetada, para

além da sua racionalidade instrumental, dos dados, dos Power Points bem elaborados, dos

conceitos bem explorados e interpretados. Com elas, as igrejas precisam aprender a ter fé,

perseverança e indignação, mediante um ambiente alienador que não aproxima os seus

membros do mundo real, precisam chorar, sentindo a mesma dor. Com cada uma dessas mães,

as ONGs precisam aprender a não se acomodarem, a não serem pautadas pelo estado, mas

pautá-lo, exigir dele, enfrentá-lo.

"Há tempos que o homem negro é um encarcerado dentro do seu corpo"8, escreveu

Frantz Fanon no seu livro mais famoso, Pele Negra, Máscara Branca. Encarcerar o negro em

seu próprio corpo é a domesticação cotidiana, a disciplina que opera legal e moralmente, e

8 FANON, Frantz. Pele negra, máscacras brancas. Salvador, EDUFBA, 2008, pg.30

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que atinge de maneira mais pesada e violenta os mais pobres e pretos, sempre. A exigência de

um corpo "que não seja suspeito" é a vigilância permanente do sujeito preto e favelado. Por

outro lado, o apóstolo Paulo vai dizer, na sua carta aos Romanos, que nós, a humanidade,

homens e mulheres, ansiamos sempre pela redenção, a libertação do nosso corpo. A libertação

de corpos disciplinados, vigiados pelo Estado (Império Romano), pela religião, e pela

sociedade que estava disposta a se submeter à lei que o poder impunha.

Evidentemente a Lei não nos torna melhores, e nem foi feita para tal. Sobretudo no

Brasil, leis sempre foram pensadas para controlar os suspeitos. O Código Penal foi elaborado

para vigiar e punir as ameaças, os diferentes, os pretos alforriados que invadiam as ruas do

Império, e que seguem sendo hoje os protagonistas da pobreza e da favelização precarizada da

cidade. A Lei que criminaliza o corpo e nos torna estranhos. "Quando me amam, dizem que é

apesar da minha cor", escreveu Fanon, "quando me detestam, dizem que não é por causa da

minha cor. Em uma ou outra situação sou prisioneiro de um ciclo infernal"9. A Lei que

criminaliza os corpos pretos e empobrecidos condiciona um enquadramento marcado pela

construção dos comportamentos suspeitos. E se a Lei é o Estado, o suspeito "padrão" é

também um suspeito para o Estado.

As igrejas e líderes religiosos que aclamam para si a defesa de uma Lei moral que eles

consideram "a única", matando assim a pluralidade reconhecida pelas narrativas dos

Evangelhos, também se tornam algozes em nome da Lei. Aqui, Estado e Igreja se encontram.

Franz Hinkelammert, teólogo e economista, diz que a crítica de Paulo à Lei, negada e

ocultada pelos adoradores da Lei, está reconhecendo que "os tribunais e a polícia estavam do

lado daqueles que cometeram crimes"10

. A condenação de Jesus mostrava que não era uma

questão de ser justo ou injusto, criminoso ou inocente, mas o quanto era interessante para a

Lei construir um culpado.

Com a Lei, e sua (in)devida manipulação, controlam o corpo, reprimem o

questionamento, o protesto, a sexualidade, as drogas, o tamanho do vestido, o tom de voz, a

música a ser ouvida, os movimentos, o beijo, os gestos, enquadram os afetos, cerceiam a

mobilidade. Fanon dizia que "não queria nada menos que a libertação do homem negro de si

mesmo"11

. Era se libertar desse peso, dessa criminalização, desse controle que incutiram sobre

ele, para que ele naturalizasse. Para que ele não busque no homicídio diante dos seus olhos na

favela as explicações que rivalizem o "trabalhador" e o "vagabundo". Diz Giorgio Agamben,

filósofo italiano, também pensando em Paulo e na Lei: "Jesus de Nazaré não foi condenado,

mas morto: seu sacrifício não foi uma injustiça, foi um homicídio"12

. A Lei rege uma política

pública alicerçada no aparato de segurança, no controle de território e na criminalização da

pobreza. Ela, portanto, não nos representa em justiça, ela nos inclui no controle e repressão.

9 Idem, pg.109

10 HINKELAMMERT, Franz. A maldição que pesa sobre a lei: as raízes do pensamento crítico em Paulo de Tarso.

São Paulo, Paulus, 2012, pg.82 11

FANON, Frantz. Pele negra, máscacras brancas. Salvador, EDUFBA, 2008, pg.26 12

AGAMBEN, Giorgio. Pilatos e Jesus. São Paulo, Boitempo; Florianópolis, Editora da UFSC, 2014, pg. 51

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O capítulo 25 do Evangelho de Mateus, com esta perigosa perícope de 31 a 46, não é

uma passagem comum, não é um recurso meramente pedagógico para falar de salvos e

condenados. Não consigo sequer imaginar Jesus dizendo aquilo com a tranquilidade com que ela

é lida nos nossos sermões. Não é possível, porque é forte demais.

Na ilustração de Jesus, se salvarão aqueles que salvarem outros. Não aqueles que

salvarem a alma dos outros, porque esta seria missão inglória, que ninguém é capaz de fazer. É

preciso intervir no sofrimento do corpo. A fome, a sede, o ser estrangeiro, a nudez, a

enfermidade e o encarceramento violentam o corpo. É o corpo cuja sede rasga a garganta,

emudece a voz, resseca o organismo. É o corpo cuja fome enfraquece, é a fraqueza que perturba

a capacidade de discernir, mover-se, caminhar, resistir. E em nome da vitória sobre a fome, o

corpo é levado a vender-se, ser usado, explorado, abusado. É o corpo cujo encarceramento agride

a liberdade, a capacidade de ir e vir. Encarceramento seletivo, com grupo social específico,

território específico, cor de pele definida, faixa etária preferencial e ―práticas criminosas‖ bem

escolhidas. Encarceramento covarde, cuja palavra final está nas mãos de quem faz questão de

exibir o poder, decide o que é passível de pena e quanto custa a liberdade. Quanto custa a

liberdade deste corpo negro indomável, delinquente, infrator, maior ou menor, ameaça

intimidadora do ordenamento social, elemento perturbador do cotidiano. Corpos marcados à

espera do cárcere, nem sempre pelos atos cometidos, mas muitas vezes pelo estigma

naturalizado, ―a cor padrão‖ dos atos ―criminosos‖.

É o corpo, sempre o corpo nu, não apenas pela ausência das vestes, mas nu sem proteção

à violência, aos maus tratos, corpo nu e indefeso diante do controle inclemente do estado e das

incertezas, riscos e inseguranças da vida social. Acrescentemos a esse entendimento do nu, que

não é somente o corpo, mas toda uma vida e existência, a definição de vida nua, oriunda do

italiano Giorgio Agamben e tão bem lembrada por André Duarte: ―a vida que somente cai na

esfera da política na medida em que dela pode ser eliminada sem mais, sem que com isso se

cometa um crime‖13

. É este corpo nu, vulnerável e abandonado, que marca presença no texto.

Quando Jesus lembra estes corpos nus, carentes de vestes — as vestes não são suas roupas, são

seus cuidados, seu corpo que (re)veste outros corpos ,— ele se reporta à ele mesmo. Ele, que

seria o Cristo ―abandonado‖, segundo essa imagem linda e poderosamente refletida por

Moltmann em seu O Cristo crucificado. O teólogo alemão afirma que a gente só entende a

diferença da ―morte de Jesus das outras cruzes na história do sofrimento humano‖ quando vemos

seu abandono por parte de Deus e Pai. ―Jesus‖, diz Moltmann, ―morreu em singular abandono da

parte de Deus‖14

. É a força de uma contradição que nos agride. Todos os dias, a vida nua destes

corpos violados pela pobreza e pela negação do reconhecimento pede socorro. Estão

abandonados, são chacinados, executados, eliminados, desaparecidos, arrastados, agredidos.

Corpos nus.

É o corpo do estrangeiro. Não o estrangeiro pátrio, não os exilados nacionais. Os

estrangeiros são os ―indesejáveis‖, novos forasteiros das cidades, vítimas silenciadas da

13

DUARTE, André. Vidas em risco: crítica do presente em Heidegger, Arendt e Foucault. Rio de Janeiro, Forense Universitária, 2010, pg.274 14

MOLATMANN, Jürgen. O Deus crucificado: a cruz de Cristo como base e crítica da teologia cristã. Sando André-SP, Academia Cristã, 2014, pg.193

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segregação socioespacial, das famílias dos miseráveis expulsos das propriedades dos donos-

senhores, no campo e na cidade. Construtores de favelas, mão de obra dos alienados da própria

vida, escravos assalariados, removidos a qualquer hora, em função de uma política pública de

gentrificação, ansiosa de transformar cidades e territórios em produto. Nesta nova lógica de

cidade, o cidadão só é entendido como cliente, aquele capaz de se bancar como usuário de bens e

serviços em geral. Como a simples conclusão do geógrafo Márcio Piñon pontua, ―cidadão é

aquele que pode participar como consumidor e usuário da cidade; o que não pode, encontrar-se-

á, cada vez mais, à margem dela‖15

. Os estrangeiros e forasteiros estão também nas ruas, sujos,

esquecidos e temidos, aquecidos muitas vezes pelo álcool, pelo crack e pelo thinner. Indesejáveis

que são, não cabem nesta terra, não possuem direito ao sol, enfeiam nossas cidades, atrapalham

nosso percurso. São corpos soltos. Corpos dispensáveis.

Aí vem o Cristo e se identifica com essa gente, e condiciona o caminho para a tão

desejada salvação à coragem e a disposição de ir em direção a essa gente. E nós que já tínhamos

nos acostumado a torná-los lugar-comum, casos isolados, invisíveis mesmo. E se eliminados

fossem, a sociedade se sentiria confortável. Mas Jesus preconiza o que Paulo compreendeu.

Controlar “as ameaças”

No seu já clássico Manicômios, prisões e conventos, Erving Goffman dedica boa parte

do início do livro a esclarecer seu conceito de ―instituições totais‖. Não cabe aqui destrinchar

o que ele descreve, mas para efeito de ilustração, vale dizer que ele considera que as

instituições totais podem ser enumeradas em cinco agrupamentos, e é o terceiro que nos

interessa. Diz Goffman: ―É organizado para proteger a comunidade contra perigos

intencionais, e o bem-estar das pessoas assim isoladas não constitui o problema imediato‖16

.

Entre os exemplos, o autor vai citar as cadeias, as penitenciárias, os campos de

concentração. Mas eu gostaria de chamar atenção para um trecho específico, a saber, ―o bem-

estar das pessoas assim isoladas não constitui o problema imediato”. E mais, em outro canto,

Goffman afirma que ―a barreira que as instituições totais colocam entre o internado e o mundo

externo assinala a primeira mutilação do eu‖17

.

Essa introdução serve apenas como um apontamento do rumo desta reflexão, e para

onde é o convite da discussão. Os acontecimentos recentes no presídio de Pedrinhas, no

Maranhão, império da família Sarney, colocou em evidência o que já é lugar comum de toda

organização de defesa de direitos: tortura, morte e medidas desumanas é parte do cotidiano no

sistema prisional brasileiro. A morte de mais de sessenta presos no presídio em 2013 só foi

capaz de assustar por causa das decapitações. A simples possibilidade de que um homem seja

capaz não apenas do assassinato, mas, uma vez tendo assassinado, ainda ―concluir o serviço‖

15

OLIVEIRA, Marcelo Piñon de. O retorno à cidade e novos territórios de restrição à cidadania, in Território, territórios: ensaios sobre o ordenamento territorial / Milton Santos [et al.], Rio de Janeiro, Lamparina, 2011, pg.175 16

GOFFMAN, Erwing. Manicômios, prisões e conventos. São Paulo: Perspectiva, 1974, p. 17. 17

Idem

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arrancando-lhe a cabeça, é o que parece nos conectar com o que há de mais sombrio no ser

(ainda) humano.

Todavia, a quantidade de presos decapitados em Pedrinhas, em 2013, não chega nem

perto da metade dos decapitados num presídio de Rondônia em 2002. Foram 27. E ao longo

de todo o sistema prisional brasileiro a violência e a indiferença com o bem-estar de quem

está isolado é absolutamente regra, quase sem exceção. Aliás, é difícil pensar em exceção

quando você tem 548 mil homens e mulheres amontoados onde deveria haver 238 mil, sendo

que destes, cerca de 135 mil são presos provisórios, ainda que muitos estejam lá há anos.

Estão jogando pessoas nas cadeias. Mas não se trata de quaisquer ―pessoas‖, e não se trata

apenas de cadeias. E é disso que estamos realmente a tratar.

Nossa questão aqui é de que maneira nossas instituições totais — mesmo as que não

são de fato, mas que funcionam como — estão a serviço do controle, ou da contenção, da

nossa desigualdade social. Há um perfil comum que predomina entre o tipo de ―gente‖ que

ocupa o sistema prisional brasileiro, mas não só. Este perfil se encontra também nos abrigos

para onde são recolhidos moradores em situação de rua, ―crackudos‖ incômodos na paisagem

das nossas capitais; nos territórios ocupados do Rio de Janeiro, onde outrora o tráfico

realmente dominava, mas a entrada do braço armado do estado não reverteu o quadro, antes,

valendo-se da mesma intimidação, evidencia que deve ficar claro ―quem manda‖; nas

unidades de cumprimento de medidas socioeducativas para adolescentes, sem perspectiva de

ressocialização, apenas mantendo sob controle os ―potenciais criminosos‖.

No Rio de Janeiro, um dos mais conhecidos abrigos para recolhimento de moradores

em situação de rua fica em Paciência, na Zona Oeste da cidade. Um verdadeiro depósito de

gente, com mais de 500 pessoas com toda precariedade de tratamento e assistência.

Considere-se que não estamos nos referindo a criminosos julgados e condenados, mas a

pessoas socialmente vulneráveis, onde não é incomum inclusive encontrar quem por uma

fatalidade perdeu tudo, inclusive família, e tentara recomeçar como ambulante e tivera sua

mercadoria recolhida por agentes da prefeitura, impossibilitado de ganhar a vida de outras

formas, sendo a rua o único lugar. Em 19 de fevereiro de 2013, em apenas um dia, mais de

cem pessoas foram recolhidas numa ação da prefeitura, levadas para o abrigo de Paciência. O

local já recebera diversas denúncias de más condições, maus-tratos e precariedade dos

serviços.

Precariedade e tortura também são o cotidiano das unidades próprias para

adolescentes, em cumprimento de medidas socioeducativas. Incapazes de uma política

eficiente para ressocializar os jovens e ampliar o leque de oportunidades e alternativas para

um reencontro com a sociedade, o sistema, no apagar das luzes, maltrata, impõe o medo,

violenta, humilha e subjuga. Toda essa energia repressiva é canalizada no adolescente não

para superar sua condição, mas para fomentar sua capacidade de destruição, vingança e

agressividade, a dissimulação do sujeito bem comportado, para ―reagir‖ no momento certo,

matando se for necessário, para garantir a liberdade e a vida.

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Mas o nosso maior drama passa a ser não esse quadro decepcionante, mas outro: o

silêncio da sociedade. Esse silêncio é um vazio inconsequente, que acaba por ser preenchido

pelas violações que ignoramos. Nossa política de segurança pública tem sido dividida por

décadas entre o enfrentamento ostensivo do crime, quando este ataca e se materializa, e o

controle social, de onde deriva a manutenção permanente da ordem social, da contenção dos

seus perturbadores.

O que digo com nosso silêncio é que ele invisibiliza o que parece ter chegado num

estágio de estrangulamento. Para ficar no ―meu quintal‖, direciono os argumentos deste artigo

às igrejas e organizações evangélicas que, salvo raríssimas (grifem o ―raríssimas‖) exceções,

não tornam o caos da (in)segurança pública e a violência como uma pauta urgentemente

relevante. O Rio de Janeiro teve em 2013, segundo relatório da Comissão de Direitos

Humanos da Assembleia Legislativa, cerca de 6 mil desaparecidos. É como se o estado fosse

um grande campo de extermínio. No mesmo ano, o estado da Bahia registrou a morte de

4.240 jovens negros por homicídio. No estado de Minas Gerais, em especial a cidade de Belo

Horizonte, nos últimos anos, cerca de 100 moradores de rua foram assassinados, segundo o

Centro Nacional de Defesa de Direitos Humanos, Moradores de Rua e Catadores. Sem falar

do recolhimento forçado, ao apagar das luzes. Em 2012, o estado de São Paulo teve 546

mortes registradas como ―auto de resistência‖, e o Rio de Janeiro somam mais de 10 mil

mortes pelo mesmo motivo entre os anos 2001 e 2011.

A impessoalidade do poder des-figura os rostos das pessoas comuns. E essa é uma

estratégia importante para o não reconhecimento do lugar do outro na cidadania. O filósofo

Emmanuel Lévinas tem no rosto uma importante categoria de exigência ética. O rosto do

outro exige de mim um olhar, um cuidado, responsabilidade. Mas considero aqui a reflexão da

filósofa americana Judith Butler, que, ao pensar sobre a relação de conflito entre Israel e

Palestina a partir de Lévinas, se pergunta se os palestinos seriam os sem-rosto para os

israelenses. Negando-lhes o rosto, estava negada a exigência ao cuidado, a responsabilidade,

o olhar e o diálogo.

Ao que parece, temos uma massa de homens e mulheres sem rostos. Abrigos,

presídios e territórios ocupados tornam-se o destino daqueles não reconhecidos no cotidiano

da cidade, ―deslegitimados‖ por sua condição de anonimato pelos serviços da cidadania e da

reparação, do acesso ao leque de oportunidades necessárias para um avanço na escalada da

pirâmide social, apátridas internos, exilados em um mundo onde possuem o direito básico de

saírem para trabalhar e voltar. A favela tornou-se uma ―pátria‖ de projetos, ONGs,

movimentos, assistências, capelanias, missões, laboratórios e observatórios. Tudo o que lá se

instala, revela que lá não tem nada porque não é interessante ter.

Faz tempo que reprimir o tráfico não justifica mais tanta loucura e excesso na

repressão. Parece que a guerra mesmo já foi contra o tráfico, mas faz tempo que ela não é

mais. A guerra é contra a pobreza mesmo. Evidentemente não a pobreza no sentido da

limitação material, mas no sentido amplo do imaginário que a pobreza, e os espaços de

pobreza, suscitam no coletivo. A criminalização de um território é sempre simbólica, mas

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incide de maneira sempre concreta sobre os ocupantes do território. Territórios

criminalizados, corpos criminalizados.

A criminalização é, em muitos aspectos quando lançado como estigma sobre um grupo

social específico, fruto de contingências históricas e obedecem a um fim determinado. ―O

‗direito‘ da polícia‖ — diz Walter Benjamin em seu famoso artigo ―Crítica da Violência‖ de

1921 — ―é o ponto em que o Estado não pode mais garantir, através da ordem jurídica, seus

fins empíricos, que deseja atingir a qualquer preço‖18

.

―Atingir a qualquer preço‖ é o ponto. No cumprimento de uma ordem de desocupação

recente no Rio de Janeiro, a polícia tentou ―dialogar‖ com os ―invasores‖ informando, com a

utilização de um megafone pelo soldado à frente da tropa de choque já pronta para invadir,

que o estado disponibilizaria ônibus e caminhões para conduzirem as pessoas até os seus

destinos e também abrigos para os necessitados. A partir daí, o prédio foi invadido e as

pessoas retiradas. Sem rostos. Pessoas ignoradas na sua cidadania e do exercício do diálogo

processual com o poder. Uma vez criminalizado o território — um prédio, ―invadido‖, é um

espaço criminalizado pela ―invasão —, são criminalizados os corpos do território. E o abrigo

surge aqui como alternativa, não para acomodar pessoas para a manutenção da cidadania, mas

como um instrumento de contenção dos indesejáveis.

Numa definição simples do que caracterizaria uma nova cidadania, a professora

Evelina Dagnino afirma que ela irá requerer ―a constituição de sujeitos sociais ativos,

definindo o que eles consideram ser os seus direitos e lutando pelo seu reconhecimento‖19

.

Nada mais distante do que temos atualmente. Quando a atividade dos sujeitos ativos é

previamente criminalizada, toda luta pelo seu reconhecimento é neutralizada pelo ―direito‖ a

serviço do rei.

Cada vez que diante de um tensionamento social — como as repetidas imagens de

―menores furtadores‖ exibidas em reportagens sucessivas; a ―rebeldia popular‖ nas

comunidades periféricas que queimam ônibus enquanto outros aproveitam para hostilizar as

instalações que representam o estado; as notícias de conflitos cada vez mais frequentes entre

policiais e facções — a primeira resposta dos governantes é o aumento do efetivo policial-

militar, a ponto de solicitar uma intervenção federal quando a quantidade disponível não é

suficiente, podemos estar certo de que não estamos conversando sobre solução ou esperança.

Ao contrário. Estamos falando de agravamento. Como uma corda que vai apertando quando já

deveria estar afrouxando para se pensar em outro nó ou outra forma de fazê-la envolver o

drama.

Talvez por isso, temos em Etty Hillesum não apenas uma jovem ousada e destemida que

neutralizaria de sua alma e de seu coração o medo e todo abalo da escolha de uma alteridade,

mas sobretudo alguém que ensinou a abertura para o encontro e o diálogo, a solidariedade e o

engajamento. Mesmo diante do rosto frio de um soldado alemão em pleno nazismo, ela era

18

BENJAMIN, Walter. ―Crítica da Violência – crítica do poder‖. In: Documentos de cultura, documentos de

barbárie: escritos escolhidos. Willi Bolle (Org.), São Paulo: Cultrix/Editora da Universidade de São Paulo, 1986. 19

DAGNINO, Evelina. Os movimentos sociais e a emergência de uma nova noção de cidadania. In: Anos 90:

Política e sociedade no Brasil. Dagnino, E. (org.) São Paulo: Brasiliense, 1994, p. 108.

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capaz de atravessamentos, ir além da dura objetivação que sobre ele pairava20

, e alcançava-

lhe o rosto, no mais levinasiano dos sentidos. Acompanhar a trajetória de Hillesum pelos seus

diários, nos mostra uma jovem linda, poética, mas de profundo fervor na espiritualidade e de

confiança em Deus. Pode-se dizer com segurança que sem recorrer ao Deus a quem orava e

buscava ouvir mesmo em meio aos escombros parte de sua coragem e ousadia arrefeceria. Há

isso numa oração feita numa manhã de novembro de 1941.

―Meu Deus, tomai-me pela mão, eu Vos seguirei obedientemente e não

resistirei demais. Não evitarei nenhuma das tempestades que a vida me

reserva, tentarei fazer face a todas elas da melhor forma que eu puder. (...)

Procurarei distribuir algo de meu calor, de meu verdadeiro amor pelos outros,

onde quer que eu vá. (...) Não desejo ser nada especial, apenas quero ser fiel

àquela parte de mim que procura cumprir sua promessa. Às vezes imagino

que anseio pela reclusão conventual. Mas sei que devo procurar-Vos no meio

do povo, no mundo exterior. (...) Faço voto de viver minha vida no mundo

exterior integralmente.‖21

Viver no mundo exterior integralmente tem também esse caráter de compromisso em

não se omitir diante de circunstâncias por demais tenebrosas, as quais a jovem judia holandesa

experimentava com tantos outros irmãos. O convite à responsabilidade desinteressada feita

por Lévinas é então aceito por Etty Hillesum, no passo voluntário para Westerbrork, e de lá

para Auschwitz.

A fragilidade da vida no campo não a intimidou a ponto de que buscasse evitar o

sofrimento e a exposição à vulnerabilidade diante da força ali imperante. Atirou-se sempre

com determinação, tendo consciência que seu sofrimento não era de maneira nenhuma maior

que outros. Ao perguntar a si mesma: ―quando sofro pelos vulneráveis, não é pela minha

própria vulnerabilidade que sofro?”, está Etty Hillesum expressando a consciência nítida

daquilo que Lévinas identificava como o conceito da substituição, esta passagem do gesto e

da atitude do ―para o outro‖ para o ―pelo outro‖. Esta jovem holandesa traduz isso de maneira

natural e encantadora na sua história de oferecimento de sua própria vida e serviço em defesa

da causa e da sobrevivência do outro.

Presença permanente, no campo de concentração o sofrimento é quase um ser real e

tangível. É mais fácil rezar por alguém a distância, escreve ela em seu diário, do que vê-lo

sofrer ao seu lado. Não é o medo da Polônia que me impede de ir com meus pais, mas o medo

de vê-los sofrer. Está aí, pois a força dramática da alteridade. Quem lê os diários de Etty

percebe com surpresa, ao fim da leitura, a ausência de uma reflexão que expresse o medo de

sua própria morte, mas antes, sempre o medo do sofrimento de outros, a morte de outros.

Ozanan Carrara, refletindo sobre o conceito da responsabilidade e da substituição em

Lévinas, parece mesmo ―teorizar‖ o que com a ajuda da própria vida de Etty Hillesum,

podemos contemplar existencialmente:

Neste sentido não é a minha própria morte que me angustia ao me fazer

deparar-me com minha própria finitude, mas a possibilidade da morte do

outro que afeta minha sensibilidade.22

20

Escreveu ela em 1942: “De todos esses uniformes, um agora apareceu com um rosto. Haverá outros rostos também nos quais seremos capazes de ler algo que compreendemos: que os soldados alemães também sofrem. Não há fronteira entre a gente que sofre, e devemos rezar por todas elas”. 21

HILLESUM, Etty. Uma vida interrompida, os diários de Etty Hillesum,1941-43, Petrópolis, RJ, Vozes, 1981, pg. 72-73 22

CARRARA, Ozanan Vicente, Lévinas: do sujeito ético ao sujeito político: elementos para pensar a política outramente, Aparecida-SP, Idéias & Letras, 2010, pg. 145

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Evidentemente, Etty Hillesum não foi a única pessoa a, no tenebroso contexto do

nazismo e do Holocausto, a ―ousar cuidar‖, a não permitir que o medo matasse a

solidariedade. Homens e mulheres, não foram poucos os que arriscaram a vida, o cargo, a

segurança, para poupar a vida de alguns, aliviar o sofrimento de outros. Mas sua entrega e sua

renúncia são peculiares, e até conflitante, vista a partir de hoje. Declarações como: ―casar-me

com um refugiado, a fim de poder ficar com ele quando o mandassem para um campo de

concentração‖, são afirmações que mostram a jovialidade de uma ousadia destemida, mas

também de uma vida inclinada mesmo para a responsabilidade com o outro. Diz Edith Stein

que “o que não é livre é constrangido, só dura até quando houver necessidade”, e completa

afirmando que ―o amor é doação de si mesmo‖23

. Ela mesma, Edith Stein, vítima dos horrores

de Auschwitz, foi uma referência de perseverança e entrega e de encontro com Deus, em meio

ao caos e a angústia do hitlerismo.

Mas sua afirmação contempla a jovem holandesa. Na sua solidariedade, a liberdade

não age por constrangimento impositivo, mas por amor, voluntário. A mesma mente amante

juvenil que imagina ser a mulher companheira de um refugiado, oferecendo-lhe alguma

companhia, consolo e encorajamento, é que também desejou a possibilidade de ser enviada

para o campo para cuidar das crianças, tirada de seus pais, sem qualquer condição de saber se

estes estariam vivos.

Nessa missão, Hillesum entrou por inteira, entrou com sua disposição, jovialidade,

educação e também sua espiritualidade. Sem a ―formalidade‖ institucional de religião alguma,

encontrou Deus em meio ao terror. Não titubeou a questioná-lo pela condição que vivia ela e

os judeus, entendeu que ali o homem produziu a maldade, e agora Deus estava ali, com eles,

companheiro maior no sofrimento que lhe infringiam. Uma vez que tenha entendido sua vida

como uma tarefa ao amor e a responsabilidade (fazendo aqui uso do conceito que Lévinas

poderia utilizar), prosseguiu, apesar de todas as adversidades. Por que não lembrar Stein

novamente: Nossa tarefa é amar e servir. E uma vez que Deus jamais abandona o mundo

que Ele criou, tem um amor predileto pelos seres humanos, para nós é

naturalmente impossível desprezar o mundo e os seres humanos.24

O que Etty Hillesum assume é o mundo e os seres humanos, com todas as suas

contradições, capacidade de produzir morte, mas também com a capacidade de gerar vida e

cuidar dela, sua e do outro. Esta orientação é seguida por Etty Hillesum, e mostra também um

―compromisso libertário‖, com Deus, em quem acredita e clama.

Referências

1- LÉVINAS, Emmanuel, Da existência ao existente, Campinas-SP, Papirus, 1998

2- LÉVINAS, Emmanuel, Los imprevistos de la história, Salamanca/España, Ediciones

Sigueme, 2006

3- VATTIMO, Gianni, O fim da modernidade; niilismo e hermenêutica na cultura pós-

moderna, São Paulo, Martins Fontes, 1996

4- BRITO, Felipe e OLIVEIRA, Pedro Rocha de (orgs.), Até o último homem, São Paulo,

Boitempo, 2013

23

STEIN, Edith, Teu coração deseja mais: reflexões e orações, Petrópolis-RJ, Vozes, 2012, pg. 43 24

STEIN, Edith, Teu coração deseja mais: reflexões e orações, Petrópolis-RJ, Vozes, 2012, pg. 103