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Especialização em Terapia Familiar Sistêmica PósGraduação Paradigmas da Ciência Contemporânea Prof. Rui Simon Paz Curitiba – Paraná 2014

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Especialização  

 em  Terapia  Familiar  Sistêmica  

Pós-­‐Graduação  

 

 

 

 

 

 

Paradigmas  da  Ciência  Contemporânea    

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 Prof.  Rui  Simon  Paz  

 

 

 

 

Curitiba  –  Paraná  

2014  

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Índice  

 

Época  de  Transição:  O  Renascimento..........................................................................................    03  

Razão  e  Experiência:  O  Século  XVII...............................................................................................  09  

Racionalismo:  Cepticismo  e  certeza..............................................................................................  12  

A  Filosofia  Moderna  de  Descartes  (Eduardo  O.  C.  Chaves)....................................................  19  

A  máquina  do  mundo  newtoniana.................................................................................................  40  

Alterações  na  Sociedade,  Efervescência  nas  Ideias:  

A  França  do  Século  XVIII...................................................................................................................  58  

Há  uma  ordem  Imutável  na  Natureza  e  o  Conhecimento  a  Reflete:  

Augusto  Comte......................................................................................................................................  72  

Evolução  do  Método  Científico........................................................................................................  90  

Da  Necessidade  do  Pensamento  Complexo..............................................................................  101  

Introdução  ao  Pensamento  Complexo.......................................................................................  121  

O  Manifesto  da  Transdisciplinaridade......................................................................................  131  

 

 

 

 

 

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Época  de  Transição1  

O  Renascimento  

 

INICIO  DA  IDADE  MODERNA  

 

Renascimento  e  humanismo  

 

Renascimento,   Idade   Média,   idade   Moderna   -­‐   estes   conhecidos   termos   definidores   das  

épocas   da   história   europeia   estabelecem   uma   continuidade   histórica,   na   medida   em   que  

diversas  culturas  são  por  eles  delimitadas  entre  si.  No  século  XV,  no  início  da  Idade  Moderna,  

já   havia   consciência   da   possibilidade   desta   delimitação,   por   oposição   à   Idade   Média,   que  

conhecera  outras  divisões  da  história,  orientadas  por  afirmações  bíblicas  e  teológicas  e  que  

se   acreditava   estarem   ancoradas   no   plano   criador   acabado.   No   século   XVIII   impôs-­‐   se  

definitivamente  a  convicção  de  que  se  estava  a  viver  uma  nova  época  desde  há  cerca  de  três  

séculos.  (O  termo  “época”,  no  sentido  atual,  surgiu  naquele  tempo.)  

De   fato,  no  século  XVIII,  muitos  desenvolvimentos  da   Idade  hoje  chamada  Moderna,   com  o  

tempo   do   Renascimento,   atingiram   o   seu   ponto   culminante,   O   sistema   do   Estado   pós-­‐

medieval   estava   estabelecido,   os   valores   cristãos   e   de   tradição   política   feudal   foram  

profundamente   relativizados   pelos   pensadores   do   iluminismo,   as   instituições   culturais   e  

toda   a   concepção   do   mundo   foram   secularizadas   (isto   é,   desligadas   de   compromissos   e  

dogmas  eclesiásticos).  

As  ciências  tinham  um  papel  decisivo  e  autônomo.  O  remanescente  dos  sistemas  de  conceitos  

escolásticos   foi   eliminado.   As   formas   da   natureza   e   os   povos   de   todo   o   mundo   foram  

comparados  e  classificados;  a  burguesia  cosmopolita  tomou  consciência  de  ser  uma  camada  

vasta   e   fundamental   da   sociedade,   com   potencial   revolucionário,   e   o   indivíduo   encontrou  

novas  formas  de  expressão  do  eu.  

As  primeiras  raízes  modernas  desta  situação  no  século  XVIII  estavam  fundamentalmente  em  

inovações   (e/ou   melhoramentos   de   aplicação)   de   práticas   decisivas   do   século   XIV,  

enumeradas  por  Francis  Bacon  no   seu   livro  de  1  620:   “A   arte  da   impressão,   a  pólvora   e   a  

bússola   [   mudaram   a   forma   e   a   face   das   coisas   no   mundo;   seguiram-­‐se-­‐lhes   inúmeras  

modificações  das  coisas,  e  parece  que  nenhum   império,  nenhuma  seita,  nenhum  astro   teve  

maiores  efeito  e  influência  para  o  interesse  humano  do  que  essas  coisas  mecânicas.”  

1. DELUIS, Christophe et alii. História da Filosofia. Colônia, Alemanha :

Könemann, 2001;

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De  fato,  as  “três  coisas”  podem  ser   ligadas  aos  acontecimentos  históricos  que  constituem  o  

início   da   Idade   Moderna:   a   tipografia,   com   a   erudição   humanista   do   Renascimento,   os  

panfletos  e  escritos  da  Reforma;  a  introdução  de  armas  de  fogo  com  o  fim  da  cavalaria  e,  por  

conseguinte,  também  com  o  desenvolvimento  de  novas  formas  de  governo;  e  a  invenção  da  

bússola,  com  as  descobertas  geográficas  da  época  (Colombo,  Vasco  da  Gama).  

Em  meados  do  século  XVI,  o  pintor  e  arquiteto  Giorgio  Vasari  publicou  biografias  de  artistas  

famosos,  cuja  série  começa  com  os  primeiros  que  “superaram”  o  estilo  gótico,  chamado  por  

Vasari”bárbaro”.   Aqui   a   Idade   Média   é   definida   como   uma   época   obscura   por   oposição   à  

Antiguidade   e   ao   seu   renascimento   (renaissance)   na   arte   italiana   do   século   XIV   (Giotto)   e  

depois,   sobretudo,   do   XV   e   início   do   XVI   (por   exemplo,   Leonardo   da   Vinci,  Miguel   Ângelo,  

Rafael).  No  século  XIX,  “Renascimento”   foi  um  termo  empregue  para  caracterizar  toda  uma  

época  cultural,  desde  aproximadamente  o  período  de  1  400  até  1530  ou  também  até  1  600,  e  

que  no  essencial  estava  limitado  à  Itália  ou  então  tivera  a  sua  origem  naquele  país.  

De   acordo   com   a   sua   origem,   o   termo   “Renascimento”   foi   delineado   de   forma   bastante  

precisa   na   história   de   arte;   noutras   áreas,   a   sua   delimitação   parece  muito  mais   difícil   em  

comparação   com   os   da   Idade   Média   e   do   Barroco.   Hoje,   a   imagem   que   se   tem   do  

Renascimento   já  não  é  a  de  um  período  de  unidade  cultural  geral;   ele  é  antes  considerado  

uma   “época-­‐limiar”,   na   qual   o   novo   ficou,   de   forma   admirável,   entrelaçado   com  a   tradição  

medieval.  

Muitas  das  inovações  marcantes  da  época  deram-­‐se  no  campo  das  artes  plásticas.  No  início  

do  século  XV  os  arquitetos  e  pintores  descobriram  a  perspectiva  central,  que  cria  uma  ilusão  

figurada  de  profundidade  e  permite  representar  o  homem  e  as  coisas  no  espaço  devidamente  

proporcionados.  Em  comparação  com  o  procedimento  imaginativo  estruturado  por  símbolos  

e  fórmulas  de  imagens  característico  da  pintura  medieval,  o  procedimento  de  representação  

em   perspectiva   baseia-­‐se   na   relação   entre   o   objeto   retratado,   a   superfície   da   imagem   e   o  

ponto   de   vista   do   observador,   e   transforma   a   imagem   em   função   desses   elementos.   A  

imagem   definida   em   termos   científicos   —   e   racionais   —   como   reprodução   exata   da  

realidade,  tal  como  ela  surge  aos  nossos  olhos.  Aqui  se  manifestam  a  racionalidade  moderna,  

com  a  sua  concepção  matemática  do  espaço  e  da  natureza,  e  uma  compreensão  do  mundo  a  

partir  do  sujeito  (observador),  enquanto  construção  mental  do  mundo.  

Assim  como  a  imagem  em  perspectiva,  através  do  seu  ponto  de  vista  sempre  indicado,  tem  

como   objetivo   o   indivíduo   observado,   o   novo   gênero   de   pintura   —   a   arte   do   retrato   -­‐  

tematiza  a  representação  individualizada  do  Outro.  Aliás,  no  Renascimento,  a  dignidade  e  a  

particularidade   do   indivíduo   são   frequentemente   realçadas;   também   aqui   começa   uma  

ruptura   com   a   Idade  Média,  mais  marcada   pela   ideia   da   comunidade   religiosa   coletiva   no  

contexto   das   ordens   religiosas.   A   novidade   está   sobretudo   no   fato   de   serem   celebrados   e  

coroados,   não   apenas   príncipes,   mas   também   poetas   e   “artesãos”   como   Giotto   ou   Miguel  

Ângelo.  

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O   primeiro   poeta   e   ao   mesmo   tempo   o   primeiro   grande   humanista   da   nova   época   a   ser  

coroado  com  louros,  segundo  a  tradição  antiga,  no  Capitólio  de  Roma,  foi  Francesco  Petrarca.  

O  humanismo,  enquanto  corrente   literária  e   filosófica  do  Renascimento,   significa   formação  

erudita  nas  artes  e  ciências  que  desenvolvem  o  lado  humano  do  homem.  Humanista  e  eram,  

no  século  XV,  os  professores  recorrendo  a  fontes  antigas,  ensinavam  gramática,  retórica,  na  

história,  literatura  e  filosofia  moral.  

Os  humanistas  eram   filólogos  da   literatura   latina  e,   aos  poucos,   também  da  grega,  mas,   ao  

mesmo   tempo,   eram  na   sua  maioria   estilistas   e   retóricos   brilhantes.   Petrarca,   tal   como   os  

seus   sucessores,   exigia   o   renascimento   do   homem   por   meio   do   regresso   à   Antiguidade   e  

defendia   a   inseparabilidade   do   pensamento   racional   da   linguagem   culta.   O   seu   modelo  

político   era   a   república   romana;   o   mesmo   era   válido,   por   exemplo,   para   o   humanista  

florentino   Leonardo  Bruni,   que   expôs   a   sua   convicção   republicana  de   forma   literária   e,   ao  

mesmo   tempo,   assumiu-­‐a   na   vida   prática,   no   exercício   das   suas   funções   num   importante  

cargo  público.  A  ligação  entre  teoria  e  prática  era,  aliás,  uma  exigência  humanista  e  conduziu  

ao   ideal   renascentista   do   uomo   universale,   do   homem   moralmente   seguro,   de   formação  

universal  e,  também  no  seu  trato,  douto  e  sábio.  

O   humanismo   não   ficou   limitado   apenas   à   Itália.   O  melhor   conhecedor,   no   seu   tempo,   da  

literatura   antiga   e   cristã   foi  Erasmo  de  Roterdão.  A   sua  vasta   correspondência  difundiu-­‐se  

por   toda   a   Europa.   O   seu   pensamento   tolerante   buscou   o   equilíbrio   nas   questões  

relacionadas   com   as   paixões   humanas,   os   conflitos   religiosos,   bem   como   no   antagonismo  

entre   a   Antiguidade   e   o   Cristianismo.   Os   humanistas   também   atuaram   na   Inglaterra   e   em  

França,  e  na  Alemanha,  Ulrich  von  Hutten  pôde,  apesar  dos  distúrbios  da  época,  proclamar:  

“Oh,  século,  oh,  ciência,  é  um  prazer  viver!  As  ciências  florescem,  os  espíritos  agitam-­‐se”.  

 

FILOSOFIA  DO  RENASCIMENTO  

 

Nicolau  de  Cusa  

 

A  douta  Ignorância  do  infinito  

 

A  mudança   de   perspectiva,   já  moderna,   para   a   realidade   linguística   e   histórica   do  mundo  

humano,   com   paralelo   no   realismo   dos   artistas   renascentistas,   levou   os   humanistas   a  

criticarem  reiteradamente  a  escolástica  e  os  seus  conhecimentos  metafísicos,  desligados  da  

natureza  e  de   forma  puramente   lógica,  bem  como  os   seus   infindáveis   comentários   sobre  a  

obra   de   Aristóteles.   Petrarca   expôs,   contra   Aristóteles,   cujas   obras   permitiam   que   uma  

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pessoa  ficasse  mais  inteligente,  mas  não  melhor,  a  doutrina  ética  de  Platão,  iniciando  assim  

uma  evolução  que  culminou  na  criação  da  academia  platônica  em  Florença.  

Na   filosofia  de  Platão,   e  particularmente  na   sua   ideia  do  Bem,  haveria  uma  aproximação  à  

verdade  divina,  segundo  Petrarca  num  dos  seus  textos  intitulado:  “Sobre  a  Sua  Ignorância  e  a  

de  Muitos   Outros”.   A   ignorância   de   que   se   fala   aqui   é   a   do   cristão,   para   quem   as   últimas  

verdades   só   são   acessíveis   através   da   fé.   Nicolau   de   Cusa   (ou  Nicolau   Cusano),   diplomata  

eclesiástico,  cardeal,  humanista  e  filósofo,  faz  deste  aspecto  a  sua  doutrina  principal.  No  seu  

livro  De  Docta  Ignorantia  (“Da  Douta  Ignorância”  ou  “Do  Desconhecimento  Consciente”),  de  1  

440,   ele   aceita   a   incompreensibilidade   da   infinidade   de   Deus   e   parte   deste   conhecimento  

para  a  determinação  positiva  dessa  incompreensão  enquanto  tal.  

Se   o   infinito   é   alheio   ao   mundo   criado   e   às   coisas   particulares,   ou   seja   o   “absoluto”   por  

oposição   ao   relativo,   então   o   aparato   lógico   da   escolástica   não   pode   apreendê-­‐lo.   Esse  

aparato   baseia-­‐se   em   oposição,   exclusão   e/ou   concordância,   inclusão.   Em   absoluto,   esses  

aspectos  relativos  não  podem  surgir;  segundo  Cusano,  ele  tem  de  ser  pensado  como  aquele  

no   qual   os   contrários   coincidem.   Cusano   ilustra   esta   ideia   com  um  exemplo   geométrico:   a  

tangente   de   uma   circunferência   de   num   ponto.   Mas   se   a   circunferência   é   infinitamente  

grande,  ele  coincidirá  com  a  tangente.  Isto  é  compreensível,  mas  não  real  imaginável.  Trata-­‐

se,  para  Cusano,  de  entender  esse  limite  do  saber  para  assim  olhar  para  a  própria  ignorância  

e  entendê-­‐la  na  sua  essência.  Além  disso,  Cusano  estuda  o  tipo  de  reconhecimento  humano,  

estudo   esse   que   o   conduz   à   determinação   de   uma   relação   entre   a   atividade   intelectual  

humana  e  a  divina.  

O   intelecto   compara   e   diferencia   coisas,   produz   relações   numéricas,   mede   e   calcula.   O  

conhecimento   assim   alcançado   sobre   as   coisas   permanece,   no   entanto,   sempre   relativo   e  

incompleto,  já  que  entre  as  inumeráveis  coisas  do  mundo  se  pode  sempre  encontrar  “mais”  

relações.   Somente   um   critério   absoluto   permitiria   fixar   os   limites   do   particular.   A  

diferenciação   interminável   do   mundo   só   se   completaria   e   resolveria   a   partir   da   unidade  

absoluta   dos   contrários.   Segundo   Cusano,   a   razão   apodera-­‐se   do   entendimento,   não  

apreende,   mas   “toca”   o   absoluto.   Graças   a   esse   contacto,   a   razão   pode   pensar   a  

comensurabilidade   enquanto   tal   e   a   unidade   enquanto   tal,   e   essa   faculdade   de   pensar   é   o  

fundamento  da  atividade  intelectual,  que  sem  aquela  só  a  esmo  diferenciaria.  

Esta  relação  entre  razão  e  intelecto  mostra  ao  espírito  humano  como  é  que  ele  próprio  torna  

possível   o   seu   saber,   em   vez   de   se   adaptar   completamente   à   realidade   pré-­‐ordenada   das  

coisas.   A   unidade   enquanto   fundamento   do   cálculo   e   da   matemática   estabelece   a  

independência   do   espírito,   bem   como,   por   exemplo,   todas   as   unidades   de   medida,   a   que  

Cusano   chama   “hipóteses”   (proposições).   Com   as   hipóteses,   o   homem   aproxima-­‐se   da  

relação   das   coisas,   nunca   definitivamente   apreendida.   Esta   atividade   criadora   é   análoga   à  

atividade  de  Deus:  “Pois,  tal  como  Deus  é  o  criador  do  verdadeiro  ser  e  das  formas  naturais,  o  

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homem   é   o   criador   do   ser   imaginado   e   das   formas   artificiais;   estas   não   são  mais   do   que  

semelhanças  do  seu  espírito,  assim  como  as  criaturas  são  semelhanças  do  espírito  divino,”  

Renascimento  e  Platonismo  

Com   o   seu   pressuposto   de   um   princípio   absoluto   (Deus),   de   quem,   em   última   análise  —  

graças  ao  contacto  da  razão  com  esse  absoluto  -­‐‘  deriva  todo  o  conhecimento  e  tudo  o  que  é  

reconhecível,  Cusa  no  retoma   ideias  (neo)platônicas.  E  não  estava  sozinho  —  no  século  XV  

houve   uma   autêntica   revivescência   do   Platonismo.   Desde   o   tempo   de   Petrarca,   os  

pesquisadores   de   fontes   humanistas   já   tinham   descoberto   todos   os   escritos   de   Platão   na  

língua  original;  Marcílio  Ficino  traduziu-­‐os  a  todos,  pela  primeira  vez,  para  o  latim  e  tornou-­‐  

os,   assim,   acessíveis   aos   eruditos   europeus.   Ficino   e   outros   humanistas   animados   pelo  

mesmo   espírito   tinham   um   protetor   importante,   Cosme   de   Médicis,   grande   banqueiro,  

mecenas   e   governante   não   oficial   da  República   instituída   de   Florença.   Desde   os   finais   dos  

anos   50   do   século   XV   encontravam-­‐se   esporadicamente   numa   propriedade   de   campo   de  

Cosme   para   uma   tertúlia,   que   desde   então   ficou   conhecida   como   a   Academia   Platônica   de  

Florença.  

Ficino   via   na   filosofia   de   Platão   uma   doutrina   muito   atual   que   permitia   unir   todas   as  

tendências   divergentes   da   época.   Ela   seria   capaz   de   conciliar   a   religião   e   a   filosofia,   a  

metafísica  e  a  ciência,  em  tudo  discordantes.  O  pensamento  de  Platão  não  só  já  continha,  por  

antecipação,   a   doutrina   cristã,   como   transmitia,   por   recorrência,   a   sabedoria   originária,  

aquela   que   talvez   exprime   mais   puramente   a   principal   revelação.   A   Theologia   Platônica  

(1474)  de  Ficino  quer  mostrar  essa  força  integradora  de  uma  “religião  filosófica”,  na  medida  

em  que  apresenta  o  espírito  e  a  natureza,  bem  como  todos  os  graus  do  ser  numa  única  cadeia  

contínua.  Ficino,  seguindo  a  tradição  neoplatónica  alterada  (platônica),  chama  a  esses  graus:  

“ser   divino”,   “esfera   das   inteligências”   ou   “ideias   puras”   (“mundo   dos   anjos”);   “alma”;  

“qualidades   físicas”   (cor,   calor,   etc.);   “corpos”   (matéria   informe,   quantidade   puramente  

material).  É  na  alma  do  mundo  que  reside  o  centro  do  ser.  Ela  tem  as  suas  correspondência  e  

representação  na  alma   (no  espírito)  do  homem,  que  assume  então  uma  posição  central  no  

universo.   A   faculdade   humana   de   conhecer   pode   ligar   os   extremos   -­‐   Deus   e   o   corpo   -­‐   e  

espelha  (e,  em  certo  sentido,  só  então  criar)  a  unidade  geral  do  ser.  

A  percepção  e  o  reconhecimento  não  são  para  Ficino,  um  ato  de  compreensão  e  assimilação  

passivo,   mas   uma   adequação   da   alma   ao   reconhecido,   que   só   é   possível   porque   a   alma  

participa  em  todos  os  graus  do  ser.  Goethe  traduziu  esta  ideia  platônica  da  correspondência  

entre   o   sujeito   que   reconhece   e   o   objeto   reconhecido   da   seguinte   forma:   “Se   o   olho   não  

tivesse  em  si  algo  de  sol,  nunca  poderia  ver  o  sol;  se  em  nós  não  houvesse  a  própria  força  de  

Deus,   como   poderia   o   divino   encantar-­‐nos?”   A   ideia   de   a   alma   tender   para   o   alto   na   sua  

aproximação  a  Deus  e  uma  visão  estética  do  mundo,  cuja  clara  harmonia  experimentamos  na  

concordância   com   a   nossa   alma,   permitiram  muitas   vezes   que   a   doutrina   de   Ficino   fosse  

entendida  como  o  equivalente  filosófico  da  arte  do  Renascimento.  

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A   posição   livre   e   central   do   homem   é,   tal   como   em   Ficino,   também   enfatizada   pelo   seu  

discípulo   Pico   della   Mirandola.   No   discurso   que   se   tornou   famoso,   “Da   Dignidade   do  

Homem”,  ele  põe  Deus-­‐Pai  a  dizer  a  Adão:  “A  natureza  dos  restantes  seres  está  contida  nas  

leis  por  mim  prescritas,  sendo,  por  isso,  limitada,  Tu  não  estás  limitado  por  nenhum  tipo  de  

obstáculo   insuperável.   Coloquei-­‐te  no   centro  do  mundo  para  que  daí  pudesses   confortável  

mente  olhar  à  tua  volta  e  avistar  melhor  tudo  quanto  há  no  mundo,  Não  te  fiz  nem  celestial  

nem  terreno,  nem  mortal  nem  imortal,  para  que,  sendo  de  ti  próprio  o  absolutamente  livre  e  

soberano  artífice,  te  moldasses  e  esculpisses  na  forma  da  tua  preferência.”  

O   homem   enquanto   centro   do   mundo   evidentemente   não   significa   aqui   que   o   homem,  

enquanto   imagem   de   Deus,   é,   por   princípio   a  medida   de   todas   as   coisas.   O   centro   aqui   é  

muito   mais   um   lugar   indeterminado   por   oposição   ao   lugar   determinado   das   restantes  

criaturas.   O   centro   significa   ausência   de   uma   direção   definida   que,   enquanto   franqueza  

positiva,  constitui  o  potencial  da  liberdade.  

A   filosofia  moral  platônica  não   foi   incontroversa  no  Renascimento.  Assim  para  Chrístofero  

Landino,  por  exemplo,  o  homem  era  uma  unidade  formada  pelo  corpo  e  pela  alma,  bem  como  

um  ser  social.  À  víta  activa,  ou  “vida  ativa”,  é  dada  a  primazia  em  relação  à  vita  contemplativa,  

ou  “vida  espiritual”,  altamente  valorizada  pelos  platonistas:  “A  natureza,  excelente  mãe,  fez-­‐

nos   para   a   participação   ativa   na   vida   em   sociedade   e   para   a   conservação   da   comunidade  

humana.”   Pedro   Pomponazzi,   discípulo   aristotélico,   sublinhou   de   forma   bastante  

consequente  a   realidade   irresolúvel  da   ligação  entre  o   corpo  e  a   alma.  Ele   até   repudiava  a  

possibilidade  da  imortalidade  da  alma,  uma  objeção  que,  para  a  época,  era  deveras  ousada.  

 

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Razão  e  Experiência2  

O  Século  XVII  

 

Autoconsciência  filosófica  

 

A   observação   da   natureza,   o   olhar   a   partir   do   cosmos   fechado,   a   autoconsciência   e   a  

valoração   da   subjetividade   humana   tais   são   os   princípios   que   começam   a   gerar   uma  

concepção   do   mundo,   no   Renascimento,   e   que,   já   no   Barroco,   seriam   complementados   e  

desenvolvidos,  mas   recebendo  sobretudo  novos   fundamentos.  A  natureza  é,  neste  período,  

estudada  com  muito  sucesso,  através  de  métodos  de  medição  e  experimentação  que  têm  por  

base  critérios  matemáticos.  O  antigo  modelo  cosmológico,  em  que  a  Terra  é  o  centro  imóvel,  

é   definitivamente   abandonado,   e   a   nova   concepção   do   sistema   solar   torna-­‐se   aos   poucos  

óbvia  para  todos  aqueles  que  desfrutam  do  privilégio  da  educação.  

Do  ponto  de  vista  da  história  da  criação,  pensadores  sensatos,  eminentemente  lógicos,  já  não  

atribuem  ao  homem  um  lugar  privilegia  do  no  cosmos,  mas  vêem-­‐no  como  um  ser  dotado  de  

determinadas  afecções  e  propenso  a  viver  em  sociedade.  E  a  autoconsciência  trans  forma-­‐se  

num  conceito  filosófico,  num  lugar  do  pensamento  puro  por  oposição  ao  mundo  das  coisas,  e  

procura  em  si  mesma  princípios  do  conhecimento,  a  fim  de  dar  uma  unidade  sis  temática  à  

massa  daquilo  que  existe  para  ser  investigado.  

Esta  questão  dos  princípios  do  conhecimento,  justificáveis  pela  razão,  põe-­‐se  cada  vez  mais,  

com  o  desenvolvimento  da   ciência  natural.   Por  um   lado,   tanto   as   teses   filosóficas   como  as  

hipóteses  ou  explicações  físicas  devem  ser  examinadas  e  passíveis  de  ser  compreendidas  no  

seu  contexto  através  da  realidade  empírica.  A  descoberta  e  a  consequente  aplicação  de  um  

determinado  método  asseguram  a   transparência   construtiva  das   teses.   Falar  de   “sistemas”  

filosóficos   torna-­‐se   comum.   Estes   consistem   em   problemas,   formulados   e   solucionados  

metodicamente,   cujo   sentido   pode   ser   avaliado   pelos   seus   pres   supostos   e   interpretações  

bem  sucedidas  (do  mundo).  

Por  outro  lado,  a  “filosofia”  permanece,  ainda  como  o  conceito  geral  de  ciência;  aliás,  a  obra  

principal  de  Newton  sobre  mecânica  e  o  sistema  do  mundo,  publicada  em  1687,  por  exemplo,  

intitula-­‐se   Os   Princípios   Matemáticos   da   Filosofia   Natural   Mas,   na   verdade,   a   física   já  

adquiriu   aqui   a   sua   independência.   Por   isso   é   que   a   filosofia   se   concentra   sobretudo   em  

suposições  fundamentais,  que  são  pres  supostos  conscientes  ou  inconscientes  em  cada  uma  

das  ciências  específicas,  embora  elas  próprias  não  cheguem  a  ser  tema.  

O  que  “é”  verdadeiramente,  qual  é  a  “substância”  que  permanece  na  mudança  dos  fenômenos  

ocasionais   e   está   na   base   do   aparecimento?   Ou   não   se   pode   dizer   nada   sobre   algo   como  

2. Ibidem.

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substância   e   apenas   as   percepções   particulares   são   reais?  O   que   significam   as   respostas   a  

estas   perguntas   para   a   compreensão   da   “verdade”   e   para   afirmações   que   pretendem   ser  

universalmente   válidas?   Tais   problemas   constituem,   evidentemente,   um  primeiro   domínio  

da   filosofia.   São   os   problemas   da   metafísica,   que   nesta   altura   ganham   um   colorido  

especificamente   moderno   e   gnoseológico.   Podemos,   a   título   de   exemplo,   explicá-­‐lo   da  

seguinte   forma:   o  pensar   e   o   ser  do  pensado   são,   no  próprio  pensamento,   diferentes.   Este  

confronto   existe   na   filosofia   desde   a   Antiguidade.   Há   desde   então   também   regras   para  

determinadas  operações  racionais  (lógica)  e  teorias  sobre  a  relação  entre  o  pensamento  e  o  

ser,  bem  como  sobre  o  modo  como  se  chega  a  afirmações  verdadeiras  sobre  Deus  e  o  mundo.  

Na  Idade  Moderna  o  pensamento  volta-­‐se  para  si  mesmo  e  isola-­‐se  do  “mundo  exterior”,  para  

só  então,  num  caso  filosófico  extremo,  criá-­‐lo  a  partir  de  um  eu  abstrato.  Esse  caso  extremo,  

no  entanto,  ainda  não  surge  no  século  XVII.  

O   filósofo   John   Locke   redige   uma   obra   extensa   sobre   o   conhecimento   humano   sem  

correspondência  nenhuma  na  Antiguidade  e  Idade  Média.  O  pensamento  é  minuciosamente  

estudado  no  seu  “funcionamento”.  Em  David  Humo,  então,  a  consciência  e  o  saber  passarão  a  

estar   reduzidos   às   impressões.  As   suas   cópias   e   associações   e   todas   as   afirmações   sobre   a  

substância  e  a  realidade  separada  do  conhecimento  serão  abandonadas.  

A  frase  de  Descartes,  “Penso,  logo  existo”,  é,  pelo  contrário,  entendida  como  ponto  de  partida  

do   conhecimento   objetivo   da   realidade.   Mas   é   também   o   lema   da   nova   posição   do  

pensamento   e   do   ser   a   realidade   existe   para   nós   numa   rede   de   construções   pensadas.   A  

matemática   torna-­‐se   o   ideal   metódico   da   filosofia:   “Aqueles   que   buscam   o   caminho   certo  

para  a  verdade  não  podem  ocupar-­‐se  de  nenhum  objeto  a  partir  do  qual  não  possam  alcançar  

uma  certeza  equivalente  às  provas  aritméticas  e  geométricas”.  

A  natureza  é  um  desses  objetos,  se  for  observada  só  como  uma  matéria  determinada  apenas  

causalmente,  segundo  normas.  A  unidade  imediata  entre  o  homem  e  a  natureza  ou  o  cosmos,  

tal  como  tinha  sido  vivida  no  Renascimento,  é  portanto  abolida.  Os  filósofos  distinguem  entre  

aquilo  que  se  pode  afirmar  com  segurança,  de  acordo  com  as  condições  do  conhecimento,  e  

as  coisas  em  si,   fora  de  qualquer  relação  cognoscitiva.  No  Renascimento,  descobrir  belezas  

harmoniosas   nas   relações   entre   medidas   geométricas   e   as   suas   correspondências   na  

natureza   significava   descobrir   características   ainda   verdadeiras   e   necessárias   no   plano   de  

construção  do  mundo.  A  racionalidade  moderna,  ao  contrário,  desfaz,  em  muitos  aspectos,  o  

laço  místico  dos  significados  entre  as  coisas,  o  intelecto  humano  e  a  ordem  divina.  

Assim,  é  compreensível  que,  por  exemplo  Hegel,  que,  por  volta  de  1  820,  proferiu  palestras  

sobre   a   história   da   filosofia   em  que   considerava  que  o   reaparecimento   correspondente  da  

filosofia   datava   somente   do   século   XVII,   com   Descartes,   embora   visse   na   cultura   geral   do  

Renascimento   e   da   Reforma   o   inicio   de   uma   nova   era.   Se   com   isso   os   pensadores   do  

Renascimento   foram   também  subestimados,   é   preciso  não   esquecer  que,   no   século  XVIII   e  

até  Hegel,  as  correntes  importantes  da  tradição  filosófica  —  as  autoridades  antigas  excluídas  

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—   foram   iniciadas   por   Descartes,   Locke,   Leibniz   e   os   seus   contemporâneos,   remontando  

raramente  até  um  Ficini  ou  mesmo  um  Giordano  Bruno.  

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RACIONALISMO3  

 

Cepticismo  e  certeza  

 

Os   Essais   (“Ensaios”)   de  Michel   de  Montaigne,   publicados   em   1   580,   estabeleceram   como  

gênero   literário   a   forma  aberta,   experimental   (fr.   essai,   experiência)  da   representação   rica  

em  pensamentos  e  ideias.  Montaigne  estava  marcado,  entre  outros,  pelas  lutas  religiosas  do  

seu  tempo.  Face  às  consequências  violentas  das  posições  religiosas  inflexíveis,  ele  procurou  

um   ponto   de   vista   subjetivo   que   lhe   desse   paz   de   espírito   a   partir   da   ironia   pessoal,  

consciente   da   efemeridade,   e   da   moderação   em   comparação   com   os   alicerces   da   razão  

suposta   mente   objetivos.   A   representação   ensaística   adequava-­‐se   a   essa   posição.   “Somos  

todos  feitos  de  remendos,  e  isto  de  forma  tão  amorfa  e  desordenada  que  todos  os  remendos  

estão  sempre  a  fazer  o  seu  jogo.”  

Aqui   Montaigne   retomou   os   antigos   cépticos,   por   exemplo   Pírron,   fato   que,   no   tempo   da  

Contra-­‐Reforma,   teve   as   suas   consequências.   A   discrição   céptica   era   considerada,   não   por  

último,   uma   oportunidade   de   manter-­‐se,   com   humildade   espiritual,   disponível   para   a  

revelação.   Com   isso   o   cepticismo   de   origem   religiosa   opôs-­‐se   à   razão   construtiva,   à   ratio.  

Esta   razão   estava   perigosamente   ameaçada,   pois   os   cépticos   sabiam   questionar   os   seus  

fundamentos   de   forma   consequente.   Em   Descartes   é   possível   ver   como   ele   ambiciona  

superar  o  cepticismo  através  de  si  mesmo.  A  partir  da  certificação  pessoal  do  conhecimento  

deveriam   ser   encontradas   verdades   certas,   nas   quais   a   realidade   pudesse   ser   descrita  

“corretamente”.  

Já   nos   séculos   XVI   e   XVII   o   termo   “racionalismo”   foi,   de   vez   em  quando,   usado  para   tal.   O  

termo   contrário   é,   no   entanto,   em   geral,   não   “cepticismo”,   mas   “empirismo”,   que   designa  

uma   filosofia   construída   sobre   a   experiência   sensível   (grego   empeiria   =   experiência).   O  

empirismo   e   o   cepticismo   aparecem,   porém,   muitas   vezes   unidos   contra   o   racionalismo;  

quando,   por   exemplo,   só   admitem   “fenômenos”   -­‐   aquilo   que   nos   aparece   à   vista  —‘   sem  

deduzir   daí   um   ser   objetivo.   Enquanto,   aliás,   o   adjetivo   “empírico”   é   antigo,   só   se   fala   do  

empirismo  como  uma  determinada  corrente  filosófica  a  partir  do  século  XVIII.  

A  filosofia  do  Barroco  e  do  iluminismo  é  frequentemente  descrita  através  do  confronto  entre  

correntes   racionalistas   e   empiristas,   o   que,   no   entanto,   só   compreende   um   determinado  

aspecto  dessa  época.  “Racionalismo”  é  então  um  conceito  que  pode  referir-­‐  se  ao  período  da  

Idade   Moderna   e   estar   simultaneamente   limitado   a   ele.   Mas   é   preciso   notar   que   existe  

também   um   conceito   de   racionalismo   muito   mais   abrangente   que,   por   exemplo,   já   diz  

respeito  a  Platão.  Assim,  nos  próximos  capítulos  serão  descritas  algumas  características  do  

3Ibidem.

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racionalismo  que,   em  parte,   também  dizem   respeito   a   filósofos   da  Antiguidade   e   da   Idade  

Média.  

Em  1  607,  Francis  Bacon  apresentou  a  seguinte  imagem:  “Os  filósofos  empíricos  são  como  as  

formigas:  só  recolhem  e  usam  o  que  foi  armazenado.  Os  racionalistas  são  como  as  aranhas,  

tecem  tudo  a  partir  do  seu  interior.  Mostrem-­‐me  um  filósofo  que,  como  uma  abelha,  possua  

uma  aptidão  média,  que  recolhe  a  uma  grande  distância,  mas  digere  e  transforma,  com  a  sua  

própria  força,  aquilo  que  recolheu.”  

Na  verdade,  todos  os  filósofos  dignos  do  nome  (entre  os  quais,  todos  os  que  aparecem  neste  

livro)   são,   segundo  Bacon,   “abelhas”,  O  confronto  das   formigas  e  das  aranhas   (Bacon   tinha  

certamente  em  mente  alguns  idiotas  maníacos,  seus  contemporâneos)  não  corres  ponde  bem  

aquilo   que,   hoje,   os   termos   histórico-­‐filosóficos   “racionalismo”   e   “empirismo”   significam.  

Descartes   e   Leibniz,   Locke   e   Hume   não   “tecem”   nem   “recolhem”   (pelo   menos   não   “em  

exclusivo”),  mas  encontram  teorias  “sobre”  a  tecedura  e  a  recolha  (sobre  o  reconhecimento),  

que  também  têm  em  conta  posições  contrárias  e  que  nem  sempre  e  em  tudo  se  excluem.  

Toda  a  verdade  

Como  os  empiristas  não  argurmentam  de  mo  do  nenhum  de  forma  irracional,  o  uso  da  razão  

não  é  com  certeza  uma  característica  distintiva  do  racionalismo.  Ele  é,  antes,  a  maneira  como  

a  razão  é  vista  e  consolidada  em  todo  o  mundo.  

A   filosofia   de   Espinosa   pode,   por   exemplo,   ser   designada   por   racionalismo   “absoluto”,  

porque   parte   da   compreensibilidade   geral,   da   estrutura   de   tipo   racional   do   conjunto   do  

mundo.   Esta   convicção   determina   não   apenas   o   conteúdo,   como   até   a   forma   sob   a   qual   a  

doutrina  de  Espinosa  é  apresentada.  Ele  apresenta-­‐a   sob  a   forma  de   “more  geométrico’  de  

acordo   com   a   geometria.   Tal   como   Euclídes   na   sua   obra   Ele   mentos,   o   principal   livro   de  

geometria  da  Antiguidade,  Espinosa  dá  no  início  definições  e  estabelece  axiomas  (princípios  

que  já  não  são  deriváveis).  A  partir  deles  é  extraída  e  provada  então  toda  a  série  de  teoremas  

construídos  em  cadeia.  

Descartes   também  dá   definições   dos   conceitos   básicos   da   sua  metafísica,   que   possibilitam  

essa  construção.  Sendo  algo  específico  da  razão  pura,  a   lógica  da  demonstração  euclidiana,  

parece,   portanto,   adequar-­‐se   não   apenas   às   estruturas   ideais   (geradas   pelo   próprio  

intelecto)   da   geometria,   mas   também   à   realidade.   Dito   de   um  modo   exagerado:   o  mundo  

deixa-­‐se  deduzir  (conclusão)  de  princípios  primeiros.  Claro  que  isto  nunca  chega  a  ponto  de  

pensarmos  que,  partindo  da  definição  de  Deus,  chegaremos  às  coisas  factuais  particulares,  e  

que   assim   poderemos   realmente   explicar   tudo.   Mas   poderíamos   reter   esta   explicação  

completa  como  o  ideal  dos  racionalistas  do  Barroco.  

De   acordo   com   a   concepção   que   se   apresenta   sob   a   forma   geométrica,   tem   de   haver  

conceitos  básicos  originais,  mais  simples,  que  não  resultaram  simplesmente  da  experiência  

subjetiva,  mas  que  dizem  respeito  ao  verdadeiro  ser  e,  por  assim  dizer,  o  reproduzem.  É  por  

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isso  que  o  conhecimento  pode  chegar  a  afirmações,  que  “precedem”  a  experiência,  mas  que,  

apesar  disso,  têm  de  provar  ser  verdadeiras  na  experiência.  Fala-­‐se  aqui  do  conhecimento  a  

priori   (lat:   “de   antes”,   “que   antecede”,   “primeiramente”).   Para   os   empiristas   tal   não   existe  

nesse  sentido.  

No  racionalismo,  ao  conhecimento  apriorístico  está  quase  sempre  associada  a  convicção  de  

que   há   “ideias   inatas”.   Não   se   trata   de   “imagens”   acabadas,   que   estariam   em   nós   desde   o  

nascimento.   Está,   pelo   contrário,   subentendida   a   disposição,   a   capacidade   potencial,   de  

formar  determinadas  ideias,  que  não  podem  ser  explicadas  somente  a  partir  da  experiência.  

E  com  isto  é  dada  mais  uma  nota:  os  Racionalistas  não  concebem  as  “ideias”  (isto  é,  conceitos  

e  representações  no  uso  corrente  de  então)  como  imagens,  que  nascem  diretamente  ou,  em  

última   análise,   das   impressões   sensíveis.   Ideias   são   conceitos   do   espírito,  

independentemente  do  que  isso  possa  querer  dizer  em  cada  caso.  

De  acordo  com  tudo  isto,  o  nosso  saber  não  pode,  portanto,  ser  descrito  como  um  somatório  

de  experiências.  Os  racionalistas  do  Barroco  partem  de  um  conjunto  organizado  a  partir  do  

qual,  e  só  então,  é  possível  entender  o  particular.  Consequentemente,  tentam  desenvolver  os  

seus  sistemas  como  totalidades,  como  sistemas  abrangentes  e  ordenados.  

René  Descartes  

Uma  árvore  do  conhecimento  

O  primeiro   livro  de  Descartes  é  uma  pequena  autobiografia   intelectual,  a  descrição  breve  e  

estilizada  da  evolução  dos  pontos  de  vista,  dos  objetivos  espirituais  e  das  pesquisas  de  um  

homem   de   40   anos.   É   ao   mesmo   tempo   um   “tratado   sobre   o   método   do   uso   correto   da  

razão”.   Este   tratado,   defendido  modestamente,   desenvolve   inesperadamente   uma   intenção  

objetiva   e   obrigatória,   mas   totalmente   no   sentido   do   estilo   de   um   relato   pessoal,  

apresentando  Descartes  não  como  filósofo  es  colar,  mas  como  gentleman,  que  procura  uma  

orientação   de   vida.   O   Discurso   e   as   Meditações,   obras   que  marcaram   a   sua   época,   es   tão  

escritas  num  tom  conciliatório,  cheio  de  concessões  soberanas  a  autoridades  teológicas,  mas  

também  ao  leitor,  que  é  amavelmente  conduzido  através  da  argumentação  viva.  

Em   nenhum   ponto   Descartes   perde   o   contacto   com   a   totalidade   dos   objetivos   do  

conhecimento   humano.   Matemático   talentoso   e   inovador,   ele   não   vê   as   suas   descobertas  

nesta  área  e  nas  ciências  naturais  separadamente,  mas  em  conexão  com  uma  fundamentação  

filosófica   da   “possibilidade”   das   ciências   naturais.   Esta   última   já   significa   nesta   altura   a  

aplicação  da  matemática   ao  mundo.  Mas   apesar  da   especialização  das   ciências,   justamente  

para   Descartes,   elas   não   estão   separadas   da   filosofia.   “Todas   as   diversas   ciências   não   são  

outra  coisa  senão  a  sabedoria  humana,  a  qual  permanece  sempre  una  e  idêntica,  por  muito  

que  se  aplique  a  diferentes  objetos.”  No  entanto,   já  não  é  evidente  que  a   filosofia  albergue  

todo   o   saber   do  mundo;   ela   própria   tem   de   se   tornar   científica.   Descartes   exprime   a   sua  

noção  de  fundamentação  filosófico-­‐científica  frutífera  através  da  imagem  de  uma  árvore  (tal  

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como  Francis  Bacon  já  o  tinha  feito  de  forma  semelhante):  a  “  filosofia-­‐  prima”  ou  metafísica  

é  a  raiz,  a  física  o  tronco,  a  medicina  e  a  mecânica  os  galhos  e,  no  cume  da  árvore,  a  ética  e  as  

aplicações  práticas  dessas  ciências  são  os  frutos.  

Seria  certamente  exagerado  aplicar  esta   imagem  à  obra  de  Descartes  como  raiz  da  filosofia  

moderna;   mas   com   ele   começa,   sem   dúvida,   uma   nova   corrente   de   pensamento.   Aquela  

árvore   do   saber   cresce   a   partir   de   uma   certificação  metódica   do  dizível   sem  pressupostos  

incompreendidos.   Trata-­‐se,   a   propósito,   de   uma   certificação   pessoal:   a   doutrina   do  

conhecimento   e   a   teoria   da   experiência   partem   do   eu,   do   pensamento   e   da   sua   própria  

forma;  sujeito  e  objeto  separam-­‐  se,  e  o  sujeito  é  considerado  o  lugar  de  onde  nasce  a  certeza.  

Esta  ideia  prepara  o  caminho  para  uma  grande  parte  da  filosofia  posterior  que,  cerca  de  um  

século   e   meio   mais   tarde,   no   início   de   uma   nova   época,   tornará,   de   modo   ainda   mais  

consequente,  a  auto-­‐referência  no  fundamento  absoluto.  

 

Dúvida  metódica  

 

Como   para   muitos   filósofos   do   Renascimento,   para   Descartes   o   conhecimento   erudito  

transmitido   pela   tradição   escrita   já   não   é   suficiente   para   estabelecer   um   saber   seguro.   O  

constante   enriquecimento   da   tradição   através   de   novas   experiências   e   até   mesmo   de  

experimentações  modernas  também  não  abre,  para  ele,  o  caminho  de  saída  do  labirinto  das  

discussões   e   incertezas   escolásticas.   Ele   quer   um   novo   começo,   quer   “construir   sobre   um  

terreno  que  pertença  somente  a  mim”.  

Isso  exige  mais  do  que  a  abolição  de  fontes  errôneas,  que  só  acarretaria  um  aperfeiçoamento  

“relativo”  do  conhecimento.  Implica  também  mais  do  que  a  descoberta,  em  cada  momento  e  

caso  (e  com  isso  relativa),  dos  primeiros  princípios  de  cada  uma  das  ciências.  Trata-­‐se  de  um  

início   “incondicional”,   um   ponto   arquimediano,   de   certa   forma   o   sonho   dos   filósofos:  

“Arquimedes  exigiu  somente  um  ponto  fixo  e  imóvel  para  mover  toda  a  terra  do  seu  lugar.  ,  

assim,  também  eu  posso  permitir-­‐me  ter  grandes  expectativas,  se  encontrar  algo,  por  menor  

que   seja,   mas   de   uma   certeza   inabalável.”   Para   conquistar   este   ponto   de   partida   certo,  

rejeita-­‐se   tudo  o  que  é   incerto.  Sistematicamente,  o  novo  principiante   filosófico   ‘faz  uso  da  

liberdade  que  lhe  é  própria  e  supõe  que  tudo  aquilo  a  respeito  de  cuja  existência  permaneça  

a  mínima  dúvida  não  existe”.  A  firmeza  de  ânimo  na  prossecução  do  objetivo  torna  claro  que  

não  se  trata  de  uma  dúvida  existencial,  desesperada.  Também  não  é  um  cepticismo  radical,  

tal   como   existira   em   jogos   de   ideias   sofistas   na   Antiguidade,   seja   por   convicção,   seja   por  

inclinação.   O   cepticismo   radical   afirma   com   ousadia   (e   possivelmente   também   com  

desespero):  não  existe  nada,  e  se  algo  existisse,  não  se  poderia  falar  sobre  o  assunto.  

A   posição   de   Descartes   é   bem   diferente:   o   seu   cepticismo   pressupõe   que,   em   princípio,  

existem  verdade  e  afirmações  verdadeiras.  A  dúvida  é   justamente  o  experimento  metódico  

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para   a   averiguação   do   fundamento   de   tais   afirmações.   Neste   caso,   em   primeiro   lugar,   são  

invalidados   todos   os   juízos   sobre   fatos   de   coisas   (e/ou   supostos   fatos)   apreendidos   pelos  

sentidos.   Existem   ilusões   e,   se   nos   enganamos   uma   vez,   somos   depois,   por   defeito,  

desconfiados.  É  igualmente  frequente  sonharmos  em  todas  as  cores  da  realidade,  embora  às  

imagens   oníricas   não   corresponda   nenhum   ser   independente.   Generalizando,   no  

experimento  da  dúvida  devemos  partir  do  princípio  de  que  mesmo  se  estamos  convencidos  

de  estar  despertos  e  sóbrios,  às  nossas  ideias  não  corresponde  nada  de  verdadeiro.  

Sobre  a  existência  do  mundo  exterior,  portanto  não  há  nenhum  juízo  certo;  deve-­‐se  pô-­‐la  em  

dúvida.   Uma   observação  mais  minuciosa  mostra   que   até   o   próprio   corpo   pertence   a   esse  

mundo  exterior  em  princípio  não  —  existente.  

Há   contudo   fatos   que   só   são   analisados   no   espírito   e   são   sempre,   evidentemente,  

reconhecidos  como  tais,  tal  como  são  na  realidade.  A  eles  pertencem  as  relações  matemáticas  

e   os   processos   de   justificação.   O   fato   de   uma   diagonal   dividir   um   retângulo   em   dois  

triângulos   iguais   está   na   coisa   em   si.   Neste   caso   simples   é   imediatamente   compreensível,  

como   também   passível   de   ser   provado,   toda   a   dúvida   parece   absurda.   Mas,   segundo  

Descartes,   em   tais   afirmações   lógico-­‐geométricas   há   uma   realidade   “ideal”   que   é  

compreendida.  E  um  “Deus-­‐Enganador”  todo-­‐poderoso  imaginado  ou  um  gênio  mau  poderia  

tornar   até  mesmo   esta   forma   de   referência   à   realidade   numa  mera   ilusão,   ou   pelo  menos  

enganar   a   nossa   memória   acerca   do   que   já   foi   provado.   Toda   a   nossa   memória   e,   por  

conseguinte,   toda   a   nossa   existência   até   à   presente   data,   talvez   seja   uma   ficção   que   nos   é  

sugerida.  

 

“Cogito,  ergo  sum”  

Portanto,  duvidamos  definitivamente  da  objetividade  dos  nossos  juízos  e  consideramos  que  

toda  a  realidade,  antes  pensada  desta  ou  daquela  forma,  não  existe.  “Mas”,  e  aqui  é  que  bate  o  

ponto,  “não  podemos  supor  que  nós,  que  pensamos,  nada  somos.  Já  que  a  suposição  de  que  

aquilo  que  pensa,  no  momento  em  que  pensa,  não  existe  é   em  si  mesma  uma  contradição.  

Consequentemente,  a  proposição  “penso,  logo  existo”  (ego  cogito,  ergo  sum)  é  o  primeiro  e  o  

mais  certo  de  todos  os  conhecimentos  que  se  apresenta  àquele  que  filosofa  de  acordo  com  as  

regras.”  

Vê-­‐se  que  a  proposição  “penso,  logo  existo”,  uma  das  mais  famosas  da  filosofia,  não  pode  ser  

interpretada  fora  do  contexto.  Isolada,  é  inevitável  que  a  nossa  leitura  da  frase  seja  a  de  uma  

dedução  lógica,  na  qual  o  “logo”  tem  uma  função  decisiva:  eu  “penso”,   logo  eu  “existo”.  Sem  

outras   frases,   cuja   justeza,   por   sua   vez,   teria   de   ser   demonstrada,   essa   dedução   seria,   em  

termos  de   lógica,   absurda  e  não  serviria  para  o  ponto  de  partida   filosófico.  E  mesmo  se  às  

vezes   se   diz   que   para   Descartes   o   ser   deriva   do   pensamento,   isso   é   realmente  

despropositado.  

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O  que  se  lê  de  fato  é:  “eu”  penso,  logo  “eu  existo”.  A  isso  corresponde  a  versão  latina  no  ponto  

citado:  cogito  significa  “eu  penso”.  A  introdução  do  pronome  pessoal  ego  (“eu”)  significa  uma  

ênfase  especial.  A  ênfase  é  natural,  porque  a  frase  responde  à  pergunta:  o  que  “é”  realmente,  

como  eu  penso  ou  percebo?  “Não  se  duvidava  da  existência  de  algo,  nem  de  que  algo,  mesmo  

que   fosse   um   gênio   mau,   estava   na   origem   das   nossas   ideias.   Assim   Descartes   nas  

Meditações,  onde  todo  o  pensamento  é  minuciosamente  analisado,  diz  em  vez  de  cogito,  ergo  

sum:  “A  proposição  Eu  penso;  eu  existo,  todas  as  vezes  que  a  pronuncio  ou  a  concebo  no  meu  

espírito,  é  necessariamente  verdadeira.”  Esta  primeira  proposição  certa,  vemos  então,  não  é  

uma   fórmula   original   carregada   de   pressupostos   profundos,   mas   designa   uma   evidência  

simples,  sempre  compreensível.  Para  Descartes,  evidente  é  o  que  se  apresenta  ao  intelecto  de  

modo  “claro  e  nítido”,  indubitável,  compreensível  e  tal  como  é.  

‘Duvido,  logo  existo”.  Com  esta  redação  Descartes  resume  noutra  passagem  o  que  conquistou  

no  experimento  das  ideias.  Através  da  dúvida  enquanto  ato  auto-­‐evidente  do  eu,  todo  o  ser  

independente   do   pensamento   é   separado   deste   enquanto   tal.   Resta   uma   esfera   da  

consciência   pura.   Um   conceito  muito   importante   é   assim   também   introduzido   na   filosofia.  

Conscientia,   antes   entendida  mais  no   sentido  de   “consciência  moral”,   significa  nesta   época  

“consciência   psicológica”.   É   de   referir   ainda   que   para   Descartes   pensar   quer   dizer   ter  

compreendido  mais  do  que  uma  série  de  estados  de   consciência.   “Sou  uma  coisa  pensante  

(rescogitans)”,  diz  ele,  cogitans  revelar-­‐se-­‐ia  uma  indivisível,  fundamental.  

 

A  veracidade  de  Deus  

 

Com   a   evidência   do   “eu   penso”   terá   Descartes   alcançado   o   tão   ambicionado   ponto  

arquimediano?  Existe  um  começo,  mas  ainda  não  é  possível  “mover  o  mundo  do  seu  lugar”.  

Pois   o   eu   está   preso   em   si   mesmo;   fora   da   rescogitans,   até   então,   não   se   conhecia   coisa  

alguma.   Apesar   de   Descartes   conceber,   juntamente   com   a   primeira   certeza,   a   existência  

também  de  um  critério  de  verdade:  tem  de  ser  verdadeiro  tudo  o  que  é  percepcionado  com  a  

mesma  clareza  e  a  mesma  nitidez  com  que  a  proposição  “penso;  existo”  é  reconhecida.  Disto  

fazem  parte  processos  de   justificação  matemáticos   ou  proposições   como   “do  nada   surge  o  

nada”.   Mas   o   critério   permanece   inicialmente,   ainda   em   grande   medida,   limitado,   não  

podendo  eliminar  a  dúvida  e  a  possibilidade  do  gênio  mau  enganador.  Para  tal  é  preciso  para  

além   do   cogito,   uma   ideia   que   represente   com   indubitável   verdade   um   objeto   que   exista  

“fora”  do  pensamento.  

É   o   caso   da   ideia   de  Deus   que,   segundo  Descartes,   preenche   esta   condição.   Esta   ideia   não  

pode  ser  fruto  da  fantasia.  A  omnipotência  e  a  infinidade  não  são  algo  que  encontramos  em  

nós   ou   que   possamos   criar   a   partir   de   outras   ideias.   E  —   aqui  Descartes   segue   a   filosofia  

mais  antiga  —  a  causa  de  uma   ideia  deve  sempre   ter  pelo  menos   tanta  realidade  quanto  a  

que  a  ideia,  como  efeito,  representa.  Portanto,  a  base  dessa  ideia  só  pode  ser  Deus.  Por  outras  

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palavras:  a  nossa  ideia  de  Deus  confere-­‐lhe  todas  as  qualidades  positivas  imagináveis,  isto  é,  

aquelas  que  não   são   limitadoras.  A   existência  deve  ver   vista   como  uma  dessas  qualidades.  

Portanto,  Deus  existe.  

Naturalmente,   estas   ‘provas   da   existência   de  Deus”   soam  hoje   estranhas.  Mas,   em   suma,   a  

argumentação  continua  a  referir-­‐se  ao  eu  pensante:  ‘Toda  a  força  da  prova  está  no  fato  de  eu  

considerar  que  seria  impossível  a  minha  natureza  ser  tal  qual  é,  a  saber,  ter  em  mim  a  ideia  

de  Deus,  se  Deus  realmente  não  existisse.”  Deus  possui  de  fato  toda  a  perfeição  imaginável  e  

nenhuma  imperfeição.  “Deduz-­‐se  daí  com  clareza  suficiente  que  esse  Deus  não  pode  enganar,  

porque  é  óbvio  que  a  mentira  e  a  ilusão  são  fruto  de  uma  imperfeição”.  O  critério  de  verdade  

mencionado  está  desse  modo  salvo:  Deus  é  o  garante  de  tudo  o  que  é  reconhecido  de  forma  

clara  e  distinta,  é  verdadeiramente  assim.  

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A  Filosofia  Moderna  e  Descartes    

Eduardo  O.  C.  Chaves  

 

I.  A  Filosofia  Pré-­‐Moderna:  Tendências  Básicas    

Para   entender   a   filosofia   moderna   é   necessário   entender   a   filosofia   que   a   precedeu   -­‐-­‐   a  

medieval  e,  até  certo  ponto,  a  filosofia  antiga.    

Embora  haja  consideráveis  diferenças  entre  a  filosofia  antiga  e  a  medieval,  e  mesmo  entre  as  

diversas   correntes   que   constituíram  uma   e   outra,   é   possível   detectar   uma   certa   tendência  

básica  naquilo  que  poderíamos  chamar  de  "filosofia  pré-­‐moderna",  e  que  engloba  elementos  

básicos  de  uma  e  de  outra.    

Para   a   filosofia   pré-­‐moderna,   em   primeiro   lugar,   a   existência   daquilo   que   na   filosofia  

moderna  se  convencionou  chamar  de  "mundo  exterior"  (a  realidade  externa  à  nossa  mente)  

não   é   um  problema.   Para   ela,   é   pacífico   que   existe   um  mundo   fora   de   nossa  mente,   que   é  

objeto   de   nosso   conhecimento.   Isso   não   precisava   ser   demonstrado,   porque   não   havia   se  

tornado  um  problema.    

Para  a  filosofia  pré-­‐moderna,  em  segundo  lugar,  a  realidade  contém  objetos  e  fatos.  Objetos  

são   coisas  e   fatos   são  estados  de   coisas.  Tanto  objetos   como  estados  de   coisas  existem,  na  

realidade:  eles  são  descobertos,  não  constituídos.    

Além   disso,   e   em   terceiro   lugar,   para   a   filosofia   pré-­‐moderna   o   mundo   exterior   é  

objetivamente  ordenado.  A  realidade  não  é  composta  meramente  de  objetos  e  fatos  isolados  

uns  dos  outros.  Objetos  e  fatos  se  vinculam  uns  aos  outros,  através  de  várias  relações,  dentre  

as  quais  a  principal  é  a  de  causalidade.    

A   relação   de   causalidade,   para   a   filosofia   pré-­‐moderna,   existe   objetivamente   na   realidade:  

um  evento   realmente  causa  o  outro,   e   isto  é  um   fato  que  pode  ser   constatado.  A   realidade  

não   é   composta   apenas   por   "fatos   atômicos"   -­‐-­‐   evento   a   e   evento   b,   por   exemplo   -­‐-­‐   mas  

também   por   fatos   complexos   -­‐-­‐   evento   a   causando   evento   b,   por   exemplo.   A   relação   de  

causalidade,  portanto,  não  é  redutível  à  relação  de  contiguidade  espaço-­‐temporal,  como  diria  

Hume.  Ela  comporta  também  o  nexo  causal.    

Isto  significa  que  o  mundo  possui  ordem,  e  que  essa  ordem  existe  independentemente  do  ser  

humano.  Não  é  o  ser  humano  que  impõe  ordem  à  realidade:  esta  já  é  ordenada,  cumprindo  

ao   ser   humano   apenas   descobrir   a   ordem   que   já   existe.   É   esse   fato   que   possibilita   o  

conhecimento.    

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A   realidade,   para   a   filosofia   pré-­‐moderna,   portanto,   contém   fatos,   atômicos   e   complexos.  

Esses  fatos,  como  visto,  são  estados  de  coisas  que  existem,  na  realidade:  são  descobertos,  não  

constituídos.   Conquanto   possam   existir   estados   de   coisas   imaginários,   fictícios,   eles   não  

devem  ser  descritos  como  "fatos  imaginários".  Fatos  são  coisas  reais.    

Para  a  filosofia  pré-­‐moderna,  em  quarto  lugar,  a  verdade  é  uma  relação  de  correspondência  

ou  adequação  entre  os  juízos  de  um  sujeito  e  os  fatos  que  são  objeto  desses  juízos.  Se  o  juízo  

emitido   por   um   sujeito   corresponde   aos   fatos,   é   verdadeiro;   se   não   existe   essa  

correspondência   entre   o   juízo   emitido   e   a   realidade,   ele   é   falso.   A   realidade   não   é   nem  

verdadeira  nem  falsa:  ela  simplesmente  é.  São  nossos  juízos  acerca  da  realidade  que  podem  

ser  verdadeiros  ou  falsos.    

Para  a  filosofia  pré-­‐moderna,  em  quinto  lugar,  temos  evidência  da  verdade  ou  não  de  nossos  

juízos   através   principalmente   dos   sentidos,   pela   percepção   sensorial.   E   aquilo   que   nos   é  

dado   na   percepção   é   nada   mais   nada   menos   do   que   a   realidade,   propriamente   dita,   os  

objetos  e  os   fatos  que  compõem  o  mundo  externo  a  nós.  Embora  seja  notório  que  às  vezes  

nos  enganemos  em  nossa  percepção,  a  essa  constatação  não  se  dá  importância  muito  grande  

na  filosofia  pré-­‐moderna.    

Para   a   filosofia   pré-­‐moderna,   em   sexto   lugar,   é   possível,   partindo   dos   sentidos,   descobrir  

fatos  sobre  a  realidade  que  transcende  os  sentidos:  a  chamada  realidade  supra-­‐sensível  (ou  o  

que   comumente   se   chama   de   "sobrenatural").   Em   geral,   acreditava-­‐se   que   era   possível  

descobrir   fatos   acerca   de  Deus   (por   exemplo)   pela   chamada   "via   natural",   ou   seja,   apenas  

refletindo  sobre  os  fatos  descobertos  pelos  sentidos.    

Para   a   filosofia   pré-­‐moderna,   em   sétimo   lugar,   o   conhecimento   é   o   conjunto   de   juízos  

verdadeiros  e  evidenciados  nos  fatos  que  compõem  a  realidade  (sensível  ou  supra-­‐sensível).  

Para  que  haja  conhecimento  é  necessário  que  haja  um  sujeito,  que  conhece,  e  um  objeto,  que  

é  conhecido.    

A   filosofia   pré-­‐moderna   não   duvida   de   que   tenhamos   conhecimento   da   realidade:   ela   é  

plenamente  confiante  no  conhecimento  humano.  Na  verdade  a  confiança  é  tanta  que  ela  pode  

falar,   sem  embaraço,   em  milagres.  não   tem  maiores  problemas   com  o   conceito  de  milagre.  

Um  milagre   é  um  evento  que,   se  ocorrer,   viola  ou   suspende  a  ordem  objetiva   existente  na  

realidade.  Para   a   filosofia  pré-­‐moderna,  milagres,   se  de   fato   existem,   acontecem  a  nível  da  

realidade,   e   não   apenas   de   nosso   conhecimento   da   realidade.   Sua   definição   envolve  

referência  ao  plano  ontológico  e  metafísico,  não  apenas  epistemológico.  Milagre  não  é  apenas  

um  nome  para  nossa  ignorância  da  ordem  (como  diria  Spinoza  mais  tarde):  o  milagre  é  uma  

violação  ou  suspensão  da  ordem  objetiva  existente  na  realidade.  Por  isso  é  que  se  acreditava  

que  eles  eram  de   sua   importância:   se  de   fato  existem,  eles  provam  alguma  coisa.  Falar  em  

milagres,   porém,   não   quer   dizer   acreditar   neles.   Se   realmente   acontecem   ou   não   é   outra  

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questão.  Nem   todos   os   filósofos   pré-­‐modernos   acreditavam  que  milagres   aconteciam.  Mas  

não  tinham  dificuldade  com  o  conceito.    

Para  a  filosofia  pré-­‐moderna,  por  fim,  e  em  oitavo  lugar,  a  pedagogia  é  o  processo  através  do  

qual  a  criança  é  levada  a  conhecer  e  a  descobrir  fatos,  é  o  processo  de  condução  do  sujeito  ao  

objeto.    

II.  A  Transição  para  a  Filosofia  Moderna:  o  Ceticismo    

Embora  tenha  existido  céticos  na  Antiguidade  e  na  Idade  Média,  que  duvidaram  de  que  o  ser  

humano  tenha  conhecimento  da  verdade,  ou  mesmo  que  a  verdade  exista,  o  ceticismo  nunca  

foi  considerado,  na  filosofia  pré-­‐moderna,  como  uma  conditio  sine  qua  non  da  filosofia.    

Contudo,  alguns  eventos   importantes  ocorreram  por  volta  do  século  XVI,  que  começaram  a  

criar  um  novo  clima:  o  clima  do  ceticismo.    

Um  dos  eventos  importantes  foi  o  surgimento  da  ciência  moderna,  especialmente  no  tocante  

à  chamada  hipótese  heliocêntrica.    

A  hipótese  geocêntrica  postula  que  a  terra  é  o  centro  do  universo  e  o  sol  e  as  demais  estrelas,  

bem  como  os  outros  planetas,  giram  ao  redor  da  terra,  que  fica  estacionária.  Esta  hipótese,  é  

bom   que   se   diga,   corresponde   plenamente   ao   que   nos   indicam   nossos   sentidos.   Nossos  

sentidos  nos  dão  a  impressão  de  que  a  terra  fica  parada,  não  se  movimenta,  e  que  os  outros  

corpos  celestes  se  movem  ao  redor  dela.  Se  nos  basearmos  apenas  nos  sentidos,  a  hipótese  

geocêntrica  parece  bastante  bem  confirmada  pela  evidência.  Mais  bem  confirmada  do  que  a  

hipótese  heliocêntrica.    

No  entanto,  aqui  vêm  os  cientistas,  e  propõem  uma  hipótese  totalmente  contrária  à  evidência  

dos  sentidos:  a  hipótese  de  que  a  terra  não  só  gira  em  torno  de  um  eixo  como  gira  ao  redor  

do   sol,   que   é   o   centro   do   sistema   planetário   de   que   a   terra   faz   parte.   Para   acreditar   na  

hipótese  heliocêntrica,  é  forçoso  duvidar  do  que  nos  dizem  nossos  sentidos,  é  preciso  admitir  

que  nossos  sentidos  nos  enganam  em  relação  a  questões  bem  fundamentais.    

Que  nossos  órgãos  dos  sentidos  às  vezes  nos  enganam  é  fato  sobejamente  conhecido,  desde  a  

antiguidade  mais   remota.  Mas  o  que   começa   a   surgir   agora   é   a   inquietante  pergunta:   será  

que  nossos  sentidos  não  nos  enganam  sempre?  Se  é  verdade  que  a  terra  gira,  em  torno  de  um  

eixo  e  ao  redor  do  sol,  contrário  ao  que  dizem  os  sentidos,  será  que  esses  sentidos  não  nos  

enganam  em  outros  aspectos  também?  Será  que  realmente  conhecemos  a  realidade?    

Pior  do  que  isso:  às  vezes  sonhamos,  ou  temos  alucinações,  e  imaginamos  ver  coisas  que  não  

estão   lá.   O   que   é   que   garante   que   não   estamos   sempre   sonhando   ou   alucinando?  O   cético  

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começa   a   duvidar,   não   só   de   que   temos   conhecimento   adequado   da   realidade,   mas   da  

própria   existência   de   uma   realidade   por   detrás   de   suas   ideias.   Pode   ser   que   estejamos  

sempre  sonhando  ou  alucinando!    

As  tendências  básicas  da  filosofia  pré-­‐moderna  começam  a  ser  colocadas  em  questão.    

Um  outro   evento  que   ajudou  a  questionar   as  bases  da   filosofia  pré-­‐moderna   foi   a   reforma  

protestante  do  século  XVI.    

Em   um   aspecto   importante,   a   reforma   protestante   colocou   em   questão   o   problema   do  

critério  de  verdade  religiosa  (Popkin,  cf  Kenny).    

Em  outro  aspecto  importante,  e  relacionado,  a  filosofia  pré-­‐moderna,  como  vimos,  acreditava  

que,   partindo   dos   sentidos,   era   possível   chegar   ao   conhecimento   de   uma   realidade   que  

transcende  os  sentidos:  a  chamada  realidade  supra-­‐sensível  (ou  o  que  comumente  se  chama  

de  "sobrenatural").  Em  geral,  acreditava-­‐se  que  era  possível  ter  conhecimento  de  Deus  (por  

exemplo)  pela  chamada  "via  natural",  ou  seja,  através  da  razão  humana  refletindo  sobre  os  

dados  fornecidos  pelos  sentidos.    

É  verdade  que  a  filosofia  pré-­‐moderna,  em  geral,  admitia  que  não  podemos  ter  conhecimento  

pleno  de  Deus  pela  via  natural.  O  conhecimento  assim  obtido  era  relativamente  elementar,  

dizendo  respeito  apenas  ao  fato  de  que  Deus  existe  e  a  algumas  características  que  ele  tem,  

ou   não   tem.   Para   se   chegar   ao   conhecimento   pleno   de   Deus,   a   filosofia   pré-­‐moderna  

geralmente   admitia   a   necessidade   de   uma   revelação   divina,   que   suplementaria   o  

conhecimento   obtido   através   da   razão   assistida   pelos   sentidos.   Esse   conhecimento  

complementar  não  seria  alcançado  pela  razão,  mas  pela  fé  -­‐-­‐  embora  a  filosofia  pré-­‐moderna  

geralmente   tenha  mantido  que  a   fé,   embora   supra-­‐racional,   não  é   contra-­‐racional,   ou  anti-­‐

racional,  ou  irracional.    

A   reforma   protestante   do   século   XVI   não   só   negou   como   violentamente   criticou   essa  

tendência   empírio-­‐racionalista   da   filosofia   pré-­‐moderna.   Lutero   chamou   a   razão   de  

prostituta,  a  afirmou  que  o  conhecimento  de  Deus  só  vem  pela  fé,  não  pela  razão,  e  que  a  fé  é  

algo  que  se  opõe  à  razão.  Na  verdade,  em  alguns  pronunciamentos  dos  reformadores,  chega-­‐

se  a  defender  o  ponto  de  vista  de  que  a  fé  é  tão  mais  intensa  quanto  mais  irracional  for  o  seu  

objeto.  O  importante  é  a  fé,  não  o  conhecimento  natural.  E  para  demonstrar  que  a  fé  é  mais  

importante   do   que   a   razão,   alguns   dos   reformadores   procuraram  mostrar   quão   falha   é   a  

razão   humana   -­‐-­‐   contaminada   que   foi   pelo   pecado   -­‐-­‐   e   os   sentidos   humanos   -­‐-­‐  

frequentemente  enganados  e  enganosos.    

O  resultado  desse  esforço  foi  ceticismo  em  relação  à  capacidade  humana  não  só  de  conhecer  

o   que   jaz   além   dos   sentidos,  mas   também   em   relação   à   capacidade   humana   de   conhecer,  

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simplesmente.   A   esse   ceticismo,   correspondeu   sempre   um   fideísmo   -­‐-­‐   a   tese   de   que   o  

importante  é  crer.    

Aqui   talvez   seja   o  momento   de   esclarecer   que   existem   vários   graus   e   diversas   formas   de  

ceticismo.    

Existe  uma  versão  relativamente  branda  de  ceticismo,  que  não  duvidando  da  confiabilidade  

dos  nossos  sentidos,  e,  portanto,  não  contestando  a  possibilidade  de  conhecimento  empírico,  

nega,  entretanto,  que  possamos  ir  além  dos  sentidos,  questionando,  portanto,  a  existência  do  

chamado   conhecimento   supra-­‐sensorial.   Essa   forma   de   ceticismo   tem   sido   chamada   de  

ceticismo  em  relação  à   razão,  mas  a  denominação  não  é  muito  adequada.  Talvez   seja  mais  

apropriado  denominá-­‐lo  de  ceticismo  em  relação  ao  supra-­‐sensorial.    

Além   dessa,   existem   outras   variantes   de   ceticismo   que   admitem   a   possibilidade   de  

conhecimento   empírico   e   mesmo   supra-­‐sensorial,   mas   negam   a   a   existência   ou   mesmo   a  

possibilidade   da   verdade,   redefinindo   o   conceito   de   conhecimento   de   modo   a   eliminar  

referência   ao   conceito   de   verdade.   Essa   forma   de   ceticismo   poderia   ser   denominada   de  

ceticismo  em  relação  à  verdade.    

Existem,  por  fim,  variantes  do  ceticismo  em  relação  aos  sentidos.  As  duas  principais  são:    

-­‐-­‐   o   ceticismo   que   coloca   em   dúvida   que   os   nossos   sentidos   nos   forneçam   conhecimento  

adequado  da  realidade  empírica,  mas  que  não  questiona  a  existência  dessa  realidade;    

-­‐-­‐  o  ceticismo  que  coloca  em  dúvida  que  os  nossos  sentidos  nos  forneçam  conhecimento  de  

uma   realidade   extra-­‐mental,   e   que  questiona,   portanto,   a   própria   existência  de  um  mundo  

externo  a  nós.    

Uma  outra  forma  de  classificar  o  ceticismo  seria  dividi-­‐lo  em  versões  radicais  e  moderadas.    

A   versão   radical   do   ceticismo,   também   chamada   de   acadêmica   (1),   afirma   que   não   temos  

nenhum   conhecimento,   exceto   do   fato   de   que   não   temos   conhecimento,   que   não   existe  

nenhuma  verdade,  a  não  ser  aquela  que  afirma  que  a  verdade  não  existe.  O  dito  socrático,  "Só  

sei  que  nada  sei",  poderia  ser  considerado  o  slogan  dessa  versão  .    

A   versão   moderada   do   ceticismo,   também   chamada   de   pirrônica   (2),   nega   que   tenhamos  

evidência   adequada   até  mesmo   para   determinar   se   sabemos   que   nada   sabemos.   "Não   sei  

nem   mesmo   se   nada   sei",   seria   o   seu   slogan.   A   atitude   adequada   para   o   cético   seria  

suspender  o  juízo,  até  mesmo  em  relação  ao  ceticismo,  ser  cético  até  do  próprio  ceticismo.    

(Como  se  pode  ver,  a  versão  chamada  de  moderada  é,  em  certo  sentido,  mais  radical  do  que  a  

versão  dita  radical).    

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III.  A  Filosofia  Moderna  e  Descartes:  Tendências  Básicas    

Nesta   seção,   analisarei   as   principais   tendências   do   chamado   pai   da   filosofia   moderna:  

Descartes.   No   essencial,   o   ponto   de   vista   de   Descartes,   considerado   um   racionalista,   é  

adotado  também  pelo  empirismo  (representado  por  Hume)  e  pelo  criticismo  transcendental  

(representado  por  Kant,  que  pretendeu  suplantar  tanto  o  racionalismo  como  o  empirismo).    

Apesar  de  a  filosofia  de  René  Descartes  (1596-­‐1650)  se  basear  no  que  ele  chama  de  "dúvida  

radical",   Descartes   não   é   considerado   um   cético:   é,   frequentemente,   conhecido   como   um  

racionalista.  Vou  procurar  mostrar,  porém,  que  sua  filosofia,  apesar  de  ser  apresentada  por  

ele  como  a  resposta  ao  ceticismo,  é,  no  essencial,  fundamentalmente  cética.    

Descartes   começa   por   refletir   sobre   as   perguntas   inquietantes   do   cético:   Será   que   nossos  

sentidos  não  nos  enganam  sempre?  O  que  é  que  garante  que  não  estamos  sempre  alucinando  

ou  sonhando?    

1.  Relação  com  a  Filosofia  Tradicional    

Apesar  de  ter  estudado  em  colégio   jesuíta  (La  Flèche,  de  1604  a  1612),  Descartes  veio  a  se  

tornar  altamente  cético  em  relação  à  filosofia  clássica  que  havia  aprendido  no  colégio  jesuíta.    

Em  relação  à  filosofia  ele  afirma:    

"A  filosofia  nos  ensina  falar  com  aparência  de  verdade  sobre  todas  as  coisas,  e  nos  leva  a  ser  

admirado  pelos  menos   eruditos.   .   .   .   [Contudo,   apesar   de]   a   filosofia   ter   sido   cultivada  por  

muitos   séculos   pelas  melhores   inteligências   que   jamais   viveram,   .   .   .   não   há,   nela,   uma   só  

questão   que   não   seja   objeto   de   disputa,   e,   em   consequência,   que   não   seja   dúbia"   (DM,   I,  

84,86;  cf.  90).    

É  o  fato  de  que  ele  consegue  duvidar  da  veracidade  de  tudo  o  que  passa  por  filosofia  que  faz  

com   que   ele   se   torne   cético   em   relação   a   ela,   e   que   tenha   certo   desprezo   pela   filosofia  

tradicional.   Se   a   filosofia   vai   ter   lugar   no   universo   de   Descartes,   ela   terá   que   ser  

drasticamente  revista.    

2.  Paixão  pela  Matemática    

Em   seus   primeiros   anos   em   La   Fleche,   Descartes   se   dedicou   também   à   matemática  

(Copleston,   IV,   74),   que   sobremaneira   o   impressionou,   "por   causa   da   certeza   de   suas  

demonstrações  e  da  evidência  de  seu  raciocínio"  (Ibid,  p.85;  cp.  Copleston,  IV,  75).    

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Ele   manifesta   surpresa,   porém,   que   a   matemática   não   tenha   sido   utilizada,   a   não   ser   nas  

"artes   mecânicas",   e   que   "nenhum   edifício   mais   nobre   tenha   sido   construído   sobre   suas  

bases  firmes  e  sólidas"  (Ibid).    

Ele   tomou   a   si   a   tarefa   de   construir   esse   edifício  mais   nobre.   Para   ele,   a   filosofia   somente  

seria  capaz  de  escapar  dos  ataques  do  cético  se  tivesse,  como  base  de  sustentação,  um  ponto  

de   apoio   arquimédico   que   fosse   certo   e   indubitável.   É   a   busca   desse   ponto   de   apoio   que  

caracteriza  sua  filosofia.    

3.  O  Método  Cartesiano    

O   método   de   Descartes   foi   proceder   de   forma   matemática,   primeiro   estabelecendo   os  

princípios   fundamentais,   para   a   seguir   derivar  deles   suas   consequências,   da  mesma   forma  

que  teoremas  são  derivados  de  axiomas  (Aune,  7-­‐8,  NKS,  SCP,  27).  Dessa  forma,  utilizando  o  

método   rigoroso   do   raciocínio   matemático,   ele   esperava   construir,   sobre   bases   firmes   e  

sólidas,  um  edifício  filosófico  que  ficasse  imune  à  controvérsia  fútil  que  havia  caracterizado  a  

filosofia  que  aprendera  na  escola  (Aune,  7-­‐8).    

A   primeira   etapa   na   construção   desse   edifício   é   a   descoberta   de   princípios   básicos   ou  

axiomas,   que   funcionem   como  base   e   alicerce   do   edifício.   A   estratégia   que   ele   utiliza   para  

chegar  a  esses  princípios  foi  a  da  dúvida  sistemática:  nada  que  pode  ser  duvidado  é  aceitável  

como  fundamento  de  seu  sistema.    

Assim  sendo,  na  busca  desse  ponto  de  apoio,  Descartes   resolve  duvidar,   sistematicamente,  

de  tudo.  Ele  se  propõe  submeter  todas  as  suas  crenças  a  uma  revisão  sistemática  para  tentar  

encontrar   aquela(s)   de   que   ele   não   consegue,   realmente,   duvidar.   Essas   crenças  

induvbitáveis  lhe  forneceriam  a  base  para  seu  edifício,  visto  que  seriam  consideradas  como  

absolutamente  certas  (Aune,  7-­‐8).    

4.  O  Projeto  Cartesiano    

Na  verdade,  o  projeto  de  Descartes  é  maior  do  que  simplesmente  reconstruir  a  filosofia.  Ele  

quer  fornecer  um  fundamento  racional  para  as  crenças  das  pessoas  comuns  bem  como  para  

a   ciência   que   começava   naquela   época,   da   qual   foi   um   defensor   e   para   a   qual   fez  

contribuições  importantes.    

Um   indivíduo   (seja   ele   uma   pessoa   comum   ou   um   cientista)   desenvolve   muitas   de   suas  

crenças  antes  de  chegar  à  idade  da  razão.  Mesmo  depois  da  idade  da  razão,  frequentemente  

adquire  crenças  através  do  exercício  não-­‐crítico  de  sua  atividade  sensorial,  de  testemunhos  

não   confiáveis   de   outros,   de   apelo   a   autoridades   indignas   de   crédito.   Quem   pretende   ser  

racional  em  suas  convicções,  tem,  mais  cedo  ou  mais  tarde,  de  limpar  a  sua  mente  de  todas  as  

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suas  crenças,  duvidando  de  tudo  aquilo  que  é  incerto  e  passível  de  dúvida,  e  reconstruindo  

suas  crenças  sobre  um  novo  fundamento,  certo  e  indubitável  (Kenny,  14).    

Descartes  resume  seu  projeto:    

Muitos  anos  atrás  percebi  quantas  opiniões  falsas  vinha  aceitando  como  verdadeiras  desde  

minha  infância,  e  quão  dúbio  tudo  o  que  eu  nelas  baseava  deveria  ser.  Decidi,  então,  que,  se  

realmente   quisesse   estabelecer   algo   de   sólido   e   duradouro   nas   ciências,   teria   que,  

deliberadamente,  me  livrar  de  todas  as  opiniões  que  até  então  aceitara  e  começar  a  construir  

tudo  de  novo,  a  partir  do  zero.   .   .   .  Não  seria  necessário,  para  os  meus  propósitos,  mostrar  

que  todas  minhas  convicções  eram  falsas   -­‐   tarefa  que  poderia  nunca  vir  a  concluir.  Como  a  

razão   já   me   havia   persuadido   de   que   deveria   deixar   de   acreditar   tanto   nas   coisas   que  

parecem   ser   manifestamente   falsas   como   naquelas   que   não   são   inteiramente   certas   e  

indubitáveis,   o  menor   fundamento  para  uma  dúvida   seria   suficiente  para  me   fazer   rejeitar  

qualquer   de   minhas   opiniões.   Por   isso,   não   precisei   examinar   cada   uma   de   minhas  

convicções,   individualmente,   o   que   seria   um   trabalho   interminável,   mas   apenas   os  

fundamentos  em  que  se  baseavam,  pois  a  destruição  da  fundação  faz  com  que  todo  o  edifício  

venha  a  ruir"  (Medit  I,  144-­‐45,  cr  Aune,  8-­‐9)    

O   objetivo   de   Descartes   é,   portanto,   examinar   o   fundamento   que   existe   para   as   várias  

categorias  de  crença  que  possuía.  Se  o   fundamento  de  toda  uma  categoria  de  crenças  pode  

ser   questionado,   as   crenças   baseadas   nesse   fundamento   não   podem   ser   tidas   como  

inteiramente  certas.  Pode  até  ser  que  as  crenças  sejam  verdadeiras,  mas  é  também  possível  

que   sejam   falsas,   e,   se   é   possível   que   sejam   falsas,   elas   não   podem   ser   consideradas  

indubitáveis.   Talvez   subsequentemente,   quando   encontrar   fundamentos   certos   e  

indubitáveis   para   suas   crenças,   Descartes   possa   voltar   a   aceitar   algumas   das   crenças  

abandonadas  e  mostrar  que  são  verdadeiras.  Por  enquanto,  porém,  ele  as  colocará  de   lado  

como  suspeitas  e  indignas  de  credibilidade  (Aune,  10).    

5.  Esclarecimento  de  Alguns  Termos    

É   oportuno   esclarecer   alguns   termos   básicos   do   discurso   cartesiano.   Para   Descartes,  

"certeza"  e  "indubitabilidade"  são  termos,  se  não  sinônimos,  pelo  menos  correlacionados.  Se  

um   enunciado   é   certo,   ele   também   é   indubitável.   Um   enunciado   é   certo,   para   Descartes,  

quando   ele   é   necessariamente   verdadeiro.   Um   enunciado   é   indubitável,   para   Descartes,  

quando  não  é  possível  que  ele  seja  falso,  quando  não  se  pode  encontrar  nenhuma  razão  para  

questioná-­‐lo  (por  que  é  absolutamente  certo).    

Note-­‐se  que,  para  Descartes,   a   "necessidade"  que  ele  atribui  a  um  enunciado  certo  não  é  a  

necessidade   inerente   às   tautologias   (àquilo   que   subsequentemente   se   veio   chamar   de  

"enunciados  analíticos"),  visto  que  ele  considera  possível,  pelo  menos  no  primeiro  estágio  de  

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suas   dúvidas,   como   veremos,   que   enunciados   matemáticos   sejam   falsos,   e,   portanto,  

dubitáveis.    

Quando  Descartes  fala  em  dúvida,  ele  tem  em  mente  uma  dúvida  racional,  ou  intelectual,  não  

uma  dúvida  existencial,  ou  prática.  Duvidar  racionalmente  de  uma  crença  é  encontrar  razões  

para  duvidar  de   sua  veracidade,   é   identificar   razões  para  pensar  que  a   crença  em  questão  

pode,  possivelmente,  ser  falsa  (Aune,  10).  Eis  o  que  diz  Descartes:    

"Há  muito  tempo  que  venho  observando  que,  no  que  diz  respeito  à  vida  prática,  é  algumas  

vezes   necessário   seguir   opiniões,   que   se   sabe   ser   muito   incertas,   como   se   elas   fossem  

indubitáveis.   .   .   .  Mas   porque   eu   desejava  me   dedicar   exclusivamente   à   busca   da   verdade,  

pensei   ser  necessário   fazer  exatamente  o  oposto  e   rejeitar,   como  se   fossem  absolutamente  

falso,   tudo  aquilo  acerca  do  que  pudesse   ter  a  menor  dúvida,  para  ver  se,  ao   final,   restaria  

alguma  coisa  que  fosse  indubitável"  (Discurso,  VI,  HR,  pp  100-­‐101,  apud  Williams,  34-­‐35).    

6.  Primeiro  Argumento  Cético    

Esclarecidas  essas  questões  preliminares,  vejamos  como  Descartes  procede.  O  que  mais  nos  

interessa   aqui   é   como   Descartes   pode   duvidar   das   crenças   que   adquiriu   através   de   sua  

percepção.  Ele  esclarece:    

"Tudo   o   que,   até   o   presente,   aceitei   como   mais   verdadeiro   e   certo,   fiquei   sabendo   pelos  

sentidos  ou  através  deles.  Mas  posso  provar  que  algumas  vezes  os  sentidos  me  enganam,  e  

que  é  sábio  não  confiar  inteiramente  em  algo  que  já  alguma  vez  nos  enganou"  (Medit  I,  145).  

"Visto  que  os  sentidos  nos  enganam  algumas  vezes,  decidi  supor  que  nada   fosse  como  eles  

nos  fazem  imaginar"  (Discurso,  VI,  HR,  100-­‐101,  apud  Williams,  35)  3.    

Com   esse   primeiro   argumento,   Descartes   vem   a   duvidar   de   seus   sentidos   e   a   considerar  

dúbio   e   suspeito   tudo   o   que   ficou   sabendo   através   deles.   Os   sentidos,   portanto,   não   são   o  

fundamento   absolutamente   certo   e   indubitável   que   estava   procurando.   Parece   não   haver  

critério  que  nos  permita  distinguir  uma  percepção  errônea  de  uma  correta.    

Descartes   considera   a   objeção   de   que,   embora   algumas   vezes   nos   enganemos   acerca   de  

coisas   que   percebemos   há   muito   tempo,   ou   que   percebemos   de   muita   distância   (ou   seja,  

acerca  de  coisas  distantes,  no  tempo  ou  no  espaço),  não  poderíamos  nos  enganar  acerca  de  

impressões  sensoriais,  que  estamos   tendo  no  momento,  de  coisas  próximas  de  nós.  Parece  

impossível  duvidar  de  que,  ao  olhar  para  minha  mesa,  ali  estejam  minhas  mãos  escrevendo  

em  um  papel  -­‐-­‐  somente  uma  pessoa  insana  teria  dúvidas  disso!    

 

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7.  Segundo  Argumento  Cético    

A   resposta   de  Descartes   a   essa   objeção   introduz   um   segundo   argumento:   o   do   sonho.   Sua  

resposta  é  a  seguinte:    

"Devo  lembrar  que  sou  um  homem,  e,  como  tal,  tenho  o  hábito  de  dormir.  Durante  meu  sono,  

frequentemente   sonho,   e   no   sonho   tenho   impressões   semelhantes   às   que   pessoas   insanas  

têm   quanto   estão   acordadas,   ou   até   mesmo   mais   prováveis.   Quantas   vezes   já   não   me  

ocorreu,  em  sonhos,  que  eu  estivesse  em  determinado  lugar,  vestido  de  tal  maneira,  sentado  

próximo  à   lareira,  quando,  na  realidade,  estava  na  cama,  dormindo.  No  momento  presente,  

realmente   me   parece   que   é   com   olhos   despertos   que   vejo   este   papel,   que   a   cabeça   que  

movimento  não  está  adormecida,  que  é  deliberada  e  intencionalmente  que  estico  meu  braço  

e  vejo  minha  mão.  O  que  acontece  durante  o  sono  parece  não  ser  tão  claro  e  distinto  como  as  

impressões  que  estou  tendo  agora.  Mas  ao  pensar  sobre  tudo  isso  eu  me  relembro  de  que,  em  

muitas   outras   ocasiões,   tive   ilusões   semelhantes,   enquanto   dormia.   Examinando  

cuidadosamente   essas   lembranças,   concluo   que,   manifestamente,   não   existem   indicações  

certas  pelas  quais  possa  claramente  distinguir  as   impressões  que   tenho,  quando  acordado,  

das  que  pareço   ter,  enquanto  durmo,  e   fico  confuso.  E  minha  confusão  é   tal  que  sou  quase  

capaz  de  me  persuadir  que  no  momento  estou  sonhando"  (Medit  I,  145-­‐146,  Aune  9-­‐10).    

Na   ausência   de   indicadores   claros   que   lhe   permitam   distinguir   as   impressões   que   tem  

quando  acordado  das  que   lhe   acontecem  quando  dorme,  Descartes   considera  possível   que  

todas  as  suas  percepções  sejam  totalmente  ilusórias  e  que  as  coisas  ao  seu  redor,  incluindo  o  

seu   próprio   corpo,   podem,   não   só   ser   totalmente   diferentes   do   que   lhe   parecem   ser,  mas  

realmente   não   existir,   na   realidade.   Parece   não   haver   critério   que   nos   permita   distinguir  

percepções  verídicas  de  inverídicas  (4).    

O   primeiro   argumento   -­‐-­‐   o   de   que   nossos   sentidos   às   vezes   nos   enganam,   produzindo  

percepções   equivocadas,   e   que,   portanto,   as   coisas   podem   não   ser   como   parecem   -­‐-­‐   leva  

Descartes  a  concluir  que  o  mundo  exterior  pode  não  ser  como  parece.    

O   segundo   argumento   -­‐-­‐   o   de   que   nos   sonhos   tenho   percepções   inverídicas,   que   não  

correspondem   a   nenhuma   realidade   externa   -­‐-­‐   leva   Descartes   a   concluir   que   o   mundo  

exterior  pode  nem  mesmo  existir.    

A   diferença   básica   entre   o   primeiro   e   o   segundo   argumento   é   a   seguinte.   Quando   somos  

enganados   pelos   nossos   sentidos,   são   os   próprios   sentidos   que,   retrospectivamente,   nos  

mostram   que   estávamos   enganados.   O   erro,   no   caso   de   engano   dos   sentidos,   não   se  

generaliza  ao  presente  caso:  ele  se  situa  sempre  num  caso  anterior,   já  passado.  Somente  se  

constata   um   engano   dos   sentidos   em   contraposição   a   casos   de   percepção   não-­‐enganosa  

(Kenny,  25)   (5).  No  caso  do  sonho,  porém,  a  dúvida  se  estende  ao  caso  presente:  pode  ser  

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que   esteja   sonhando   agora.   O   fato   de   que   estou   totalmente   convencido   de   que   não   estou  

sonhando   agora   em  nada   contribui   para   a   certeza   genuína   de   que   não   esteja   sonhando.  O  

argumento  do  sonho  é,  portanto,  mais  radical.    

Os  argumentos,  até  agora,  parecem  nos  mostrar  que  os  sentidos  não  são  confiáveis.  Como  a  

ciência  depende  de  observações  sensoriais,  a  ciência,  como  um  todo  estaria  sob  suspeita,  em  

virtude   desses   argumentos   -­‐-­‐   exceto,   talvez,   a  matemática.   Estaria   a  matemática   acima   de  

qualquer   suspeita,   e   residiriam   nela   os   enunciados   certos   e   indubitáveis   que   Descartes  

procura?    

8.  Terceiro  Argumento  Cético    

Deixando  de   lado,  por  um  momento,  as  convicções  baseadas  nos  sentidos,  examinemos  um  

terceiro  argumento  de  Descartes,  apresentado  quando  ele  passa  a  examinar  algumas  ideias  

matemáticas  simples.  Os  enunciados  "dois  mais  três  perfazem  cinco",  ou  "um  quadrado  tem  

quadro   lados",   não   parecem   ser   enunciados   cuja   veracidade   dependam   dos   sentidos.  

Acordado   ou   sonhando,   parece   impossível   que   alguém   seja   enganado   acerca   de   coisas   tão  

óbvias.  Elas  parecem  ser  certas  e,  portanto,  indubitáveis.    

"Acordado   ou   dormindo,   dois   e   três   perfazem   cinco,   e   um   quadrado   tem   apenas   quatro  

lados;  e  parece  impossível  que  verdades  assim  tão  óbvias  fiquem  sob  suspeito  de  falsidade"  (  

Kenny,16)    

Mas  nem  nesses  exemplos  matemáticos  Descartes  acredita  encontrar  o  fundamento  que  está  

procurando.  Por  um  lado,  as  pessoas  muitas  vezes  erram,  considerando  como  auto-­‐evidente  

algo   que   não   o   é.   Por   outro   lado,   Deus,   ou   um   ser   extremamente   poderoso,   inteligente   e  

maligno,   poderia   enganá-­‐lo   em   tudo   o   que   pensa,   e   poderia   ter   disposto   as   coisas   de   tal  

forma   que   ele   fosse   enganado   até   em   relação   a   esses   enunciados   cuja   verdade   parece   tão  

evidente.    

"Uma  razão  é  que  as  pessoas  fazem  erros  em  raciocínios  desse  tipo  e  consideram  como  certo  

e   auto-­‐evidente   o  que   vemos   ser   falso.  Outra   razão,  mais   importante,   é   que  Deus,   que  nos  

criou,  e  que  pode  fazer  tudo  o  que  deseja,  pode  ter  desejado  nos  criar  -­‐-­‐  não  sabemos  ainda  -­‐-­‐  

de   tal  modo  que   sempre   nos   enganemos  mesmo   em   relação   àquelas   coisas   que   pensamos  

melhor  conhecer"  (Kenny,  17).    

Para   acrescentar   rigor   ao   seu   método,   portanto,   Descartes,   que   tem   algum   escrúpulo   em  

imaginar   que   Deus   pudesse   ser   malévolo   (Kenny,   35),   supõe   que   exista   esse   ser  

extremamente  poderoso  e   inteligente,  mas  maligno,  que  ele  chama  de  um  "gênio  maligno",  

que   faz  com  que  nos  enganemos  "mesmo  em  relação  àquelas  coisas  que  pensamos  melhor  

conhecer"  (6).  Em  decorrência  dessa  suposição,  Descartes  passa  a  duvidar  da  veracidade  até  

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dos   enunciados   matemáticos   mais   simples   e   acrescenta   rigor   à   sua   dúvida   da   realidade  

externa,  inclusive  de  seu  próprio  corpo  (7)  (Medit  II,  148-­‐149,  101,  Aune  10-­‐11,  Kenny,  18).    

9.  O  Certo  e  Indubitável:  O  "Cogito"    

Mas  se  nem  os  sentidos  nem  a  matemática,  nem  as  ciências  empíricas  nem  as  formais,  estão  

acima  de  dúvida,  "o  que  é,  então,  que  pode  ser  considerado  verdadeiro?"  (8)    

A  primeira  resposta  que  se  sugere  é  que  a  única  coisa  certa  e  indubitável  é  que  nada  é  certo.  

Mas  mesmo  essa  afirmação  não  é  e  certa  e  indubitável:  é  bem  possível  que  haja  várias  outras  

coisas  que   sejam  certas   e   indubitáveis,   e,   se  houver,   a   afirmação  não   seria   verdadeira.  Até  

mesmo  dessa  afirmação,  portanto,  Descartes  conclui  que  deve  duvidar.    

Entretanto,   Descartes   percebe   que,   se   ele   duvida   de   tudo,   há   algo   que   não   lhe   é   possível  

duvidar,   a   saber,   do   fato  de  que   está  duvidando.   Se   ele  duvida  disso,   pelo  mesmo  ato   está  

duvidando.   Desse   fato   Descartes   conclui   que   ele   não   pode   duvidar   se   não   existir,   e   que,  

portanto,   sua   existência,   como   um   duvidador,   é   absolutamente   certa   e   indubitável.   Nem  

mesmo   o   gênio   maligno   pode   enganá-­‐lo   acerca   disso,   porque,   para   ser   enganado,   ele,  

Descartes,  tem  que  existir:  ele  não  pode  ser  enganado  se  não  existir.    

Como  duvidar,  ser  enganado,  etc.,  são  formas  de  atividade  mental,  que  podem  ser  chamadas  

de  pensamento,  Descartes  conclui  que,  se  ele  está  pensando,  num  dado  momento,  então  sua  

existência   é,   naquele  momento,   absolutamente   certa   e   indubitável.   "Cogito,   ergo   sum"   (9).  

Ele  não  pode  estar  errado,  portanto,  acerca  do  fato  de  que  o  enunciado  "Penso,  logo  existo"  é  

necessariamente  verdadeiro  todas  as  vezes  que  ele  o  concebe  ou  declara  (10).    

Com   esse   enunciado   Descartes   acredita   ter   descoberto   sua   primeira   verdade   certa   e  

indubitável.  Ele  existe  todas  as  vezes  que  pensa,  que  duvida,  que  é  enganado.    

"Observando  que  essa  verdade,  'Eu  penso,  logo  existo',  é  tão  sólida  e  firme  que  nem  as  mais  

extravagantes   suposições   dos   céticos   podem   derrubá-­‐la,   julguei   que   não   precisava   ter  

escrúpulos  de  aceitá-­‐la  como  o  primeiro  princípio  da  filosofia,  que  eu  buscava"  (HR,  I,  101;  

Kenny,  40)    

Mas  esse  conhecimento  é  extremamente   limitado  em  escopo.  Ele  tem  certeza  de  que  existe  

quando  pensa,  mas  não  sabe,  por  exemplo,  qual  a  sua  natureza   -­‐-­‐  ele  sabe  que  ele  é,  não  o  

que  ele  é  -­‐-­‐  nem  se  continua  a  existir  quando  para  de  pensar.  É  preciso,  portanto,  continuar  a  

busca.    

 

 

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10.  A  Natureza  do  Eu    

Descartes  passa,  portanto,  a  investigar  a  natureza  daquilo  que,  ao  pensar,  ele  tem  certeza  de  

que  existe.    

Como  se  viu,  Descartes  encontrou  razões  para  duvidar  de  tudo  o  que  depende  dos  sentidos.  

O  ele   ter  certeza  de  que  existe,  portanto,  não   implica  que  ele   tenha  certeza  de  que  tem  um  

corpo,  que  ele  tenha  impressões  sensoriais,  sensações.  A  única  coisa  de  que  Descartes  pode  

ter  certeza  é  de  que  existe  enquanto  ser  pensante,  enquanto  res  cogitans.    

"Aqui  descubro  o  que  me  pertence.  Eu  sou,  eu  existo  -­‐-­‐  isto  é  certo.  Mas  por  quanto  tempo?  

Apenas  enquanto  eu  continuo  a  pensar,  porque  é  possível  que,  ao  deixar  de  pensar,  deixe  de  

existir.  Não  estou  admitindo  nada  que  não  seja  necessariamente  verdadeiro.  Estou,  portanto,  

me  considerando  apenas   como  um  ser  pensante,   isto  é,  uma  mente   -­‐-­‐   alma,   entendimento,  

razão,   termos   cujo   sentido  até   aqui   é  desconhecido.  Eu   sou,  portanto,   uma   coisa   real,   uma  

coisa  que  realmente  existe.  Mas  que  tipo  de  coisa?  Eu  já  disse:  uma  coisa  que  pensa"  (Medit,  

apud  Aune,  12)  (11)    

Se   alguém   lhe   perguntar   se   seus   pensamentos   têm   alguma   causa   externa,   Descartes  

responde   que   seus   pensamentos   podem   ter   sido   causados   por   algo   externo   a   ele,   como  

podem   ter   sido   produzidos   em   sua  mente   por  Deus,   pelo   gênio  maligno,   ou   então   por   ele  

mesmo.   Tudo   isso   é   possível,   e,   portanto,   nenhuma   dessas   causas   possíveis   pode   ser  

considerada  certa.    

11.  As  Marcas  da  Verdade  Certa  e  Indubitável    

O   caminho   que   Descartes   decide   seguir,   a   partir   desse   ponto,   é,   tendo   encontrado   pelo  

menos  uma  coisa   absolutamente   certa,   examiná-­‐la,   para  ver   se   consegue  descobrir  nela   as  

marcas  identificadoras  de  algo  indubitável,  para  ver  se  consegue  definir  o  que  é  que  a  torna  

indubitável.    

Sua  conclusão  é  que  nada  existe  no  enunciado  "penso,  logo  existo"  além  de  uma  "apreensão  

clara  e  distinta"  do  que  é  afirmado.  Apreensão  clara  e  distinta  deve,  portanto,  ser  marca  da  

verdade  certa  e  indubitável  (Aune,  12-­‐13)  (12).    

"Estou   certo   de   que   sou   uma   coisa   que   pensa:   mas   não   saberei   eu,   igualmente,   o   que   é  

necessário   para   que   eu   tenha   certeza   de   uma   verdade?   Certamente,   nesse   primeiro  

conhecimento,   nada   há   que  me   assegure   sua   verdade,   exceto   a   percepção   clara   e   distinta  

daquilo   que   afirmo,   que   não   seria   suficiente   para   me   garantir   que   aquilo   que   afirmo   é  

verdadeiro   se   fosse  possível  que  algo  que  concebo  clara  e  distintamente  viesse  a   ser   falso.  

Dessa  forma,  parece-­‐me  que  posso  já  estabelecer,  como  regra  geral,  que  todas  as  coisas  que  

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percebo   muito   claramente   e   muito   distintamente   são   verdadeiras"   (Medit   III,   HR,   158   -­‐  

quoted  from  source).    

12.  Intuição  e  Dedução    

Mas  não  são  apenas  os  enunciados  claros  e  distintos  que  podem  ser  consideradas  certos  e  

indubitáveis.  Qualquer  enunciado  que  possa  ser  validamente  deduzido  deles  também  terá  as  

mesmas  características  .    

Em  As  Regras  para  a  Direção  da  Mente,  escrito  por  volta  de  1630,  Descartes  afirma  que  nosso  

conhecimento  depende  de  duas  operações  da  mente:  intuição  e  dedução.  Intuição  é  o  nome  

que  ele  aqui  dá  à  "apreensão  clara  e  distinta":    

"Intuição   é   a   concepção   que   uma   mente   não   anuviada   e   atenta   nos   dá   tão   pronta   e  

claramente  que  deixamos  de  ter  qualquer  dúvida  acerca  daquilo  que  compreendemos".    

Seu  conhecimento  de  que,  se  ele  pensa,  ele  existe  enquanto  coisa  pensante,  é  intuitivo,  nesse  

sentido  do  termo:  Ele  afirma:    

"Quando  eu  observo  que  nós  somos  seres  pensantes,  esta  é  uma  espécie  de  noção  primária,  

que   não   é   conclusão   de   nenhum   silogismo.   Quando   alguém   diz:   'Estou   pensando,   logo   eu  

existo',  ele  não  está  usando  um  silogismo  para  deduzir  a  sua  existência  de  seu  pensamento,  

mas   está   apenas   reconhecendo   este   fato   como   algo   evidente,   em   uma   simples   intuição  

mental"  (HR,  II,  38;  Kenny,41;  cf.51ff)  (13).    

Dedução,  por  outro  lado,  é   inferência  necessária  de  coisas  que  são  conhecidas  com  certeza.  

Para  Descartes,   embora   a   dedução  difira   da   intuição,   é   baseada  nesta,   pois   cada  passo   em  

uma  cadeia  dedutiva  corresponde  a  uma  intuição:  é  preciso  apreender  clara  e  distintamente  

cada  passo  na  dedução.  (Aune,  16,  Kenny,  55)    

Tendo   estabelecido   um   enunciado   absolutamente   certo   e   indubitável,   Descarte   prossegue  

em   sua   investigação   para   ver   o   que   pode   ser   dele   deduzido.   Tendo   colocado   no   lugar   o  

alicerce,  ele  pretende  agora  construir  o  prédio.    

13.  O  Terceiro  Argumento  Recolocado    

Voltemos  à  questão  dos  enunciados  matemáticos.  Depois  de  ter  estabelecido  um  enunciado  

certo   e   indubitável,  Descartes   volta   a   considerar   a   afirmação  de  que  2  mais   3  perfazem  5.  

Segundo  ele,  quando  ele   contempla  essa  afirmação,   levando  em  conta  apenas  o  enunciado,  

ele   tem  uma  apreensão  clara  e  distinta  de  sua  verdade.  Ele  só  considera  a  afirmação  dúbia  

por  causa  da  hipótese  do  gênio  maligno,  que  pode  lhe  enganar  mesmo  acerca  de  coisas  que  

lhe  parecem  evidentes.  Ele  reconhece,  agora,  que  este  fundamento  para  sua  dúvida  é  frágil,  

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porque  não  nenhuma   razão  para   acreditar   que   esse   gênio  maligno   exista.  Mas  mesmo  um  

fundamento  frágil  precisa  ser  levado  em  conta.    

Para   eliminar   a   hipótese   da   existência   do   gênio   maligno,   Descartes   se   sente   obrigado   a  

provar  que  um  ser   todo-­‐poderoso  existe,  mas  não  é  enganador.  Essa  prova  é  equivalente  a  

uma  prova  da   existência  de  Deus,   e   vai   permitir   que   ele  passe   a   aceitar   como  verdadeiros  

enunciados  que  ele  parece  apreender  como  claros  e  distintos  mas  que,  por  causa  da  hipótese  

do  gênio  maligno,  havia  rejeitado.    

14.  A  Existência  de  Deus    

Vejamos,   agora,   que   argumentos   Descartes   usa   para   provar   (14)   a   existência   de   Deus.   É  

possível  detectar  várias  provas  em  seus  escritos.    

No  Discurso  Descartes  desenvolve  uma  prova  baseado  na  ideia  de  perfeição.    

15.  Argumento  Circular?    

Antes   de   prosseguir   é   oportuno   esclarecer   uma   questão   controvertida:   é   discutível   se  

Descartes  considerou  clareza  e  distinção  como  marcas  apenas  de  certeza  e  indubitabilidade  

ou  também  de  verdade.    

Caso  seja  apenas  a  primeira  hipótese,  estaria  o  "cogito"   incluído  entre  as  verdades  que  são  

certas   e   indubitáveis  mas  não  necessariamente  verdadeiras,   como  as  matemáticas?  A  mim  

me  parece  que  o  certo  e  o  indubitável  é  igual  ao  verdadeiro  para  Descartes.    

O   que   ele   distingue   (mal)   é   entre   verdades   que   são   certas   e   indubitáveis,   mesmo   com   a  

hipótese   de   um   gênio   maligno   (como   o   "cogito",   e,   talvez   algumas   outras   verdades)   e  

enunciados  que  parecem  certos  e   indubitáveis,  mas,   com  a  hipótese  do  gênio  maligno   (i.e.,  

sem  a  prova  da  existência  de  Deus)  não  podem  ser  tidos  como  verdadeiros.    

Em   vários   locais   Descartes   afirma,   explicitamente,   que   mesmo   a   hipótese   de   um   Deus  

enganador  ou  de  um  gênio  maligno  não  pode  fazê-­‐lo  duvidar  do  "cogito",   isto  é,  de  que  ele  

pensa,  e,  em  pensando,  existe.  (EVIDÊNCIA)    

Mas   é   apenas   depois   de   provar   que  Deus   existe,   e,   que,   sendo   benevolente,   além  de   todo-­‐

poderoso,   não  permitiria   que  um  gênio  maligno  nos   enganasse   tão  desavergonhadamente,  

que  Descartes  se  considera  justificado  em  considerar  os  enunciados  matemáticos  (e  outros,  

como  veremos)  como  verdades  certas  e  indubitáveis.  Na  verdade,  após  ter  provado  que  Deus  

existe,  Descartes  abre  as  portas  e  reintroduz  tudo  de  que  antes  havia  duvidado.    

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Parece  claro,  portanto,  que,  para  Descartes,  há  uma  diferença  qualitativa  entre  o  "cogito"  (de  

que   ele   acha   impossível   duvidar)   e   as   outras   verdades   que   parecem   ser   claras   e   distintas  

(mas  que  ele  acha  possível  duvidar).  Essa  interpretação  tem  ainda  o  mérito  de  não  imputar  a  

Descartes   um   argumento   circular:   o   de   que   ele   usa   o   "cogito"   para   definir   que   clareza   e  

distinção  são  critérios  de  verdade,  em  seguida  usa  esses  critérios  para  provar  a  existência  de  

Deus,  e,  por   fim,  usa  a  existência  de  Deus  para  provar  que  os  enunciados  que  apreendo  de  

forma  clara  e  distinta  são  verdadeiros  (Vr  Doney,  213  ff).    

No  Discurso,  por  exemplo,  ele  diz  (a  primeira  passagem  já  foi  citada):    

"Observando  que  essa  verdade,  'Eu  penso,  logo  existo',  é  tão  sólida  e  firme  que  nem  as  mais  

extravagantes   suposições   dos   céticos   podem   derrubá-­‐la,   julguei   que   não   precisava   ter  

escrúpulos  de  aceitá-­‐la  como  o  primeiro  princípio  da  filosofia,  que  eu  buscava"  (HR,  I,  101;  

Kenny,  40)    

"Depois  disso  eu  considerei  o  que,  numa  proposição,  é  necessário  para  que  seja  verdadeira  e  

certa,  pois,  desde  que  acabara  de  descobrir  uma  que  sabia  ser  tal,  pensei  que  devesse  saber  

no   que   consistia   essa   certeza.   E   tendo   notado   que   não   havia   absolutamente   nada   no  

enunciado   'Eu   penso,   logo   existo'   que   me   garante   ter   com   ele   feito   uma   afirmação  

verdadeira,  exceto  o  fato  de  que  vejo  muito  claramente  que,  para  pensar  essa  afirmação,  ela  

tem   que   necessariamente   ser   verdadeira,   concluí   que   eu   poderia   pressupor,   como   regra  

geral,   que   as   coisas   que   concebo   muito   clara   e   distintamente   são   todas   verdadeiras   -­‐-­‐  

lembrando-­‐me,  entretanto,  de  que  há  alguma  dificuldade  para  determinar  quais  são  as  coisas  

que  distintamente  concebemos"  (HR,  I,102).    

Especialmente   a   última   frase   é   sugestiva:   Descartes   afirma   que   tudo   o   que   clara   e  

distintamente   percebe   é   verdadeiro,   mas   reconhece   que   existem   dificuldades   para  

determinar  se  o  que  estamos  apreendendo  está  sendo  apreendido  de  forma  clara  e  distinta.  

Considero  que  essa  última  frase  corrobora,  de  maneira  especial,  minha  interpretação.    

Em  passagem  das  Meditações,  já  citada,  e  muito  parecida  com  as  passagens  do  Discurso  que  

acabo  de  citar  (a  "regra  geral",  por  exemplo,  é  mencionada  em  ambas),  Descartes  afirma:    

"Estou   certo   de   que   sou   uma   coisa   que   pensa:   mas   não   saberei   eu,   igualmente,   o   que   é  

necessário   para   que   eu   tenha   certeza   de   uma   verdade?   Certamente,   nesse   primeiro  

conhecimento,   nada   há   que  me   assegure   sua   verdade,   exceto   a   percepção   clara   e   distinta  

daquilo   que   afirmo,   que   não   seria   suficiente   para   me   garantir   que   aquilo   que   afirmo   é  

verdadeiro   se   fosse  possível  que  algo  que  concebo  clara  e  distintamente  viesse  a   ser   falso.  

Dessa  forma,  parece-­‐me  que  posso  já  estabelecer,  como  regra  geral,  que  todas  as  coisas  que  

percebo   muito   claramente   e   muito   distintamente   são   verdadeiras"   (Medit   III,   HR,   158   -­‐  

quoted  from  source).    

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Contudo,   é   forçoso   reconhecer   que   em   várias   outras   passagens   Descartes   textualmente  

afirma  que  sem  o  conhecimento  da  existência  de  Deus  não  poderia  saber  nada.  Eis  algumas  

delas:    

"Para   remover   inteiramente   [a   possibilidade   de   dúvida   baseada   no  Deus   enganador]   devo  

investigar  se  há  um  Deus  assim  que  a  ocasião  se  apresentar,  e,  se  concluir  que  Deus  existe,  

devo  investigar  se  Ele  pode  ser  um  enganador.  Sem  conhecimento  dessas  duas  verdades,  não  

vejo  como  jamais  possa  ter  certeza  de  qualquer  coisa"  (Medit  III,  HR  159,  from  source).    

"Depois  que  reconheci  que  há  um  Deus   -­‐-­‐  porque  ao  mesmo  tempo  também  reconheci  que  

todas   as   coisas   dependem   dEle,   e   que   ele   não   é   um   enganador,   e   disso   inferi   que   o   que  

percebo  clara  e  distintamente  não  pode  deixar  de   ser  verdade   -­‐-­‐  nenhuma  razão  contrária  

pode   ser   apresentada   que  me   faça   duvidar   da   verdade   de   algo   que   clara   e   distintamente  

percebi,   desde   que   me   lembre   tê-­‐lo   clara   e   distintamente   percebido   (mesmo   que   no  

momento  não  tenha  em  mente  as  razões  que  levaram  a  julgá-­‐lo  verdadeiro),  e,  assim,  posso  

dizer  que  tenho  conhecimento  verdadeiro  e  certo  dessa  coisa"  (Medit  III,  HR  184).    

"E  assim  eu  claramente  reconheço  que  a  certeza  e  a  verdade  de  todo  conhecimento  depende  

apenas   do   conhecimento   do   verdadeiro   Deus,   à   medida   que,   antes   de   conhecê-­‐lO,   não  

poderia   ter   um   conhecimento   perfeito   de   nenhuma   outra   coisa"   (Medit   III,   HR,   185)   (NB:  

conhecimento  perfeito).    

16.  A  Metafísica  Cartesiana:  O  Dualismo  Mente-­‐Corpo    

Antes   de   prosseguir,   é   interessante   registrar   como   Descartes   consegue   duvidar   de   que  

realmente   exista   um   mundo   exterior.   Aparentemente,   esse   mundo   nos   é   dado   pela  

percepção:   através   de   nossos   órgãos   dos   sentidos,   percebemos   o   mundo   exterior.   Pelo  

menos  esse  é  o  ponto  de  vista  tradicional,  conhecido  como  realismo  (às  vezes  qualificado  de  

"ingênuo").    

Descartes   não   concorda   com   esse   ponto   de   vista   tradicional.   Para   ele,   a   nossa  mente   (ou  

consciência)   e   a   realidade   externa   são  dois   reinos   separados   e   autônomos,   nenhum   sendo  

dependente  do  outro.  Embora  ele  não  negue  que  a  mente  seja  capaz  de  compreender  objetos  

externos  a  ela,  aquilo  de  que  estamos  imediatamente  conscientes,  para  Descartes,  não  são  os  

objetos   externos,   mas   apenas   representações   mentais,   ou   ideias,   produzidas   pela   nossa  

própria   mente.   A   mente,   portanto,   tem   contato   com   o   mundo   externo   apenas   através   de  

ideias,  que  são  representações  mentais  dos  objetos  externos.    

O   objeto   de   nossa   percepção,   portanto,   não   são   os   objetos   externos,   como   acreditam   os  

realistas   ingênuos,  mas   representações  mentais  desses  objetos.  Aquilo  que  nos  é  direta  ou  

imediatamente  dado  na  percepção  são  ideias  que  existem  apenas  na  mente  (embora  possam  

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representar   objetos   externos).   Vou   chamar   essa   teoria   da   percepção   de  

"representacionalismo"  (15).    

Essa   teoria   da   percepção   é   baseada   na  metafísica   cartesiana,   i.e.,   na   teoria   da  mente   e   da  

realidade   externa   que   Descartes   advoga.   Para   ele,   a  mente   é   uma   substância   ou   entidade,  

caracterizada   fundamentalmente  pelo   fato  de   ter   consciência,   de   ser  uma   coisa  que  pensa,  

que  percebe,  que  sente  (res  cogitans).  A  realidade  externa  é  material,  e  a  matéria  tem  como  

característica  básica  o   fato  de   ser   extensa   (res   extensa).   Consciência   e   extensão   são   coisas  

claramente   distintas,   podendo   cada   uma   delas   ser   clara   e   distintamente   concebida   sem  

referência  à  outra.  Os  vários  estados  de  consciência  (pensamento,  sensação,  sentimento)  são  

totalmente  distintos  dos  vários  modos  de  determinação  da  matéria.  Por  isso,  nenhum  estado  

de  consciência  pode  ser  essencialmente  dependente  de  qualquer  coisa  física.  A  mente,  e  tudo  

que  ela  possui,  pode  existir  sem  qualquer  substância  material  (16).    

Essa  metafísica  radicalmente  dualista  tem  sérias  implicações  epistemológicas.  Afirmar  que  a  

consciência   é   um   atributo   intrínseco   de   uma   substância   é   negar   que   a   consciência   seja  

relacional,   isto  é,  é  negar  que  a  consciência  se  constitua  através  da  relação  com  algo  que  é  

diferente  dela  própria,  a  saber,  a  realidade  externa.  Por  causa  disso,  é  inteiramente  possível,  

para   Descartes,   que   tenhamos   exatamente   as   mesmas   experiências   que   temos   e   que   não  

exista   nada,   fora   de   nossa   própria   mente,   que   seja   responsável   pelos   nossos   estados   de  

consciência.   Os   estados   de   consciência   da   mente   dependem   apenas   da   própria   mente,   de  

nada  mais  (17).    

É  por  isso  que  Descartes  consegue  duvidar  da  existência  de  um  mundo  exterior  sem  duvidar  

da   existência   de   seus   estados   de   consciência   -­‐-­‐   porque   consciência,   para   ele,   não   é  

consciência  de  algo  diferente  dela  mesma.    

Note-­‐se  que  a  consciência,  para  Descartes,  tem  objetos,  é  consciência  de  alguma  coisa,  mas  os  

objetos  da  consciência  são  mentais,  e,  no  fundo,  não  se  distinguem  dela  mesma.  Uma  ideia  é,  

para   Descartes,   um   objeto   da   consciência   mas   também,   ao   mesmo   tempo,   um   estado   da  

consciência  (18).    

Se  essa   teoria  parece  difícil  de  entender,  usemos,  para  entendê-­‐la,   a  analogia  proposta  por  

David  Kelly.  Imaginemos  que  a  mente  seja  como  um  projetor  de  cinema.  O  facho  de  luz  que  

ele  projeta  é  um  atributo  essencial  do  projetor:  sem  ele  não  haveria  projetor  (o  facho  de  luz  é  

análogo  à  consciência).  Os  objetos  na  tela  são  os  objetos  da  consciência.  Contudo,  o  projetor  

não  é  uma   lanterna  que   ilumina  objetos   independentes  da   lanterna.  O  projetor  contém  um  

facho  de  luz  (a  consciência)  que  cria  e  constitui  as  imagens  que  ele  ilumina:  os  objetos  na  tela  

existem  apenas  "na"  luz  -­‐-­‐  se  ela  se  apagar  eles  deixam  de  existir  (19).    

 

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17.  O  Ceticismo  de  Descartes    

Do  que  foi  dito  fica  claro  que  Descartes  é  um  cético  -­‐-­‐  mas  por  razões  outras  do  que  as  que  

ele  invocou  para  a  sua  dúvida.  Ele  é  cético  porque  sua  epistemologia,  em  especial  sua  teoria  

da  percepção,  o  leva  a  negar  que  tenhamos  conhecimento  do  mundo  externo  -­‐-­‐  a  menos  que  

se  invoquem  hipóteses  auxiliares  de  fundamentação  muito  duvidosa,  como  a  da  existência  de  

Deus.  Para  Descartes,  a  única  forma  de  garantir  que  a  nossas  ideias  corresponde  um  mundo  

lá  fora  é  o  suposto  fato  de  que  Deus  existe  e  que,  sendo  perfeitamente  bom,  não  permitiria  

que   nos   enganássemos   sobre   algo   tão   fundamental   como   a   existência   do  mundo   exterior.  

Elimine-­‐se   a   hipótese   de   Deus   e   Descartes   se   torna   o   cético   mais   radical   em   relação   ao  

conhecimento  empírico.    

Notas:    

1.  Assim  chamada  porque  se  desenvolveu  na  Academia  Platônica  do  século  III  AC.  Cf.  Popkin,  

ix.  Afirma  Popkin:  "O  alvo  do  filósofo  cético  Acadêmico  era  mostrar,  através  de  uma  série  de  

argumentos  e  quebra-­‐cabeças  dialéticos,  que  o  filósofo  Dogmático  (i.e.,  aquele  que  afirmava  

que   ele   tinha   conhecimento   de   alguma   verdade   acerca   da   real   natureza   das   coisas)   não  

poderia  saber,  com  certeza  absoluta,  o  que  dizia  saber.  Os  Acadêmicos  formulavam  uma  série  

de  dificuldades  para  mostrar  que  as  informações  que  obtemos  através  dos  sentidos  não  são  

confiáveis,  que  não  podemos  ter  certeza  de  que  nossos  raciocínios  são  confiáveis,  e  que  não  

possuímos  um  critério  ou  padrão  seguro  que  nos  permita  distinguir  o  verdadeiro  do  falso".    

2.  Assim  chamada  porque  foi  primeiro  apresentada  por  Pirro  de  Elis,  que  viveu  por  volta  de  

315   a   225   AC.   Cf.   Popkin,   x.   Afirma   Popkin:   "Os   pirrônicos   consideravam   que   tanto   os  

Dogmáticos   como   os   Acadêmicos   afirmavam   demais,   um   grupo   dizendo   'Algo   pode   ser  

conhecido",  o  outro  dizendo  "Nada  se  pode  saber".  Em  lugar  disso,  os  Pirrônicos  propunham  

a   suspensão   do   juízo   sobre   todas   as   questões   em   relação   às   quais   parece   haver   evidência  

conflitante,  incluindo  a  questão  se  há  ou  não  há  conhecimento".    

3.  Nenhum  exemplo  de  enganos  dos  sentidos  é  fornecido  na  primeira  Meditação.  No  Discurso  

e   na   sexta   Meditação,   porém,   Descartes   menciona   uma   série   de   exemplos   bastante  

conhecidos  e  sempre   invocados  na   literatura  cética:  uma   torre  quadrada  parece  redonda  à  

distância,   estátuas   altas   parecem   pequenas   à   distância,   estrelas   distantes   parecem   muito  

menores  do  que  são,  pessoas  que   tiverem  membros  amputados  ainda  sentem  dor  no   lugar  

em   que   os   membros   não   mais   se   encontram.   Registre-­‐se   que   os   exemplos   dados   por  

Descartes   envolvem   geralmente   o   que   veio   a   ser   chamado   (a   partir   de   Locke)   qualidades  

secundárias,  e  não  as  qualidades  primárias,  que  também  Descartes  acreditava  existir  apenas  

na  mente.  Cf  (Kenny,  25-­‐28).    

4.  Cf.  Kenny,  29ff    

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5.   Na   verdade,   Descartes   nega   que   é   uma   experiência   sensorial   que   corrige   a   outra:   ele  

afirma  que  é  o   intelecto,  com  base  em  outras   impressões  sensoriais,  que  faz  a  correção.  Ao  

enfiar  um  pauzinho  na  água,  percebo,  pelo  meu  sentido  de  visão,  que  o  pauzinho  fica  torto.  

Meu  sentido  de  tato,  contudo,  mostra  que  o  pauzinho  não  está  torto.  Só  os  sentidos  não  me  

permitem  adjudicar  entre  essas  impressões  sensoriais  conflitantes.  É  o  intelecto  que  me  leva  

a,  neste  caso,  optar  pelo  impressão  produzida  pelo  tato.  Cf.  Kenny,  26).    

6.   Alguns   críticos   de  Descartes   têm   apontado   que   ele   não   precisaria   da   hipótese   do   gênio  

maligno   para   colocar   em   dúvida   enunciados   matemáticos.   Bastaria   que   ele   invocasse   a  

possibilidade   de   que,   em   sonho,   tenhamos   uma   apreensão   clara   e   distinta   de   que   (por  

exemplo)   dois   e   três   são   seis.   Descartes   procurou   rebater   esse   argumento   afirmando   que,  

num  caso  como  esse,  o  sonhador  apenas  pensaria  estar  tendo  uma  apreensão  clara  e  distinta,  

mas   que   na   verdade   não   a   estaria   tendo.   Mas   essa   resposta   é   inadequada,   no   contexto,  

porque  ela  poderia   ser  aplicada   também  a  percepções   sensoriais.  Por  que  não  afirmar,   em  

relação  à  pessoa  que  em  sonho  percebe  estar  ao   lado  da   lareira,  etc.,  que  ela  apenas  pensa  

estar   percebendo,   mas   na   realidade   não   está.   O   argumento   do   sonho,   como   bem   aponta  

Kenny  (33-­‐34),  ou  é  insuficiente  para  questionar  percepções  presentes,  ou  então  é  suficiente  

para  questionar  também  a  matemática  (dispensando  a  hipótese  do  gênio  maligno).    

7.  Erro  em  relação  a  enunciados  matemáticos  e  à  percepção  parece  ser  tão  difícil  que  nada  

menos  do  que  onipotência  parece  ser  necessário  para  perpetrá-­‐lo.  Cf.  Kenny,  34.    

8.  Muitos   autores   têm   apontado   que   a   dúvida   de   Descartes   não   foi   tão   radical   quanto   ele  

pretende.   Se   ele   acreditava   que   os   sentidos   o   haviam   enganado   algumas   vezes,   ou   que  

matemáticos   às   vezes   erram   em   seus   raciocínios,   então   ele   deve   estar   confiando   em   sua  

memória,   ou   na   experiência   subsequente   de   constatar   o   erro.   Talvez,   para   se   sair   dessa  

constatação,   ele  pudesse  dizer  que   está   apenas   invocando   relatos   contraditórios   acerca  de  

experiências  sensoriais  ou  de  cálculos  matemáticos.  Mas  mesmo  assim,  ele  continuaria  não  

colocando   em   dúvida   o   princípio   da   não-­‐contradição,   que   afirma   que   contraditórios   não  

podem   ambos   verdadeiros.   Esse   princípio   Descartes   não   questiona   nem   mesmo   com   a  

hipótese   do   gênio  maligno,   e   Descartes   parece   ter   acreditado   que   era   impossível   duvidar  

dele.  Descartes   também  não  duvida  de  que  ele  conhece  o  sentido  das  palavras  que  ele  usa,  

que   ele   sabe   o   que   é   pensamento,   certeza,   dúvida,   verdade,   existência   (Cf.   HR,   I,   222)   (Cf.  

Kenny,  20-­‐21,  26-­‐27,  50).  Leibniz   reclama  que  Descartes  deveria   ter   fornecido  critérios  de  

clareza   e  distinção   se   realmente  pretendia  que   esses   conceitos   servissem  como  marcas  da  

verdade.  Doney,  251,  Popkin,  SED  (?),  205    

9.  Quando  me  refiro  ao  "cogito",  entre  aspas,  como  no  título  da  presente  seção,  refiro-­‐me  a  

todo  o  argumento  que  culmina  na  expressão  "Cogito,  ergo  sum".    

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10.  É  questionável,   como  se  verá  adiante,  que  o  que  aqui   se   apresenta   seja  um  argumento  

dedutivo   (o   que   Descartes   chama   de   um   "silogismo"),   no   sentido   estrito   da   expressão.   Se  

fosse,  estaria  faltando  a  premissa  maior,  a  saber:  "Se  penso,  existo"  -­‐-­‐  que  exprime  a  ideia  de  

que,  para  pensar,  é  preciso  existir.  Descartes  reconhece   isso  e  considera  essa  premissa   tão  

óbvia  a  ponto  de  dispensar  explicitação.  Cf  Kenny,  50ff    

11.   Cf  Malcom,   "Descartes'   Proof   that   his   Essence   is   Thinking";   cp   article   in   APQ,   1972   or  

1973,  sobre  o  mesmo  tópico,  Check  Yandell/Weinberg,  intro  to  section  on  dualism    

12.  Cf  "Clearness  and  Distinctness  in  Descartes",  in  Doney,  p.250.  Para  que  clareza  e  distinção  

fossem   critérios   de   verdade   certa   seria   necessário   que   tivéssemos   critérios   de   clareza   e  

distinção,  que  não  temos.    

13.  A  intuição,  no  caso,  não  se  aplica  apenas  à  conclusão  de  que  ele  existe,  mas  ao  fato  de  que  

em   pensando   ele   sabe   que   existe.   Nem   é   legítimo   afirmar   que   Descartes   reivindica   ser  

possível  intuir  sua  existência.  O  objeto  da  intuição  é  a  inferência  de  que  ele  existe  a  partir  do  

dado   de   que   ele   pensa,   embora   nas   Regulae   Descartes   afirme   que   é   possível   intuir   a  

existência,   sem   referência   ao   pensamento.   Mas   as   Regulae   foram   escritas   antes   das  

formulações  mais  cuidadosas  do  "cogito"  (Kenny,  51-­‐55).    

14.   Obviamente,   ao   usar   o   termo   "prova",   mesmo   sem   aspas,   não   estou   pré-­‐julgando   a  

validade  dos  argumentos  de  Descartes.  Uso  o  termo  com  aspas,  ou  qualificado  por  "suposta",  

"pretensa",  etc.,  tornaria  o  texto  por  demais  pesado.  Por  isso  prefiro  usar  a  terminologia  que  

Descartes,  que  sem  dúvida  estava  convencido  da  validade  de  seus  argumentos,  utilizou.    

15.   Cf.  David  Kelly,   The  Evidence   of   the   Senses:  A  Realist   Theory   of   Perception   (Louisiana  

State  University  Press,  Baton  Rouge,  1986),  p.10.    

16.  Cf.  David  Kelly,  op.cit.,  p.11.    

17.  Cf.  David  Kelly,  op.cit.,  p.11.    

18.  Cf.  David  Kelly,  op.cit.,  p.11.    

19.  Cf.  David  Kelly,  op.cit.,  p.12.    

(*)  Este  trabalho  consiste  basicamente  de  notas  de  aula  e,  portanto,  não  deve  ser  julgado  com  

o  mesmo  rigor  que  se  julga  um  artigo  publicado  ou  um  paper.    

©  Copyright  by  Eduardo  Chaves    

 

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A  máquina  do  mundo  newtoniana4  

 

A  visão  do  mundo  e  o  sistema  de  valores  que  estão  na  base  de  nossa  cultura,  e  que  

têm  de  ser  cuidadosamente  reexaminados,  foram  formulados  em  suas  linhas  essenciais  nos  

séculos   XVI   e   XVII.   Entre   1500   e   1700   houve   uma  mudança   drástica   na  maneira   como   as  

pessoas  descreviam  o  mundo  e  em  todo  o  seu  modo  de  pensar.  A  nova  mentalidade  e  a  nova  

percepção   do   cosmo   propiciaram   à   nossa   civilização   ocidental   aqueles   aspectos   que   são  

característicos  da  era  moderna.  Eles  tornaram-­‐se  a  base  do  paradigma  que  dominou  a  nossa  

cultura  nos  últimos  trezentos  anos  e  está  agora  prestes  a  mudar.  

Antes  de  1500,  a  visão  do  mundo  dominante  na  Europa,  assim  como  na  maioria  das  

outras   civilizações,   era  orgânica.  As  pessoas   viviam  em  comunidades  pequenas   e   coesas,   e  

vivenciavam   a   natureza   em   termos   de   relações   orgânicas,   caracterizadas   pela  

interdependência   dos   fenômenos   espirituais   e   materiais   e   pela   subordinação   de  

necessidades   individuais   às   da   comunidade.   A   estrutura   científica   dessa   visão   de   mundo  

orgânica   assentava   em   duas   autoridades:   Arist6teles   e   a   Igreja.   No   século   XIII,   Tomás   de  

Aquino  combinou  o  abrangente  sistema  da  natureza  de  Aristóteles  com  a  teologia  e  a  ética  

cristãs   e,   assim   fazendo,   estabeleceu   a   estrutura   conceitual   que   permaneceu   inconteste  

durante  toda  a  Idade  Média.  A  natureza  da  ciência  medieval  era  muito  diferente  daquela  da  

ciência   contemporânea.   Baseava-­‐se   na   razão   e   na   fé,   e   sua   principal   finalidade   era  

compreender  o   significado  das  coisas  e  não  exercer  a  predição  ou  o  controle.  Os  cientistas  

medievais,   investigando   os   desígnios   sub   jacentes   nos   vários   fenômenos   naturais,  

consideravam   do  mais   alto   significado   as   questões   referentes   a   Deus,   à   alma   humana   e   à  

ética.  

A  perspectiva  medieval  mudou  radicalmente  nos  séculos  XVI  e  XVII.  A  noção  de  um  

universo  orgânico,  vivo  e  espiritual   foi   substituída  pela  noção  do  mundo  como  se  ele   fosse  

uma  máquina,  e  a  máquina  do  mundo  converteu-­‐se  na  metáfora  dominante  da  era  moderna.  

Esse   desenvolvimento   foi   ocasionado   por   mudanças   revolucionárias   na   física   e   na  

astronomia,  culminando  nas  realizações  de  Copérnico,  Galileu  e  Newton.  A  ciência  do  século  

XVII   baseou-­‐se   num   novo   método   de   investigação,   defendido   vigorosamente   por   Francis  

Bacon,  o  qual  envolvia  a  descrição  matemática  da  natureza  e  o  método  analítico  de  raciocínio  

concebido  pelo  gênio  de  Descartes.  Reconhecendo  o  papel  crucial  da  ciência  na  concretização  

dessas  importantes  mudanças,  os  historiadores  chamaram  os  séculos  XVI  e  XVII  de  a  Idade  

da  Revolução  Científica.  

A   revolução   científica   começou   com   Nicolau   Copérnico,   que   se   opôs   à   concepção  

geocêntrica  de  Ptolomeu  e  da  Bíblia,  que  tinha  sido  aceita  como  dogma  por  mais  de  mil  anos.  

4CAPRA, Fritjof. O Ponto de Mutação. São Paulo : Editora Cultrix, 2002;

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Depois  de  Copérnico,  a  Terra  deixou  de  ser  o  centro  do  universo  para  tornar-­‐se  meramente  

um  dos  muitos  planetas  que  circundam  um  astro  secundário  nas  fronteiras  da  galáxia;  e  ao  

homem   foi   tirada   sua   orgulhosa   posição   de   figura   central   da   criação   de   Deus.   Copérnico  

estava   plenamente   cônscio   de   que   sua   teoria   ofenderia   profundamente   a   consciência  

religiosa  de  seu   tempo;  ele   retardou  sua  publicação  até  1543,  ano  de  sua  morte,   e,  mesmo  

assim,  apresentou  a  concepção  heliocêntrica  como  mera  hipótese.  

A   Copérnico   seguiu-­‐se   Johannes   Kepler,   cientista   e  místico   que   se   empenhava   em  

descobrir  a  harmonia  das  esferas,  e  terminou  por  formular,  através  de  um  trabalho  laborioso  

com   tabelas   astronômicas,   suas   célebres   leis   empíricas   do  movimento   planetário,   as   quais  

vieram  corroborar  o  sistema  de  Copérnico.  Mas  a  verdadeira  mudança  na  opinião  científica  

foi  provocada  por  Galileu  Galilei,  que  já  era  famoso  por  ter  descoberto  as  leis  da  queda  dos  

corpos   quando   voltou   sua   atenção   para   a   astronomia.   Ao   dirigir   o   recém-­‐inventado  

telescópio   para   os   céus   e   aplicar   seu   extraordinário   talento   na   observação   científica   dos  

fenômenos   celestes,   Galileu   fez   com   que   a   velha   cosmologia   fosse   superada,   sem   deixar  

margem  para  dúvidas,  e  estabeleceu  a  hipótese  de  Copérnico  como  teoria  científica  válida.  

O   papel   de   Galileu   na   revolução   científica   supera   largamente   suas   realizações   no  

campo  da  astronomia,  embora  estas  sejam  mais  conhecidas  por  causa  de  seu  conflito  com  a  

Igreja.  Galileu  foi  o  primeiro  a  combinar  a  experimentação  científica  com  o  uso  da  linguagem  

matemática  para  formular  as  leis  da  natureza  por  ele  descobertas;  é,  portanto,  considerado  o  

pai   da   ciência  moderna.   “A   filosofia   *“,   acreditava   ele,   “está   escrita   nesse   grande   livro   que  

permanece   sempre   aberto   diante   de   nossos   olhos;   mas   não   podemos   entendê-­‐la   se   não  

aprendermos  primeiro  a  linguagem  e  os  caracteres  em  que  ela  foi  escrita.  Essa  linguagem  é  a  

matemática,  e  os  caracteres  são  triângulos,  círculos  e  outras  figuras  geométricas.”  1  Os  dois  

aspectos  pioneiros  do  trabalho  de  Galileu  —  a  abordagem  empírica  e  o  uso  de  uma  descrição  

matemática  da  natureza  —  tornaram-­‐se  as  características  dominantes  da  ciência  no  século  

XVII  e  subsistiram  como  importantes  critérios  das  teorias  científicas  até  hoje.  

A   fim   de   possibilitar   aos   cientistas   descreverem   matemática.   mente   a   natureza,  

Galileu  postulou  que  eles  deveriam  restringir-­‐se  ao  estudo  das  propriedades  essenciais  dos  

corpos  materiais  —   for  mas,   quantidades   e  movimento  —,   as  quais  podiam  ser  medidas   e  

qualificadas.   Outras   propriedades,   como   som,   cor,   sabor   ou   cheiro,   eram   meramente  

projeções   mentais   subjetivas   que   deveriam   ser   excluídas   do   domínio   da   ciência   2•   A  

estratégia  de  Galileu  de  dirigir  a  atenção  do  cientista  para  as  propriedades  quantificáveis  da  

matéria  foi  extremamente  bem  sucedida  em  toda  a  ciência  moderna,  mas  também  exigiu  um  

pesado  ônus,  como  nos  recorda  enfaticamente  o  psiquiatra  R.  D.  Laing:  “Perderam-­‐se  a  visão,  

o  som,  o  gosto,  o  tato  e  o  olfato,  e  com  eles  foram-­‐se  também  a  sensibilidade  estética  e  ética,  

os   valores,   a   qualidade,   a   forma;   todos   os   senti   mentos,   motivos,   intenções,   a   alma,   a  

consciência,  o  espírito.  A  experiência  como  tal  foi  expulsa  do  domínio  do  discurso  científico”  .  

Segundo  Laing,  nada  mudou  mais  o  nosso  mundo  nos  últimos  quatrocentos  anos  do  que  a  

obsessão  dos  cientistas  pela  medição  e  pela  quantificação.  

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Enquanto   Galileu   realizava   engenhosos   experimentos   na   Itália,   Francis   Bacon  

descrevia  explicitamente  na  Inglaterra  o  método  empírico  da  ciência.  Bacon  foi  o  primeiro  a  

formular  uma  teoria  clara  do  procedimento  indutivo  —  realizar  experimentos  e  extrair  deles  

conclusões  gerais,  a  serem  testadas  por  novos  experimentos  —,  e   tornou-­‐se  extremamente  

influente  ao  defender  com  vigor  o  novo  método.  Atacou  frontalmente  as  escolas  tradicionais  

de  pensamento  e  desenvolveu  uma  verdadeira  paixão  pela  experimentação  científica.  

O   “espírito   baconiano”   mudou   profundamente   a   natureza   e   o   objetivo   da  

investigação  científica.  Desde  a  Antiguidade,  os  objetivos  da  ciência  tinham  sido  a  sabedoria,  

a  compreensão  da  ordem  natural  e  a  vida  em  harmonia  com  ela.  A  ciência  era  realizada  “para  

maior  glória  de  Deus”  ou,  como  diziam  os  chineses,  para  “acompanhar  a  ordem  natural   “e”  

fluir   na   corrente  do   tao   “.   Esses   eram  propósitos   yin,   ou   integrativos;  a   atitude  básica  dos  

cientistas   era   ecológica,   como  diríamos  na   linguagem  de  hoje.  No   século  XVII,   essa   atitude  

inverteu-­‐se   totalmente;   passou   de   yin   para   yang,   da   integração   para   a   auto-­‐afirmação.   A  

partir  de  Bacon,  o  objetivo  da  ciência  passou  a  ser  aquele  conhecimento  que  pode  ser  usado  

para   dominar   e   controlar   a   natureza   e,   hoje,   ciência   e   tecnologia   buscam   sobretudo   fins  

profundamente  antiecológicos.  

Os  termos  em  que  Bacon  defendeu  esse  novo  método  empírico  de  investigação  eram  

não   só   apaixonados  mas,   com   frequência,   francamente   rancorosos.   A   natureza,   na   opinião  

dele,   tinha   que   ser   “acossada   em   seus   descaminhos”,   “obrigada   a   servir”   e   “escraviza   da”.  

Devia   ser,   “reduzida   à   obediência”,   e   o   objetivo   do   cientista   era   “extrair   da   natureza,   sob  

tortura,   todos   os   seus   segredos”   .   Muitas   dessas   imagens   violentas   parecem   ter   sido  

inspiradas  pelos   julgamentos  de  bruxas  que  eram   frequentemente   realizados  no   tempo  de  

Bacon.   Como   chanceler   da   coroa   no   reinado   de   Jaime   1,   Bacon   estava   intimamente  

familiarizado   com   tais   denúncias   e   libelos;   e,   como   a   natureza   era   comumente   vista   como  

fêmea,  não  deve  causar  surpresa  o  fato  de  ele  ter  transferido  as  metáforas  usadas  no  tribunal  

para   os   seus   escritos   científicos.   De   fato,   sua   ideia   da   natureza   como   uma   mulher   cujos  

segredos  têm  que  ser  arrancados  mediante  tortura,  com  a  ajuda  de  instrumentos  mecânicos,  

sugere  fortemente  a  tortura  generalizada  de  mulheres  nos  julgamentos  de  bruxas  do  começo  

do   século   XVII   .   A   obra   de   Bacon   representa,   por   um   notável   exemplo   da   influência   das  

atitudes  patriarcais  sobre  o  pensamento  científico.  

O  antigo  conceito  da  Terra  como  mãe  nutriente  foi  radical-­‐  mente  transformado  nos  

escritos   de   Bacon   e   desapareceu   por   completo   quando   a   revolução   científica   tratou   de  

substituir   a   concepção  orgânica  da  natureza  pela  metáfora  do  mundo  como  máquina.  Essa  

mudança,  que  viria  a  ser  de  suprema   importância  para  o  desenvolvimento  subsequente  da  

civilização  ocidental,   foi   iniciada  e  completada  por  duas   figuras  gigantescas  do  século  XVII:  

Descartes  e  Newton.  

René  Descartes  é  usualmente  considerado  o  fundador  da  filosofia  moderna.  Era  um  

brilhante   matemático,   e   sua   perspectiva   filosófica   foi   profundamente   afetada   pelas   novas  

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física   e   astronomia.   Ele   não   aceitava   qualquer   conhecimento   tradicional,   propondo-­‐se   a  

construir   um   novo   sistema   de   pensamento.   De   acordo   com   Bertrand   Russell,   “isso   não  

acontecia   desde   Aristóteles,   e   constitui   um   sinal   da   nova   autoconfiança   que   resultou   do  

progresso   da   ciência.  Há   em   sua   obra   um   frescor   que   não   se   encontra   em  qualquer   outro  

filósofo  eminente  anterior,  desde  Platão”  .  

Aos  23  anos  de  idade,  Descartes  teve  uma  visão  iluminadora  que  iria  moldar  toda  a  

sua   vida   .   Após   muitas   horas   de   intensa   concentração,   durante   as   quais   reviu  

sistematicamente  todo  o  conhecimento  que  tinha  acumulado,  percebeu,  num  súbito  lampejo  

de   intuição,  os  “alicerces  de  uma  ciência  maravilhosa”  que  prometia  a  unificação  de   todo  o  

saber.   Essa   intuição   tinha   sido   prenunciada   numa   carta   dirigida   a   um   amigo,   na   qual  

Descartes  anunciou  seu  ambicioso  objetivo:  “E  assim,  para  nada  esconder  de  vós  acerca  da  

natureza  de  meu  trabalho,  gostaria  de  tornar  público  (.  .  .)  uma  ciência  completamente  nova  

que  resolveria  em  geral  todas  as  questões  de  quantidade,  contínua  ou  descontínua”  .  Em  sua  

visão,  Descartes  percebeu  como  poderia  concretizar  esse  plano.  Visualizou  um  método  que  

lhe   permitiria   construir   uma   completa   ciência   da   natureza,   acerca   da   qual   poderia   ter  

absoluta  certeza;  uma  ciência  baseada,  como  a  matemática,  em  princípios  fundamentais  que  

dispensam  demonstração.  Essa  revelação  impressionou-­‐o  muito.  Descartes  sentiu  ter  feito  a  

suprema  descoberta  de  sua  vida  e  não  duvidou  de  que  sua  visão  resultara  de  uma  inspiração  

divina.  Essa  convicção  foi  reforçada  por  um  sonho  extraordinário  na  noite  seguinte,  no  qual  a  

nova  ciência  lhe  foi  apresentada  de  forma  simbólica.  Descartes  teve  certeza  de  que  Deus  lhe  

apontava  uma  missão  e  dedicou-­‐se  à  construção  de  uma  nova  filosofia  científica.  

A   visão   de   Descartes   despertou   nele   a   firme   crença   na   certeza   do   conhecimento  

científico;  sua  vocação  na  vida  passou  a  ser  distinguir  a  verdade  do  erro  em  todos  os  campos  

do   saber.   “Toda   ciência   é   conhecimento   certo   e   evidente”,   escreveu   ele.   “Rejeitamos   todo  

conhecimento  que  é  meramente  provável  e  consideramos  que  só  se  deve  acreditar  naquelas  

coisas  que  são  perfeitamente  conhecidas  e  sobre  as  quais  não  pode  haver  dúvidas.”    

A   crença   na   certeza   do   conhecimento   científico   está   na   própria   base   da   filosofia  

cartesiana   e   na   visão   de   mundo   dela   derivada,   e   foi   aí,   nessa   premissa   essencial,   que  

Descartes  errou.  A   física  do  século  XX  mostrou-­‐nos  de  maneira  convincente  que  não  existe  

verdade  absoluta  em  ciência,  que  todos  os  conceitos  e  teorias  são  limitados  e  aproximados.  A  

crença   cartesiana   na   verdade   científica   é,   ainda   hoje,   muito   difundida   e   reflete-­‐se   no  

cientificismo   que   se   tornou   típico   de   nossa   cultura   ocidental.   Muitas   pessoas   em   nossa  

sociedade,  tanto  cientistas  como  não-­‐cientistas,  estão  convencidas  de  que  o  método  científico  

é  o  único  meio  válido  de  compreensão  do  universo.  O  método  de  pensamento  de  Descartes  e  

sua  concepção  da  natureza   influenciaram  todos  os   ramos  da  ciência  moderna  e  podem  ser  

ainda  hoje  muito  úteis.  Mas  só  o  serão  se  suas  limitações  forem  reconhecidas.  A  aceitação  do  

ponto  de   vista   cartesiano   como  verdade   absoluta   e   do  método  de  Descartes   como  o  único  

meio   válido   para   se   chegar   ao   conhecimento   desempenhou   um   importante   papel   na  

instauração  de  nosso  atual  desequilíbrio  cultural.  

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A  certeza  cartesiana  é  matemática  em  sua  natureza  essencial.  Descartes  acreditava  

que   a   chave   para   a   compreensão   do   universo   era   a   sua   estrutura   matemática;   para   ele,  

ciência   era   sinônimo  de  matemática.   Assim,   ele   escreveu,   a   respeito   das   propriedades   dos  

objetos  físicos:  “Não  admito  como  verdadeiro  õ  que  não  possa  ser  deduzido,  com  a  clareza  de  

uma  demonstração  matemática,   de  noções   comuns  de   cuja   verdade  não  podemos  duvidar.  

Como  todos  os  fenômenos  da  natureza  podem  ser  explicados  desse  modo,  penso  que  não  há  

necessidade  de  admitir  outros  princípios  da  física,  nem  que  sejam  desejáveis”    

Tal  como  Galileu,  Descartes  acreditava  que  a  linguagem  da  natureza  —  “esse  grande  

livro  que  está  permanentemente  aberto  ante  nossos  olhos”  —  era  matemática,  e  seu  desejo  

de   descrever   a   natureza   em   termos   matemáticos   levou-­‐o   à   sua   mais   célebre   descoberta.  

Mediante   a   aplicação   de   relações   numéricas   a   figuras   geométricas,   ele   pôde   correlacionar  

álgebra   e   geometria   e,   assim   fazendo,   estabeleceu   um   novo   ramo   da   matemática,   hoje  

conhecido   como   geometria   analítica.   Esta   incluiu   a   representação   de   curvas   por   meio   de  

equações  algébricas  cujas  soluções  estudou  de  modo  sistemático.  O  novo  método  permitiu  a  

Descartes   aplicar   um   tipo   muito   geral   de   análise   matemática   ao   estudo   de   corpos   em  

movimento,  de  acordo  com  o  seu  grandioso  plano  de  redução  de  todos  os  fenômenos  físicos  

a  relações  matemáticas  exatas.  Assim,  ele  pôde  afirmar,  com  grande  orgulho:  “Toda  a  minha  

física  nada  mais  é  do  que  geometria”    

O  gênio  de  Descartes  era  o  de  um  matemático,  e   isso   também  se  evidencia  em  sua  

filosofia.  Para  executar  seu  plano  de  construção  de  uma  ciência  natural  completa  e  exata,  ele  

desenvolveu   um   novo   método   de   raciocínio   que   apresentou   em   seu   mais   famoso   livro,  

Discurso   do   método.   Embora   essa   obra   tenha   se   tornado   um   dos   grandes   clássicos   da  

filosofia,  sua  proposição  original  não  era  ensinar  filosofia,  mas  sim  um  método  que  servisse  

de  introdução  à  ciência.  O  método  de  Descartes  tinha  por  finalidade  apontar  o  caminho  para  

se   chegar   à   verdade   científica,   como   fica   evidente  no   título   completo  do   livro,  Discurso  do  

método  para  bem  conduzir  a  razão  e  procurar  a  verdade  nas  ciências.  

O  ponto  fundamental  do  método  de  Descartes  é  a  dúvida.  Ele  duvida  de  tudo  o  que  

pode  submeter  à  dúvida  —  todo  o  conhecimento  tradicional,  as  impressões  de  seus  sentidos  

e  até  o  fato  de  ter  um  corpo  —,  e  chega  a  uma  coisa  de  que  não  pode  duvidar,  a  existência  de  

si  mesmo  como  pensador.  Assim  chegou  à  sua  famosa  afirmação  “Cogito,  ergo  sum”,  “Penso,  

logo   existo”.   Daí   deduziu   Descartes   que   a   essência   da   natureza   humana   reside   no  

pensamento,  e  que  todas  as  coisas  que  concebemos  clara  e  distintamente  são  verdadeiras.  À  

tal   concepção   clara   e   distinta  —   “a   concepção   da  mente   pura   e   atenta”   13  —   chamou   ele  

“intuição”,   afirmando   que   “não   existem   outros   caminhos   ao   alcance   do   homem   para   o  

conhecimento   certo   da   verdade,   exceto   a   intuição   evidente   e   a   necessária   dedução”   O  

conhecimento   certo,   portanto,   é   obtido   através   da   intuição   e   da   dedução,   e   essas   são   as  

ferramentas   que   Descartes   usa   em   sua   tentativa   de   reconstrução   do   edifício   do  

conhecimento  sobre  sólidos  alicerces.  

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O  método  de  Descartes  é  analítico.  Consiste  em  decompor  pensamentos  e  problemas  

em  suas  partes  componentes  e  em  dispô-­‐las  em  sua  ordem  lógica.  Esse  método  analítico  de  

raciocínio   é   provavelmente   a   maior   contribuição   de   Descartes   à   ciência.   Tornou-­‐se   uma  

característica  essencial  do  moderno  pensamento  científico  e  provou  ser  extremamente  útil  

no   desenvolvimento   de   teorias   científicas   e   na   concretização   de   complexos   projetos  

tecnológicos.  Foi  o  método  de  Descartes  que  tornou  possível  à  NASA  levar  o  homem  à  Lua.  

Por   outro   lado,   a   excessiva   ênfase   dada   ao   método   cartesiano   levou   à   fragmentação  

característica  do  nosso  pensamento  em  geral  e  das  nossas  disciplinas  acadêmicas,  e  levou  à  

atitude  generalizada  de  reducionismo  na  ciência  —  a  crença  em  que  todos  os  aspectos  dos  

fenômenos  complexos  podem  ser  compreendidos  se  reduzidos  às  suas  partes  constituintes.  

O  cogito  cartesiano,  como  passou  a  ser  chamado,  fez  com  que  Descartes  privilegiasse  

a   mente   em   relação   à   matéria   e   levou-­‐o   à   conclusão   de   que   as   duas   eram   separadas   e  

fundamentalmente  diferentes.  Assim,  ele  afirmou  que  “não  há  nada  no  conceito  de  corpo  que  

pertença   à  mente,   e   nada   na   ideia   de  mente   que   pertença   ao   corpo”   A   divisão   cartesiana  

entre   matéria   e   mente   teve   um   efeito   profundo   sobre   o   pensamento   ocidental.   Ela   nos  

ensinou   a   conhecermos   a   nós  mesmos   como   egos   isolados   existentes   “dentro”   dos   nossos  

corpos;   levou-­‐nos   a   atribuir   ao   trabalho  mental  um  valor   superior   ao  do   trabalho  manual;  

habilitou   indústrias   gigantescas   a   venderem   produtos  —   especialmente   para   as  mulheres  

que  nos  proporcionem  o   “corpo   ideal”;   impediu  os  médicos  de   considerarem  seriamente  a  

dimensão   psicológica   das   doenças   e   os   psicoterapeutas   de   lidarem   com   o   corpo   de   seus  

pacientes.  Nas   ciências   humanas,   a   divisão   cartesiana   redundou   em   interminável   confusão  

acerca   da   relação   entre   mente   e   cérebro;   e,   na   física,   tornou   extremamente   difícil   aos  

fundadores   da   teoria   quântica   interpretar   suas   observações   dos   fenômenos   atômicos.  

Segundo   Heisenberg,   que   se   debateu   com   o   problema   durante  muitos   anos,   “essa   divisão  

penetrou  pro  fundamente  no  espírito  humano  nos  três  séculos  que  se  seguiram  a  Descartes,  

e  levará  muito  tempo  para  que  seja  substituída  por  uma  atitude  realmente  diferente  em  face  

do  problema  da  realidade”    

Descartes  baseou  toda  a  sua  concepção  da  natureza  nessa  divisão  fundamental  entre  

dois  domínios  separados  e  independentes:  o  da  mente,  ou  res  cogitans,  a  “coisa  pensante”,  e  o  

da  matéria,   ou   res   extensa,   a   “coisa   extensa”.  Mente   e  matéria   eram   criações   de  Deus,   que  

representava  o  ponto  de  referência  comum  a  ambas  e  era  a  fonte  da  ordem  natural  exata  e  

da  luz  da  razão  que  habilitava  a  mente  humana  a  reconhecer  essa  ordem.  Para  Descartes,  a  

existência  de  Deus  era  essencial  à  sua  filosofia  científica,  mas,  em  séculos  subsequentes,  os  

cientistas   omitiram   qualquer   referência   explícita   a   Deus   e   desenvolveram   suas   teorias   de  

acordo   com  a  divisão   cartesiana,   as   ciências  humanas   c  na   re   cogitans   e   as  naturais,   na   re  

extensa.  

Para  Descartes,  o  universo  material  era  uma  máquina,  nada  além  de  uma  máquina.  

Não   havia   propósito,   vida   ou   espiritualidade   na  matéria.   A   natureza   funcionava   de   acordo  

com  leis  mecânicas,  e  tudo  no  mundo  material  podia  ser  explicado  em  função  da  organização  

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e  do  movimento  de  suas  partes.  Esse  quadro  mecânico  da  natureza   tornou-­‐se  o  paradigma  

dominante  da  ciência  no  período  que  se  seguiu  a  Descartes.  Passou  a  orientar  a  observação  

científica   e   a   formulação   de   todas   as   teorias   dos   fenômenos   naturais,   até   que   a   física   do  

século   XX   ocasionou   uma  mudança   radical.   Toda   a   elaboração   da   ciência  mecanicista   nos  

séculos   XVII,   XVIII   e   XIX,   incluindo   a   grande   síntese   de   Newton,   nada   mais   foi   do   que   o  

desenvolvimento  da  ideia  cartesiana.  Descartes  deu  ao  pensamento  científico  sua  estrutura  

geral   —   a   concepção   da   natureza   como   uma   máquina   perfeita,   governada   por   leis  

matemáticas  exatas.  

A  drástica  mudança  na   imagem  da  natureza,  de  organismo  para  máquina,   teve  um  

poderoso  efeito  sobre  a  atitude  das  pessoas  em  relação  ao  meio  ambiente  natural.  A  visão  de  

mundo   orgânica   da   Idade   Média   implicava   um   sistema   de   valores   que   conduzia   ao  

comportamento  ecológico.  Nas  palavras  de  Carolyn  Merchant:  

“A   imagem   da   terra   como   organismo   vivo   e  mãe   nutriente   serviu   como   restrição  

cultural,   limitando   as   ações   dos   seres   humanos.   Não   se   mata   facilmente   uma   mãe,  

perfurando  suas  entranhas  em  busca  de  ouro  ou  mutilando  seu  corpo.  (...)  Enquanto  a  terra  

fosse  considerada  viva  e  sensível,  seria  uma  violação  do  comportamento  ético  humano  levar  

a  efeito  atos  destrutivos  contra  ela”  17  

Essas  restrições  culturais  desapareceram  quando  ocorreu  a  mecanização  da  ciência.  

A   concepção   cartesiana   do   universo   como   sis   tema   mecânico   forneceu   uma   sanção  

“científica”  para  a  manipulação  e  a  exploração  da  natureza  que  se  tornaram  típicas  da  cultura  

ocidental.  De  fato,  o  próprio  Descartes  compartilhava  do  ponto  de  vista  de  Bacon,  de  que  o  

objetivo   da   ciência   é   o   domínio   e   controle   da   natureza,   afirmando   que   o   conhecimento  

científico  podia  ser  usado  para  “nos  tornarmos  os  senhores  e  dominadores  da  natureza”  is  

Em  sua  tentativa  de  construir  uma  ciência  natural  completa,  Descartes  estendeu  sua  

concepção  mecanicista  da  matéria  aos  organismos  vivos.  Plantas  e  animais  passaram  a  ser  

considerados   simples  máquinas;   os   seres  humanos  eram  habitados  por  uma  alma   racional  

que   estava   ligada   ao   corpo   através  da   glândula   pineal,   no   centro  do   cérebro.  No  que  dizia  

respeito  ao  corpo  humano,  era  in  distinguível  de  um  animal-­‐máquina.  Descartes  explicou  em  

detalhe  como  os  movimentos  e  as  várias  funções  biológicas  do  corpo  podiam  ser  reduzidos  a  

operações   mecânicas,   a   fim   de  mostrar   que   os   organismos   vivos   nada  mais   eram   do   que  

automata.   Ao   fazer   isso,   ele   foi   profundamente   influenciado   pela   preocupação   do   barroco  

seiscentista   com   as   máquinas   engenhosas,   “como   que   dotadas   de   vida   própria”,   que  

deliciavam  as  pessoas  com  a  magia  de  seus  movimentos  aparentemente  espontâneos.  Como  

a  maioria   de   seus   contemporâneos,  Descartes   estava   fascinado   por   esses   autômatos,   e   até  

construiu  alguns.  Era  inevitável  que  acabasse  por  comparar  o  funcionamento  deles  com  o  de  

organismos   vivos.   “Vemos   relógios,   fontes   artificiais,   moinhos   e   outras   máquinas  

semelhantes  que,  embora  meramente   feitas  pelo  homem,   têm,  não  obstante,  o  poder  de  se  

moverem   por   si   mesmas   de   muitas   maneiras   diferentes.   (.   .)   Não   reconheço   qualquer  

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diferença  entre  as  máquinas  feitas  por  artífices  e  os  vários  corpos  que  só  a  natureza  é  capaz  

de  criar.”    

A  fabricação  de  relógios,  em  especial,  atingira  um  alto  grau  de  perfeição  na  época  de  

Descartes;   o   relógio   era,   pois,   um  modelo   privilegiado   para   outras  máquinas   automáticas.  

Descartes  comparou  o  corpo  dos  animais  a  um  “relógio  (...)  composto  (...)  de  rodas  e  molas”  e  

estendeu  essa  comparação  ao  corpo  humano:  “Considero  o  corpo  humano  uma  máquina.  (...)  

Meu  pensamento  (...)  com  para  um  homem  doente  e  um  relógio  mal  fabricado  com  a  ideia  de  

um  homem  saudável  e  um  relógio  bem-­‐feito”.  

A   concepção  de  Descartes   sobre  organismos  vivos   teve  uma   influência  decisiva  no  

desenvolvimento   das   ciências   humanas.   A   cuidadosa   descrição   dos   mecanismos   que  

compõem  os  organismos  vivos  tem  sido  a  principal  tarefa  dos  biólogos,  médicos  e  psicólogos  

nos  últimos  trezentos  anos.  A  abordagem  cartesiana  foi  coroada  de  êxito,  especialmente  na  

biologia,   mas   também   limitou   as   direções   da   pesquisa   científica.   O   problema   é   que   os  

cientistas,   encorajados   por   seu   êxito   em   tratar   os   organismos   vivos   como   má   quinas,  

passaram   a   acreditar   que   estes   nada   mais   são   que   máquinas.   As   consequências   adversas  

dessa  falácia  reducionista  tornaram-­‐se  especialmente  evidentes  na  medicina,  onde  a  adesão  

ao  modelo  cartesiano  do  corpo  humano  como  um  mecanismo  de  relógio  impediu  os  médicos  

de  compreender  muitas  das  mais  importantes  enfermidades  da  atualidade.  

Eis,   pois,   a   “maravilhosa   ciência”   anunciada  por  Descartes.  Usando   seu  método  de  

pensamento  analítico,   ele   tentou  apresentar  uma  descrição  precisa  de   todos  os   fenômenos  

naturais  num  único  sistema  de  princípios  mecânicos.  Sua  ciência  pretendia  ser  completa,  e  o  

conhecimento  que  ofereceu  tinha  a   intenção  de  fornecer  uma  certeza  matemática  absoluta.  

Descartes,  é  claro,  não  pôde  executar  esse  plano  ambicioso,  e  ele  próprio  reconheceu  que  sua  

ciência   era   incompleta.   Mas   seu   método   de   raciocínio   e   as   linhas   gerais   da   teoria   dos  

fenômenos   naturais   que   forneceu   embasaram   o   pensa   mento   científico   ocidental   durante  

três  séculos.  

Hoje,   embora   as   sérias   limitações   da   visão   de   mundo   cartesiana   estejam   ficando  

evidentes  em  todas  as  ciências,  o  método  geral  de  Descartes  de  abordagem  dos  problemas  

intelectuais,   assim   como   sua   clareza   de   pensamento,   continuam   sendo   imensamente  

valiosos.   Isso  me   foi  nitidamente   lembrado  após  uma  conferência  sobre   física  moderna,  na  

qual   enfatizei   as   limitações   da   visão   de   mundo   mecanicista   na   teoria   quântica   e   a  

necessidade   de   superar   essa   visão   em   outros   campos,   quando   uma   ouvinte   francesa   me  

cumprimentou   por   minha.   .   .   “clareza   cartesiana”.   Como   escreveu   Montesquieu   no   século  

XVIII,   “Descartes   ensinou   àqueles   que   vieram   depois   dele   como   descobrir   seus   próprios  

erros”  21,  

Descartes   criou   a   estrutura   conceitual   para   a   ciência   do   século   XVII,   mas   sua  

concepção  da  natureza  como  uma  máquina  perfeita,  governada  por  leis  matemáticas  exatas,  

permaneceu  como  simples  visão  durante  sua  vida.  Ele  não  pôde  fazer  mais  do  que  esboçar  as  

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linhas  gerais  de   sua   teoria  dos   fenômenos  naturais,  O  homem  que  deu   realidade  ao   sonho  

cartesiano   e   completou   a   revolução   científica   foi   Isaac   Newton,   nascido   na   Inglaterra   em  

1642,  ano  da  morte  de  Galileu.  Newton  desenvolveu  uma  completa  formulação  matemática  

da  concepção  mecanicista  da  natureza  e,  portanto,  realizou  uma  grandiosa  síntese  das  obras  

de   Copérnico   e   Kepler,   Bacon,   Galileu   e   Descartes.   A   física   newtoniana,   a   realização  

culminante  da  ciência  seiscentista,   forneceu  uma  consistente   teoria  matemática  do  mundo,  

que  permaneceu  como  sólido  alicerce  do  pensamento  científico  até  boa  parte  do  século  XX.  A  

apreensão  matemática  de  Newton  era  bem  mais  poderosa  do  que  a  de  seus  contemporâneos.  

Ele   criou   um  método   completamente   novo  —   hoje   conhecido   como   cálculo   diferencial  —  

para  descrever  o  movimento  de  corpos  sólidos,  um  método  que  foi  muito  além  das  técnicas  

matemáticas   de   Galileu   e   Descartes.   Esse   enorme   feito   intelectual   foi   considerado   por  

Einstein  “talvez  o  maior  avanço  no  pensamento  que  um  único   indivíduo  teve  alguma  vez  o  

privilégio  de  realizar”    

Kepler   extraía   leis   empíricas   do   movimento   planetário   estudando   tábuas  

astronômicas,   e  Galileu   realizou  engenhosos  experimentos  para  descobrir   as   leis  da  queda  

dos   corpos.   Newton   combinou   essas   duas   descobertas   formulando   as   leis   gerais   do   movi  

mento  que  governam  todos  os  objetos  no  sistema  solar,  das  pedras  aos  planetas.  

Segundo   a   lenda,   o   insight   decisivo   ocorreu   a   Newton   num   súbito   lampejo   de  

inspiração   quando   viu   uma   maçã   cair   de   uma   árvore.   Ele   compreendeu   que   a   maçã   era  

atraída  para  a  Terra  pela  mesma  força  que  atraía  os  planetas  para  o  Sol,  e  assim  descobriu  a  

chave   para   a   sua   grandiosa   síntese.   Empregou   então   seu   novo   método   matemático   para  

formular   as   leis   exatas   do   movimento   para   todos   os   corpos,   sob   a   influência   da   força   da  

gravidade.  A   significação  dessas   leis   reside   em   sua   aplicação  universal.   Comprovou-­‐se  que  

eram   válidas   para   todo   o   sistema   solar;   assim,   pareciam   confirmar   a   visão   cartesiana   da  

natureza.   O   universo   newtoniano   era,   de   fato,   um   gigantesco   sistema   mecânico   que  

funcionava  de  acordo  com  leis  matemáticas  exatas.  

Newton   apresentou   em  detalhes   sua   teoria   do  mundo  nos  Princípios  matemáticos  

de   filosofia  natural,  Os  Principia,   como  a   obra   é  usualmente   chamada  por  uma  questão  de  

brevidade,  de  acordo  com  o  seu  título  latino  original,  compreendem  um  sistema  abrangente  

de   definições,   proposições   e   provas   que   os   cientistas   consideraram  a   descrição   correta   da  

natureza  por  mais  de  duzentos  anos.  Contêm,  ao  mesmo  tempo,  uma  exposição  explícita  do  

método  experimental  de  Newton,  que  ele  considerava  um  procedimento  sistemático  no  qual  

a  descrição  matemática  se  baseia,  passo  a  passo,  para  chegar  à  avaliação  crítica  da  evidência  

experimental:  

“Tudo   o   que   não   é   deduzido   dos   fenômenos   será   chamado   de   hipótese;   e   as  

hipóteses,   sejam   elas   metafísicas   ou   físicas,   sejam   elas   dotadas   de   qualidades   ocultas   ou  

mecânicas,  não  têm  lugar  na  filosofia  experimental.  Nesta  filosofia,  proposições  particulares  

são  inferidas  dos  fenômenos  e  depois  tornadas  gerais  por  indução”.  

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Antes   de   Newton,   duas   tendências   opostas   orientavam   a   ciência   seiscentista:   o  

método   empírico,   indutivo,   representado   por   Bacon,   e   o   método   racional,   dedutivo,  

representado  por  Descartes.  Newton,  em  seus  Principia,  introduziu  a  combinação  apropriada  

de  ambos  os  métodos,  sublinhando  que  tanto  os  experimentos  sem  interpretação  sistemática  

quanto   a   dedução   a   partir   de   princípios   básicos   sem   evidência   experimental   não  

conduziriam   a   uma   teoria   confiável.   Ultrapassando   Bacon   em   sua   experimentação  

sistemática   e  Descartes   em   sua   análise  matemática,  Newton  unificou   as   duas   tendências   e  

desenvolveu  a  metodologia  em  que  a  ciência  natural  passou  a  basear-­‐se  desde  então.  

Isaac   Newton   era   uma   personalidade   muito   mais   complexa   do   que   se   poderá  

deduzir   da   leitura   de   seus   escritos   científicos.   Notabilizou-­‐se   não   só   como   cientista   e  

matemático,  mas  também,  em  várias  fases  de  sua  vida,  como  jurista,  historiador  e  teólogo,  e  

estava  profundamente  envolvido  em  pesquisas  sobre  o  oculto  e  o  conheci  mento  esotérico.  

Via  o  mundo  como  um  enigma  e  acreditava  que  as  chaves  para  sua  compreensão  podiam  ser  

encontradas   não   só   através   dos   experimentos   científicos   como   também   das   revelações  

críticas   das   tradições   esotéricas.   Newton   foi   tentado   a   pensar,   como   Descartes,   que   sua  

mente  poderosa  seria  capaz  de  desvendar  os  segredos  do  universo,  e  decidiu  servir-­‐se  dela,  

com   igual   intensidade,   no   estudo   da   ciência   natural   tanto   quanto   no   da   ciência   esotérica.  

Enquanto   trabalhava,   no   Trinity   College,   Cambridge,   nos   Principia,   acumulou,   ao   longo   de  

todos   esses   anos,   volumosas   notas   sobre   alquimia,   textos   apocalípticos,   teorias   teológicas  

não-­‐ortodoxas  e  várias  matérias  ligadas  ao  ocultismo.  A  maioria  de  seus  escritos  esotéricos  

nunca   foi   publicada,   mas   o   que   deles   se   conhece   indica   que   Newton,   o   grande   gênio   da  

revolução  científica,  foi  também  o  “último  dos  mágicos”    

O  palco  do  universo  newtoniano,  no  qual  todos  os  fenômenos  físicos  aconteciam,  era  

o   espaço   tridimensional   da   geometria   euclidiana   clássica.   Era   um   espaço   absoluto,   um  

recipiente   vazio,   independente   dos   fenômenos   físicos   que   nele   ocorriam.   Nas   próprias  

palavras   de   Newton,   “o   espaço   absoluto,   em   sua   própria   natureza,   sem   levar   em   conta  

qualquer   coisa  que   lhe   seja   externa,  permanece   sempre   inalterado  e   imóvel”  25•  Todas  as  

mudanças   no  mundo   físico   eram   descritas   em   função   de   uma   dimensão   à   parte,   o   tempo,  

também   absoluto,   sem   ligação   alguma   com   o   mundo   material,   e   que   fluía   de   maneira  

uniforme   do   passado   para   o   futuro   através   do   presente.   Escreveu   Newton:   “O   tempo  

absoluto,  verdadeiro  e  ma  temático,  de  si  mesmo  e  por  sua  própria  natureza,  flui  uniforme-­‐  

mente,  sem  depender  de  qualquer  coisa  externa”    

Os   elementos   do  mundo   newtoniano   que   se  movimentavam  nesse   espaço   e   nesse  

tempo  absolutos  eram  partículas  materiais,  os  objetos  pequenos,  sólidos  e  indestrutíveis  de  

que  toda  matéria  era  feita.  O  modelo  newtoniano  de  matéria  era  atomístico,  mas  diferia  da  

moderna   noção   de   átomos   pelo   fato   de   as   partículas   newtonianas   serem   todas   da  mesma  

substância  material.  Newton  presumia  que  a  matéria  era  homogênea;  explicava  a  diferença  

entre   um   tipo   e   outro   de   matéria   não   em   termos   de   átomos   de   diferentes   pesos   ou  

densidades,   e   sim   de   uma   aglomeração   mais   ou   menos   densa   e   compacta   de   átomos.   Os  

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componentes   básicos   da  matéria   podiam   ser   de   diferentes   dimensões,   mas   consistiam   na  

mesma  “substância”,  e  o  total  de  substância  material  num  objeto  era  dado  por  sua  massa.  

O  movimento  das  partículas  era  causado  pela  força  da  gravidade,  a  qual,  na  visão  de  

Newton,  atuava  instantaneamente  à  distância.  As  partículas  materiais  e  as  forças  entre  elas  

eram   de   uma   natureza   fundamentalmente   diferente,   sendo   a   constituição   interna   das  

partículas  independente  de  sua  interação  mútua.  Newton  considerava  que  tanto  as  partículas  

quanto  a  força  da  gravidade  eram  criadas  por  Deus  e,  por  conseguinte,  não  estavam  sujeitas  

a  uma  análise  ulterior.  Em  sua  Óptica,  Newton  explicou  claramente  como  imaginava  a  criação  

do  mundo  material  por  Deus:  

“Parece-­‐me  provável  que  Deus,  no  começo,  formou  a  matéria  em  partículas  sólidas,  

compactas,  duras,  impenetráveis  e  móveis,  de  tais  dimensões  e  configurações,  e  com  outras  

propriedades  tais,  e  em  tais  proporções  com  o  espaço,  que  sejam  as  mais  compatíveis  com  a  

finalidade   para   que   Ele   as   formou;   e   que   essas   partículas   primitivas,   sendo   sólidas,   são  

incomparavelmente   mais   duras   do   que   quaisquer   corpos   porosos   compostos   por   elas;  

realmente   tão   duras   que   nunca   se   desgastam   nem   se   fragmentam,   e   não   existe   nenhuma  

força  comum  que  seja  capaz  de  dividir  o  que  o  próprio  Deus  uni  ficou  na  criação  original”    

Na  mecânica  newtoniana,  todos  os  fenômenos  físicos  estão  reduzidos  ao  movimento  

de  partículas  materiais,  causado  por  sua  atração  mútua,  ou  seja,  pela   força  da  gravidade.  O  

efeito   dessa   força   sobre   uma   partícula   ou   qualquer   outro   objeto   material   é   descrito  

matematicamente  pelas  equações  do  movimento  enunciadas  por  Newton,  as  quais  formam  a  

base  da  mecânica  clássica.  Foram  estabelecidas  leis  fixas  de  acordo  com  as  quais  os  objetos  

materiais  se  moviam,  e  acreditava-­‐se  que  eles  explicassem  todas  as  mudanças  observadas  no  

mundo  físico.  Na  concepção  newtoniana,  Deus  criou,  no  princípio,  as  partículas  materiais,  as  

forças  entre  elas  e  as   leis   fundamentais  do  movimento.  Todo  o  universo   foi  posto  em  movi  

mento  desse  modo   e   continuou   funcionando,   desde   então,   como  uma  máquina,   governado  

por  leis  imutáveis.  A  concepção  mecanicista  da  natureza  está,  pois,  intimamente  relacionada  

com   um   rigoroso   determinismo,   em   que   a   gigantesca  máquina   cósmica   é   completa  mente  

causal  e  determinada.  Tudo  o  que  aconteceu  teria  tido  uma  causa  definida  e  dado  origem  a  

um  efeito  definido,  e  o  futuro  de  qualquer  parte  do  sistema  podia  —  em  princípio  ——  ser  

previsto   com   absoluta   certeza,   desde   que   seu   estado,   em   qualquer   momento   dado,   fosse  

conhecido  em  todos  os  seus  detalhes.  

Esse  quadro  de  uma  perfeita  máquina  do  mundo  subentendia  um  criador  externo;  

um  deus  monárquico  que  governaria  o  mundo  a  partir  do  alto,   impondo-­‐lhe  sua   lei  divina.  

Não  se  pensava  que  os  fenômenos  físicos,  em  si,  fossem  divinos  em  qualquer  sentido;  assim,  

quando   a   ciência   tornou   cada   vez  mais   difícil   acreditar   em   tal   deus,   o   divino   desapareceu  

completamente  da  visão  científica  do  mundo,  deixando  em  sua  esteira  o  vácuo  espiritual  que  

se   tornou   característico   da   corrente   principal   de   nossa   cultura.   A   base   filosófica   dessa  

secularização  da  natureza  foi  a  divisão  cartesiana  entre  espírito  e  matéria.  Em  consequência  

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dessa  divisão,  acreditava-­‐se  que  o  mundo  era  um  sistema  mecânico  suscetível  de  ser  descrito  

objetivamente,   sem   menção   alguma   ao   observador   humano,   e   tal   descrição   objetiva   da  

natureza  tornou-­‐se  o  ideal  de  toda  a  ciência.  

Os  séculos  XVIII  e  XIX  serviram-­‐se  da  mecânica  newtoniana  com  enorme  sucesso.  A  

teoria   newtoniana   foi   capaz   de   explicar   o   movimento   dos   planetas,   luas   e   cometas   nos  

mínimos   detalhes,   assim   como   o   fluxo   das  marés   e   vários   outros   fenômenos   relacionados  

com   a   gravidade.   O   sistema  matemático   do   mundo   elaborado   por   Newton   estabeleceu-­‐se  

rapidamente  como  a  teoria  correta  da  realidade  e  gerou  enorme  entusiasmo  entre  cientistas  

e   o   público   leigo.   A   imagem   do   mundo   como   uma   máquina   perfeita,   que   tinha   sido  

introduzida  por  Descartes,  era  então  considerada  um  fato  comprovado,  e  Newton  tornou-­‐se  

o   seu   símbolo.   Durante   os   últimos   vinte   anos   de   sua   vida,   Sir   Isaac   Newton   reinou   na  

Londres  setecentista  como  o  homem  mais  famoso  de  seu  tempo,  o  grande  sábio  de  cabelos  

brancos  da   revolução   científica.   As   descrições   desse  período  da   vida  de  Newton   soam-­‐nos  

muito   familiares   por   cansa   de   nossas   recordações   e   fotografias   de   Albert   Einstein,   que  

desempenhou  um  papel  muito  semelhante  em  nosso  século.  

Encorajados  pelo  brilhante  êxito  da  mecânica  newtoniana  na  astronomia,  os  físicos  

estenderam-­‐na  ao  movimento  contínuo  dos  fluidos  e  às  vibrações  de  corpos  elásticos,  e  ela  

continuou  a   funcionar.  Ao   final,  até  mesmo  a   teoria  do  calor  pôde  ser  reduzida  à  mecânica  

quando   se   percebeu   que   o   calor   era   a   energia   gerada   por   um   complicado   movimento   de  

“agitação”  de  átomos  e  moléculas.  Assim,  muitos  fenômenos  térmicos,  como  a  evaporação  de  

um  líquido,  ou  a  temperatura  e  pressão  de  um  gás,  puderam  ser  entendidos  sob  um  ponto  de  

vista  puramente  mecanicista.  

O  estudo  do  comportamento  físico  dos  gases  levou  John  Dalton  à  formulação  de  sua  

célebre   hipótese   atômica,   provavelmente   o   mais   importante   passo   em   toda   a   história   da  

química.  Dalton  possuía  uma  vívida  imaginação  pictórica,  e  tentou  explicar  as  propriedades  

das   misturas   de   gases   com   a   ajuda   de   elaborados   desenhos   de   modelos   geométricos   e  

mecânicos  de  átomos.  Seus  principais  pressupostos  eram  que  todos  os  elementos  químicos  

compõem-­‐se   de   átomos   e   que   todos   os   átomos   de   um   determinado   elemento   são  

semelhantes,  mas  diferem  dos  átomos  de   todos  os  outros  elementos  em  massa,   tamanho  e  

propriedades.  Usando  a  hipótese  de  Dalton,  os  químicos  do  século  XIX  desenvolveram  uma  

precisa  teoria  atômica  da  química  que  preparou  o  caminho  para  a  unificação  dos  conceitos  

da  física  e  da  química  no  século  XX.  Assim,  a  mecânica  newtoniana  estendeu-­‐se  muito  além  

da   descrição   dos   corpos   macroscópicos.   O   comportamento   de   sólidos,   líquidos   e   gases,  

incluindo  os  fenômenos  de  calor  e  som,  foi  explicado  com  sucesso  em  termos  do  movimento  

de  partículas  materiais  elementares.  Para  os  cientistas  dos  séculos  XVIII  e  XIX,  esse  enorme  

sucesso  do  modelo  mecanicista  confirmou  sua  convicção  de  que  o  universo  era,  de  fato,  um  

gigantesco   sistema   mecânico   que   funcionava   de   acordo   com   as   leis   newtonianas   do  

movimento,  e  de  que  a  mecânica  de  Newton  era  a  teoria  definitiva  dos  fenômenos  naturais.  

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Embora  as  propriedades  dos  átomos  tivessem  sido  estudadas  mais  por  químicos  do  

que  por  físicos  durante  todo  o  século  XIX,  a  física  clássica  baseava-­‐se  na  ideia  newtoniana  de  

que   os   átomos   são   os   elementos   básicos,   duros   e   sólidos,   da   matéria.   Essa   imagem  

contribuiu,   sem   dúvida,   para   a   reputação   da   física   como   uma   ciência   pesada   *   e   para   o  

desenvolvimento   da   tecnologia   pesada   **   baseada   naquela.   O   irretorquível   êxito   da   física  

newtoniana   e   a   crença   cartesiana   na   certeza   do   conhecimento   científico   levaram  

diretamente   à   ênfase   que   foi   dada,   em   nossa   cultura,   à   ciência   e   à   tecnologia   pesadas.  

Somente  em  meados  do  século  XX  tornar-­‐se-­‐ia  claro  que  a   ideia  de  uma  ciência  pesada  era  

parte  do  paradigma  cartesiano  newtoniano,  um  paradigma  que  seria  superado.  

Com  o  firme  estabelecimento  da  visão  mecanicista  do  mundo  no  século  XVIII,  a  física  

tornou-­‐se  naturalmente  a  base  de  todas  as  ciências.  Se  o  mundo  é  realmente  uma  máquina,  a  

melhor  maneira  de  descobrir   como  ela   funciona  é   recorrer  à  mecânica  newtoniana.  Assim,  

foi  uma  consequência   inevitável  da  visão  de  mundo  cartesiana  que  as   ciências  dos   séculos  

XVIII   e   XIX   tomassem   como   seu   modelo   a   física   newtoniana.   De   fato,   Descartes   estava  

perfeitamente  cônscio  do  papel  básico  da  física  em  sua  concepção  da  natureza.  Escreveu  ele:  

“Toda  a  filosofia  é  como  uma  árvore.  As  raízes  são  a  metafísica,  o  tronco  é  a  física  e  os  ramos  

são  todas  as  outras  ciências”    

O   próprio   Descartes   esboçara   as   linhas   gerais   de   uma   abordagem  mecanicista   da  

física,   astronomia,   biologia,   psicologia   e  medicina.   Os   pensadores   do   século   XVIII   levaram  

esse  programa  ainda  mais  longe,  aplicando  os  princípios  da  mecânica  newtoniana  às  ciências  

da   natureza   e   da   sociedade   humanas.   As   recém-­‐criadas   ciências   sociais   geraram   grande  

entusiasmo,   e   alguns   de   seus   proponentes   proclamaram   terem   descoberto   uma   “física  

social”.  A   teoria  newtoniana  do  universo  e  a   crença  na  abordagem  racional  dos  problemas  

humanos  propagaram-­‐se  tão  rapidamente  entre  as  classes  médias  do  século  XVIII,  que  toda  

essa  época  recebeu  o  nome  de   Iluminismo.  A   figura  dominante  nesse  período   foi  o   filósofo  

John   Locke,   cujos   escritos   mais   importantes   foram   publicados   no   final   do   século   XVII.  

Fortemente   influenciado   por   Descartes   e   Newton,   a   obra   de   Locke   produziu   um   impacto  

decisivo  no  pensamento  setecentista.  

Na   esteira   da   física   newtoniana,   Locke   desenvolveu   uma   concepção   atomística   da  

sociedade,  descrevendo-­‐a  em  termos  de  seu  componente  básico,  o  ser  humano.  Assim  como  

os   físicos   reduzi   ram   as   propriedades   dos   gases   aos   movimentos   de   seus   átomos,   ou  

moléculas,   também   Locke   tentou   reduzir   os   padrões   observados   na   sociedade   ao  

comportamento  de  seus  indivíduos.  Assim,  ele  passou  a  estudar  primeiro  a  natureza  do  ser  

humano  individual,  e  de  pois  tentou  aplicar  os  princípios  da  natureza  humana  aos  problemas  

econômicos  e  políticos.  A  análise  de  Locke  da  natureza  humana  baseou-­‐se  na  de  um  filósofo  

anterior,   Thomas   Hobbes,   que   declarara   ser   a   percepção   sensorial   a   base   de   todo  

conhecimento.   Locke   adotou   essa   teoria   do   conhecimento   e,   numa   famosa   metáfora,  

comparou   a  mente   humana,   no   nascimento,   a   uma   tabu   Tarasa   em   que   o   conhecimento   é  

gravado,  uma  vez  adquirido  através  da  experiência  sensorial.  Essa  imagem  estava  destinada  

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a  forte  influência  sobre  duas  importantes  escolas  da  psicologia  clássica,  o  behaviorismo  e  a  

psicanálise,  assim  como  sobre  a  filosofia  política.  Segundo  Locke,  todos  os  seres  humanos  —  

“todos   os   homens”,   como   diria   ele   —   são   iguais   ao   nascer   e,   para   seu   desenvolvimento,  

dependem  inteiramente  do  seu  meio  ambiente.  Suas  ações,  acreditava  Locke,  eram  sempre  

motivadas  pelo  que  supunham  ser  seu  próprio  interesse.  

Quando   Locke   aplicou   sua   teoria   da   natureza   humana   aos   fenômenos   sociais,   foi  

guiado  pela  crença  de  que  existem  leis  da  natureza  que  governam  a  sociedade  humana,  leis  

semelhantes  às  que  governam  o  universo  físico.  Tal  como  os  átomos  de  um  gás  estabelecem  

um  estado  de  equilíbrio,   também  os   indivíduos  humanos  se  estabilizariam  numa  sociedade  

num  “estado  de  natureza”.  Assim,  a  função  do  governo  não  seria  impor  suas  leis  às  pessoas,  

mas,  antes,  descobrir  e  fazer  valer  as  leis  naturais  que  existiam  antes  de  qual  quer  governo  

ter  sido  formado.  Segundo  Locke,  essas  leis  naturais  incluíam  a  liberdade  e  a  igualdade  entre  

todos   os   indivíduos,   assim   como   o   direito   à   propriedade,   que   representava   os   frutos   do  

trabalho  de  cada  um.  

As  ideias  de  Locke  tornaram-­‐se  a  base  para  o  sistema  de  valores  do  Iluminismo  e  tiveram  

uma  forte  influência  sobre  o  desenvolvimento  do  moderno  pensamento  econômico  e  

político.  Os  ideais  de  individualismo,  direito  de  propriedade,  mercados  livres  e  governo  

representativo,  que  podem  ser  atribuídos  a  Locke,  contribuíram  significativamente  para  o  

pensamento  de  Thomas  Jefferson,  e  estão  refletidos  na  Declaração  de  Independência  e  na  

Constituição  americanas.  

Durante  o  século  XIX,  os  cientistas  continuaram  a  elaborar  o  modelo  mecanicista  do  

universo  na  física,  química,  biologia,  psicologia  e  ciências  sociais.  Por  conseguinte,  a  máquina  

do   mundo   newtoniana   tornou-­‐se   uma   estrutura   muito   mais   complexa   e   sutil.   Ao   mesmo  

tempo,   novas   descobertas   e   novas   formas   de   pensamento   evidenciaram   as   limitações   do  

modelo  newtoniano  e  prepararam  o  caminho  para  as  revoluções  científicas  do  século  XX.  

Uma   dessas   conquistas   do   século   XIX   foi   a   descoberta   e   a   investigação   dos  

fenômenos   elétricos   e  magnéticos  que   envolviam  um  novo   tipo  de   força   e  não  podiam  ser  

descritos   adequadamente   pelo   modelo   mecanicista.   Um   passo   importante   foi   dado   por  

Michael   Faraday   e   completado   por   Clerk   Maxwell   —   o   primeiro,   um   dos   maiores  

experimentadores  na  história  da  ciência,  o  segundo,  um  brilhante  teórico.  Faraday  e  Maxwell  

não  só  estudaram  os  efeitos  das   forças  elétricas  e  magnéticas,  mas   fizeram  dessas   forças  o  

objeto   primeiro   de   suas   investigações.   Ao   substituírem   o   conceito   de   força   pelo   conceito  

muito  mais  sutil  de  campo  de  força,  eles  foram  os  primeiros  a  ultrapassar  a  física  newtoniana  

29,  mostrando  que  os   campos   têm  sua  própria   realidade  e  podem  ser  estudados   sem  qual  

quer   referência   a   corpos  materiais.   Essa   teoria,   chamada   eletrodinâmica,   culminou   com   a  

descoberta  de  que  a   luz  é,  de  fato,  um  campo  eletromagnético  rapidamente  alternante,  que  

viaja  através  do  espaço  em  forma  de  ondas.  

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Apesar   dessas   mudanças   de   extraordinário   alcance,   a   mecânica   newtoniana  

mantinha  sua  posição,  continuava  a  ser  a  base  de  toda  a  física.  O  próprio  Max  tentou  explicar  

seus   resultados   em   termos   mecânicos,   interpretando   os   campos   como   estados   de   tensão  

mecânica   num   meio   muito   leve   e   difundido   por   toda   parte,   chamado   éter,   e   as   ondas  

eletromagnéticas  como  ondas  elásticas  desse  éter.  Entretanto,  ele  usou  várias  interpretações  

mecânicas   de   sua   teoria   ao   mesmo   tempo   e,   segundo   parece,   não   levou   nenhuma   delas  

realmente   a   sério,   sabendo   intuitivamente   que   as   entidades   fundamentais   em   sua   teoria  

eram  os  campos  e  não  os  modelos  mecânicos.  Caberia  a  Einstein  reconhecer  claramente  esse  

fato   em   nosso   século,   quando   declarou   que   o   éter   não   existe   e   que   os   campos  

eletromagnéticos   são   entidades   físicas   independentes   que  podem  viajar   através  do   espaço  

vazio  e  não  podem  ser  explicadas  -­‐mecanicamente.  

Enquanto   o   eletromagnetismo   destronava   a   mecânica   newtoniana   como   teoria  

fundamental   dos   fenômenos   naturais,   surgiu   uma   nova   tendência   do   pensamento   que  

suplantou  a  imagem  da  má  quina  do  mundo  newtoniana  e  iria  dominar  não  só  o  século  XIX,  

mas   todo  o  pensamento   científico   futuro.  Ela   envolvia   a   ideia  de   evolução  —  de  mudança,  

crescimento  e  desenvolvimento.  A  noção  de  evolução   surgira  na  geologia,   onde  os  estudos  

meticulosos  de  fósseis  levaram  os  cientistas  à  conclusão  de  que  o  estado  atual  da  Terra  era  o  

resultado   de   um   desenvolvimento   contínuo   causado   pela   ação   de   forças   naturais   durante  

imensos  períodos  de  tempo.  Mas  os  geólogos  não  foram  os  únicos  a  pensar  nesses  termos.  A  

teoria   do   sistema   solar,   proposta   por   Immanuel   Kant   e   Pierre   Laplace,   baseava   no  

pensamento   evolucionista   ou   desenvolvimentista;   os   conceitos   evolucionistas   foram  

fundamentais  para  a  filosofia  política  de  Hegel  e  Engeis;  poetas  e  filósofos,   indistintamente,  

durante  todo  o  século  XIX,  preocuparam-­‐se  profundamente  com  o  problema  do  devir.  

Essas  ideias  constituíram  o  background  intelectual  para  a  formulação  mais  precisa  e  

de  mais   longo  alcance  do  pensamento  evolucionista:  a   teoria  da  evolução  das  espécies,  em  

biologia.   Desde   a   Antiguidade,   os   filósofos   naturais   tinham   alimentado   a   ideia   de   uma  

“grande  cadeia  do  ser”.  Essa  cadeia,  entretanto,  era  concebida  como  uma  hierarquia  estática,  

que  começava  em  Deus,  no  topo,  e  descia,  através  de  anjos,  seres  humanos  e  animais,  até  as  

formas  cada  vez  mais  inferiores  de  vida,  O  número  de  espécies  era  fixo;  não  mudara  desde  o  

dia  de  sua  criação.  Como  disse  Lineu,  o  grande  botânico  e  classificador:  “Calculamos  tantas  

espécies   quantas   as   saídas   aos   pares   das   mãos   do   Criador”   30,   Essa   ideia   das   espécies  

biológicas  estava  em  completa  concordância  com  a  doutrina  judaico-­‐  cristã  e  ajustava-­‐se  bem  

ao  mundo  newtoniano.  

A  mudança  decisiva  ocorreu  com  Jean-­‐Baptiste  Lamarck,  no  começo  do  século  XIX;  

essa  mudança  foi  tão  drástica  que  Gregory  Bateson,  um  dos  pensadores  mais  esclarecidos  e  

profundos  do  nosso  tempo,  comparou-­‐a  à  revolução  de  Copérnico:  

“Lamarck,   provavelmente   o   maior   biólogo   da   história,   inverteu   essa   escala   de  

explicação.   Foi   ele   o  homem  que  disse  que   a   escala   começa   com  os   infusórios   e   que  havia  

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mudanças  que  culminavam  no  homem.  Essa  inversão  completa  da  taxonomia  é  uma  das  mais  

surpreendentes  façanhas  de  todos  os  tempos.  Foi  o  equivalente,  em  biologia,  à  revolução  de  

Copérnico  em  astronomia”    

Lamarck   foi  o  primeiro  a  propor  uma   teoria  coerente  da  evolução,   segundo  a  qual  

todos  os  seres  vivos  teriam  evoluído  a  partir  de  formas  mais  primitivas  e  mais  simples,  sob  a  

influência   do  meio   ambiente.   Embora   os   detalhes   da   teoria   lamarckiana   tivessem   que   ser  

abandonados  mais  tarde,  ela  representou,  não  obstante,  o  primeiro  passo  importante.  

Muitas  décadas  depois,  Charles  Darwin  apresentou  aos  cientistas  uma  esmagadora  

massa  de  provas  em  favor  da  evolução  biológica,  colocando  o  fenômeno  acima  de  qualquer  

dúvida.  Apresentou  também  uma  explicação  baseada  nos  conceitos  de  variação  aleatória  —  

hoje  conhecida  como  mutação  randômica  —  e  seleção  natural,  os  quais  continuariam  sendo  

as   pedras   angulares   do   moderno   pensamento   evolucionista.   A   monumental   Origem   das  

espécies   de   Darwin   sintetizou   as   ideias   de   pensadores   anteriores   e   deu   forma   a   todo   o  

pensamento  biológico  subsequente.  Seu  papel  nas  ciências  humanas   foi   semelhante  ao  dos  

Principia  de  Newton  na  física  e  na  astronomia,  dois  séculos  antes.  

A   descoberta   da   evolução   em   biologia   forçou   os   cientistas   a   abandonarem   a  

concepção   cartesiana   segundo   a   qual   o  mundo   era   uma  máquina   inteiramente   construída  

pelas  mãos  do  Criador,  O  universo,  pelo  contrário,  devia  ser  descrito  como  um  sistema  em  

evolução  e  em  permanente  mudança,  no  qual  estruturas  complexas  se  desenvolviam  a  partir  

de   formas   mais   simples.   Enquanto   essa   nova   forma   de   pensamento   era   elaborada   nas  

ciências  humanas,  conceitos  evolucionistas  surgiam  também  na  física.  Contudo,  enquanto  a  

evolução,   em   biologia,   significou   um   movimento   no   sentido   de   uma   ordem   e   uma  

complexidade  crescentes,  na  física  passou  a  significar  justamente  o  oposto  —  um  movimento  

no  sentido  de  uma  crescente  desordem.  

A   aplicação   da  mecânica   newtoniana   ao   estudo   dos   fenômenos   térmicos  —  o   que  

envolveu  o  tratamento  de  líquidos  e  gases  como  complicados  sistemas  mecânicos  —  levou  os  

físicos   à   formulação   da   termodinâmica,   a   “ciência   da   complexidade”.   A   primeira   grande  

realização  dessa  nova  ciência  foi  a  descoberta  de  uma  das  leis  mais  fundamentais  da  física,  a  

lei   da   conservação   da   energia.   Diz   essa   lei   que   a   energia   total   envolvida   num   processo   é  

sempre  conservada.  Pode  mudar  de  forma  do  modo  mais  complicado,  mas  nenhuma  porção  

dela  se  perde.  Os  físicos  descobriram  essa  lei  em  seu  estudo  das  máquinas  a  vapor  e  outras  

máquinas  geradoras  de  calor,  e  é  também  conhecida  como  a  primeira  lei  da  termodinâmica.  

A   segunda   lei   da   termodinâmica   é   a   da  dissipação  da   energia.   Enquanto   a   energia  

total   envolvida   num   processo   é   sempre   constante,   a   quantidade   de   energia   útil   diminui,  

dissipando-­‐se  em  calor,  fricção,  etc.  Esta  segunda  lei  foi  formulada  pela  primeira  vez  por  Sadi  

Carnot,  em  termos  da  tecnologia  das  máquinas  térmicas,  mas  não  tardou  a  ser  reconhecido  

que  envolvia  um  significado  muito  mais  amplo.  Ela  introduziu  na  física  a  ideia  de  processos  

irreversíveis,  de  uma  “flecha  do  tempo”.  De  acordo  com  a  segunda  lei,  há  uma  certa  tendência  

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nos   fenômenos   físicos.   A   energia   mecânica   dissipa-­‐se   em   calor   e   não   pode   ser  

completamente  recuperada;  quando  se  juntam  água  quente  e  água  fria,  resulta  a  água  morna,  

e   os   dois   líquidos   não   se   separam.  Do  mesmo  modo,   quando   se  mistura   um   saco   de   areia  

branca   com   •um   saco   de   areia   preta,   resulta   areia   cinzenta,   e   quanto   mais   agitarmos   a  

mistura  mais  uniforme  será  o  cinzento;  não  veremos  as  duas  espécies  de  areia  separarem-­‐se  

espontaneamente.  

O  que  todos  esses  processos  têm  em  comum  é  que  avançam  numa  certa  direção  —  

da   ordem   para   a   desordem   —,   e   esta   é   a   formulação   mais   geral   da   segunda   lei   da  

termodinâmica:   qualquer   sistema   físico   isolado   avançará   espontaneamente   na   direção   de  

uma   desordem   sempre   crescente.   Em   meados   do   século,   para   expressar   essa   direção,   na  

evolução   de   sistemas   físicos,   numa   forma   matemática   precisa,   Rudolf   Clausius   introduziu  

uma   nova   quantidade   a   que   chamou   “entropia”.   O   termo   representa   uma   combinação   de  

“energia”  e  “tropos”,  a  palavra  grega  que  designa  transformação  ou  evolução.  Assim,  entropia  

é   uma   quantidade   que   mede   o   grau   de   evolução   de   um   sistema   físico.   De   acordo   com   a  

segunda   lei,   a   entropia   de   um   sistema   físico   isolado   continuará   aumentando;   como   essa  

evolução   é   acompanhada   de   crescente   desordem,   a   entropia   também  pode   ser   vista   como  

uma  medida  de  desordem.  

A  formulação  do  conceito  de  entropia  e  a  segunda  lei  da  termo-­‐  dinâmica  estão  entre  

as  mais   importantes   contribuições   para   a   física   no   século   XIX.   O   aumento   de   entropia   em  

sistemas   físicos,   que   marca   a   direção   do   tempo,   não   podia   ser   explicado   pelas   leis   da  

mecânica   newtoniana,   e   permaneceu   um  mistério   até   que   Ludwig  Boltzmann   esclareceu   a  

situação  mediante  a   introdução  de  uma  ideia  adicional,  o  conceito  de  probabilidade.  Com  a  

ajuda   da   teoria   das   probabilidades,   o   comportamento   de   sistemas   mecânicos   com   plexos  

pôde  ser  descrito  em  termos  de  leis  estatísticas,  e  a  termo-­‐  dinâmica  se  assentou  numa  sólida  

base  newtoniana,  conhecida  como  mecânica  estatística.  

Boltzmann  mostrou  que  a   segunda   lei   da   termodinâmica  é  uma   lei   estatística,   Sua  

afirmação  de  que  certos  processos  não  ocorrem  —  por  exemplo,  a  conversão  espontânea  de  

energia   térmica   em   energia   mecânica   —   não   significa   que   eles   sejam   impossíveis,   mas  

apenas  que   são  extremamente   improváveis.   Em  sistemas  microscópicos  que   consistem  em  

apenas   algumas   moléculas,   a   segunda   lei   é   violada   regularmente;   mas,   em   sistemas  

macroscópicos,  que  consistem  num  grande  número  de  moléculas  ‘  a  probabilidade  de  que  a  

entropia  total  do  sistema  aumente  torna-­‐se  virtualmente  certa.  Assim,  em  qualquer  sistema  

isolado,   composto   de   um   elevado   número   -­‐de   moléculas,   a   entropia   —   ou   desordem   —  

continuará  aumentando  até  que,  finalmente,  o  sistema  atinja  um  estado  de  máxima  entropia,  

também   conhecido   como   “morte   térmica”;   nesse   estado,   toda   a   atividade   cessa,   estando   o  

material  uniformemente  distribuído  e  à  mesma  temperatura.  De  acordo  com  a  física  clássica,  

o  universo  está  caminhando  como  um  todo  para  tal  estado  de  máquina  entropia,  no  qual  irão  

declinando  gradualmente  os  processos  espontâneos  de  troca  energética  até  que  finalmente  

cessem.  

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Essa   imagem   sombria   da   evolução   cósmica   está   em   nítido   contraste   com   a   ideia  

evolucionista   sustentada   pelos   biólogos,   os   quais   observam   que   o   universo   vivo   evolui   da  

desordem  para  a  ordem,  para  estados  de  complexidade  sempre  crescente.  O  surgimento  do  

conceito   de   evolução   em   física   trouxe   à   luz,   portanto,   uma   outra   limitação   da   teoria  

newtoniana.  A  concepção  mecanicista  do  uni  verso  como  um  sistema  de  pequenas  bolas  de  

bilhar  em  movimento  randômico  é  simplista  demais  para  explicar  a  evolução  da  vida.  

No   final   do   século   XIX,   a  mecânica   newtoniana   tinha   perdido   seu   papel   de   teoria  

fundamental  dos  fenômenos  naturais.  Os  conceitos  da  eletrodinâmica  de  Maxwell  e  da  teoria  

da   evolução   de   Darwin   superavam   claramente   o   modelo   newtoniano   e   indicavam   que   o  

universo  era  muitíssimo  mais  complexo  do  que  Descartes  e  Newton  haviam  imaginado.  Não  

obstante,  ainda  se  acreditava  que  as  ideias  básicas  subjacentes  à  física  newtoniana,  embora  

insuficientes   para   explicar   todos   os   fenômenos   naturais,   eram   corretas.   As   primeiras   três  

décadas  de  nosso  século  mudaram  radicalmente  essa  situação.  Duas  descobertas  no  campo  

da   física,   culminando  na   teoria  da   relatividade  e  na   teoria  quântica,  pulverizaram   todos  os  

principais   conceitos   da   visão   de  mundo   cartesiana   e   da  mecânica   newtoniana.   A   noção  de  

espaço   e   tempo   absolutos,   as   partículas   sólidas   elementares,   a   substância   material  

fundamental,  a  natureza  estrita  mente  causal  dos  fenômenos  físicos  e  a  descrição  objetiva  da  

natureza  —  nenhum  desses  conceitos  pôde  ser  estendido  aos  novos  domínios  em  que  a  física  

agora  penetrava.  

 

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ALTERAÇÕES  NA  SOCIEDADE,  

EFERVESCÊNCIA  NAS  IDEIAS:  

A  FRANÇA  DO  SÉCULO  XVIII5  

As  luzes  foram  um  arco-­‐íris,  ou  melhor  dizendo,  fogos  cruzados.  

J.  Deprun  

O  período  que  vai  de  fins  do  século  XVII  até  fins  do  século  XVIII  caracteriza-­‐Se  por  

ser   uma   fase   em  que  uma   série   de  mudanças   econômicas   e   políticas   se  deu   em  diferentes  

partes  do  mundo,  embora  essas  mudanças  não  tenham  ocorrido  concomitantemente.  Nesse  

período,   enquanto   a   Inglaterra   já   havia   realizado   as   transformações   econômicas  

características  da  Revolução  Industrial,  o  mesmo  não  havia  ainda  ocorrido  com  a  França  e  a  

Alemanha.  A  França,  nesse  período,  mantinha  ainda  um  regime  feudal,  mas  apareciam  já  os  

germes  da  revolução  que  conduziria  também  esse  país  na  direção  do  capitalismo.  

Segundo  Efimov,  Galkine  e  Zubok  (1981),  até   fins  do  século  XVIII   reina  ainda  na  

França  o  feudalismo,  predominando  aí  uma  população  camponesa  de  23  Milhões  de  pessoas,  

maioria   dentre   os   25   milhões   que   constituíam   a   população   total.   Vivendo   em   regime   de  

servidão,   esses   camponeses   tinham   uma   série   de   deveres   que   envolviam   o   pagamento   de  

impostos  ao  Estado,  dízimos  ao  clero  e  taxas  feudais  à  nobreza.  Essa  situação  insustentável  

de  empobrecimento  da  população,  aliada  ao  descontentamento  da  burguesia.  

—   que   via   cerceada   a   tão   desejada   liberdade   de   comércio   e   produção  —   e   aos  

problemas  econômicos  da  monarquia,  gerou  uma  crise  que  acaba  por  culminar  em  mudanças  

que  instituíram  na  França  a  Primeira  República  em  1793.  

Segundo  Aquino  e  outros  (1982),  o  capitalismo  emergente  na  França  chocava-­‐se  

com  as  fortes  barreiras  feudais  que  por  todos  os  meios  buscavam  impedir  a  desestabilização  

do  regime  e  a  perda  de  privilégios  da  nobreza  e  do  clero.  Nesse  período  de  transição,  em  que  

o  regime  feudal  vai  sendo  desestruturado  e  substituído  por  novas  formas  de  organização  e  

produção  e  em  que  uma  nova  classe  —  a  burguesia  —  visa  ascender  ao  poder  substituindo  a  

nobreza  e  o  clero,  novas  ideias  também  vão  se  desenvolvendo,  ideias  essas  que  refletiam  os  

anseios  da  sociedade  nesse  contexto  de  transformação.  Autores  como  Diderot  (1713-­‐1784),  

Voltaire   (1694-­‐1778),   Helvétius   (1715-­‐1771),   d’Holbach   (1723-­‐1789),   La   Mettrie   (1709-­‐

1751),  Montesquieu   (1689-­‐1755),  Maupertuis   (1698-­‐1759),  Buífon   (1707-­‐1788),  Condillac  

(1715-­‐1780),  Vauvenargues  (1715-­‐1747),  d’Alembert  (1717-­‐1783)  e  Rousseau  (1712-­‐1778)  

podem  ser  destacados  como  representantes  do  pensamento  francês  do  século  XVIII.  

5ANDREY, Maria Amália et alii. Para Compreender a Ciência. São Paulo : EDUC –

Editora da PUC-SP, 2000;

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Alguns   aspectos   podem   ser   levantados   como   característicos   do   pensa   mento  

francês   desse   período:   a   crença   no   poder   da   razão   como   instrumento   de   obtenção   do  

conhecimento   e   de   modificação   da   realidade,   a   ênfase   aos   dados   obtidos   por   meio   da  

observação   e   da   experimentação,   o   antidogmatismo   (e,   consequentemente,   a   crítica   à  

religião)  e  a  noção  de  progresso.  

Embora  possam  ser  identificadas  essas  características  mais  gerais  no  pensamento  

francês   do   século   XVIII,   isto   não   significa   que   todos   os   pensa-­‐   dores   desse   momento  

expressaram   a   mesma   posição   em   relação   a   todos   esses   aspectos;   ao   contrário,   pode-­‐se  

observar   que   alguns   deles   apresentam   oposições   ou   nuanças   em   relação   a   uma   ou   mais  

dessas  características  em  particular.  

Esse   é   um   momento   em   que   as   opiniões   e   posições   são   mais   amplamente  

veiculadas,   e   esta   talvez  possa   ser   considerada  uma  outra   característica,   fato  que  pode   ter  

contribuído  para  que  diferenças  e  nuanças  aparecessem.  

Nesse  período,  em  vez  de  utilizarem  o  latim,  os  autores  expressavam-­‐se  na  língua  

pátria  e   faziam-­‐no  por  meio  de  artigos,  peças  de  teatro,  contos,  por  exemplo.  Assim,  houve  

um   maior   acesso   às   ideias   produzidas   por   parte   da   sociedade,   seja   por   terem   uma  

característica  menos  erudita  e  técnica,  seja  pela  quantidade  de  reproduções  feitas.  

Um   dos   empreendimentos   culturais   desse   momento   foi   a   proposta   de   elaborar  

uma  Enciclopédia  que  abordasse   temas  de   todas  as  áreas  de  conhecimento  humano  (artes,  

ciências,  etc.),  proposta  essa  iniciada  por  Diderot  e  d’Alembert.  A  Enciclopédia  foi  um  veículo  

de   divulgação   das   ideias   dos   pensadores   franceses,   já   que   grande   parte   deles   elaborou  

artigos   expondo   suas   opiniões   e   críticas,   sendo   os   mais   famosos   Diderot,   d’Alembert,  

Voltaire,  Rousseau,  Montesquieu  e  d’Holbach.  

 

O  RACIONALISMO  FRANCÊS:  APOIO  NA  OBSERVAÇÃO  E  NA  EXPERIÊNCIA  

 

Como   já   foi   dito,   uma   das   características   desse   período   é   a   ênfase   no   poder   da  

razão.  Os  autores  desse  século  são,  portanto,  racionalistas,   já  que  para  eles  a  razão  tem  um  

papel   primordial   na   vida   do   homem.   Sendo   considerada   uma   característica   natural   do   ser  

humano,  que  é  inerente  a  todo  indivíduo,  a  razão  é  vista  como  mecanismo,  meio  de  obtenção  

do  conhecimento  e  guia  das  ações  humanas.  

Segundo   Desné   (1982),   esse   racionalismo,   embora   tenha   herdado   de   pescartes  

“(...)  o  gosto  do  raciocínio,  a  busca  da  evidência  intelectual,  e,  sobretudo,  a  audácia  de  exercer  

livremente  seu  juízo  e  de  levar  a  toda  parte  o  espírito  da  dúvida  metódica”  (p.  75),  a  ele  se  

opõe.  

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O  racionalismo  do  século  XVIII  contraria  o  de  Descartes,  pois,  enquanto  para  este  a  

razão   tinha   uma   característica   de   recipiente   —   isto   é,   possuía   ideias   inatas,   verdades  

eternas...   —,   para   os   pensadores   franceses   desse   período   ela   tinha   uma   característica   de  

instrumento.  

Ainda  contrariamente  a  Descartes,  que  dava  ênfase  ao  processo  dedutivo  —  partia  

de  verdades  auto-­‐evidentes  e  inatas  e  delas  deduzia  novos  conhecimentos  —‘  os  pensadores  

franceses   vão   dar   ênfase   à   observação   e   à   experiência,   no   sentido   de   experienciado   e  

experimental.   Assim,   a   observação   e   a   experiência   são   os   pontos   de   partida   para   o  

conhecimento;  o  raciocínio,  embora  necessário,  não  prescinde  dos  dados  empíricos.  

Locke   e   Newton   já   haviam   feito   críticas   a   Descartes:   o   primeiro,   ao   opor-­‐se   ao  

inatismo  das  ideias,  e  o  segundo,  ao  afirmar  que  as  hipóteses  só  podem  ser  obtidas  a  partir  

dos   fatos;   em   ambos,   o   mesmo   suporte:   a   observação   e   a   experiência   como   origem   do  

conhecimento.  Os   pensadores   franceses   do   século  XVIII,   opondo-­‐se   a  Descartes,   têm   como  

seus  grandes  mestres  Locke  e  Newton.  

A   influência   desses   dois   pensadores   evidencia-­‐se   na   forma   como   se   discute,   na  

França   desse   período,   o   processo   do   conhecimento.   Segundo   Cassirer   (1950),   busca-­‐se  

explicar  o  conhecer  tal  como  os  demais  fenômenos  da  natureza  eram  explicados,  ou  seja,  sem  

a  interposição  de  qualquer  entidade  sobrenatural.  

A  noção  de  ideias  inatas  que,  para  Descartes,  estava  vinculada  à  atuação  de  Deus  é  

substituída   pela   preocupação   em  descobrir   os   processos   naturais   que   estão   envolvidos   na  

aquisição  do  conhecimento  pelo  homem.  Os  pensa-­‐  dores  franceses  desse  período  defendem  

a  postura  de  que  qualquer   ideia   tem  origem  em  uma   impressão  anterior,  mesmo  que  nem  

sempre  possamos  identificar  qual  seja  ou  quando  ocorreu.  

Tais   ideias   foram  desenvolvidas   a   partir   das  de  Locke  que,   segundo  d’Alembert,  

havia   sido   o   “(...)   criador   da   filosofia   científica   como   Newton   o   foi   da   física   científica”  

(Cassirer,  1950,  p.  119).  

Locke,   combatendo   a   noção   de   ideias   inatas   de   Descartes,   afirma   que   todo  

conhecimento   humano   era   obtido   a   partir   da   experiência.   Ele   afirmava,   no   entanto,   que  

faculdades  humanas,   tais   como  a   comparação,   a  volição,   o   JUíZo,   etc.,   são   fundamentais  da  

alma.   Segundo   os   filósofos   franceses,   embora   Locke   tivesse   dado   um  passo   importante   ao  

entendimento  dos  mecanismos  do  conhecimento  humano,  havia  parado  no  meio  do  caminho,  

já  que  acabou  por  pressupor  o  inatismo  das  operações  psíquicas.  A  postura  de  que  o  homem  

se  transforma  em  função  das  impressões  que  vai  registrando  do  mundo,  segundo  os  filósofos  

franceses,  deveria  valer  tanto  para  o  conhecimento  que  o  homem  vai  obtendo  sobre  o  mundo  

quanto  para  as  operações  psíquicas  (comparação,  vontade,  sentimentos,  etc.)  que  passam  a  

ser  vistas  como  sensações  transformadas.  

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Exemplos   dessa   posição   podem   ser   encontrados   em   obras   de   autores   como  

Condillac  e  Voltaire.  O  primeiro  afirma  que  a  alma  sente  quando  se  dão  mudanças  em  nosso  

corpo,  sendo  os  sentidos  a  causa  de  todos  os  sentimentos.  Busca  encontrar  os  fundamentos  

das  operações  psíquicas,  utilizando  observações  empíricas,  muito  embora  sua  obra  contenha  

também  afirmações  que,  segundo  Cassirer  (1950),  são  especulativas.  Assim,  por  meio  de  um  

plano   rigoroso   e   sistemático,   busca   demonstrar  —   passo   a   passo  —   como   cada   uma   das  

faculdades  humanas  vai  gradativamente  se  desenvolvendo.  Para  tal,  apresenta  a  imagem  de  

urna  estátua  que,  em  função  das  impressões  que  vão  sendo  nela  colocadas,  vai  pouco  a  pouco  

adquirindo  vida,  chegando  a  trans  formar-­‐se  num  ser  humano.  

Voltaire  afirma  que  é  tal  a  importância  das  impressões  na  formação  das  ideias  do  

homem   que   uma   possível   transformação   na   disposição   de   seus   órgãos   traria   em  

consequência   mudanças   em   seu   “ser   espiritual”,   ou   seja,   transformar-­‐se-­‐iam   com   as  

mudanças  corpóreas  os  mundos  religioso,  moral,  intelectual,  estético,  etc.  

A   base   de   todo   o   conhecimento   humano,   como   se   pode   observar   nos   exemplos  

acima,   reside,   então,   na   experiência   que,   movendo   a   razão,   pode   conduzir   o   homem   por  

diferentes  caminhos.  Diderot  sintetiza  essa  posição  ao  enfatizar  que  o  pensamento  filosófico-­‐

científico  deveria  usar  a  observação  dos  fatos,  a  reflexão  sobre  suas  possíveis  combinações  e  

a  verificação,  por  meio  da  experiência,  dos  resultados  da  reflexão.  

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O  PAPEL  DA  ANÁLISE  NA  ELABORAÇÃO  DO  CONHECIMENTO  

 

Em   relação   à   produção   de   conhecimento   científico,   o   século   XVIII,   na   França,   toma   rumos  

diferentes  daqueles  empreendidos  no  século  anterior.  O  século  XVII  caracterizou-­‐se  pela  construção  de  

sistemas  filosóficos  baseados  na  ideia  de  que  só  se  chegaria  ao  saber  se  chegasse  a  certezas  das  quais  

novos   conhecimentos   pudessem   ser   dedutivamente   derivados.   Já   no   século   XVIII   renuncia-­‐se   a   esse  

procedimento,   com  base  em  Newton  que  propunha  a   análise  em  vez  da  dedução   como  procedimento  

para  obtenção  de  conhecimento.  Assim  a  experiência,  a  observação  e  o  pensamento  deveriam  buscara  

ordem  das   coisas  nos  próprios   fatos   e  não  mais  nos   conceitos.  A   análise  possibilitaria   a   identificação  

daquilo  que  é  comum  e  permanente  entre  os  particulares,  conduzindo  a  princípios  gerais.  Cabe  à  razão,  

partindo  de  fatos  —  recolhidos  pela  observação  —,  relacioná-­‐los  identificando  sua  dependência.  É  por  

meio   da   análise   que   Condifiac   mostra   que   as   atividades   corpóreas   e   psíquicas   possuem   um  

denominador   comum:  as   impressões.  Ao  explicar   a  origem  do   conhecimento,   coloca  a   sensação   como  

fonte:  não  há  mais  Deus  mediando  a  relação  entre  o  sujeito  que  conhece  e  o  objeto  do  conhecimento.  A  

relação   se   dá   diretamente   entre   homem   e   mundo   por   meio   da   sensação,   da   qual   derivam   todas   as  

operações  intelectuais.  O  método  por  intermédio  do  qual  se  chega  ao  conhecimento  é  o  da  análise:  

Consiste,  partindo  de  um  todo  confuso,  em  perceber  sucessiva  e  separadamente  os  detalhes,  

de  começo  os  pontos  mais  importantes  que  ressaltam  deles  mesmos,  a  seguir  as  partes  intermediárias,  

para  chegar,  finalmente,  a  uma  percepção  simultânea  e  distinta.  (...  é  um  movimento  de  decomposição  e  

de  recomposição.  (Bréhier,  1977a,  p.  78)  

As  teorias  acerca  do  Estado  e  da  sociedade,  como  a  de  Montesquieu,  por  exemplo,  tendem  a  

vê-­‐los   corno   compostos  por  partes   que   se   influenciam  mutuamente   e   que  precisam   ser   identificadas.  

Montesquieu  constrói  modelos  políticos  a  partir  de  seus  elementos  constitutivos.  Segundo  esse  autor,  é  

possível   identificar   “(...)   a   lei   (no   sentido   newtoniano)   que   governa   o   regime   de   um  povo,   o   ‘espírito  

geral’   de   uma   nação”   (Desné,   1982,   p.   95),   a   partir   da   consideração   de   diferentes   elementos   físicos  

(clima,  solo,  território)  e  sociais  (tradição,  moeda,  religião,  leis).  

 

AS  REGULARIDADES  DOS  FENÔMENOS  NATURAIS  FÍSICOS  E  SOCIAIS  

 

A  afirmação  do  potencial  da  razão  humana  no  entendimento  do  mundo  relaciona-­‐se  à   ideia  

de  que  todas  as  explicações  sobre  a  natureza  que  envolvem  o  sobrenatural  devem  ser  abolidas,   já  que  

esta  pode  ser  racionalmente  entendida  e  explicada.  

A  possibilidade  de  se  chegar  a  leis  sobre  a  natureza,  assim  como  a  Possibilidade  humana  de  

nela  atuar,   apoia-­‐se  no  pressuposto  de  que  há   regularidades  e  uniformidades  nos   fenômenos  —  quer  

físicos,  quer  sociais  —,  já  que  passam  todos  a  ser  considerados  fenômenos  naturais  Tais  regularidades  

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Se  expressam  em   leis,   e  o   conhecimento  dessas   leis   se  dará  pela  observação  dos   fenômenos  naturais,  

seguindo  seu  curso  e  registrando-­‐o  mediante  experimentos  medida,  observação  e  cálculo.  

A   ideia   de   que   a   natureza   se   comporta   segundo   seu   próprio   curso   expressou-­‐se,   segundo  

Cassirer  (1950),  por  meio  de  posturas  materialistas  me.  canicistas  —  como  as  de  La  Mettrie  e  d’Holbach  

—  e  por  meio  de  postura  que  se  opõem  a  esse  materialismo  mecanicista,   como  a  de  d’Alembert.  Este  

último,  opondo-­‐se  a  ambos,  defende  não  ser  necessário  buscar  a  essência  última  das  coisas,  mas  buscar  

conexões  e  relações  entre  os  fenômenos,  segundo  ele  o  possível  de  se  conhecer.  

La  Mettrie  e  d’Holhach  consideravam  a  matéria  como  essência  Últi11  das  coisas  e  afirmavam  

que   todos   os   fenômenos,   inclusive   o   pensamento,   são   resultado   de   processos  materiais.   Segundo   La  

Mettrie,  à  lista  de  propriedades  da  matéria  na  qual  já  se  incluía  a  extensão  como  fundamental,  deveriam  

ser  acrescentadas  as  capacidades  de  sentir,  recordar,  pensar;  o  movimento  da  matéria  poderia,  então,  

explicar   não   só   nossas   sensações   como   nossa   vontade,   nossos   desejos,   etc.   Segundo   d’Holbach,   uma  

certa   disposição   dos   átomos   forma   o   homem   e   o   que   o   impulsiona   é   o  movimento   desses   átomos;   o  

destino  humano  encontra-­‐se,  portanto,  dirigido  por  condições  naturais  que  independem  da  vontade  ou  

dos  desejos  humanos.  

A   defesa   de   que   existem   regularidades   que   se   expressam  em   leis   pode   ser   identificada   em  

relação  aos  fenômenos  sociais,  nas  posturas  do  Montesquieu,  Voltaire  e  Diderot,  que  afirmam  buscar  em  

relação  à  moral  e  ao  direito  a  ordem  e  a  regularidade  encontradas  no  mundo  físico,  em  apoio  à  ideia  de  

que  todo  o  universo  é  regido  por  leis  e  princípios  últimos  que  podem  ser  descobertos.  

Montesquieu,  de  acordo  com  Cassirer  (1950),  “Coloca-­‐se  como  jurista,  a  mesma  questão  que  

Newton   se   colocou   como   físico;   não   se   dá   por   satisfeito   com   leis   do   cosmos   político   empiricamente  

conhecidas,  mas  pretende  reduzira  multiplicidade  destas   leis  a  uns  princípios  determinados”  (p.  269).  

Montesquieu   tem  como  objeto  de  estudo  a  sociedade  e  para  analisá-­‐la  aplica  a  noção  de  “lei  geral”,   já  

que  entende  que  

As  leis,  no  seu  sentido  mais  amplo,  são  relações  necessárias  que  derivam  da  natureza  das  coisas  

e,  nesse  sentido,  todos  os  seres  têm  suas  leis;  a  divindade  possui  suas  leis;  o  mundo  material  possui  suas  leis;  

as   inteligências   superiores   ao   homem  possuem   suas   leis;   os   animais   possuem   suas   leis;   o   homem  possui  

suas  leis.  (Do  espírito  das  leis,  Primeira  parte,  Livro  primeiro,  cap.  1,  p.  33)  

Sendo  as   leis   “relações  necessárias  que  derivam  da  natureza  das   coisas”  deve-­‐se  partir  dos  

próprios  fatos,  de  sua  descrição  e  comparação,  para  se  chegar  aos  princípios  mais  gerais  da  organização  

social.  

Voltaire  defende  que  existe  um  princípio  universal  da  moral  que  os  homens  podem  descobrir  

por  trás  das  diferenças  de  costumes  e  de  opiniões.  

A   firmação  de  Voltaire,  citada  na  obra  de  Cassirer  (1950),  deixa  clara  a  crença  do  pensador  

francês  em  leis  que  são  universais  para  todos  os  homens:  

Ainda  que  o  que  em  um  país  se  denomine  virtude  se  chame  vício  em  outro,  ainda  que  a  maioria  

das   regras   sobre  o  bem  e  o  mal   sejam   tão  diferentes   como  os   idiomas  que   se   falam  e  os   vestidos  que   se  

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usam,  inc  parece,  sem  dúvida,  que  existem  leis  naturais  com  respeito  às  quais  os  homens  de  todas  as  partes  

do  globo  devem  estar  de  acordo.  (...)  Assim  como  Deus  dotou  as  abelhas  de  um  instinto  poderoso  em  função  

do  qual  podem   trabalhar   em  comum  e  alimentar-­‐se,   dotou  os  homens  de  determinados   sentimentos  dos  

quais  nunca  poderão  despojar-­‐se  e  que  são  os  vínculos  eternos  e  as  primeiras   leis  da  sociedade  humana.  

(pp.  27  1-­‐272)  

Diderot   também   demonstra   fé   na   natureza   moral   e   invariável   do   homem;   para   ele   as  

condutas   humanas   têm   como   base   os   instintos   —   a   uniformidade   de   suas   inclinações,   impulsos   e  

necessidades  sensíveis  —  que  são  de  natureza  física.  Conceitos  como  os  de  liberdade  e  vontade,  como  

algo  intrínseco  ao  homem,  não  passam  agora  de  meios  de  mascarar  os  fatos:  o  justo  e  o  injusto  são  por  

ele  concebidos  como  relativos  e  determinados  por  necessidades,  por  nossa  vida.  Defende  que  a  conduta  

humana  seja  dirigida  por  suas  bases  biológicas  e  que  a  religião  e  as  leis  não  limitem  necessidades  que  

são  naturais,  pois  obedecendo-­‐se  apenas  à  natureza  humana  será  possível  atingir  a  felicidade  do  homem  

e  da  sociedade.  

 

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O  ANTIDOGMATISMO  E  A  IDEIA  DE  PROGRESSO  HUMANO  

 

Como   consequência   do   racionalismo   empirista,   as   ideias   desse   período   são   caracterizadas  

pelo   antidogmatismo;   os   pensadores   contrapõem-­‐se   às   ideias   preconcebidas,   às   ideias   baseadas   na  

autoridade  e  combatem  todas  as  crenças,  principalmente  as  da  religião,  pois,  para  eles,  a  superstição,  o  

preconceito  e  a  ignorância  impediam  o  funcionamento  natural  da  razão.  

As   explicações   sobrenaturais   são,   consequentemente,   eliminadas   tanto   em   relação   aos  

fenômenos  físicos  quanto  em  relação  aos  fenômenos  sociais,  psicológicos,  etc.  

O  anteriormente  citado  combate  às  ideias  inatas  guarda  relação  com  a  Postura  antidogmática,  

que  passa   a   ser   assumida  pelos  pensadores   franceses  desse  período;   se  para  Deus   era   o   fundamento  

último   das   ideias   inatas,   para   os   pensadores   franceses   a   mediação   de   Deus   no   processo   de  

conhecimento  é  desnecessária.  

O  antidogmatismo  expressa-­‐se  de  várias  formas  no  que  diz  respeito  à  concepção  de  natureza:  

por  meio  da  ideia  de  que  todo  conhecimento  sobre  O  mundo  deve  ser  construído  por  intermédio  do  uso  

da  observação,  da  experimentação  e  da  razão,  o  que  vai  contra  a  ideia  de  aceitar  como  verdadeira  uma  

proposição   em   função   de   ser   baseada   numa   autoridade;   por   meio   da   ideia   de   que   os   princípios  

explicativos  apesar  de  universais  não  são  absolutos,  mas  o  “último”  degrau  alcançado  pelo  pensamento;  

por  meio  do  combate  a  toda  e  qualquer  perspectiva  religiosa  na  explicação  do  mundo,  já  que  à  religião  

estavam   associadas   as   ideias   de   verdades   eternas,   sobrenaturais,   indiscutíveis,   que   prescindiam   de  

provas  concretas.  

Nesse   período,   os   estudos   geológicos   desenvolvidos   desvincularam-­‐se   da   noção   de   tempo  

apresentada  na  Bíblia.  Buffon  representa  esse  empenho  elaborando  uma  história  do  mundo  baseada  em  

observações  que  nada  têm  a  ver  com  a  perspectiva  religiosa  da  formação  do  universo.  Quanto  à  espécie  

humana,  embora  não  a  considere  igual  às  demais  espécies,  as  razões  para  diferenciá-­‐la  nada  têm  a  ver  

com  a  ideia  de  alma  ou  de  homem  criado  “à  imagem  e  semelhança  de  Deus”.  Ao  contrário,  as  diferenças  

apontadas  por  Buffon  fundam-­‐se  em  razões  que  derivam  da  observação  das  atividades  humanas:  falar,  

inventar,  adaptar-­‐se  a  diferentes  situações,  etc.  

Segundo  Diderot,  a   integração  da  matéria  explicaria  tudo,   inclusive  a  evolução  biológica.  No  

que  diz  respeito  a  essas  transformações,  Diderot  chega  a  mencionar  um  processo  de  seleção  em  que  a  

natureza   tende   a   suprimir   aquilo   que   não   satisfaz   as   exigências   da   vida.   Vê-­‐se,   pois,   que   nenhuma  

entidade  sobrenatural  desempenha  qualquer  papel  a  criação  e  desenvolvi  mento  do  mundo:  a  natureza  

atuou  e  atua  por  si  mesma.  

Embora   não   se   tenha   uma   concepção   evolucionista   das   espécies,   são   veiculadas,   nesse  

período,  noções  relacionadas  à  ideia  de  seleção  natural,  como  já  se  viu  em  Diderot.  La  Mettrie  diz  que  as  

más   formações   são   eliminadas   e   Maupertuis   defende   que   nem   todas   as   combinações   da   matéria  

permanecem,  já  que,  conforme  salientado  por  Desné  (1982),  

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(...)   os   elementos   da  matéria   tendem   a   se   organizar   em   formas   vivas   que   só   se   realizam,   de  

maneira  durável,  em  seguida  a  nUmerosos  tateamentos  e  fracassos:  subsistiram  somente  as  combinações  

felizes  que  dão  a  ilusão,  para  nós  atualmente,  de  uma  finalidade.  (p.  85)  

Deus  é  excluído,  também,  do  destino  do  homem;  as  ações  humanas  deixam  de  ser  explicadas  

em  função  de  uma  finalidade  divina;  o  homem  passa  a  ser  dono  do  seu  destino  e,  como  tal,  criador  da  

própria  sociedade.  

Voltaire   crê   que   o   mundo   foi   deixado   à   mercê   de   sua   própria   sorte;   o   bem   e   o   mal   são  

realidades   sociais   e   não,   respectivamente,   a   iluminação   de   Deus   e   o   afastamento   d’Ele   pela   alma  

pecadora;   Montesquieu   vê   as   instituições   como   frutos   do   próprio   homem,   excluindo   a   perspectiva  

religiosa  na  análise  da  sociedade.  

Além   de   criticar   o   recurso   às   Escrituras   ou   a   Deus   nas   explicações   dos   fenômenos,   os  

pensadores  do  século  XVIII  questionam  noções  como  a  alma  e  a  crença  em  Deus,  base  da  religião  cristã.  

A  noção  de  alma  é  atacada  por  La  Mettrie,  para  o  qual  “(...)  não  é  mais  que  uma  palavra  vazia”  (Cassirer,  

p.   86);   d’Holbach,   considerando  que   a   teologia   é  um  obstáculo  para   a   ciência,   defende   ser  necessário  

deixar  de  lado  as  ideias  de  Deus  e  imortalidade.  

A   exclusão   de   Deus   ou   de   elementos   sobrenaturais   corno   explicação   dos   fenômenos   —  

físicos,  sociais  ou  psicológicos  —  não  significa,  necessariamente,  negar  a  existência  de  Deus,  como  fazem  

La  Mettrie,  d’Holbach  e  Helvétius  ao  contrário,  alguns  pensadores,  como  Voltaire  e  Rousseau,  admi  tem-­‐

na.   Voltaire,   por   exemplo,   afirma   a   existência   de   um   ser   criador   de   todas   as   coisas,   responsável   pela  

ordem  existente  na  natureza;  nenhuma  outra   interferência   teria  exercido  Deus  sobre  o  mundo  após  a  

sua   criação.  Além  da   ideia  de   criação  do  mundo  por  Deus,  Voltaire  nada  mais   aceita   do  que   afirma   a  

tradição  judaico-­‐cristã.  

Para  os  pensadores  franceses,  ateus  ou  não-­‐ateus,  o  fato  é  que  Deus  deixa  de  ser  o  mediador  

entre   o   homem  e   o  mundo,   cabendo   ao  homem  a   responsabilidade  por   aquilo   que   faz:  Deus,   quando  

admitido,  o  é  apenas  enquanto   iniciador  e  mantenedor  do   funcionamento  da  máquina  newtoniana  do  

mundo,  sem  nele  interferir.  

O   “Deus   todo-­‐poderoso”  passa  a  ser  substituído  pelo   “homem  todo-­‐  poderoso”:  a  crença  no  

poder  do  homem  é  intensa,  e  isso  se  dá  em  função  da  crença  no  poder  da  razão,  seja  como  instrumento  

de  produção  de  conhecimento,  seja  como  guia  das  ações  humanas.  Inter-­‐relacionada  à  crença  no  poder  

da  razão  está  a  ideia  de  progresso,  urna  vez  que  se  concebe  a  própria  razão  como  agente  do  progresso  

humano;   o   progresso   ocorre   na  medida   em  que   existe   a   aplicação   crescente   da   razão  no   controle   do  

ambiente  físico  e  Cultural.  

Nesse   período,   começa-­‐se   a   defender   a   ideia   de   que   a   superação   da   ignorância   leva   ao  

progresso,   de   que   a   sociedade   do   presente   é  melhor   que   a   do   passado;   a   ideia   de   que   o   acúmulo   do  

conhecimento   obtido   levará,   por   sua   própria   direção   interna,   à   obtenção  de   uma   sociedade   cada  Vez  

melhor.  

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Voltaire  exemplifica  essa  crença,  ao  defender  ser  possível  ao  homem  dotado  de  conhecimento  

libertar-­‐se  de  preconceitos  e  modificar  sua   forma  de  Viver  e  de  pensar.  Segundo  Bréhier   (1  977a),  as  

obras  de  Voltaire  constituem  se  em  “(...)  campanhas  contra  os  preconceitos  e  propaganda  em  favor  do  

espírito  novo”  (p.  140).  

 

ROUSSEAU:  UMA  CRÍTICA  À  NOÇÃO  DE  PROGRESSO  

 

A   ideia   de   progresso,   como   foi   visto,   está   estritamente   relacionada   à   crença   no   poder   do  

conhecimento   racionalmente  obtido:  quanto  mais   culta  a   sociedade,  melhor  ela   se   toma;  quanto  mais  

culto  o  homem,  melhor  ele  será.  Assim,  os  pensadores   franceses  desse  período  acabam  por  vincular  a  

própria  moralidade  ao  saber.  

Nesse  coro  de  vozes  —  que  vincula  a  moralidade  à  cultura  e  que  defende  o  progresso  como  

inerente  ao  desenvolvimento  do  conhecimento  científico,  artístico,  etc.  —  destoa  Rousseau.  Rousseau  é  

o  único  a  colocar  em  xeque  o  elo  de  necessidade  entre  acúmulo  do  conhecimento  racionalmente  obtido  

e.t  progresso  da  sociedade;  é  o  único  a  dissolver  o  vínculo  até  então   inquestionável.   “A  unidade  entre  

consciência  moral   e   consciência   culta   em   geral,   que   até   então   havia   sido   suposta   de   forma   crédula   e  

ingênua,  {Rousseaul  a  coloca  como  problemática  e  questionável  ao  extremo”  (Cassirer,  1950,  p.  298).  

Ao  analisar  a  sociedade  de  sua  época,  Rousseau  procura  demonstrar  que,  a  despeito  de  todo  o  

progresso  das   ciências   e   das   conquistas   alcançadas,   ela   não   apresentou  urna  melhoria   em   termos  do  

próprio  homem  ao  contrário,  contribuiu  para  a  decadência  em  nível  dos  costumes,  valores  e  práticas:  a  

origem  de  suas  misérias  é  fruto  do  pretenso  aperfeiçoamento  humano.  

Embora  os   costumes,  valores  e  práticas  possam   ter   se   sofisticado  e  até  aprimorado,  não  se  

tornaram   moralmente   e   espiritualmente   melhores;   em   vez   de   impulsos   morais   verdadeiros,  

desenvolveram-­‐se  o  poder,   a   ambição,   a  miséria.   Para  Rousseau,   é   a  própria   sociedade  a   responsável  

pela  desigualdade,  injustiça  e  arbitrariedade  existentes.  

Desvinculando  a  ética  do  saber,  Rousseau  resgata  o  papel  da  vontade  no  estabelecimento  de  

um  verdadeiro  estado  social,  isto  é,  um  estado  social  no  qual  reinem  a  igualdade  e  a  justiça.  

Para   Rousseau,   essa   vontade   transcende   a   bondade   individual,   já   que   o   verdadeiro   estado  

social  se  apóia  na  vontade  geral.  E  mediante  um  contrato  social  que  existe  a  submissão  voluntária  das  

diferentes   vontades   individuais   à   vontade   geral,   a   qual   é   soberana   e   por  meio   da   qual   os   indivíduos  

podem  se  realizar  em  sua  plenitude.  A  submissão  voluntária  dá  aos  indivíduos  um  caráter  de  sujeitos  de  

vontade:  eles  atuam  em  função  daquilo  que  devem;  eles  querem  se  submeter  como  um  dever.  

Conforme  afirma  Rousseau,  “Quando  os  cidadãos  se  submetem  às  condições  que  eles  mesmos  

acordaram,   ao   aceitarem  por  decisão   livre   e   racional  não  obedecem  a  ninguém  mais  que   sua  própria  

vontade”  (em  Cassirer,  1950,  p.  289).  

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Ao  resgatar  a  vontade,  resgata  um  imperativo  ético  que  deve  estar  unido  ao  saber;  ao  mostrar  

que  não   existe   o   vínculo  de  necessidade   entre   razão   e  moral,  Rousseau  mostra  que  há   limites  para   a  

razão  e  que  o  saber  não  deve  ter  um  primado  absoluto;  ao  estabelecer  esses  limites,  acaba  por  reafirmar  

o  próprio  racionalismo  na  medida  em  que  identifica  sua  verdadeira  importância.  

De  acordo  com  Cassirer  (1950),  Rousseau  substituiu  um  racionalismo  puramente  teórico,  por  

um  racionalismo  ético:  

Porque   Rousseau   é   um   autêntico   filho   do   Iluminismo   quando   o   combate   e   o   supera.   Seu  

evangelho   do   sentimento   não   significa   urna   ruptura,   porque   não   atuam   fatores   puramente  

emotivos,  mas  atuam  convicções  autenticamente  intelectuais  e  morais.  Com  a  sentimentalidade  

de  Rousseau  não  se  abre  brecha  para  um  mero  sentimentalismo,  mas  para  urna  força  e  vontade  

éticas  novas.  

(p.  302)  

 

INOVAÇÕES  E  LIMITES  DO  PENSAMENTO  FRANCÊS  

 

Com  o  que  até  aqui  se  discutiu,  fica  patente  que  o  século  XVIII,  na  França,  constituiu-­‐se  num  

período   de   questionamentos   que   colocavam   em   xeque   não   só   a   prática   social   (econômica,   jurídica,  

religiosa,   etc.)   como   também   as   concepções   das   quais   essa   prática   derivava.   Tais   questionamentos  

acarretaram   a   proposição   de   novos   conceitos   e   pressupostos   que,   por   sua   vez,   acabaram   por   gerar  

novas  propostas  em  todos  os  níveis  da  prática  social  e  do  conhecimento  humano.  

Vários   exemplos   da   revolução   na   forma   de   pensar   o   homem,   o   mundo   e   o   conhecimento,  

nesse  período,  podem  ser  pinçados  como  meio  de  ilustrar  como  os  mais  diferentes  assuntos,  além  dos  já  

mencionados,  foram  objeto  de  análise  e  crítica  dos  pensadores  franceses  desse  século.  

Por   exemplo,   toma   forma   a   noção   de   natureza   humana   a   qual   supõe   a   existência   de  

características   que   são   comuns   a   todos   os   homens.   Essa   noção   se   relaciona   à   de   que   os   homens   têm  

direitos  que  são  próprios  de  todo  ser  humano;  nesse  sentido,  opõe-­‐se  à  noção  de  que  existem  direitos  

que   são   exclusivos   de   um   dado   grupo   social,   como   era   o   caso   da   educação,   propriedade...,   que   se  

restringiam  praticamente  ao  clero  e  à  nobreza.  Por  outro  lado,  a  despeito  do  coletivo  implícito  na  noção  

de  natureza  humana,  enfatiza-­‐se  o  t  por  meio  da  ideia  do  indivíduo  como  responsável  pela  direção  de  

Sua  própria  vida  e  da  sociedade.  Isso  fica  claro,  quando  Voltaire  advoga  que,  Para  mudar  a  sociedade,  é  

preciso  mudar  o  indivíduo,  o  que  seria  feito  me  diante  uma  educação  crítica.  

O  interesse  dos  pensadores  franceses  do  século  XVIII  recai  também  sobre  muitas  outras  áreas  

do   conhecimento   humano,   o   que   se   pode   notar   em   artigos   presentes   na   Enciclopédia,   nos   quais   se  

revelam  as  novas   formas  de  abordar  essas   áreas   e   seus  objetos  de  estudo.  Os   artigos   sobre   teoria  da  

ética,  por   exemplo,  partem  da   ideia  de  homem  como  ser  de  natureza   sociável   e  que,  portanto,   seguia  

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uma   ética   social   “natural”.   As   bases   dessa   teoria   deixam   de   ser,   portanto,   o   desejo   de   Deus   para  

transformar-­‐se  em  algo  fundado  na  própria  natureza  humana.  

Data  dessa  época,  também,  o  desenvolvimento  do  estudo  de  povos  primitivos  orientado  pela  

preocupação  de  desvendar  a  origem  da  sociedade  humana.  Desenvolve-­‐se,  também,  a  teoria  linguística  

baseada  na  ideia  de  que  o  conhecimento  depende  do  uso  correto  da  linguagem.  Revela-­‐se  um  interesse  

científico   na   natureza   da   linguagem   que   se   expressa   na   presença   de   artigos   na   Enciclopédia   que  

versavam  sobre  gramática  e  sinônimos.  

A  noção  de  homem  enquanto  um  ser  sociável  é  ressaltada  na  época,  o  que  acarreta  mudanças  

na   forma   de   conceber   a   história   humana,   assim   como   transformações   na   forma   de   estudá-­‐la.   Por  

exemplo,  para  Buffon,   a  história  do  homem  é  a  história  da   sociedade;  para  d’Holbach,   a   felicidade  do  

indivíduo  vincula-­‐se  à  da  sociedade  na  qual  está  inserido.  Helvétius  dá  ênfase  às  relações  dos  indivíduos  

com  o  meio  social;  o  indivíduo  é  formado  e  essa  formação  depende  mais  da  educação  que  da  natureza  e  

fisiologia  humanas.  O  estudo  histórico  das  sociedades  foi  empreendido  por  Voltaire,  a  partir  da  busca  de  

dados   acerca   dos   costumes   e   das   condições   econômico-­‐sociais,   em   vez   do   destaque   de   fatos  

particulares.  Essa  modificação  reflete  unia  mudança  na  própria  concepção  de  história;  segundo  Desné  

(1982),  

Duas   concepções   antigas   da   história   vão   desmoronar-­‐se   aqui:   a   história   genealógica   (uma  

família,   por  mais   prestigiosa   que   seja,   não   é   um   povo)   e   a   história  militar.   (...)   A   concepção  

moderna  da  história  é  aquela  de  uma  história  que  abarca  o  conjunto  das  atividades  humanas  

(...).  Pg.  93-­‐94)  

Outros  pensadores,  preocupados  com  questões  metodológicas  e  com  a  aplicação  do  modelo  

de   investigação   das   ciências   naturais   a   outras   ciências,   chegam,   nesse   período,   a   problematizar   a  

aplicabilidade   direta   desse   modelo   às   ciências   que   lidavam   com   a   vida   e   com   o   homem.   Esse  

questionamento  surge  em  função  do  fato  de  que  durante  esse  século,  na  Franca,  o  modelo  das  ciências  

naturais  —  que   tem   fundamentalmente  Newton   como  mestre  —  vai   estender-­‐se   a   outros   campos  do  

conhecimento,  uma  vez  que  todos  os  fenômenos  passaram  a  ser  vistos  como  naturais,  quer  os  da  física,  

química,  biologia,  quer  os  sociais,  psicológicos,  artísticos.  

Segundo  Cassirer  (1950),  coloca-­‐se,  nesse  período,  o  problema  de  descobrir  se  o  modelo  de  

investigação  dos  fenômenos  físicos  pode  ser  aplicado  na  íntegra  para  a  investigação  de  todo  e  qualquer  

outro  tipo  de  fenômeno.  Questiona-­‐se  o  papel  da  matemática,  da  lógica  e  da  descrição  na  explicação  do  

mundo,  discutindo-­‐se  as  peculiaridades  das  diferentes  áreas  de  conheci  mento.  É  o  que  vemos  presente  

nas  ideias  de  Diderot,  quando  este  afirma  que  a  metodologia  e  a  sistematização  necessárias  a  qualquer  

investigação  devem,  no  entanto,  adequar-­‐se  aos  diferentes  objetos  de  estudo.  

Buffon,  um  estudioso  da  biologia,  afirmava  que  o  conhecimento  biológico  tinha  uma  estrutura  

peculiar.   Em   função   dessa   estrutura,   não   pode   ser   dirigido   exclusivamente   pelas   leis   da  matemática,  

mas   deve   fundamentalmente   buscar   seguir   o   curso   histórico   dos   fenômenos.   Assim,   nas   ciências  

biológicas,   deve-­‐se   adotar   o   procedimento   de   busca   “arqueológica”   em   substituição   ao   método   de  

conceitos   lógico-­‐matemáticos   que   tenderia,   na   biologia,   a   produzir   exclusivamente   uma   classificação  

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dos   indivíduos   em   gêneros   e   espécies.   Há   de   se   substituir   a   definição   pela   descrição,   o   gênero   pelo  

individuo,   substituição   que   resultaria   na   compreensão  das   transformações   ocorridas   no   tempo;   daí   a  

ênfase  na  descrição  e  na  investigação  histórica.  

Segundo  Cassirer   (1   950),   o   ideal   de   um   conhecimento  natural  matemático,   importante   no  

avanço   da   Física   do   século   XVIII,   vai   sendo   substituído   por   uni   ideal   de   um   conhecimento   natural  

puramente   descritivo.   Assim,   embora   na  matemática   descrição   e  mensuração   coincidam,   em   ciências  

como  a  biologia,  por  exemplo,  a  descrição  ganha  um  novo  sentido.  

As   propostas   inovadoras   na.s   várias   áreas   de   conhecimento,   as   novas   ideias   e   valores,   as  

críticas   às   ideias   vigentes   não   passaram,   obviamente,   despercebidas   diante   das   estruturas   do   regime  

que  visavam  a  combater.  Assim  sendo,  pode-­‐se   imaginar  a  resistência  oposta  às  novas   ideias  e  a  seus  

representantes  pelos  poderes  estabelecidos.  Não  é  de  estranhar,  portanto,  que  os  pensadores  tivessem  

sofrido   sanções:   Voltaire   precisou   deixar   Paris   em   função   de   sua   obra   Cartas   filosóficas;   Diderot   foi  

encarcerado   por   seis   meses,   em   função   de   haver   escrito   duas   obras,   também   condenadas;   a  

Enciclopédia  foi  proibida,  Rousseau  precisou  fugir  e  La  Mettrie  foi  exilado.  

A   despeito   de   inovadoras   para   a   época,   é   impossível   desvincular   as   propostas   defendidas  

pelos   pensadores   desse   período   dos   interesses   de   classe   que   privilegiavam.   Assim,   se,   por   uni   lado,  

combatiam  a  Igreja  e  o  regime  feudal,  por  outro,  defendiam  ideias  que  valorizavam  ou  visavam  a  colocar  

no   poder   camadas   Sociais   às   quais   pertenciam,   em   geral,   tais   pensadores:   a   burguesia   ou   mesmo   a  

nobreza.  Exemplos  de  corno  o  contexto  econômico,  Político  e  social  determinou  ideias  e  defesa  de  certos  

interesses  podem  ser   encontrados  nas  obras  de  praticamente   todos  os   autores  do  período,   dentre  os  

quais  foram  selecionados  Montesquieu,  Voltaire  e  Rousseau.  

Nobre  de  nascimento,  Montesquieu   lutou  contra  o  absolutismo  e  a   Igreja,  mas  mostrava-­‐Se  

favorável   à  monarquia  moderada.   Lembrado   como  o  autor  da   teoria  dos   três  poderes,   inspirou-­‐se  no  

regime   inglês,   propondo   a   separação   dos   poderes   Legislativo,   Executivo   e   Judiciário.   Em   sua   teoria  

prevê,  no  entanto,  exceções  a  essa  divisão  de  poderes:  o  monarca  podia  vetar  decisões  do  legislativo  e  os  

nobres,   quando   infringissem   as   leis,   não   passa   riam  por   julgamento   comum  a   qualquer   cidadão,  mas  

seriam   julgados   por   membros   da   própria   nobreza.   Ao   admitir   que   os   nobres   não   passassem   pelas  

instâncias   normais   de   julgamento   e   estabelecendo,   no   legislativo,   uma   câmara   alta   composta   por  

nobres,  Montesquieu  deixa  claro  responder  aos  interesses  da  nobreza.  

Voltaire,   embora   defendesse   que   todos   os   homens   podiam   se   libertar   de   preconceitos   e  

mudar   sua   forma   de   vida   a   partir   de   conhecimentos,   esperava   que   a  mudança   no   regime   vigente   se  

desse   não   por   movimentos   populares,   mas   por   meio   de   um   monarca   ilustrado   (filósofo).   Segundo  

Efimov  e  outros  (1981),  temia  a  revolução  e  defendia  interesses  de  um  grupo  da  nobreza  avançada  e  da  

burguesia.  

Segundo   os  mesmos   autores,   Rousseau   exprimia   anseios   da   pequena   burguesia   (pequenos  

proprietários),  propondo  o  aniquilamento  da  propriedade  senhorial,  mas  defendendo  a  manutenção  da  

propriedade   privada,   acreditando   ser   possível  mantê-­‐la   ao  mínimo.   Além  disso,   a   separação   entre   as  

propostas  teóricas  por  ele  formuladas  e  sua  prática  fica  evidente,  se  compararmos  as  ideias  veiculadas  

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no  Contrato  social  ou  no  Discurso  sobre  a  desigualdade  com  outros  textos,  em  que  se  propõe  a  resolver  

problemas   práticos.   Segundo   Fortes   (1976),   no   plano   teórico   vigora   a   ideia   de   soberania   da   vontade  

geral,  enquanto  no  texto  Considerações  sobre  o  governo  da  Polônia  “(...)  Rousseau  patrocina  a  causa  de  

um  conservadorismo  aristocrático  pouco  compatível  com  o  igualitarismo  republicano  que  advogava  no  

plano  da  teoria”  (p.  26).  Solicitado  pela  nobreza  polonesa  para  orientar  a  reorganização  política  do  país,  

não  chega  a  ser  nem  um  reformador,  já  que  mantém  intactas  as  estruturas  de  poder  e  as  leis.  Mantém  o  

senado,  o  rei  e  a  dieta  (câmara  de  representantes),  aquele  que  afirma  que  o  povo  deveria  ser  soberano,  e  

contraria   o   princípio   de   que   toda   lei   deve   ser   ratificada  pelo   povo,   ao   atribuir   às   decisões   das   dietas  

caráter  definitivo.  

Tais   limites   podem   ser   entendidos,   se   nos   reportarmos   ao   contexto   em   que   viveram   os  

pensadores   franceses  do  século  XVIII:  um  contexto  de   luta  da  burguesia  para  ascender  ao  poder  e  da  

nobreza  feudal  para  manter  seus  privilégios.  Conforme  Marx  e  Engeis  (1980):  

A   produção   de   ideias,   de   representações   e   da   consciência   está   em   primeiro   lugar   direta   e  

intimamente   ligada   à   atividade   material   e   ao   comércio   material   dos   homens.   (...)   Não   é   a  

consciência  que  determina  a  vida,  mas  a  vida  que  determina  a  consciência.  (pp.  25-­‐26)  

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HÁ  UMA  ORDEM  IMUTÁVEL  NA  NATUREZA  E  O  CONHECIMENTO  A  REFLETE:  

Amor  por  princípio  e  a  Ordem  por  base;  o  Progresso  por  fim.6  

Comte  

Auguste  Comte  nasceu  na   França   (Montpellier)   em  1798,   viveu   grande  parte   da   sua   vida   em  

Paris,  onde  morreu  em  1857.  Estudou  na  Escola  Poli   técnica  de  Paris  e  medicina  em  Montpellier,  mas  

não  terminou  nenhum  dos  cursos,  tendo  feito  boa  parte  de  seus  estudos  por  conta  própria.  Durante  sua  

vida,   tentou,   mas   não   conseguiu,   ser   admitido   como   docente   permanente   na   Escola   Politécnica.  

Desenvolveu   várias   atividades   para   sobreviver;   foi   professor   particular,   tutor,   examinador   da   Escola  

Politécnica  e,  por  vários  anos  (1817-­‐1824),  conviveu  e  foi  secretário  de  Saint  Simon  com  quem  rompeu  

por  discordar  do  rumo  que  suas  ideias  tomaram.  

Comte  publicou  vários   livros  e   fez   conferências  públicas,  bem  como  conferências  a   cientistas,  

que   não   lhe   renderam   dinheiro,   mas   que   tinham   como   objetivo   tornar   conhecida   sua   filosofia   e  

arrebanhar-­‐lhe  adeptos.  Foram,  em  parte,  esses  objetivos  que   lhe  garantiram  o  sustento,  por  meio  de  

contribuições.   Dentre   essas   conferências,   foram   importantes   as   conferências   públicas   de   astronomia,  

destinadas  ao  público  leigo  (e  aos  trabalhadores,  especial  mente),  que  tinham  a  preocupação  pedagógica  

de,  por  meio  do  estudo  da  mais  avançada  das  ciências,  ensinar  que  o  universo  e  a  sociedade  eram  sub  

metidos   a   leis   invariáveis,   eram   ordenados.   Também   importantes   foram   as   conferências   que   deram  

origem  aos  volumes  assim  igualmente  intitulados  Curso  de  filosofia  positiva,  dirigidas  a  um  público  de  

cientistas  e  que  tinham  como  objetivo  dar  a  conhecer  a  sua  filosofia.  

Em  1845,   Comte   conheceu   Clotilde   de   Vaux   que  morreu   um   ano   de   pois,   de   quem   se   tomou  

amigo  e  que  marcou  profundamente  seus  últimos  trabalhos.  Atribui-­‐se  à  admiração  de  Comte  a  Clotilde  

de  Vaux  muitos  dos  aspectos  contidos  na  sua  proposta  de  uma  Religião  da  humanidade,  como  o  papel  

que   aí   atribui   à   mulher   em   geral,   e   a   Clotilde   (que   ocupa   lugar   de   destaque   nos   ritos   religiosos  

previstos)  em  particular.  

Dentre  seus   livros  publicados,  destacam-­‐se:  Curso  de   filosofia  positiva   (cujo  primeiro  volume  

foi  publicado  em  1830  e  o  sexto  e  último  em  1842),  Tratado  elementar  de  geometria  analítica  (1843),  

Tratado   filosófico   de   astronomia   popular   (1844),   A   política   positiva   (1851-­‐4),   Catecismo   positivo  

(1854)  e  Síntese  subjetiva  ou  sistema  universal  de  ideias  sobre  o  estado  normal  da  humanidade  (1856).  

Comte  vive  na  França  num  momento  pós-­‐revolucionário,  quando  a  burguesia  havia  ascendido  

ao  poder.  Na  primeira  metade  do  século  XIX,  a  luta  pela  manutenção  do  poder,  por  parte  da  burguesia,  e  

pela  sua  tomada,  por  parte  de  uma  crescente  classe  de  trabalhadores,  desencadeia  não  apenas  uma  série  

de   convulsões   sociais   e   políticas,   mas   também   um   conjunto   de   ideologias   e   sistemas   que   tem   por  

objetivo  dar  sustentação  aos  vários  setores  em  luta.  

6ANDREY, Maria Amália et alii. Para Compreender a Ciência. São Paulo : EDUC – Editora da

PUC-SP, 2000;

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Comte   toma   o   partido   da   parcela  mais   conservadora   da   burguesia,   que   defendia   um   regime  

ditatorial  e  não  parlamentarista  e  que  buscava  criar  as  condições  para  se  fortalecer  no  poder  e  impedir  

quaisquer   ameaças,   identificadas   com   todas   as   tentativas   democratizantes   ou   revolucionárias.   Nesse  

sentido,   sua   proposta   de   uma   filosofia   e   de   reforma   das   ciências   tem   como   objetivo   sustentar   essa  

ideologia,   e   suas   ideias   de   reforma   da   sociedade   e   até   de   uma   nova   religião   são   coerentes   com   essa  

visão.  

Apesar  do  pensamento  de  Comte  parecer  ser  uma  resposta  às  condições  históricas  específicas  

do   capitalismo   francês   do   século   XIX,   os   lemas   positivistas   que   emergem   do   pensamento   de   Comte  

difundiram-­‐se  além  das  fronteiras  francesas,  chegando  a  influenciar  a  política  (e  a  sociedade)  de  países  

em   situação   histórica   bastante   diferente   da   França.   Tal   é   o   caso   do   Brasil,   como   o   reconhecem   não  

apenas  autores  brasileiros,  mas,  de  uma  maneira  geral,  vários  estudiosos  de  Comte:  

 

No  fim  dos  anos  1840  uma  Sociedade  Positivista  foi  findada  e  desde  então  a  doutrina  de  Comte  

começou   a   ganhar   adeptos.  De   acordo   caiu   o   próprio  plano  de  Comte,   a   Sociedade   tornou-­‐se  

mais  e  mais  um  tipo  de  religião  secular  com  seu  próprio  ritual;  alguma  coisa  disto  sobrevive  até  

hoje  na  França,  embora  tenha  preservado  sua  maior  fertilidade  no  Brasil.  (Kolakowski,  1972,  p.  

63).  

A   seita   religiosa   praticamente   não   chega   a   se   propagar   na   França.   Mas   o   amálgama   político  

ideológico   da   religião   positivista   lançara   raízes   na   América   Latina:   no   Brasil,   no   Chile,   no  

México.  A  revolução  brasileira  de  1889  será  obra  das  seitas  positivistas:  desde  então  a  bandeira  

brasileira  tem  a  divisa  Ordem  e  Progresso.  Benjamin  Constant,  o  ministro  da  Instrução  Pública  

nessa  época,  reforma  o  ensino  de  acordo  com  os  pontos  de  vista  de  Comte.  (Verdenal,  1974,  p.  

234)  

 

Apesar   de   ser   discutível   (e   isso   tem   sido   analisado   por   autores   brasileiros)   o   peso   do  

positivismo  para  o  estabelecimento  da  República  no  Brasil,  é  inegável  seu  papel,  pelo  menos  no  que  diz  

respeito  à  influência  de  alguns  homens  que  abraçavam  o  positivismo  e  que  foram  importantes  nesse  mo  

mento  histórico.  Tal  é  o  caso  de  Benjamin  Constant  e  dos  militares  brasileiros,  que  estavam  convencidos  

de  que  os  ideais  positivistas  serviriam  de  modelo  às  reformas  políticas,  sociais  e  econômicas  que  então  

se  processavam.  

Maar   (1981)   afirma   que,   embora   não   se   possa   atribuir   influência   decisiva   ao   movimento  

positivista   ortodoxo   na   instalação   da   República,   as   ideias   positivistas   influenciaram   o   seu  

estabelecimento   e   até,   em   alguns   casos,   algumas   medidas   institucionais.   Exemplo   disto   seria   a  

constituição   gaúcha   de   1891   que   estabelece,   entre   outras   coisas,   algumas   medidas   trabalhistas   que  

objetivavam   “integrar”   o   trabalhador   à   sociedade,   a   possibilidade   de   permanência   indefinida   no  

governo  do  chefe  de  estado  e  poderes  muito   limitados  à  assembléia.  Maar   lembra  ainda  que  o   ideário  

positivista  esteve,  e  talvez  ainda  esteja,  presente  no  Brasil:  nas  ideias  que  pregam  a  necessidade  de  um  

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estado   forte,   a   necessidade   dos  militares   como   um   poder  moderador,   nas   ideias   que   apontam   como  

desvios  perigosos  o  não  reconhecimento  de  uma  pretensa  harmonia  entre  as  classes  sociais,  nas  ideias  

que,   portanto,   acabam   por   privilegiar   a   força   sobre   a   lei.   E,   acima   de   tudo,   tais   ideias   estão  

representadas  até  hoje  no  lema  da  bandeira  brasileira,  Ordem  e  Progresso,  que  ainda  permeia  muito  a  

ideologia  nacional.  

Se  as  concepções  políticas  de  Comte  são  indispensáveis  para  se  compreender  a  influência  que  

exerceu   na   elaboração   de   determinadas   posturas   políticas,   a   influência   de   sua   obra   no   pensamento  

moderno  e  contemporâneo  não  se  restringe  a   tais  concepções.  Comte  elabora,   também,  uma  proposta  

para  as  ciências,  pretende  ser  o  fundador  de  uma  nova  ciência,  a  sociologia  (termo  que  ele  cunhou),  e  

funda   uma   religião.   A   compreensão   das   propostas   de   Comte   e   de   sua   influência   depende   da  

compreensão   de   cada   um   desses   aspectos   e,   principalmente,   do   entendimento   da   totalidade   de   seu  

pensamento.  

Vários  estudiosos  de  Comte  vêem  uma  ruptura  entre  sua  proposta  para  a  ciência  e  a  proposta  

de  uma  religião  como  base  de  uma  pretensa  reforma  social.  Acreditam  que  suas  posições  antimetafisicas  

e  antiteológicas,  no  que  se  refere  ao  conhecimento  científico,  não  são  compatíveis  com  sua  proposta  de  

uma   religião.   Indubitavelmente,   sua   influência   posterior   contou   com   adeptos   que   só   assumiram   seu  

cientificismo,   e   com   seguidores   que   assumiram   toda   sua   proposta.   No   entanto,   outros   estudiosos   de  

Comte  enfatizaram  que  esse  fato  (a  aceitação  apenas  de  suas  ideias  a  respeito  da  ciência)  não  revela,  em  

si,  uma  incoerência  no  pensamento  do  próprio  Comte  (mas  revelaria  condições  históricas  específicas  a  

que   estariam   submetidos   seus   seguidores).   Tais   estudiosos   afirmam   que   suas   propostas   de   reforma  

social   e   de   uma   “religião  da  humanidade”   são   consequências   necessárias   que   estão   contidas   em   suas  

propostas  para  a  ciência;  são  o  corolário  necessário  de  suas  crenças  políticas;  de  sua  visão  de  história  

como  um  progresso  contínuo  do  conhecimento  e  do  espírito  humano,  progresso  apenas  possível  com  e  

dentro  de  uma  ordem  ab  soluta;  e  de  sua  visão  de  uma  natureza  absolutamente  ordenada  segundo  leis  

invariáveis.   Esses   estudiosos   vêem,   assim,   as   ideias   de   Comte   como   um   sis   tema   unitário   no   qual,  

segundo  Verdenal  (1974),  

Em   última   análise   o   positivismo   é   a   fórmula   filosófica   que   permite   transmutar   a   ciência   em  

religião:  a  ciência,  desembaraçada  de  todo  além  teórico  da  especulação,  converte-­‐se  em  religião  

despojada  de  perspectiva  teológica  e  reduzida  aos  “fatos”  da  prática  religiosa:  os  ritos  sociais.  

(p.  24S)  

A  palavra   “positivo”  e  os   significados  a  ela  associados  marcam  diversos   temas  discutidos  por  

Comte,  como  a  história,  a  filosofia,  a  ciência  e  a  religião.  

Considerada  de  início  em  sua  acepção  mais  antiga  e  comum,  a  palavra  positivo  designa  real,  em  

oposição  a  quimérico.  Desta  ótica   convém  plenamente  ao  novo   espírito   filosófico,   caracterizado  

segundo  sua  constante  dedicação  a  pesquisas  verdadeiramente  acessíveis  a  nossa  inteligência  (.).  

Num   segundo   sentido   muito   vizinho   do   precedente,   embora   distinto,   esse   termo   fundamental  

indica  o  contraste  entre  útil  e  ocioso.  Lembra,  então,  em  filosofia,  o  destino  necessário  de  todas  as  

nossas   especulações   sadias   para   aperfeiçoamento   contínuo   de   nossa   verdadeira   condição  

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individual  ou  coletiva,  em  lugar  da  vã  satisfação  de  uma  curiosidade  estéril.  Segundo  uma  terceira  

sign   usual   essa   feliz   expressão   é,   frequentemente,   empregada   para   qua1   a   oposição   entre   a  

certeza   e   a   indecisão.   Indica,   assim,   a   aptidão   característica   de   tal   filosofia   para   construir  

espontaneamente  a  harmonia  lógica  no  indivíduo,  e  a  comunhão  espiritual  na  espécie  inteira,  em  

lugar  destas  dúvidas  indefinidas  e  destes  debates  intermináveis  que  devia  suscitar  o  antigo  regime  

mental.  Uma  quarta  acepção  ordinária,  muitas  vezes  confundida  com  a  precedente,   consiste  em  

opor  o  preciso  ao  vago.  Este  sentido  lembra  a  tendência  constante  do  verdadeiro  espírito  filosófico  

a  obter  em  toda  a  parte  o  grau  de  precisão  com  patível  com  a  natureza  dos  fenômenos  e  conforme  

as  exigências  de  nossas  verdadeiras  necessidades  (..).  

E   preciso,   enfim,   observar   especialmente   urna   quinta   aplicação,   menos   usada   que   as   outras,  

embora  igualmente  universal,  quando  se  emprega  a  palavra  positivo  como  contrária  a  negativo.  

Sob  este  aspecto,   indica  urna  das  mais  eminentes  propriedades  da  verdadeira  filosofia  moderna,  

,mostrando-­‐a   destinada   sobretudo,   por   sua   própria   natureza,   não   a   destruir,   mas   a   organizar.  

(Discurso  sobre  o  espírito  positivo,  1  parte,  V)  

Além   desses   cinco   atributos,   Comte   acrescenta   mais   um   significado   ligado,   embora   não  

diretamente,  à  palavra  positivo,  e  que,  para  ele,  deve  marcar  tal  pensamento.  

O  único  caráter  essencial  do  novo  espírito  filosófico,  não  ainda  indicado  diretamente  pela  palavra  

positivo,   consiste   em   sua   tendência   necessária   a   substituir,   em   todos   os   lugares,   absoluto   por  

relativo.  (Discurso  sobre  o  espírito  positivo,  l  parte,  VII)  

Comte  supõe,  no  entanto,  que  o  pensamento  nem  sempre  foi  marcado  por  essas  características.  

O  pensamento  positivo,  que  ele  considera  já  existir,  no  século  XIX,  em  vários  ramos  do  conhecimento  (e  

que  o  próprio  Comte  acreditava  estar  trazendo  para  o  último  ramo  do  conhecimento  —  a  sociologia)  é  

visto   como   fruto   de   uma   longa   história   do   desenvolvimento   do   pensamento.   Esse   desenvolvimento  

expressaria  uma  lei  necessária  de  transformação  do  espírito  humano,  que  Comte  chama  de  lei  dos  três  

estados,  segundo  a  qual,  numa  sucessão  necessária,  o  pensamento  humano  passaria  por  três  momentos,  

três  formas  de  conhecimento,  sendo  caracterizado,  em  cada  estado,  por  aspectos  diferentes,  até  atingir,  

no   seu   último  momento,   o   estado   positivo.   Com-­‐   te,   embora   expresse   essa   lei   como   absoluta,   já   que  

todas  as  áreas  do  conhecimento  humano  assim  se  desenvolveriam,  não  acredita  que  todas  as  áreas  do  

conhecimento   se   desenvolvam   concomitantemente   e   vê   nessa   lei   uma   regra   da   história   do  

desenvolvimento  da  humanidade  e  uma  regra  da  história  do  desenvolvimento  do  indivíduo.  

Em   outros   termos,   o   espírito   humano,   por   sua   natureza,   emprega   sucessiva-­‐  mente,   e   em   cada  

uma  das   suas   investigações,   três  métodos  de   filosofar,   cujo   caráter   é   essencialmente  d   e  mesmo  

radicalmente  oposto:  primeiro,  o  método  teológico,  em  seguida,  o  método  metafísico,  finalmente,  o  

método  positivo.  Daí  três  sortes  de  filosofia,  ou  de  sistemas  gerais  de  concepções  sobre  o  conjunto  

de   fenômenos,   que   se   excluem   mutuamente:   a   primeira   é   o   ponto   de   partida   necessário   da  

inteligência  humana;  a   terceira,   seu  estado   fixo  e  definitivo;  a   segunda,  unicamente  destinada  a  

servir  de  transição.  

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No   estado   teológico,   o   espírito   humano,   dirigindo   essencialmente   suas   investigações   para   a  

natureza   íntima   dos   seres,   as   causas   primeiras   e   finais   de   todos   os   efeitos   que   o   tocam,   numa  

palavra,  para  os  conhecimentos  absolutos,apresenta  os   fenômenos  corno  produzidos  pela  ação  

direta   e   contínua   de   agentes   sobrenaturais   mais   ou   menos   numerosos,   cuja   intervenção  

arbitrária  explica  todas  as  anomalias  aparentes  do  universo.  

No   estado   ,metafísico,   que   no   fundo   nada  mais   é   do   que   si  modo   geral   do   primeiro,   os   agentes  

sobrenaturais   são   substituídos   por   forças   abstratas,   verdadeiras   entidades   (‘abstrações  

personificadas)  inerentes  aos  diversos  seres  do  mundo,  e  concebidas  como  capazes  de  engendrar  

por  elas  próprias  todos  os  fenômenos  observados,  cuja  explicação  consiste,  então,  em  determinar  

para  cada  um  uma  entidade  correspondente.  

Enfim,   no   estado   positivo,   o   espírito   humano,   reconhecendo   a   impossibilidade   de   obter   noções  

absolutas,  renuncia  a  procurar  a  origem  e  o  destino  do  uni  verso,  a  conhecer  as  causas  íntimas  dos  

fenômenos,   para   preocupar-­‐se   unicamente   em   descobrir,   graças   ao   uso   bem   combinado   do  

raciocínio   e   da   observação,   suas   leis   efetivas,   a   saber,   as   relações   invariáveis   de   sucessão   e   de  

similitude.   A   explicação   dos   fatos,   reduzidas   então   a   seus   lermos   reais,   se   resume   de   agora   em  

diante  na  ligação  estabelecida  entre  os  diversos  fenômenos  particulares  e  alguns  fatos  gerais,  cujo  

número  o  progresso  da  ciência  tende  cada  vez  mais  a  diminuir.  

O  sistema  teológico  chegou  à  mais  alta  perfeição  de  que  é  suscetível  quando  substituiu,  pela  ação  

providencial   de   um   ser   único,   o   jogo   variado   de   numerosas   divindades   independentes,   que  

primitivamente  tinham  sido   imaginadas.  Do  mesmo  modo,  o  último  termo  do  sistema  metafísico  

consiste  em  conceber,  em  lugar  de  diferentes  entidades  particulares,  uma  única  grande  entidade  

geral,   a   natureza,   considerada   como   fonte   exclusiva   de   todos   os   fenômenos.   Paralelamente,   a  

perfeição   do   sistema   positivo   à   qual   este   tende   sem   cessam;   apesar   de   ser  muito   provável   que  

nunca  deva  atingi-­‐la,  seria  poder  representar  todos  os  diversos  fenômenos  observáveis  como  casos  

particulares  dum  único  fato  geral,  como  a  gravitação  o  exemplifica  (Curso  de  filosofia  positiva,   l  

lição,  II)  

A   lei   dos   três   estados   carrega   consigo,   ou   expressa,   uma   concepção   de   história.   Comte  

fundamenta   suas   noções   da   positiva   filosofia   e   do   espírito   positivo   na   noção   de   que   esse   estado   é  

decorrência   de   uma   evolução   histórica.   Essa   evolução   é   vista   por   ele   como   o   desenvolvimento   do  

espírito  e  do  conhecimento,  e,  apenas  como  consequência  dessa  transformação,  desenvolvem-­‐se,  então,  

as   condições  materiais   e   as   instituições   sociais.   A   história   é   vista   como   uma   evolução   necessária,   no  

sentido  de  que  os  vários   estágios   e  momentos   têm  de   ser  preenchidos  necessariamente,   e   como  uma  

evolução  linear  que  implica  sempre  a  superposição,  o  melhoramento,  mas,  jamais,  rupturas,  revoluções.  

A  história,   também,  para  Comte,  percorre  um  caminho  que  é  predeterminado  no  sentido  de  que  cada  

estado  leva  ao  outro  e  no  sentido  de  que  seu  fim  está,  também,  desde  o  início  estabelecido.  

O   espírito   positivo,   em   virtude   de   sua   natureza   eminentemente   relativa,   é   o   único   a   poder  

representar  convenientemente  todas  as  grandes  épocas  históricas  

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como  tantas  fases  determinadas  duma  mesma  evolução  fundamental,  onde  cada  uma  resulta  da  

precedente  e  prepara  a  seguinte,  segundo  leis  invariáVeis  que  fixam  sua  participação  especial  na  

progressão   comum,   de   maneira   a   sempre   permitir,   sem   maior   inconsequência   do   que  

parcialidade,   fazer   exata   justiça   filosófica   a   qualquer   sorte   de   cooperação.   (Discurso   sobre   o  

espírito  positivO,  2  parte,  X)  

A  história  é  vista,  assim,  como  um  conjunto  de  fases  imóveis  em  si  mesmas,  que  num  contínuo  

se  substituem  urnas  às  outras,  de  forma  que  cada  estágio  é  superior  ao  anterior,  decorrência  necessária  

deste   e   preparação,   também   necessária,   para   o   próximo   estágio,   até   que   se   chegue,   finalmente,   ao  

estado  superior.  

Sob  outro  aspecto  considera  sempre  o  estado  presente  como  resultado  necessário  do  conjunto  da  

evolução  anterior,  de  modo  afazer  constantemente  prevalecer  a  apreciação  racional  do  passado  

no   exame   atual   dos   negócios   humanos  —   o   que   logo   afasta   as   tendências   puramente   críticas,  

incompatíveis  COm  toda  sadia  concepção  histórica.  (Discurso  sobre  o  espírito  positivo,  2  parte,  X)  

A  história  transforma-­‐se  num  desenrolar  que  é  guiado  por  dois  princípios  básicos.  O  princípio  

de  ordem  —  de  urna   transformação  ordenada  e  ordeira,  que  não  comporta   transformações  violentas,  

que   não   comporta   saltos,   que   flui   num   contínuo.   E   o   princípio   do   progresso  —   a   transformação   que  

ocorre   no   desenrolar   da   história   é   uma   transformação   que   leva   a   melhora   mentos   lineares   e  

cumulatiVos.   Nesse   sentido,   a   história   que   se   resume   ao   desenvolvimento,   ao   progresso   linear   e  

segundo   uma   ordem   preestabelecida   e   que   nada   mais   é   que   o   desenvolvimento   do   espírito   e   do  

pensamento   segundo   leis   também   preestabelecidas   é   explicada   (e   compreendida)   pela   mera  

apresentação   de   suas   fases.   Nessa   visão   de   história   cabe   ao   homem   apenas   o   papel   de   resignação:   é  

preciso   aguardar   o   desenvolvimento   e   aguardá-­‐lo   respeitando   sua   ordem   natural,   seu   tempo,   seus  

limites,  num  processo  de  espera  que  é,  ele  também,  ordeiro.  

Para   a   nova   filosofia,   a   ordem   constitui   sem   cessar   a   condição   fundamental   do   progresso   e,  

,.reciprocamente  o  progresso  vem  a  se,  a  meta  necessária  da  ordem;  como  no  mecanismo  animal,  o  

equilíbrio  e  a  progressão  são  mutua  mente  indispensáveis,  a  título  de  fundamento  ou  destinação.  

(Discurso  sobre  o  espírito  positivos  2  parte,  X)  

Esses   dois   prinCípioS   de   ordem   e   de   progresso,   são   inseparáveis   entre   si:   “(...)   o   progressO  

conStitui,   co,no   a   ordem,   uma   das   duas   condições   fundamentais   da   civilização   moderna   “   (Discurso  

sobre  o  espírito  positivo,  2  parte,   IX),  eles  permeiam  não  apenas  a  visão  de  história  e  a  concepção  de  

sociedade  de  Comte,  mas  também  sua  concepção  de  ciência.  

Ao   discutir   o   conhecimento   no   seu   estágio   positivo,   Comte   erige   o   conhecimento   que   é  

científico  no  conhecimento  real,  útil,  preciso,  certo,  positivo  e,  nesse  sentido,  o  erige  no  conhecimento  

que  o  homem  deve  buscar  para  que  possa  não  apenas  reconhecer  a  ordem  da  natureza,  mas,  também,  

nela  interferir  em  seu  beneficio.  Trata-­‐se,  então,  de  discutir  quais  as  bases  desse  conhecimento.  E  Comte  

encontra   esses   fundamentos   nos   fatos,   afirmando   que   o   conhecimento   científico   é   real   porque   o  

conhecimento   científico   parte   do   real,   parte   dos   fatos   tal   como   se   apresentam   e   que,   de   resto,  

apresentam-­‐se  ao  homem  tal  como  são.  Para  ele,  não  se  podem  discutir  os  mecanismos  que  permitem  

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ao  homem  conhecer  (e  tal  discussão  não  passaria  de  um  retorno  à  teologia  ou  à  metafísica).  Tudo  o  que  

se  pode  estudar  são  as  condições  orgânicas  —  fisiologia,  anatomia  —  que  levam  ao  conhecimento  e  os  

‘processos   realmente   empregados   para   obter   os   diversos   conhecimentos   exa   tos   que   (o   hotnein)   já  

adquiriu”  (Curso  de  filosofia  positiva,  l  lição,  VIII).  

Assim,  para  Comte,  trata-­‐se  de  descobrir  que  métodos  os  homens  têm  empregado  para  chegar  

ao   conhecimento,   para,   desses   métodos,   extrair   sua   base   correta.   Comte   descobre   essa   base  

metodológica  nos  fatos,  agora  desprovidos  de  quaisquer  roupagens  que  o  obrigue  a  discuti-­‐los  em  sua  

relação  com  o  sujeito  que  produz  conhecimento.  

Todos   os   bons   espíritos   repetem,   desde   Bacon,   que   somente   são   reais   os   conhecimentos   que  

repousam  sobre  fatos  observados.  Essa  máxima  fundamental  é  evidentemente  incontestável,  se  for  

aplicada,  como  convém,  ao  estado  viril  de  nossa  inteligência.  (Curso  de  filosofia  positiva,  1   lição,  

III)  

Circunscreve   seus   esforços   ao   domínio,   que   agora   progride   rapidamente,   da   verdadeira  

observação,   única   base   possível   de   conhecimentos   verdadeiramente   acessíveis,   sabiamente  

adaptados   a   nossas   necessidades   reais.   A   lógica   especulativa   tinha   até   então   consistido   em  

raciocinar,  de  maneira  mais  ou  menos  sutil,  conforme  princípios  confusos  que,  não  comportando  

qualquer  prova  suficiente,  suscitavam  sempre  debates  sem  saída.  Reconhece  de  agora  em  diante,  

como   regra   fundamental,   que   toda   proposição   que   não   seja   estritamente   redutível   ao   simples  

enunciado  de  um  fato,  particular  ou  geral,  não  pode  oferecer  nenhum  sentido  real  e  inteligível.  Os  

princípios   que   emprega   são   apenas   fatos   verdadeiros,   somente  mais   gerais   e  mais   abstratos   do  

que  aqueles  dos  quais  deve  formar  o  elo.  Seja  qual  for,  porém,  o  modo,  racional  ou  experimental,  

de   proceder   à   sua   descoberta,   é   sempre   de   sua   conformidade,   direta   ou   indireta,   com   os  

fenômenos   observados   que   resulta   exclusivamente   sua   eficácia   cient(Jlca.   (Discurso   sobre   o  

espírito  positivo,  P  parte,  III)  

Comte,  entretanto,  não  supõe  que  a  mera  acumulação  de   fatos   leve  à  ciência  e,   fazendo  o  que  

acredita  ser  uma  crítica  ao  empirismo,  assume  que  os  fatos  acumulados,  que  são  a  base  e  a  origem  do  

conhecimento,   só   se   transformam   em   conhecimento   científico   porque   o   homem   OS   relaciona   a  

hipóteses,  por  meio  do  raciocínio.  Assim,  para  ele,  os   fatos  são  acumulados  pela  observação,  mas  essa  

observação   é   submetida   à   imaginação   que   permite   relacionar   tais   fatos;   relacioná-­‐los   para   que   se  

estabeleçam  as  leis  gerais  e  invariáveis  a  que  esses  estão  submetidos.  

A  pura  imaginação  perde  assim,  irrevogavelmente,  sua  antiga  supremacia  mental,  e  se  subordina  

necessariamente  à  observação,  de  maneira  a  constituir  um  estado  lógico  plenamente  normal,  em  

cessar,  entretanto,  de  exercer,  nas  especulações  positivas,  oficio  capital  e   inesgotável,  para  criar  

ou   aperfeiçoar   os   meios   de   ligação   definitiva   ou   provisória.   Numa   palavra,   a   revolução   funda  

mental,  que  caracteriza  a  virilidade  de  nossa  inteligência,  consiste  essencial-­‐  mente  em  substituir  

em   toda  parte   a   inacessível   determinação  das   causas   propriamente   ditas   pela   simples   pesquisa  

das  leis,  isto  é,  relações  constantes  que  existem  entre  os  fenômenos  observados.  Quer  se  trate  dos  

menores   quer   dos   mais   sublimes   efeitos,   do   choque   ou   da   gravidade,   do   pensamento   ou   da  

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moralidade,   deles   só   podemos   conhecer   as   diversas   ligações  mútuas   próprias   à   sua   realização,  

sem  nunca  penetrar  no  mistério  de  sua  produção.  (Discurso  sobre  o  espírito  positivo,  1  parte,  III)  

O   conhecimento   científico   é,   portanto,   para   Comte,   baseado   na   observação   dos   fatos   e   nas  

relações   entre   fatos   que   são   estabelecidas   pelo   raciocínio.   Essas   relações   excluem   tentativas   de  

descobrir  a  origem,  ou  uma  causa  subjacente  aos  fenômenos,  e  são,  na  verdade,  a  descrição  das  leis  que  

os   regem.   Comte   afirma:   “Nossas   pesquisas   positivas   devem   essencialmente   reduzir-­‐se,   em   todos   os  

gêneros,   à   apreciação   sistemática   daquilo   que   é,   renunciando   a   descobrir   sua   primeira   origem   e   seu  

destino  final”  (Discurso  sobre  o  espírito  positivo,  la  parte,  III).  

As   leis   dos   fenômenos   devem   traduzir,   necessariamente,   o   que   ocorre   na   natureza   e,   como  

dogma,  Comte  parte  do  princípio  de  que  tais  leis  são  invariáveis.  

Para  Comte,  o  conhecimento  científico  seria  constituído  por  um  conjunto  de  leis:  “Nas  leis  dos  

fenômenos   consiste   realmente   a   ciência   (...)“   (Discurso   sobre   o   espírito   positivo,   la   parte,   III).   A  

descoberta  das  leis  tem  por  objetivo  básico  satisfazer  a  curiosidade  humana  

(..)  as  ciências  possuem,  antes  de  tudo,  destinação  mais  direta  e  elevada,  a  saber,  a  de  satisfazer  a  

necessidade  fundamental  sentida  por  nossa  inteligência,  de  conhecer  as  leis  dos  fenômenos.  (Curso  

de  filosofia  positiva,  P  lição,  III)  

Além  desse   objetivo   fundamental   do   conhecimento   positivo,   este   deve,   também,   ser   útil:   “(..)  

ciência,  daí  previdência:  previdência,  daí  ação”  (Curso  de  filosofia  positiva,  P  lição,  III).  

Esses  aspectos  relativos  ao  conhecimento  científico  são,  assim,  explicitados  pelo  próprio  Comte:  

Ora,   considerando  a  destinação   constante  dessas   leis,   pode-­‐se   dizer,   sem  exa  gero  algum,   que  a  

verdadeira   ciência,   longe   de   ser   formada   por   simples   observações,   tende   sempre   a   dispensar,  

quanto  possível,  a  exploração  direta,  substituindo-­‐a  por  essa  previsão  racional  que  constitui,  sob  

todos   os   aspectos,   o   principal   caráter   do   espírito   positivo,   como   o   conjunto   dos   estudos  

astronômicos   nos   fará   sentir   claramente.   Tal   previsão,   consequência   necessária   das   relações  

constantes  descobertas  entre  os  fenômenos,  não  permitirá  nunca  confundir  a  ciência  real  com  essa  

vã   erudição,   que   acumula   maquinalinente   fatos   sem   aspirar   a   deduzi-­‐los   uns   dos   outros.   Esse  

grande   atributo   de   todas   as   nossas   especulações   sadias   não   interessa   menos   à   sua   utilidade  

efetiva  do  que  à  sua  própria  dignidade;  pois  a  exploração  direta  dos  fenômenos  acontecidos  não  

bastará   para   nos   permitir   ,nodo   acontecimento,   se   não   nos   conduzisse   a   prevê-­‐los  

convenientemente.  Assim,  o  verdadeiro  espírito  positivo  consiste,  sobretudo,  em  ver  para  crer,  em  

estudar  o  que  é  a  fim  de  concluir  disso  o  que  será,  segundo  o  dogma  geral  da  invariabilidade  das  

leis  naturais.  (Discurso  sobre  o  espírito  positivo,  1’  parte,  III)  

O  conhecimento  científico  positivo,  que  estabelece  as  leis  que  regem  os  fenômenos  de  forma  a  

refletir  o  modo  como  tais   leis  operam  na  natureza,   tem,  para  Comte,  ainda,  duas  características:  é  um  

conhecimento  sempre  certo,  não  se  admitindo  conjecturas,  e  é  um  conhecimento  que  sempre  tem  algum  

grau  de  precisão,  embora  esse  grau  varie  de  ciência  para  ciência,  dependendo  do  seu  objeto  de  estudo.  

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Assim,   Comte   reforça   a   noção  de   que   o   conheci  mento   científico   é   um   conhecimento  que  não   admite  

dúvidas  e  indeterminações  e  o  desvincula  de  todo  conhecimento  especulativo.  

Se,   conforme   a   explicação   precedente,   as   diversas   ciências   devem   necessariamente   apresentar  

uma   precisão   muito   desigual   não   resulta   dai,   de   modo   algum,   sua   certeza.   Cada   uma   pode  

oferecer  resultados  tão  certos  como  qualquer  outra,  desde  que  saiba  encerrar  suas  conclusões  no  

grau   de   precisão   que   os   fenômenos   correspondentes   comportam,   condição   nem   sempre   fácil   de  

cumprir  Numa  ciência  qualquer,  tudo  o  que  é  simplesmente  conjectural  é  apenas  mais  ou  menos  

provável,  não  está  aí   seu  domínio  essencial;   tudo  o  que  é  positivo,   isto  é,   fundado  em   fatos  bem  

constatados,  é  certo  —  não  há  distinção  a  esse  respeito.  (Curso  de  filosofia  positiva,  2’  lição,  XI)  

No  entanto,  embora  assumindo  que  o  conhecimento  científico  é  certo,  Comte  o  afirma,  também,  

relativo.  O  conhecimento  é  relativo  porque  os  homens  só  o  alcançam  na  medida  de  suas  possibilidades,  

isto  é,   limitados  pelo  seu  aparato  sensorial,  que  não   lhes  permite  a   tudo  perceber,  a   tudo  observar.  E  

relativo,   ainda,   porque,   para   Comte,   o   conhecimento,   medido   por   sua   utilidade,   transforma-­‐se   e  

incorpora   novos   conhecimentos,   levando,   assim,   a   seu   desenvolvimento,   permitindo   ao   homem   sua  

utilização  mais  ampla  e  a  descrição  de  mais  fatos;  embora  não  lhe  permita  descrever  tudo  o  que  há.  

(..)   importa,   ademais,   sentir   que   esse   estudo   dos   fenômenos,   ao   invés   de   poder   de   algum  modo  

tornar-­‐se   absoluto,   deve   sempre   permanecer   relativo   à   nossa   organização   e   à   nossa   situação.  

Reconhecendo,   sob   esse   duplo   aspecto,   a   imperfeição   necessária   de   nossos   diversos   meios  

especulativos,  percebe-­‐se  que,   longe  de  poder  estudar   completamente  alguma  existência  efetiva,  

de   modo   algum   poderíamos   garantir   a   possibilidade   de   constatar   assim,   ainda   que   mui   to  

superficialmente,  todas  as  existências  reais,  cuja  maior  parte  talvez  deva  nos  escapar  totalmente.  

Se  a  perda  de  um  sentido  importante  basta  para  nos  esconder  radicalmente  uma  ordem  inteira  de  

fenômenos   naturais,   cabe   pensar,   reciprocamente,   que   a   aquisição   de   um   sentido   novo   nos  

desvendaria  uma   classe  de   fatos,   de   que  não   temos  agora   ideia  alguma,   a  menos  de   crer   que  a  

diversidade   dos   sentidos,   tão   diferentes   entre   os   principais   tipos   de   animalidade,   se   encontre  

levada,   em   nosso   organismo,   ao   mais   alto   grau   que   possa   exigir   a   exploração   total   de   nosso  

mundo  exterior,  suposição  evidentemente  gratuita  e  quase  ridícula.  

(..)   Se   portanto,   sob   o   primeiro   aspecto,   se   reconhece   que   nossas   especulações   devem   sempre  

depender   tias   diversas   condições   essenciais   de   nossa   existência   individual,   é   preciso   igualmente  

admiti,;   sob  o  segundo,  que  não  estão  menos  subordinadas  ao  conjunto  da  progressão  social,  de  

maneira  a  nunca  poder  comportar  essa  fixidez  absoluta  que  os  metafísicos  supuseram.  Ora,  a  lei  

geral  do  movimento  fundamental  da  Humanidade  consiste,  a  esse  respeito,  em  que  nossas  teorias  

tende,,   cada   vez   mais,   a   representar   exatamente   os   assuntos   exteriores   de   nossas   constantes  

investigações,   semi   que   entretanto   a   verdadeira   constituição   de   cada   um   deles   possa,   em   caso  

algum,   ser   plenamente   aprecia   da.   A   perfeição   científica   deve   limitar-­‐se   à   aproximação   desse  

limite  ideal,  tanto  quanto  o  exigem  nossas  diversas  necessidades  reais.  (Discurso  sobre  o  espírito  

positivo,  1’  parte,  III)  

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É  interessante  notar  que  a  defesa  do  caráter  relativo  do  conhecimento  parece  incoerente  com  

outras   afirmações   de   Comte.   Ao   discutir   as   características   do   aparato   sensorial   dos   homens,   Comte  

introduz   a   presença   do   sujeito   que   produz   o   conhecimento.   E   esta   é   uma   questão   que   Comte  

explicitamente  afirma  querer  evitar,  uma  vez  que  abre  a  discussão   sobre  o  papel  da   subjetividade  na  

produção  de  conhecimento,  O  outro  aspecto  apontado  por  Comte  como  constituindo  o  caráter  relativo  

do  conhecimento,  que  é  a  trans  formação  que  o  conhecimento,  sofre  no  sentido  de  seu  aprimoramento,  

parece  indicar  os  limites  que  o  termo  relativo  tem  na  concepção  de  Comte:  ao  afirmar  a  relatividade  do  

conhecimento,   apelando   para   sua   transformação   e   desenvolvimento   no   decorrer   da   história,   Comte,  

num   certo   sentido,   absolutiza   o   conhecimento   porque   supõe   esse   desenvolvimento   como   linear   e  

sempre  progressivo.  

Mais  do  que   isto,   segundo  Bréhier   (1977b)  e  Kolakowski   (1972),  o   reconhecimento  de  que  o  

conhecimento   científico   é   relativo   às   necessidades   cotidianas   é   o   que   permite   a   Comte   retirar   do  

conjunto  do  conhecimento  científico  os  resultados  que   lhe  parecem   incompatíveis  com  aquilo  que  ele  

acredita   ser   a   ordem   da   natureza   que   tais   conhecimentos   deveriam   expressar.   Comte   recusa-­‐se,   por  

exemplo,  a  aceitar  a  teoria  da  evolução,  já  que  esta  impede  classificações  permanentes.  Bréhier  afirma:  

“Comte  condena  estas  pesquisas  como  sendo  contrárias  à  positividade  verdadeira  (...)  as  pesquisas  que  

podem  ser  feitas  fora  dos  limites  da  experiência  corrente  são  inúteis  e,  ademais,  infinitas”  (p.  264).  

Kolakowski  (1972)  vai  além  e  afirma:  

Aquelas  áreas  do  mundo  que  permitem  apenas  classificações   fluidas,  que  re  velam  transições  

qualitativas  contínuas  ou  quaisquer  características  enigmáticas,  perturbam-­‐no  e  irritam-­‐no  (...).  

Comte  é  um  fanático  no  que  diz  respeito  à  busca  de  uma  ordem  definitiva  e  eterna.  (p.  77)  

A  noção  de  ordem  remete  à  noção  de  organização  e  aqui  se  chega  a  uma  última  característica  

dentre  as   levantadas  por  Comte  como  pertencentes  ao  pensamento  positivo  e,  portanto,  pertencentes  

também,  inevitavelmente,  à  ciência.  E  nesse  sentido  que  se  deve  compreender  a  afirmação  de  Comte  de  

que  o  pensamento  positivo   se  opõe  ao  negativo   (à   crítica)  porque  busca  não  destruir,  mas  organizar.  

Para  organizar  o  conhecimento  é  necessário  supor  uma  ordem  preexistente;  mais  que  isto,  a  ordem  do  

conhecimento  deve  supor,  por  princípio,  uma  ordem,   também,  na  própria  natureza.  A  natureza  é  com  

posta,  para  ele,  por  classes  de   fenômenos  ordenados  de   forma   imutável  e   inexorável  e  cabe  à  ciência,  

apenas,  apreender  e  descrever  tal  ordem.  

(..)   todos   os   acontecimentos   reais,   compreendendo   os   de   nossa   própria   existência   individual   e  

coletiva,   estão   sempre   sujeitos   a   relações   naturais   de   sucessão   e   de   similitude   essencialmente  

independentes  de  nossa  intervenção.  (..)  Embora  essa  ordem  lenha  sido  ignorada  por  muito  tempo,  

seu   império   inevitável   nem   por   isso   dele   de   tender   a   regulai   sem   que   quiséssemos,   toda   nossa  

existência,  primeiro,  ativa,  e,  em  seguida,  contemplativa  ou  mesmo  afetiva.  Na  medida  em  que  a  

conhecemos,  nossas  concepções  se  tomaram  menos  vagas,  nossas  inclinações  menos  caprichosas,  

nossa   conduta  menos   arbitrária.   Desde   que   aprendemos   seu   conjunto,   tende   a   regularizar,   em  

todos   os   gêneros,   a   sabedoria   humana,   apresentando   sempre   nossa   economia   art   como   um  

judicioso  prolongamento  dessa   irresistível   economia  natural.   Esta   é   preciso   estudar   e   respeitar,  

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para  chegar  a  aperfeiçoá-­‐la.  Mesmo  naquilo  que  nos  oferece  de  verdadeiramente  fatal,   isto  é,  de  

não  modificável,  essa  ordem  exterior  é  indispensável  para  a  direção  de  nossa  existência,  a  despeito  

das   recriminações   art   de   tantas   inteligências   orgulhosa.s.   (..)   Incapazes   de   criar,   só   sabemos  

modificar,   em   nosso   proveito,   uma   ordem   essencialmente   superior   à   nossa   influência.   Supondo  

possível  a   independência  absoluta,  sonhada  pelo  orgulho  metafísico,  percebemos   logo  que,   longe  

de  melhorar  nosso  destino,  ela   impediria  todo  florescimento  real  de  nossa  existência,  até  mesmo  

privada.  (Discurso  preliminar  sobre  o  conjunto  do  positivismo,  p.  110)  

Esses  trechos  deixam  clara  a  completa  recusa  de  Comte  em  admitir  a  indeterminação  ou  acaso  

em  qualquer  fenômeno  da  natureza,  e  Comte  afirma  ser  

(...)  aberração  radical  de  quase  todos  os  geômetras  atuais  (..)  o  pretenso  cálculo  do  acaso,  em  que  

se  supõe  necessariamente  que  os  fatos  correspondentes  não  seguem  lei  alguma.  (Discurso  preliminar  sobre  

o  conjunto  do  positivismo,  p.  109)  

Entretanto,  Comte  supõe  graus  de  possibilidade  diferentes  do  homem  intervir  nessa  natureza  

rigidamente  ordenada.  Essa  possibilidade  é  maior  em  relação  aos  fenômenos  referentes  à  existência  do  

homem   (individual   ou   co   letiva)   e   menor   em   relação   aos   fenômenos   não   diretamente   vinculados   à  

existência   humana,   chegando   a   zero   na   astronomia,   que   diz   respeito   aos   fenômenos   mais   gerais   da  

natureza  e,   também,  mais  distantes  do  homem.  Porém,  mesmo  as  modificações  possíveis  não  passam,  

para   Comte,   de   modificações   secundárias   nos   fenômenos,   já   que   não   criam   uma   nova   ordem   e   não  

podem  alterar   a   lei   que   rege  os   fenômenos.   Por   isto,   Comte   enfatiza   e   critica   a   falsa  noção  que   essas  

transformações   secundárias   frequentemente   geram.   A   noção   de   que,   se   é   possível   controlar   e  

transformar   fenômenos,   estes   não   seriam,   então,   sujeitos   a   leis   imutáveis.   Partindo  dessas   noções   de  

ordem  na  natureza  e  da  imutabilidade  de  suas  leis  e  de  uma  consequente  ordenação  do  conhecimento,  

Comte  propõe  uma  classificação  para  as  ciências.  Essa  classificação  está  fundamentada  no  que  concebe  

como   sendo  o   objetivo  das   ciências  —  o   estabelecimento  das   leis   que   regem  os   fenômenos  —  e  que,  

para   Comte,   não   pode   ser   confundida   com   o   objetivo   das   artes   (da   tecnologia)   de   buscar   aplicação  

prática  imediata  para  o  conhecimento.  

É,   pois,   evidente   que,   depois   de   ter   concebido,   de   maneira   geral,   o   estudo   da   natureza   como  

servindo  de  base  racional  à  ação  sobre  ela,  o  espírito  humano  deva  proceder  a  pesquisas  teóricas,  

fazendo   completamente   abstração   de   toda   consideração   prática;   porquanto   nossos  meios   para  

descobrir  a  verdade  são  de  tal  modo  fracos  que,  se  não  os  concentrássemos  exclusivamente  neste  

fim,   se,   na   procura   desta   verdade   nos   impuséssemos,   ao  mesmo   tempo,   a   condição   estranha   de  

encontrar  nela  uma  utilidade  prática  imediata,  quase  nos  seriam  sempre  impossível  chegar  a  ela.  

(Curso  de  filosofia  positiva,  2  lição,  III)  

A   partir   desse   suposto,   Comte   estabelece   uma   divisão   entre   “ciências   abstratas”,   que   ele  

considera  fundamentais,  e  as  “ciências  concretas”:  

É  preciso  distinguir,  em  relação  a  todas  as  ordens  de  fenômenos,  dois  gêneros  de  ciências  naturais:  

umas,  abstratas,  gerais,   tendo  por  objeto  a  descoberta  das   leis  que  regem  as  diversas  classes  de  

fenômenos  e  que  consideram  todos  os  casos  possíveis  de  conceber;  outras,  concretas,  particulares,  

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descritivas,   designadas   algumas   vezes   sob   o   no   de   ciências   naturais   propriamente   ditas,   e   que  

consistem  na  aplicação  dessas   leis  à  história  efetiva  dos  diferentes  seres  existentes.  As  primeiras  

são,  pois,   fundamentais,  sendo  a  elas  que  neste  curso  nossos  estudos  se   limitarão.  As  outras,  seja  

qual   for   sua   importância,   são   de   fato   apenas   secundários   e   não   deve,   e,   por   conseguinte,   fazer  

parte  dum  trabalho  cuja  extensão  extrema  nos  obriga  a  reduzir  ao  mínimo  seu  desenvolvimento  

possível.  (Curso  de  filosofia  positiva,  2  lição.  IV)  

Para   as   ciências   fundamentais,   e   segundo   uma   ordem   que   é   da   própria   natureza,   Comte  

estabelece  uma  classificação  que  obedece  ao  grau  de  simplicidade  e  generalidade  do  objeto  a  que  cada  

ciência   fundamental   se   refere.   Assim,   sua   classificação   se   inicia   com   as   ciências   que   se   ocupam   dos  

fenômenos  mais  simples  e  mais  distantes  dos  homens  e  que  são,  também,  os  mais  gerais.  Os  fenômenos  

mais   simples   e   mais   gerais   influenciam   os   mais   particulares   e   mais   complexos   e,   por   isto,   o  

conhecimento  destes  supõe  o  conhecimento  necessário  dos  primeiros.  Essa  ordenação  se  constitui,  para  

Comte,   numa   hierarquia   rígida   e   que   tem   uma   só   direção,   não   havendo   a   possibilidade   de   que   os  

fenômenos  mais  particulares,  como,  por  exemplo,  os  fenômenos  químicos,  exerçam  qualquer  influência  

sobre  fenômenos  mais  gerais,  como,  por  exemplo,  os  fenômenos  físicos.  

Num   primeiro   momento,   Comte   hierarquiza   cinco   ciências   fundamentais,   com   o   intuito   de  

esclarecer  e  aplicar  seus  critérios  de  classificação:  

Como  resultado  dessa  discussão,  a   filosofia  positiva   se   encontra,  pois,   natural  dividida  em  cinco  

ciências   fundamentais,   cuja   sucessão   é   determinada   pela   subordinação   necessária   e   invariável,  

fundada,  independentemente  de  toda  opinião  hipotética,  na  simples  comparação  aprofundada  dos  

fenômenos  correspondentes:  a  astronomia,  a  física,  a  química,  a  filosofia  e,  enfim,  a  física  social.  A  

primeira  considera  os   fenômenos  mais  gerais,  mais  simples,  mais  abstratos  e,  mais  afastados  da  

humanidade,  e  que  influenciam  todos  os  outros  sem  serem  influenciados  por  estes.  Os  fenômenos  

considerados   pela   última   são,   ao   contrário,   os   mais   particulares,   mais   complicados,   mais  

concretos  e  mais  diretamente  interessantes  para  o  homem;  dependem,  mais  ou  menos,  de  todos  os  

precedentes,   sem   exercer   sobre   eles   influência   alguma.   Entre   esses   extremos,   os   graus   de  

especialidade,  de  complicação  e  de  personalidade  dos  fenômenos  vão  gradualmente  aumentando,  

assim  como  sua  dependência  sucessiva.  Tal  é  a  íntima  relação  geral  que  a  verdadeira  observação  

filosófica,  convenientemente  empregada,  ao  contrário  de  vãs  distinções  arbitrárias,  nOS  conduz  a  

estabelecer  entre  as  diversas  ciências  fundamentais.  Este  deve  ser,  portanto,  o  plano  deste  curso.  

(Curso  de  filosofia  positiva,  2  lição,  X)  

A  essas  cinco  ciências,  acrescenta,  então,  uma  sexta,  que  vem  a  ser  a  base  para  todas  as  outras  

ciências  fundamentais.  

É,   de   resto,   evidente   que,   colocando   a   ciência  matemática   no   topo   da   filosofia   positiva,   apenas  

estamos   estendendo   ainda   mais   a   aplicação   desse   princípio   de   classificação,   fundado   na  

dependência   sucessiva   das   ciências,   resultante   do   grau   de   abstração   de   seus   fenômenos  

respectivos.  (..)  Vê-­‐se  que  os  fenômenos  geométricos  e  mecânicos  são,  entre  todos,  os  mais  gerais,  

os  mais  simples,  os  mais  abstratos,  os  mais  irredutíveis  e  os  mais  independentes  de  todos  os  outros,  

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de   que   constituem   ao   contrário,   a   base.   (.)   Como   resultado   definitivo   temos   a   matemática,   a  

astronomia,   a   física,   a   química,   a   fisiologia,   e   a   física   social;   tal   é   a   fórmula   enciclopédica   que,  

dentre  o  grande  número  de  classificações  que  comportam  as  seis  ciências  fundamentais,  é  a  única  

logicamente   conforme   à   hierarquia   natural   e   invariável   dos   fenômenos.   Não   preciso   lembrar   a  

importância   desse   resultado,   com   que   o   leitor   deve   familiarizar-­‐se   para   dele   fazer,   em   toda   a  

extensão  deste  curso,  uma  aplicação  contínua.  (Curso  de  filosofia  positiva,  2  lição,  XII)  

Uma  última  característica  significativa  da  proposta  de  Comte  para  a  ciência  é  sua  defesa  de  que  

todas  as  ciências  devem  se  utilizar  de  um  método  único.  

A  unidade  do  método  não  significa  que  Comte  defenda  que  todas  as  ciências  devam  se  submeter  

aos  mesmos  procedimentos  de   investigação;   ao   contrário,   procedimentos   específicos   são  vistos   como  

adaptados  estreitamente  aos  objetos  a  que  se  referem,  assim,  por  exemplo,  a  química  deve  utilizar  da  

experimentação,  enquanto  a  biologia  deve  utilizar  da  comparação  e  classificação.  Essa  unidade  se  refere,  

para  Comte,  à  aplicação  da  filosofia  positiva  a  todos  os  ramos  do  conhecimento,  e,  nesse  sentido,  pode-­‐

se  entender  como  unidade  do  método  a  aplicação  de  procedimentos  que  levem  à  descoberta  e  descrição  

das  leis  que  regem  os  fenômenos,  a  partir  dos  fatos  e  do  raciocínio  que  permitem  relacioná-­‐los  segundo  

essas   leis,  a   fim  de  alcançar  um  conhecimento  positivo  que,  como  já   foi  dito,  deve  ser:  real,  útil,  certo,  

preciso,  que  busca  organizar  e  não  destruir  e  que  é  relativo.  

A  única  unidade  indispensável  é  a  unidade  do  método,  que  pode  e  deve  evidentemente  existir  e  já  

se  encontra,  na  maior  parte,  estabelecida.  Quanto  à  doutrina,  não  é  necessário  ser  una,  basta  que  

seja  homogênea.  E,  pois,  sob  o  duplo  ponto  de  vista  da  unidade  dos  métodos  e  da  homogeneidade  

das   dou   trinas   que   consideraremos,   neste   curso,   as   diferentes   classes   de   teorias   positivas.  

Tendendo   a   diminuir   o   mais   possível,   o   número   das   leis   gerais   necessárias   para   a   explicação  

positiva  dos  fenômenos  naturais,  o  que  é,  com  efeito,  a  meta  filosófica  da  ciência,  consideraremos  

entretanto,  como  temerário  aspirar  um  dia,  ainda  que  para  um  futuro  muito  afastado,  a  reduzi-­‐

las  rigorosamente  a  uma  só.  (Curso  de  filosofia  positiva,  1  lição,  X)  

A  garantia  de  uma  unidade  do  método  a  todas  as  ciências  está  associada  ao  que  Comte  talvez  

considere   seu   grande   empreendimento:   a   criação   de   uma   física   social,   ou   uma   sociologia,   ou   seja,   a  

criação  de  uma  ciência  que  se  ocuparia  da  explicação  da  sociedade,  possível  pela  aplicação  do  mesmo  

método  já  empregado  nas  outras  ciências.  

Eis   a   grande   mas,   evidentemente,   única   lacuna   que   se   trata   de   preencher   para   constituir   a  

filosofia  positiva.   Já  agora  que  o  espírito  humano   fundou  a   física  celeste;  a   física   terrestre,  quer  

mecânica,   quer   química;   a   física   orgânica,   seja   vegetal   seja   animal   resta-­‐lhe,   para   terminar   o  

sistema  das  ciências  de  observação,  fundar  a  física  social.  Tal  é  hoje  em  várias  direções  capitais,  a  

maior  e  mais  urgente  necessidade  de  nossa  inteligência.  Tal  é,  ouso  dizei;  o  primeiro  objetivo  deste  

curso,  sua  meta  especial.  (Curso  de  filosofia  positiva,  l  lição,  VI)  

Essa  meta  que  Comte  se  coloca,  a  criação  de  uma  nova  ciência  —  a  da  sociedade  —,  implica  uma  

visão  de  sociedade  e  um  conjunto  de  propostas  para  ela.  

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Assim   como   ocorre   com   as   outras   ciências   que   se   ocupam   de   fatos   que   são   regidos   por   leis  

naturais   e   imutáveis,   também   a   sociedade   é   vista,   por   Comte,   como   governada   por   leis   que   são  

imutáveis  em  si  mesmas  e  que  são  independentes  da  vontade  dos  indivíduos  ou  do  coletivo.  

Essas  leis,  que  são  da  mesma  natureza  das  que  governam  a  física  ou  a  biologia,  são,  no  entanto,  

leis  próprias  e  particulares  aos   fenômenos   sociais.  Estes   são  vistos   como   fenômenos  mais   complexos,  

como   fenômenos   regidos   por   suas   próprias   leis   que   não   se   constituem   em  mera   extensão   de   outras,  

como   da   fisiologia,   por   exemplo.   A   fisiologia,   que   estuda   os   indivíduos,   não   substitui   o   estudo   da  

sociedade,  embora  fundamente  esse  estudo.  

Em   todos   os   fenômenos   sociais   observa-­‐se,   primeiramente,   a   influência   das   leis   fisiológicas   do  

indivíduo  e,  ademais,  alguma  coisa  de  particular  que  modifica  seus  efeitos  e  que  provém  da  ação  

dos  indivíduos  uns  sobre  os  outros,  algo  que  se  complica  particularmente  na  espécie  humana  por  

causa   da   ação   de   cada   geração   sobre   aquele   que   lhe   segue.   E   pois   evidente   que,   para   estudar  

convenientemente  os  fenômenos  sociais,  é  preciso  partir  de  início  do  conheci  mento  aprofundado  

das  leis  relativas  à  vida  individual.  Por  outro  lado,  essa  subordinação  necessária  dos  dois  estudos  

não  prescrevei  de  modo  algum,  como  certos  fisiologistas  de  primeira  ordem  foram  levados  a  crer  a  

necessidade   de   ver   na   física   social   simples   apêndice   da   fisiologia.   A   despeito   de   os   fenômenos  

serem   por   certo   homogêneos   não   são   idênticos   e   a   separação   das   duas   ciências   é   duma  

importância   verdadeiramente   fundamental.   Pois   seria   impossível   tratar   o   estudo   coletivo   da  

espécie  como  pura  dedução  do  estudo  do  indivíduo,  porquanto  as  condições  sociais,  que  modificam  

a  ação  das  leis  fisiológicas,  constituem  precisamente  a  consideração  mais  essencial.  Assim,  a  física  

social   deve   fundar-­‐se   num   corpo   de   observações   diretas   que   lhe   seja   próprio,   atentando,   como  

convém,  para  sua  íntima  relação  necessária  com  a  fisiologia  propriamente  dita.  (Curso  de  filosofia  

positiva,  2  lição,  IX)  

Comte  faz,  também,  uma  distinção  entre  o  indivíduo  e  o  coletivo.  Caracteriza  o  homem  como  ser  

inteligente  e  dotado  de  sociabilidade  (o  que  o  diferencia  dos  animais)  e  reivindica  para  o  coletivo,  para  o  

grupo  social,  uma  superioridade  perante  o  indivíduo.  E  dessa  concepção  que  decorre  sua  noção  de  que  

os   homens,   enquanto   indivíduos   numa   sociedade,   existem   como   substitutos   efêmeros   de   outros  

indivíduos  e  que,  como  tal,  têm  importância,  apenas,  como  perpetuadores  da  espécie.  E  esse  caráter,  o  

de   um   grupo   constantemente   modificado   pela   substituição   de   indivíduos   particulares,   mas   que   se  

perpetua  e  que  permanece  essencialmente  o  mesmo  (apesar  dos  indivíduos  particulares)  por  garantir  a  

sobrevivência   da   espécie   e   por   submeter-­‐se   às   mesmas   leis   naturais,   que   garante,   de   um   lado,   a  

superioridade  do  coletivo  sobre  o   individual,  de  outro   lado,  a  preocupação  da  sociologia  com  o  grupo  

social,  e  de  outro,  ainda,  a  noção  de  que  os  objetivos  a  serem  alcançados  pela  sociedade  são  os  objetivos  

relevantes   ao   grupo   e   não   ao   endivido.   Ademais,   isto   leva   à   noção   de   que,   no   verdadeiro   espírito  

positivo,  a  felicidade  individual  é  obtida  pela  felicidade  do  grupo.  

O  espírito  positivo  ao  contrário,  é  diretamente  social  tanto  quanto  possível  e  sem  nenhum  esforço,  

precisamente  por  causa  de  sua  realidade  característica.  Para  ele  o  homem  propriamente  dito  não  

existe  existindo  apenas  a  humanidade  já  que  nosso  desenvolvimento  provém  da  sociedade  a  partir  

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de  qualquer  perspectiva  que  se  o  considere.  Se  a  ideia  de  sociedade  parece  ainda  uma  abstração  

de  nossa  inteligência,  é  sobretudo  em  virtude  do  antigo  regime  filosófico,  porquanto,  a  bem  dizer,  

é  à   ideia  de   indivíduo  que  pertence   tal  caráter,  ao  menos  em  nossa  espécie.  O  conjunto  da  nova  

filosofia  sempre  tenderá  a  salientar,  tanto  na  vida  ativa  quanto  na  vida  especulativa  a  ligação  de  

cada  um  a  todos  sob  uma  multidão  de  aspectos  diferentes,  de  maneira  a  tornar  involuntariamente  

familiar  o  íntimo  sentimento  de  solidariedade  social  convenientemente  desdobrado  para  todos  os  

tempos   e   todos   os   lugares.   Não   somente   a   ativa   procura   do   bem   público   será,   sem   cessar,  

considerada   como  o  modo  mais  próprio  de  assegurar   comumente  a   felicidade  privada  graças  a  

uma   influência   ao   mesmo   tempo   mais   direta   e   mais   pura   e,   finalmente   mais   eficaz;   o   mais  

completo   exercício   possível   das   tendências   gerais   tornar-­‐se-­‐á   a   principal   fonte   da   felicidade  

pessoal,  ainda  que  não  devesse  trazer  excepcionalmente  outra  recompensa  além  de  uma  inevitável  

satisfação  interior.  (Discurso  sobre  o  espírito  positivo,  2  parte,  XV)  

Para   Comte,   o   desenvolvimento   da   humanidade,   que   passa   pelos   três   estados   (o   teológico,   o  

metafísico  e  o  positivo),  resume-­‐se,  essencialmente,  no  desenvolvimento  do  espírito,  do  conhecimento.  

Nesse   desenvolvimento,   as   estruturas   básicas   da   sociedade  —   a   família,   a   propriedade,   a   religião,   a  

linguagem,  a  relação  do  poder  espiritual  e  do  poder  temporal  (Bréhier,  1  977b,  p.  267)  —  mantêm-­‐se,  

fundamentalmente,   inalteradas.   Essas   estruturas   são   consideradas   definitivas   e   básicas   em   qualquer  

estágio   do   desenvolvimento   social,   só   ocorrendo,   na   passagem   de   um   momento   a   outro,  

aperfeiçoamentos  em  cada  uma  delas.  Assim,  mais  uma  vez,  Comte  subordina  a  dinâmica  a  uma  estática,  

subordina  o  progresso  à  ordem;  o  progresso  é  um  mero  deslocamento,  um  mero  aperfeiçoamento  de  

estruturas   que   são   perenes   e   imutáveis.   A   sociologia   caracteriza-­‐se,   então,   pela   preocupação   em  

descobrir  que  leis  governam  a  sociedade  e  não  pela  preocupação  com  a  sua  transformação.  

Não   se   pode   primeiramente   desconhecer   a   aptidão   espontânea   dessa   filosofia   a   constituir  

diretamente  a  conciliação  fundamental  ainda  procurada  de  tão  vãs  maneiras,  entre  as  exigências  

simultâneas  da  ordem  e  do  progresso.  Basta-­‐lhe;  para  isso  estender  até  os  fenômenos  sociais  uma  

tendência  plenamente  conforme  a   sua  natureza  e  que   tornou  agora  muito   familiar  em   todos  os  

outros  casos  essenciais.  Num  assunto  qualquer,  o  espírito  positivo  leva  sempre  a  estabelecer  exata  

harmonia   elementar   entre  as   ideias  de   existência   e  as   ideias  de  movimento,   donde   resulta  mais  

especialmente;   no   que   respeita   aos   com   pos   vivos,   a   correlação   permanente   das   ideias   de  

organização  com  as  ideias  de  vida  e;  em  seguida,  graças  a  uma  última  especialização  peculiar  ao  

organismo   social   a   solidariedade   continua   das   ideias   de   ordem   com   as   ideias   de   progresso.  

(Discurso  sobre  o  espírito  positivo,  2  parte,  X)  

Essas  noções  ajudam  a  esclarecer  por  que  Comte  é  um  defensor  ferrenho  do  poder  estabelecido  

e  um  crítico  de  toda  e  qualquer  tentativa  de  mu  dança  de  poder,  seja  nas  suas  estruturas,  seja  nos  seus  

ocupantes.  

Sob  essas  condições  naturais,  a  escola  positiva   tende,  de  um   lado,  a  consolidar   todos  os  poderes  

atuais  sejam  quais  forem  seus  possuidores  de  outro,  a  impor-­‐lhes  obrigações  morais  cada  vez  mais  

conformes  às  verdadeiras  necessidades  dos  povos.  (Discurso  sobre  o  espírito  positivo,  3  parte,  XVI)  

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Para  Comte,  qualquer  insubordinação  ao  poder  corrompe  uma  ordem  preestabelecida,  além  de  

levar   à   falsa   noção   de   que   o   fato   de   existirem   diferentes   grupos   sociais   implicaria   uma   oposição  

insolúvel   de   interesses   entre   esses   grupos.   Qualquer   proposta   ou   ação   que   dificulte   ou   impeça   a  

aceitação   da   concepção   de   que   os   diferentes   grupos   sociais   existentes   são   complementares   e  

necessários  uns  aos  outros  (industriais  e  trabalhadores,  por  exemplo)  e  de  que  a  harmonia  entre  eles  é  

benéfica  e  indispensável  à  sociedade  (cujo  progresso  depende  da  ordem)  é  vista  como  falsa  e  perigosa.  

Já   que   Comte   supõe   que   a   sociedade   depende   e   necessita   de   ordem   para   progredir,   supõe,   como  

consequência,   que   depende   também   de   instituições   fortes   e   permanentes,   depende   da   existência   de  

diferentes  grupos  sociais  e  de  uma  coexistência  pacífica  e  harmoniosa  entre  eles.  

São   essas   concepções   que   dão   origem   a   um   programa   social   que   não   implica   mudanças   e  

transformações  sociais,  mas  que  implica,  isso  sim,  criar  condições  para  que  esses  elementos  necessários  

à  sociedade  se  mantenham.  E  desta  forma  que  deve  ser  compreendido  seu  programa  social,  baseado  em  

dois   aspectos   fundamentais:   uma   educação   universal,   que   ensine   e   convença   os   homens   (e  

especialmente   os   trabalhadores)   da   imutabilidade   e   inexorabilidade   das   leis   naturais   a   que   estão  

submetidos,   e   trabalho  para   todos,   o   que   garante   que   cada   indivíduo   cumpra   seu  papel   social.  Nesse  

sentido,  são  condições  que  preenchem  um  dever  e  não  condições  que  garantem  um  direito.  

São  essas  concepções  que  originam,   também,  a  noção  de  que  o  poder  a  que  os   trabalhadores  

podem  e  devem  aspirar  é  o  poder  espiritual,  que  é  defendido  por  Comte  como  o  único  que  realmente  

importa  e  que  supera  todo  poder  material  ou  temporal.  

Se   o   povo   está   agora   e   deve   permanecer   a   partir   desse  momento   indiferente   à   posse   direta   do  

poder  político  nunca  pode  renunciar  à   sua   indispensável  participação  contínua  no  poder  moral.  

Este  é  o  único  verdadeiramente  acessível  a  todos,  sem  perigo  algum  para  a  ordem  universal.  Muito  

pelo   contrário:   traz-­‐lhe   grandes   vantagens   cotidianas,   autorizando   cada   um,   em   nome   duma  

comum   doutrina   fundamental,   a   chamar   convenientemente   as   mais   altas   potências   a   seus  

diversos   deveres   essenciais.   Na   verdade;   os   preconceitos   inerentes   ao   estado   transitório   ou  

revolucionário  tiveram  que  encontrar  também  algum  acesso  em  nossos  proletários  alimentando,  

com   efeito,   inoportunas   ilusões   sobre   o   alcance   indefinido   das   medidas   políticas   propriamente  

ditas.   Impedem  de,apreciar  quanto  a   justa   satisfação  dos  grandes   interesses   populares   depende  

hoje  muito  mais   das   opiniões   e   dos   costumes   do   que   das   próprias   instituições,   cuja   verdadeira  

regeneração,   atualmente   impossível,   exige;   antes   de   tudo,   uma   reorganização   espiritual.   No  

entanto,  podemos  assegurar  que  a  escola  positiva  terá  muito  maior  facilidade  em  fazer  penetrar  

este  salutar  ensino  nos  espíritos  populares  que  em  qualquer  outra  parte,  seja  porque  a  metafísica  

negativa   aí   não   pode   enraizar-­‐se   tanto,   seja,   sobretudo,   por   causa   do   impulso   constante   das  

necessidades   sociais   inerentes   à   sua   situação   necessária.   Essas   necessidades   se   reportam  

essencialmente   a   duas   condições   fundamentais,   uma   espiritual   outra   temporal   de   natureza  

profundamente   conexa.   Trata-­‐se   co,n   efeito,   de   assegurar   convenientemente   a   todos   primeiro,  

uma  educação  normal  depois  o  trabalho  regular.  Tal  é,  no  findo,  o  verdadeiro  programa  social  dos  

proletários.  Não  pode  mais  existir  verdadeira  popularidade  a  não  ser  para  uma  política  que  tenda  

necessariamente  para  esse  duplo  destino.  (Discurso  sobre  o  espírito  positivo,  V  parte,  XIX)  

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A  perspectiva  e  as  propostas  de  Comte  para  a  sociedade  são  completamente  coerentes  com  sua  

noção  de   que   a   transformação,   a   evolução,   o   desenvolvimento   são,   antes   de   tudo,   desenvolvimento   e  

transformação   do   espírito.   São   coerentes,   portanto,   com   a   concepção   que   defende   que   a   luta   pela  

transformação  é  a  luta  pela  transformação  e  pelo  desenvolvimento  das  ideias  e  da  moral.  

Atacando   a   desordem   atual   em   sua   verdadeira   fonte,   necessariamente   mental   constitui,   tão  

profundamente  quanto  possível,  a  harmonia  lógica,  regenerando,  de  início,  os  métodos  antes  das  

doutrinas,  por  uma  tripla  conversão  simultânea  da  natureza  das  questões  dominantes  da  maneira  

de  tratá-­‐las  e  das  condições  prévias  de  sua  elaboração.  Demonstra,  com  efeito,  de  uma  parte,  que  

as  principais  dificuldades  sociais  não  são  hoje  essencialmente  políticas,  mas  sobre  tudo  morais  de  

sorte  que  sua  solução  possível  depende  realmente  das  opiniões  e  dos  costumes,  muito  mais  do  que  

as   instituições,   o   que   tende   a   extinguir   uma  atividade   perturbadora,   transformando  a   agitação  

política  em  movimento  filosófico.  (Discurso  sobre  o  espírito  positivo,  2  parte,  X)  

Só   quando   a   moral   tiver   completado   sua   evolução   poder-­‐se-­‐á   pensar   na   reforma   das  

instituições.  Assim,   para  Comte,   as   únicas  mudanças   e   trans   formações  bem-­‐vindas   e   necessárias   são  

morais  e  só  depois  de  completadas  se  poderia  pensar  em  mudanças  materiais.  

A   tendência   correspondente   dos   homens   de   Estado   a   impedir   hoje   tanto   quanto   possível   todo  

grande  movimento  político  encontra-­‐se  aliás  espontaneamente  co,  as  exigências  fundamentais  de  

uma   situação   que   só   comportará   real  mente   instituições   provisórias,   enquanto   uma   verdadeira  

filosofia   geral   não   vincular   suficientemente   as   inteligências.  Desconhecida   pelos   poderes   atuais,  

essa   resistência   instintiva  colabora  para   facilitar  a  verdadeira   solução,  ajudando  a   transformar  

uma   estéril   agitação   política   numa   ativa   progressão   filosófica,   de   maneira   a   seguir   enfim,   a  

marcha  prescrita  pela  natureza,  adequada  à  reorganização   final  que  deve  primeiro  ocorrer  nas  

ideias   para   passar   em   seguida   aos   costumes   e,   finalmente,   ás   instituições.   (Discurso   sobre   o  

espírito  positivo,  2  parte,  IX)  

A   partir   daí   não   é   difícil   compreender   por   que   Comte   propõe,   em   vez   de   mudanças   nas  

estruturas  e  instituições  sociais,  mudanças  que  resultariam  em/de  uma  nova  religião.  Em  vez  de  mudar  

a  vida  material,  muda-­‐se,  desenvolve-­‐se,  trabalha-­‐se  a  vida  moral.  Isto  seria  feito  por  meio  de  uma  nova  

religião,  a  religião  da  humanidade  que,  se  permite  as  reformas  morais  necessárias,  mantém,  de  resto,  a  

própria  estrutura  das  religiões  —  cultos,  igrejas,  santos,  preces,  etc.  —  e  não  interfere  nas  estruturas  da  

sociedade.  

Se  a  religião  da  humanidade  permite  as  reformas  necessárias  ao  desenvolvimento  do  espírito  

positivo,   ela   deve   ser   perfeitamente   conforme   com  os   princípios   do   conhecimento   científico   positivo.  

Com   admirável   coerência,   Comte   consegue   combinar   ciência   positiva   e   religião   positiva,   ao   erigir   em  

ente  supremo  da  religião  da  humanidade,  ao  sustentar,  como  dogma  de  sua  religião,  os  princípios  e  leis  

imutáveis   da   natureza   que,   se   são   descobertos   pela   investigação   científica,   são   popularizados   e  

propagados,  na  forma  de  dogma,  por  meio  de  sua  religião.  

A   fé   positiva   expõe   diretamente   as   leis   efetivas   dos   diversos   fenômenos   observáveis,   tanto  

interiores  como  exteriores;  isto  é,  suas  relações  constantes  de  sucessão  e  de  semelhança,  as  quais  

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nos   permitem   prever   uns   por   meio   dos   outros.   Ela   afasta,   como   radical   incute   inacessível   e  

profundamente  ociosa,   toda  pesquisa  acerca  das  causas  propriamente  ditas,  primeiras  ou   finais,  

de   quais   quer   acontecimentos.   Em   suas   concepções   teóricas,   ela   explica   sempre   como   e   nunca  

porque.   Quando,   porém,   indica   os   meios   de   dirigir   nossa   atividade   ela   faz,   pelo   contrário,  

prevalecer   constantemente   a   consideração   do   fim,   já   que   então,   o   efeito   prático   dimana   com  

certeza  de  uma  vontade  inteligente.  

(..)  

O  dogma  fundamental  da  religião  universal  consiste,  portanto,  mia  existência  constatada  de  uma  

ordem  imutável  a  que  estão  sujeitos  os  acontecimentos  de  todo  gênero.  Esta  ordem  é  ao  mesmo  

tempo,  objetiva  e  subjetiva:  por  outras  palavras,  diz  igualmente  respeito  ao  objeto  contemplado  e  

ao  sujeito  contemplador.  Leis  físicas  supõem,  com  efeito,  leis  lógicas,  e  reciprocamente.  Se  o  nosso  

entendimento   não   seguisse   espontaneamente   regra   alguma,   não   poderia   ele   nunca   apreciar   a  

harmonia   exterior.   Sendo  o   inundo  mais   simples   e  mais  poderoso  que  o  homem,  a   regularidade  

deste  seria  ainda  menos  conciliável  com  a  desordem  daquele.  Toda  fé  positiva  assenta,  pois,  nesta  

dupla  harmonia  entre  o  objeto  e  o  sujeito.  (Catecismo  positivista,  pp.  143-­‐144)  

Por  suas  concepções  a  respeito  do  conhecimento  e  da  sociedade  e  por  sua  capacidade  de  unir  

em  um   sistema   coerente   suas  noções,   Comte   é   visto   como  o   grande   representante  de  uma  burguesia  

que,  na  segunda  metade  do  século  XIX,  já  havia  perdido  seu  caráter  libertário  e  progressista  e  havia,  ao  

se   entrincheirar   no   poder,   assumido   um   caráter   conservador.   As   estruturas   econômicas,   sociais   e  

políticas,  estabelecidas  por  essa  burguesia  e  que   lhe  permitiam  um  contínuo  acúmulo  de  capital,  para  

serem  perpetuadas  e  desenvolvidas,  precisavam  ser  acrescidas  de  um  ideário,  de  um  sistema  explicativo  

que   afastasse   as   ameaças   contidas   nas   lutas   sociais   e   políticas   emergentes   e   nas   propostas   de  

transformação  que  o  próprio  capitalismo  gerara.  Comte  cumpriu  esse  papel  com  maestria.    

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EVOLUÇÃO   DO  MÉTODO  CIENTÍFICO7    

Este   capítulo   é   fruto   do   estudo   na   disciplina   “Bases   Epistemológica   do   Ensino   de  

Ciências”   que   cursei   no   primeiro   período   do   curso   de   mestrado   no   ensino   de   ciências     e  

matemáticas     do   NPADC/UFPA,     na   qual   lemos    e   debatemos     sobre   as  obras   e  os  respectivos  

autores  que  enumero  a  seguir:  Discurso  do  Método  (René  Descartes),    Novum    Organo    (Francis    

Bacon),    Discurso    Sobre    o   Espírito    Positivo:  August  Comte  (M.  Pereira),  Contra  o  Método  (Paul  

Feyerabend),   A   Formação   do   Espírito     Científico     (Gaston     Bachelar),       A     Estrutura     das    

Revoluções      Científicas  (Thomas  Kuhn),  O  fim  das  Certezas   (Ilya  Prigogine),  O  Ponto  de  Mutação  

de   (Fritjof   Capra),   Ciência   Com   Consciência   (Edgar   Morin),   Introdução   a   uma   Ciência   Pós-­‐  

Moderna  (Boaventura   Santos).  

Ao   escrever   sobre   a   evolução   do   método   científico8    numa   perspectiva   CTS    

(Ciência   Tecnologia   e   Sociedade),   inicialmente   comento   sobre   o   método   científico  da   idade  

média   passando    pelo   surgimento    da   mecânica    newtoniana     indo   até   no  início   do   século   XX,  

com   a   nova   física.   Posteriormente,   faço   um   comentário   sobre  

autores   que   confirmam   o   mecanicismo    cartesiano9.   Continuo   o   comentário,    agora    

com   autores   que   propõem   um   rompimento   com   a   proposta   mecanicista   cartesiana   e   autores    

que     propõem     um     novo     método     científico.     Pretendo     com     este     capítulo   fornecer  

fundamentos   históricos   ao  meu  aluno  de  licenciatura   e  ao  mesmo   tempo  subsídios   para   que  ele  

reflita   sobre   o   ensino   de   física   que   ele   vivenciou   como   aluno   e   que   ensino   ele   quer   praticar  

durante  sua  vida  profissional.  

 1.1  –  Do  período  medieval  até   as   ideias   de  René  Descartes  

   

A   natureza   do   conhecimento   medieval   baseava-­‐se   na   razão   e   na   fé.   Durante  a     Idade    

Média     o     método     científico     baseava-­‐se      nas     proposições      Aristotélicas  

corroboradas   pela  Igreja.  As  ideias  básicas  eram:  a  Terra  como  centro  do  universo  e    

8  A  palavra  método  está  usada  no  sentido  de  ordem,  organização,  coordenação  e  método  científico  no  sentido  de  organização  do  conhecimento  científico.  9  Método  científico  elaborado  por  Galileu,  Descartes,  Newton,  etc.      o  Homem   como   criação   de   Deus.   Os   sábios   medievais   procuravam   compreender   o  significado  

das  coisas  e  consideravam  da  mais  alta  relevância  questões   referentes   a  Deus,  a  alma  humana  e  

a   ética.   Tomás   de   Aquino   combinando   Aristóteles,   Teologia   e   a   ética   Cristã,   estabelece   a  

estrutura   conceitual   que   permanece   incontestável   até  o  início  do  século  XVI.  

O  método   de   investigação   do   conhecimento   muda   radicalmente   nos   séculos  XVI  e  XVII  

com   as   contribuições   de:   Nicolau   Copérnico,   Johannes   Kepler,   Galileu   Galilei,   Francis   Bacon,  

René   Descartes   e   Isaac   Newton,   que   dão   início   à   revolução   científica.   Um   dos   precursores  

dessa  revolução   é  Copérnico.  

Nicolau   Copérnico   em   sua   obra   “Sobre   a   Revolução    dos   Corpos    Celeste”,  que  só   foi   7 Moutinho, Pedro Estevão da Conceição (Dissertação de Mestrado, UFPr, 2007)

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publicada  quando  o  autor  estava  em  seu  leito  de  morte,  propõe  o  modelo  heliocêntrico   (o  sol  no  

centro   do  sistema   planetário)   para   o   sistema   solar,   opondo-­‐se  a   ideia   geocêntrica   (a   terra   no  

centro   do   sistema   planetário)   de   Cláudio   Ptolomeu   e  da  Igreja.  Nesse  novo  modelo  planetário,  

Copérnico   propõe   que   os   seis   planetas   até   então,   conhecidos   (Mercúrio,   Vênus,   Terra,   Marte,  

Júpiter   e  Saturno,   nessa   ordem)  realizavam  órbitas  circulares   ao  redor  do  Sol.  

A   troca   da  Terra   pelo   Sol,   como   centro  planetário,   significou,   para   as  autoridades   de   a  

Igreja   afastar   o   homem   do   centro   do   Universo,   por   isso,   essa   ideia   foi   considerada   uma  

heresia,   razão   pela   qual   sua   obra   foi   incluída   no   Idex,   relação   dos   livros   heréticos.   Estas   e  

outras   ideias  propostas   causaram  a  morte  pela   fogueira  de  Giordano   Bruno,   pois   este   defendia  

a   teoria   de  Copérnico,   e  por  causa   disso   foi  punido  pela  “Santa”  Inquisição.  

Seguindo     Copérnico     na     revolução     científica     temos     Johannes     Kepler     que  herdou   as  

informações   de  seu  mestre   Tycho  Brahe   que   fez  um  registro   sistemático  e  preciso  das  posições  

dos   Planetas.   De   posse   das   precisões   de   Brahe,   Kepler   conseguiu     provar,     através     de   um  

Método    Empírico,    que    as   órbitas    dos    planetas  eram  elípticas   e  não  circulares   como  defendia  

Copérnico.  

Kepler   ficou   bastante   angustiado   com   sua   nova   teoria,   as   quais   iam   contra   as   teorias  

geocêntricas,   que   eram   aceitas   pelos   doutores   da   Igreja,   pois   religioso   e   acreditava   que   a  

criação    divina   era   perfeita.   Entretanto,    prevaleceram    as  observações   empíricas   de   Kepler   e,  

os   fundamentos   da   escolástica   para   o  sistema  solar  permanecem   até  hoje,   acrescido  apenas  de  

Netuno  e  Plutão.  

Na     opinião     dos     historiadores     atuais     a     verdadeira     mudança     do    método    

científico    veio   com   Galileu    Galilei,    que    já   tinha    formulado    as    leis    da    queda    dos  corpos.  Na  astronomia,   com  o  telescópio,  Galileu  introduziu  um  novo  método  de  observação   dos  

fenômenos   celestiais,   contribuiu   para  que   a  velha  cosmologia  declinasse   e   comprovar   a   teoria  

científica   de   Copérnico.   Galileu   introduziu   ainda   o  método   experimental   científico   combinado  

com  a   linguagem  matemática,   por   isso   é  considerado   por  muitos  o  pai  da  ciência  moderna.  

Dois   importantes   critérios   de   estudo   para   as   ciências,   usados   até   hoje   fundamentam  

Galileu:   a   abordagem   empírica   na   descrição   da   natureza   e   o   uso   da   linguagem   matemática.  

Com   Galileu,   a   observação   e   a   matemática   começam   a   ter  maior   importância   na  produção   do  

conhecimento   científico  em  comparação   a  revelação.  

Paralelamente     a   Galileu,   Francis   Bacon   descrevia     explicitamente,     na   Inglaterra,   o  

método   empírico   da   ciência.   Com  a   teoria   do   procedimento   indutivo   da  ciência,  Bacon  tornou-­‐

se   extremamente   influente   a  ponto  de  atacar  as  escolas  tradicionais   de   pensamento.   Com   isso  

Bacon   desenvolveu   uma   verdadeira   paixão  pelo   experimento   científico.   Segundo   Novak,   em  

seu   livro,   uma   teoria   de   educação,  a   ciência   experimental    foi   dogmatizada    pela   primeira   vez  

por   Francis    Bacon,   em  1620.    

Duas   passagens   do   livro   de   Bacon,   Novum   Organum,   justificam   sua   paixão   pela  

experimentação:  

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 A   sutilidade   da   natureza   está   muito   além   da   do   sentido   ou   da  compreensão;   de   tal   forma   que   meditações,   especulações   ilusórias  e    teorias     sobre     a     raça     humana     não     passam     de     uma     forma     de  loucura.   (p.  107)  (...)    Mas    nossa    esperança    de   maior    progresso    nas    ciências    será  bem   fundamentada   apenas   quando   numerosos   experimentos   forem  acolhidos   e   feitos   dentro   da   história   natural,   os   quais,   apesar   de   não  terem   em   si   próprios,   auxiliarão   materialmente   na   descoberta   de  causas     e   axiomas     –   experimentos     que     chamamos     de   instrutivos,  para   distingui-­‐los   daqueles   chamados   profícuos.   Possuem   eles   a  maravilhosa   propriedade   e  natureza   de   nunca   decepcioná-­‐lo   ou   trai-­‐  lo;    por     serem     usados     apenas     para    descobrir     a   causa     natural     de  algum   objeto,   qualquer   que   seja   o   resultado,   igualmente     satisfarão  seu  objetivo  decidindo   a  questão.   (p.  127)  

   

Os   métodos   para   estudo   da   natureza   e   produção   de   conhecimento   propostos   por  

Galileu   e   Bacon   substituem   a   concepção   orgânica   da   natureza   pela   metáfora   do  mundo   como  

máquina.   Essa   ideia  mecanicista   foi   desenvolvida   por   dois   “gigantes”  do  século  XVII:  Descartes  

e  Newton.  

René   Descartes,   brilhante   matemático,   é   considerado   o   fundador   da   filosofia  moderna.  Aos  23  anos  

de   idade,   teve   uma   visão   iluminada   na   qual   percebeu   os   “alicerces   de   uma   nova   ciência”   que  

prometia   a   unificação   de   todo   o   saber.   Descarte   visualizou   uma   ciência   baseada   em   princípios  

fundamentais   que  dispensam  demonstração   e  que  “toda   ciência   é  conhecimento   certo  e  evidente”   e  

continua   “rejeitamos   todo   conhecimento   meramente   provável   e   consideramos   que   só   se   deve  

acreditar   naquelas   coisas   que   são   perfeitamente   conhecidas   e   sobre   as   quais   não   pode   haver  

dúvidas”   (Capra,  1982:  53).  

A   base   da   filosofia   cartesiana   está   na   crença   da   certeza   do   conhecimento   e  na    visão    

do    mundo     que    dela    é    derivada.    O    pensamento     cartesiano,     em   que    o  método  científico  é  o  

único  método  válido  de  compreensão   do  universo,  ainda  influencia   cientistas   de  todas   as  áreas,  

isso  ainda  hoje  pode  ser  válido  se  suas  limitações   forem  reconhecidas.  

Para   Descartes   a   matemática   era   importante   para   ciência,   e   acreditava   que   a   chave  

para   compreensão   do   universo   era   a   sua   estrutura   matemática.   Por   isso,   ele   escreveu   a  

respeito  dos  objetos   físicos:  

 Não   admito   como   verdadeiro   o   que   não   possa   ser   deduzido,   com   a  clareza   de   uma   demonstração     matemática,     de   noções   comuns   de  cuja   verdade   não   podemos   duvidar.   Como   todos   os   fenômenos   da  natureza   podem   ser   explicados   desse   modo,   penso   que   não   há  necessidade   de   admitir   outros   princípios   na   física,   nem   que   sejam  desejáveis.  

(CAPRA,   1982:  53)      

Em   seu   livro   “Discurso   do   Método”   Descartes   têm   por   finalidade   apontar   o   caminho  

para   estudo   da   natureza   ou   para   se   chegar   à   verdade   científica.   Talvez   por   isso   esta   obra   se  

torna   um   grande   clássico   da   filosofia.   O   método   de   Descartes   consiste     num     ponto    

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fundamental,     a     dúvida.     Ele     duvida     de     tudo,     inclusive     da  revelação,   e  chega  a  conclusão   de  

uma   coisa   que   não   pode   ter   dúvida,   a   existência  de   si   mesmo   como   pensador,   por   isso,   diz:  

“penso,   logo   existo”   e   propõe   a   intuição  e   a  dedução   como   método   para   conhecer   a  natureza.  

No   pensamento   reside   a   essência   da   natureza   humana   e   que   tudo   que   conhecemos   clara   e  

distintamente   é   verdadeiro.     “A     concepção     da     mente     pura     e     atenta”     ele     chamou     de    

“intuição”  afirmando      que     “não     existe      outros      caminhos      ao     alcance      do     homem     para     o  

conhecimento       certo     da     verdade,      exceto     a     intuição      evidente      e     a     necessária  dedução”.  

Como   se  vê   as   ferramentas   de   Descartes   para   a   construção   do  conhecimento   é:   a   intuição   e   a  

dedução.  

O     método     de     Descartes      para     a     construção      do     conhecimento      levou     a    

fragmentação   do  mesmo,   em  disciplinas   e   ao   reducionismo   nas   ciências,   no   qual   a  crença   em  

que   todos   os   fenômenos   complexos   podem   ser   compreendidos   se   reduzidos   as   suas   partes  

constituintes.   O  cogito10   cartesiano   fez  com  que  Descartes  privilegiasse   a  mente   em   relação   à  

matéria   e   levou-­‐o   a   conclusão   de   que   as   duas   eram   separadas   e   fundamentalmente    

diferentes.   Essa   divisão   cartesiana   redundou  

em   interminável     confusão     acerca     da   relação     entre    mente     e   cérebro,     e   na   física   tornou  

extremamente   difícil   aos   fundadores   da   teoria   quântica   o   entendimento   dos   fenômenos    

atômicos.   Por   outro   lado   nos   ensinou   a   conhecer   a   nós   mesmo   como   egos   isolados  

existentes   “dentro”   dos   nossos   corpos,   e   levou-­‐nos   a   valorizar   mais   o   trabalho   mental   que   o  

manual.  

Apesar      de      Descartes      não      ter      executado       seu      plano      ambicioso      –      “a  maravilhosa  

ciência”   –   a   qual,   através   de   seu   método   de   pensamento   analítico,   ele  tenta   representar   uma  

descrição   precisa   de   todos  os   fenômenos   naturais   num  único  sistema   de   princípios   mecânicos,  

seu  método   científico   influenciou   por   três   séculos  o   pensamento   científico.   Sua   concepção   da  

natureza   como   uma   máquina   perfeita,   governada   por   leis   matemáticas   exatas   ficou   como  

simples   visão   durante   sua   vida.  Mas   Newton   transformou   em   realidade   o   sonho   cartesiano   e  

completou   essa   fase  da  evolução  científica.  

Isaac   Newton   nasceu   na   Inglaterra   em  1642,   no   ano   em  que   Galileu   faleceu.  O  método  

de   Newton   consistiu   no   desenvolvimento   completo   de   uma   formulação   matemática   da  

concepção   mecanicista   da   natureza.   Realizou   síntese   nas   obras   de  Copérnico   Kepler,   Bacon,  

Galileu   e   Descartes.   A   física   de   Newton,   ainda   durante  sua  vida   passou   a  ser  considerada   o  

ponto   culminante   da   ciência,   forneceu   uma   consistente   teoria   matemática   do   mundo,   que  

permaneceu   como   sólido   alicerce   do   pensamento   científico   até   boa   parte   do   século   XX.   O  

cálculo   diferencial   criado   por  ele   descrevia   o   movimento   dos   corpos   sólidos   de   modo   muito  

superior   as   técnicas  de  Galileu  e  Descartes.  

 

   

Newton   empregou   seu   novo   método   matemático   para   formular   as   leis   exatas   do  

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movimento   de   todos   os   corpos   que   eram   atraídos   sob   influencia   da   gravidade.    

 Propôs   que   essas   leis   passassem   a   ser   adotadas   por   todo   universo.   A   natureza   do  universo  

para  Newton   era   um  gigantesco   sistema   mecânico   semelhante   a  visão  cartesiana   do   universo.  

Tudo   funcionava   de  acordo   com  leis  matemáticas   de   forma  exata.    

Duas   tendências   opostas   orientavam   o   método   de   conhecer   a   natureza:   o   método  

empírico   indutivo   de   Bacon,   e   o   método   racional   dedutivo   de   Descartes.   Em   sua       obra      

“Princípios       matemáticos       da       filosofia       natural”       Newton       consegue       a   combinação  

apropriada   de   ambos   os   métodos   dizendo   que:   tanto   os   experimentos   sem     interpretação      

sistemática       quanto     a     dedução       de     princípios       básicos       sem   evidência   experimental  

conduzem   a   uma   teoria   confiável.   Com   essa   unificação   dos  métodos   de   Descartes   e   Bacon,  

Newton   conseguiu   uma   metodologia   científica   que   é   à   base   do   conhecimento   da   natureza,  

desde  então.    

A   teoria   newtoniana   foi  usada   com  enorme   sucesso   nos   séculos   XVII,   XVIII   e  XIX.   Essa  

teoria   explicava   com   sucesso   o   movimento   dos   planetas,   luas   e   cometas,   fluxos   das   marés   e  

vários   outros   fenômenos   relacionados   com   a   gravidade   e   até   os   fenômenos   calóricos   e  

térmicos.  

A     descoberta     e     a     investigação     de     fenômenos     elétricos     e     magnéticos     –   iniciado    

por     Michael     Faraday     e     completado     por     Maxwell     –     envolviam     certas   inovações   no  

método   científico.   Um  novo   tipo  de   força   que   não   podiam   ser   descritos  adequadamente       pelo    

modelo     mecanicista.     Faraday     e     Maxwell     substituíram     o  conceito     de     força     pelo    conceito    

de   campo     de     força,     com    isso    ultrapassaram     a  barreira     mecanicista     da     física.     Mostraram    

que     os     campos     têm     suas     próprias  realidades   e  podem   ser   estudados   na   ausência   de  corpos  

materiais.   Surge   a   teoria  da  eletrodinâmica   que  culminou   com  a  descoberta   de  que  a   luz  é  um  

campo   eletromagnético   rapidamente   alternante,   que   viaja   através   do   espaço   em   forma   de  

ondas.  

Assim   a   mecânica   newtoniana   se   preocupa   com   estudo   da   natureza,   apenas   na  

tentativa   de   descobrir,   medir   e  quantificar   seus   mistérios.   Essa   visão   mecanicista  da   natureza  

passa   a   ser   questionada   a   partir   da   década   de   60   com   Kuhn   e   outros   autores   que,  

incomodados   com  a  ausência   de  um  método   sistêmico   para  pesquisa  cientifica,   rompem  com  o  

mecanicismo   cartesiano.  

Essa   inquietação   reflete-­‐se  muito   bem  nas  palavras   de  R.D.  Laing:   “Nada  mudou   mais   o  

nosso   mundo   nos   últimos   400   anos   do   que   a   obsessão   dos   cientistas   pela   medição   e   pela  

quantificação”.   Segundo   Laing   “Perderam-­‐se   a  visão,  o  som,   o  

gosto,   o  tato   e  o  olfato,   e  com  eles   foram-­‐se   também   a  sensibilidade   à  estética   e  a    

ética;   os   valores;   a   qualidade;   a   forma;   todos   os   sentimentos;   motivos;   intenções;   a   alma;   a  

consciência   e   o   espírito”   (apud,   Capra,   1982:   51).   A   experiência,   como   acúmulo   de  

conhecimento,   foi  expulsa  do  domínio  do  discurso  científico.  

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1.2  –  A  teoria    positivista  de  Auguste  Comte        

A   teoria   positivista,   elaborada   por   August   Comte   (1798-­‐1857),   dá  prosseguimento     às    

ideias     da     revolução     científica     quando     o    mesmo     privilegia     o  método   científico   através   da  

observação   e   a   sistematização   das   ciências,   não   se   investigam   as   causas   primeiras   e   a   ciência  

metafísica   dos   fenômenos,   procura-­‐se   apenas   fixar   em   leis,   sempre   mais   gerais,   as   relações  

constantes   de   sucessão   ou   de     semelhança     existente     entre     os     próprios     fenômenos.     A    

Filosofia     Positiva     tem   início   numa   visão   progressiva   do   espírito   humano,   o   desenvolvimento  

total  da  inteligência   humana   passa  por   três   estados   históricos   diferentes:   o  estado   teológico  ou  

fictício,  o  estado  metafísico   ou  abstrato  e  o  estado  científico  ou  positivo.  

O   estado   teológico,   que   se   dá   na   Idade   Antiga,   o   homem   impotente   diante   dos  

fenômenos   naturais,   apela   para  seres   sobrenaturais   para   explicar   esses   fenômenos.   O   espírito  

humano   por   desconhecer   as   causas   naturais   dos   fenômenos  explica-­‐os   como   produzidos   por  

seres  ou  forças  comparáveis   ao  próprio  homem.  

O  estado  metafísico   que  se  dá,  na  Idade  Média,   o  homem,   mais  habituado   ao  manejo    da  

racionalidade,     passa   a   atribuir   as   causas   dos   fenômenos     naturais     às   forças   da   natureza,  

incontroláveis   do   ponto   de  vista   prático,   mas   passíveis   de   serem  pensados   de  modo   abstrato.  

Este   estado   substitui   o   anterior   no   quais   os   agentes   sobrenaturais   são   substituídos   por   forças  

abstratas.  

 Como     a     teologia,     a    metafísica     tenta,     antes     de     tudo,     explicar     a  natureza   íntima   dos   seres  vivos,   a   origem   e   o   destino   de   todas   as   coisas,   o   modo   essencial   de   produção   de   todos   os  fenômenos.   Mas  em    vez    de    empregar,     para    isso,    agentes     sobrenaturais  propriamente   ditos,  ela  os  substitui   progressivamente   por  essas  entidades   ou   abstrações   personificadas,     cujo   uso,  verdadeiramente  característico,   permitiu  muita  vezes  designá-­‐las   sob  o  nome  de  ontologia.  

(COMTE,   1978:  47).  No   estado   positivo   ou   científico,   presente   entre   os   gregos   e   que   reaparece  com  Bacon,  

Galileu   e  Descartes,   o  homem   reconhece   a   inutilidade   das   explicações  

vagas   e   arbitrárias   da   filosofia   teológica   ou   da   filosofia   metafísica,   preocupa-­‐se   em  conhecer    

as     causas     dos     fenômenos     e     descobrir     leis     reais     que     regem     esses  fenômenos.   O  espírito  

positivo  assume  uma  dupla  tarefa:  coordenação   dos  fatos  observados   e  estabelecimento   de  uma  

previsão  racional,  aproximadamente   exata.      

Considerando     a   destinação     constante     dessas     leis,     pode-­‐se     dizer,  sem   exagero   algum,   que   a   verdadeira   ciência,   longe   de   ser   formada  por     simples       observações,       tende       sempre       a     dispensar,       quando  possível,     a     exploração     direta,     substituindo-­‐a       por     essa     previsão  racional   que   constitui   sob   todos   os   aspectos,   o   principal   caráter   do  espírito  positivo.  

(COMTE,   1978:48)      

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 A   obra   de   Comte   sofre   influência   decisiva   na   sua   formação   com   a   obra   de   Condorcet    

“Estudo     do     Quadro     Histórico     dos     progressos     do     Espírito     Humano”   segundo   a   qual   o  

homem   caminharia   para   uma   era   em   que   a   organização   social   e   política     seriam     produtos    

das     luzes     da     razão.     Surge     então     uma     única     doutrina   filosófica   que   seria   a   solução   dos  

problemas   da   humanidade   com   a   finalidade   de   orientar   todas   as   ciências   gerando   uma  

metodologia   que   constituiria   a  Teoria   do  Espírito       Humano.       Para     alguns       historiadores       o    

positivismo       é     uma      forma      de  pensamento     social    e    surge    da    necessidade     de    organizar     a    

sociedade     francesa  diante  do  caos  que  se  instalara,   devido  à  transição  do  período   feudal  para  o  

capitalismo.     Para     Comte     o     positivismo     é     a     solução     para     se     instalar   espontaneamente  

“ordem  e  progresso”.      

Num     assunto     qualquer,     o     espírito     positivo     leva     sempre     a  estabelecer   exata   harmonia   elementar   entre   as   ideias   de  existência  e  as   ideias   de   movimento,     donde    resulta    mais   especialmente,     no  que  respeita   aos   corpos   vivos,   a   correlação   permanente   das   ideias   de  organização   com  as  ideias  de  vida  e,  em  seguida,   graças   a  uma  última   especialização     peculiar   ao   organismo   social,   a   solidariedade  contínua  das  ideias  de  ordem  com  as  ideias  de  progresso.  

(COMTE,  1978:  69).        

Percebe-­‐se   em  sua  obra  que  Comte   estabelece   uma  relação   íntima  entre  ciência,   ordem  

e   progresso.   Dentro   das   ciências   humanas,   por   exemplo,   devem-­‐se  primeiramente   melhorar  

as   condições   de   vida   da   classe   proletária,   através   de   uma  revolução   na   ordem   econômica   e  

política  da  sociedade.  

 

1.3  –  Rompendo  com   o  mecanicismo  cartesiano        

Na   década   de   60   do   século   passado,   alguns   autores   incomodados   com   o  mecanicismo    

cartesiano     procuram     um     rompimento     com     esse     método     científico  através  da  publicação  de  

algumas   obras,  como  Tomas  Kuhn  e  Prigogine.   Alguns  autores,     além     do     rompimento     com     o    

mecanicismo     cartesiano,     propõem     outros  métodos   científicos   para  estudo  da  natureza,   entre  

os  quais  citamos:  Capra,  Morin  e  Santos.  

Tomas   Kuhn   com   a   obra   “A   Estrutura   das   Revoluções   Científicas”,   em   1962  vem  para  

mudar   profundamente   as   análises   e  as   conclusões   sobre   a  natureza  epistemológica   da   ciência.  

Em   sua   obra   Kuhn   transforma   radicalmente   o   cenário   mundial   de   filosofia   da   ciência   em  

historia   da   ciência.   Este   autor   formado   em   física  teórica    abandona     sua     linha    de    pesquisa     e  

passa    a   estudar    sobre    a    história    da  ciência.  

Se   a   história   fosse   vista   como   um   repertório   para   algo   mais   do   que  anedotas      ou     cronologias,       poderia      produzir      uma       transformação  decisiva  na  imagem  de  ciência  que  atualmente   nos  domina.  

(KUHN,   1962:  19)  

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 Thomas   Kuhn   inicia  seu   livro  conceituando   ciência  normal,   dizendo  que  esta,  

 é  uma  pesquisa   científica   orientada   por  um  dado  paradigma   e  que,  paradigmas   são  realizações  

científicas   universalmente   conhecidas,   os   quais   serviram   como   soluções   e  modelos   para   uma  

comunidade   científica.  

Ilya   Prigogine,   com   sua   obra   “O   Fim   das   certezas”   (1996)   rompe   com   o  mecanicismo  

cartesiano   ao  considerar   a  teoria  do  caos,  a  ideia  de  flecha  do  tempo  e  os  conceitos  de  reversível  

e  irreversível  para  os  fenômenos   científicos.  

 Em   primeiro   lugar   nossa   recusa   da   banalização   da   irreversibilidade  fundamenta-­‐se     no   fato   de   que   mesmo    na   física   a   irreversibilidade  não   pode   mais   ser   associada   apenas   a   um   aumento   da   desordem.  Muito   pelo   contrário   os   desenvolvimentos   recentes   da   física   e   da  química   de   não-­‐equilíbrio   mostram   que   a   flecha   do   tempo   pode   ser  uma  fonte  de  ordem.  

(PRIGOGINE,   1996:29).    

“O   Ponto   de   Mutação”   de   Fritjof   Capra   é   a   obra   responsável   pela   mudança  que   se  

verifica   em   minha   vida   profissional   docente.   Através   da  introdução   de   um  sistema  holístico11  

para  a  ciência,  Capra  consegue  persuadir  os  leitores  de  que  é  necessário   que  abandonemos   um  

sistema   exclusivamente   mecanicista   em  troca  de  um  sistema  holístico  profissionalizante.  

 A   descrição     reducionista    de   organismos,    pode,   portanto,   ser   útil   e,  em     alguns     casos     necessários.     Ela     só     é     perigosa     quando  interpretada   como   se   fosse   a   explicação   completa.   Reducionismo   e  holismo,     análise     e     síntese,     são     enfoques     complementares       que,  usados   em   equilíbrio   adequado,   nos   ajudam   a   chegar   a   um  conhecimento   mais  profundo  da  vida.  

(CAPRA,  1982:261).    

Para   Capra   o   reducionismo   é   um  sistema   que   deve   conviver   com  um  sistema  holístico  

para   a   atividade   científica   tecnológica    e   social,   deve   haver   um   equilíbrio  entre  os  mesmos   e  

não   um   predomínio   ou   exclusivismo   do   sistema   mecanicista   que   governou   durante,  

aproximadamente,   três   séculos   o  método   científico.   O  sistema  holístico   defendido   por  Capra  se  

encaixa  perfeitamente   na  tendência  CTS  para  o  ensino  de  física.  

Edgar  Morin  com  sua  obra  “Ciência   Com  Consciência”   tenta  despertar   a  consciência   dos  

investigadores   e   diz   que   é   o  momento   de   tomar   consciência   de   que  a       ciência       carente       de      

reflexão       e       uma       filosofia       puramente       especulativa       são   insuficientes   para   enxergar   a  

complexidade   da  realidade   física,  biológica,   social  e  política.   Pois   as   ciências   naturais   não  estão  

conscientes   de   pertencer   a   uma   cultura,   a   uma   sociedade   e   a   uma   história   e,   as   ciências  

humanas  não  têm  consciências   dos  aspectos   físicos  e  biológicos  dos  fenômenos  humanos.  

Contrário   ao   mecanicismo,   Morin   diz   que   as   máquinas   artificiais   aplicam   programas  

fornecidos   pelos   engenheiros   e   estas   não   se   reproduzem,   não   se   regeneram   e   também   não  

toleram  a  desordem;   enquanto   as  máquinas   vivas   (sociedade   humana)   estão   em   permanente  

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estado   de   organização   e   modificam-­‐se   segundo     a   aleatoriedade     das   situações.     Por   isso,  

segundo    Morin,    a   ciência    não  deve  esquecer  o  lado  social  da  humanidade.  

A  obra   de  Morin   levou-­‐me   a   refletir   sobre   o   social   dentro   do  meu   mundo  profissional,  

contrariando   o  mecanicismo   cartesiano   que  provocou   um  esquecimentosocial  e  humano  dentro  

de  mim.  

 “Introdução     a     uma     Ciência     Pós-­‐Moderna”     obra     de     Boaventura     de     Souza  Santos  

fecha   o   ciclo   de   autores   que   eu   naveguei   para   falar   sobre   a   nova   proposta  para   os   métodos  

científicos   e   o   ensino   de   ciências   dentro   de   uma   tendência   CTS.  Nessa   obra   o   autor   rompe  

com   o   paradigma   da   ciência   moderna   e   faz   emergir   um   novo   paradigma   que   ele   chama   de  

Ciência   Pós-­‐Moderna   no   qual   propõe   um   conhecimento   prudente   para   uma   vida   decente:   um  

paradigma   científico   social,   uma   reflexão   hermenêutica   para   compreender   criticamente   a  

ciência  moderna.  

A  partir   dessa   reflexão   a  ciência   se  pautará   numa   relação  mais   direta   com  a  sociedade  

numa   relação   eu-­‐tu   (hermenêutica)   e   não   mais   a   relação   eu-­‐coisa   (epistemológica),   sendo  

compreendida   como   prática   social   do   conhecimento.    Este  paradigma   reflete   um  momento   de  

transição   entre   o   moderno   e   o   pós-­‐moderno,   e   não   uma   ruptura   total   entre   os   dois  

paradigmas,   proposta   para   um  novo   modelo   de  ciência   que   se  baseia   em  quatro   teses   em  que  

todo  conhecimento:   científico  natural  

é   científico   social;   é   local   e   total;   é   autoconhecimento;    visa   constituir-­‐se    no   novo  senso  

comum.  

Em   sua   obra,   assim   como   Capra   e   Morin,   Boaventura   busca   a   reflexão   de   uma  

ciência   voltada   para   o   social,   vejo   nos   três   autores   a   preocupação   com   a   ética   científica   e   o  

social,  uma  mudança  no  método  científico  no  qual  não  se  preocupa  apenas   com  a   validação   dos  

conceitos   científicos   e   sim   com   a   aplicação   sistêmica   desses   conhecimentos,   uma   proposta  

científico/social.  

Hoje,  influenciado  por  esses  três  autores,  quando  escrevo  busco  sempre  uma    

ética   profissional   voltada,   não   só  para   mim,   mas   para   o   sujeito   de  minha   pesquisa  ou  

profissão,   o  homem.          

1.4  –  A  NOVA  FÍSICA        

A   física   moderna   começa   no   início   do   séc   XX,   com   três   trabalhos   publicados   pelo    

extraordinário     Albert     Einstein     em     1905:     a     teoria     da     relatividade,     o     efeito  fotoelétrico  e  o  

movimento   browniano.  

Dez  anos   depois   Einstein   formulou   a  teoria   geral  da   relatividade.   Nessa   teoria  Einstein  

unifica   e   completa   a   mecânica   clássica   juntamente   com   a   eletrodinâmica   e   a     gravidade,     o    

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que     nos     confirma     o     seu     pensamento     de     harmonia     inerente  à  natureza.   Nesse   trabalho   foi  

introduzida,   nova   e   drástica   mudança   nos   conceitos   de  espaço   e   tempo:   Espaço   e  Tempo   são  

relativos  não  mais  absolutos.  

Os    trabalhos    de    Einstein     facilitaram    a    origem    de    novo    ramo    da    física:    a    

Mecânica   Quântica.   Esse   ramo   amplia   o  modelo   cartesiano   científico   e  elabora   um  novo  

modelo,  o  tetradimensional   no  qual  o  tempo  também  interage.  

A     teoria     quântica     foi     desenvolvida     por     um    grupo     internacional     de     físicos  durante    

as     três     primeiras     décadas     do     século     passado     entre     eles     citamos:     Max   Planck,     Albert  

Einstein,    Neils   Bohr,   Louis   De   Broglie,   Erwin   Schodinger,    Wolfang  Pauli,  Werner  Heisenberg  

e  Paul  Dirac.  

A  nova  física  exigia  profundas  mudanças   nos  conceitos  de  espaço,  tempo,  matéria,  objeto  

e  causa  e  efeito.  Esses  conceitos  são  importantes   na  maneira  de  interpretar       o      mundo      e      essas      

mudanças       causaram       um       grande       choque       na   comunidade     científica     que     pode     ser    

comprovado     por     dois     comentários     feitos,     o   primeiro   por   Heisenberg   e   o   segundo   por  

Einstein:      

A   reação   violenta   ao   recente   desenvolvimento     da   física   moderna   só  pode      ser     entendida       quando       se     percebe      que     neste       ponto       os  alicerces   da   física   começaram     a   se   mover;   e   que   esse   movimento  provocou   a   sensação     de   que   a   ciência   estava   sendo   separada   de  suas  bases.  

(CAPRA,   1982:72)    

Todas   as   minhas   tentativas   para   adaptar   os   fundamentos     teóricos  da   física   a   esse   [novo   tipo   de]   conhecimento   fracassaram  completamente.   Eram   como   se   o   chão   tivesse   sido   retirado   debaixo  dos     meus     pés,     e    não     houvesse     qualquer     outro     lugar     uma     base  sólida  sobre  a  qual  pudesse  construir  algo.  

(CAPRA   ,1982:  72)        

O   Princípio   da   Incerteza   de   Heisenberg   expressa   matematicamente   as   limitações     dos    

conceitos     clássicos.     Segundo     este    princípio    sempre     que    usamos  termos  clássicos   (partícula,  

onda,  velocidade,  posição)  para  descrever   fenômenos  atômicos   descobrimos   pares   de   conceitos  

que   se   interelacionam   e   que   não   podem  ser   definidos   simultaneamente   com   precisão:   quanto  

mais   enfatizamos   um  aspecto  em  nossa  descrição,  mais  o  outro  se  torna  incerto.  

A  noção   de   complementaridade    introduzida   por   Niels   Bohr   veio   esclarecer   o  princípio  

da   incerteza   de   Heisenberg.   Segundo   Bohr   um   par   de   conceitos   clássicos   como     onda     e    

partículas,    são    descrições     complementares     da    mesma     realidade,  ambas   são  necessárias   para  

uma   descrição   total   da   realidade   atômica.   O   moderno   conceito   de   complementaridade   está  

claramente   contido   no  pensamento   chinês  yin/yang12,     uma     vez     que     os     opostos     yin/yang    

estão     inter-­‐relacionados     de    uma  

maneira    polar   ou   complementar.    Este   fato   causou    profunda    impressão    em   Niels  Bohr.    

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Assim,   a   física   quântica   nos   mostra   através   do   estudo   do   átomo   que   nunca  podemos  

predizer   com   certeza   um   evento   atômico,   mas   podemos   prever   a   probabilidade   de   sua  

ocorrência   porque  os  conceitos   estão   interligados   entre  si.  Portanto,   a   física   moderna   revela   a  

unicidade   básica   do   universo   e   que   o   mundo   não     pode     ser     decomposto     em     unidades    

ínfimas    com    existência     independentes,  como  nos  mostrava  a  teoria  mecanicista  cartesiana.  

Através     da     unicidade     básica     do     universo,     proposto     pela     física     moderna,  chego   à  

conclusão   que   a   tríade   ciência,   tecnologia   e  sociedade   devem   caminhar   juntas,   para   o   bem   da  

humanidade   e   do   planeta   e  que   filmes   de   ficção   que  mostram  um  planeta   totalmente   estéril   e  

sem  vida  seja  apenas   ficção.    

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 Da  necessidade  de  um  pensamento  complexo  

 Edgar   Morin  

Sociólogo,  C.N.R.S./França  *  tradução  de  Juremir  Machado  da  Silva  

     Política   de  civilização  e  problema  mundial        Vou   tentar   descrever,   de  maneira   breve,   o   problema   do   desafio   da   complexidade.   Começarei   pela  

ideia  de  que   toda  e  qualquer   informação   tem  apenas  um  sentido  em  relação  a  uma  situação,   a  um  

contexto.  Se,  por  exemplo;  eu  disser  "amo-­‐te",  esta  palavra  pode  ser  a  expressão  de  um  apaixonado  

sincero  e  deve  ser  tomada  nesse  sentido;  mas  pode  ser  também  a  farsa  de  um  sedutor  e  nessa  altura  

será  uma  mentira.      Pode  ser  ainda,  numa  peça  de  teatro,  a  palavra  de  um  herói,  e  não  do  ator  que  desempenha  o  papel  

do  personagem;  o   sentido  das   palavras  muda,   portanto,   necessariamente,   segundo   o   contexto   em  

que  as   empregamos;   é  por   isso  que,  em   linguística,   como   todos   sabemos,   o   sentido   de   um   texto   é  

esclarecido   pelo   seu   contexto.   Por   exemplo:   quando   ouvimos   as   informações   na   televisão   ou   as  

lemos  nos  jornais,  a  palavra  Sarajevo,  a  palavra  Hezbollah  e  a  palavra  Kabul  não  têm   sentido   se   não  

as   situarmos   no   seu   contexto   geográfico   e   histórico,   o   que   quer   dizer   que,   para   conhecer,   não  

podemos  isolar  uma  palavra,  uma  informação;  

é   necessário   ligá-­‐Ia   a   um   contexto   e   mobilizar   o   nosso   saber,   a   nossa   cultura,   para   chegar   a   um  

conhecimento  apropriado  e  oportuno  da  mesma.      O   problema   do   conhecimento   é   um   desafio   porque   só   podemos   conhecer,   como   dizia   Pascal,   as  

partes  se  conhecermos  o  todo  em  que  se  situam,  e  só  podemos  conhecer  o  todo  se  conhecermos  as  

partes  que  o  compõem.  Ora,  hoje  vivemos  uma   época   de   mundialização,   todos   os   nossos   grandes  

problemas  deixaram  de  

ser   particulares   para   se   tomar   mundiais:   o   da   energia   e,   em   especial,   o   da  bomba    atômica,    

da     disseminação     nuclear,     da     ecologia,     que     é     o     da     nossa   biosfera,   o   dosvírus,   como   a   Aids,  

imediatamente   se   mundializam.   Todos   os   problemas   se   situam   em   um   nível   global   e,   por   isso,  

devemos  mobilizar   a   nossa   atitude  não   só  para  os   contextualizar,  mas   ainda  para  os  mundializar,  

para  os  globalizar;  devemos,   em  seguida,  partir  do  global  para  o  particular   e  do  particular  para   o  

global,   que   é   o   sentido   da   frase   de   Pascal:   "Não   posso   conhecer   o   todo   se   não   conhecer  

particularmente  as  partes,  e  não  posso  conhecer  as  partes  se  não  conhecer  o  todo".      Deveríamos,   portanto,   ser   animados   por   um   princípio   de   pensamento   que   nos   permitisse   ligar   as  

coisas   que   nos   parecem   separadas   umas   em   relação   às   outras.   Ora,   o   nosso   sistema   educativo  

privilegia   a   separação   em   vez   de   praticar   a  ligação.  A  organização  do  conhecimento  sob  a  forma  

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de  disciplinas  seria  útil  se  estas  não  estivessem  fechadas  em  si  mesmas,  compartimentadas  umas  em  

relação   às   outras;   assim,   o   conhecimento   de   um   conjunto   global,o   homem,   é   um   conhecimento  

parcelado.  Se  quisermos  conhecer  o  espírito  humano,  podemos  fazê-­‐Io  através  das  ciências  humanas,  

como  a  psicologia,  mas  o  outro  aspecto  do  espírito  humano,  o  cérebro,  órgão  biológico,  será  estudado  

pela  biologia.      Vivemos   numa   realidade   multidimensional,   simultaneamente   econômica,   psicológica,   mitológica,  

sociológica,  mas  estudamos  estas  dimensões  separadamente,  e  não  umas  em  relação  com  as  outras.  O  

princípio   de   separação   torna-­‐nos   talvez   mais   lúcidos   sobre   uma   pequena   parte   separada   do   seu  

contexto,  mas  nos  torna  cegos  ou  míopes  sobre  a  relação  entre  a  parte  e  o  seu  contexto.  Além  disso,  o  

método   experimental,   que   permite   tirar   um   "corpo"   do   seu   meio   natural   e   colocá-­‐Ia   num   meio  

artificial,  é  útil,  mas  tem  os  seus  limites,  pois  não  podemos  estar  separados  do  nosso  meio  ambiente;  o  

conhecimento  de  nós  próprios    não    é    possível,    se    nos    isolarmos    do    meio    em    que    vivemos.    Não  

seríamos   seres   humanos,   indivíduos   humanos,   se   não   tivéssemos   crescido   num   ambiente   cultural  

onde   aprendemos   a   falar,   e   não   seríamos   seres   humanos   vivos   se   não   nos   alimentássemos   de  

elementos  e  alimentos  provenientes  do  meio  natural.    

Por   outro   lado,   durante   muito   tempo,   a   ciência   ocidental   foi   reducionista   (tentou   reduzir     o    

conhecimento     do     conjunto     ao     conhecimento     das     partes     que     o   constituem,  pensando  que  

podíamos   conhecer  o   todo   se   conhecêssemos   as  partes);   tal   conhecimento   ignora  o   fenômeno  mais  

importante,  que  podemos  qualificar  de  sistêmico,  da  palavra  sistema,  conjunto  organizado  de  partes  

di-­‐   ferentes,   produtor   de   qualidades   que   não   existiriam-­‐se   as   partes   estivessem   isoladas   umas   as  

outras.É   isto   que   podemos   chamar   “emergências",   Por   exemplo,   somos   a   vida.   Um   ser   humano   é  

constituído  por  moléculas,  moléculas  químicas,  moléculas  de  ácidos,  ácidos  nucléicos  e  aminoácidos.  

Nenhuma  destas  macromoléculas  tem,  por  si  só.  as  qualidades  que  dão  a  vida;  a  organização  viva,  feita    

destas     moléculas,     organização     complexa,     tem     um     certo     número     de  qualidades  que  emergem.  

qualidades  de  autoprodução.  auto-­‐reprodução,  autodesenvolvimento,  comunicação,  movimento  etc.      Não  podemos,  portanto,  compreender  o  ser  humano  apenas  através  dos  elementos  que  o  constituem.  

Se  observarmos  uma  sociedade,  verificaremos  que  nela  há  interações  entre  os  indivíduos,  mas  essas  

interações  formam  um  conjunto  e  a  sociedade,  como  tal,  é  possuidora  de  uma  língua  e  de  uma  cultura  

que   transmite  aos   indivíduos;   essas   "emergências   sociais"  permitem  o  desen-­‐  volvimento  destes.  É  

necessário  um  modo  de  conhecimento  que  permita  compreender  como  as  organizações,  os  sistemas,  

produzem  as  qualidades  fundamentais  do  nosso  mundo.      Tratemos  agora  do  fenômeno  da  auto-­‐organização.  O  ser  humano  é  autônomo,  mas  a  sua  autonomia  

depende   do   meio   exterior.   Se   temos   necessidade   de   nos   alimentar,   é   porque   o   nosso   organismo  

trabalha  continuamente,  degrada  a  sua  energia  e  tem  necessidade  de  renová-­‐Ia,  extraindo-­‐a  do  mundo  

exterior  sob  a  for-­‐  ma  já  organizada  dos  alimentos  vegetais  ou  animais.  Por  isso,  para  ser  autônomo,  

tenho  de  depender  do  meio  exterior;  para  ser  um  espírito  autônomo,  tenho  de  depender  da  cultura  de  

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que   alimento   os  meus   conhecimentos.   a  minha   faculdade   de   conhecimento   e   a  minha   faculdade   de  

julgar.   Assim,   somos   levados   a   pensar   conjuntamente     em     duas     noções     que     até     agora     se    

encontravam    separados,    

porque   durante  muito   tempo   não   podíamos   compreender   a   autonomia   do   ponto  de  vista  científico,  

visto  que  o   conhecimento   científico   clássico   só   conhecia  o  determinismo.  A   autonomia   só  podia   ser  

pensada  do  ponto  de  vista  puramente  metafísico,  quer  dizer,  excluindo  qualquer  laço  material.  Por  um  

lado,   tínhamos   uma     ciência     com     dependência,     mas     sem     autonomia,     e     por     outro     lado     uma  

filosofia  com  autonomia,  mas  sem  conceber  a  dependência.  Ora,  penso  que  o  pensamento  complexo  

deve  ligar  a  autonomia  e  a  dependência.      A  nossa  educação  nos  habituou  a  uma  concepção  linear  da  causalidade.  Temos  causas  que  produzem  

efeitos.  Ora,  uma  das  ideias  mais  importantes  que  me  parecem  ter  surgido  nos  últimos  50  anos  foi  a  da  

circularidade,  cristalizada  pela  primeira  vez  por  um  especialista  em  cibernética.  Para  compreender  a  

ideia   de   cir-­‐   cularidade   retroativa,   podemos   imaginar   um   sistema   de   aquecimento   central:   uma  

caldeira   alimenta   os   radiadores;   quando   se   atingiu   a   temperatura   desejada,   um   termos   tato   faz  

parar  o  funcionamento  da  caldeira;  se  a  temperatura  baixa,  o  termos  tato  faz  funcionar  a  caldeira  de  

novo.  Há,  em  consequência,  um  sistema  onde  o  efeito  atua  retroativamente  sobre  a  causa.      Passamos  de  uma  visão  linear  a  uma  visão  circular.  A  causalidade  retroativa  possibilita  compreender  

um   fenômeno   de   autonomia   térmica:   quando   faz   frio   lá   fora,   o   compartimento   fica   quente   e,  

paradoxalmente,   quanto   mais   frio   faz   lá   fora,   mais   quente   fica   o   interior   do   compartimento.   Esta  

autonÓmia,   provocada  pela   re-­‐   gulação   (circularidade   retroativa),   é   ela   própria   produzida   por   uma  

circularidade  mais  intensa,  chamada  circularidade  autoprodutiva.  Em  que  consiste  esta  circularidade?  

Consiste  no  fato  de  produtos  e  efeitos  serem  necessários  ao  produtor  e  ao  causador.      Tomemos   dois   exemplos:   a   vida   e   a   sociedade.   A   vida   é   um   sistema   de   reprodução   que   produz   os  

indivíduos.   Somos   produtos   da   reprodução   dos   nossos   pais.   Mas,   para   que   este   processo   de  

reprodução   continue,   é   necessário   que   nós   próprios   nos   tomemos   produtores   e   reprodutores   de  

nossos  filhos.  Somos,  portanto,  produtos  e  produtores  no  processo  da  vida.  Da  mesma  maneira.  somos  

produtores     da     sociedade     porque     sem     indivíduos     humanos     não     existiria     a  

sociedade  mas,   uma   vez   que   a   sociedade   existe,   com  a   sua   cultura,   com  os   seus   interditos,   com   as  

suas   normas,   com   as   suas   leis,   com   as   suas   regras,   produz-­‐  nos  como  indivíduos  e,  uma  vez  mais,  

somos  produtos  produtores.  

 Produzimos  a  sociedade  que  nos  produz.  Ao  mesmo  tempo,  não  devemos  esquecer  que  somos  não  só  

uma  pequena  parte  de  um  todo,  o  todo  social,  mas  que  esse  todo  está  no  interior  de  nós  próprios,  ou  

seja,  temos  as  regras  sociais,  a  linguagem  social,  a  cultura  e  normas  sociais  em  nosso  interior.  Segundo  

este   princípio,   não   só   a   parte   está   no   todo   como   o   todo   está   na   parte.   Isto   acarreta   consequências  

muito   importantes  porque,  se  quisermos  julgar  qualquer  coisa,  a  nossa  sociedade  ou  uma  sociedade  

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exterior,  a  maneira  mais  ingênua  de  o  fazer  é  crer  (pensar)  que  temos  o  ponto  de  vista  verdadeiro  e  

objetivo  da  sociedade,  porque   ignoramos  que  a  sociedade  está  em  nós  e   ignoramos  que  somos  uma  

pequena  parte  da  sociedade.  Esta  concepção  de  pensamento  dános  uma  lição  de  prudência,  de  método  

e  de  modéstia.      Devo  indicar,  neste  momento  da  minha  exposição,  que  o  pensamento  complexo  nos  abre  o  caminho  

para  compreender  melhor  os  problemas  humanos.  Em  primeiro    lugar,    não    devemos    esquecer    que    

somos     seres     trinitários,     ou     seja,   somos   triplos   em   um   só.   Somos   indivíduos,   membros   de   uma  

espécie  biológica  chamada  Homo  Sapiens,  e  somos,  ao  mesmo  tempo,  seres  sociais.  Temos  estas  três  

naturezas  numa  só.  Penso  que  é  importante  sabê-­‐Io  porque,  de  uma  maneira  geral,  o  nosso  modo  de  

pensamento   mais   habitual   nos   toma   difícil   conceber   um   elo   entre   estas   três   naturezas   e   saber   se  

existe   unidade   na   humanidade   ou   diversidade,   heterogeneidade   e,   consequentemente,   ausência   de  

unidade.  Tema  polêmico  a  partir  do  século  XVIII.  Há  quem  diga  que  a  natureza  humana  é  una,  e  que  os  

chineses  ou  africanos  têm  uma  natureza  igual  à  nossa  e  por  isso,  como  nós,  amores,  tristezas,  alegrias,  

felicidades.   Outros   pensadores,   como   os   culturalistas,   dizem   que   somos   diferentes   de   cultura   para  

cultura,  não  existindo  verdadeira  unidade  humana.      Foi   muitas   vezes   difícil   fazer   compreender   que   o   "um"   pode   ser   "múltiplo",   e   que  o   "múltiplo"   é  

suscetível   de   unidade.   Que,   por   exemplo,   do   ponto   de   vista   do   ser  humano,  há  certamente  unidade  

genética,  que  todos  os  seres  humanos  têm  o  mesmo   patrimônio   genético   e   há   unidade   cerebral;  

por   essa   razão,   todos   os  seres  humanos  têm  as  mesmas  atitudes  cerebrais  fundamentais.  É  também  

certo   que   os   seres   humanos   têm   uma   identidade   profunda   pelo   fato   de   poder   desenvolver   a   sua  

nacionalidade  e  por  serem  afetivos,  capazes,  todos  eles,  de  sorrir,  de  rir  e  de  chorar.  A  observação  de  

um  etólogo   alemão   sobre  uma   jovem  surda,  muda  e   cega  de  nascença  demonstrou  que,   por   ela   rir,  

chorar  e  sorrir,  não  tinha  aprendido,  através  do  seu  meio  cultural,  estas  manifestações  afetivas.      Há,     logo,    a    unidade    fundamental    do    ser    humano;    mas,    ao    mesmo    tempo,  sabemos  que  certas  

civilizações   inibem   as   lágrimas,   enquanto   outras   permitem   a   sua   expressão;   que   sorrimos   em  

condições  diferentes  numas  e  noutras;  o  riso,  as  lágrimas  e  o  sorriso  são  diferentemente  modulados  

segundo  as  culturas,  mas  devemos  saber  sobretudo  que,  a  partir  da  mesma  estrutura  fundamental  da  

linguagem,  se  criou  uma  diversidade  inacreditável  de  línguas  ao  longo  do  desenvolvimento  da  espécie  

humana,   e   que   as   culturas   geraram   riquezas   extraordinárias;   o   tesouro   da   humanidade   é   a   sua  

diversidade.   esta   não   só   é   compatível   com   a   unidade   fundamental,   mas   produzida   pelas  

possibilidades   do  ser  humano.      Compreender   a  unidade   e   a  diversidade   é  muito   importante  hoje,   visto   estarmos  num  processo  de  

mundialização  que  leva  a  reconhecer  a  unidade  dos  problemas  para    todos    os    seres    humanos    onde    

quer    que    estejam;    ao    mesmo    tempo,    é  preciso    preservar    a    riqueza    da    humanidade,    ou    seja,    a    

diversidade    cultural;  vemos,  por  exemplo,  que  as  diversidades  não  são  só  as  das  nações,  mas  estão  

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também  no  interior  destas;  cada  província,  cada  região,  tem  a  sua  singularidade  cultural,  a  qual  deve  

guardar  ciosamente.      Há,  no  mesmo  sentido,  o  problema  com  o  qual  estive  confrontado  quando  quis  escrever  meu  livro  "O  

Homem  e  a  morte":  a  multidimensionalidade  humana.  A  interrogação  que  me  coloquei  desde  o  início  

foi  a  seguinte:  O  homem  btá,  como  todos  os  seres  biológicos,  submetido  à  morte;  por  isso,  no  domínio  

da  morte,  é  semelhante  a   todos  os  outros  seres  vivos;  mas  o  homem  é  o  único  ser  vivo  que  

acredita  existir  uma  vida  após  a  morte,  que  pratica  ritos  fúnebres,  que  tem  uma  mitologia   da   morte,  

porque   acredita   que   a   morte   existe,   quer   um   renascimento,  quer  a  sobrevivência  de  um  fantasma,  

quer   a   ressurreição,   etc.   A   realidade   humana   é.   pois,   por   um   lado,   biológica   e,   por   outro,  

autobiológica,  quer  dizer,  mitológica.  

Um   dos   traços   importantes   do  meu   trabalho   foi   deixar   de   subestimar   os   aspectos   imaginário       e      

mitológicos      do      ser      humano.      Algo      que      me      tinha      deveras  impressionado  quando  assisti  a  uma  

cerimônia   de   Candomblé   no   Brasil,   e   da   qual   participei,   foi   constatar   que,   num   momento  

determinado,   os   participantes,   os   crentes,   invocam  os   espíritos   ou  deuses   tais   como   Iemanjá;   num  

dado  momento,  um  dos  espíritos  encama  num  dos  participantes  e  fala  através  deste.  Além  disso,  

é  possível  a  presença  de  vários  espíritos.  O  que  significa   tudo   isto?  Significa  que  os  deuses  têm  uma  

existência   real;   essa  existência  é-­‐lhes   conferida  pela  comunidade  dos  crentes,  pela   fé,  pelo   rito.  Mas  

uma  vez  que  o  deus  existe,  é  capaz  de  nos  possuir,  e  é  essa  a  relação  particular  que  nutrimos  com  os  

"deuses",  ou  com  o  nosso  "Deus",  ou  as  com  nossas  ideias.      Isso   significa  ainda  que  damos  vida  às  nossas   ideias  e,   uma  vez  que   lhes  damos  vida,   são  elas  que  

indicam   o   nosso   comportamento,   que   nos  mandam  matar   ou  morrer   por   elas;   vale   dizer   que   tais  

produtos   são   os   nossos   próprios   produtores,   e   que   as   realidades   imaginária   e   mitológica   são   um  

aspecto  fundamental  da  reali-­‐  dade  humana.      Do  mesmo  modo,  penso  que  devemos  considerar  a  história  humana  de  maneira  complexa.    Ora,    entre    

as    maneiras    não    complexas    de    considerar    a    história  humana,  a  primeira  foi  a  de  que  esta  era  uma  

sucessão  de  batalhas,  de  golpes  de  Estado,  de  mudanças  de  reino,  de  acontecimentos  importantes,  de  

acidentes,   de   guerras.   Uma   segunda   maneira   consistiu   em   julgar   que   os   acidentes,   as   guerras,   as  

mudanças  de  reino,  eram  acontecimentos  superficiais  enquanto,  na  realidade,  existiria  um  movimento  

ascendente,   o   do   progresso;   as   leis   da   história   estariam   escritas   no   decurso   da   humanidade   e,   se  

surgissem  acidentes,  seriam  provisórios.      Primeiramente,   é   necessário   unir   estas   duas   concepções:   a   dos   acidentes,   das   perturbações,  aquilo   que   Shakespeare   chamou   "o   barulho   e   o   furor"   e,   por   outro   lado,   as   determinações,   os  determinismos.  Isto  se  aplica  também  à  história  do  Universo,  que  começamos  a  conhecer  como  uma  história   que   nasceu,   talvez,   de   uma   catástrofe   gigantesca,   da   qual   surgiu   o   nosso   mundo,   criado  através  de  enormes  destruições,  porque  se  pensa  que  desde  o  início  a  matéria  provocou  o  genocídio  da   antimatéria   ou,   ao   menos,   essa   antimatéria   desapareceu.   Em   seguida,   houve   o   choque   das  estrelas,  a  colisão  das  galáxias,  explosões...  

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   Ora,  o  mundo  produz,  por  um  lado,  galáxias,  estrelas,  ordem  no  céu  e,  ao  mesmo  tempo,  forma-­‐se  por  

entre  a  desordem;  da  mesma  maneira,  a  história  da  terra  é  uma  história  atormentada.  Pensa-­‐se  que,  

na  origem,  foram  os  detritos  de  um  sol  anterior  que  explodiu  que  se  aglomeraram,  tendo-­‐se,  a  partir  

daí,  produzido  um  fenômeno      de      auto-­‐organização      da       terra,      com,      num      dado      momento,      o  

aparecimento   da   primeira   célula   viva.   Mas   a   verdadeira   história   da   vida   ocorreu   através   de  

convulsões  e  catástrofes;  houve  um  acidente  no  final  da  era  primária  em  que  97%  das  espécies  vivas  

dessa  época  desapareceram;  houve  o  famoso  acidente  em  que  os  dinossauros  morreram,  e  que  parece  

ser  a  consequência  de  um    meteorito    conjugado    com    uma    enorme    explosão    vulcânica.    A    história    

da  nossa  terra  é  acidental,  e  através  desses  acidentes  houve  a  extraordinária  proliferação  de  formas  

vegetais  e  animais,  das  quais,  de  um  ramo  de  um  ramo  de  um  ramo...  da  evolução  animal  surgiu  o  ser  

humano  e,  finalmente,  a  consciência  humana.      O  sentido  da  evolução  não  era  o  de  produzir  por  todo  lado  a  consciência.  Foi  o  ramo  de  um  ramo  de  

um  ramo  que  produziu  a  humanidade.  Somos,  portanto,  um  produto  "desviado"  da  história  do  mundo;  

isto   nos   permite   compreender   que   a   evolução   não   é   qualquer   coisa   que   avança   frontalmente,  

majestosamente,   como   um   rio,   mas   parte   sempre   de   um   "desvio"   que   começa   e   consegue  

impor-­‐se,   toma-­‐se   uma   grande   tendência   e   triunfa,   o   que   se   aplica   à   história   das   ideias;   no   início,  

Moisés  é  um  egípcio  "desencaminhado"  ou  "desviado"  que  se  afastou  da  sua  religião  quando  fundou  o  

judaísmo;  o  "desencaminhamento"  de  Jesus  foi  acrescido  pelo  de  Paulo,  quando  este  disse  não  haver  

nem   judeus,   nem   gentios.   Maomé,     Karl     Marx     e     Lutero     foram     seres     "desencaminhados"     ou    

"desviados";  certos  "desencaminhamentos"  enraízam-­‐se  e  transformam-­‐se  em  tendências  fortes.      Isso  deve  tornar  mais  complexa  a  nossa  visão  da  história  e   levar-­‐nos  a  compreender  a   incerteza  do  

nosso   tempo,  visto  que  não  há  progresso  necessário  e   inelutável;   sabemos  que   todos  os  progressos  

adquiridos  podem  ser  destruídos  pelos  nossos  inimigos  mais  implacáveis:  nós  mesmos,  dado  que  hoje  

a   humanidade   é   a   maior   inimiga   da   humanidade.   Sabemos,   atualmente,   que   o   progresso   deve   ser  

regenerado;   sabemos  ainda  que  a  barbárie   constitui   uma  ameaça,   e   vivemos  mais  do  que  nunca  na  

incerteza,  porque  ninguém  pode  adivinhar    o    que    será    o    dia    de    amanhã.    O    nosso    destino    é,    pois,    

incerto,    e  ninguém  sabe  qual  o  destino  do  Cosmos.      Devemos,   porém,   poder   situar-­‐nos   nesta   incerteza.   A   nossa   situação   é,   em   virtude   desta  

constatação,    extremamente    complexa,    porque    somos,  integralmente,  filhos  do  Cosmos  e  estranhos  

a  esse  mesmo  Cosmos.  Poderia  exemplificar  com  o  organismo  humano,  mas  vou  tomar  simplesmente  

o  exemplo  de  um  copo  de  vinho  do  Porto.  Se  pegarem  um  copo  de  vinho  do  Porto  e  o  inter-­‐  rogarem,  

podem   ter   a   certeza   de   que   nesse   vinho   do   Porto   há   partículas   que   se   formaram   nos   primeiros  

segundos   do   Universo,   ou   seja,   há   cerca   de   sete   a   quinze   milhões   de   anos;   há   também   o  

hidrogênio,   um   dos   primeiros   elementos   a   ser   formado   no   Universo,   e   produtos   do   átomo   do  

carbono,   formado  quando  da   existência   do   sol   anterior   ao   nosso.  No   copo  de   vinho  do  Porto,   há   a  

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conjugação  de  macromoléculas  que  se  juntaram  na  terra  para  dar  origem  à  vida  e  há  ainda  a  evolução  

do  mundo  vegetal,  a  evolução  animal,  até  o  homem,  e  a  evolução  técnica  que  permitiu  ao  ser  humano  

extrair   o   sumo   da   uva   e   transformá-­‐I   o,   através   da   fermentação,   em   vinho.   Hoje,   existem   técnicas  

mais  evoluídas,  mais  sofisticadas,      da      informática,      que      permitem      controlar,      nos      depósitos,      a  

fermentação  desse  vinho  que  vai  transformar-­‐se  em  vinho  do  Porto.  Dito  de  outra  maneira,  num  copo  

de   vinho   do   Porto   temos   toda   a   história   do   Cosmos   e,   simultaneamente,   a   originalidade   de   uma  

bebida   encontrada   apenas   na   região  do  Douro.  

   

Somos    filhos    da    natureza    viva    da    terra    e    estrangeiros    a    nós    próprios.    Esta  reflexão   leva-­‐nos   a  

abandonar   a   ideia   que   considerava   o   ser   humano   como  centro    do    mundo,    mestre    e    

dominador    da    natureza,    defendida    por    grandes  filósofos    ocidentais    como    Bacom,    Descartes,    

Buffon,    Karl    Marx.    Hoje,    essa  ambição  parecenos  completamente  irrisória,  porque  vivemos  num  

planeta  minús-­‐  culo,   satélite   de   um   pequeno   sol   de   segunda   classe,   que   faz   parte   de   uma  

galáxia  extremamente  periférica;  estamos,  por  essa  razão,  perdidos  no  Universo.  Mas,   se   devemos  

abandonar   a   visão   que   faz   do   homem   o   centro   do   mundo,  devemos  salvaguardar  a  visão  

humanista  que  nos  ensina  que  é  necessário  salvar  a  humanidade  e  civilizar  a  terra.  Abandonemos  a  

missão  de  Prometeu  e  tomemo-­‐  nos  seres  terrestres,  quer  dizer,  cidadãos  da  terra,  o  que  nos  

remete  à   ideia  por  mim  desenvolvida  no  livro  Terra-­‐Pátria;  para  compreendê-­‐Ia,  é  necessário  

refletir  sobre    a    palavra    "Pátria".    A    palavra    "Pátria"    significa    três    coisas:     identidade  comum,  

comunidade  de  origem,  do  destino  e  de  ideias.  

•                 Identidade  comum,  como  já  tive  a  ocasião  de  referir.    

•                 Comunidade   de   origem   e   comunidade   de   destino,   segundo   os   dados   do  

conhecimento  da  hominização  e  da  pré-­‐história:  parece  haver  uma  origem  comum  da  

humanidade  -­‐  o  continenteAfricano.  É  possível  que  o  "HomoSapiens"  tenha  partido  da  

África   e   povoado   o   mundo,   assim   como   é   possível   que   os   antepassados   do   "Homo  

Sapiens",  através  do  processo  de  mestiçagem,   tenham  suscitado  na  Europa,  na  Ásia  e  

na  África,  o  aparecimento  da  nossa  espécie;  de  qualquer  maneira,  há  uma  comunidade  

de  origem  pertencente  ao  ramo  particular  da  evolução  dos  seres  vivos.  Comunidade  de  

destino:  fazer  parte  de  uma  Pátria  significa  participar  de  um  destino  comum;  ora,  esse  

destino  relacionado  com  a  pátria  é  um  destino  que  nos  vem  do  passado.  Participa-­‐se  da  

Pátria  Portuguesa  porque   se   aprende  a  história  de  Portugal   e   tomase  parte  nas   suas  

dificuldades,  nos  seus  sofrimentos,  nas  suas  grandezas  e  nas  suas  glórias;  incorpora-­‐se  

o  destino  comum  dos  antepassados.  A  ideia  de  comunidade  de  destino  terrestre  é  uma  

ideia   recente.  Vem  da  era  planetária,  quer  dizer,  do  momento  em  que  os   fragmentos  

dispersos   da   humanidade   começaram     a     encontrar-­‐se;     no     início,     de     maneira    

extremamente  violenta    e    brutal,    através    das    conquistas    e    da    colonização.    Hoje,  

todos   os   seres   humanos,   apesar   de   viverem   situações   diferentes,  têm  os  mesmos  

problemas   fundamentais   de   vida   e   morte.   Temos   necessidade   de   nos   proteger   de  

desastres  que  podem  destruir  o  homem.  

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.  Comunidade  de  ideias:  esta  noção  faz-­‐nos  abandonar  a  alternativa  banal  segundo  a  qual,  no  caso  de  

sermos   cosmopolitas,   não   teríamos   raízes   e,   no   caso   de   termos   Pátria,   seria   uma   Pátria   singular  

fechada  sobre  ela  própria.      A   ideia   de   "Terra-­‐Pátria"   não   nos   desenraíza,   ao   contrário;   estamos   enraizados  em  nosso  destino  

terrestre,   o   qual   engloba   e   respeita   todas   as   Pátrias.   Podemos   ser   membros   de   várias   Pátrias  

concêntricas.   Sinto-­‐me   profundamente   membro   da   pátria   francesa,   mediterrâneo,   europeu   e  

cidadão   da   Terra.   Podemos   viver   diferentes  Pátrias  de  maneira  concêntrica  em  vez  de  negar  uma,  

privilegiando  outra.  O  pensamento  complexo  conduz-­‐nos  a  lima  série  de  problemas  fundamentais  do  

destino  humano,  que  depende,  sobretudo,  da  nossa  capacidade  de  compreender  os  nossos  problemas  

essenciais,  contextualizando-­‐os,  globalizando-­‐os,  interligando-­‐os:   e  da  nossa  capacidade  de  enfrentar  

a   incerteza   e   de   encontrar   os  meios   que   nos   permitam   navegar   num   futuro   incerto,   erguendo   ao  

alto   a   nossa  coragem  e  a  nossa  esperança.  

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         Vencer   a  especialização  

     Enquanto     a     cultura     geral     comportava     a     possibilidade     de     buscar     a   contextualização   de   toda  

informação   ou   ideia,   a   cultura   científica   e   técnica,   por   causa   de   sua   característica   disciplinar   e  

especializada,   separa   e   compartimenta  os  saberes,  tomando  cada  vez  mais  difícil  a  colocação  destes  

num  contexto  qualquer.   Além   disso,   até   a   metade   do   século   XX,   a   maioria   das   ciências   tinha  por  

método  de  conhecimento  a  redução  (do  conhecimento  de  um  todo  ao  conhecimento  das  partes  que  o  

compõem),   por   conceito   fundamental   o   determinismo,   isto   é,   a   ocultação   do   acaso,   do   novo,   da  

invenção,   e   a   aplicação   da   lógica  mecânica   da  máquina   artificial   aos   problemas   vivos,   humanos   e  

sociais.  A  especialização  abstrai,  extrai  um  objeto  de  seu  contexto  e  de  seu  conjunto,  rejeita  os  laços  e  

a   intercomunicação   do   objeto   com   o   seu   meio,   insere-­‐o   no   compartimento   da   disciplina,   cujas  

fronteiras   quebram   arbitrariamente   a   sistemicidade   (a   relação   de   uma   parte   com   o   todo)   e   a  

multidimensionalidade  dos  fenômenos,  e  conduz  à  abstração  matemática,  a  qual  opera  uma  cisão  com  

o  concreto,  privilegiando  tudo  aquilo  que  é  calculável  e  formalizável.      Assim,   a   economia,   a   ciência   social  matematicamente  mais   avançada,   é   também   a   ciência   social   e  

humanamente  mais   fechada,  pois   se  abstrai  das  condições  sociais,  históricas,  políticas,  psicológicas,  

ecológicas,  etc,  inseparáveis  das  atividades   econômicas.   Por   isso,   os   seus   experts   são   cada   vez  mais  

incapazes  de  prever  e  de  predizer  o  desenvolvimento  econômico,  mesmo  a  curto  prazo.  

O  conhecimento  deve  certamente  utilizar  a  abstração,  mas  procurando  construir-­‐  se  em  referência  a  

um   contexto.   A   compreensão   de   dados   particulares   exige   a   ativação   da   inteligência   geral   e   a  

mobilização   dos   conhecimentos   de   conjunto.   Marcel   Mauss   dizia:   "É   preciso   recompor   o   todo".  

Acrescentemos:   é   preciso   mo-­‐   bilizar   o   todo.   Certo,   é   impossível   conhecer   tudo   do   mundo   ou  

captar   todas   as   suas   multiformes   transformações.   Mas,   por   mais   aleatório   e   difícil   que   seja,   o  

conhecimento   dos   problemas   essenciais   do   mundo   deve   ser   tentado   para   evitar   a   imbecilidade  

cognitiva.  Ainda  mais  que  o  contexto,  hoje,  de  todo  conhecimento  político,    econômico,    antropológico,    

ecológico,    etc,     é    o    próprio    mundo.    Eis    o  problema  universal  para  todo  cidadão:  como  adquirir  a  

possibilidade  de  articular  e  organizar  as  informações  sobre  o  mundo.  Em  verdade,  para  articulá-­‐Ias  e  

organizá-­‐Ias,  necessita-­‐se  de  uma  reforma  de  pensamento.  

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         A  falsa   racionalidade        A  falsa  racionalidade  -­‐  a  racionalização  abstrata  e  unidimensional-­‐       triunfa  atualmente  por  toda  parte.  

As  mais  monumentais   obras-­‐primas   dessa   racionalidade   tecnoburocrática   foram   realizadas   na  URSS,  

onde,  por  exemplo,  desviaram-­‐se  o  curso  dos  rios  para   irrigar  nas  horas  mais  quentes  hectares  sem  

árvores  de  cultivo  de  algodão,  gerando  a  salinização  do  solo,  a  volatilização  das    águas  subterrâneas,  o  esgotamento  do  mar  de  Aral.  Infelizmente  depois  do  desabamento  do  Império,  os  

novos  dirigentes  recorreram  a  experts  liberais  do  Oeste  que,  ignorando  deliberadamente  a  necessidade  

de   instituições,   de   leis   e   de   regras   numa   economia   competitiva   de   mercado,   não   elaboram   a  

indispensável  estratégia  complexa.  Entretanto,  Maurice  Allais  -­‐  economista  liberal  -­‐  havia  indicado  que  

seria  necessário  planificar  a  desplanificação  e  programar  a  desprogramação.  O  resultado  de  tudo   isso  

são  as  catástrofes  humanas,  cujas  vítimas  não  são  contabilizadas  e  não  têm  as  garantias  dos  atingidos  

pelas  catástrofes  naturais.      A   inteligência   parcelar,   compartimentada,   mecânica,   disjuntiva,   reducionista,   quebra   o   complexo   do  

mundo,  produz   fragmentos,   fraciona  os  problemas,   separa  o     que     é     ligado,     uni     dimensionaliza     o    

multidimensional.     Trata-­‐se     de     uma   inteligência     ao    mesmo     tempo    míope,     presbita,     daltônica,    

zarolha.    Elimina    na  casca   todas   as   possibilidades   de   compreensão   e   de   reflexão,   matando   assim  

todas   as   chances   de   julgamento   corretivo   ou   de   visão   a   longo   termo.   Quanto  mais   os   problemas   se  

tomam   multidimensionais,   mais   há   incapacidade   para   pensar   essa  multidimensionalidade;   quanto  

mais   a   crise   avança,  mais   progride   a   incapacidade   de   pensá-­‐Ia;   quanto  mais   os   problemas   se   tomam  

planetários,  mais   se   tornam   impensados.   Incapaz  de  considerar  o  contexto  e  o  complexo  planetário,  a  

inteligência  cega  produz  inconsciência  e  irresponsabilidade.      Compreendemos   então   um   problema   essencial:   complementar   o   pensamento   que   separa   com  

outro   que   une.   Complexus   significa   originariamente   o   que   se  tece   junto.  O  pensamento  complexo,  

portanto,   busca   distinguir   (mas   não   separar)  e   ligar.  Ao  mesmo  tempo,   impõe-­‐se,  como  vimos  acima,  

outro  problema  crucial:  tratar  a  incerteza.  Por  quê?  Porque  por  toda  parte,  nas  ciências,  o  dogma  de  um  

determinismo  universal   desabou,   enquanto   a   lógica,   chave-­‐mestra   da   certeza  do   raciocínio,     revelou    

incertezas     na     indução,     impossibilidades     de     decisão     na  dedução  e  limites  no  princípio  do  terceiro  

incluído.   Assim,   o   objetivo   do   pensamento   complexo   é   ao   mesmo   tempo   unir   (contextualizar   e  

globalizar)  e  aceitar  o  desafio  da  incerteza.  Como?      

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Princípios        Podemos  estabelecer  alguns  princípios,  complementares  e  interdependentes,  como  guias  para  pensar  

a  complexidade.      

1.   Princípio    sistêmico    ou    organizacional:    liga    o    conhecimento  das  partes  ao  

conhecimento  do  todo,  conforme  a  ponte  indicada  por  Pascal  e  mencionada  antes:  

"Tenho  por  impossível  conhecer  o  todo  sem  conhecer  as  partes,  e  conhecer  as  partes  

sem  conhecer  o  todo".  A  ideia  sistêmica,  oposta  à  reducionista,  entende  que  "o  todo  é  

mais  do   que   a   soma   das   partes".   Do   átomo   à   estrela,   da   bactéria   ao  homem  e  à  

sociedade,  a  organização  do  todo  produz  qualidades  ou  propriedades   novas   em

  relação   às   partes   consideradas  isoladamente:     as     emergências.    A    

organização    do     ser    vivo    gera  qualidades    desconhecidas    de    seus    componentes    

físico-­‐químicos.  Acrescentemos  que  o  todo  é  menos  do  que  a  soma  das  partes,  cujas  

qualidades  são  inibidas  pela  organização  de  conjunto.      

2.             Princípio     "hologramático"     (inspirado    no    holograma,    no  holograma,  no  qual  

cada  ponto  contém  a  quase   totalidade  da   informação  do  objeto   representado):   coloca  

em  evidência  o  aparente  paradoxo  dos  Sistemas  complexos,  onde  não  somente  a  parte  

está   no   todo,   mas   o   todo   se   inscreve   na   parte.   Cada   célula   é   parte   do   todo     -­‐

organismo     global-­‐     mas     o     próprio     todo     está     na     parte:     a   totalidade     do    

patrimônio    genético    está    presente    em    cada    célula  

individual;  a  sociedade  como  todo,  aparece  em  cada  indivíduo,  através  da  linguagem,  da  

cultura,  das  normas.      

3.               Princípio   do   anel   retroativo:   introduzido   por   Norbert   Wiener,   permite   o  

conhecimento  dos  processos  de  auto-­‐regulação.  Rompe  com  o  princípio  de  causalidade  

linear:  a  causa  age  sobre  o  efeito,  e  este  sobre  a  causa,  como  no  sistema  de  aquecimento  

no  qual  o  termostato  regula  a  situação  da  caldeira.  Esse  mecanismo  de  regulação  permite  

a  autonomia  do  sistema,  neste  cnso,  a  autonomia  térmica  de  um  apartamento  em  relação  

ao  frio  exterior.  De  maneira  mais     complexa,     a     "homeostase"     de     um     organismo     vivo    

é     um  conjunto  de  processos  reguladores  fundados  sobre  múltiplas  retroações.  O  anel  de  

retroação   (ou   feedback)   possibilita,   na   sua   forma   negativa,   reduzir   o   desvio   e,   assim,  

estabilizar   um   sistema.   Na   sua   forma   mais   positiva,   o   feedback   é   um   mecanismo  

amplificador;  por   exemplo,   na   situação   de   apogeu   de   um   conflito:   a   violência   de  um  

protagonista  desencadeia  uma  reação  violenta  que,  por  sua  vez,  determina  outra  reação  

ainda  mais   violenta.   Inflacionistas   ou  estabilizadoras,   as   retroações   são  numerosas  nos  

fenômenos  econômicos,  sociais,  políticos  ou  psicológicos.    

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 4.               Princípio  do  anel  recursivo:  supera  a  noção  de  regulação  com  a   de   autoprodução  

e   auto-­‐organização.   É   um   anel   gerador,   no   qual  os  produtos  e  os  efeitos  são  produtores  

e   causadores   do   que   os   produz.  Nós,   indivíduos,   somos   os   produtos   de   um   sistema  de  

reprodução  oriundo  do  fundo  dos  tempos.  mas  esse  sistema  só  pode  reproduzir-­‐se  se  nós  

mesmos  nos  tomamos  produtores  pelo  acasalamento.  Os   indivíduos  humanos  produzem  

a   sociedade   nas   -­‐   e   através   de   -­‐   suas   interações,   mas   a   sociedade,   enquanto   todo  

emergente,   produz   a   humanidade   desses   indivíduos   aportando-­‐lhes   a   linguagem   e   a  

cultura.      

5.               Princípio   de   auto-­‐eco-­‐organização   (autonomia/dependência):  os     seres     vivos    

são     auto-­‐organizadores     que     se     autoproduzem   incessantemente,   e   através   disso  

despendem   energia   para   salva-­‐  guardar  a  própria  autonomia.  Como  têm  necessidade  

de   extrair   energia,     informação     e     organização     no     próprio     meio     ambiente,     a  

autonomia   deles   é   inseparável   dessa   dependência,   e   torna-­‐se   im-­‐  perativo   concebê-­‐

Ios   como   auto-­‐eco-­‐organizadores.   O   princípio   de   auto-­‐eco-­‐organização     vale    

evidentemente     de     maneira     específica  para   os   humanos,   que   desenvolvem   a   sua  

autonomia   na   depen-­‐  dência  da  cultura,  e  para  as   sociedades  que  dependem  do  meio  

geo-­‐  ecológico.  

Um   aspecto   determinante   da   auto-­‐eco-­‐organização   é   que   esta   se   regenera   em    

permanência    a    partir    da    morte    de    suas  células,conforme  a  fórmula  de  Heráclito,  "viver  

de  morte,  morrer  de   vida",   e   que   as  duas   ideias   antagônicas   de  morte   e   de   vida   são   aí  

complementares,  mesmo  permanecendo  antagônicas.      

6.   Princípio     dialógico:     vem     justamente     de     ser     ilustrado    pela  fórmula  

heraclitiana.  Une  dois   princípios   ou  noções   devendo   excluir  um  ao  outro,  mas  que  são  

indissociáveis  numa  mesma  realidade.  Deve-­‐se   conceber  uma   dialógica

  ordem/desordem/organização  desde  o  nascimento  do  universo:  a  partir  de  

uma  agitação  calorífica  (desordem)     onde,     em     certas     condições     (encontros     ao    

acaso),  princípios   de   ordem   permitirão   a   constituição   de   núcleos,   átomos,  galáxias    

e     estrelas.     Tem-­‐se     ainda     essa     dialógica     quando     da  emergência  da  vida  através  

dos  encontros  entre  macromolécuIas  no  interior   de   uma   espécie   de   anel   autoprodutor,  

que   terminará   por   se  tornar     auto-­‐organização     viva.     Sob     as     formas     mais     diversas,    

a  dialógica   entre   a   ordem,   a   desordem   e   a   organização,   através   de  inumeráveis    

inter-­‐retroações,     está     constantemente     em     ação     nos  mundos  físico,  biológico  e  

humano.  

A  dialógica  permite   assumir   racionalmente   a   associação  de  noções   contraditórias  para  

conceber   um   mesmo   fenômeno   complexo.   Niels   Bohr   reconheceu,   por   exemplo,   a  

necessidade   de   ver   as   partículas   físicas   ao   mesmo   tempo   como   corpúsculos   e   como  

ondas.   Nós  mesmos   somos   seres   separados   e   autônomos,   fazendo   parte   de   duas  

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continuidades  inseparáveis,  a  espécie  e  a  sociedade.  Quando  se  considera  a  espécie  ou  a  

sociedade,   o   indivíduo   desaparece;   quando   se   considera   o   indivíduo,   a   espécie   e   a  

sociedade  desaparecem.  O  pensamento  complexo  assume  dialogicamente  os  dois  termos  

que  tendem  a  se  excluir.      

7.             Princípio   da   reintrodução   daquele   que   conhece   em   todo   conhecimento:   esse  

princípio  opera  a  restauração  do  sujeito  e  ilu-­‐  mina  a  problemática  cognitiva  central:  da  

percepção  à  teoria  ci-­‐  entífica,  todo  conhecimento  é  uma  reconstrução/tradução  por  um  

espírito/cérebro  numa  certa  cultura  e  num  determinado  tempo.          Eis   alguns   dos   princípios   que   guiam   os   procedimentos   cognitivos   do   pensamento   complexo.   Não   se  

trata,  de   forma  alguma,  de  um  pensamento  que  expulsa  a   certeza  com  a   incerteza,  a   separação  com  a  

inseparabilidade,  a   lógica  para  autorizar-­‐se   todas  as   transgressões.  A  démarche  consiste,  ao  contrário,  

num  ir  e  vir  constantes  entre  certezas  e   incertezas,  entre  o  elementar  e  o  global,  entre  o  separável  e  o  

inseparável.  Ela  utiliza  a  lógica  clássica  e  os  princípios  de  identidade,  de  não-­‐contradição,  de  dedução,  de  

indução,  mas  conhece-­‐Ihes  os   limites  e  sabe  que,  em  certos  casos,  deve-­‐se  transgredi-­‐Ios.  Não  se  trata  

portanto  de  abandonar  os  princípios  de  ordem,  de  separabilidade  e  de  lógica  -­‐  mas  de  integrá-­‐Ios   numa  

concepção   mais   rica.   Não   se   trata   de   opor   um   holismo   global   vazio   ao   reducionismo   mutilante.  

Trata-­‐se   de   repor   as   partes   na   totalidade,   de   articular   os   princípios   de   ordem   e   de   desordem,   de  

separação  e  de  união,  de  autonomia  e  de  dependência,  em  dialógica   (complementares,   concorrentes  e  

antagônicos)  no  universo.      Em      suma,      o      pensamento      complexo      não      é      o      contrário      do      pensamento  simplificador,  mas  

integra  este;  como  diria  Hegel,  ele  opera  a  união  da  simplicidade     e     da     complexidade     e,    mesmo     no    

metassistema    constituído,    faz  aparecer  a  sua  própria  simplicidade.  O  paradigma  da  complexidade  pode  

ser   enunciado  não  menos   simplesmente  que  o  da   simplificação:   este   impõe   separar   e   reduzir;   aquele  

une  enquanto  distingue.  

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O  pano   de  fundo   filosófico        Encontram-­‐se,   na   história   da   filosofia   ocidental   e   oriental,   numerosos   elementos   e   premissas   de   um  

pensamento   da   complexidade.   Desde   a   Antiguidade,   o   pensamento   chinês   funda-­‐se   sobre   a   relação  

dialógica  (complementar  e  antagônica)  entre  o  yin  e  o  yang  e,  segundo  Lao  Tsé,  a  união  dos  contrários  

caracteriza     a     realidade.     No     século     XVII,     Fang     Yizhi     formula     um     verdadeiro   princípio   de  

complexidade.  No  Ocidente,  Heráclito  estabeleceu  a  necessidade  de  associar  termos  contraditórios.  Na  

idade  clássica,  Pascal  é  o  pensador  chave  da  complexidade.  Mais  tarde.  Kant  pôs  em  evidência  os  limites  

e   as   "aporias"   da   razão.   Leibniz   formula   o   princípio   da   unidade   complexa   da   unidade   do   múltiplo.  

Spinoza   aporta   a   ideia   de   autoprodução   do   mundo.   Em   Hegel,   essa   au-­‐   toconstituição   torna-­‐se   o  

romance   épico   no   qual   o   espírito   emerge   da   natureza   para   atingir   a   sua   realização,   e   sua   dialética,  

prolongada  pela  de  Marx,  anuncia  a  dialógica.  Nietzsche  anunciou  a  crise  dos   fundamentos  da  certeza.  

No   metamarxismo,   tem-­‐se,   com   Adorno,   Horkheimer   e   o   Lukács   tardio,   não   somente   numerosos  

elementos   de   uma   crítica   da   razão   clássica,   mas   muitos   alimentos   para   uma   concepção   da  

complexidade.      No   século   XIX,   enquanto   a   ciência   ignorava   o   individual,   o   singular,   o   concreto   e   o   histórico,   a  

literatura   e   singularmente   o   romance   revelaram   a   complexidade   humana,   de   Balzac   a   Dostoievski   e  

Proust.      Na   época   contemporânea,   o   pensamento   complexo   elabora-­‐se   nos   interstícios   das   disciplinas,   a  

partir   de   pensadores   matemáticos   (Wiener,   von   Neumann,   von   Foerster),   especialistas   em  

termodinâmica  (Prigogine),  biofísicos  (Atlan),   filósofos  (Castoriadis).  As  duas  revoluções  científicas  do  

século  só  podiam  estimulá-­‐lo.  A  primeira  revolução   introduz  a   incerteza  com  a   termodinâmica,  a   física  

quântica  e  a  cosmofísica,  desencadeando  as  reflexões  epistemológicas  de  Popper,  Kuhn,  Holton,  Lakatos.  

Feyerabend;  estes  mostraram  que  a  ciência  não  era  a  certeza,  mas  a  hipótese;  que  uma  teoria  provada  

não   o   era   definitivamente,   e   permanecia   "falseável",     que   havia   do     não-­‐científico     (postulados,    

paradigmas,    themata)    no  coração  da  própria  cientificidade.      A   segunda   revolução   científica   -­‐   mais   recente,   ainda   inacabada   -­‐,   a   revolução   sistêmica,   introduz   a  

organização  nas  ciências  da  terra  e  a  ciência  ecológica;  ela  se  prolongará,  sem  dúvida,  em  revolução  d.:  

auto-­‐eco-­‐organização  na  biologia  e  na  sociologia.      O   pensamento   complexo   é,   portanto,   essencialmente   aquele   que   trata   com   a   incerteza   e   consegue  

conceber   a   organização.   Apto   a   unir,   contratualizar,   globalizar,  mas   ao  mesmo   tempo   a   reconhecer   o  

singular,  o  individual  e  o  concreto.      O    pensamento   complexo    não    se    reduz    nem   à    ciência,    nem    à    filosofia,    mas  permite  a  comunicação  

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entre   elas,   servindo-­‐Ihes   de   ponte.   O   modo   complexo   de   pensar   não   tem   utilidade   somente   nos  

problemas   organizacionais,   sociais   e   políticos,   pois   um   pensamento   que   enfrenta   a   incerteza   pode  

esclarecer  as  estratégias   no   nosso  mundo   incerto;   o   pensamento   que   une   pode   iluminar   uma  

ética   da   religação   ou   da   solidariedade.   O   pensamento   da   complexidade   tem   igualmente   seus  

prolongamentos  existenciais  ao  postular  a  compreensão  entre  os  homens.  

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         Por   uma   reforma   da  universidade  do   pensamento  

         A   complexidade   exige   uma   reforma   de   pensamento,   o   que   pressupõe  mudar   a  universidade.    

Como    fazê-­‐Ia?    Há    uma    dupla    missão:    a    universidade    deve    se  adaptar   à   sociedade   ou   a  

sociedade   deve   se   adaptar   à   universidade?   Todos  adivinharão  que  recusarei  a  escolha  e  tentarei  

ultrapassá-­‐Ia  de  forma  complexa.  Ainda   que   tenha   antecedentes   em   Bagdá   e   em   Fez,   a  

universidade,   como   se  disse     com     frequência,     é    o     grande    presente    da    Europa    medieval     à    

Europa  moderna.   Em  menos   de   dois   séculos,   uma   constelação   de   universidades   jorrou  de    Bolonha    

a    Upsala,    de    Coimbra    a    Praga.    A    universidade    é    conservadora,  regeneradora,   geradora.    

Conserva,    memoriza,    integra,    ritualiza    um    patrimônio  cognitivo;   regenera-­‐o   pelo   reexame,  

atualizando-­‐o,   transmitindo-­‐o;   gera   saber   e  cultura  que  entram  nessa  herança.      A   esse   título,   a   universidade   tem   uma   missão   e   uma   função   transecular   que,   via   presente,   vai   do  

passado  para  o   futuro;  missão  transnacional  que  guardou  a  despeito    da     tendência    ao     fechamento    

nacionalista    das    nações    modernas.    E  dispõe  de  uma  autonomia  que  lhe  permite  realizar  essa  missão.  

.      Segundo  os  dois  sentidos  do  termo  conservação,  o  caráter  conservador  da  universidade  pode  ser  vital  

ou  estéril.  A  conservação  é  vital  se  ela  significa  salvaguarda  e  preservação,  pois  só  se  pode  preparar  

um   futuro   salvando   um   passado,   e   estamos   num   século   em   que   múltiplas   e   potentes   forças   de  

desintegração  cultural  atuam.  Mas  a  conservação  é  estéril  se  dogmática,  congelada,   rígida.   Assim,   a  

Sorbonne   condenou   todos   os   progressos   científicos  do  século  XVII,  e  a  ciência  moderna  formou-­‐se  

em  grande  parte  fora  das  universidades  ao  longo  desse  século.      Mas   a   universidade   soube   responder   ao   desafio   do   desenvolvimento   das   ciências   operando   sua  

grande  mutação  no  século  XIX.  Ela  se  laicizou,  isto  é,  abriu-­‐se  à  grande   problematização   generalizada  

e   fundamental   oriunda   do   Renascimento,  que  diz  respeito  ao  mundo,  à  natureza,  à  vida,  ao  homem,  

a   Deus.   A   universidade   tomou-­‐se   o   lugar   por   excelência   da   problematização,   recolhendo   nela   a  

essência  da   cultura   européia   moderna,   e   através   disso   se   inscreveu   mais   profundamente  na   sua  

missão   transecular,   reatando   com   a   antiguidade   grega   e   romana,   e   inclinando-­‐se   para   um   futuro  

cognitivo  a  descobrir  ou  conquistar.      A  primeira  mutação  institucional  se  opera  em  Berlim,  em  1809,  quando  Humboldt  conta  com  o  apoio  

de   um   "déspota   esclarecido".   A   laicização   é   a   base   da   reforma;   ela   estabelece   a   autonomia   da  

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universidade   em   relação   à   religião   e   ao   poder;   instaura   a   liberdade   interior   (o   princípio   da   livre  

consciência);  instala  de  maneira  geral  a  problematização.    

A   reforma   introduz   as   ciências  modernas,   com  a   criação  de  departamentos   que   vão   se  multiplicar  

com   as   novas   ciências.   A   universidade   vai   desde   então   fazer   coexistir     -­‐     infelizmente     apenas    

coexistir,    e    não    comunicar    -­‐    duas    culturas,    a  cultura  das  humanidades  c  a  cultura  da  cientificidade.      Ao  criar  os  departamentos,  Humboldt  tinha  muito  bem  visto  o  caráter  transecular  da   integração  

das   ciências   na   universidade.   Para   ele,   a   universidade   não   podia  ter   por   vocação   direta   uma  

formação   profissional   (conveniente   para   as   escolas  técnicas),  mas  uma  vocação  indireta  pela  

formação  de  uma  atitude  de  pesquisa.  De   onde   a   dupla   função   paradoxal   da   universidade:  

adaptar-­‐se   à   modernidade  científica   e   integrá-­‐Ia,   responder   às   necessidades   fundamentais   de  

formação,  fornecer    professores    às    novas    profissões    técnicas    e    outras...    mas    também  fornecer  

um  ensino  metaprofissional,  metatécnico.      Aqui,   reencontramos  a  missão   transecular  pela  qual  a  universidade  conclama  a  sociedade  a  adotar  

sua  mensagem  e  suas  normas:  

1.   Inocular  na  sociedade  uma  cultura  que  não  é  feita  para    as  formas  provisórias  ou  efêmeras  do  hic  et  nunc,  mas  que  é,  contudo,  feita  para  ajudar  os  cidadãos  a  

viver  o  destino  hic  et  nunc.      

2.     Defender,     ilustrar     e     promover     no     mundo     social     e     político     os     valores  intrínsecos   à   cultura   universitária:   autonomia   da   consciência,   problematização   (com   sua  

consequência,  que  é  a  manutenção  da  pesquisa  aberta  e  plural),  primado  da  verdade  sobre  a  

utilidade,  a  ética  do  conhecimento.  

3.                De     onde     a     vocação     expressa     na     dedicatória     do     frontão     da    

Universidade  de  Heidelberg:  "Ao  espírito  vivo".            Há  complementaridade  e  antagonismo  entre  as  duas  missões:  adaptar-­‐se  à  sociedade  e  adaptar  a  si  a  

sociedade   -­‐   uma   remete   a   outra,   num   círculo   que   deveria   ser   produtivo.   Não   se   trata   somente   de  

modernizar  a  cultura,  trata-­‐se  de  culturalizar  a  modernidade.  

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Os  desafios  do   século   XX        

O   século  XX   impôs  vários  desafios  à  dupla  missão.  

 Há  antes  de  tudo  a  pressão  superadaptativa  que  força  a  conformar  o  ensino  e  

a  pesquisa  às  demandas  econômicas,  técnicas,  administrativas  do  momento,  a  

se  conformar  aos  últimos  métodos,  às  últimas  receitas  no  mercado,  a  reduzir  o  

ensino   geral,   a   marginalizar   a   cultura   humanista.   Ora,   sempre   na   vida   e   na  

história,  a  superadaptação  a  condições  dadas  foi  não  signo  de  vitalidade,  mas  

anúncio    de    senilidade    e    de    morte,    pela    perda    da    substância    inventiva    e  

criadora.      

Existe,  além  disso,  a  compartimentação  e  a  disjunção  entre  cultura  humanista  

e  cultura  científica,  acompanhadas  pela  compartimentação  entre  as  diferentes  

ciências   e   disciplinas.   A   não   comunicação   entre   as   duas   culturas   determina  

graves   para   ambas.   A   cultura   humanista   revitaliza   as   obras   do   passado;   a  

cultura  científica  só  valoriza  as  aquisições  do  presente.  A  cultura  humanista  é  

uma   cultura   geral   que,   via   filosofia,   ensaio,   romance,   expõe   os   problemas  

humanos   fundamentais   e   reclama   a   reflexão.   A   cultura   científica   suscita   um  

pensamento  fadado  à  teoria,  mas  não  uma  reflexão  sobre  o  destino  humano  e  

sobre  o  futuro  da  própria  ciência.  A  fronteira  entre  as  duas  culturas  atravessa,  

de  um  extremo  a  outro,  a  sociologia,  mas  esta  se  deixa  esquartejar  em  vez  de  

tentar  uma  ponte  de  ligação.      

Tudo     isso     exige     uma     reforma     do     pensamento.     O     saber     medieval     era  

demasiado  bem  organizado  e  podia  tomar  a  forma  de  uma  "suma"  coerente.  O  

saber   contemporâneo   é   disperso,   separado,fechado.   Já   há   uma   reorganização  

do  saber  em  curso.  A  ecologia  científica,  as  ciências  da  terra,  a  cosmologia,  etc,  

são   ciências   pluridisciplinares   que   têm   por   objeto   não   um   território   ou   um  

setor,  mas  um  sistema  complexo:  o  ecossistema  e,  mais  amplamente,  a  biosfera  

para  a  ecologia,  o  sistema  terra  para  as  ciências  da  terra  e,  para  a  cosmologia,  a  

estranha  propensão  do  universo   a   formar   e   arruinar  os   sistemas  galácticos   e  

solares.  

 

Por   toda   parte,   se   reconhece   a   necessidade   de  

interdisciplinaridade,esperando   o   reconhecimento   da   relevância   da  

transdisciplinaridade,   seja   para   o   estudo   da   saúde,   da   velhice,   da   juventude,  

das   cidades...   mas   a   transdisciplinaridade   só   é   uma   solução   no   caso   de   uma  

reforma  do  pensamento.  É  preciso   substituir  um  pensamento  que  separa  por  

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um  pensamento  que  une,  e  essa  ligação  exige  a  substituição  da  causalidade  uni  

linear   e   unidimensional   por   uma   causalidade   em   círculo   e   multirreferencial,  

assim   como   a   troca   da   rigidez   da   lógica   clássica   por   uma   dialógica   capaz   de  

conceber   noções   ao   mesmo   tempo   complementares   e   antagônicas;   que   o  

conhecimento   da   integração   das   partes   num   todo   seja   completada   pelo  

reconhecimento  da  integração  do  todo  no  interior  das  partes.  

A  reforma  do  pensamento  permitirá  frear  a  regressão  democrática  que  suscita,  

em   todos   os   campos   da   política,   a   expansão   da   autoridade   dos   experts,  

especialistas   de   todos   os   tipos,   estreitando   progressivamente   a   competência  

dos   cidadãos,   condenados   à   aceitação   ignorante   das   decisões   dos   pretensos  

conhecedores,  mas  de  fato  praticantes  de  uma  inteligência  cega,  posto  que  par-­‐  

celar  e  abstrata,  evitando  a  global  idade  e  a  contextualização  dos  problemas.  O  

desenvolvimento     de     uma     democracia     cognitiva     só     é     possível     numa  

reorganização  do  saber,  a  qual  reclama  uma  reforma  do  pensamento  capaz  de  

permitir   não   somente   a   separação   para   conhecer,mas   a   ligação   do   que   está  

separado.      

Trata-­‐se   de   uma   reforma   muito   mais   profunda   e   ampla   do   que   a   de   uma  

democratização   do   ensino   universitário   e   da   generalização   da   condição   de  

estudante.  Trata-­‐se  de  uma  reforma  não  programática,  mas  paradigmática,  que  

diz  respeito  à  nossa  atitude  em  relação  à  organização  do  conhecimento.      

Toda  reforma     desse     tipo     suscita     um     paradoxo:     não     se     pode     reformar     a  

instituição   (as   estruturas   universitárias)   sem  a   reforma   anterior   das  mentes;  

mas  não  é  possível  reformar  as  mentes  sem  antes  reformar  a  instituição.  .      

Eis   uma   impossibilidade   lógica,   mas   é   justamente   desse   tipo   de  

impossibilidade   lógica   que   a   vida   zomba.   Quem   educará   os   educadores?   É  

necessário   que   eles   se   autoeduquem,   e   se   eduquem   prestando   atenção   às  

gritantes   necessidades   do   século,   as   quais   são   encarnadas   também   pelos  

estudantes.      

Certo,  a  reforma  se  anunciará  a  partir  de  iniciativas  marginais,  frequentemente  

aberrantes;    mas    caberá    à    própria    universidade    realizar    a    reforma.    No    seu  

relatório   anual   de   1986,   o   reitor   de   Harvard   declarou:   "Nem   o   jogo   da  

concorrência,   nem   os   esforços   deliberados   dos   reformadores   externos   foram  

capazes  de  garantir  um  constante  nível  elevado  de  atividades.  É  a  Universidade  

que  deve  encarregar-­‐se  dessa  tarefa  vital".  

 

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Sim,   precisa-­‐se   de   ideias   externas,   críticas   e   contestações   de   fora,   mas   é  

fundamental,  sobretudo,  a  reflexão  interna.  A  reforma  virá  do  interior,  através  

do  retomo   às   fontes   do   pensamento   europeu   moderno:   a   problematização.  

Hoje,   não   basta   problematizar   o   homem,   deve-­‐se   problematizar   a   ciência,   a  

técnica  -­‐  o  que  acreditávamos  ser  a  razão  e  era,  com  frequência.  uma  abstrata  

racionalização.      Uma  psicologia  cognitiva  elementar  nos   lembra  algumas  evidências  que  não  

deveríamos  nunca  esquecer:  

1.                     O    cérebro    humano    é,    como    o    dizia    H.    Simon,    um    

a.s.p.,   General   Setting   Problems   e   também   General   Solving  

Problems.  Mais  potente  é  a  sua  atitude  geral,  e  maior  será  a  sua  

atitude  para  tratar  de  problemas  particulares.      

2.                    O      conhecimento      progride,      principalmente,      não      por      

sofisticação   na   formalização   e   na   abstração,   mas   através   da  

capacidade   em   contexlualizar   e   em   globalizar.   Essa   capacidade  

necessita  de  uma  cultura  geral  e  diversificada,  e,  estimulada  essa  

cultura,  o  pleno  emprego  da   inteligência  geral,   isto  é,  o  espírito  

vivo.      

Eis   a   perspectiva  para  o   novo  milênio.   A   universidade  deve  

ultrapassar-­‐  se  para  se  reencontrar.  

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Edgar  Morin    

   

                     

Introdução   ao  pensamento   complexo                

Tradução  de  Eliane  Lisboa                                                

         

 

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Prefácio            

Pedimos   legitimamente   ao   pensamento   que   dissipe   as   brumas   e   as   trevas,   que  

ponha   ordem   e   clareza   no   real,   que   revele   as   leis   que   o   governam.   A   palavra  

complexidade   só   pode   exprimir   nosso   incômodo,   nossa   confusão,   nossa  

incapacidade   para   definir   de   modo   simples,   para   nomear   de   modo   claro,   para  

ordenar  nossas   ideias.  

O   conhecimento   científico   também   foi   durante  muito   tempo   e   com   frequência   ainda  

continua   sendo   concebido   como   tendo   por  missão   dissipar   a   aparente   complexidade  

dos  fenômenos  a  fim  de  revelar  a  ordem  simples  a  que  eles  obedecem.  

Mas  se  resulta  que  os  modos  simplificadores  de  conhecimento  mutilam  mais  do  que  

exprimem  as  realidades  ou  os   fenômenos  de  que   tratam,   torna-­‐se   evidente  que  eles  

produzem  mais  cegueira  do  que  elucidação,  então  surge  o  problema:  como  considerar  

a  complexidade  de  modo  não  simplificador?  Este  problema,  entretanto,  não  pode  se  

impor  de  imediato.  Ele  deve  provar  sua  legitimidade,  porque  a  palavra  complexidade  

não  tem  por  trás  de  si  uma  nobre  herança  filosófica,  científica  ou  epistemológica.  

Ela  suporta,  ao  contrário,  uma  pesada  carga  semântica,  pois  

que  traz  em  seu  seio  confusão,  incerteza,  desordem.  Sua  primeira  definição  não  pode  

fornecer  nenhuma  elucidação:  é  complexo  o  que  não  pode  se  resumir  numa  palavra-­‐

chave,   o   que  não  pode   ser   reduzido   a  uma   lei   nem  a  uma   ideia   simples.   Em  outros  

termos,  o  complexo  não  pode  se  resumir  à  palavra  complexidade,  referir-­‐se  a  uma  lei  

da   complexidade,   reduzir-­‐se   à   ideia   de   complexidade.   Não   se   poderia   fazer   da  

complexidade   algo   que   se   definisse   de   modo   simples   e   ocupasse   o   lugar   da  

simplicidade.  A  complexidade  é  uma  palavra-­‐problema  e  não  uma  palavra-­‐solução.  

Não   seria   possível   justificar   num   prefácio   a   necessidade   do   pensamento   complexo.  

Uma  tal  necessidade  só  pode  se  impor  progressivamente  ao  longo  de  um  percurso  onde  

surgiriam   primeiro   os   limites,   as   insuficiências   e   as   carências   do   pensamento  

simplificador,   depois   as   condições   nas   quais   não   se   pode   escamotear   o   desafio   do  

complexo.  Em  seguida  será  preciso  perguntar-­‐se  se  há  complexidades  diferentes  umas  

das  outras  e  se  elas  podem  ser  unificadas  num  complexo  dos  complexos.  Será  preciso,  

enfim,  ver  se  há  um  modo  de  pensar,  ou  um  método  capaz  de  responder  ao  desafio  da  

complexidade.  Não  se   trata  de  retomar  a  ambição  do  pensamento  simples  que  é  a  de  

controlar  e  dominar  o  real.  Trata-­‐se  de  exercer  um  pensamento  capaz  de   lidar  com  o  

real,  de  com  ele  dialogar  e  negociar.  

Vai  ser  necessário  desfazer  duas  ilusões  que  desviam  as  mentes  do  problema  

do  pensamento  complexo.  

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A   primeira   é   acreditar   que   a   complexidade   conduz   à   eliminação   da  

simplicidade.  A  complexidade   surge,   é   verdade,   lá   onde   o   pensamento   simplificador  

falha,   mas   ela   integra   em   si   tudo   o   que   põe   ordem,   clareza,   distinção,   precisão   no  

conhecimento.   Enquanto   o   pensamento   simplificador   desintegra   a   complexidade   do  

real,   o   pensamento   complexo   integra   o   mais   possível   os   modos   simplificadores   de  

pensar,   mas   recusa   as   consequências   mutiladoras,   redutoras,   unidimensionais   e  

finalmente   ofuscantes   de   uma   simplificação   que   se   considera   reflexo   do   que   há   de  

real  na  realidade.  

A  segunda  ilusão  é  confundir  complexidade  e  completude.  

É  verdade,  a  ambição  do  pensamento  complexo  é  dar  conta  das  articulações  entre  os  

campos   disciplinares   que   são   desmembrados   pelo   pensamento   disjuntivo   (um   dos  

principais  aspectos  do  pensa-­‐  mento  simplificador);  este   isola  o  que  separa,  e  oculta  

tudo  o  que  religa,  interage,  interfere.  Neste  sentido  o  pensamento  complexo  aspira   ao  

conhecimento   multidimensional.   Mas   ele   sabe   desde   o  começo  que  o  conhecimento  

completo  é  impossível:  um  dos  axiomas  da  complexidade  é  a  impossibilidade,  mesmo  

em  teoria,  de  uma  onisciência.  Ele  faz  suas  as  palavras  de  Adorno:  “A  totalidade  

é  a  não-­‐verdade”.  Ele  implica  o  reconhecimento  de  um  princípio  de  incompletude  e  de  

incerteza.  Mas   traz   também   em   seu   princípio   o   reconhecimento   dos   laços   entre   as  

entidades   que   nosso   pensa-­‐  mento   deve   necessariamente   distinguir,  mas   não   isolar  

umas  das  outras.  Pascal  tinha  colocado,  com  razão,  que  todas  as  coisas  são  “causadas  

e  causantes,  ajudadas  e  ajudantes,  mediatas  e   imediatas,  e  que  todas  (se   interligam)  

por  um   laço  natural   e   insensível   que   liga   as  mais   afastadas   e   as  mais  diferentes”.  O  

pensamento   com-­‐   plexo   também   é   animado   por   uma   tensão   permanente   entre   a  

aspiração   a   um   saber   não   fragmentado,   não   compartimentado,   não   redutor,   e   o  

reconhecimento  do  inacabado  e  da  incompletude  de  qual-­‐  quer  conhecimento.  

Esta  tensão  animou  toda  a  minha  vida.  

Em  toda  a  minha  vida,  jamais  pude  me  resignar  ao  saber  fragmentado,  pude  isolar  

um  objeto  de  estudo  de  seu  contexto,  de  seus  antecedentes,  de  seu  devenir.   Sempre  

aspirei   a   um   pensamento   multidimensional.   Jamais   pude   eliminar   a   contradição  

interna.  Sem-­‐  pre  senti  que  verdades  profundas,  antagônicas  umas  às  outras,  eram  para  

mim  complementares,  sem  deixarem  de  ser  antagônicas.  Jamais  quis  reduzir  à  força  a  

incerteza  e  a  ambiguidade.  

Desde   meus   primeiros   livros   confrontei-­‐me   com   a   complexidade,   que   se   tornou   o  

denominador  comum  de  tantos  trabalhos  diversos  que  a  muitos  pareceram  dispersos.  

Mas   a   palavra   complexidade   mesmo   não   me   vinha   à   mente,   foi   preciso   que   ela  

chegasse  a  mim,  no  final  dos  anos  60,  através  da  teoria  da  informação,  da  cibernética,  

da   teoria   dos   sistemas,   do   conceito   de   auto-­‐organização,   para   que   emergisse   sob  

minha   pena,   ou,   melhor,   sobre   meu   teclado.   Ela   então   se   desvinculou   do   sentido  

comum   (complicação,   confusão)   para   trazer   em   si   a   ordem,   a   desordem   e   a  

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organização,   e   no   seio   da   organização   o   uno   e   os   múltiplos;   estas   noções  

influenciaram  umas  às  outras,  de  modo  ao  mesmo  tempo  complementar  e  antagônico;  

colocaram-­‐se  em  interação  e  em  constelação.  O  conceito  de  complexidade  formou-­‐se,  

cresceu,  estendeu  suas  ramificações,  passou  da  periferia  ao  centro  de  meu  discurso,  

tornou-­‐se  macroconceito,  lugar  crucial  de  interrogações,  ligando  desde  então  a  si  o  nó  

górdio  do  problema  das  relações  entre  o  empírico,  o  lógico  e  o  racional.  Este  processo  

coincide  com  a  gestação  de  O  Método,  que  se  inicia  em  1970;  a  organização  complexa,  

e   mesmo   hipercomplexa,   está   visivelmente   no   centro   direcionador   de  meu   livro  O  

paradigma   perdido   (1973).   O   problema   lógico   da   complexidade   foi   objeto   de   um  

artigo  publicado  em  1974  (Para  além  da  complicação,  a  complexidade,  retomado  na  

primeira  edição  de  Ciência  com  consciência).  O  Método  é  e  será  de  fato  o  método  da  

complexidade.  

Este   livro,   constituído  de  um  reagrupamento  de   textos  diversos,   é  uma   introdução  à  

problemática   da   complexidade.   Se   a   complexidade   não   é   a   chave   do  mundo,  mas   o  

desafio  a  enfrentar,  por  sua  vez  o  pensamento  complexo  não  é  o  que  evita  ou  suprime  o  

desafio,  mas  o  que  ajuda  a  revelá-­‐lo,  e  às  vezes  mesmo  a  superá-­‐lo.  

 

Edgar  Morin  

 

 

 

 

 

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1.  A  inteligência  cega*  

 

 

 

 

 

 

 

 

 

A  tomada  de  consciência  

 

Adquirimos   conhecimentos   inauditos   sobre   o   mundo   físico,   biológico,   psicológico,  

sociológico.  Na  ciência  há  um  predomínio  cada   vez   maior   dos   métodos   de   verificação  

empírica   e   lógica.   As   luzes   da   Razão   parecem   fazer   refluir   os   mitos   e   trevas   para   as  

profundezas  da  mente.  E,  no  entanto,  por  todo  lado,  erro,  ignorância  e  cegueira  progridem  

ao  mesmo  tempo  que  os  nossos  conhecimentos.  

Necessitamos  de  uma  tomada  de  consciência  radical:  

1.  A  causa  profunda  do  erro  não  está  no  erro  de  fato  (falsa  percepção)  ou  no  erro  lógico  

(incoerência),  mas  no  modo  de  organização  de  nosso  saber  num  sistema  de  ideias  (teorias,  

ideologias);  

2.  Há  uma  nova  ignorância  ligada  ao  desenvolvimento  da  própria  ciência;  

3.  Há  uma  nova  cegueira  ligada  ao  uso  degradado  da  razão;  

 4.  As  ameaças  mais  graves  em  que  incorre  a  humanidade  estão  ligadas  ao  progresso  

cego  e  incontrolado  do  conhecimento  (armas  termonucleares,  manipulações  de  

todo  tipo,  desregramento  ecológico,  etc.).  

Gostaria  de  mostrar  que  esses  erros,   ignorâncias,  cegueiras  e  perigos  têm  um  caráter  

comum  resultante  de  um  modo  mutilador  de  organização  do  conhecimento,   incapaz  

de  reconhecer  e  de  apreender  a  complexidade  do  real.  

 

O  problema  da  organização  do  conhecimento  

 

 

Qualquer  conhecimento  opera  por  seleção  de  dados  significativos  e  rejeição  de  

dados   não   significativos:   separa   (distingue   ou   disjunta)   e   une   (associa,   identifica);  

hierarquiza   (o   principal,   o   secundário)   e   centraliza   (em   função   de   um   núcleo   de  

noções-­‐chaves);  estas  operações,  que  se  utilizam  da  lógica,  são  de  fato  comandadas  por  

princípios   “supralógicos”   de   organização   do   pensamento   ou   paradigmas,   princípios  

ocultos   que   governam   nossa   visão   das   coisas   e   do   mundo   sem   que   tenhamos  

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consciência  disso.  

Assim,   no  momento   incerto   da   passagem  da   visão   geocêntrica   (ptolomaica)   à  

visão   heliocêntrica   (copernicana)   do   mundo,   a   primeira   oposição   entre   as   duas  

visões   residia   no   princípio   de   seleção/rejeição   dos   dados:   os   geocêntricos  

rejeitavam   como   não   significativos   os   dados   inexplicáveis   segundo   sua   concepção,  

enquanto   que   os   outros   se   baseavam   nestes   dados   para   conceber   o   sistema  

heliocêntrico.   O   novo   sistema   engloba   os   mesmos   constituintes   do   antigo   (os  

planetas),   utiliza   com   frequência  os   antigos   cálculos.  Mas  a   visão  do  mundo  mudou  

totalmente.   A   simples   permutação   entre   Terra   e   Sol   foi   muito   mais   do   que   uma  

permutação  já  que  foi  uma  mudança  do  centro  (a  Terra)  em  elemento  periférico  e  de  

um  elemento  periférico  (o  Sol)  em  centro.  

Tomemos  agora  um  exemplo  no  coração  mesmo  dos  problemas  antropossociais  

de   nosso   século:   o   do   sistema   concentrador   (Gulag),   na   União   Soviética.   Mesmo  

reconhecido,   de   facto,   o   Gulag   pôde   ser   empurrado   à   periferia   do   socialismo   soviético,  

como   fenômeno   negativo   secundário   e   temporário,   em   razão   essencialmente   do   cerco  

capitalista   e   das   dificuldades   iniciais   da   construção   do   socialismo.   Ao   contrário,   pode-­‐se  

considerar   o   Gulag   como   o   núcleo   central   do   sistema,   revelador   de   sua   essência  

totalitária.  

Vê-­‐se,   pois,   que,   conforme   as   operações   de   centralismo,   de   hierarquização,   de  

disjunção  ou  de  identificação,  a  visão  da  URSS  muda  totalmente.Esse  exemplo  nos  mostra  

que  é  muito  difícil  pensar  um  fenômeno  como  “a  natureza  da  URSS”.  Não  porque  nossos  

pré-­‐julga  mentos,  nossas  “paixões”  nossos   interesses  estejam  em   jogo  por   trás  de   nossas  

ideias,  mas  porque  não  dispomos  de  meios  para  conceber  a   complexidade  do  problema.  

Trata-­‐se   de   evitar   a   identificação   a   priori   (que   reduz   a   noção   de   URSS   à   de   Gulag),  

assim   como   a   disjunção  a   priori   que   dissocia,   como   estranha   uma   à   outra,   a   noção   de  

socialismo  soviético  e  a  de  sistema  concentrador.  Trata-­‐se  de  evitar  a  visão  unidimensional,  

abstrata.   Para   isto   é   preciso,   antes   de  mais   nada,   tomar   consciência   da   natureza   e   das  

consequências  dos  paradigmas  que  mutilam  o  conhecimento  e  desfiguram  o  real.  

 

A  patologia  do  saber,  a  inteligência  cega  

 

 

Vivemos  sob  o  império  dos  princípios  de  disjunção,  de  redução  e  de  abstração  cujo  conjunto  

constitui  o  que  chamo  de  o  “paradigma  de  simplificação”.  Descartes  formulou  este  paradigma  

essencial  do  Ocidente,  ao  separar  o  sujeito  pensante  (ego  cogitans)  e  a  coisa  entendida  (res  

extensa),  isto  é,  filosofia  e  ciência,  e  ao  colocar  como  princípio  de  verdade  as  ideias  “claras  e  

distintas”,   isto   é,   o   próprio   pensa-­‐   mento   disjuntivo.   Este   paradigma,   que   controla   a  

aventura  do  pensa-­‐  mento  ocidental  desde  o  século  XVII,  sem  dúvida  permitiu  os  maiores  

progressos  ao  conhecimento  científico  e  à  reflexão  filosófica;  suas  consequências  nocivas  

últimas  só  começam  a  se  revelar  no  século  XX.  

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Tal   disjunção,   rareando   as   comunicações   entre   o   conheci-­‐   mento   científico   e   a  

reflexão  filosófica,  devia  finalmente  privar  a  ciência  de  qualquer  possibilidade  de  ela  

conhecer   a   si   própria,   de   refletir   sobre   si   própria,   e   mesmo   de   se   conceber  

cientificamente.   Mais   ainda,   o   princípio   de   disjunção   isolou   radicalmente   uns   dos  

outros   os   três   grandes   campos   do   conhecimento   científico:   a   física,   a   biologia   e   a  

ciência  do  homem.  

A   única   maneira   de   remediar   esta   disjunção   foi   uma   outra  simplificação:  a  redução  

do  complexo  ao  simples  (redução  do  biológico  ao  físico,  do  humano  ao  biológico).  Uma  

hiperespecialização  devia,  além  disso,  despedaçar  e  fragmentar  o  tecido  complexo  das  

realidades,   e   fazer   crer  que  o   corte   arbitrário  operado  no   real   era  o  próprio   real.  Ao  

mesmo   tempo,   o   ideal   do   conhecimento   científico   clássico   era   descobrir,   atrás   da  

complexidade  aparente  dos  fenômenos,  uma  Ordem  perfeita  legiferando  uma  máquina  

perpétua   (o   cosmos),   ela   própria   feita   de   microelementos   (os   átomos)   reunidos   de  

diferentes  modos  em  objetos  e  sistemas.  

Tal   conhecimento,   necessariamente,   baseava   seu   rigor   e   sua   operacionalidade   na  

medida   e   no   cálculo;   mas,   cada   vez   mais,   a   matematização   e   a   formalização  

desintegraram  os  seres  e  os  entes  para  só  considerar  como  únicas  realidades  as  fórmulas  e  

equações  que   governam  as  entidades  quantificadas.  Enfim,  o  pensamento  simplificador   é  

incapaz   de   conceber   a   conjunção   do   uno   e   do   múltiplo   (unitat-­‐  multiplex).   Ou   ele  

unifica   abstratamente   ao   anular   a   diversidade,   ou,   ao   contrário,   justapõe   a   diversidade  

sem  conceber  a  unidade.  

Assim,   chega-­‐se   à   inteligência   cega.   A   inteligência   cega   destrói   os   conjuntos   e   as  

totalidades,  isola  todos  os  seus  objetos  do  seu  meio  ambiente.  Ela  não  pode  conceber  o  

elo   inseparável   entre   o   observador   e   a   coisa   observada.   As   realidades-­‐chaves   são  

desintegra-­‐   das.   Elas   passam   por   entre   as   fendas   que   separam   as   disciplinas.   As  

disciplinas  das   ciências  humanas  não   têm  mais  necessidade  da  noção  de  homem.  E  os  

pedantes   cegos   concluem   então   que   o   homem  não   tem   existência,   a   não   ser   ilusória.  

Enquanto   que   os   mídias   produzem  a  baixa  cretinização,  a  Universidade  produz  a  alta  

cretinização.  A  metodologia  dominante  produz  um  obscurantismo  acrescido,  já  que  não  

há   mais   associação   entre   os   elementos   disjuntos   do   saber,   não   há   possibilidade   de  

registrá-­‐los  e  de  refleti-­‐los.  

Aproximamo-­‐nos  de  uma  mutação   inaudita  no  conhecimento:  este  é   cada  vez  menos  

feito  para  ser  refletido  e  discutido  pelas  mentes  humanas,  cada  vez  mais  feito  para  ser  

registrado   em   memórias   informacionais   manipuladas   por   forças   anônimas,   em  

primeiro  lugar  os  Estados.  Ora,  esta  nova,  maciça  e  prodigiosa  ignorância  é  ela  própria  

ignorada  pelos  estudiosos.  Estes,  que  pratica-­‐  mente  não  dominam  as  consequências  

de  suas  descobertas,  sequer  

controlam  intelectualmente  o  sentido  e  a  natureza  de  sua  pesquisa.  

Os   problemas   humanos   são   entregues,   não   só   a   este   obscurantismo   científico   que  

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produz   especialistas   ignaros,   mas   também   a   doutrinas   obtusas   que   pretendem  

monopolizar  a  cientificidade  (após  o  marxismo  althusseriano,  o  econocratismo  liberal),  

a  ideias-­‐chaves  ainda  mais  pobres  por  sua  pretensão  de  abrir  todas  as  portas  (o  desejo,  a  

mimese,  a  desordem,  etc.),  como  se  a  verdade  estivesse  fechada  num  cofre-­‐forte  de  que  

bastaria   possuir   a   chave,   e   o   ensaísmo   não   verificado   partilha   o   terreno   com   o  

cientismo  limitado.  

Infelizmente,   pela   visão   mutiladora   e   unidimensional,   paga-­‐   se   bem   caro   nos  

fenômenos   humanos:   a   mutilação   corta   na   carne,   verte   o   sangue,   expande   o  

sofrimento.  A  incapacidade  de  conceber  a  complexidade  da  realidade  antropossocial,  

em   sua  microdimensão   (o   ser   individual)   e   em   sua  macrodimensão   (o   conjunto   da  

humanidade   planetária),   conduz   a   infinitas   tragédias   e   nos   conduz   à   tragédia  

suprema.  Dizem-­‐nos  que  a  política  “deve”  ser  simplificadora  e  maniqueísta.  Sim,  claro,  

em  sua  concepção  manipuladora  que  utiliza  as  pulsões  cegas.  Mas  a  estratégia  política  

requer   o   conhecimento   complexo,   porque   ela   se   constrói   na   ação   com   e   contra   o  

incerto,  o  acaso,  o  jogo  múltiplo  das  interações  e  retroações.  

 

A  necessidade  do  pensamento  complexo  

 

 

O   que   é   a   complexidade?   A   um   primeiro   olhar,   a   complexidade   é   um   tecido  

(complexus:   o   que   é   tecido   junto)   de   constituintes   heterogêneas   inseparavelmente  

associadas:   ela   coloca   o   paradoxo  do  uno   e  do  múltiplo.  Num  segundo  momento,   a  

complexidade   é   efetivamente   o   tecido   de   acontecimentos,   ações,   interações,  

retroações,   determinações,   acasos,   que   constituem   nosso   mundo   fenomênico.   Mas  

então   a   complexidade   se   apresenta   com   os   traços   inquietantes   do   emaranhado,   do  

inextricável,   da   desordem,   da   ambiguidade,   da   incerteza...   Por   isso   o   conhecimento  

necessita   ordenar   os   fenômenos   rechaçando   a   desordem,   afastar   o   incerto,   isto   é,  

selecionar   os   elementos   da   ordem   e   da   certeza,   precisar,   clarificar,   distinguir,  

hierarquizar...  Mas  tais  operações,  necessárias  à  

inteligibilidade,   correm   o   risco   de   provocar   a   cegueira,   se   elas   eliminam   os   outros  

aspectos  do  complexus;  e  efetivamente,  como  eu  o  indiquei,  elas  nos  deixaram  cegos.  

Ora,   a   complexidade   chegou   a   nós,   nas   ciências,   pelo   mesmo   caminho   que   a   tinha  

expulsado.  O  próprio  desenvolvimento  da  ciência   física,   que   se   consagrava   a   revelar   a  

Ordem   impecável   do  mundo,  seu  determinismo  absoluto  e  perpétuo,   sua  obediência  a  

uma  Lei  

única  e  sua  constituição  de  uma  forma  original  simples  (o  átomo)  

desembocou   finalmente   na   complexidade   do   real.   Descobriu-­‐se   no   universo   físico   um  

princípio   hemorrágico   de   degradação   e   de   desordem   (segundo   princípio   da  

termodinâmica);  depois,  no  que  se  supunha  ser  o   lugar  da  simplicidade   física  e   lógica,  

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descobriu-­‐se  a  extrema  complexidade  microfísica;  a  partícula  não  é  um  primeiro  tijolo,  

mas  uma   fronteira   sobre  uma   complexidade   talvez   inconcebível;   o   cosmos  não  é  uma  

máquina   perfeita,   mas   um   processo   em   vias   de   desintegração   e   de   organização   ao  

mesmo  tempo.  

Finalmente,  viu-­‐se  que  o  caminho  não  é  uma  substância,  mas  um  fenômeno  de  auto-­‐eco-­‐

organização  extraordinariamente  com-­‐  plexo  que  produz  autonomia.  Em  função  disso,  é  

evidente  que  os   fenômenos  antropossociais  não  poderiam  responder  a  princípios  de  

inteligibilidade   menos   complexos   do   que   estes   requeridos   desde   então   para   os  

fenômenos   naturais.   Precisamos   enfrentar   a   complexidade   antropossocial,   e   não  

dissolvê-­‐la  ou  ocultá-­‐la.  

A  dificuldade  do  pensamento  complexo  é  que  ele  deve  enfrentar  o  emaranhado  (o  jogo  

infinito   das   inter-­‐retroações,   a   solidariedade   dos   fenômenos   entre   eles,   a   bruma,   a  

incerteza,  a  contra-­‐  dição.  Mas  podemos  elaborar  algumas  das  ferramentas  conceituais,  

alguns  dos  princípios  para  esta  aventura,   e  podemos  entrever  o   semblante   do   novo  

paradigma  de  complexidade  que  deveria  emergir.  

Já  indiquei,  nos  dois  volumes  do  O  Método1,  algumas  das  ferramentas  conceituais  que  

podemos  utilizar.  Assim,  no  paradigma   de   disjunção/redução/unidimensionalização,  

seria   preciso   substituir   um   paradigma   de   distinção/conjunção,   que   permite  

distinguir   sem   disjungir,   de   associar   sem   identificar   ou   reduzir.   Este   paradigma  

comportaria  um  princípio  dialógico  e  translógico,  que  integraria  a  lógica  clássica  sem  

deixar  de   levar  em  conta  seus   limites  de   facto  (problemas  de  contradições)  e  de   jure  

(limites  do  formalismo).  Ele  traria  em  si  o  princípio  do  Unitas  multiplex,  que  escapa  à  

unidade  abstrata  do  alto  (holismo)  e  do  baixo  (reducionismo).  

Meu   propósito   aqui   não   é   enumerar   os   “mandamentos”   do   pensamento   complexo  

que   tentei   apresentar2.   É   sensibilizar   para   as   enormes   carências   de   nosso  

pensamento,  e  compreender  que  um  pensamento  mutilador  conduz  necessariamente  a  

ações  mutilantes.  

É  tomar  consciência  da  patologia  contemporânea  do  pensamento.  

A  antiga  patologia  do  pensamento  dava  uma  vida  independente  aos  mitos  e  aos  deuses  que  

criava.   A   patologia  moderna  da  mente   está   na   hipersimplificação   que   não   deixa   ver   a  

complexidade   do   real.   A   patologia   da   ideia   está   no   idealismo,   onde   a   ideia   oculta   a  

realidade  que  ela  tem  por  missão  traduzir  e  assumir  como  a  única  real.  A  doença  da  teoria  

está  no  doutrinarismo  e  no  dogmatismo,  que  fecham  a  teoria  nela  mesma  e  a  enrijecem.  A  

patologia  da  razão  é  a  racionalização  que  encerra  o  real  num  sistema  de  ideias  coerente,  

mas  parcial  e  unilateral,  e  que  não  sabe  que  uma  parte  do  real  é  irracionalizável,  nem  que  

a  racionalidade  tem  por  missão  dialogar  com  o  irracionalizável.  

Ainda   estamos   cegos   ao   problema   da   complexidade.   As   disputas   epistemológicas  

entre   Popper,   Kuhn,   Lakatos,   Feyerabend,  etc.,  não   fazem  menção  a  ele3.   Ora,   esta  

cegueira   faz  parte  de  nossa  barbárie.  Precisamos  compreender  que  continuamos  na  

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era   bárbara   das   ideias.   Estamos   ainda   na   pré-­‐história   do   espírito   humano.   Só   o  

pensamento  complexo  nos  permitirá  civilizar  nosso  conhecimento.  

     2     E.   Morin,   Ciência   com   consciência,   Paris,   Fayard,   1982.   Nova   edição,  col.  “Points”,  Le  Seuil,  1990,  p.  304-­‐9.  3     Entretanto,   o   filósofo   das   ciências,   Bachelard,   tinha   descoberto   que   o  simples  não   existe:   só   o   que   há   é   o   simplificado.   A   ciência   constrói   o   objeto  extraindo-­‐o  de   seu  meio   complexo  para  pô-­‐lo   em   situações   experimentais  não   complexas.   A   ciência   não   é   o   estudo   do   universo   simples,   é   uma  simplificação  heurística   necessária   para   desencadear   certas   propriedades,  até  mesmo  certas  leis.  Georges   Lukács,   o   filósofo   marxista,   dizia   na   sua   velhice,   criticando   sua  própria   visão   dogmática:   “O   complexo   deve   ser   concebido   como   o  primeiro  elemento  existente.  Daí  resulta  que  é  preciso  primeiro  examinar  o  complexo  enquanto  com-­‐  plexo  e  passar  em  seguida  a  seus  elementos  e  processos  elementares”.  

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O  Manifesto  da  Transdisciplinaridade8    

Basarab  Nicolescu    

 

 

Amanhã  será  tarde  demais    

Duas  verdadeiras  revoluções  atravessaram  este  século:  a  revolução  quântica  

e  a  revolução  informática.    

A  revolução  quântica  poderia  mudar  radical  e  definitivamente  nossa  visão  do  

mundo.  E,  no  entanto,  desde  o  começo  do  século  XX  nada  aconteceu.  Os  massacres  

dos  homens  pêlos  homens  aumentam  sem  cessar.    

A  antiga  visão  continua  senhora  deste  mundo.  De  onde  vem  esta  cegueira?  De  

onde  vem  este  desejo  perpétuo  de  fazer  o  novo  com  o  antigo?  A  novidade   irredutível  

da  visão  quântica  continua  pertencendo  a  uma  pequena  elite  de  cientistas  de  ponta.  A  

dificuldade   de   transmissão   de   uma   nova   linguagem   hermética   —   a   linguagem  

matemática  —  é,  sem  dúvida,  um  obstáculo  considerável;  porém  não   intransponível.  

De  onde  vem  este  desprezo  pela  Natureza,  que  se  pretende,  sem  nenhum  argumento  

sério,  muda  e  impotente  no  plano  do  sentido  de  nossa  vida?    

A  revolução  informática,  que  se  desenrola  diante  de  nossos  olhos  maravilhados  

e  inquietos,  poderia  levar  a  uma  grande  liberação  do  tempo,  a  ser  assim  consagrado  à  

nossa   vida   e   não,   como   para   a   maioria   dos   seres   sobre   esta   Terra,   à   nossa  

sobrevivência.   Ela   poderia   levar   a   uma   partilha   de   conhecimentos   entre   todos   os  

humanos,   prelúdio   de   uma   riqueza   planetária   compartilhada.  Mas,   aí   também,   nada  

acontece.  Os  comerciantes  apressam-­‐se  para  colonizar  o  espaço  cibernético  e  profetas  

incontáveis   só   nos   falam   dos   perigos   iminentes.   Porque   somos   tão   inventivos,   em  

todas   as   situações,   em   descobrir   todos   os   perigos   possíveis   e   imaginários,   mas   tão  

pobres  quando  se   trata  de  propor,  de  construir,  de  erguer,  de   fazer  emergir  o  que  é  

novo  e  positivo,  não  num  futuro  distante,  mas  no  presente,  aqui  e  agora?    

O   crescimento   contemporâneo   dos   saberes   não   tem   precedentes   na   história  

humana.   Exploramos   escalas   outrora   inimagináveis:   do   infinitamente   pequeno   ao  

infinitamente   grande,   do   infinitamente   curto   ao   infinitamente   longo.   A   soma   dos  

conhecimentos  sobre  o  Universo  e  os  sistemas  naturais,  acumulados  durante  o  século  

XX,  ultrapassa  em  muito  tudo  aquilo  que  pôde  ser  conhecido  durante  todos  os  outros  

séculos   reunidos.   Como   se   explica   que   quanto   mais   sabemos   do   que   somos   feitos,  

menos   compreendemos  quem   somos?   Como   se   explica   que   a   proliferação   acelerada  

8 NICOLESCU, Basarab. O Manifesto da Transdisciplinaridade. Triom : São Paulo, 1999.

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das  disciplinas  torne  cada  vez  mais  ilusória  toda  unidade  do  conhecimento?  Como  se  

explica  que  quanto  mais  conheçamos  o  universo  exterior,  mais  o  sentido  de  nossa  vida  

e  de  nossa  morte  seja  deixado  de  lado  como  insignificante  e  até  absurdo?  A  atrofia  do  

ser   interior   seria   o   preço   a   ser   pago   pelo   conhecimento   científico?   A   felicidade  

individual  e  social,  que  o  cientificismo  nos  prometia,  afasta-­‐se  indefinidamente  como  

uma  miragem.    

Dirão  a  nós  que  a  humanidade  sempre  esteve  em  crise  e  que  sempre  encontrou  

os  meios  para  sair  dela.  Esta  afirmação  era  verdadeira  outrora.  Hoje,  equivale  a  uma  

mentira.  Pois,  pela  primeira  vez  em  sua  história,  a  humanidade  tem  a  possibilidade  de  

destruir  a  si  mesma  inteiramente,  sem  nenhuma  possibilidade  de  retorno.    

Esta  destruição  potencial  de  nossa  espécie  tem  uma  tripla  dimensão:  material,  

biológica   e   espiritual.   Na   era   da   razão   triunfante,   o   irracional   é   mais   atuante   que  

nunca.      

As  armas  nucleares  acumuladas  na  superfície  de  nosso  planeta  podem  destruí-­‐

lo  completamente  várias  vezes,  como  se  uma  única  vez  não  bastasse.  A  guerra  branda  

substitui   a   guerra   fria.   Ontem   as   armas   eram   zelosamente   guardadas   por   algumas  

potências;  hoje  passeia-­‐se  com  suas  peças  desmontadas  debaixo  do  braço  de  um  lado  

para   outro   do   planeta   e   amanha   estarão   à   disposição   de   qualquer   pequeno   tirano.  

Qual  seria  o  milagre  da  dialética  que  faz  com  que  sempre  se  pense  na  guerra  quando  

falamos  da  paz?  De  onde  vem  a   loucura  assassina  do  ser  humano?  De  onde  vem  sua  

misteriosa  e  imensa  capacidade  de  esquecer?  Milhões  de  mortos  por  nada,  sob  nossos  

olhos   insensíveis,  hoje,   em  nome  de   ideologias  passageiras  e  dos   inúmeros   conflitos  

cujo  motivo  profundo  nos  escapa.    

Pela  primeira  vez  em  sua  história,  o  ser  humano  pode  modificar  o  patrimônio  

genético  de  nossa  espécie.  Na  falta  de  uma  nova  visão  do  mundo,  deixar  o  barco  correr  

equivale  a  uma  autodestruição  biológica  potencial.  Não  avançamos  nem  um  milímetro  

no  que  diz  respeito  às  grandes  questões  metafísicas,  mas  nos  permitimos  intervir  nas  

entranhas  de  nosso  ser  biológico.  Em  nome  do  que?    

Sentados   em   nossa   cadeira,   podemos   viajar   à   velocidade   máxima   permitida  

pela  Natureza:  a  velocidade  da  luz.  O  tamanho  da  Terra  reduz-­‐se  progressivamente  a  

um  ponto:   o   centro  de  nossa   consciência.  Devido   ao   casamento   insólito   entre  nosso  

próprio   corpo   e   a   máquina   informática,   podemos   modificar   livremente   nossas  

sensações  até  criarmos  uma  realidade  virtual,  aparentemente  mais  verdadeira  que  a  

realidade   de   nossos   órgãos   dos   sentidos.   Nasceu   assim,   imperceptivelmente,   um  

instrumento   de   manipulação   das   consciências   em   escala   planetária.   Em   mãos  

imundas,  este  instrumento  pode  levar  à  destruição  espiritual  de  nossa  espécie.    

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Esta   tripla   destruição   potencial   —   material,   biológica   e   espiritual   —   é,   na  

verdade,   o   produto   de   uma   "tecnociência"   cega,   mas   triunfante,   que   só   obedece   à  

implacável  lógica  da  eficácia  pela  eficácia.  Mas  como  pedir  a  um  cego  que  enxergue?    

Paradoxalmente,   tudo   está   estabelecido   para   nossa   autodestruição,  mas   tudo  

também   está   estabelecido   para   uma   mutação   positiva   comparável   às   grandes  

reviravoltas   da   História.   O   desafio   da   autodestruição   tem   sua   contrapartida   na  

esperança   do   autonascimento.  O   desafio   planetário   da  morte   tem   sua   contrapartida  

numa   consciência   visionária,   transpessoal   e   planetária,   que   se   alimenta   do  

crescimento   fabuloso   do   saber.   Não   sabemos   para   que   lado   penderá   a   balança.   Por  

isto  é  necessário  agir  com  rapidez,  agora.  Pois  amanhã  será  tarde  demais.    

   

Grandeza  e  decadência  do  cientificismo    

Desde  a  noite  dos  tempos  a  mente  humana  permanece  obcecada  pela   ideia  de  

leis  e  de  ordem,  que  dão  sentido  ao  Universo  onde  vivemos  e  à  nossa  própria  vida.  Os  

antigos   inventaram  assim  a  noção  metafísica,  mitológica  e  metafórica  de  cosmo.  Eles  

se  acomodavam  muito  bem  a  uma  Realidade  multidimensional,  povoada  de  diversas  

entidades,   dos   homens   aos   deuses,   passando   eventualmente   por   toda   uma   série   de  

intermediários.  Estas  diferentes  entidades  viviam  em  seu  próprio  mundo,  regido  por  

suas  próprias   leis,  mas  estavam   interligadas  por   leis   cósmicas   comuns  geradoras  de  

uma   ordem   cósmica   comum.   Assim   os   deuses   podiam   intervir   nos   assuntos   dos  

homens,  os  homens  eram  às  vezes  semelhantes  aos  deuses  e   tudo   tinha  um  sentido,  

ora  mais,  ora  menos  escondido,  mas  ainda  assim  um  sentido.    

A  ciência  moderna  nasceu  de  uma  ruptura  brutal  em  relação  à  antiga  visão  de  

mundo.   Ela   está   fundamentada   numa   ideia,   surpreendente   e   revolucionária   para   a  

época,  de  uma  separação  total  entre  o  indivíduo  conhecedor  e  a  Realidade,  tida  como  

completamente   independente   ao   indivíduo   que   a   observa.   Mas,   ao  mesmo   tempo,   a  

ciência  moderna   estabelecia   três   postulados   fundamentais,   que   prolongavam,   a   um  

grau  supremo,  no  plano  da  razão,  a  busca  de  leis  e  da  ordem:    

1.  A  existência  de  leis  universais,  de  caráter  matemático.    

2.  A  descoberta  destas  leis  pela  experiência  cientifica.      

3.  A  reprodutibilidade  perfeita  dos  dados  experimentais.    

   

Uma  linguagem  artificial,  diferente  da  linguagem  da  tribo  —  as  matemáticas  —  

era  assim  elevada,  por  Galileu,  ao  nível  de  linguagem  comum  entre  Deus  e  os  homens.    

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Os  sucessos  extraordinários  da   física  clássica,  de  Galileu,  Kepler  e  Newton  até  

Einstein,   confirmaram   a   justeza   destes   três   postulados.   Ao   mesmo   tempo,   eles  

contribuíram   para   a   instauração   de   um   paradigma   da   simplicidade,   que   se   tornou  

predominante  na  entrada  do  século  XIX.  A  física  clássica  conseguiu  construir,  ao  longo  

de   dois   séculos,   uma   visão   do   mundo   apaziguante   e   otimista,   pronto   a   acolher,   no  

plano  individual  e  social,  o  surgimento  da  ideia  de  progresso.    

A   física  clássica  está   fundamentada  na   ideia  de  continuidade,  de  acordo  com  a  

evidência   fornecida   pelos   órgãos   dos   sentidos:   não   se   pode   passar   de   um   ponto   a  

outro   do   espaço   e   do   tempo   sem   passar   por   todos   os   pontos   intermediários.   Além  

disso,   os   físicos   já   tinham   à   sua   disposição   um   aparelho   matemático   fundado   na  

continuidade:  o  cálculo  infinitesimal  de  Leibniz  e  Newton.    

A  ideia  de  continuidade  está  intimamente  ligada  a  um  conceito  chave  da  física  

clássica:  a  causalidade  local.  Todo  fenômeno  físico  poderia  ser  compreendido  por  um  

encadeamento   contínuo   de   causas   e   efeitos:   a   cada   causa   em   um   ponto   dado  

corresponde   um   efeito   em   um  ponto   infinitamente   próximo   e   a   cada   efeito   em   um  

ponto  dado  corresponde  uma  causa  em  um  ponto  infinitamente  próximo.  Assim  dois  

pontos   separados   por   uma   distância,   mesmo   que   infinita,   no   espaço   e   no   tempo,  

estão,   todavia,   ligados   por   um   encadeamento   contínuo   de   causas   e   efeitos:   não   há  

necessidade  alguma  de  qualquer  ação  direta  à  distância.  A  causalidade  mais  rica  dos  

antigos,  como,  por  exemplo,  a  de  Aristóteles,  era  reduzida  a  um  só  destes  aspectos:  a  

causalidade  local.  Uma  causalidade  formal  ou  uma  causalidade  final   já  não  tinha  seu  

lugar   na   física   clássica.   As   conseqüências   culturais   e   sociais   de   uma   tal   amputação,  

justificada   pêlos   sucessos   da   física   clássica,   são   incalculáveis.   Mesmo   hoje   aqueles  

muitos   que   não   têm   agudos   conhecimentos   de   filosofia,   consideram   como   uma  

evidência   indiscutível  a  equivalência  entre   "a  causalidade"  e   "a  causalidade   local",   a  

tal  ponto  que  o  adjetivo  "local"  é,  na  maioria  dos  casos,  omitido.    

O   conceito   de   determinismo   podia   realizar   assim   sua   entrada   triunfante   na  

história   das   ideias.   As   equações   da   física   clássica   são   de   tal   natureza   que,   se  

soubermos   as   posições   e   as   velocidades   dos   objetos   físicos   num   dado   instante,  

podemos  prever  suas  posições  e  velocidades  em  qualquer  outro  momento  do  tempo.  

As   leis  da   física   clássica   são   leis  deterministas.  Os   estados   físicos   sendo   funções  de  

posições  e  de  velocidades,  resultando  daí  que,  se  especificamos  as  condições   iniciais  

(o  estado  físico  num  determinado  instante),  podemos  prever  completamente  o  estado  

físico  em  qualquer  outro  momento  dado  do  tempo.    

É   evidente   que   a   simplicidade   e   a   beleza   estética   de   tais   conceitos   —  

continuidade,  causalidade  local,  determinismo  —  tão  operativos  na  Natureza,  tenham  

fascinado  os  maiores  espíritos  destes  quatro  últimos  séculos,  incluindo  o  nosso.    

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Faltava   dar   um   passo   que   já   não   era   de   natureza   científica,  mas   de   natureza  

filosófica   e   ideológica:   proclamar   a   física   rainha   das   ciências.   Mais   precisamente,  

reduzir   tudo   à   física   e   o   biológico   e   o   psíquico   aparecendo   apenas   como   etapas  

evolutivas  de  um  único  e  mesmo  fundamento.  Este  passo  foi  facilitado  pelos  avanços  

indiscutíveis   da   física.   Assim   nasceu   a   ideologia   cientificista,   que   surgiu   como   uma  

ideologia   de   vanguarda   e   que   experimentou   uma   extraordinária   disseminação   no  

século  XIX.    

Com  efeito,  perspectivas  inusitadas  abriram-­‐se  diante  do  espírito  humano.    

Se   o   Universo   não   passasse   de   uma   máquina   perfeitamente   regulada   e  

perfeitamente  previsível,  Deus  poderia   ser   relegado  à   condição  de   simples  hipótese,  

não   necessária   para   explicar   o   funcionamento   do   Universo.   O   Universo   foi  

subitamente  dessacralizado  e  sua  transcendência  jogada  nas  trevas  do  irracional  e  da  

superstição.  A  Natureza  oferecia-­‐se  ao  homem  como  uma  amante,  para  ser  penetrada  

em   suas   profundezas,   dominada,   conquistada.   Sem   cair   na   tentação   de   uma  

psicanálise  do  cientificismo.  somos  obrigados  a  constatar  que  os  escritos  cientificistas  

do   século   XIX   sobre   a   Natureza   estão   repletos   de   alusões   sexuais   das   mais  

desenfreadas.   Seria   de   se   espantar   que   a   feminilidade   do   mundo   tivesse   sido  

negligenciada,   ultrajada,   esquecida   numa   civilização   baseada   na   conquista,   na  

dominação,  na  eficácia  a  qualquer  preço?  Como  conseqüência  funesta,  mas  inevitável,  

a  mulher   é   geralmente   condenada   a   desempenhar   um   papel  menor   na   organização  

social.    

Na   euforia   cientificista   da   época,   era   natural   postular,   como  Marx   e   Engels   o  

fizeram,   o   isomorfismo   entre   as   leis   econômicas,   sociais,   históricas   e   as   leis   da  

Natureza.  Todas  as  ideias  marxistas  estão  baseadas,  em  última  análise,  nos  conceitos  

provenientes   da   física   clássica:   continuidade,   causalidade   local,   determinismo,  

objetividade.    

Se   a   História   submete-­‐se,   como   a   Natureza,   a   leis   objetivas   e   deterministas,  

podemos   fazer   tábua   rasa   do   passado,   por   uma   revolução   social   ou   qualquer   outro  

meio.   Com  efeito,   tudo  o  que   importa   é   o  presente,   como   condição   inicial  mecânica.  

Impondo   certas   condições   iniciais   sociais   bem   determinadas,   podemos   prever   de  

maneira   infalível   o   futuro   da   humanidade.   Basta   que   as   condições   iniciais   sejam  

impostas  em  nome  do  bem  e  do  verdadeiro  —  por  exemplo,  em  nome  da  liberdade,  da  

igualdade  e  da  fraternidade  —  para  construir  a  sociedade  ideal.  A  experiência  foi  feita  

em  escala  planetária,  com  os  resultados  que  conhecemos.  Quantos  milhões  de  mortos  

por  alguns  dogmas?  Quanto  sofrimento  em  nome  do  bem  e  da  verdade?  Como  ideias  

tão  generosas  em  sua  origem  transformaram-­‐se  em  seus  opostos?    

No   plano   espiritual,   as   conseqüências   do   cientificismo   também   foram  

consideráveis.  Um  conhecimento  digno  deste  nome  só  pode  ser  científico,  objetivo.  A  

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única  Realidade  digna  deste  nome  era,  naturalmente,  a  Realidade  objetiva,  regida  por  

leis   objetivas.   Todo   conhecimento,   além  do   científico,   foi   afastado  para   o   inferno  da  

subjetividade,  tolerado  no  máximo  como  ornamento,  ou  rejeitado  com  desprezo  como  

fantasma,   ilusão,   regressão,   produto   da   imaginação.   A   própria   palavra  

"espiritualidade"  tornou-­‐se  suspeita  e  seu  uso  foi  praticamente  abandonado.    

A   objetividade,   instituída   como   critério   supremo   de   verdade,   teve   uma  

conseqüência  inevitável:  a  transformação  do  sujeito  em  objeto.  A  morte  do  homem,  que  

anuncia  tantas  outras  mortes,  é  o  preço  a  pagar  por  um  conhecimento  objetivo.  O  ser  

humano   torna-­‐se   objeto:   objeto   da   exploração   do   homem   pelo   homem,   objeto   de  

experiências  de   ideologias  que   se   anunciam  científicas,   objeto  de  estudos   científicos  

para   ser   dissecado,   formalizado   e  manipulado.   O   homem-­‐Deus   é   um   homem   objeto  

cuja  única  saída  é  se  autodestruir.  Os  dois  massacres  mundiais  deste  século,  sem  levar  

em  conta  as  inúmeras  guerras  locais,  que  também  fizeram  incontáveis  cadáveres,  não  

passam   do   prelúdio   de   uma   autodestruição   em   escala   planetária.   Ou,   talvez,   de   um  

autonascimento.    

No   fundo,   além   da   imensa   esperança   que   suscitou,   o   cientificismo   nos   legou  

uma  ideia  persistente  e  tenaz:  a  da  existência  de  um  único  nível  de  Realidade,  no  qual  

a   única   verticalidade   concebível   é   a   da   pessoa   ereta   numa   Terra   regida   pela   lei   da  

gravidade  universal.    

Física  quântica  e  níveis  de  Realidade  

Por   uma   dessas   estranhas   coincidências,   das   quais   a   História   possui   os  

segredos,   a   mecânica   quântica,   a   primeira   guerra   mundial   e   a   revolução   russa  

surgiram  praticamente  ao  mesmo  tempo.  Violência  e  massacres  no  plano  do  visível  e  

revolução   quântica   no   plano   do   invisível.   Como   se   os   espasmos   visíveis   do   mundo  

antigo   fossem   acompanhados   pelo   surgimento   discreto,   quase   imperceptível,   dos  

primeiros  sinais  do  novo  mundo.  Os  dogmas  e  as  ideologias  que  devastaram  o  século  

XX   vieram   do   pensamento   clássico,   baseados   nos   conceitos   da   física   clássica.   Uma  

nova  visão  do  mundo  iria  arruinar  os  fundamentos  de  um  pensamento  que  não  parou  

de  acabar.    

No  começo  do  século  XX,  Max  Planck  confrontou-­‐se  com  um  problema  de  física,  

de  aparência  inocente,  como  todos  os  problemas  de  física.  Mas,  para  resolvê-­‐lo,  ele  foi  

conduzido  a  uma  descoberta  que  provocou  nele,  segundo  seu  próprio  testemunho,  um  

verdadeiro   drama   interior.   Pois   ele   tinha   se   tornado   a   testemunha   da   entrada   da  

descontinuidade  no  campo  da  física.  Conforme  a  descoberta  de  Planck,  a  energia  tem  

uma   estrutura   discreta,   descontínua.   O   "quantum"   de   Planck,   que   deu   seu   nome   à  

mecânica  quântica,   iria  revolucionar   toda   física  e  mudar  profundamente  nossa  visão  

do  mundo.    

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Como   compreender   a   verdadeira   descontinuidade,   isto   é,   imaginar   que   entre  

dois  pontos  não  há  nada,  nem  objetos,  nem  átomos,  nem  moléculas,  nem  partículas,  

apenas  nada.  Aí,  onde  nossa  imaginação  habitual  experimenta  uma  enorme  vertigem,  

a   linguagem   matemática,   baseada   num   outro   tipo   de   imaginário,   não   encontra  

nenhuma  dificuldade.  Galileu  tinha  razão:  a  linguagem  matemática  tem  uma  natureza  

diversa  da  linguagem  humana  habitual.    

Colocar  em  questão  a  continuidade  significa  colocar  em  questão  a  causalidade  

local  e  abrir  assim  uma  temível  caixa  de  Pandora.  Os  fundadores  da  mecânica  quântica  

—   Planck,   Bohr,   Einstein,   Pauli,   Heisenberg,   Dirac,   Schrödinger,   Bohm,   de   Broglie   e  

alguns  outros,  que  também  tinham  uma  sólida  cultura  filosófica,  estavam  plenamente  

conscientes   do   desafio   cultural   e   social   de   suas   próprias   descobertas.   Por   isto  

avançavam  com  grande  prudência,  enfrentando  polêmicas  acirradas.  Porém,  enquanto  

cientistas,  eles  tiveram  que  se  inclinar,  não  importando  suas  convicções  religiosas  ou  

filosóficas,  diante  das  evidências  experimentais  e  da  autoconsistência  teórica.    

Assim  começou  uma  extraordinária  Mahabharata  moderna,  que  iria  atravessar  

o  século  XX  e  chegar  até  os  nossos  dias.    

Para  esclarecer  a  metodologia  da   transdisciplinaridade,  o   autor  optou  por,   ao  

longo  de  dois  ou   três   capítulos,   explanar  os   resultados  um  pouco  abstratos  da   física  

quântica.  O   leitor  é,  portanto,  convidado  a  percorrer  algumas  considerações   teóricas  

antes  de  entrar  no  cerne  da  questão.    

O  formalismo  da  mecânica  quântica  e  posteriormente,  o  da  física  quântica  (que  

se   disseminou   depois   da   segunda   guerra   mundial,   com   a   construção   dos   grandes  

aceleradores  de  partículas),  tentaram,  é  verdade,  salvaguardar  a  causalidade  local  tal  

como   a   conhecemos   na   escala   macrofísica.   Mas   era   evidente,   desde   o   começo   da  

mecânica  quântica,   que  um  novo   tipo  de   causalidade  devia   estar   presente  na   escala  

quântica,  a  escala  do  infinitamente  pequeno  e  do  infinitamente  breve.  Uma  quantidade  

física   tem,   segundo   a   mecânica   quântica,   diversos   valores   possíveis,   afetados   por  

probabilidades  bem  determinadas.  No  entanto,  numa  medida  experimental,  obtém-­‐se,  

evidentemente,  um  único  resultado  para  a  quantidade  física  em  questão.  Esta  abolição  

brusca   da   pluralidade   dos   valores   possíveis   de   um   "observável"   físico,   pelo   ato   de  

medir,  tinha  uma  natureza  obscura  mas  indicava  claramente  a  existência  de  um  novo  

tipo  de  causalidade.    

Sete  décadas  após  o  nascimento  da  mecânica  quântica,  a  natureza  deste  novo  

tipo   de   causalidade   foi   esclarecida   graças   a   um   resultado   teórico   rigoroso   —   o  

teorema   de   Bell   —   e   a   experiências   de   uma   grande   precisão.   Um   novo   conceito  

adentrava   assim   na   física:   a   não   separabilidade.   Em   nosso   mundo   habitual,  

macrofísico,  se  dois  objetos  interagem  num  momento  dado  e  em  seguida  se  afastam,  

eles   interagem,   evidentemente,   cada   vez   menos.   Pensemos   em   dois   amantes  

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obrigados   a   se   separar,   um   numa   galáxia   e   outro   noutra.   Normalmente,   seu   amor  

tende  a  diminuir  e  acabar  por  desaparecer.    

No   mundo   quântico   as   coisas   acontecem   de   maneira   diferente.   As   entidades  

quânticas   continuam   a   interagir   qualquer   que   seja   o   seu   afastamento.   Isto   parece  

contrário   a   nossas   leis  macrofísicas.   A   interação   pressupõe   uma   ligação,   um   sinal   e  

este  sinal  tem,  segundo  a  teoria  da  relatividade  de  Einstein,  uma  velocidade  limite:  a  

velocidade  da  luz.  Poderiam  as  interações  quânticas  ultrapassar  este  barreira  da  luz?  

Sim,  se  insistirmos  em  conservar,  a  todo  custo,  a  causalidade  local,  e  pagando  o  preço  

de  abolir  a  teoria  da  relatividade.  Não,  se  aceitarmos  a  existência  de  um  novo  tipo  de  

causalidade:   uma   causalidade   global'que   concerne   o   sistema   de   todas   as   entidades  

físicas,  em  seu  conjunto.  E,  no  entanto,  este  conceito  não  é  tão  surpreendente  na  vida  

diária.  Uma   coletividade  —   família,   empresa,   nação  —  é   sempre  mais  que   a   simples  

soma  de  suas  partes.  Um  misterioso  fator  de  interação,  não  redutível  às  propriedades  

dos  diferentes  indivíduos,  está  sempre  presente  nas  coletividades  humanas,  mas  nós  

sempre  o  repelimos  para  o   inferno  da  subjetividade.  E  somos   forçados  a  reconhecer  

que   em   nossa   pequena   Terra   estamos   longe,   muito   longe   da   não   separabilidade  

humana.    

Em   todo   caso,   a   não   separabilidade   quântica   não   põe   em   dúvida   a   própria  

causalidade,  mas  uma  de   suas   formas,   a   causalidade   local.   Ela   não  põe   em  dúvida   a  

objetividade   científica,  mas  uma  de   suas   formas:   a   objetividade   clássica,   baseada  na  

crença   de   ausência   de   qualquer   conexão   não   local.   A   existência   de   correlações   não  

locais  expande  o  campo  da  verdade,  da  Realidade.  A  não  separabilidade  quântica  nos  

diz  que  há,  neste  mundo,  pelo  menos  numa  certa  escala,  uma  coerência,  uma  unidade  

das  leis  que  asseguram  a  evolução  do  conjunto  dos  sistemas  naturais.    

Um  outro  pilar  do  pensamento  clássico  —  o  determinismo  —  iria,  por  sua  vez,  

desmoronar.    

As  entidades  quânticas:  os  quantuns  são  muito  diferentes  dos  objetos  da  física  

clássica:  os  corpúsculos  e  as  ondas.  Se  quisermos  a  qualquer  preço  ligá-­‐los  aos  objetos  

clássicos,   seremos   obrigados   a   concluir   que   os   quantuns   são,   ao   mesmo   tempo,  

corpúsculos   e   ondas,   ou   mais   precisamente,   que   eles   não   são   nem   partículas   nem  

ondas.   Se  houver  uma  onda,   trata-­‐se,   antes,  de  uma  onda  de  probabilidade,  que  nos  

permite  calcular  a  probabilidade  de  realização  de  um  estado  final  a  partir  de  um  certo  

estado  inicial.    

Os  quantuns  caracterizam-­‐se  por  uma  certa  extensão  de  seus  atributos  físicos,  

como,   por   exemplo,   suas   posições   e   suas   velocidades.   As   célebres   relações   de  

Heisenberg   mostram,   sem   nenhuma   ambiguidade,   que   é   impossível   localizar   um  

quantum   num   ponto   preciso   do   espaço   e   num   ponto   preciso   do   tempo.   Em   outras  

palavras,   é   impossível   traçar   uma   trajetória   bem   determinada   de   uma   partícula  

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quântica.   O   indeterminismo   reinante   na   escala   quântica   é   um   indeterminismo  

constitutivo,   fundamental,   irredutível,   que   de   maneira   nenhuma   significa   acaso   ou  

imprecisão.    

O  aleatório  quântico  não  é  acaso.    

A  palavra   "acaso"  vem  do  árabe  az-­‐zahr   que  quer  dizer   "jogo  de  dados".  Com  

efeito,   é   impossível   localizar  uma  partícula  quântica  ou  dizer  qual   é  o   átomo  que   se  

desintegra   num   momento   preciso.   Mas   isto   não   significa   de   modo   algum   que   o  

acontecimento  quântico   seja  um  acontecimento   fortuito,  devido  a  um   jogo  de  dados  

(jogado   por   quem?):   simplesmente,   as   questões   formuladas   não   têm   sentido   no  

mundo   quântico.   Elas   não   têm   sentido   porque   pressupõe   a   existência   de   uma  

trajetória   localizável,   a   continuidade,   a   causalidade   local.   No   fundo,   o   conceito   de  

"acaso",   como   o   de   "necessidade",   são   conceitos   clássicos.   O   aleatório   quântico   é   ao  

mesmo  tempo  acaso  e  necessidade  ou,  mais  precisamente,  nem  acaso  nem  necessidade.  O  

aleatório  quântico  é  um  aleatório  construtivo,  que  tem  um  sentido:  o  da  construção  de  

nosso  próprio  mundo  macrofísico.  Uma  matéria  mais  fina  penetra  uma  matéria  mais  

grosseira.  As  duas  coexistem,  cooperam  numa  unidade  que  vai  da  partícula  quântica  

ao  cosmo.    

Indeterminismo  não  quer  de  maneira  alguma  dizer  "imprecisão",  se  a  noção  de  

"precisão"   não   estiver   implicitamente   ligada,   de   maneira   talvez   inconsciente,   às  

noções   de   trajetórias   localizáveis,   continuidade   e   causalidade   local.   As   previsões   da  

mecânica   quântica   sempre   foram,   até   o   presente,   verificadas   com   uma   grande  

precisão  por   inúmeras   experiências.   Porém,   esta   precisão  diz   respeito   aos   atributos  

próprios   às   entidades   quânticas   e   não   aos   dos   objetos   clássicos.   Aliás,   mesmo   no  

mundo  clássico,  a  noção  de  precisão  acaba  de  ser  fortemente  questionada  pela  teoria  

do  "caos".  Uma  minúscula  imprecisão  das  condições  iniciais  leva  a  trajetórias  clássicas  

extremamente   divergentes   ao   longo   do   tempo.  O   caos   instala-­‐se   no   próprio   seio   do  

determinismo.   Os   planificadores   de   toda   espécie,   os   construtores   de   sistemas  

ideológicos,  econômicos  ou  outros,  ainda  podem  existir  num  mundo  que  é  ao  mesmo  

tempo  indetreminista  e  caótico?    

O  maior  impacto  cultural  da  revolução  quântica  é,  sem  dúvida,  o  de  colocar  em  

questão   o   dogma   filosófico   contemporâneo   da   existência   de   um   único   nível   de  

Realidade.    

Damos  ao  nome  "realidade"  seu  significado  tanto  pragmático  como  ontológico.    

Entendo   por   Realidade,   em   primeiro   lugar,   aquilo   que   resiste   às   nossas  

experiências,   representações,   descrições,   imagens   ou   formalizações  matemáticas.   A  

física   quântica   nos   fez   descobrir   que   a   abstração   não   é   um   simples   intermediário  

entre   nós   e   a   Natureza,   uma   ferramenta   para   descrever   a   realidade,   mas   uma   das  

partes   constitutivas   da   Natureza.   Na   física   quântica,   o   formalismo   matemático   é  

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inseparável   da   experiência.   Ele   resiste,   a   seu   modo,   tanto   por   seu   cuidado   pela  

autoconsistência   interna   como   por   sua   necessidade   de   integrar   os   dados  

experimentais,   sem   destruir   esta   autoconsistência.   Também   noutro   lugar,   na  

realidade  chamada  "virtual"  ou  nas  imagens  de  síntese,  são  as  equações  matemáticas  

que  resistem:  a  mesma  equação  matemática  dá  origem  a  uma  infinidade  de  imagens.  

As   imagens   estão   latentes   nas   equações   ou   nas   séries   de   números.   Portanto,   a  

abstração  é  parte  integrante  da  Realidade.    

É  preciso  dar  uma  dimensão  ontológica  à  noção  de  Realidade,  na  medida  em  

que  a  Natureza  participa  do   ser  do  mundo.  A  Natureza  é  uma   imensa  e   inesgotável  

fonte  de  desconhecido  que  justifica  a  própria  existência  da  ciência.  A  Realidade  não  é  

apenas   uma   construção   social   o   consenso   de   uma   coletividade,   um   acordo  

intersubjetivo.  Ela  também  tem  uma  dimensão  trans-­‐subjetiva,  na  medida  em  que  um  

simples  fato  experimental  pode  arruinar  a  mais  bela  teoria  científica.  Infelizmente,  no  

mundo  dos  seres  humanos,  uma  teoria  sociológica,  econômica  ou  política  continua  a  

existir  apesar  de  múltiplos  fatos  que  a  contradizem.    

Deve-­‐se  entender  por  nível  de  Realidade   um  conjunto  de   sistemas   invariantes  

sob   a   ação   de   um   número   de   leis   gerais:   por   exemplo,   as   entidades   quânticas  

submetidas  às  leis  quânticas,  as  quais  estão  radicalmente  separadas  das  leis  do  mundo  

macrofísico.  Isto  quer  dizer  que  dois  níveis  de  Realidade  são  diferentes  se,  passando  de  

um  ao  outro,  houver  ruptura  das  leis  e  ruptura  dos  conceitos  fundamentais  (como,  por  

exemplo,   a   causalidade).   Ninguém   conseguiu   encontrar   um   formalismo  matemático  

que  permita  a  passagem  rigorosa  de  um  mundo  ao  outro.  As  sutilezas  semânticas,  as  

definições   tautológicas   ou   as   aproximações   não   podem   substituir   um   formalismo  

matemático  rigoroso.  Há,  mesmo,   fortes   indícios  matemáticos  de  que  a  passagem  do  

mundo  quântico  para  o  mundo  macrofísico  seja  sempre   impossível.  Contudo,  não  há  

nada  de  catastrófico  nisso.  A  descontinuidade   que  se  manifestou  no  mundo  quântico  

manifesta-­‐se   também  na   estrutura   dos   níveis   de   Realidade   Isto   não   impede   os   dois  

mundos   de   coexistirem.   A   prova:   nossa   própria   existência.   Nossos   corpos   têm   ao  

mesmo  tempo  uma  estrutura  macrofísica  e  uma  estrutura  quântica.    

Os  níveis  de  Realidade  são  radicalmente  diferentes  dos  níveis  de  organização,  

tais   como   foram  definidos   nas   abordagens   sistêmicas.   Os   níveis   de   organização   não  

pressupõem   uma   ruptura   dos   conceitos   fundamentais:   vários   níveis   de   organização  

pertencem   a   um   único   e   mesmo   nível   de   Realidade.   Os   níveis   de   organização  

correspondem   a   estruturações   diferentes   das   mesmas   leis   fundamentais.   Por  

exemplo,  a  economia  marxista  e  a  física  clássica  pertencem  a  um  único  e  mesmo  nível  

de  Realidade.    

O  surgimento  de  pelo  menos  dois  níveis  de  Realidade  diferentes  no  estudo  dos  

sistemas  naturais  é  um  acontecimento  de  capital  importância  na  historia  do  conheci-­‐

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mento.  Ele  pode  nos  levar  a  repensar  nossa  vida  individual  e  social,  a  fazer  uma  nova  

leitura  dos  conhecimentos  antigos,  a  explorar  de  outro  modo  o  conhecimento  de  nós  

mesmos,  aqui  e  agora.    

A   existência   dos   níveis   de   Realidade   diferentes   foi   afirmada   por   diferentes  

tradições  e  civilizações,  mas  esta  afirmação  estava  baseada  seja  em  dogmas  religiosos,  

seja  na  exploração  do  universo  interior.    

Em   nosso   século,   Husserl   e   alguns   outros   pesquisadores,   num   esforço   de  

questionamento  a  respeito  dos  fundamentos  da  ciência,  descobriram  a  existência  dos  

diferentes  níveis  de  percepção  da  Realidade  pelo  sujeito  observador.  Mas  eles   foram  

marginalizados  pelos  filósofos  acadêmicos  e   incompreendidos  pêlos  físicos,   fechados  

em   sua   própria   especialidade.   De   fato,   eles   foram   pioneiros   na   exploração   de   uma  

Realidade  multidimensional  e  multireferencial,  onde  o  ser  humano  pode  reencontrar  

seu  lugar  e  sua  verticalidade.    

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Um  bastão  sempre  tem  duas  extremidades    

O  desenvolvimento  da  física  quântica,  assim  como  a  coexistência  entre  o  mundo  

quântico   e   o   mundo   macrofísico,   levaram,   no   plano   da   teoria   e   da   experiência  

científica,  ao  aparecimento  de  pares  de  contraditórios  mutuamente  exclusivos  (A  e  não-­‐

A):   onda   e   corpúsculo,   continuidade   e   descontinuidade,   separabilidade   e   não  

separabilidade,  causalidade   local  e  causalidade  global,  simetria  e  quebra  de  simetria,  

reversibilidade  e  irreversibilidade  do  tempo  etc.    

Por   exemplo,   as   equações   da   física   quântica   submetem-­‐se   a   um   grupo   de  

simetrias,  mas  suas  soluções  quebram  estas  simetrias.  Da  mesma  forma,  supõe-­‐se  que  

um  grupo  de  simetria  descreva  a  unificação  de  todas  as  interações  físicas  conhecidas,  

mas   esta   simetria   deve   ser   quebrada   para   poder   descrever   a   diferença   entre   as  

interações  forte,  fraca,  eletromagnética  e  gravitacional.    

O   problema   da   flecha   do   tempo   sempre   fascinou   os   espíritos.   Nosso   nível  

macrofísico  caracteriza-­‐se  pela  irreversibilidade  (a  flecha)  do  tempo.  Caminhamos  do  

nascimento  para  a  morte,  da  juventude  para  a  velhice.  O  inverso  é  impossível.  A  flecha  

do   tempo   está   associada   à   entropia,   ao   crescimento  da  desordem.  Por   outro   lado,   o  

nível  microfísico  caracteriza-­‐se  pela  invariância  temporal  (reversibilidade  do  tempo).  

Tudo   se   passa   como   se,   na  maioria   dos   casos,   um   filme   rodado   no   sentido   inverso,  

produzisse  exatamente  as  mesmas  imagens  do  que  quando  rodado  no  sentido  correto.  

Há,  no  mundo  microfísico,  alguns  processos  que  violentam  esta  invariância  temporal.  

As  exceções  estão  intimamente  ligadas  ao  nascimento  do  universo,  mais  precisamente  

à  predominância  da  matéria  sobre  a  antimatéria.  O  Universo  é  feito  de  matéria  e  não  

de  antimatéria,  graças  a  esta  pequena  violação  da  invariância  temporal.    

Esforços  notáveis   foram   feitos  para   introduzir  uma   flecha  do   tempo   também  

no  nível  microfísico,  mas,  por  enquanto,  nada  se  conseguiu.  A  mecânica  quântica  não  

pôde   ser   substituída   por   uma   teoria   mais   preditível.   Devemos   nos   habituar   à  

coexistência   paradoxal   da   reversibilidade   e   da   irreversibilidade   do   tempo,   um   dos  

aspectos  da  existência  de  diferentes  níveis  de  Realidade.  Ora,  o  tempo  está  no  centro  

de  nossa  vida  terrestre.    

É  necessário  ressaltar  que  o  tempo  dos  físicos  já  é  uma  aproximação  grosseira  

do   tempo   dos   filósofos.   Nenhum   filósofo   conseguiu   seriamente   definir   o  momento  

presente.   "Quanto  ao  tempo  presente,"  —  já  dizia  Santo  Agostinho  —  "se  ele  sempre  

fosse  presente  e  não  passasse,  deixaria  de  ser  um  tempo,  seria  a  eternidade.  Portanto,  

se  o  tempo  só  é  tempo  porque  ele  passa,  como  podemos  dizer  que  ele  é,  ele  que  só  é  

porque   está   a   ponto   de   deixar   de   ser;   e   portanto   não   é   verdade   dizer   que   só   é   um  

tempo  porque  tende  ao  não-­‐ser.".  O  tempo  presente  dos  filósofos  é  um  tempo  vivo.  Ele  

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contém   em   si   mesmo   tanto   o   passado   como   o   futuro,   não   sendo   o   passado   nem   o  

futuro.  O  pensamento  é  impotente  para  apreender  toda  a  riqueza  do  tempo  presente.    

Os   físicos   aboliram   a   diferença   essencial   entre   o   presente   de   um   lado   e   o  

passado  e  o  futuro  de  outro,  substituindo  o  tempo  por  uma  banal  linha  do  tempo  onde  

os   pontos   representam   sucessivamente   e   indefinidamente   os   momentos   passados,  

presentes   e   futuros.   O   tempo   torna-­‐se   assim   um   simples   parâmetro   (da   mesma  

maneira  que  uma  posição  no  espaço),  que  pode  ser  perfeitamente  compreendido  pelo  

pensamento  e  perfeitamente  descrito  no  plano  matemático.  A  nível  macrofísico  esta  

linha   do   tempo   é   dotada   de   uma   flecha   indicando   a   passagem   do   passado   para   o  

futuro.  Esta   linha  do   tempo,  dotada  de  um   flecha,  é,  portanto  ao  mesmo   tempo  uma  

representação   matemática   simples   e   uma   representação   antropomórfica.   A   grande  

surpresa   é   constatar   que   até   uma   representação  matemática,   portanto   rigorosa,   do  

tempo,   de   acordo   com   a   informação   que   nos   é   fornecida   por   nossos   órgãos   dos  

sentidos,   é   colocada   em   dúvida   pelo   surgimento   do   nível   quântico,   como   nível   de  

Realidade  diferente  do  nível  macrofísico.  Será  que  o  tempo  dos  físicos  conserva  apesar  

de   tudo,   uma   lembrança   do   tempo   vivo   dos   filósofos,   graças   à   intervenção   sempre  

inesperada  da  Natureza?  Todavia,   apesar  de   tudo,   esta   coexistência  paradoxal  não  é  

tão   surpreendente   quando   nos   referimos   a   nossa   experiência   de   vida.   Todos   nós  

sentimos  que  nosso  tempo  de  vida  não  é  a  vida  de  nosso  tempo.  A  vida,  nossa  vida,  é  

algo  mais   que   um   objeto   delimitado   no   espaço   e   no   tempo.  Mas   o   surpreendente   é  

constatar   que   um   vestígio   desse   tempo   vivo   encontra-­‐se   na   Natureza.   Seria   a  

Natureza,  não  um  livro  morto  que  está  a  nossa  disposição  para  ser  decifrado,  mas  um  

livro  vivo,  sendo  continuamente  escrito?    

O  escândalo   intelectual  provocado  pela  mecânica  quântica  consiste  no   fato  de  

que  os  pares  de  contraditórios  que  ela  coloca  em  evidência  são  de   fato  mutuamente  

opostos  quando  analisados  através  da  grade  de   leitura  da   lógica  clássica.  Esta   lógica  

baseia-­‐se  em  três  axiomas:    

1.  O  axioma  da  identidade:  A  é  A;    

2.  O  axioma  da  não-­‐contradição:  A  não  é  não-­‐A;    

3.  O  axioma  do  terceiro  excluído:  não  existe  um  terceiro  termo  T  (T  de  "terceiro  

incluído")  que  é  ao  mesmo  tempo  A  e  não-­‐A.    

   

Na  hipótese  da  existência  de  um  único  nível  de  Realidade,  o  segundo  e  

terceiro  axiomas  são  evidentemente  equivalentes.  O  dogma  de  um  único  nível  de  

Realidade,  arbitrário  como  todo  dogma,  está  de  tal  forma  implantado  em  nossas  

consciências,  que  mesmo  lógicos  de  profissão  esquecem  de  dizer  que  estes  dois  

axiomas  são,  de  fato,  distintos,  independentes  um  do  outro.    

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Se,  no  entanto,  aceitamos  esta   lógica  que,  apesar  de  tudo  reinou,  durante  dois  

milênios  e  continua  a  dominar  o  pensamento  de  hoje,  em  particular  no  campo  político,  

social   e   econômico,   chegamos   imediatamente   à   conclusão   de   que   os   pares   de  

contraditórios   postos   em   evidência   pela   física   quântica   são  mutuamente   exclusivos,  

pois  não  podemos  afirmar  ao  mesmo  tempo  a  validade  de  uma  coisa  e  seu  oposto:  A  e  

não-­‐A.   A   perplexidade   produzida   por   esta   situação   é   bem   compreensível:   podemos  

afirmar,  se  formos  sãos  de  espírito,  que  a  noite  é  o  dia,  o  preto  é  o  branco,  o  homem  é  a  

mulher,  a  vida  é  a  morte?    

O   problema   pode   parecer   da   ordem   da   pura   abstração,   interessando   alguns  

lógicos,  físicos  ou  filósofos.  Em  que  a  lógica  abstraia  seria  importante  para  nossa  vida  

de  todos  os  dias?    

A  lógica  é  a  ciência  que  tem  por  objeto  de  estudo  as  normas  da  verdade  (ou  da  

"validade",  se  a  palavra  "verdade"  for  forte  demais  em  nossos  dias).  Sem  norma,  não  

há   ordem.   Sem   norma,   não   há   leitura   do  mundo   e,   portanto,   nenhum   aprendizado,  

sobrevivência  e  vida.  Fica  claro,  portanto,  que  de  maneira  muitas  vezes  inconsciente,  

uma   certa   lógica   e  mesmo   uma   certa   visão   do  mundo   estão   por   trás   de   cada   ação,  

qualquer  que  seja:  a  ação  de  um  indivíduo,  de  uma  coletividade,  de  uma  nação,  de  um  

estado.  Uma  certa  lógica  determina,  em  particular,  a  regulação  social.    

Desde  a  constituição  definitiva  da  mecânica  quântica,  por  volta  dos  anos  30,  os  

fundadores  da  nova  ciência  se  questionaram  agudamente  sobre  o  problema  de  uma  

nova  lógica,  chamada  "quântica".  Após  os  trabalhos  de  Birkhoff  e  Von  Neumann,  toda  

uma  proliferação  de   lógicas  quânticas  não  tardou  a  se  manifestar.  A  ambição  dessas  

novas  lógicas  era  resolver  os  paradoxos  gerados  pela  mecânica  quântica  e  tentar,  na  

medida  do  possível,   chagar  a  uma  potência  preditiva  mais   forte  do  que  a  permitida  

com  a  lógica  clássica.    

Por   uma   feliz   coincidência,   esta   proliferação   de   lógicas   quânticas   foi  

contemporânea   à   proliferação   de   novas   lógicas   formais,   rigorosas   no   plano  

matemático,   que   tentavam   alargar   o   campo   de   validade   da   lógica   clássica.   Este  

fenômeno  era  relativamente  novo  pois,  durante  dois  milênios,  o  ser  humano  acreditou  

que   a   lógica   fosse   única,   imutável,   dada   uma   vez   por   todas,   inerente   a   seu   próprio  

cérebro.    

Há,   no   entanto   uma   relação   direta   entre   a   lógica   e   o   meio   ambiente:   meio  

ambiente  físico,  químico,  biológico,  psíquico,  macro  ou  micro  sociológico.  Ora,  o  meio  

ambiente,   assim   como   o   saber   e   a   compreensão,   mudam   com   o   tempo.   Portanto,   a  

lógica   só   pode   ter   um   funda-­‐mento   empírico.   A   noção   de   história   da   lógica   é   muito  

recente  —   aparece   no  meio   do   século   XIX.   Pouco   tempo   depois   aparece   uma   outra  

noção   capital:   a   da   História   do   Universo.   Outrora,   o   universo,   como   a   lógica,   era  

considerado  eterno  e  imutável.    

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A  maioria  das  lógicas  quântica  modificou  o  segundo  axioma  da  lógica  clássica:  o  

axioma   da   não-­‐contradição,   introduzindo   a   não-­‐contradição   com   vários   valores   de  

verdade  no  lugar  daquela  do  par  binário  (A,  não-­‐A).  Estas  lógicas  multivalentes,  cujo  

estatuto   ainda   é   controvertido  quanto   a   seu  poder  preditivo,   não   levaram  em  conta  

uma   outra   possibilidade,   a  modificação   do   terceiro   axioma  —   o   axioma   do   terceiro  

excluído.    

O  mérito  histórico  de  Lupasco   foi  mostrar  que  a   lógica  do   terceiro   incluído   é  

uma  verdadeira  lógica,  formalizável  e  formalizada,  multivalente  (com  três  valores:  A,  

não-­‐A   e   T)   e   não-­‐contraditória.   Lupasco,   como   Husserl,   pertencia   à   raça   dos  

pioneiros.   Sua   filosofia,   que   toma   como   ponto   de   partida   a   física   quântica,   foi  

marginalizada   por   físicos   e   filósofos.   Curiosamente,   ela   teve   em   contrapartida   um  

poderoso   impacto,   ainda   que   subterrânea,   entre   os   psicólogos,   os   sociólogos,   os  

artistas  ou  os  historiadores  das  religiões.  Lupasco  teve  razão  cedo  demais.  A  ausência  

da  noção  de   "níveis   de  Realidade"   em   sua   filosofia   obscurecia   talvez   seu   conteúdo.  

Muitos  acreditaram  que  a   lógica  de  Lupasco  violava  o  principio  da  não-­‐contradição  

—  de   onde   provém   o   nome,   um   pouco   infeliz,   de   "lógica   da   contradição"  —   e   que  

admitia   o   risco  de   infindáveis   sutilezas   semânticas.  Além  disso,   o  medo  visceral   de  

introduzir  a  noção  de  "terceiro  incluído",  com  suas  ressonâncias  mágica,  só  fez  com  

que  aumentasse  a  desconfiança  em  tal  lógica.    

A   compreensão  do  axioma  do   terceiro   incluído  —  existe  um   terceiro   termo  T  

que   é   ao   mesmo   tempo   A   e   não-­‐A  —   fica   totalmente   clara   quando   é   introduzida   a  

noção  de  "níveis  de  Realidade".    

Para   se   chegar   a   uma   imagem   clara   do   sentido   do   terceiro   incluído,  

representemos  os   três   termos  da  nova   lógica  —  A,  não-­‐A  e  T  —  e   seus  dinamismos  

associados  por  um  triângulo  onde  um  dos  ângulos  situa-­‐se  a  um  nível  de  Realidade  e  

os  dois  outros  a  um  outro  nível  de  Realidade.  Se  permanecermos  num  único  nível  de  

realidade,   toda   manifestação   aparece   como   uma   luta   entre   dois   elementos  

contraditórios  (por  exemplo:  onda  A  e  corpúsculo  não-­‐A).  O  terceiro  dinamismo,  o  do  

estado  T,   exerce-­‐se  num  outro  nível  de  Realidade,   onde  aquilo  que  parece  desunido  

(onda  ou  corpúsculo)  está  de  fato  unido  (quantum),  e  aquilo  que  parece  contraditório  

é  percebido  como  não-­‐contraditório.    

É   a   projeção   de  T   sobre   um  único   e  mesmo  nível   de  Realidade   que   produz   a  

impressão   de   pares   antagônicos,   mutuamente   exclusivos   (A   e   não-­‐A).   Um   único   e  

mesmo   nível   de   Realidade   só   pode   provocar   oposições   antagônicas.   Ele   é,   por   sua  

própria  natureza,  autodestruidor,   se   for  completamente  separado  de  todos  os  outros  

níveis   de   Realidade.   Um   terceiro   termo,   digamos,   T',   que   esteja   situado   no   mesmo  

nível   de   Realidade   que   os   opostos   A   e   não-­‐A,   não   pode   realizar   sua   conciliação.   A  

"síntese"  entre  A  e  não-­‐A  é  antes  uma  explosão  de  imensa  energia,  como  a  produzida  

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pelo  encontro  entre  matéria  e  antimatéria.  Nas  mãos  de  marxistas-­‐leninistas,  a  síntese  

hegeliana   surgia   como   o   resultado   radioso   de   uma   sucessão   no   plano   histórico:  

sociedade   primitiva   (tese),   sociedade   capitalista   (antítese),   sociedade   comunista  

(síntese).  Infelizmente,  ela  se  metamorfoseou  em  seu  contrário.  Em  verdade,  a  queda  

inesperada  do  império  soviético  estava  inexoravelmente  inscrita  na  própria  lógica  do  

sistema.  Uma  lógica  nunca  é  inocente.  Ela  pode  chegar  a  fazer  milhões  de  mortos.    

Toda  diferença  entre  uma  tríade  de  terceiro  incluído  e  uma  tríade  hegeliana  se  

esclarece  quando  consideramos  o  papel  do  tempo.  Numa  tríade  de  terceiro  incluído  os  

três  termos  coexistem  no  mesmo  momento  do  tempo.  Por  outro   lado,  os  três  termos  

da   tríade   hegeliana   sucedem-­‐se   no   tempo.   Por   isso,   a   tríade   hegeliana   é   incapaz   de  

promover  a  conciliação  dos  opostos,  enquanto  a  tríade  de  terceiro  incluído  é  capaz  de  

fazê-­‐lo.   Na   lógica   do   terceiro   incluído   os   opostos   são   antes   contraditórios:   a   tensão  

entre  os  contraditórios  promove  uma  unidade  mais  ampla  que  os  inclui.    

Vemos   assim   os   grandes   perigos   de   mal-­‐entendidos   gerados   pela   confusão  

bastante  comum  entre  o  axioma  de  terceiro  excluído  e  o  axioma  de  não-­‐contradição.  A  

lógica   do   terceiro   incluído   é   não-­‐contraditória,   no   sentido   de   que   o   axioma   da   não-­‐

contradição   é   perfeitamente   respeitado,   com   a   condição   de   que   as   noções   de  

"verdadeiro"  e  "falso"  sejam  alargadas,  de  tal  modo  que  as  regras  de  implicação  lógica  

digam  respeito  não  mais  a  dois  termos  (A  e  não-­‐A),  mas  a  três  termos  (A,  não-­‐A  e  T),  

coexistindo  no  mesmo  momento  do   tempo.  É  uma   lógica   formal,  da  mesma  maneira  

que   qualquer   outra   lógica   formal:   suas   regras   traduzem-­‐se   por   um   formalismo  

matemático  relativamente  simples.    

Vê-­‐se  porque   a   lógica  do   terceiro   incluído  não   é   simplesmente  uma  metáfora  

para   um   ornamento   arbitrário   da   lógica   clássica,   permitindo   algumas   incursões  

aventureiras  e  passageiras  no  campo  da  complexidade.  A  lógica  do  terceiro  incluído  é  

uma   lógica  da   complexidade  e   até  mesmo,   talvez,   sua   lógica  privilegiada,  na  medida  

em   que   permite   atravessar,   de   maneira   coerente,   os   diferentes   campos   do  

conhecimento.    

A   lógica   do   terceiro   incluído   não   elimina   a   lógica   do   terceiro   excluído:   ela  

apenas  limita  sua  área  de  validade.  A  lógica  do  terceiro  excluído  é  certamente  validada  

por   situações   relativamente   simples,   como,   por   exemplo,   a   circulação   de   veículos  

numa  estrada:  ninguém  pensa  em   introduzir,  numa  estrada,  um   terceiro   sentido  em  

relação   ao   sentido   permitido   e   ao   proibido.   Por   outro   lado,   a   lógica   do   terceiro  

excluído  é  nociva  nos  casos  complexos,  como,  por  exemplo,  o  campo  social  ou  político.  

Ela  age,  nestes  casos,  como  uma  verdadeira  lógica  de  exclusão:    

bem  ou  mal,  direita  ou  esquerda,  mulheres  ou  homens,  ricos  ou  pobres,  brancos  

ou   negros.   Seria   revelador   fazer   uma   análise   da   xenofobia,   do   racismo,   do   anti-­‐

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semitismo   ou   do   nacionalismo   à   luz   da   lógica   do   terceiro   excluído.   Seria   também  

muito  instrutivo  passar  os  discursos  dos  políticos  pelo  crivo  da  mesma  lógica.    

A   sabedoria   popular   exprime   algo   muito   profundo   quando   nos   diz   que   um  

bastão  sempre  tem  duas  extremidades.   Imaginemos,  como  na  paródia  Lê  bout  du  bout  

de  Raymond  Devos  (que,  aliás,  compreendeu  melhor  que  muitos  eruditos  o  sentido  do  

terceiro  incluído)  que  um  homem  queira,  a  todo  custo,  separar  as  duas  extremidades  

de  um  bastão.  Ele  vai   cortar   seu  bastão  e  perceber  que  agora   tem,  não  apenas  duas  

extremidades,   mas   dois   bastões.   Ele   vai   continuar   a   cortar   cada   vez   mais  

nervosamente   seu   bastão,   porém,   embora   estes   se   multipliquem   sem   parar,   é  

impossível  separar  as  duas  extremidades!    

Estaremos  nós,  em  nossa  civilização  atual,  na  situação  do  homem  que  queria  a  

todo   custo   separar   as   duas   extremidades   de   seu   bastão?  À   barbárie   da   exclusão   do  

terceiro   responde   a   inteligência   da   inclusão.   Pois   um   bastão   sempre   tem   duas  

extremidades.    

   

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 0  surgimento  da  pluralidade  complexa    

   

Simultaneamente   ao   aparecimento   dos   diferentes   níveis   de   Realidade   e   das  

novas  lógicas  (entre  elas  a  do  terceiro  incluído)  no  estudo  dos  sistemas  naturais,  um  

terceiro  fator  veio  se  juntar  para  desferir  o  golpe  de  misericórdia  na  visão  clássica  do  

mundo:  a  complexidade.    

Ao   longo  do  século  XX,  a  complexidade   instala-­‐se  por   toda  parte,  assustadora,  

terrificante,  obscena,  fascinante,  invasora,  como  um  desafio  a  nossa  própria  existência  

e   ao   sentido   de   nossa   própria   existência.   A   complexidade   em   todos   os   campos   do  

conhecimento  parece  ter  fagocitado  o  sentido.    

A  complexidade  nutre-­‐se  da  explosão  da  pesquisa  disciplinar  e,  por  sua  vez,  a  

complexidade  determina  a  aceleração  da  multiplicação  das  disciplinas.    

A   lógica   binária   clássica   confere   seus   títulos   de   nobreza   a   uma   disciplina  

cientifica   ou   não   cientifica.   Graças   a   suas   normas   de   verdade,   uma   disciplina   pode  

pretender   esgotar   inteiramente   o   campo   que   lhe   e   próprio.   Se   esta   disciplina   for  

considerada  fundamental,  como  a  pedra  de  toque  de  todas  as  outras  disciplinas,  este  

campo  alarga-­‐se  implicitamente  a  todo  conhecimento  humano.    

Na   visão   clássica   do   mundo,   a   articulação   das   disciplinas   era   considerada  

piramidal,   sendo   a   base   da   pirâmide   representada   pela   física.   A   complexidade  

pulveriza  literalmente  esta  pirâmide  provocando  um  verdadeiro  big-­‐bang  disciplinar.    

0   universo   parcelado   disciplinar   esta   em   plena   expansão   em   nossos   dias.   De  

maneira   inevitável,   o   campo   de   cada   disciplina   torna-­‐se   cada   vez   mais   estreito,  

fazendo  com  que  a  comunicação  entre  elas  fique  cada  vez  mais  difícil,  até  impossível.  

Uma   realidade   multiesquizofrênica   complexa   parece   substituir   a   realidade  

unidimensional   simples   do   pensamento   clássico.   O   individuo,   por   sua   vez,   é  

pulverizado  para  ser  substituído  por  um  número  cada  vez  maior  de  peças  destacadas,  

estudadas  pelas  diferentes  disciplinas.  E  o  preço  que  o  indivíduo  tem  de  pagar  por  um  

conhecimento  de  certo  tipo  que  ele  mesmo  instaura.    

As  causas  do  big-­‐bang  disciplinar  são  várias  e  poderiam  ser  objeto  de  diversos  

tratados   eruditos.   Mas   a   causa   fundamental   pode   facilmente   ser   descoberta:   o   big-­‐

bang   disciplinar   responde   às   necessidades   de   uma   tecnociência   sem   freios,   sem  

valores,  sem  outra  finalidade  que  a  eficácia  pela  eficácia.    

Este  big-­‐bang  disciplinar  tem  enormes  conseqüências  positivas,  pois  conduz  ao  

aprofundamento   sem   precedente   do   conhecimento   do   universo   exterior   e   assim  

contribui   volens   nolens   para   a   instauração   de   uma   nova   visão   do   mundo.   Pois   um  

bastão   sempre   tem   duas   extremidades.   Quando   um   balanço   vai   longe   demais   num  

sentido,  sua  volta  e  inexorável.    

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Paradoxalmente,  a  complexidade  instalou-­‐se  no  próprio  coração  da  

fortaleza  da  simplicidade:  a  física  fundamental.  De  fato,  nas  obras  de  vulgarização,  

diz-­‐se  que  a  física  contemporânea  e  uma  física  onde  reina  uma  maravilhosa  

simplicidade  estética  da  unificação  de  todas  as  interações  físicas  através  de  alguns  

"tijolos"  fundamentais:  quarks,  leptons  ou  mensageiros.  Cada  descoberta  de  um  

novo  tijolo,  prognosticada  por  esta  teoria,  é  saudada  com  a  atribuição  de  um  

prêmio  Nobel  e  apresentada  como  um  triunfo  da  simplicidade  que  reina  no  mundo  

quântico.    

Mas   para   o   físico   que   pratica   a   essência   desta   ciência,   a   situação   mostra-­‐se  

infinitamente  mais  complexa.    

Os  fundadores  da  física  quântica  esperavam  que  algumas  partículas  pudessem  

descrever,   enquanto   tijolos   fundamentais,   toda  a   complexidade   física.  No  entanto,   já  

por  volta  de  1960  este  sonho  desmoronou:  centenas  de  partículas  foram  descobertas  

graças   aos   aceleradores   de   partículas.   Foi   proposta   uma   nova   simplificação   com   a  

introdução   do   princípio   do   bootstrap   nas   interações   fortes:   há   uma   espécie   de  

“democracia”   nuclear,   todas   as   partículas   são   tão   fundamentais   quanto   as   outras   e  

uma  partícula  é  aquilo  que  ela  é  porque  todas  as  outras  partículas  existem  ao  mesmo  

tempo.   Esta   visão   de   autoconsistência   das   partículas   e   de   suas   leis   de   interação,  

fascinante   no   plano   filosófico,   iria   por   sua   vez   desabar   devido   à   inusitada  

complexidade  das  equações  que  traduziam  esta  autoconsistência  e  à   impossibilidade  

prática   de   encontrar   suas   soluções.   A   introdução   de   subconstituintes   dos   hádrons  

(partículas  de  interações  fortes)  os  quarks  —  iria  substituir  a  proposta  do  bootstrap  e  

introduzir  assim  uma  nova  simplificação  no  mundo  quântico.  Esta  simplificação  levou  

a   uma   simplificação   ainda   maior,   que   domina   a   física   de   partículas   atualmente:   a  

procura  de  grandes  teorias  de  unificação  e  de  superunificação  das   interações   físicas.  

Contudo,  ainda  assim,  a  complexidade  não  demorou  em  mostrar  sua  onipotência.    

Por   exemplo,   segundo   a   teoria   das   supercordas   na   física   de   partículas,   as  

interações  físicas  aparecem  como  sendo  muito  simples,  unificadas  e  submetendo-­‐se  a  

alguns  princípios  gerais  se  descritas  num  espaço  tempo  multidimensional  e  sob  uma  

energia   fabulosa,  correspondendo  à  massa  dita  de  Planck.  A  complexidade  surgiu  no  

momento   da   passagem   para   o   nosso   mundo,   necessariamente   caracterizado   por  

quatro  dimensões  e  por  energias  acessíveis  muito  menores.  As  teorias  unificadas  são  

muito  poderosas  no  nível  dos  princípios  gerais,  mas  são  bastante  pobres  na  descrição  

da  complexidade  de  nosso  próprio  nível.  Alguns  resultados  matemáticos  rigorosos  até  

indicam  que  esta  passagem  de  uma  única  e  mesma  interação  unificada  para  as  quatro  

interações   físicas   conhecidas   é   extremamente   difícil   e   até   mesmo   impossível.   Um  

número   enorme   de   questões   matemáticas   e   experimentais,   de   extraordinária  

complexidade,   permanece   sem   resposta.   A   complexidade   matemática   e   a  

complexidade  experimental  são  inseparáveis  na  física  contemporânea.    

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É   interessante   observar,   de   passagem,   que   a   teoria   das   supercordas   surgiu  

graças   à   teoria   das   cordas   que,   por   sua   vez,   apareceu   graças   à   abordagem   do  

bootstrap.  Na   teoria  das   cordas,   os  hádrons   são   representados  por   cordas   vibrantes  

que  carregam  quarks  e  antiquarks  em  suas  extremidades.  Por  exemplo,  um  meson  é  

representado  por  urna  corda  tendo,  como  um  bastão,  duas  extremidades:  um  quark  e  

um  antiquark.  É  impossível  separar  as  duas  extremidades  de  uma  corda:  cortando-­‐se  

uma  corda  não  é  um  quark  e  um  antiquark  que  conseguimos  mas  várias  cordas,  todas  

elas   com   duas   extremidades.   Se   alguém   ficar   obcecado   pela   separação   das   duas  

extremidades   de   uma   corda,   vai   chocar-­‐se   com   uma   impossibilidade   teórica   que  

carrega   a   designação   erudita   de   “confinamento”:   os   quarks   e   antiquarks   ficam  

aprisionados   para   sempre   no   interior   dos   hádrons.   Seria   necessária   uma   energia  

infinita   para   afastar   e   separar   completamente   um   quark   e   um   antiquark.   Esta  

propriedade   paradoxal,   e   não   obstante   simples,   esconde,   de   fato,   uma   infinita  

complexidade   de   interação   entre   as   partículas   quânticas.   Os   físicos   ainda   não  

encontraram  uma  demonstração  matemática  rigorosa  do  confinamento  dos  quarks.    

Aliás,  a  complexidade  se  mostra  por  toda  parte,  em  todas  as  ciências  exatas  ou  

humanas,  rígidas  ou  flexíveis.    

A   biologia   e   a   neurociência,   por   exemplo,   que   vivem   hoje   um   rápido  

desenvolvimento,   revelam-­‐nos   novas   complexidades   a   cada   dia   que   passa   e   assim  

caminhamos  de  surpresa  em  surpresa.    

O   desenvolvimento   da   complexidade   é   particularmente   espantoso   nas   artes.  

Por  uma  interessante  coincidência,  a  arte  abstrata  aparece  ao  mesmo  tempo  em  que  a  

mecânica   quântica.   Porém,   em   seguida,   um   desenvolvimento   cada   vez  mais   caótico  

parece  presidir  pesquisas  cada  vez  mais   formais.  Salvo  algumas  exceções  notáveis,  o  

sentido   desaparece   em   proveito   da   forma.   O   rosto   humano,   tão   belo   na   arte   do  

Renascimento,  decompõe-­‐se  cada  vez  mais  até  desaparecer  complemente  no  absurdo  

e   na   feiúra.   Uma   nova   arte   —   a   arte   eletrônica   —   aparece   para   substituir  

gradualmente   a   obra   estética   pelo   ato   estético.   Na   arte,   como   em   outros   campos,   o  

bastão  sempre  tem  duas  extremidades.    

A   complexidade   social   sublinha,   até   o   paroxismo,   a   complexidade   que   invade  

todos   os   campos  do   conhecimento.  O   ideal   de   simplicidade  de   uma   sociedade   justa,  

baseada  numa   ideologia  científica  e  na  criação  de  um  “homem  novo”,  desabou  sob  o  

peso   de   uma   complexidade   multidimensional.   O   que   restou,   baseado   na   lógica   da  

eficácia  pela  eficácia,  não  é  capaz  de  nos  propor  outra  coisa  senão  o  “fim  da  História”.  

Tudo  se  passa  como  se  já  não  houvesse  futuro.  E  se  não  há  mais  futuro,  a  lógica  sã  nos  

diz  que  já  não  há  presente.  O  conflito  entre  a  vida  individual  e  a  vida  social  aprofunda-­‐

se  num  ritmo  acelerado.  E  como  podemos  sonhar  com  uma  harmonia  social  baseada  

na  aniquilação  do  ser  interior?    

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Edgar  Morin  tem  razão  quando  assinala  a  todo  mo  mento  que  o  conhecimento  

do  complexo  condiciona  uma  política  de  civilização.    

O  conhecimento  do  complexo,  para  que  seja  reconhecido  como  conhecimento,  

passa   por   uma   questão   preliminar:   a   complexidade   da   qual   falamos   seria   uma  

complexidade   desordenada,   e   neste   caso   seu   conhecimento   não   teria   sentido   ou  

esconderia   uma   nova   ordem   e   uma   simplicidade   de   uma   nova   natureza   que  

justamente   seriam   o   objeto   do   novo   conhecimento?   Trata-­‐se   de   escolher   entre   um  

caminho  de  perdição  e  um  caminho  de  esperança.    

Teria  a  complexidade  sido  criada  por  nossa  cabeça  ou  se  encontra  na  própria  

natureza  das  coisas  e  dos  seres?  O  estudo  dos  sistemas  naturais  nos  dá  uma  resposta  

parcial  a  esta  pergunta:  tanto  uma  como  outra.  A  complexidade  das  ciências  é  antes  de  

mais  nada   a   complexidade  das   equações   e  dos  modelos.   Ela   é,   portanto,   produto  de  

nossa  cabeça,  que  é  complexa  por  sua  própria  natureza.  Porém,  esta  complexidade  é  a  

imagem   refletida   da   complexidade   dos   dados   experimentais,   que   se   acumulam   sem  

parar.  Ela  também  está,  portanto  na  natureza  das  coisas.    

Além  disso,  a  física  e  a  cosmologia  quânticas  nos  mostram  que  a  complexidade  

do   Universo   não   é   a   complexidade   de   uma   lata   de   lixo,   sem   ordem   alguma.   Uma  

coerência  atordoante  reina  na  relação  entre  o  infinitamente  pequeno  e  o  infinitamente  

grande.  Um  único  termo  está  ausente  nesta  coerência:  a  abertura  do  finito  -­‐  o  nosso.  O  

indivíduo  permanece  estranhamente  calado  diante  da  compreensão  da  complexidade.  

E   com   razão,   pois   fora   declarado   morto.   Entre   as   duas   extremidades   do   bastão  —  

simplicidade  e  complexidade  —,  falta  o  terceiro  incluído:  o  próprio  indivíduo.    

   

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Uma  nova  visão  do  mundo:  a  transdisciplinaridade    

 

O  processo  de  declínio  das  civilizações  é  extremamente  complexo  e  suas  raízes  

estão   mergulhadas   na   mais   completa   obscuridade.   É   claro   que   podemos   encontrar  

várias  explicações  e  racionalizações  superficiais,  sem  conseguir  dissipar  o  sentimento  

de  um  irracional  atuando  no  próprio  cerne  deste  processo.  Os  atores  de  determinada  

civilização,  das  grandes  massas  aos  grandes  líderes,  mesmo  tendo  alguma  consciência  

do  processo  de  declínio,  parecem  impotentes  para  impedir  a  queda  de  sua  civilização.  

Uma   coisa   é   certa:   uma   grande   defasagem   entre   as   mentalidades   dos   atores   e   as  

necessidades   internas   de   desenvolvimento   de   um   tipo   de   sociedade,   sempre  

acompanha  a  queda  de  uma  civilização.  Tudo  ocorre  como  se  os  conhecimentos  e  os  

saberes  que  uma   civilização  não  para  de   acumular  não  pudessem  ser   integrados  no  

interior   daqueles   que   compõem   esta   civilização.   Ora,   afinal   é   o   ser   humano   que   se  

encontra  ou  deveria  se  encontrar  no  centro  de  qualquer  civilização  digna  deste  nome.    

O   crescimento   sem   precedente   dos   conhecimentos   em   nossa   época   torna  

legítima  a  questão  da  adaptação  das  mentalidades  a  estes  saberes.  O  desafio  é  grande,  

pois  a  expansão  contínua  da  civilização  de  tipo  ocidental  por  todo  o  planeta  torna  sua  

queda  equivalente  a  um   incêndio  planetário  sem  termo  de  comparação  com  as  duas  

primeiras  guerras  mundiais.    

Para  o  pensamento  clássico  só  existem  duas  soluções  para  sair  de  uma  situação  

de  declínio:  a  revolução  social  ou  o  retorno  a  uma  suposta  “idade  de  ouro”.    

A  revolução  social  já  foi  tentada  no  decorrer  do  século  que  está  acabando  e  seus  

resultados   foram   catastróficos.   O   homem   novo   não   passou   de   um   homem   vazio   e  

triste.   Quaisquer   que   sejam   os   retoques   cosméticos   que   o   conceito   de   “revolução  

social”  sofrer  no  futuro  próximo,  eles  não  poderão  apagar  de  nossa  memória  coletiva  

aquilo  que  efetivamente  foi  experimentado.    

O   retorno  à   idade  de  ouro  ainda  não   foi   tentado,  pela   simples   razão  de  que  a  

idade  de  ouro  não  foi  encontrada.  Mesmo  se  supormos  que  esta  idade  de  ouro  tenha  

existido   em   tempos   imemoriais,   este   retorno   deveria   necessariamente   se   fazer  

acompanhar  por  uma  revolução   interior  dogmática,   imagem  espelhada  da  revolução  

social.  Os  diferentes  integrismos  religiosos  que  cobrem  a  superfície  da  terra  com  seu  

manto  negro  são  um  mau  presságio  da  violência  e  do  sangue  que  poderia  jorrar  desta  

caricatura  de  “revolução  interior”.    

No   entanto,   como   sempre,   há   uma   terceira   solução.   Esta   terceira   solução   é   o  

objeto  do  presente  manifesto.    

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A   harmonia   entre   as  mentalidades   e   os   saberes   pressupõe   que   estes   saberes  

sejam   inteligíveis,   compreensíveis.   Todavia,   ainda   seria   possível   existir   uma  

compreensão  na  era  do  big-­‐bang  disciplinar  e  da  especialização  exagerada?    

Um  Pico  de   la  Mirandola  é   inconcebível  em  nossa  época.  Dois  especialistas  na  

mesma   disciplina   têm,   hoje   em   dia,   dificuldade   em   compreender   seus   resultados  

recíprocos.  Isto  nada  tem  de  monstruoso,  na  medida  em  que  é  a  inteligência  coletiva  

da  comunidade  ligada  a  esta  disciplina  que  a  faz  progredir  e  não  um  único  cérebro  que  

teria   de   conhecer   todos   os   resultados   de   todos   seus   colegas-­‐cérebros,   o   que   é  

impossível.  Pois,  hoje  em  dia,  existem  centenas  de  disciplinas.  Como  poderia  um  físico  

teórico   de   partículas   dialogar   seriamente   com  um  neurofisiologista,   um  matemático  

com  um  poeta,  um  biólogo  com  um  economista,  um  político  com  um  especialista  em  

informática,   exceto   sobre   generalidades   mais   ou   menos   banais?   E,   no   entanto,   um  

verdadeiro   líder   deveria   poder   dialogar   com   todos   ao   mesmo   tempo.   A   linguagem  

disciplinar   é   uma   barreira   aparentemente   intransponível   para   um   neófito.   E   todos  

somos  neófitos  uns  dos  outros.  Seria  a  Torre  de  Babel  inevitável?    

No  entanto,  um  Pico  de  La  Mirandola  em  nossa  época  é  concebível  na  forma  de  

um  supercomputador  no  qual  poderíamos  injetar  todos  os  conhecimentos  de  todas  as  

disciplinas.   Este   supercomputador   poderia   tudo   saber,   mas   nada   compreender.   O  

usuário   deste   supercomputador   não   estaria   em   melhor   situação   que   o   próprio  

supercomputador.   Ele   teria   acesso   instantâneo   a   não   importa   que   resultado   de   não  

importa  qual  disciplina,  mas  seria  incapaz  de  compreender  seus  significados  e  muito  

menos  de  fazer  ligação  entre  os  resultados  das  diferentes  disciplinas.    

Este  processo  de  babelização  não  pode  continuar  sem  colocar  em  perigo  nossa  

própria  existência,  pois   faz  com  que  qualquer   líder  se  torne,  queira  ou  não,  cada  vez  

mais   incompetente.  Um  dos  maiores  desafios  de  nossa  época,  como,  por  exemplo,  os  

desafios   de   ordem   ética,   exigem   competências   cada   vez   maiores.   Mas   a   soma   dos  

melhores   especialistas   em   suas   especialidades   não   consegue   gerar   senão   uma  

incompetência  generalizada,  pois  a   soma  das  competências  não  é  a   competência:  no  

plano  técnico,  a  intercessão  entre  os  diferentes  campos  do  saber  é  um  conjunto  vazio.  

Ora,   o   que   vem   a   ser   um   líder,   individual   ou   coletivo,   senão   aquele   que   é   capaz   de  

levar  em  conta  todos  os  dados  do  problema  que  examina?    

A  necessidade  indispensável  de  laços  entre  as  diferentes  disciplinas  traduziu-­‐se  

pelo   surgimento,   na   metade   do   século   XX,   da   pluridisciplinaridade   e   da  

interdisciplinaridade.  

A  pluridisciplinaridade  diz   respeito   ao   estudo  de  um  objeto  de  uma  mesma  e  

única  disciplina  por  várias  disciplinas  ao  mesmo  tempo.  Por  exemplo,  um  quadro  de  

Giotto  pode  ser  estudado  pela  ótica  da  história  da  arte,  em  conjunto  com  a  da  física,  da  

química,  da  história  das   religiões,  da  história  da  Europa  e  da  geometria.  Ou  ainda,   a  

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filosofia  marxista  pode  ser  estudada  pelas  óticas  conjugadas  da  filosofia,  da  física,  da  

economia,  da  psicanálise  ou  da  literatura.  Com  isso,  o  objeto  sairá  assim  enriquecido  

pelo   cruzamento   de   várias   disciplinas.   O   conhecimento   do   objeto   em   sua   própria  

disciplina   é   aprofundado   por   uma   fecunda   contribuição   pluridisciplinar.   A   pesquisa  

pluridisciplinar   traz  um  algo  a  mais  à  disciplina  em  questão   (a  história  da  arte  ou  a  

filosofia,  em  nossos  exemplos),  porém  este  “algo  a  mais”  está  a  serviço  apenas  desta  

mesma   disciplina.   Em   outras   palavras,   a   abordagem   pluridisciplinar   ultrapassa   as  

disciplinas,  mas  sua  finalidade  continua  inscrita  na  estrutura  da  pesquisa  disciplinar.    

A   interdisciplinaridade   tem   uma   ambição   diferente   daquela   da  

pluridisciplinaridade.   Ela   diz   respeito   à   transferência   de  métodos   de   uma  disciplina  

para   outra.   Podemos   distinguir   três   graus   de   interdisciplinaridade:   a)   um   grau   de  

aplicação.   Por   exemplo,   os   métodos   da   física   nuclear   transferidos   para   a   medicina  

levam   ao   aparecimento   de   novos   trata   mentos   para   o   câncer;   b)   um   grau  

epistemológico.   Por   exemplo,   a   transferência   de   métodos   da   lógica   formal   para   o  

campo   do   direito   produz   análises   interessantes   na   epistemologia   do   direito;   c)   um  

grau   de   geração   de   novas   disciplinas.   Por   exemplo,   a   transferência   dos  métodos   da  

matemática   para   o   campo   da   física   gerou   a   física-­‐matemática;   Os   da   física   de  

partículas   para   a   astrofísica,   a   cosmologia   quântica;   os   da   matemática   para   os  

fenômenos  meteorológicos   ou   para   os   da   bolsa,   a   teoria   do   caos;   os   da   informática  

para   a   arte,   a   arte   informática.   Como  a  pluridisciplinaridade,   a   interdisciplinaridade  

ultrapassa  as  disciplinas,  mas  sua  finalidade  também  permanece  inscrita  na  pesquisa  

disciplinar   Pelo   seu   terceiro   grau,   a   interdisciplinaridade   chega   a   contribuir   para   o  

big-­‐bang  disciplinar.    

A   transdisciplinaridade   como  o   prefixo   “trans”   indica,   diz   respeito   àquilo   que  

está  ao  mesmo  tempo  entre  as  disciplinas,  através  das  diferentes  disciplinas  e  além  

de  qualquer  disciplina.  Seu  objetivo  é  a  compreensão  do  mundo  presente  para  o  qual  

um  dos  imperativos  é  a  unidade  do  conhecimento.    

Haveria  alguma  coisa  entre  e  através  das  disciplinas  e  além  delas?  Do  ponto  de  

vista  do  pensamento  clássico,  não  há  nada,  absolutamente  nada,  O  espaço  em  questão  

é  vazio,   completamente  vazio,   como  o  vazio  da   física  clássica.  Mesmo  renunciando  à  

visão   piramidal   do   conhecimento,   o   pensamento   clássico   considera   que   cada  

fragmento  da  pirâmide,  gerado  pelo  big-­‐bang  disciplinar,  é  uma  pirâmide  inteira;  cada  

disciplina  proclama  que  o  campo  de  sua  pertinência  é  inesgotável.  Para  o  pensamento  

clássico,   a   transdisciplinaridade   é   um   absurdo   por   que   não   tem   objeto.   Para   a  

transdisciplinaridade   por   sua   vez,   o   pensamento   clássico   não   é   absurdo,   mas   seu  

campo  de  aplicação  é  considerado  como  restrito.    

Diante  de  vários  níveis  de  Realidade,  o  espaço  entre  as  disciplinas  e  além  delas  

está  cheio,  como  o  vazio  quântico  está  cheio  de  todas  as  potencialidades:  da  partícula  

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quântica   às   galáxias,   do   quark   aos   elementos   pesados   que   condicionam   o  

aparecimento  da  vida  no  Universo.    

A   estrutura   descontínua   dos   níveis   de   Realidade   determina   a   estrutura  

descontínua   do   espaço   transdisciplinar   que,   por   sua   vez,   explica   porque   a   pesquisa  

transdisciplinar   é   radicalmente   distinta   da   pesquisa   disciplinar,   mesmo   sendo  

complementar   a   esta.   A   pesquisa   disciplinar   diz   respeito,   no  máximo   a   um   único   e  

mesmo  nível  de  Realidade;  aliás,  na  maioria  dos  casos,  ela  só  diz  respeito  a  fragmentos  

de  um  único  e  mesmo  nível  de  Realidade.  Por  outro   lado,   a   transdisciplinaridade   se  

interessa   pela   dinâmica   gerada   pela   ação   de   vários   níveis   de   Realidade   ao   mesmo  

tempo.   A   descoberta   desta   dinâmica   passa   necessariamente   pelo   conhecimento  

disciplinar.   Embora   a   transdisciplinaridade   não   seja   uma   nova   disciplina,   nem   uma  

nova  hiperdisciplina,  alimenta-­‐se  da  pesquisa  disciplinar  que,  por  sua  vez,  é  iluminada  

de   maneira   nova   e   fecunda   pelo   conhecimento   transdisciplinar.   Neste   sentido,   as  

pesquisas   disciplinares   e   transdisciplinares   não   são   antagonistas,   mas  

complementares.    

Os   três   pilares   da   transdisciplinaridade   os   níveis   de   Realidade,   a   lógica   do  

terceiro   incluso   e   a   complexidade   —   determinam   a   metodologia   da   pesquisa  

transdisciplinar.    

Há  um  paralelo  surpreendente  entre  os  três  pilares  da  transdisciplinaridade  e  

os  três  postulados  da  ciência  moderna.    

Os  três  postulados  metodológicos  da  ciência  moderna  permaneceram  imutáveis  

de   Galileu   até   os   nossos   dias,   apesar   da   infinita   diversidade   dos  métodos,   teorias   e  

modelos  que  atravessaram  a  história  das  diferentes  disciplinas  científicas.  No  entanto,  

uma   única   ciência   satisfaz   inteira   e   integralmente   os   três   postulados:   a   física.   As  

outras   disciplinas   científicas   só   satisfazem   parcialmente   os   três   postulados  

metodológicos   da   ciência   moderna.Todavia,   a   ausência   de   uma   formalização  

matemática  rigorosa  da  psicologia,  da  historia  das  religiões  e  de  um  número  enorme  

de   outras   disciplinas   não   leva   à   eliminação   dessas   disciplinas   do   campo   da   ciência.  

Mesmo   as   ciências   de   ponta,   como   a   biologia   molecular,   não   podem   pretender,   ao  

menos  por  enquanto,  uma  formalização  matemática  tão  rigorosa  como  a  da  física.  Em  

outras   palavras,   há   graus   de   disciplinaridade   proporcionais   à   maior   ou   menor  

satisfação  dos  três  postulados  metodológicos  da  ciência  moderna.    

Da  mesma   forma,  a  maior  ou  menor  satisfação  dos   três  pilares  metodológicos  

da   pesquisa   transdisciplinar   gera   diferentes   graus   de   transdisciplinaridade.   A  

pesquisa  transdisciplinar  correspondente  a  um  certo  grau  de  transdisciplinaridade  se  

aproximará  mais  da  multidisciplinaridade  (como  no  caso  da  ética);  num  outro  grau,  se  

aproximará  mais   da   interdisciplinaridade   (como  no   caso   da   epistemologia);   e   ainda  

num  outro  grau,  se  aproximará  mais  da  disciplinaridade.    

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A   disciplinaridade   a   pluridisciplinaridade,   a   interdisciplinaridade   e   a  

transdisciplinaridade   são   as   quatro   flechas   de   um   único   e   mesmo   arco:   o   do  

Conhecimento.    

Como  no  caso  da  disciplinaridade,  a  pesquisa  transdisciplinar  não  é  antagonista  

mas   complementar   à   pesquisa   pluridisciplinar   e   interdisciplinar.   A  

transdisciplinaridade   é,   no   entanto,   radicalmente   distinta   da   pluri   e   da  

interdisciplinaridade,   por   sua   finalidade:   a   compreensão   do   mundo   presente,  

impossível   de   ser   inscrita   na   pesquisa   disciplinar.   A   finalidade   da   pluri   e   da  

interdisciplinaridade  sempre  é  a  pesquisa  disciplinar.  Se  a  transdisciplinaridade  é  tão  

freqüentemente   confundida   com   a   inter   e   a   pluridisciplinaridade   (como,   aliás,   a  

interdisciplinaridade   é   tão   freqüentemente   confundida   com  a  pluridisciplinaridade),  

isto   se   explica   em   grande   parte   pelo   fato   de   que   todas   as   três   ultrapassam   as  

disciplinas.  Esta  confusão  é  muito  prejudicial,  na  medida  em  que  esconde  as  diferentes  

finalidades  destas  três  novas  abordagens.    

Embora  reconhecendo  o  caráter  radicalmente  distinto  da  transdisciplinaridade  

em  relação  à  disciplinaridade,   à  pluridisciplinaridade  e   à   interdisciplinaridade,   seria  

extremamente   perigoso   absolutizar   esta   distinção,   pois   neste   caso   a  

transdisciplinaridade   seria   esvaziada   de   todo   seu   conteúdo   e   sua   eficácia   na   ação  

reduzida  a  nada.  O  caráter  complementar  das  abordagens  disciplinar,  pluridisciplinar,  

interdisciplinar  e  transdisciplinar  é  evidenciado  de  maneira  fulgurante,  por  exemplo,  

no   acompanhamento   dos   agonizantes.   Esta   atitude   relativamente   nova   de   nossa  

civilização   é   extremamente   importante,   pois,   reconhecendo   o   papel   de   nossa  morte  

em   nossa   vida,   descobrimos   dimensões   insuspeitas   da   própria   vida.   O  

acompanhamento  dos  agonizantes  não  pode  dispensar  uma  pesquisa  transdisciplinar,  

na  medida   em   que   a   compreensão   do  mundo   presente   passa   pela   compreensão   do  

sentido  de  nossa  vida  e  do  sentido  de  nossa  morte  neste  mundo  que  é  o  nosso.