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ESPECIAL 69 • Angelo dos Santos Soares Professor do Departamento de Informática e Métodos Quantitativos da EAESP/FGV, Mestre em Administração de Empresas e autor do livro O que é Informática. * RESUMO: As mulheres vêm sendo apontadas como o grupo social que será mais afetado, quantitativa e qualita- tivamente, pelas novas tecnologias baseadas na microele- trônica. Este trabalho tem por objetivo analisar alguns aspectos relacionados a como a automação vem afetando o trabalho das mulheres na cidade de São Paulo. O cargo de secretária foi escolhido por ser "tipicamente feminino" e estar sendo automatizado em larga escala nas organi- zações paulistanas. "No fundo é a mesma coisa, mas só que tudo é bonitinho: mesinha bonita, prédio bonito, carpetado, canetinha azul com tampinha vermelha; então eu faço a mesma coisa, só que em gaiola de ouro." (Secretária) * PALAVRAS-CHAVES: Automação, trabalho das mulheres, secretárias (des)qualificação, desemprego. * ABSTRACT: Women have been pointed out as the most affected group by the new technologies based on microelectronics. The object of this paper is to make a preliminary analysis of how automation has affected toomen's employment in the city of São Paulo. The secretaries were chosen beca use their job is considered a female one and it has been automated in a large scale in the tertiary sector. * KEY WORDS: Automation, toomen's employment, (de)skilling, unemployment, secretaries. Revista de Administração de Empresas São Paulo, 30 (3) 69-78 Ju1./Set.1990 Novas tecnologias e a questão do gênero: a automação e as secretárias

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Page 1: ESPECIAL - SciELO · 2. Estamos utilizando o conceito gênero neste tra-balho como sendo o conhe-cimento sempre relativo so-bre as diferenças (sociais, culturais, históricas) basea-das

ESPECIAL

69

• Angelo dos Santos SoaresProfessor do Departamento de Informática eMétodos Quantitativos da EAESP/FGV, Mestre emAdministração de Empresas e autor do livroO que é Informática.

* RESUMO: As mulheres vêm sendo apontadas como ogrupo social que será mais afetado, quantitativa e qualita-tivamente, pelas novas tecnologias baseadas na microele-trônica. Este trabalho tem por objetivo analisar algunsaspectos relacionados a como a automação vem afetando otrabalho das mulheres na cidade de São Paulo. O cargo desecretária foi escolhido por ser "tipicamente feminino" eestar sendo automatizado em larga escala nas organi-zações paulistanas.

"No fundo é a mesma coisa, mas só que tudo é bonitinho:mesinha bonita, prédio bonito, carpetado, canetinha azul comtampinha vermelha; então eu faço a mesma coisa, só que emgaiola de ouro." (Secretária)

* PALAVRAS-CHAVES: Automação, trabalho dasmulheres, secretárias (des)qualificação, desemprego.

* ABSTRACT: Women have been pointed out as themost affected group by the new technologies based onmicroelectronics. The object of this paper is to make apreliminary analysis of how automation has affectedtoomen's employment in the city of São Paulo. Thesecretaries were chosen because their job is considered afemale one and it has been automated in a large scale inthe tertiary sector.

* KEY WORDS: Automation, toomen's employment,(de)skilling, unemployment, secretaries.

Revista de Administração de Empresas São Paulo, 30 (3) 69-78 Ju1./Set.1990

Novas tecnologias e a questão do gênero: a automação e as secretárias

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NOVAS TECNOLOGIAS E A QUESTÃO DO GtNERO RAE

1. ROSZACK, T. O Culto daInformação. São Paulo,Brasiliense, 1988, p.12.

2. Estamos utilizando oconceito gênero neste tra-balho como sendo o conhe-cimento sempre relativo so-bre as diferenças (sociais,culturais, históricas) basea-das no sexo.

3. HUMPHREY, J. Genderand Work in the Third World- Sexual Divisions in Brazil-ian Industry. Londres, Tavis-tock Publications, 1987, p. 2.

4. HIRATA, H. & HUMPH-REY, J. "O Emprego Indus-trial Feminino e a CriseEconômica Brasileira". Re-vista de Economia Política.4(4):89-107,1984.

5. Ver WERNECK, D. Micro-electronics and Oftice Jobs -The Impact of the Chip onWomens Employment. Ge-neve, ILO, 1983; SELBY-SMITH, J. "Developments inMicro-Electronic Technologyand Their Impact on Womenin Paid Employment". TheAustralian Ouarterly, 1980,pp. 415-431; ETUI. The Im-pact of Microelectronics onEmployment in Eastern Eu-rope in the 1980s. Brussels,ETUI, 1980; LlE, M. OfticeAutomation and WomensWork. Norway, IFIM, 1982(mimeo).

6. Estamos considerandoempregos "tipicamente fe-mininos" aqueles onde 50%ou mais dos trabalhadoressão do sexo feminino.

7. KAPLlNSKY, R. Micro-Electronics and Employ-ment Revisited - A Review.Geneve, ILO, 1987.

8. LlE, M. The Significanceof Technology for WomensWork. Norway, IFIM, 1983(mimeo).

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INTRODUÇÃO

A automação está cada vez mais presenteno nosso cotidiano: bancos 24 horas,código de barras, terminais bancários

para saldos e extratos, video-games, cartõesmagnéticos. Trata-se de uma realidadeirreversível que afeta a vida das pessoas sejaenquanto consumidoras ou trabalhadoras.Novos hábitos, produtos e serviços têmaparecido e modificado nossas vidas.

No Brasil, a discussão sobre a automaçãotem sido prejudicada por vários motivos: emprimeiro lugar, houve uma polarização dadiscussão em torno da Política Nacional deInformática e das polêmicas travadas com osEUA. Em segundo lugar, a discussão tem semantido restrita aos círculos acadêmicos e àocorrência ou não do desemprego e dadesqualificação. Criou-se, também, uma visãoextremamente mitológica em torno daautomação, como Se ela fosse a redentora dostrabalhadores, libertando-os dos trabalhosrepetitivos, insalubres e perigosos. Uma visãoapaixonada asimoviana e mítica, que trazdificuldades para uma compreensão críticadesse processo de mudança tecnológica. Narealidade, "todo esse culto criado em torno daautomação, como todos os cultos, tem a intençãode recrutar a aquiescência e a submissão nãoreiletidas'",

A automação incorporou a idéia de mo-dernidade. Tudo o que a ela se relaciona éconsiderado moderno e, portanto, racional eeficiente. A automação tem sido apresentada,dessa forma, como sendo boa em si e como asolução perfeita para tudo o que é considera-do antigo, ineficiente e desorganizado na nos-sa sociedade.

Um outro aspecto que nos chama a atençãoé a não consideração da variável gênero', namaioria das pesquisas sobre automação e pro-cesso de trabalho no Brasil, mesmo quandosabemos que a maior parte dos trabalhadoresenvolvidos são mulheres.

É importante salientarmos que "nenhumaanálise de processo e mercado de trabalho podeocorrer sem que se faça uma análise explícita sobrea divisão sexual do trabalho e suas causas, poistrata-se de um aspecto fundamental da organiza-ção do trabalho e da estruturação do mercado detrabalho. A natureza e o conteúdo das tarefas,salários, o controle sobre tempo e espaço, a relaçãocom supervisores, certamente, são diferentes quan-do analisados sob a perspectiva do gênero "3.

No processo de automação da sociedade,ao contrário do que observaram Hirata eHumphrev', que a divisão sexual do trabalhopoderia, até certo ponto, proteger o trabalhodas mulheres num período de crise econômí-

ca, o trabalho das mulheres será o mais afeta-do pelas novas tecnologias baseadas na mi-croeletrônica. Inúmeras pesquisas' realizadasnos países desenvolvidos' apontam essa pro-blemática.

A AUTOMAÇÃO E O TRABALHO DAS MULHERES

Após a Segunda Guerra Mundial, as mu-lheres começaram a aumentar a sua partici-pação no mercado de trabalho. A maioria dasmulheres, entretanto, está segregada em ocu-pações no setor terciário da economia e emocupações de baixa qualificação no setorprimário. Podemos dizer que há uma "sexua-lização das ocupações" onde as mulheres se en-contram concentradas em ocupações "tipica-mente femininas:".

As mulheres serão mais afetadas pela au-tomação, exatamente por estarem segregadasnessas ocupações "tipicamente femininas" nosetor terciário, onde estão mais concentradosos desenvolvimentos e avanços da automação.

Além disso, as ocupações onde as mu-lheres estão concentradas são caracterizadas,'geralmente, por uma baixa taxa de sindica-lização, que é mais reduzida ainda entre asmulheres. Sendo assim, quando há a intro-dução das novas tecnologias nesses postos detrabalho, o poder de barganha e participaçãodas mulheres no processo é muito reduzido, oque dificulta, ainda mais, a aquisição de al-guns ganhos possíveis com a automação.

Um outro aspecto que reforça a tese do im-pacto desproporcional da automação sobre otrabalho das mulheres é apresentado porKaplinsky". Os novos empregos qualificadoscriados pela automação exigem um perfil dequalificação que, geralmente, não é aquelepossuído pela força de trabalho feminina. Se-gundo Lie", uma das divisões mais impor-tantes, hoje, no processo de trabalho se dáatravés da qualificação. Essa diferença dequalificação que podemos observar entrehomens e mulheres na nossa sociedade vemda educação diferenciada que recebem na es-cola e na família, que institucionaliza os pa-péis dominantes de gênero. Assim, os homenssão dominantes em todos os tipos de edu-cação técnica, enquanto que as mulheres pos-suem uma educação caracterizada por umaabordagem não-técnica, longe dos requisitosmatemáticos. Essa divisão, devemos ressaltar,estende-se ao mercado de trabalho.

Dessa forma, temos uma divisão clara en-tre o perfil de qualificação de homens e o demulheres no mercado de trabalho. Para oshomens, são destinadas ocupações mais técni-cas, em virtude de sua formação e "habili-dade natural" de operar máquinas e ferra-

Novas tecnologias e a questão do gênero: a automação e as secretárias

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RAE

9. Cynthia Cockburn em seulivro Brothers - Male Domi-nance and TechnologicalChange apresenta todas es-sas justificativas machistassobre a inadequação dasmulheres para a operaçãode máquinas.

10. WERNECK, D. Op. cit.

11. HARTMANN, H. et alii.Computer Chips and PaperClips. (2 vols.) Washington,National Academy Press,1986, p. 22.

12. GUILBERT, M. & ISAM-BERT-JAMATI, V. "A Dis-tribuição por Sexo". In:FRIEDMANN, G. & NAVILLE,P. Tratado de Sociologia doTrabalho. Vol. I, São Paulo,Ed. Cultrix, 1973, pp. 304-323.

13. SAFIOTI, H. I. B. A Mu-lher na Sociedade de Clas-ses: Mito e Realidade, 2ªedição. Petrópolis, Ed. Vo-zes, 1979.

14. OS IMPACTOS da au-tomação no trabalho dasmulheres. Relatório de Pes-quisa para a Fundação Car-los Chagas. São Paulo, 1990(mimeo).

15. ARONSSON, G. "ChangedQualifications Demands inComputer-Mediated Work".Applied Psychology: An In-ternational Review, 38(1 ):57-71,1989.

16. Ver BRUSCHINI, C."Sexualização das Ocu-pações: O Caso Brasileiro".Cadernos de Pesquisa,28:5-20, São Paulo, FCC,1979; . Tendên-cias da Força de TrabalhoFeminina Brasileira nosanos 70 e 80: AlgumasComparações Regionais.São Paulo, FCC, 1989.

NOVAS TECNOLOGIAS E A QUESTÃO DO Gf.NERO

cação da força de trabalho feminina ou já seesvaiu completamente ou se encontra desa-tualizada, obrigando a mulher a aceitar po-sições subalternas e precariamente remune-radas.

Nesse sentido, podemos concluir que a au-tomação da sociedade poderá contribuir paraa imposição de posições ainda mais subalter-nas e de menor remuneração para as mu-lheres, pois além da perspectiva da reduçãodo número de empregos ocupados pelas mu-lheres, temos uma grande desatualização pro-fissional das mulheres durante seu afasta-mento do mercado de trabalho, o que dificul-ta seu retorno a esse mercado após o períodode socialização dos filhos.

Com relação ao Brasil, o objetivo deste arti-go é mostrar como a automação tem afetado otrabalho das mulheres, a partir da análise deum cargo tipicamente feminino: o de se-cretária. Devemos salientar que este não é ocargo mais afetado pela automação, compara-tivamente a outros também estudados emuma pesquisa mais abrangente que fizemos",Ela foi realizada na cidade de São Paulo, du-rante o ano de 1989, em três empresas onde ograu de automação era o mais avançado, emtermos de automação de escritórios, e onde asvárias fases de produção já estavam interli-gadas eletronicamente. Em um dos escritórioshavia até comunicação mediada por satélite.

Devemos deixar claro que essa imposiçãoda interligação eletrônica na escolha das orga-nizações é de fundamental importância quan-do se deseja analisar os impactos da auto-mação, pois como nos mostra Aronsson", ainterligação eletrônica é uma nova forma deracionalização, direcionada não para as tare-fas e funções separadas, mas para processoscompletos. Dessa forma, o simples fato deexistirem máquinas automatizadas espalha-das pela organização, sem a devida interli-gação, não configura para nós um ambienteautomatizado.

OS ASPECTOS QUANTITATIVOS

Nas últimas décadas, aqui no Brasil, asmulheres têm aumentado a sua participaçãono mercado de trabalho. Entretanto, tal comoacontece nos países desenvolvidos, a maioriadas trabalhadoras está segregada em ocu-pações no setor terciário e em ocupações debaixa qualificação no setor primário. Pode-mos dizer que no Brasil, desde 1950 até hoje,há uma "sexualização das ocupações", comonos mostra Bruschíni": e mesmo no setor ter-ciário as mulheres ainda se encontram con-centradas em "guetos ocupacionais", onde osempregos possuem uma baixa qualificação,

mentas. Já para as mulheres são designadasas ocupações não-técnicas e que possuam al-guma semelhança e/ou relação com o traba-lho doméstico, em virtude da sua formação(não-matemática) e da sua "dificuldade eaversão naturais" às máquinas, em particularaos computadores",

Concordamos com Werneck'", que apontacomo razão da não representatividade damulher nas ocupações qualificadas do setorinformático, exatamente a sua educação nãodirecionada para matérias técnicas.

Um outro aspecto que implica um maiorimpacto da automação no trabalho feminino éa desigualdade existente com relação asalários e treinamentos no local de trabalho.Mesmo quando ocupam o mesmo cargo,homens e mulheres não são tratados comigualdade pela gerência. Os salários ainda sãodiferenciados e o acesso a promoções e treina-mentos também o é. nA atitude e o tratamentogerencial com relação aos trabalhadores são condi-cionados pelo gênero. Essa limitação aos treina-mentos associada à falta de qualificação técnica dasmulheres implica, na maioria das vezes, numamaior instrumentalização na utilização de equipa-mentos automatizados por parte das mulheres':",

A velocidade de difusão das novas tecnolo-gias baseadas na microeletrônica é um outroaspecto que acaba diminuindo o acesso das-mulheres aos empregos automatizados. Numcurto intervalo de tempo, há uma total refor-mulação do hardware e do software em virtudede mudanças tecnológicas. Por exemplo: em1983, havia uma grande difusão de micro-computadores de 8 bits, que utilizavam deter-minados softwares (processadores de texto,por exemplo). Em 1987, a tecnologia dos mi-crocomputadores já era predominantementede 16 bits, usando softwares distintos dos uti-lizados até então.

Essa incrível velocidade de difusão, nuncaantes vista com outras tecnologias, prejudicade maneira diferenciada as mulheres, pois,como nos mostram Guilbert e Isambert-Ma-mati", uma das características do trabalhofeminino é a descontinuidade no tempo, ouseja, os períodos de atividade profissional al-ternam-se com períodos de inatividade. Namaior parte das vezes, isso se dá em virtudedo casamento e do período de socializaçãodos filhos. Esse afastamento, devemos salien-tar, decorre de um contexto cultural que im-põe à mulher o papel da maternidade e daresponsabilidade pelo cuidado da famíliaque, associado à falta de equipamentos so-ciais (creches, berçários etc.), dificulta muito apossibilidade da mulher de se manter dentrodo mercado de trabalho. Segundo Saffioti"após esse período de afastamento, a qualifi-

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Novas tecnologias e a questão do gênero: a automação e as secretárias

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NOVAS TECNOLOGIAS E A QUESTÃO DO aNERO RAE

17. KAPLlNSKY, R. Op. cit.

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baixos salários e um baixo prestígio na so-ciedade.

Quando analisamos os 70 cargos apresen-tados na RAIS - Relação Anual de Infor-mações Sociais - podemos observar que 58%da mão-de-obra feminina está concentradaem apenas 16 cargos, apresentados no quadro1, que são considerados corno tipicamentefemininos.

Ouadro 1 : Cargos tipicamente femininos no Brasil

01 Professor de 1Q Grau

02 Professor de 2ºGrau

Q3 Pessoal de Enfermagem

04 Auxiliar de Escritório-

05 Agente Administrativo

06 Aux. de Contabilidade/Caixa

07 Secretária

08 Recepcionista,

09 DatiJ6grata/Estenógrafa

10 Telefonista/Telegrafista

11 Conservação de Edifícios

12 Cozinheiro

13 Serventia

14 Costureiro

15 Fiandeiro_ .. •.

16 Preparador de Tecelagem

Fonte: RAIS/MTb, retoa 1985 e 1986.

A partir da experiência internacional,podemos afirmar que no Brasil o trabalho dasmulheres será mais afetado pela automaçãodo que o trabalho masculino. Isso não signifi-ca que os homens não serão afetados pela au-tomação, mas sim que as mulheres serãoatingidas desproporcionalmente. Ao analisar-mos a evolução da automação nos últimosanos, essa desproporção fica mais evidente.Os dados sobre a evolução da automaçãonão-industrial no país são escassos, mas acre-ditamos que a comercialização de softwarepode ser um bom indicativo do crescimentoda automação no terciário. Ela pode ser vistano quadro 2.

Fica claro, a partir dos dados apresentadosnesse quadro, que a automação industrialapresenta sinais de retração, enquanto o setorde automação de escritórios e comercial regís-

Quadro 2: Distribuição da comercialização emsoftware por segmento de mercado - 1986/87.

SEGMENTO DE MERCADO DISTRIBUiÇÃO PERCENTUAL1986 1987

AUTOMAÇÃO

• Bancária 3,40 2,17

• Comercial 4,26 4,32

• de Escritório 5,83 7,19

• de Serviços 6,25 4,89

• Industrial 11,82 9,31

PROCESSAMENTO DE DADOS 68,00 71.37

OUTROS 0,44 0,75

TOTAL 100,00 100,00

Fonte: SEIISEP/DEM

tram uma expansão. Além disso, podemosobservar que, em termos percentuais, a au-tomação no setor terciário (escritórios, comer-cial, serviços e bancária juntos) representaaproximadamente o dobro da comercializaçãoem software da automação industrial.

Neste trabalho, o setor que nos interessaem particular é o da automação de escritórios,que vem crescendo significativamente nos ú 1-timos anos.

A análise quantitativa dos impactos da au-tomação sobre o mercado de trabalho (em-prego/ desemprego) é bastante complexa e en-contra inúmeros problemas de ordem meto-dológica. No que diz respeito ao trabalho dasmulheres, em particular o das secretárias, aanálise quantitativa se torna ainda mais difícil.

Segundo Kaplinsky", há inúmeros proble-mas metodológicos envolvidos na análise dataxa de desemprego proveniente da utilizaçãodas novas tecnologias. Freqüentemente, apa-recem estudos feitos a nível microeconômicoque realizam generalizações, ilegítimas, parao nível macroeconômico.

Acreditamos que um dos principais pro-blemas dessas estimativas reside no fato dese apresentarem números que produzem,num primeiro momento, um determinadoefeito, mas ao não se confirmarem, na práti-ca, acabam por reforçar a imagem de quenão há desemprego com a automação, ouque, se existe, é muito pequeno e, portanto,não acarreta problemas. Dessa forma, o de-semprego tecnológico acaba sendo descon-siderado e suas conseqüências tornam-seainda mais insidiosas.

Novas tecnologias e a questão do gênero: a automação e as secretárias

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RAE

18. SCHMITZ, H. "Micro-electronics Based Automa-tion and Labour Utilizationin Developing Countries".Viertel Jahres Bericht, 103,Bonn, 1986.19. 9 to 5. Hidden Victims:Clerical Workers, Automa-tion, and the ChangingEconomy. Cleveland, 9 to 5,1985 (mimeo).20. BRUSCHINI, C. Tendên-cias da Força de TrabalhoFeminina Brasileira nosanos 70 e 80: AlgumasComparações Regionais.Op. cit.

21. KAPLlNSKY, R. Op. cit.

22. BRUSCHINI, C, MulhcrcTrabalho. São Paulo, Nobel,1985, p. 8.

NOVAS TECNOLOGIAS E A QUESTÃO DO GÊNERO

prego proveniente das mudanças na organi-zação do trabalho.

Todos os aspectos apresentados até agoranos indicam a dificuldade metodológica eteórica na avaliação do quantum de desem-prego proveniente da automação. No Brasil,essa avaliação é ainda mais difícil, em vir-tude da falta ou precariedade de dadosdisponíveis. As estatísticas sobre a automaçãocomercial e de escritórios ainda são muito in-cipientes e não há séries históricas que permi-tam fazer uma análise mais detalhada de suaevolução.

Por outro lado, as estatísticas sobre o em-prego da mulher, como nos adverte Bruschini,"devem ser analisadas com extrema cautela, poisalém de revelarem apenas a parcela não-domésticada contribuição da mulher à sociedade, tendem ain-da a subestima-la">. Além disso, as estatísticasque revelam a participação da mulher no mer-cado de trabalho de acordo com os cargos,além de apresentarem um número muito res-trito de cargos, em muitos casos, não trazem ainformação individualizada por cargo.

Entretanto, as dificuldades para quantifi-cação dos efeitos das novas tecnologias sobreo nível total de empregos, e, em particular, so-bre o das mulheres, não devem obscurecer oóbvio: a automação sempre acarreta uma re-organização do trabalho e, mesmo que onúmero de postos de trabalho de uma deter-minada ocupação se eleve, com certeza o seuconteúdo não será o mesmo. Finalmente, se édifícil uma estimativa macroeconômica dosefeitos da automação sobre o nível de empre-gos, no plano microeconômico sempre é pos-sível detectar ou desemprego, ou crescimentosem criação de empregos (Jobless Growth),quando há introdução das novas tecnologiasbaseadas na microeletrônica.

OS ASPECTOS QUALITATIVOS· AS SECRETÁRIAS

As secretárias ocupam um lugar impor-tante e de grande responsabilidade nas orga-nizações, pois são as interfaces da organiza-ção ej ou clientes com os executivos. O focodeste texto são as implicações da automaçãopara o trabalho da secretária particular, isto é,da secretária que se reporta a um único chefe.

A análise de como as novas tecnologiasvêm transformando o trabalho das secretáriasé especialmente difícil. Quando se trata daautomação de escritórios, geralmente abor-dam-se apenas os procedimentos formais dotrabalho em escritórios: as tarefas repetitivas,previsíveis e padronizadas que são passíveisde ser automatizadas.

No entanto, é preciso levar em conta tam-bém, particularmente no caso das secretárias,

A análise da taxa de desemprego prove-niente das novas tecnologias exige muitoscuidados metodológicos e a consideração deinúmeras variáveis, pois o nível geral de em-prego numa dada sociedade é determinado porinúmeros fatores, difíceis de serem segregados.

É muito comum justificar-se a redução donúmero de trabalhadores utilizando-se o ar-gumento do aumento da produtividadeproveniente da automação. Entretanto, paraque esse argumento seja verdadeiro, o nívelda produção agregada deve se manter inalte-rado, o que não acontece necessariamente,pois um aumento na produtividade pode ge-rar um aumento de salários e uma queda noscustos reais de produção, implicando, assim,num aumento real da renda. Isso possibili-taria um aumento na procura por outros pro-dutos e geraria novos empregos.

Esse é apenas um dos aspectos envolvidosnessa problemática. Para Schmitz", o proble-ma do desemprego tecnológico será maiornos países do Terceiro Mundo, pois os empre-gos criados pelas novas tecnologias, que"compensariam" parcela do desemprego ge-rado, estão localizados nas empresas-ma-trizes, nos países desenvolvidos. No Brasil,esse efeito não-compensatório tem sido mini-mizado pela Política Nacional de Informática,que reserva parte do mercado interno paraempresas nacionais, criando, assim, empregosrelacionados às novas tecnologias que "com-pensam" parcela do desemprego gerado pelaautomação.

Um outro aspecto que merece a nossaatenção, com relação ao nível de emprego, éque a automação tem sido introduzida tantonos escritórios, serviços como na indústria si-multaneamente. A falha de não se correla-cionar a automação industrial à automaçãodos demais setores, principalmente de es-critórios, como nos aponta a associação 9 to 519

é fatal para qualquer análise econômica dessaquestão.

Com relação ao trabalho das mulheres,Bruschini" observou que no período de 1983a1985, de recessão econômica, houve um li-geiro deslocamento das mulheres que traba-lhavam na indústria e no campo para o setorterciário. Com a intensificação da automaçãosimultaneamente nos vários setores da econo-mia, esse padrão de deslocamento da mão-de-obra feminina ocorrido no período de 1983-1985, será reduzido drasticamente, quandonão inviabilizado.

Kaplinsky" ainda nos apresenta um outroaspecto que dificulta a avaliação da taxa dedesemprego proveniente da automação, que éa distinção entre o que é desemprego prove-niente da automação em si, e o que é desem-

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NOVAS TECNOLOGIAS E A QUESTÃO DO GI',NERO RAE

23. Estamos chamando de"qualificações invisíveis",em particular das se-cretárias, todas as qualifi-cações que não são reco-nhecidas e pelas quais astrabalhadoras não são nemavaliadas e nem remune-radas. Trata-se de qualifi-cações relacionadas ao jul-gamento social e cognitivoacurados e ao uso de técni-cas de negociação e de me-diação que envolvem um al-to grau de diplomacia, e quequando são relacionadasaos homens são muito apre-ciadas e reconhecidas, masquando são desempenhadaspelas secretárias, não sãolevadas em consideração.Um exemplo: a filtragem detelefonemas e de pessoasque procuram o executivo(gatekeeping), que sempreenvolve um alto grau dediplomacia mas nunca é re-conhecida e valorizada en-quanto tarefa desempenha-da por uma mulher.24. BARKER, J. & DOWN-ING, H. "Word Processingand the Transformation ofthe Patriarchal Relations ofControl in the Office". Capi-tal& Class, 10:75,1980.25. Estamos considerandonovas ferramentas de tra-balho nos escritórios os mi-crocomputadores, terminaisde vídeo, telefax, rede decomputadores, softwaresaplicativos: processadoresde texto, planilhas eletrôni-cas, bancos de dados.

26. Nesse caso é possívelenviar e receber a respostapara/da Asia em apenas 30segundos em virtude do sis-tema de comunicação dedados.

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a prática informal dos escritórios. Ela envolveas chamadas tarefas invisíveis - pois, aexemplo do serviço doméstico, só são perce-bidas quando deixam de ser executadas - as-sociadas a qualificações igualmente in-visíveis", exigidas e presentes na rotina detrabalho mas raramente computadas para finsde pagamento ou promoção. Tais tarefas nãosão passíveis de ser automatizadas.

Na verdade, falta uma delimitação claradas atribuições de uma secretária. A existên-cia de uma definição para o cargo emquestão é uma raridade e "onde ela existe, fre-qüentemente especifica: 1) taquígrafa (ditado/cópia) e datilografia; 2! tarefas gerais de es-critório; e 3) etecetera. E o etecetera que não sópermite a brutal exploração das trabalhadoras emescritórios, mas também assume a naturalidadedas mulheres na execução de tarefas consideradasfemininas que envolvam tomar conta e prestaçãode seroiços">. Na fala das secretárias pode-seobservar essa dificuldade na definição desuas tarefas:

"Tudo, a secretária faz tudo, desde servir caféna sala do chefe; porque, no fundo, secretária é issomesmo, secretária é secretária".

"Tudo, em geral faz tudo, desde o trabalho dochefe, faz particular também, desde contas, mu-danças, tudo, tudo. Tantas coisas ... não dá nempara fazer avaliação. A secretária fala no telefone,é complicado definir assim, pois ela faz tudo,menos resolver o supra-racional do problema, oresto é fundamental (. ..) eles esperam que eu façatudo, desde a parte administrativa, o que eu puderliberar, tomar conta de absolutamente tudo".

Assim, a "generalidade" das atribuiçõesdas secretárias torna difícil a análise de comoa automação altera essa ou aquela tarefa, ouse há um processo de (des)qualificação do seutrabalho, mormente quando se consideram as"qualificações invisíveis" que lhes são exigi-das. Entretanto, alguns aspectos decorrentesda automação que influenciam o seu trabalhopuderam ser observados.

O primeiro deles é a intensificação do rit-mo de trabalho, em virtude da introdução denovas ferramentas de trabalho". O depoimen-to das secretárias registra isso com clareza:

"Eu mando uma mensagem, ela recebe", 30 se-gundos depois me manda a resposta, como se euestivesse falando por telefone. E muito rápido nos-so processo de correspondência".

"As coisas agilizam muito, por outro lado éneuroiizante, porque você fica correndo atrás dotempo, muito mais que antes, quando as coisas de-moravam".

"Fora isso têm máquinas de telefax (...) Por umlado é bom, mas por outro não, pois todo mundoquer tudo para ontem e agora é possível fazer paraontem, então começa a acelerar o processo, vocênão tem tempo. Uma coisa que antes você demo-raria, vamos supor, uma previsão de três dias, hojevocê pode ter meia hora para fazer. Quer dizer, éon-line, está cada vez mais próximo e mais difícil.O trabalho total, a atenção, a cobrança maior, háexpectativa em todos os lados".

Esse aumento do ritmo de trabalho deve-senão somente aos novos equipamentos introdu-zidos nos postos de trabalho, telefax, por exem-plo, mas também à visão mágica criada emtorno dessa nova tecnologia. Acredita-se quepor se tratar de um trabalho automatizado de-ve ser mais rápido, fácil e perfeito, pois o com-putador é muito rápido, faz o trabalho pesadoe, acima de tudo, nunca erra. Ao homem, ou,no nosso caso, à mulher, resta apenas apertarum botão e tudo estará resolvido eficientemen-te. Entretanto, a realidade é muito distinta ...

"Aí a gente encontra uma certa barreira porparte dos chefes, porque eleejaiam o seguinte: Ah!mas está lá no computador. E só alterar os números,em dois minutos você faz isso! E não é bem assim,pois às vezes por causa duma linha que você acres-centa muda toda a formatação do documento".

Além de não ser um trabalho simples, exe-cutável"em dois minutos", essa visão mágicada automação não leva em conta que asatribuições de uma secretária não se reduzemao processamento de textos ou a atividadescomputadorizadas. Outras tarefas, como porexemplo atender telefone, superpõem-se a es-tas permanentemente. Na verdade, por detrásdessa visão mágica da automação está, tam-bém, a desconsideração das "qualificações in-visíveis" de tais trabalhadoras.

Com a automação, ocorre ainda um au-mento do volume de trabalho a ser executa-do, principalmente quando as secretárias es-tão organizadas em um pool.

"Então tivemos que abrir mão de uma se-cretária, de um elemento humano, em virtude daautomação que houve. Já que isso facilitava tanto,então não era necessário ter cinco secretárias, qua-tro já seriam suficientes e foi o que foi feito".

"As coisas são muito mais fáceis. As cópiascarbono, hoje em dia, estão à parte. Agora, poroutro lado, o volume de trabalho cresce".

"O serviço sai mais rápido, apesar de quemuitas coisas que não se faziam antigamente sãofeitas agora".

Novas tecnologias e a questão do gênero: a automação e as secretárias

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27. CARTER, V. J. "OfficeTechnology and Relations ofControl in Clerical Work Or-ganizations". In: WRIGHT, B.D. (org.), Women, Work,afJd. Technology - Transfor-metions. Ann Arbor, TheUniversity of MichiganPress, 1987, p. 203.28. Monitoração eletrônicado trabalho é a coleta, ar-mazenamento, análise eapresentação de informa-ções sobre a produtividade eas atividades dos funcio-nários. A qualquer momen-to, em um local remoto, po-de-se saber quanto um(a)determinado(a) trabalha-dor(a) produziu, Quantasvezes foi ao banheiro ou rea-lizou alguma pausa.

RAE NOVAS TECNOLOGIAS E A QUESTÃO DO GÊNERO

Um outro aspecto problemático que encon-tramos na análise dos efeitos da automaçãono trabalho das secretárias é a questão docontrole. Segundo Carter, "entre os traba-lhadores de escritórios, e especialmente entre se-cretárias, as questões de controle e autonomia noposto de trabalho são complicadas tanto con-ceitualmente, como em termos de encontrarmosum meio concreto de estudá-los "27. Em nenhummomento da pesquisa foi mencionada aexistência de monitoração eletrônica do traba-Iho2B

• Mesmo assim, não podemos afirmar quetal controle não exista, pois, muitas vezes, amonitoração é feita sem o conhecimento do(a)trabalhadoría). Com relação a essa questão,pudemos observar que o grau do controle es-tá diretamente relacionado à relação chefe-se-cretária. Quanto mais autoritária e patrimonial

for essa relação, maior será o controle a queserá submetida a secretária.

Entretanto, se o controle no posto de tra-balho é de difícil análise, o controle sobre astarefas a serem executadas é facilmente ob-servável. Com a automação, as secretárias tor-nam-se dependentes do computador para arealização das suas tarefas.

"Você depende do equipamento".

"Eu faço tudo com ele, se não tiver o micro eumorro em só uma hora. Você fica meio incapaz deviver sem, quando o meu micro quebra, eu quebrotambém e daí o fluxo continua".

"Não dá nem para explicar, a gente já se acos-tumou tanto com o trabalho automatizado que não

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NOVAS TECNOLOGIAS E A QUESTAo DO GtNERO RAE

29. Tempo de resposta édefinido como o tempo mé-dio entre a pressão da teclae a resposta e/ou caracteraparecer na unidade de saí-da de dados com a qual es-tamos trabalhando. Essetempo em que o operadorespera a resposta é variável,de acordo com a parte ondese encontra a seqüência dodiálogo.30. JOHANSSON, G. &ARONSSON, G. "Stress Re-actions in Computerized Ad·ministrative Work". Journalof Occupational Beheviout,5:159·181, 1984.

31. Idem, ibidem.

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dá nem para lembrar como era trabalhar do outrojeito".

"Eu não sei mais viver sem isso. Eu recebi umconvite para trabalhar em outras empresas que es-tavam começando a ter micro. Não dá!".

Essa dependência é extremamente prejudi-cial às secretárias, não só por dificultar a mo-bilidade entre empregos, mas sobretudo emvirtude de dois grandes problemas relaciona-dos ao trabalho administrativo automatiza-do: o tempo de resposta e a quebra deequipamentos.

O tempo de resposta" e a quebra deequipamento acabam impondo o ritmo de tra-balho às secretárias, que desta forma perdemo controle sobre ele. O tempo de resposta, namaioria das vezes, é muito alto, em função deproblemas com as telecomunicações, quanti-dade de usuários no sistema, tipo de operaçãoque está sendo realizada etc. Esses fatores sãoaleatórios e por isso estão totalmente fora docontrole das secretárias. "Em tais situações osempregados não podem dizer se o 'silêncio' foi cau-sado por uma carga elevada de trabalho ou se o sis-tema caiu?". A espera que o tempo de respostaimplica é um dos principais aspectos nega-tivos de automação apontados pelas se-cretárias, como se observa em suas falas:

"O que tem de mais negativo no sistema au-tomatizado é que o seu tempo de resposta é lento,você acaba de terminar o programa e, devido à so-brecarga na rede, ele acaba sendo lento e isso àsvezes empata o seu tempo".

"Devido à sobrecarga da rede você tem que es-perar muito para conectar e entrar na rede, ou en-tão esperar muito para poder ter a sua resposta".

"O tempo de resposta é ruim. É um tempo maisdemorado para você obter a resposta no sistema deum assunto que você envia. Aqui o processo é maislento porque as linhas telefônicas da região são su-percarregadas" .

A satisfação de realizar suas tarefas demaneira rápida e eficiente, de acordo com asexpectativas da chefia, muitas vezes, é preju-dicada por tempos de resposta demorados;eles não podem ser considerados comopausas para descanso das secretárias, pois háum acúmulo de trabalho e de pressão para arealização das tarefas. Mas é, sobretudo, avariabilidade e a imprevisibilidade que tor-nam os tempos de resposta uma grande fontede ansiedade e stress ocupacional.

A quebra dos equipamentos é tambémmuito prejudicial ao trabalho das secretárias,

principalmente em virtude da dependênciaque se cria dessas máquinas.

"De repente, você está no fim, aí entra um ar-quivo que você passou um dia inteiro datilografan-do, aí você fica doida e quer subir pelas paredes eisso já me aconteceu. O micro trava e não dá nempara você salvar o que já fez. Mas isso é uma sín-cope que você passa por cima do micro quando dáessa merda. Aí você dá uma respirada funda, dáuma passeadinha, toma alguma coisa e volta parao micro porque você não pode fazer nada. Infeliz-mente isso acontece" .

"Você fica dependente, sem sua produção, é lin-do! Você chega para o chefe e diz: quebrou e tá tu-do lá. Ele tem um ataque. Sério, porque está tudolá, mesmo que eu queira fazer uma coisa referenteao meu trabalho, a maior parte está tudo lá, entãoeu começo a chorar pelo micro do vizinho (...) Vocêestabelece uma rotina dependendo desses novosprodutos e de repente pifa e aí você entra em pâni-co, porque você marcou que tal hora, tal coisa vaiestar em tal lugar e não vai estar porque amáquina não funciona".

"Quando quebram e não vem técnico. Você ficamaluca para vir o técnico que não aparece, aí televam o micro embora: Te trago daqui a dois dias,trazem depois de um mês, você fica louca".

A quebra de equipamentos, como pude-mos observar, é freqüente no trabalhoautomatizado das secretárias, seja no Brasil,seja em outros países. E, como nos mostramJohansson e Aronsson, "o maior problema rela-cionado com o conteúdo e quantidade de trabalhojunto aos terminais de vídeo recai sobre as quebrasimprevisíveis de equipamento, que ainda ocorremcom freqüência nos sistemas de computador, váriosanos após a sua introdução (...) As quebras equedas dos sistemas constituem-se num apreciávelesforço mental (. ..) e afetam a carga de trabalhonão só quando elas ocorrem, mas também quandonão ocorrem. A ameaça da quebra está constante-mente presente">.

Para resolver o problema da quebra doequipamento, as secretárias buscam o auxíliode outras secretárias no empréstimo deequipamentos, o que acaba gerando uma so-brecarga no trabalho destas últimas.

Devemos deixar claro, todavia, que, mes-mo apresentando problemas, as secretáriasna sua totalidade preferem os sistemas au-tomatizados. Muitas razões podem ser apon-tadas para a explicação dessa aprovaçãounânime da automação de escritórios pelassecretárias. Segundo Murphree, esse entusi-asmo pelas novas tecnologias se dá em vir-tude da publicidade intensa existente em

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torno das novas tecnologias, pois "muitas se-cretárias interpretam esse entusiasmo e encoraja-mento para referir-se a que todo o trabalho de es-critório tornou-se High Tech e esperam que lhessejam dadas chances de executar um trabalhomais desafiante, que aprimorem suas qualifi-cações, que recebam melhores salários e haja as-censão organizacional?".

A automação de escritórios, por sua vez,facilitou o trabalho das secretárias, ao elimi-nar uma parcela do trabalho repetitivo, com aintrodução dos processadores de texto, quedispensam as secretárias de redatilografaremos textos.

teressantes e mais qualificadas, na verdadenão se realiza. O que podemos observar é umaumento do ritmo e do volume de trabalho,que acaba impedindo o desenvolvimento dassecretárias no seu "tempo livre", que nãopassou a existir.

Segundo Barker e Downing, a utilizaçãodos processadores de texto é uma forma de seelevar o ritmo do trabalho através da elimi-nação de uma certa "cultura de resistência"das secretárias, que lhes possibilitava um cer-to controle sobre o ritmo do trabalho. Trata-sede uma cultura "que é contraditória, aparente-mente opressiva, mas que ao mesmo tempo contémsementes de resistência">, Para as autoras emquestão, a imagem criada em torno das se-cretárias, de mulheres que estão preocupadascom as unhas, com o cabelo e que conversamsobre "futilidades de mulher" é utilizadapelas secretárias na criação de uma cultura in-formal em que os padrões masculinos nãotêm espaço. Nas suas próprias palavras,"constitui-se um mundo onde os patrões e seussubordinados não podem penetrar, (...) permitindoàs mulheres a liberação de certas tareias"", possi-bilitando um certo controle sobre o tempo detrabalho.

Além disso, no escritório não-automatiza-do existem inúmeras maneiras de as se-cretárias controlarem o seu tempo: ir ao xeroxbuscar cópias, ir ao almoxarifado buscar ma-terial de escritório. Segundo Barker e Down-íng", até mesmo fazer tarefas consideradasfemininas (por exemplo: fazer café, molhar asplantas), que podem reforçar o papel ide-ológico da "esposa do escritório", é uma for-ma de não ficar o tempo todo datilografandoe de ter maior flexibilidade na utilização doseu tempo de trabalho. Os processadores detexto possibilitam a redução ou a eliminaçãodesse tempo "não produtivo" através dasubstituição de um controle patriarcal poroutro controle mais direto.

Isso fica mais evidente quando se vê que osprocessadores de texto, juntamente com a au-tomação de escritórios, possibilitaram oaparecimento de uma nova forma de organi-zação do trabalho das secretárias: o pool de se-cretárias",

Essa nova forma não tem obtido sucesso,na maioria das organizações onde tem sidoimplementada, pois além de aumentar o rit-mo do trabalho através de um controle rígidopelo qual todo o tempo é transformado emtempo de trabalho, a organização em pooltambém traz algumas ambigüidades, princi-palmente com relação à chefia, que inviabi-liza, muitas vezes, a sua implementação, co-mo nos mostra Murphree".

Na verdade, trata-se de um processo de

"Quando você fazia um texto numa máquinade datilografar, se você errava, o chefe tem maniade ir lá e rabiscar tudo, então você tem que refa-zer realmente, poucas são as pessoas que vão lácom cuidado - olha vamos apagar aqui, você vaiconsertar - então você perdia um tempoenorme; no micro, no processador de texto vocêconsegue trocar textos de lO, 15, 20 páginas emsegundos, principalmente hoje em dia, que cadavez ficam mais rápidos os softs (...) Você nãoperde tanto tempo escrevendo, datilografando eerrando".

"O sistema é superprático, você desfaz, faz, au-menta o texto, mexe aqui, mexe ali (...) Acho que acoisa torna a sua vida muito mais prática, maiságil, rápida, você não fica perdendo tempo com de-talhes, cola aqui, passa tintinha, isso tudo foiabolido com a automação".

32. MURPHREE, M. C. "NewTechnology and Office Tradi-tion: The Not-So-ChangingWorld of the Secretary". In:HARTMANN, H. et alii. Op.cit., p. 101.

33. SCHNEIDER, L. Words,Words, Words. How WordProcessing Vendors SellTheir Wares in Norway. Nor-way, IFIM, 1982 (mimeo).34. BARKER, J. & DOWN-ING, H. Op. cit., p. 82.

35. Idem, ibidem, p. 83.

36. Idem, ibidem, p. 84.

37. Um pool de secretárias éum grupo de secretárias,geralmente quatro ou cinco,supervisionadas por umacoordenadora que mantémos contatos pessoais comos executivos. Cada poolatende a um número de exe-cutivos variável (no mínimoseis), e cada secretária seespecializa num determina-do tipo de tarefa.

38. MURPHREE, M. C. Op.cit.

Nesse sentido, a automação de escritórios,realmente, facilitou o trabalho das secretárias.Entretanto, devemos salientar que a utilizaçãodos processadores de texto possui alguns as-pectos que podem ser muito problemáticospara as secretárias. Segundo Schneider", exis-tem algumas discrepâncias entre o que dizemos vendedores de processadores de texto e asua aplicação prática. Em primeiro lugar, em-bora sejam considerados como uma nova tec-nologia que veio eliminar o trabalho repetiti-vo, chato e monótono de homens e mulheres,os processadores de texto, que são usadosatravés de terminais e monitores de vídeo,apresentam novos riscos físicos e mentais:problemas de visão, problemas de repro-dução, problemas musculares, dores de ca-beça, dermatites etc. sem falar do stress causa-do por quebra de equipamentos e tempo deresposta.

Em segundo lugar, a promessa de que osprocessadores de texto iriam melhorar ascondições de trabalho das secretárias, possi-bilitando um aumento do tempo livre que se-ria utilizado na realização de tarefas mais in-

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39. HOWARD, R. Brave NewWorkplace. New York, Pen-guin Books, 1987, p. 75.40. DEJOURS, C. A Loucurado Trabalho. São Paulo,Oboré, 1987, p. 49.41. SCHMITZ, H. Op. cit.

42. Este trabalho faz partede um projeto de pesquisa AAutomação e o Trabalho dasMulheres aprovado no VConcurso Nacional de Do-tações para Pesquisa sobreMulher Brasileira, realizadopela Fundação Carlos Cha-gas. Agradeço ao NPP-Nú-cleo de Pesquisas e Publi-cações da EAESP/FGV querefinanciou esse projeto depesquisa.

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desqualificação das secretárias onde a re-lação chefia-secretária é eliminada e as"qualificações invisíveis" são desconside-radas. As secretárias são reduzidas a merasdatilógrafas e aquelas que possuem maiorexperiência profissional, na maioria dasvezes, não se submetem a esse processo dedesqualificação.

"Já foi tentado fazer pool de secretárias e serdistributdo o trabalho, não funciona porque vocêtem que dar uma continuidade nele. Você não podecomeçar ... eu começo um trabalho, ai amanhã vocêcontinua, você não sabe onde eu parei, o que acon-teceu, o que eu falei com as pessoas, qual foi a se-qüência. No processador de texto até funcionaria,tá? Mas uma secretária não faz só processamentode textos".

"Quando mudou para o pool, tinha as se-cretárias novas e um novo estilo de banco. As se-cretárias antigas de banco, não teve uma que nãodeu problema, elas ficaram insatisfeitas, achandoque eram só datilógrafas, porque a coordenadoracuidava de todos os executivos e nós só faz(amos oserviço de datilografia (...) Então foi uma insatis-fação geral. Todas as secretárias antigas pediramdemissão".

Os pools de secretárias são um exemplo denão compreensão e não consideração dasqualificações dos trabalhadores envolvidosnum processo de automação. "A maioria dosadministradores de tecnologia, armados com osprincfpios do taylorismo, concentram-se nos pro-cedimentos formais do trabalho de escritório e con-sideram o dominio das ações informais como um'problema', parte da ambigüidade obstinada dotrabalho de escritório que deve ser 'racionalizado',eliminado, ou, quando isso não é posstoel, ignora-do. Freqüentemente, o resultado final é a criaçãode sistemas tecnológicos rigidos que violam a prin-cipal lógica que eles supostamente deveriam au-tomatizar?".

As secretárias com mais experiência, ca-pazes de perceber essa violação da lógica doseu trabalho, pediram demissão, pois nessasituação a desqualificação do trabalho semostra de maneira muito evidente, provo-cando sofrimento, em virtude da insatis-fação com o conteúdo das novas tarefas. "Acerteza de que o nioel atingido de insatisfaçãonão pode mais diminuir marca o começo dosoirimento':".

Temos, no caso das secretárias "antigas", oque Dejours chama de uma "vivência depres-siva", onde se conjugam o sentimento de in-dignação, por causa da mecanização do tra-balho, e o sentimento de inutilidade, porcausa da desqualificação.

As secretárias "novas" não passaram pe-lo mesmo processo, pois como nos adverteSchmitz", só podemos falar em desqualifi-cação, quando a qualificação existe previa-mente e o/a trabalhadoría) deixa de pos-suí-la.

CONCLUSÃOPodemos observar que houve um aumento

significativo do ritmo de trabalho das se-cretárias, em virtude da automação. Essa so-brecarga quantitativa de trabalho traz algu-mas conseqüências negativas, principalmentepara as mulheres. Em primeiro lugar, aumen-ta o stress ocupacional nesse posto de trabalhoe implica em inúmeros problemas relaciona-dos à saúde física e mental das secretárias.

Em segundo lugar, o aumento do ritmo detrabalho associado a um aumento no volumede trabalho, como pudemos observar, provocaum quantum de desemprego, seja por umcrescimentosem empregos (Jobless Growth), sejapor uma diminuição dos quadros funcionais.Aautomação de escritórios,dessa forma, no nívelmicro provoca o desemprego, que afetará maisas mulheres, pois estamos tratando de um car-go tipicamente feminino. Entretanto, em vir-tude das dificuldades teóricas e metodológicasjá apontadas, não é possível fazermos genera-lizações macroeconômicas,nem estimativas dequantos cargos de secretária deixaram de exis-tir em virtude da automação.

Além disso, há uma grande pressão sobreas trabalhadoras para que as tarefas sejamrealizadas com rapidez e perfeição. Grandeparcela dessa pressão se deve à visão mágicaexistente em torno da automação na nossa so-ciedade, que acaba invertendo a ordem, per-mitindo que a máquina imponha o seu ritmode trabalho às pessoas e criando uma de-pendência inaceitável dos equipamentos au-tomatizados.

Finalmente, aqui no Brasil, podemos con-cluir que as mulheres também. serão maisafetadas pela automação, pois a mão-de-obrafeminina também se encontra segregada nosetor terciário, onde a automação começa ase intensificar nos últimos anos. Sendo as-sim, teremos e já estamos tendo um maiornúmero de mulheres passando por uma re-organização de seus postos de trabalho. Essareorganização dos trabalhos das mulheressempre implicará numa mudança qualitati-va, nem sempre positiva, como pudemos ob-servar no caso das secretárias, e numa mu-dança quantitativa que, se não podemos esti-mar globalmente, podemos observar em ní-vel micro, como no caso das secretárias: apresença do desemprego". O

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