especial bicentenÁrio entre cultura e civilização: um ... · projetos formulados e empreendidos...

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92 ESQUERDA PETISTA #11 - Setembro 2020 O objetivo deste texto é dialogar o conjuntural com o estrutural, buscando discutir as concepções sobre cultura e identidade nacional no interior dos projetos formulados e empreendidos pelos grupos dominantes do país, reconhecendo traços de continuidade entre Araújo(s) e Bolsonaro(s) ao longo da nossa trajetória enquanto Estado e Nação Em 3 de janeiro de 2019, Ernesto Henrique Fraga de Araújo assumiu oficialmente o cargo de Ministro das Relações Exteriores do Brasil. Em seu discurso de posse, afirmou que um dos objetivos de Jair Bolsonaro seria o de “reconquistar o Brasil e devolver o Bra- sil aos brasileiros”. Marcas de valoriza- ção de uma cultura judaico-cristã, da tradição greco-romana, citações em la- tim foram algumas das características dessa comunicação. Fernando Pessoa, D. Sebastião, Dom Quixote, José de Anchieta estiveram na lista de figuras históricas, reais ou mitificadas, reuni- das e enaltecidas numa única interven- ção de abertura dos trabalhos. O mesmo Araújo, em “Trump e o Ocidente”, defendeu que o conceito de Civilização Ocidental estaria relacio- nado com a existência de um passado simbólico, uma história e uma cultura enquanto pilares fundamentais. Em sua perspectiva, o Ocidente represen- taria uma construção de quase três milênios, sendo uma “enorme mas- sa de palavras e sentimentos, ideias e crenças”, da qual estaria o Brasil igado pela sua formação histórica a partir de Portugal. O leitor que, por ventura, tomar tais escritos de maneira isolada, prova- velmente venha a se surpreender nega- tivamente com a construção argumen- tativa, os termos mobilizados e a exis- tência desse tipo de análise para a con- juntura brasileira. Contudo, enquanto uma matriz ideológica do bolsonaris- mo, esse tipo de pensamento, chama- do comumente de Anti-Globalista, ex- pressa um conjunto de concepções não necessariamente inéditas quando olha- das a partir de uma retrospectiva sobre o imaginário das elites brasileiras. Diante disso, meu objetivo é dialo- ar o conjuntural com o estrutural. Bus- carei discutir as concepções sobre cultu- ra e identidade nacional no interior dos projetos formulados e empreendidos pelos grupos dominantes do país, reco- nhecendo traços de continuidade entre Araújo(s) e Bolsonaro(s) ao longo da nossa trajetória enquanto Estado e Na- ção. A retomada das discussões sobre o pertencimento do país a entidades mais amplas sustenta também práticas e concepções arcaicas e de continuida- des com o período colonial, enraizadas em nossas estruturas políticas, sociais e culturais ao longo de quase dois séculos de independência, encontrando adep- tos inclusive entre os setores populares. por Mateus Santos Entre cultura e civilização: um nacional de arcaísmos e autoritarismos BICENTENÁRIO ESPECIAL

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Page 1: ESPECIAL BICENTENÁRIO Entre cultura e civilização: um ... · projetos formulados e empreendidos pelos grupos dominantes do país, reco-nhecendo traços de continuidade entre Araújo(s)

92 ESQUERDA PETISTA #11 - Setembro 2020

O objetivo deste texto é dialogar

o conjuntural com o estrutural,

buscando discutir as concepções

sobre cultura e identidade

nacional no interior dos projetos

formulados e empreendidos

pelos grupos dominantes do

país, reconhecendo traços de

continuidade entre Araújo(s) e

Bolsonaro(s) ao longo da nossa

trajetória enquanto Estado e Nação

Em 3 de janeiro de 2019, Ernesto Henrique Fraga de Araújo assumiu oficialmente o cargo de Ministro das Relações Exteriores do Brasil. Em seu discurso de posse, afirmou que um dos objetivos de Jair Bolsonaro seria o de “reconquistar o Brasil e devolver o Bra-sil aos brasileiros”. Marcas de valoriza-ção de uma cultura judaico-cristã, da tradição greco-romana, citações em la-tim foram algumas das características dessa comunicação. Fernando Pessoa, D. Sebastião, Dom Quixote, José de Anchieta estiveram na lista de figuras históricas, reais ou mitificadas, reuni-das e enaltecidas numa única interven-ção de abertura dos trabalhos.

O mesmo Araújo, em “Trump e o Ocidente”, defendeu que o conceito de Civilização Ocidental estaria relacio-nado com a existência de um passado simbólico, uma história e uma cultura enquanto pilares fundamentais. Em sua perspectiva, o Ocidente represen-taria uma construção de quase três milênios, sendo uma “enorme mas-sa de palavras e sentimentos, ideias e crenças”, da qual estaria o Brasil igado pela sua formação histórica a partir de Portugal.

O leitor que, por ventura, tomar tais escritos de maneira isolada, prova-velmente venha a se surpreender nega-tivamente com a construção argumen-tativa, os termos mobilizados e a exis-tência desse tipo de análise para a con-juntura brasileira. Contudo, enquanto uma matriz ideológica do bolsonaris-mo, esse tipo de pensamento, chama-do comumente de Anti-Globalista, ex-pressa um conjunto de concepções não necessariamente inéditas quando olha-das a partir de uma retrospectiva sobre o imaginário das elites brasileiras.

Diante disso, meu objetivo é dialo-ar o conjuntural com o estrutural. Bus-

carei discutir as concepções sobre cultu-ra e identidade nacional no interior dos projetos formulados e empreendidos pelos grupos dominantes do país, reco-nhecendo traços de continuidade entre Araújo(s) e Bolsonaro(s) ao longo da nossa trajetória enquanto Estado e Na-ção. A retomada das discussões sobre o pertencimento do país a entidades mais amplas sustenta também práticas e concepções arcaicas e de continuida-des com o período colonial, enraizadas em nossas estruturas políticas, sociais e culturais ao longo de quase dois séculos de independência, encontrando adep-tos inclusive entre os setores populares.

por Mateus Santos

Entre cultura e civilização: um nacional de arcaísmos e autoritarismos

BICENTENÁRIOESPECIAL

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Ao tentar investigar os arcaísmos socioculturais e a influência do neoco-lonialismo, passearei pelo campo dos costumes, da História, das relações so-ciais, da política internacional e tam-bém de concepções de nação. Afinal, se Cultura, segundo Fernand Braudel em Civilização Material, Economia e Ca-pitalismo, é “espírito, estilo de vida em todos os sentidos do termo, literatura, arte, ideologia”, composta por uma verdadeira “multidão de bens, mate-riais e espirituais”, um difícil esforço de caracterização sobre suas naturezas leva ao reconhecimento de suas inter-secções com as mais diferentes esferas da realidade.

Sociedade da escravidão e do privilégio

“Não se escapava da Escravidão”. Com essa afirmação, a antropóloga Li-lia Schwarcz no livro Sobre o Autorita-rismo Brasileiro salientou o aspecto da presença do sistema escravocrata em todas as esferas da sociedade brasileira. Suas implicações para a constituição do Estado e da Nação foram tamanhas. Nos idos do século XVII, Padre Antô-nio Vieira, citado pelo historiador Luiz Felipe de Alencastro em O Trato dos Vi-ventes, defendia a escravidão sob um ponto de vista regenerador. Por meio do tráfico, operava-se supostamente um processo de desenraizamento e “dessocialização”, retirando o sujeito de uma situação considerada “pagã”

e inserindo-o no autoproclamado “Novo Mundo”, uma extensão ideali-zada de um mundo europeu também idealizado.

Neste processo, de clara negação da História e da Memória dos sujei-tos escravizados, suas presenças quan-titativas e qualitativas foram desafios na construção do dito Brasil indepen-dente, a partir dos projetos das elites. Com olhares para trás (a experiência colonial) e para cima (o referencial europeu), as concepções de uma na-ção modernizada estavam enraizadas a partir da negação da própria expe-riência histórica do país. A escravidão, enquanto base político-formativa do Estado e da sociedade, encontrou-se numa situação contraditória, represen-tando, ao mesmo tempo, um perigo ao projeto de Brasil do século XIX, uma “extensão” europeia nos trópicos, mas um mal necessário, ao ser considerado por Bernardo Pereira Vasconcelos, en-quanto uma responsável pela civiliza-ção do país.

Sob essa perspectiva ambígua, a constituição de uma nação, de um Es-tado e de uma sociedade supostamen-te independente se deu nos marcos de uma permanência de uma depen-dência sociocultural e econômica, das tentativas de reproduções ou adapta-ções de hierarquias oriundas da colo-nização e de uma concepção de mun-do eurocêntrica. Exemplos não faltam para validar tal constatação. Um deles, durante o século XIX, desde ao menos o período Joanino e com maior força durante o Segundo Reinado, foi o cres-cimento no número de concessões de títulos de nobreza e ordens, evidentes marcadores de distinção social e atri-

Vendedor de flores e de fatias de coco. Aquarela sobre papel de Jean-Baptiste Debret

Domínio público, Museus Castro Maya

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buição de prestígio. Ainda que diante de um modus operandi diverso daquele existente nas sociedades europeias, du-ques, marqueses, condes, viscondes e demais títulos, comuns ao universo do Velho Mundo, foram transpostos para esta parte das terras ameríndias, sendo mais um elemento de fomento das de-sigualdades e constituidor de lugares sociais específicos.

Mesmo em 2020, este distante pas-sado se torna paradoxalmente vivo quando nos deparamos com as posi-ções de prestígio e marcas de suposta autoridade em nossa sociedade. Ter-mos como “doutor” e “doutora”, mes-mo não sendo categorias nobiliárqui-cas, fizeram e ainda fazem parte de um imaginário popular cristalizado, nor-malmente estando relacionado a um tipo de tratamento destinado àque-les e aquelas que, num determinado meio, são considerados os notáveis in-telectual ou politicamente. Entre uma nobreza forjada e as permanências de posições de proeminência na atualida-de, observamos formas de produção e reprodução de hierarquias, sustentadas a partir de uma sociedade que tem a desigualdade como um aspecto estru-tural e estruturante desde os seus pri-mórdios.

Ainda nos paralelos entre um on-tem e um hoje, o desenvolvimento de uma civilização tropical nos revela outra face dessa mesma tendência de negação da nossa trajetória e perma-nência da segregação como um proje-to político de coesão das elites. A pro-dução de uma Paris no Rio de Janeiro das Cortes Imperiais era apenas uma peça de um xadrez que convergia uma forte tentativa de apagamento da afri-

canidade no Brasil, da influência dos povos indígenas e da própria experiên-cia colonial enquanto forjadora de um país. No processo de escrita de uma História do Brasil nos marcos do Ins-tituto Histórico e Geográfico (IHGB), o mito das três raças representou não somente uma forma de olhar o passa-do, mas uma verdadeira maneira de fazer o presente e aspirar a um tipo de futuro, ao negar a condição de sujeito histórico dos explorados.

A produção de uma Paris no Rio de Janeiro das Cortes Imperiais era apenas uma peça de um xadrez que convergia uma forte tentativa de apagamento da africanidade no Brasil, da influência dos povos indígenas e da própria experiência colonial enquanto forjadora de um país

Essa mesma maneira de olhar o passado ainda predomina, tornan-do-se uma verdadeira amarra episte-mológica. No imaginário popular, ao falarmos de uma trajetória do Brasil, narrativas paradoxalmente impopula-res, isto é, individualizadas ou elitiza-das ainda predominam. Mesmo com a lei 10.639, a valorização do ensino de História enquanto objeto de pesqui-sa e reflexão, a ampliação no acesso à educação e tantas outras medidas que

BICENTENÁRIO 18222022ESPECIAL

A Rua Direita, principal artéria do Rio de Janeiro do período colonial. Gravura a lápis aquarelado de Thomas Ender, 1817-1818

Domínio público, Academia de Artes de Viena

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poderiam acarretar uma caminhada de desconstrução daquilo que parecia incontestável ou chancelado enquanto verdade absoluta, não trouxeram os resultados esperados. Entre Borba Ga-to[s], Getúlio[s] Vargas, Dom Pedro[s], Marechai[s] Deodoro[s] e Dom Sebas-tião, ainda lutamos para a promoção do devido reconhecimento a Abdias do Nascimento, Zumbi dos Palmares, André Rebouças, Luiz Gama, Teresa de Benguela e tantas outras figuras que merecem ser chamadas e consideradas como parte de uma História do Brasil.

O mito da cultura nacional

Desafiando-se em conceituar o termo “nação”, Hélio Jaguaribe, em O Nacionalismo na Atualidade Brasileira, apontou para a existência de condições objetivas e subjetivas em sua confor-mação. Dentre os elementos encarados como “objetivos”, a cultura foi encara-do como um complexo somatório en-tre a “cosmovisão básica de um povo, a

língua e demais meios de significação e comunicação”, sendo um dos elemen-tos mais essenciais numa formação nacional. Neste sentido, seu lugar na constituição dos projetos de poder não pode ser menosprezado.

Até agora, a produção da História do Brasil e a construção de elementos de distinção social e cultural foram verdadeiras janelas que dão acesso a um problema ainda mais profundo. Os projetos de modernização e cons-trução de uma coletividade chamada Brasil estiveram sob as bases arcaicas e referências exteriores durante o século XIX. Contudo, a emergência de uma República que não rompeu estrutural-mente com tais características formati-vas deu segmento a um processo de ex-clusão sociocultural e reforço dos laços de dependência, com implicações em diferentes ramos da sociedade.

Essa breve fase de nossa reflexão se inicia nos portos. Foram neles que, diante da maior onda migratória da História Contemporânea, europeus

deixaram seu continente, recebemos não apenas braços de mão-de-obra, mas a materialização de um projeto de nação. Não foram apenas as inserções na agricultura e na indústria nascen-te que motivou o empreendimento importador de pessoas, mas a crença na alteração do quadro racial e social. À luz do racismo científico, negros e mestiços foram condenados ao desapa-recimento social, cultural, econômico e até potencialmente físico. Nas dico-tomias entre uma sociedade idealiza-da a partir de padrões eurocêntricos e uma realidade africanizada, forjada na escravidão, atabaques, capoeira e tantas outras manifestações foram con-sideradas casos de polícia, num amplo esforço de negação das origens e do protagonismo do continente negro na formação social brasileira.

Na pouco democrática República Brasileira, autoritarismo e cultura na-cional continuaram a andar de mãos dadas. Em nome da defesa de um tipo de fé, de um modo de vida e de um

Na pouco democrática República Brasileira, autoritarismo e cultura nacional

continuaram a andar de mãos dadas. Em nome da defesa de um tipo de fé, de um

modo de vida e de um tipo de organização social, massacres como a Guerra de Canudos marcaram negativamente

esta trajetória. Naquela ocasião, o forte sertanejo narrado por Euclides da Cunha foi

também condenado pela sua cultura, isto é, por desenvolver uma forma de inserção

social bastante própria

Flávio de Barros / Acervo Museu da República

400 prisioneiros em Canudos, 1897

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tipo de organização social, massacres como a Guerra de Canudos marcaram negativamente esta trajetória. Naque-la ocasião, o forte sertanejo narrado por Euclides da Cunha foi também condenado pela sua cultura, isto é, por desenvolver uma forma de inserção social bastante própria. O “fanatismo” atribuído aos homens e mulheres de Belo-Monte, liderados por Antônio

Conselheiro, não seria uma maneira de negar-lhes o direito ao exercício da religião a partir de sua experiência de vida? Em nome de uma espécie de enquadramento religioso, além de in-teresses outros, fez de uma parte do Sertão da Bahia virar pó, alvo de exal-tação por determinados segmentos in-teressados em negar-lhe a sua natureza de resistência.

Nos encontros e desencontros da História, a atualidade brasileira pro-duz novos Canudos e novos projetos de construção nacional a partir de princípios excludentes. Os novos serta-nejos hoje são representados por aque-les e aquelas que são alvo da intole-rância religiosa, como os movimentos de invasão aos terreiros e negação da religiosidade afro-brasileira ou mesmo manifestações islamofóbicas, ambas fruto de estereótipos cristalizados no imaginário de uma parcela significati-va da sociedade, aprofundados em con-textos políticos como o atual.

Na relação entre imigração e cul-tura, houve um retrocesso significativo nas políticas migratórias brasileiras, além da continuidade nas discrimina-ções contra venezuelanos, haitianos e outras nacionalidades presentes nos últimos anos. Em contrapartida, uma desproporcional política de portas abertas aos estadunidenses, represen-tando uma contradição frente à ten-dência restritiva daquele país em rela-ção aos demais povos americanos ao sul do Rio Bravo.

A luta por uma cultura nacional avançou ao longo de nossa História. Considerando o contexto político a partir dos anos 30, em meio a uma efervescência política e social, novos contornos nessa trajetória produziram marcas ainda visíveis na atualidade. Em Casa Grande & Senzala, publicado em 1933, Gilberto Freyre começou a desenhar um Brasil da harmonia ra-cial, da singularidade da experiência histórica e do louvor à miscigenação. Sem abandonar os determinismos ra-cistas, o autoproclamado “menino de engenho” pensou uma narrativa de

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Em Casa Grande & Senzala, publicado em 1933,

Gilberto Freyre começou a desenhar um Brasil da

harmonia racial, da singularidade da experiência

histórica e do louvor à miscigenação

Ilustrações do livro “Casa Grande&Senzala em quadrinhos” (Editora Global)

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Brasil a partir do encontro entre cultu-ras hierarquizadas, cujos lugares políti-cos e sociais também estariam relacio-nados com tal condição.

Mais do que uma interpretação de país, o pensamento freyreano reforçou os laços entre Brasil e Portugal. A idea-lização da experiência colonial brasilei-ra contribuiu tanto para uma concep-ção benigna da escravidão como tam-bém para uma defesa da singularidade do empreendimento lusitano. Este apego a um passado completamente deturpado levou ao Brasil defender abertamente o moribundo Império Português até seus últimos momentos de vida nos anos 70. Apesar da derro-cada de tal concepção enquanto motor da inserção internacional brasileira, a crença de uma sociedade democrática racialmente ainda move algumas con-cepções exteriores sobre o Brasil, como bem alertou Kabengele Munanga em História da África e relações com o Brasil.

As sobrevivências da democracia racial, do ponto de vista cultural, estão refletidas das mais diferenças manei-ras. O apelo ao “brasileiro” enquanto uma categoria homogeneizante é re-corrente nos discursos de Jair Bolso-naro, ao se referir a negros, indígenas ou mesmo divisões regionais. A crença de uma unicidade transvestida de na-

cionalidade reforça a chamada ofensi-va cultural, negando a diversidade de identidades existentes no país, em luta, mais do que nunca, por suas afirma-ções e conquistas de direitos.

Culturas e Políticas

Ao não reconhecer a existência de fronteiras delimitadas ao político e, como René Remónd apontou, a sua possibilidade de diálogo com diferen-tes setores da atividade humana, nosso último passeio se dará no encontro en-tre Culturas e Políticas. Aqui a relação também é vasta. Em tempos de apro-fundamento neoliberal, o papel do Es-tado e as reações sociais frente a ele me parece um elemento interessante.

Dos anos 1930 pra cá, ao menos, a palavra “desenvolvimento” foi rela-cionada ao suposto interesse nacional, em muitos casos sem necessariamente dizer o que significa isso e como se che-gar a tal situação. Nesse caminhar no escuro, crescimento econômico, distri-buição de renda, reformas estruturais e tantas outras ações foram elencadas por diferentes atores políticos e inte-lectuais como parte dessa incessante busca. O papel do Estado foi um dos elementos mais polêmicos no interior dos múltiplos receituários. Seja como

um manipulador de incentivos, um organizador do processo ou outras po-sições, o lugar do público e do privado foi e a ainda continua a ser elemento de bastante divergência.

A corrupção foi mobilizada nes-se jogo. Esta que, como demonstrou Jessé Souza, vira e mexe é eleita como um dos principais problemas do país, acompanha a trajetória política brasi-leira há muitas décadas, tornando-se um problema real, mas de mobiliza-ções completamente antagônicas. Em uma das maneiras de lidar com a situ-ação, uma delas, que se tornou hege-mônica entre as elites e em boa parte dos setores populares, reside na relação entre patrimonialismo, corrupção e di-minuição do Estado. A inexistência de nítidas fronteiras entre o público e o privado, expressa na gestão da máquina pública a partir de interesses pessoais, é comumente relacionada ao chamado tamanho do Estado e suas atribuições na atividade social. Nessa perspectiva, o aparelho estatal é considerado como espaço privilegiado de uma corrupção também vista como endêmica, num problema que supostamente não teria outra solução senão cortar o mal (O Es-tado) pela sua raiz (suas atribuições).

Nessa narrativa, o combate à cor-rupção se transveste na defesa das pri-

A inexistência de nítidas fronteiras entre o público e o privado, expressa

na gestão da máquina pública a partir de interesses pessoais, é comumente

relacionada ao chamado tamanho do Estado (...) Nessa perspectiva, o aparelho

estatal é considerado como espaço privilegiado de uma corrupção também

vista como endêmica, num problema que supostamente não teria outra

solução senão cortar o mal (O Estado) pela sua raiz (suas atribuições)

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vatizações e na entrega das riquezas naturais como uma forma de equivo-cadamente salvar-lhes deste mal. Sob outra face, mas no interior do mesmo problema, a eficiência do Estado tam-bém é motor pra esse mesmo movi-mento. Em tempos de auxílio emer-gencial e no caos da distribuição do recurso, não é incomum ouvir de al-guns beneficiários estabelecerem rela-ção entre as debilidades desse processo e os bancos públicos.

“Roubalheira” ou funcionalidade, as duas faces de acusação do público pertencem frequentemente a mesma moeda da defesa da predação do se-tor privado. De forma consciente ou inconsciente, a possibilidade de con-quista e fortalecimento do Estado con-tra os mesmos corruptos é deixada de lado em favor de uma gradual entre-ga aos mesmos sujeitos, responsáveis pelo empreendimento de políticas an-tipopulares e do fosso social existente no país. Por essa via hegemônica, o combate à corrupção leva ao forta-lecimento do poder dos verdadeiros corruptores, sendo um dos principais desafios nossos a denúncia desse pro-cesso perverso.

Breves considerações finais e longos problemas

Entre um passado distante e ide-alizado, a negação da experiência re-cente e a crença de um presente em rupturas, o bolsonarismo constrói sua própria narrativa de Estado, sociedade e nação. Apesar das especificidades, muitas das questões colocadas, quando situadas sob um ponto de vista histó-rico mais profundo, não são novidades

e nem exceções, mas uma regra entre as perspectivas de projetos nacionais empreendidas pelas elites dominan-tes. Entre o ontem e hoje, formas de discriminação e negação dos agentes sociais e históricos que construíram este país foram manipuladas em prol de reflexões sobre uma cultura nacio-nal ou uma civilização de origem.

No Brasil no caminho do aprofun-damento neoliberal, da intolerância, do falseamento de seus conflitos, do apego ao passado colonial, da negação da escravidão e do racismo, da xenofo-bia dirigida a determinados povos, em contrapartida da submissão à outros, uma política de resistência passa tam-bém por uma forte inserção nos deba-tes culturais, em defesa da pluralidade das identidades brasileiras e de denún-cia ao reacionarismo representado pe-los discursos e ações do atual governo e de seus apoiadores.

Se falar de culturas implica reco-nhecer seu diálogo com diferentes as-pectos da vida social, pensar a sua capa-cidade de intersecção com o político, o econômico e outras esferas implica em refletirmos profundamente sobre quem somos e o que queremos. Pro-blematizar uma série de arcaísmos en-raizados em nossa sociedade significa iniciar a construção de um projeto de transformação social que tenha tam-bém no horizonte a transformação humana, pois, como bem demonstrou Edward Said, imperialismo e cultura andam de mãos dadas, sendo um desa-fio às forças progressistas enfrentarem as amarras ideológicas, discursivas e simbólicas que ainda jogam forte peso contra uma política de emancipação dos povos.

MATEUS SANTOS é historiador e militante do PT Bahia

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Foto: Rafael Kennedy/Mídia Ninja