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REVISTA DE MANGUINHOS | MAIO DE 2017 38 O que significa o Ano Oswaldo Cruz? Nísia Trindade Lima: O Ano Oswaldo Cruz busca ressaltar toda contribuição deste sanitarista e gran- de cientista brasileiro que teve como seu maior legado o início do proces- so de constituição da Fundação Oswaldo Cruz. Devemos sim celebrar os grandes cientistas da história bra- sileira que se comprometeram com a nação e com o bem-estar de nosso povo, o que se torna ainda mais im- portante neste momento pelo qual passa o país. Estamos um momento de profundas transformações econômicas, sociais, tec- nológicas e nas formas de organização do Estado, o que traz um enorme desa- fio para pensar o futuro. Como este é incerto, não passível de redução a cál- culos de probabilidade, o estudo e o co- nhecimento de nossa história, de nosso país, de nossa instituição e do contexto internacional tornam-se os elementos essenciais que fornecem as pistas para um projeto de futuro. O futuro não se constrói apenas a partir dos desejos abstratos. Não conseguimos pensar o Brasil sem con- I siderar que fomos um dos últimos pa- íses do mundo a abolir a escravidão e que somente recentemente foi cri- ada uma institucionalidade na qual o bem-estar passou a fazer parte de um projeto de desenvolvimento. No in- terior da Fiocruz, este legado, que aliou ciência, educação, tecnologia e saúde, foi uma conquista iniciada com Oswaldo Cruz e que passou por muitos de nossos grandes cientistas, a exemplo de Carlos Chagas. Mais recentemente, Sergio Arouca forne- ceu novos pilares para este projeto institucional, incorporando o legado de nossos “fundadores” e avançan- do para o contexto de um Estado e uma instituição democrática e com- prometida com a sociedade, o SUS e a ciência, tecnologia e inovação. Deste modo, o Ano Oswaldo Cruz é ao mesmo tempo a celebração de um legado e a assunção de um com- promisso com o futuro, tendo o bem- estar de nossa população como objetivo estratégico e as atividades de alta qua- lidade em ciência, tecnológica e ino- vação como um meio único para alcançarmos o desenvolvimento soci- al, econômico e ambiental na socie- dade do conhecimento. Quais serão os eixos temáticos do evento? Nísia: São oito: promoção da ci- ência, tecnologia e inovação em be- nefício da sociedade e a serviço da vida; a importância do papel de uma instituição pública na produção e ino- vação em saúde; Fiocruz na articula- ção do sistema de ciência, tecnologia e inovação, nas dimensões regional, nacional e global; desafios dos obje- tivos de desenvolvimento sustentável; políticas e estratégias de saúde: pas- sado, presente e futuro com perspec- tivas ao fortalecimento do SUS; preparação da Fiocruz para a 4ª re- volução tecnológica; a Fiocruz e a educação permanente; e democra- cia e perspectiva nacional na pros- pecção institucional. O que será apresentado na ex- posição a ser montada na Câmara dos Deputados? Nísia: A exposição, além de levar para nossa esfera de representação polí- tica, o maior conhecimento de nossa his- tória e de nossas grandes conquistas para a humanidade e para o país, terá o desa- fio de mostrar como o sistema Fiocruz, ESPECIAL nstituído em março de 2017, o Ano Oswaldo Cruz - 100 anos do legado de Oswaldo Cruz - O papel da ciência e da saúde no projeto nacional, vai mobilizar toda a Fundação em atividades que ocorrerão nos próximos meses. O proje- to, que tem oito eixos temáticos, também será responsável por uma exposição na Câmara dos Deputados. Em entrevista, a presidente da Fiocruz, Nísia Trindade Lima, aborda o significado do Ano Oswaldo Cruz e comenta a importância do cientista para o país. Segundo ela, o Ano Oswaldo Cruz é, ao mesmo tempo, a celebração de um legado e a assunção de um compromisso com o futuro, tendo o bem-estar da popu- lação como objetivo estratégico. Ano Oswaldo Cruz: celebração e compromisso Foto: Peter Ilicciev A presidente da Fiocruz, Nísia Trindade

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O que significa o Ano OswaldoCruz?

Nísia Trindade Lima: O AnoOswaldo Cruz busca ressaltar todacontribuição deste sanitarista e gran-de cientista brasileiro que teve comoseu maior legado o início do proces-so de constituição da FundaçãoOswaldo Cruz. Devemos sim celebraros grandes cientistas da história bra-sileira que se comprometeram coma nação e com o bem-estar de nossopovo, o que se torna ainda mais im-portante neste momento pelo qualpassa o país.

Estamos um momento de profundastransformações econômicas, sociais, tec-nológicas e nas formas de organizaçãodo Estado, o que traz um enorme desa-fio para pensar o futuro. Como este éincerto, não passível de redução a cál-culos de probabilidade, o estudo e o co-nhecimento de nossa história, de nossopaís, de nossa instituição e do contextointernacional tornam-se os elementosessenciais que fornecem as pistas paraum projeto de futuro.

O futuro não se constrói apenasa partir dos desejos abstratos. Nãoconseguimos pensar o Brasil sem con-

I

siderar que fomos um dos últimos pa-íses do mundo a abolir a escravidãoe que somente recentemente foi cri-ada uma institucionalidade na qual obem-estar passou a fazer parte de umprojeto de desenvolvimento. No in-terior da Fiocruz, este legado, quealiou ciência, educação, tecnologiae saúde, foi uma conquista iniciadacom Oswaldo Cruz e que passou pormuitos de nossos grandes cientistas,a exemplo de Carlos Chagas. Maisrecentemente, Sergio Arouca forne-ceu novos pilares para este projetoinstitucional, incorporando o legadode nossos “fundadores” e avançan-do para o contexto de um Estado euma instituição democrática e com-prometida com a sociedade, o SUS ea ciência, tecnologia e inovação.

Deste modo, o Ano Oswaldo Cruzé ao mesmo tempo a celebração deum legado e a assunção de um com-promisso com o futuro, tendo o bem-estar de nossa população como objetivoestratégico e as atividades de alta qua-lidade em ciência, tecnológica e ino-vação como um meio único paraalcançarmos o desenvolvimento soci-al, econômico e ambiental na socie-dade do conhecimento.

Quais serão os eixos temáticosdo evento?

Nísia: São oito: promoção da ci-ência, tecnologia e inovação em be-nefício da sociedade e a serviço davida; a importância do papel de umainstituição pública na produção e ino-vação em saúde; Fiocruz na articula-ção do sistema de ciência, tecnologiae inovação, nas dimensões regional,nacional e global; desafios dos obje-tivos de desenvolvimento sustentável;políticas e estratégias de saúde: pas-sado, presente e futuro com perspec-tivas ao fortalecimento do SUS;preparação da Fiocruz para a 4ª re-volução tecnológica; a Fiocruz e aeducação permanente; e democra-cia e perspectiva nacional na pros-pecção institucional.

O que será apresentado na ex-posição a ser montada na Câmarados Deputados?

Nísia: A exposição, além de levarpara nossa esfera de representação polí-tica, o maior conhecimento de nossa his-tória e de nossas grandes conquistas paraa humanidade e para o país, terá o desa-fio de mostrar como o sistema Fiocruz,

ESPECIAL

nstituído em março de 2017, o Ano Oswaldo Cruz - 100anos do legado de Oswaldo Cruz - O papel da ciência e dasaúde no projeto nacional, vai mobilizar toda a Fundaçãoem atividades que ocorrerão nos próximos meses. O proje-to, que tem oito eixos temáticos, também será responsável

por uma exposição na Câmara dos Deputados. Em entrevista, a presidenteda Fiocruz, Nísia Trindade Lima, aborda o significado do Ano OswaldoCruz e comenta a importância do cientista para o país. Segundo ela, oAno Oswaldo Cruz é, ao mesmo tempo, a celebração de um legado e aassunção de um compromisso com o futuro, tendo o bem-estar da popu-lação como objetivo estratégico.

Ano OswaldoCruz: celebraçãoe compromisso

Foto: Peter Ilicciev

A presidente da Fiocruz, Nísia Trindade

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que alia conhecimento, educação, ino-vação e produção de bens e serviços,constitui um patrimônio nacional únicoque deve ser orgulho dos brasileiros. Naprimeira parte da mostra serão apresen-tadas a trajetória e contribuições de Oswal-do Cruz e, na segunda parte, ressaltadaa contribuição da Fiocruz, como institui-ção de Estado comprometida com o SUS.Como decorrência, a exposição se inserenuma perspectiva ambiciosa de evidenci-ar o valor que possuímos como instituiçãopública de C&T&I e como podemos con-tribuir para a sociedade brasileira e parao avanço social, econômico e democráti-co de um projeto nacional que seja sus-tentável em suas múltiplas vertentes.

Qual o legado de Oswaldo Cruz?

Nísia: Como já mencionei, o legadode Oswaldo Cruz é a Fiocruz para a po-pulação brasileira, ou seja, a criação deuma instituição que alia ciência, tecnolo-gia (na fabricação de produtos biológicos,como vacinas e fármacos), educação, saú-de e projetos nacionais. Uma marca his-tórica da Fiocruz, e por isso muito forte,tem origem nessa matriz institucional de-senhada pela primeira geração de cien-tistas que Oswaldo Cruz reuniu emManguinhos, ou seja, o nosso compro-misso com a apropriação dos conhecimen-tos aqui gerados para a formulação depolíticas públicas de saúde.

Devemos lembrar que o InstitutoSoroterápico Federal, fundado em1900, e transformado em 1908 em Ins-tituto Oswaldo Cruz, foi criado comoresposta a uma grande emergênciasanitária: a necessidade de produzirsoro contra a peste bubônica que ha-via chegado a Santos e ameaçava aentão capital federal, o Rio de Janeiro.Oswaldo Cruz, como diretor do Institu-to Oswaldo Cruz e diretor-geral de Saú-de Pública, ampliou a agenda depesquisa institucional e induziu produ-ção de conhecimento em áreas diver-sas, como a microbiologia e a medicinatropical, tornando a instituição capazde atuar também no controle à epide-mia de febre amarela que assolava oRio de Janeiro no início do século 20.A Fiocruz, como sabemos, continuaempenhada e capacitada a dar respos-tas à sociedade brasileira, na forma deconhecimento científico, insumos e

atenção primária à saúde, nas situa-ções de emergência sanitária, tal comovimos no quadro recente e gravíssimoda tríplice epidemia de dengue, zika echicungunya, mas também na reemer-gência da febre amarela.

A matriz institucional criada porOswaldo Cruz, no entanto, não se re-vela apenas nas diversas atribuiçõesinstitucionais em pesquisa, produção eensino, ou nos episódios de epidemi-as, na capacidade de responder a umaemergência sanitária. Outro traço his-tórico muito relevante é a presençanacional da Fiocruz. Existem unidades

da Fundação em todas as regiões doBrasil. A presença da instituição no ter-ritório brasileiro começou com expedi-ções científicas, também nas primeirasdécadas do século 20, que acompanha-ram a expansão do Estado nacional bra-sileiro em obras para a modernizaçãode sua infraestrutura, ou seja, constru-ção de ferrovias, projetos de desenvol-vimento regional na Amazônia, obrascontra as secas no Nordeste etc. A baseinstitucional, então existente, permitiu,mais uma vez, a conjugação entre pes-quisa de laboratório, trabalho clínico eexpertise para trabalho de campo feitonos canteiros de obras. O papel da ins-tituição nessas expedições foi fundamen-tal para consolidar a medicina tropicalcomo disciplina científica, mas tambémpara fortalecer o seu protagonismo nosdebates referentes à saúde pública,como no movimento sanitarista dos anos1920, que buscava a implementação depolíticas federais de saúde, como a cri-ação de um Ministério da Saúde, e naformulação de projetos nacionais de de-

senvolvimento. Em suma, essa é a ma-triz que nos orgulha, inspira e desafia aaprimorar a instituição e suas diferen-tes áreas de atuação, para a promoçãoda saúde da população, o fortalecimen-to do SUS e de políticas de C&T&I e dodesenvolvimento autônomo do país.

Como analisa a saúde e a ciên-cia brasileiras cem anos após amorte do patrono da Fiocruz?

Nísia: O nosso país passou por pro-fundas transformações. Tornou-se urba-no e industrializado, constituiu umsistema de C&T robusto e nacional e,mais importante, avançamos na com-preensão da saúde como um dever doEstado, tendo o SUS o papel de garan-tir princípios da Constituição de 1988,vinculados à universalidade, à integra-lidade e à equidade. No presente, coma crise nacional e também global, háo grande desafio de, frente a pensa-mentos mais restritos de ajuste, aju-darmos a atualizar o papel da Fiocruznum novo projeto nacional que sejaao mesmo tempo dinâmico, inclusivoe sustentável.

A saúde, a ciência e a tecnologiadevem ser pilares essenciais desta novaestratégia. Não se enfrenta a criseolhando para trás e numa perspectivade passividade e de medo. A liçãomaior de Oswaldo Cruz e de nossosgrandes fundadores é o olhar para fren-te como base para nossa ação no pre-sente. É tratar esta diversidade do paíscomo riqueza. É resgatar o projeto damais vibrante democracia do mundo.É aproveitar a pulsão inovadora denosso povo excluído, mas a quem nãofalta luta e criatividade, quando asamarras de nossa história são enfren-tadas para nos deixar avançar.

Desacorrentar a criatividade, aciência, a saúde, a educação liberta-dora e a inovação, em bases partici-pativas e democráticas, faz parte denosso horizonte estratégico. A saídada crise nos impõe o desafio de pen-sar e fazer o futuro a partir de nossahistória e, ao mesmo tempo, nos cha-ma para a ousadia de não nos ames-quinharmos nos grilhões do passado.A Fiocruz foi o maior legado de Oswal-do Cruz. A ousadia para o novo, asua principal lição.

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uando, em 8 de marçode 1908, Oswaldo Cruzredigiu as linhas que in-formavam ao presiden-te da República Afonso

Pena o cumprimento do compromissode debelar em três anos a epidemiade febre amarela que se alastrava peloRio de Janeiro, teria ele imaginado quea então capital brasileira poderia embreve voltar a ser atingida por um novosurto da doença? Certamente, sim. Ocientista sabia do risco de um revés ealertava para a importância de se man-ter as ações de profilaxia e a “maisrigorosa vigilância”. Oswaldo Cruzmorreu em 11 de fevereiro de 1917sem testemunhar o surto que se aba-

QGlauber Gonçalves

teu sobre a cidade em 1928. De lápara cá, porém, a história tomou ru-mos que Oswaldo Cruz dificilmentesuporia: cem anos após a sua morte,o Rio de Janeiro, já não mais sede dogoverno federal, vive novamente aapreensão de ter a febre amarela ba-tendo a suas portas.

Nesta efeméride, a Revista de Man-guinhos revisita a trajetória de OswaldoCruz para discutir o legado deixado pelocientista e por seus contemporâneos.Diante de antigas e novas emergênciassanitárias, como febre amarela, dengue,zika e chikungunya – que desafiam acidade-vitrine do Brasil e outras regiõesdo território nacional –, é inevitável sequestionar por que o país parece patinar

no combate ao Aedes aegypti e a doen-ças por ele transmitidas, a despeito dosêxitos obtidos pelos seus cientistas noinício do século passado e dos avançoscientíficos e tecnológicos que se sucede-ram desde então. Apesar dos percalços,historiadores apontam que é justamentea herança deixada pela geração deOswaldo Cruz que continua a contribuirpara o enfrentamento dessas mazelas eguiar políticas de saúde pública.

Um olhar sobre o contexto sanitárioda virada do século 19 paro o 20 permi-te vislumbrar um padrão que se repeteao longo da história brasileira: a inexis-tência de uma política de investimentoem ciência de longo prazo. Diante daameaça da chegada da peste bubônicaà capital federal, criou-se o Instituto So-roterápico Federal – embrião da atualFiocruz. Seu escopo inicial era relativa-mente restrito: produzir localmente so-ros e vacinas, até então importados, paraenfrentar a doença. “Em geral, nos paí-ses periféricos, não se dá grande aten-ção à ciência e à tecnologia. O Estadobrasileiro caracteristicamente atendemais a emergências. Corremos semprepara apagar fogo. A saúde pública foiconstituída a partir do evento de epide-mias de doenças transmissíveis que exi-giram uma resposta do Estado”, afirmao historiador da Casa de Oswaldo Cruz(COC/Fiocruz) Carlos Fidelis da Ponte.

Passados os primeiros anos de forteturbulência política e econômica da Pri-meira República, o país via surgir um pro-cesso de industrialização e de forteexpansão da agricultura de exportação.Imigrantes chegavam em massa. O qua-dro sanitário das grandes cidades brasi-leiras, naquela altura, atingira um pontocrítico. Doenças como febre amarela,peste bubônica, varíola e tuberculose re-presentavam ameaças concretas ao de-senvolvimento do Brasil. Por conta dasepidemias que o atingiam, o Rio de Ja-neiro gozava de má fama internacional-mente: a cidade era vista como umdestino em que a probabilidade de semorrer acometido de uma enfermidadeera elevada. Com a maior estabilidadefinanceira e política alcançada, estabe-leciam-se as condições para que essesproblemas fossem enfrentados, especi-almente na capital federal.

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Um lugarpara aciência

nacionalChamado a integrar

os quadros do InstitutoSoroterápico Federalquando da sua criaçãoem 1900, Oswaldo Cruz,juntamente com seu gru-po, viu na instituiçãouma oportunidade que iamuito além da produçãode vacinas e soros con-tra a peste. “Com a che-gada da peste bubônica,abre-se uma chance parao projeto defendido pelogrupo de Oswaldo Cruz,que é muito mais ambi-cioso e muito mais vastodo que isso”, afirma o his-toriador Jaime Benchimol,da COC, que inclui na lis-ta de interlocutores deOswaldo Cruz nomescomo Francisco Fajardo,Eduardo Chapot Prévoste Adolpho Lutz. “Essegrupo tem um projeto de

modernizar a saú-de, introduzir amicrobiologia ecriar um espaçoadequado não sópara a instrumen-talização desseconhecimento,mas para que apesquisa pudesseser uma carreirareconhecida peloEstado”.

Se havia in-teresse econô-mico em aportarrecursos paraacabar com asdoenças queabatiam vidasno Rio de Ja-neiro no co-

meço do século 20, nada garantia queeles continuariam disponíveis para ma-nutenção da instituição vislumbrada porOswaldo Cruz no longo prazo. Essa ques-tão não escapou ao olhar do cientista,que atuou para forjar um sustentáculopolítico e financeiro para o Instituto queestava erigindo. Possivelmente, sem doisdos mecanismos incluídos pelo cientistano estatuto da instituição, ela não teriaevoluído para se tornar o que hoje é aFundação Oswaldo Cruz.

O primeiro mecanismo retirou o Ins-tituto da alçada da Diretoria-Geral de Saú-de Pública e subordinou-a diretamenteao na época intitulado Ministério de Jus-tiça e Negócios Interiores. Ao mesmotempo, Oswaldo Cruz conseguiu apro-var a possibilidade de geração de rendaprópria pelo Instituto. As receitas come-çaram a entrar com o desenvolvimentode uma vacina contra a chamada pesteda manqueira, que ameaçava o reba-nho bovino brasileiro na ocasião. Embo-ra continuasse a depender de verbasgovernamentais, o Instituto aproximou-se, com isso, da autossuficiência. “Istofoi de uma grande sagacidade. O grupo[do qual fazia parte Oswaldo Cruz] tinhaum projeto paralelo e lutou para imple-mentá-lo. Queriam transformar o peque-no e tosco laboratório soroterápico emum grande instituto de medicina experi-mental semelhante ao instituto Pasteurde Paris”, explica Benchimol.

À frente da Diretoria-Geral de Saú-de Pública, Oswaldo Cruz liderou tam-bém o combate à varíola e à febreamarela, que junto à peste bubônicacompunham a tríplice epidemia queassolava o Rio de Janeiro. A conjuntu-ra da época facilitou que medidas con-sideradas impopulares fossem tomadas:vivia-se sob um regime com fortes tra-ços autoritários. A lei da vacina obri-gatória, estratégia para vencer avaríola, tinha caráter draconiano. Semo certificado de imunização, conseguirum emprego – ou até mesmo se casar– era praticamente impossível. Ao mes-mo tempo, moradores de cortiços dasregiões centrais da capital federalviam-se impotentes diante das demo-lições levadas a cabo como parte dasreformas urbanas empreendidas no Riode Janeiro. “Foi um grau de interfe-

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rência do poder público na vida priva-da das pessoas como nunca houveraantes. Isso vai gerar uma reação muitoforte e violenta de insatisfação e des-contentamento”, afirma Benchimol.

Ousadia:Oswaldo Cruzencampa a teoriado mosquito

As contestações a Oswaldo Cruznão vinham apenas da população. Opróprio governo tinha reticências a umpilar importante das ações levadas adi-ante no front de combate à febre ama-rela. Nas últimas décadas do século 19,diversos países da América não viamuma saída do atoleiro que a doençarepresentava. Teorias rivais que tenta-vam explicar a doença disputavam es-paço. A virada se deu na passagempara o século 20, quando a chamadateoria havanesa, proposta por CarlosFinlay, foi referendada por uma comis-são norte-americana. Os estudos docubano apontavam que eram osmosquitos os responsáveis pela trans-missão da febre amarela: o inseto ex-trairia o germe da enfermidade dodoente e o inocularia em outra pessoaque, então, a contrairia.

Na esteira da chancela da Comis-são Reed, em uma investida ousada,Oswaldo Cruz encampou a teoria deFinlay, embora ainda se estivesse lon-ge de sua comprovação absoluta doponto de vista científico. Não se sabiaque espécie de mosquito exatamentetransmitia a doença nem qual era oseu agente transmissor, por exemplo.

“Oswaldo Cruz, correndo muito ris-co, resolver direcionar todo o esforçode combate à febre amarela à luz des-sa teoria. A campanha dele vai inclusi-ve ajudar no processo de demonstraçãode validade dessa teoria”, diz Benchi-mol. “O [então presidente] RodriguesAlves acende uma vela para cada lado.Deixa Oswaldo Cruz colocar a teoriahavanesa em prática e, ao mesmo,tempo implementa aquilo que os ve-lhos higienistas propunham, que era

arrombar a cidade e eliminar todas asfontes possíveis de miasma”, acrescen-ta o historiador em alusão às reformasurbanas levadas a cabo pelo engenhei-ro Francisco Pereira Passos, prefeito doRio de Janeiro entre 1902 e 1906.

A campanha da febre amarela seorganizou em moldes militares. O ser-viço de profilaxia específico para ocombate à doença organizou-se embrigadas. Quando um foco do mos-quito era identificado, equipes eramdeslocadas. A primeira providênciaera isolar o doente. O objetivo eraquebrar a conexão entre o inseto e odoente. Se o paciente fosse po-bre, era levado ao hospital deSão Sebastião. Os de classesmais abastadas, por outrolado, desfrutavam de um tra-tamento diferenciado: imedi-atamente construía-se ao redorde sua cama uma estrutura demadeira com tela para evitarque o mosquito se infectasseno doente. Calafetava-se acasa inteira, cobria-se o telha-do com pano de algodão e jo-gava-se pó de pireto para mataros mosquitos. Os que sobrevivi-am eram aniquilados com aqueima de enxofre. Outro gru-po se encarregava das larvas:aplicavam uma combinação depireto e querosene na água paramata-las. Nas áreas públicas, ogás Clayton, feito à base de en-xofre, era injetado nas canaliza-ções de esgoto.

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Preocupação com osgrandes problemasnacionais

Os problemas sanitários do Rio de Ja-neiro compunham apenas uma parte daspreocupações de Oswaldo Cruz, no en-tanto. Com as campanhas encaminha-das na capital, o cientista e seus pares doInstituto de Manguinhos voltaram

seus olhares para outras regiões. “Quan-do debelou os surtos epidêmicos na cida-de do Rio, Oswaldo Cruz se dirigiu aointerior e aos portos. Eles descobriram ma-zelas, entre as quais a doença de Cha-gas, mas também se colocaram como parteda solução”, afirma Carlos Fidelis. “Eletinha uma visão muito atenta do quadrosanitário e político. Ele não fazia ciênciapela ciência, mas uma ciência voltadapara os problemas do Brasil. Achava que,

se não tivesse contatocom isso, a instituiçãoperdia a razão de ser.”

Menos de um anodepois de enfrentar esuperar a Revolta daVacina no Rio, OswaldoCruz embarcou a bor-do do navio Repúblicapara uma série de visi-tas aos portos da Re-gião Norte do Brasil, em1905. O levante popu-lar teve como origema obrigatoriedade devacinação da popula-ção do Rio de Janeiro,capital federal, contraa varíola em 1904.Durante seis meses da

expedição sanitária aos por-tos marítimos e fluviais, ocientista fez anotações de-talhadas da passagem porcada porto, mostrando-seum verdadeiro cronista: foialém de impressões sobreas condições de saúde nascidades, sobre sua arquite-tura e topografia. Em car-tas enviadas à mulher,

Emília, ele relatou há-bitos e costumes doshabitantes de lugarescomo Vitória, Porto Se-guro, Salvador, Araca-ju, Maceió e Manaus.

“Além de registrarimpressões sobre ascondições de saúde rei-nantes nas cidades vi-sitadas, sua arquiteturae topografia, o cientis-ta comentava os hábi-tos e costumes de seus

habitantes, seus modos de vestir e falar”,afirma a historiadora da Casa de Oswal-do Cruz Ana Luce Girão. Tampouco es-caparam à observação de Oswaldo Cruzo comportamento de personagens que co-nhecia de porto em porto, fossem autori-dades, membros das elites locais ou gentesimples do povo. Alguns relatos e comen-tários dão a impressão de que, transcorri-do mais de um século das andanças docientista, alguns problemas – bem comosuas raízes – parecem imutáveis.

“É nítida a aversão que OswaldoCruz começava a desenvolver por políti-cos locais que não se ocupavam com osaneamento da região que governavam,empregando dinheiro público em provei-to próprio e na construção de suas car-reiras políticas sobre bases clientelísticas.Ao elogiar a firmeza de caráter de al-gum político, no entanto, o cientista fazquestão de realçar a excepcionalidadedessa virtude”, comenta Ana Luce.

Fiocruz: legadoconstruído porOswaldo Cruzmantémprotagonismo

Os paralelos com o passado in-dicam que o país parece ter ignora-do algumas lições que poderia teraprendido ao longo de sua história.“Estamos enfrentando isso de novo[surto de febre amarela] porque in-felizmente os dirigentes políticos doEstado colocam os interesses e apragmática clientelística acima dasquestões de competência e de téc-nica. Entregam-se órgãos que deveri-am ser conduzidos por esse patrimônioinestimável de bons sanitaristas e ci-entistas, pessoas que tem o know-how, a gente medíocre que vai usaressas estruturas em proveito do jogopolítico eleitoral mais rasteiro que sepossa imaginar”, critica Benchimol.“Nas horas de crise, o que acaba sal-vando é o legado de Oswaldo Cruz– uma Fundação Oswaldo Cruz, umInstituto Evandro Chagas, institui-ções científicas que rapidamentedão respostas”.

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Embora o legado associadoa Oswaldo Cruz seja uma cons-trução de uma ampla rede de ci-entistas e médicos, historiadoresreconhecem certa inevitabilidadede um mecanismo presente nosenso comum e em parte da his-toriografia: o apagamento do as-pecto coletivo da criação e avinculação dos feitos a um únicopersonagem. Esse processo aca-ba por desempenhar uma funçãoideológica. “Foi usado para indu-zir valores cívicos nas crianças nasescolas, mas é também acionadoquando os funcionários da Fiocruzvão às ruas para pleitear mais apoioà ciência e à saúde, defender oSUS. Hasteia-se, então, o Oswal-do Cruz. Essa figura mitológicacarregada de significados é usadacom variadas finalidades e em vari-ados contextos. E isso só é possí-vel dada a magnitude e aimportância do trabalho que foicriado naquele momento. Ele foium divisor de águas. Estamos aquinesta instituição portentosa, que éo seu legado mais evidente”.

Para o historiador Carlos Henri-que Paiva, da Casa de Oswaldo Cruz,a geração mais recente da ReformaSanitária – aquela que concebeu oSUS – operou sob determinadaspremissas cuja origem remonta aoperíodo de Oswaldo Cruz. Umadelas diz respeito ao papel do Es-tado na sua relação com a saúdepública. “A saúde como um as-sunto público e digno de interven-ção estatal é uma construção sociale política que remonta ao iníciodo século passado. A atuação deOswaldo Cruz e de contemporâ-neos, figuras como Carlos Chagase Belisário Pena, foi fundamentalpara que essa relação se estabele-cesse não só em termos institucio-nais, mas também para que seconvertesse em uma espécie de tra-dição na organização da saúdepública nacional. Daquela épocaem diante, a relação Estado e saú-de pública se converteria em umaespécie de obviedade à qual a ge-ração do SUS não só se assentaria,mas dela se beneficiaria”, analisa.

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médico e cientista Oswal-do Gonçalves Cruz nas-ceu em São Luís doParaitinga (SP), em 5 deagosto de 1872. Filho de

Bento Gonçalves Cruz e Amália Bu-lhões Cruz, graduou-se na Faculdadede Medicina do Rio de janeiro em1892, apresentando a tese de douto-ramento A vehiculação microbianapelas águas. Dois anos depois, a con-vite de Egydio Salles Guerra, que setornaria seu amigo e biógrafo, traba-lhou na Policlínica Geral do Rio de Ja-neiro, onde era responsável pelamontagem e a chefia do laboratóriode análises clínicas.

Em 1897 Oswaldo Cruz viajoupara Paris, onde permaneceu por doisanos estudando microbiologia, soro-

OHaendel Gomes

A trajetória do médico dedicado à ciênciaterapia e imunologia, no Instituto Pas-teur, e medicina legal no Instituto deToxicologia. Retornando da capitalfrancesa, o médico reassumiu o car-go na Policlínica Geral e juntou-se àcomissão de Eduardo Chapot-Prévostpara estudar a mortandade de ratosque gerou surto de peste bubônicaem Santos.

De volta ao Rio de Janeiro, assu-miu a direção técnica do Instituto So-roterápico Federal, que era construídona Fazenda Manguinhos. A instituição,sob o comando do barão de PedroAffonso, proprietário do Instituto Vací-nico Municipal, foi fundada em 1900.Dois anos depois, Oswaldo Cruz assu-miu a direção do Instituto e, no anoseguinte, chegou ao comando da Di-retoria-Geral de Saúde Pública (DGSP).

O desafio não era pequeno. O jo-vem médico e cientista teve que em-preender uma campanha sanitária decombate às principais doenças da ca-pital federal: febre amarela, pestebubônica e varíola. Para isso, adotoumétodos como o isolamento dos do-entes, a notificação compulsória doscasos positivos, a captura dos vetores– mosquitos e ratos –, e a desinfec-ção das moradias em áreas de focos.Em 1904, enfrentou uma rebelião, aRevolta da Vacina, que durou uma se-mana e teve como estopim a aprova-ção da lei da vacinação antivariólicaobrigatória. Apesar da crise, entre1905 e 1906, Oswaldo Cruz empre-endeu uma expedição a 30 portosmarítimos e fluviais de Norte a Sul dopaís para estabelecer um código sani-tário com regras internacionais.

A luta contra as doenças ganhoureconhecimento internacional em1907, quando Oswaldo Cruz recebeua medalha de ouro no 14º Congres-so Internacional de Higiene e Demo-grafia de Berlim, na Alemanha. Em1908 o sanitarista foi recepcionadocomo herói nacional e, no ano se-guinte, o instituto passou a levar seunome. Com a equipe do InstitutoOswaldo Cruz (IOC) fez o levanta-mento das condições sanitárias dointerior do país. Em 1910 combateua malária durante a construção daFerrovia Madeira-Mamoré (viajou aRondônia com Belisário Penna), e afebre amarela, a convite do gover-no do Pará.

Oswaldo Cruz ingressou na Aca-demia Brasileira de Letras e recebeuo título de oficial da Ordem Nacionalda Legião de Honra da França. Dei-xou o comando do IOC em 1916, emconsequência de sua doença renal.Em Petrópolis, tornou-se prefeito pornomeação do presidente Nilo Peça-nha. Em 11 de fevereiro de 1917,com o agravamento da doença,Oswaldo Cruz morreu na cidade ser-rana do Rio de Janeiro.

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HeróiIncluir Oswaldo Cruz no Livro dos Heróisda Pátria é homenagem devida, afirmahistoriadora sobre projeto do Senado

Fábio Iglesias e Haendel Gomes

é eterna na ciência”, disse ahistoriadora Nara Azevedoao lembrar a frase raciona-lista eternizada por OswaldoCruz para defini-lo. Em en-

trevista, a ex-diretora da Casa de Oswal-do Cruz (COC/Fiocruz) – autora do livroOswaldo Cruz, a construção de um mitona ciência brasileira – comentou ainda oprojeto de lei que tramita no Senado Fe-deral para incluir o nome do patrono daFiocruz no Livro dos Heróis da Pátria daNação, o mesmo que homenageia Tira-dentes e outros símbolos nacionais. Uma“homenagem devida”, afirmou.

A pesquisadora discorreu ainda sobrea importância de Belisário Pena para a cons-trução da imagem mítica em torno deOswaldo Cruz. Um ano após a morte dosanitarista, em 1918, ele criou a Liga Pró-Saneamento do Brasil, que tinha comoobjetivo promover uma mudança na saú-de. “A reforma que eles pretendiam eraassumida pelo Governo Federal porque,nesse movimento de natureza política, aideia era criar um Ministério da Saúde quetivesse abrangência nacional”, explicou.Nara abordou a trajetória do cientista, aimportância que teve para as políticas pú-blicas e seu trabalho à frente da Diretoria-Geral de Saúde Pública (DGSP), bem comosua representação política, científica e cul-tural para o país.

da Pátria

F“

ESPECIAL

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Em seu livro Oswaldo Cruz, aconstrução de um mito na ciênciabrasileira a senhora afirma que aintenção dos cientistas de Mangui-nhos, ao levar adiante o processode mitificação do sanitarista, era ade mobilizar a sociedade, principal-mente a classe política, em tornodos ideais sanitaristas. De que ma-neira isso ajudou a consolidar avan-ços na saúde pública brasileira na-quele início de século 20?

Nara Azevedo: Ajudou muito, masnão foi o único elemento. Depois damorte de Oswaldo Cruz, o papel quehavia desempenhado para tentar mi-nimizar os problemas de epidemias nacapital federal contribuiu para a sensi-bilização da classe política e intelectu-al, como Monteiro Lobato. Até então,sua obra [Urupês, com o personagem]do Jeca, falava sobre os homens po-bres brasileiros; tinha um conteúdo ra-cista enorme. Jeca estava condenadoà miséria, à doença. Acho que essepersonagem representa muito bem o

que se pensava da população brasilei-ra. E não se pode desvincular a ima-gem da população dessa maneira por-que tínhamos acabado de sair doregime escravocrata. Belisário Pena,médico que acompanha Oswaldo Cruzdesde a campanha da febre amarelaem 1904, é o organizador do movi-mento de mitificação de sua figura ecria, um ano depois da morte do cien-tista, a Liga Pró-Saneamento do Brasil.Oswaldo Cruz é o patrono da Liga, cujoobjetivo é promover uma mudança,uma reforma na saúde brasileira. Areforma que eles pretendiam era assu-mida pelo Governo Federal porque,nesse movimento de natureza política,a ideia era criar um Ministério da Saú-de, que tivesse abrangência nacional.Era quase como se o Jeca fosse o alvocentral desse movimento, representan-do a vítima das endemias rurais, asprincipais doenças da nação. Não eraverdade, mas achavam que era. Do-ença de Chagas, ancilostomose, ma-lária, por exemplo, deveriam ser com-batidas pela Liga e o futuro Ministério.

Não podemos esquecer que esseé o contexto do pós-guerra, da Pri-meira Guerra Mundial, e existe umgrande movimento nacionalista capi-taneado por uma camada intelectu-al e política, à qual sanitaristas emédicos vão se articular. Então, o dis-curso sobre Oswaldo Cruz, o “sanea-dor do Rio de Janeiro”, o “fundadorda medicina experimental”, que sãoas imagens que consegui identificarno meu trabalho, são as mais usadaspara defini-lo nesse discurso mitoló-gico e simbólico sobre o que ele re-presentou para o Brasil. O InstitutoOswaldo Cruz se tornou a primeiragrande instituição de pesquisa no Bra-sil e é o fundador da medicina expe-rimental. O problema do Jeca não éque ele é ignorante; ele não tem saú-de. Esse discurso é recorrente atéhoje, chamamos de determinantessociais. O movimento sanitarista doBelisário Pena mudou a opinião deMonteiro Lobato. Ele escreve sobreisso na Revista do Brasil, publicaçãoentão muito importante, que tinha se

Nara Azevedo: Belisário Pena foi o organizador do movimento de mitificação da figura deOswaldo Cruz e criou, um ano depois da morte do cientista, a Liga Pró-Saneamento do Brasil

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enganado e que, de fato, o Jeca nãoera culpado pela sua miséria. O cul-pado é o Estado, a sociedade que ti-nha que dar um jeito naquilo. Então,foi muito importante para o movimen-to, para o debate público sobre a saú-de. Resolveu? Não. Estamos com afebre amarela de novo.

Em que medida o contexto cul-tural e a própria personalidade deum Oswaldo Cruz “de carne eosso” explicam a construção deimagens como “general mata-mos-quito autoritário”, “apóstolo daciência”, “rei-todo-poderoso”,“Cristo da religião do saneamen-to”, “fundador da medicina expe-rimental no Brasil”?

Nara: Vamos separar essas coisas,porque esse general mata-mosquitonão tem nada a ver com Liga Pró-

Diretoria-Geral de Saúde Pública eimpõe políticas de cima para baixo.

“Apóstolo do saneamento” e“fundador da medicina experimentalno Brasil” são coisas que aparecemdepois da morte de Oswaldo Cruz.Eu me preocupei em entender porque se falava de Oswaldo Cruz como“Cristo da religião do saneamento”.A gente sabe que falar de Cristo noBrasil, um país católico, não é qual-quer coisa; comparar Oswaldo Cruza essa figura é algo muito significati-vo. Isso que me motivou a estudar oque eu chamei desse mito, é um mitomesmo. Fala-se dele como se proces-sasse um descolamento da vida datrajetória profissional, embora seusem os elementos dessa trajetória.O que ele fez na saúde pública, noInstituto de Manguinhos, é a base apartir da qual se projeta uma ideali-zação dessa figura. Quando escrevimeu trabalho, disse – e continuo

Saneamento. General mata-mosqui-to está nas caricaturas. Na verdade,são jornais da época, os caricaturis-tas que tinham um humor espetacu-lar, crítico; não sei se se repete noBrasil algo tão impressionante, aque-les jornalistas, desenhistas e artistas.Então, eles inventaram essa palavrade general mata-mosquito. Eu nãoquero cometer nenhum anacronismo.Nós vivemos em outra sociedade,temos outros tipos de relações; nãopodemos olhar com aquilo que cha-mamos de autoritarismo. Não vamosesquecer que a República tinha sidofeita por generais. É disso que elesestão falando também. Ele organizoucampanhas contra a febre amarelae, principalmente, contra a varíola,uma lei que já era obrigatória, só queninguém se vacinava. E aí houve umarevolta popular. General mata-mos-quito tem a ver com esse contextode 1903-1904, quando ele assume a

Belisário Pena na sessãocomemorativa do 2º aniversárioda Liga Pró-Saneamento do Brasil,realizada na sede da SociedadeNacional de Agricultura, em 1919

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achando isso – é impossível saberquem é o Oswaldo Cruz, para alémou para aquém dessas imagens queforam criadas para torná-lo público.Acho difícil. O passado está sendosempre reconstruído, não está numlugar que os historiadores tiram dobaú. Construímos interpretações dopassado a partir de registros e vestí-gios que essas personalidades e essepassado deixam. Então, eu não sei,é muito difícil hoje saber quem eraOswaldo Cruz.

Como a classe médica, em es-pecial as instituições com forte re-putação científica como a Acade-mia Nacional de Medicina e aFaculdade de Medicina do Rio deJaneiro, se relacionou com Oswal-do e o Instituto?

Nara: Eu tratei isso no meu estudo. Eraum elemento importante para que eupudesse afirmar a ideia de que o dis-curso mitológico, hagiográfico [relato

sobre a vida de um santo], heroicizan-te dessa figura; esses símbolos que fo-ram criados em torno de OswaldoCruz pudessem ser diferenciados decomo ele era reconhecido em vida.Qual era o reconhecimento e, maisimportante, o reconhecimento cien-tífico que ele tinha no meio médicoe científico da época, no Rio de Ja-neiro, em particular. Oswaldo Cruznunca foi professor da Faculdade Na-cional de Medicina. O Instituto Soro-terápico Federal passa a ter o nomede Oswaldo Cruz em homenagem aoprêmio [recebeu a medalha de ouroem nome da seção brasileira presen-te no XIV Congresso Internacional deHigiene e Demografia] em Berlimpelas campanhas que acabaram coma febre amarela, peste.

Muitos estudantes da Faculdade deMedicina vinham para Manguinhosfazer uma especialização, conhecer oslaboratórios ligados ao estudo da pes-te bubônica e de outras doenças. Em1907-1908, Oswaldo Cruz cria a Esco-

la de Manguinhos, o chamado Cursode Aplicação. O curso é de 1909, anoem que Carlos Chagas descobre a do-ença de Chagas. Acho que foi umaousadia criar esse curso, que hoje po-deríamos chamar de extensão; duravadois anos e era rigorosíssimo. Eles vi-nham praticar a medicina experimen-tal, ou microbiologia, a ciência pasteu-riana. Isso criou uma disputa com aFaculdade de Medicina, velada emcertos momentos, mais aberta e deconflitos abertos em outros.

Oswaldo Cruz inspirou-se oufoi influenciado por intelectuais dasua época para buscar conhecer osproblemas do homem brasileiro dointerior do país?

Nara: Não tratei disso em meu es-tudo, então vou compartilhar uma es-peculação baseada no que acabei defalar sobre o interesse científico que no-tabilizou o Instituto no mundo, as cha-madas doenças tropicais. Eu não con-

Fé eterna na ciência. A frase deinspiração positivista constava doexlibris de Oswaldo Cruz, selo aplicadonos exemplares de seu acervo

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reira Passos. A capital federal era as-sim, mas, também, os confins da Ama-zônia. Essas experiências vão dando aele e a esse grupo de cientistas pilaresou elementos para a constituição deuma justificativa de um trabalho de ci-entista, sobre o que é fazer ciência.Acho que foram todos muito influenci-ados, inspirados por essas condições.E isso não acontece só com eles, mascom os intelectuais engajados e ospolíticos.

Das dez cidades do país quemais precisam e menos fizeramobras para coleta de esgoto nosúltimos cinco anos, metade está noRio de Janeiro. Nova Iguaçu, Duquede Caxias, Belford Roxo, São Gon-çalo e a própria capital aparecemna lista feita pelo Instituto TrataBrasil entre os municípios com maisurgência em reforçar a rede de co-leta de esgoto. Precisamos de um

novo líder capaz de mobilizar dife-rentes segmentos da sociedadepara reverter o quadro sanitárionacional ou essa estratégia se mos-trou historicamente ineficiente?

Nara: Eu não acredito muito em li-deranças carismáticas. O discurso domito é que tornou Oswaldo Cruz isso.Acredito que o enfrentamento que vocêacabou de falar, o saneamento...vocêestá falando do Rio [ de Janeiro], mas oBrasil inteiro é assim. Saíram pesquisasrecentes do IBGE mostrando isso. A gen-te precisa é de políticas públicas demo-cráticas, de representação política efi-ciente, coisa que não temos no Brasilhá alguns anos. Vivemos numa socie-dade muito diversa daquela de Oswal-do Cruz e acho que precisamos ter re-presentantes políticos que façam isso.Sempre ouvi dos sanitaristas, especia-listas dessa área, que o custo do Estadocom os problemas de saúde diminuiria

sigo desvincular o interesse científico,intelectual com o mundo em que elesvivem, com a sociedade na qual vivem,da sua vida prática. Pensando assim,me pergunto o quanto o livro Os ser-tões, de Euclides da Cunha, influen-ciou Oswaldo Cruz e aquela geraçãode jovens. O livro fez um sucesso imen-so. Foi publicado em 1902, quandoOswaldo está chegando à Diretoria-Geral de Saúde Pública com a incum-bência de tratar epidemias que mata-vam pessoas. Ao mesmo tempo vocêtem uma denúncia pública sobre o queaconteceu em Canudos, que foi umgenocídio; o Euclides, que era todo en-tusiasmado com o combate aos insur-retos, acabou se tornando o grande de-nunciador, sem ser panfletário. Fez umaobra fantástica para dizer o que é ohomem brasileiro. Aquele livro é umespetáculo, parece ficção, mas é pro-fundamente realista na maneira deescrever. Eu me pergunto: se eu fossejovem naquela época, lendo uma coi-sa como essa, o que eu diria? Comoisso repercutiria em mim? Eu que souum cientista, trato dessas doenças,dessa população que está morrendo,ou seja, acho que faz sentido eu pen-sar que Euclides da Cunha pode ter tidoalguma influência sobre a maneiracomo Oswaldo Cruz via o que ele fa-zia, dava sentido e os interesses queteve, científicos e público que, paramim, não são dissociados.

Nesse sentido a senhora diriaque Oswaldo Cruz teve dois impac-tos, com Canudos e a com a Ama-zônia, que ele visitou?

Nara: Ele escreve sobre a Amazô-nia [onde foi combater a malária] norelatório que entrega à Estrada de Fer-ro Madeira-Mamoré. Nesse relatório,fiquei muito impressionada porque se-ria um relatório médico: “Olha, apli-quei tal coisa quinino (que era o quese fazia) nos trabalhadores e tal”. Mas,não, ele faz uma descrição antropoló-gica de cidades; Santo Antônio, sobrea população, como as pessoas vivem,as valas, os animais mortos nas ruas, oesgoto correndo a céu aberto; pareceo Rio de Janeiro antes da reforma Pe-

Cruzada Oswaldo: os micróbios que escapam (O Malho, 25/6/1910)

Zé Povo: - Vai, sábio hygienista, que tanto honras o Brazil! Deus te acompanhenessa nova e santa cruzada, que empreendes com sacrificio da própria vida! Mas, sialém dos da malária, pudesses também destruir aquelles outros micróbios... isso,então, é que era uma pechincha!...Oswaldo Cruz: - Impossível meu caro Zé! São microbios da politicagem e não háhygiene pacifica que possa com elles... Só tú, a poder de protestos, poderás umdia acabar com esses bichos!...

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muito. Grande parte das doenças da po-pulação tem a ver com saneamento,principalmente entre as crianças. NoNordeste, a mortalidade infantil é pro-vocada por muitas coisas, mas umadelas é falta de condições higiênicas.Até parece que a gente está falandodo discurso do século 19: condições hi-giênicas, água limpa, esgoto, que é umacoisa incrível que o Brasil ainda não te-nha no século 21. Acho que hoje [o quefaltam] são políticas e representaçãopolítica comprometida com bem-estarda população.

Seu estudo sobre a construçãode mitos pode ser também enten-dido como uma advertência?

Nara: Não sei, nunca pensei nisso.Eu acho que esse mito foi muito impor-tante e continua sendo. Para certas fina-lidades da área de saúde pública, asmesmas que mobilizaram o BelisárioPena e aquele grupo de médicos queestava em torno dele querendo reformara saúde pública. Eu acho que falar doOswaldo Cruz é uma chave importante,uma bandeira. Uma característica impor-tante que ele – e de vários da geraçãodele, não só médicos, políticos e outrosintelectuais – é essa característica de fa-zer da sua ação pública, da vida profissi-onal, algo que está a serviço do público.Se você olha para outros países, nemsempre vê esse tipo de intelectual. En-tão, acho que falar de personalidadescomo Oswaldo Cruz, não como “Cristoda religião do saneamento”, mas dessafigura que criou uma instituição de pes-quisa, produziu, formou muitos pesqui-sadores médicos no Brasil, todo o lega-do que essa instituição, o InstitutoOswaldo Cruz deu e a Fiocruz, é muito.Devemos continuar falando de OswaldoCruz quando a gente quiser ter avançosem termos de saúde e pesquisa no Bra-sil. Quem são nossos heróis?

Fiz pesquisa até 1972, quando secompletaram 100 anos do seu nascimen-to. Todos repetiam exatamente a mes-ma coisa que se dizia em 1918. Então,se sedimentam imagens simbólicas so-bre o que ele significava e representa-va. Isso é o mito, textos, signos, bustos,medalhas, as figurinhas Eucalol; muitascidades têm praças e ruas com o nome

de Oswaldo Cruz. Ele quase competecom Getúlio Vargas. Pensando nessagaleria dos heróis, temos o Tiradentestambém. Os heróis são um espelho doque a gente quer ser e do que há debom que podemos produzir. É uma pro-jeção idealizada das nossas ansiedades,expectativas, desejos. Quem é o únicomédico que está lá? Oswaldo Cruz! Naverdade, eu acho que ele está nessagaleria há muitos anos; há um séculose fala dele como herói da nação.

O Senado Federal está para ava-liar o Projeto de Lei 317/2016 so-bre a inclusão de Oswaldo Cruz noLivro de Heróis da Pátria, que reú-ne em sua maioria políticos e líde-res militares, religiosos e indíge-nas. Se aprovada a lei, a ciêncianacional terá oficialmente um per-sonagem heroico. Essa é uma ho-menagem devida?

Nara: Na historiografia também. Euacho que é devida, sim. Ele já existe namemória das pessoas, assim como Ge-túlio. Existem trabalhos que demonstramisso. Eu mesma participei, há muitosanos, quando trabalhava na FundaçãoGetúlio Vargas, de uma pesquisa de rua.Fiquei muito impressionada como sefalava de Getúlio, que é algo similar aoOswaldo Cruz, com muito mais ampli-tude; até porque é uma figura muitoimportante na sociedade, na políticabrasileira, na construção do Estado na-cional brasileiro. Falar de Oswaldo Cruznesses termos contribui para que se tor-ne aquilo que ele representa, símbolode mais saúde, políticas públicas quede fato contribuam para a melhoria davida das pessoas, e que esse Estado sejaeficiente nesse sentido; não seja o es-tado demagogo, populista. Sempre fa-lar dele é bom. Claro, perto de mim,eu vou dizer: “olha, lá! “; veja só, nãoé bem assim, olha o mito!”. Mas, poli-ticamente, falar de Oswaldo Cruz temhoje o mesmo significado e importân-cia que em 1918.

No início do século, quandoOswaldo Cruz assume a saúde pú-blica na capital federal, o “país dafebre amarela” precisava ser sane-ado, enfatizou Rui Barbosa em seu

discurso no Teatro Municipal emmaio de 1917. Com a persistênciade doenças como febre amarela emalária em diversas regiões brasi-leiras, podemos dizer que os ensi-namentos do cientista foram esque-cidos pelas autoridades sanitárias?

Oswaldo Cruz emcharge publicadana revista francesaChanteclair, em 1911

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Nara: Não. Até porque OswaldoCruz teve continuadores. Carlos Chagasfoi uma figura muito importante na con-tinuidade ao que Oswaldo Cruz tinhafeito na Diretoria-Geral de Saúde Públi-ca. Ele saiu da diretoria em 1909 e Cha-gas assumiu dez anos depois, em 1919.Quando Chagas cria o Departamento Na-

cional de Saúde Pública, nos moldes doque se pensava o que seria importanteem termos de saúde da população, asendemias, isso teve continuidade depois.Chagas fica até 1925-26, mas, quandoGetúlio Vargas assume o poder em 1930,já havia esse movimento político lidera-do pelo Belisário Pena em 1918. Todoseram médicos, mas com o Chagas e aentrada da Fundação Rockefeller no Bra-sil, com quem faz um acordo, formam-se pessoas nos anos de 1930. Getúlioadotou isso, formar pessoas especifica-mente especializadas na saúde pública.Então, não houve uma perda: a mortedo Oswaldo, o que ele iniciou – e não éele sozinho, insisto, é um grupo de mé-dicos –, teve sequência. Esse caso [defebre amarela ] em Minas Gerais e Espi-rito Santo que a gente está vendo agoraé falha de política pública, porque hojese sabe o que se tem que fazer; esseconhecimento está assentado, consoli-dado. É uma falha do aparato burocrá-tico estatal. O que tenho lido é isso, ine-ficiência operacional. Você pode ver emoutros casos de ameaças de epidemia,rapidamente se consegue controlar. Afebre amarela urbana não existe aqui[no Rio de Janeiro] desde 1942. É muitodiferente do que havia 100 anos atrás,quando ninguém sabia como as pesso-as tinham febre amarela.

Outro mito destacado em seulivro é o do progresso social resul-tante da atividade científica. A se-nhora verifica a permanência daideia da ciência como uma chavepara a resolução dos problemassociais do país?

Nara: A ideia da ciência como uminstrumento do progresso é um discursodo final do século 19. A geração doOswaldo Cruz, grande parte dela, estáinfluenciada por essa ideologia. A par-tir dos anos 1960/70, certos tipos de co-nhecimento, como a biologia, a física,campos que têm muito impacto na so-ciedade, passaram a ter uma crítica so-cial muito forte. De lá para cá, achoque isso só se intensificou. Pessoalmen-te acho que a ciência é um instrumentocada vez mais importante. Eu sou umaracionalista, acho que continua tendoimportância para a minimização das

nossas necessidades, dos nossos sofri-mentos humanos. Acho também quese Oswaldo Cruz estivesse vivo estariapreocupado com isso, porque acho queele era um exemplo de um cientista comalguns cuidados. A gente não pode ima-ginar que a ética médica que se temhoje é a mesma daquele período. Hojesão proibidas ou reguladas coisas quese faziam naquele momento, como usode pessoas em experiências científicas.

Que lugar algumas das ideiasque nortearam Oswaldo Cruz –como a defesa da ciência e da saú-de pública como instrumentos dedesenvolvimento do país – têm nomundo de hoje, em uma conjuntu-ra de recessão econômica, ajustefiscal pesado e crise política?

Nara: A gente tem que continuarlutando por isso, porque é um instrumen-to importante de desenvolvimento. A ci-ência e a tecnologia são coisas muitoimportantes para que o Estado brasileirodê atenção e a gente vive uma crisemuito séria nesse campo, com um Mi-nistério da Ciência e Tecnologia [Inova-ção e Comunicações] com grandes difi-culdades de recursos para financiarpesquisa e ensino, mas a gente não podedesistir. Temos que continuar achandoque isso é importante e cobrar dos go-vernantes que não fique lá no último lu-gar das prioridades do governo.

Que frase usaria para definirOswaldo Cruz?

Nara: Eu vou usar uma frase deleque eu acho que o define muito bem.Ele tinha alguns lemas, esse é um famo-so. Dizia e escrevia: “Fé eterna na ciên-cia”. Ele era um racionalista, um cientis-ta que acreditava que o conhecimentocientifico poderia contribuir para a cons-trução de uma nação brasileira civiliza-da, moderna, tal como ele vislumbrounas numerosas viagens que fez. Enfim,Oswaldo Cruz achava que poderíamoster outro padrão econômico e cultural, ea ciência era um instrumento disso.

Também se considera racionalista?

Nara: Sim, com certeza: “Fé eter-na na ciência”!

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Fé eterna na[divulgaçãoda] ciênciaSite de Obras Raras mantém viva ideia docientista Oswaldo Cruz sobre importânciada difusão do conhecimento

ESPECIAL

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André Bezerra

esde sua “these” de li-vre-docência na cadeirade Higiene e Mesologiada Faculdade de Medici-na do Rio de Janeiro a

tratados sobre a vacina contra a pestee a profilaxia da febre amarela, partedo legado científico de Oswaldo Cruzjá está a um clique de distância paraquem quiser se aprofundar em sua obra.Por meio do site de Obras Raras da Fio-cruz (www.obrasraras.fiocruz.br), suaprodução digitalizada vem sendo difun-dida na internet, sob os pressupostos dapolítica de acesso aberto.

Apesar de não ter vivido para pre-senciar os avanços das tecnologias di-gitais da informação e da comunica-ção, Oswaldo Cruz teria ficado felizem ver a consolidação da platafor-ma. “Era um homem à frente de seutempo. Para ele, ciência não preci-sava apenas de laboratórios, equipa-

mentos e as pessoas que faziam aciência, mas também uma boa bibli-oteca. Ele privilegiou a informação nocampo científico”, explica o chefe daBiblioteca do Instituto Nacional deControle de Qualidade em Saúde,Alexandre Medeiros, autor de disser-tação sobre o contexto da informa-ção na época do cientista.

Até o momento, oito documen-tos já constam no site, que disponibi-lizará progressivamente grande par-te do acervo da Seção de Obras Rarasda Biblioteca de Manguinhos e deoutros acervos da Fundação, pormeio do Laboratório de Digitalizaçãode Obras Raras do setor de Multimei-os do Instituto de Comunicação e In-formação Científica e Tecnológica emSaúde (Icict). “Os documentos pas-sam por um processo de conservaçãoe preservação e aqui são acondicio-nados para a digitalização”, explicao fotógrafo Rodrigo Méxas, um dosresponsáveis pela tarefa.

Títulos disponíveis

Allocução proferida na abertura do cursode pathologia geral (1917)

Peste (1906)

Relatorio àcerca da molestia reinante emSantos (1900)

Dos accidentes em sorotherapia (1902)

Discurso pronunciado na AcademiaBrazileira de Letras (26 de junho de 1913)

A vaccinação anti-pestosa: trabalho doInstituto Sôrotherapico Federal do Rio deJaneiro (Instituto de Manguinhos, 1901)

Prophylaxia da febre amarella (1909)

A vehiculação microbiana pelas águas(these,1893)

“O site de Obras Raras se insere den-tro dessa visão de Oswaldo Cruz justa-mente por fazer com que o material sejadivulgado e difundido, ampliando parao público o acesso ao conhecimento”,opina Medeiros. Com o acesso digital,as obras raras também ganham maiorproteção, pois passam a receber menosmanuseios, sem deixar de estarem à dis-posição de pesquisadores e estudiosos.

A reunião de sua obra até entãovinha sendo consultada na Opera Om-nia, publicação lançada no centenáriode nascimento de Oswaldo Cruz, há45 anos. O livro, organizado pela en-tão chefe da Divisão de Informação daFiocruz, Emília Bustamante, traz em for-mato impresso todos os seus trabalhosescritos, em fac-símile. A capa traz aimagem do ex-libris de Oswaldo Cruz,selo comum usado antigamente comomarca identificadora de coleções pes-soais, produzido pelo ateliê Stern, emParis, e onde consta a frase “Fé eternana ciência”, em latim.

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Brasil viu um século pas-sar desde que perdeu umde seus filhos mais notá-veis: em fevereiro de 1917morria Oswaldo Gonçal-

ves Cruz. Filho devotado, pai e maridoamoroso, o cientista foi responsável porpromover profundas transformações nopaís. Seus legados são numerosos. Ocontrole das epidemias de febre ama-rela, varíola e peste bubônica. O esta-belecimento da vacinação como umaprática de rotina no país. A nacionali-zação da ciência médica. Em home-nagem ao seu patrono, o InstitutoOswaldo Cruz (IOC/Fiocruz) desenvol-veu um projeto especial que aborda suavida e seu legado. Com documentosde valor singular, gentilmente cedidospela Casa de Oswaldo Cruz (COC/Fio-cruz), o projeto Oswaldo Inspira: 100anos sem Oswaldo Cruz (1872-1917)criou um espaço na internet que vaialém da biografia do pesquisador, jálargamente explorada: a iniciativa traz

detalhes e curiosidades sobre este bra-sileiro que, de criticado devido à im-plementação de medidas impopularesde saúde pública, se converteu emherói nacional. O projeto está disponí-vel no site www.ioc.fiocruz.br/oswal-doinspira.

“Nós recorremos a livros e docu-mentos com relatos de pessoas queconviveram diretamente com OswaldoCruz para construir um mosaico de as-pectos que procuram, um século apósa sua morte, nos aproximar da figuramultifacetada deste homem guiadopelo lema de ‘fé eterna na ciênca’”,destaca a jornalista Raquel Aguiar, ide-alizadora do projeto. Da infância à for-mação na Faculdade de Medicina doRio de Janeiro, passando pelo casamen-to, filhos, viagens e trabalho, o projetorelembra a vida de Oswaldo Cruz e trazaspectos inesperados: o gestor ousadocapaz de medidas impopulares, quenão esmorecia frente à difamação erumava ao túmulo do pai quando pre-

Legado e inspiração

cisava tomar decisões importantes; ochefe que pedia com voz branda eantecipava as necessidades daquelesque estavam à sua volta; o amante dedoces, que guardava guloseimas nogabinete em meio aos livros.

“Um dos destaques do projeto é,sem dúvida, a faceta de Oswaldo Cruzenquanto fotógrafo”, destaca Raquel,acrescentando que o apoio da equipeda Sala de Consulta do Departamentode Arquivo e Documentação da Casade Oswaldo Cruz (COC/Fiocruz) foi fun-damental. Uma das novidades do pro-jeto é trazer a público os álbuns quemostram a paixão do cientista pela fo-tografia. O acervo inédito que estavasob guarda do neto de Oswaldo Cruz,o também médico Eduardo OswaldoCruz, falecido recentemente, traz ce-nas do cotidiano e registros da tempo-rada do cientista com a família emParis, na virada do século 19 para oséculo 20, quando concluiu sua forma-ção no Instituto Pasteur.

Projeto Oswaldo Inspira reúne aspectos pouco conhecidosdo cientista, como o diletantismo pela fotografia

O

Acima: capa do site doprojeto Oswaldo Inspira. Ao

lado: fotos feitas por OswaldoCruz em viagem à Europa

ESPECIAL

Page 20: ESPECIAL Ano Oswaldo...ção de conhecimento em áreas diver-sas, como a microbiologia e a medicina tropical, tornando a instituição capaz de atuar também no controle à epide-mia

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