espaçotempo & ancestralidade em comunidades afroameríndias

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Espaçotempo & Ancestralidade em comunidades afroameríndias. Uma perspectiva decolonial desde dentro. Erenay Martins 1 Resumo A cosmovisão de culturas de matrizes africanas e ameríndias trazem conhecimentos transmitidos através da oralidade que permeiam a simbologia como representação do imaginário mitológico e proverbial impressos nas artes e na corporeidade destes povos desde as primeiras formas de escrita por eles desenvolvidas. Esta cosmovisão reune conceitos dissociados, o espaço e o tempo. Estas culturas apresentam a concepção de espaçotempo, onde o espaço é a materialização comunitária do tempo, que é regido pela natureza e a mitologia. A mitologia, a ancestralidade e seus arquétipos regem a vivência cotidiana, a organização social e a maneira de territorializarem-se. 1. Introdução Este trabalho apresenta um estudo que aborda a concepção de espaçotempo vivenciada por comunidades que, em suas relações com o território, mantém seu imaginário vinculado ao elo da ancestralidade afroameríndia. A partir dos estudos do imaginário, da teoria crítica racial e geográfica, em uma perspectiva da interseccionalidade 2 , desenvolvemos um olhar desde dentro (SANTOS, 2002) das matrizes culturais dos povos originários africanos e ameríndios, para lançar uma base de como pensar e gerar conhecimento a partir do lugar de fala das periferias do capitalismo colonialista. Compreendemos o passado colonial como formação de estrutura binária da sociedade brasileira (MUNANGA, 2006). De um lado a classe dominante formada por representantes da baixa nobreza portuguesa, os capitães donatários e suas famílias, que herdariam as capitanias hereditárias, juntamente que com os juristas enviados para fiscalizar os capitães, formavam a elite colonial brasileira e juntos com o clero, comandavam os rumos do país. Do outro lado, povos escravizados, 1 * Geógrafa e doutoranda pelo Departamento de Geografia FFLCH/USP, mestra em Educação pela FE/USP, arteducadora e formadora em práticas educativas de matrizes afroameríndias e professora da rede municipal de educação da prefeitura de São Paulo. Erenay Martins-Maciel. http//lattes.cnpq.br/2025834918422523 2 Corresponde à perspectiva de análise que aborda as experiências e vivências submetidas a múltiplas formas de opressão, de maneira simultânea e embricadas, vemos como categorias de análise as condições sociais de gênero, raça e classe. Nossas principais referências são Kimberlé Crenshaw (2002), Sueli Carneiro (2003) e Sheila S. Walker (2018).

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Page 1: Espaçotempo & Ancestralidade em comunidades afroameríndias

Espaçotempo & Ancestralidade em comunidades

afroameríndias. Uma perspectiva decolonial desde dentro.

Erenay Martins1

Resumo

A cosmovisão de culturas de matrizes africanas e ameríndias trazem conhecimentos

transmitidos através da oralidade que permeiam a simbologia como representação do imaginário

mitológico e proverbial impressos nas artes e na corporeidade destes povos desde as primeiras

formas de escrita por eles desenvolvidas.

Esta cosmovisão reune conceitos dissociados, o espaço e o tempo. Estas culturas

apresentam a concepção de espaçotempo, onde o espaço é a materialização comunitária do tempo,

que é regido pela natureza e a mitologia. A mitologia, a ancestralidade e seus arquétipos regem a

vivência cotidiana, a organização social e a maneira de territorializarem-se.

1. Introdução

Este trabalho apresenta um estudo que aborda a concepção de

espaçotempo vivenciada por comunidades que, em suas relações com o território,

mantém seu imaginário vinculado ao elo da ancestralidade afroameríndia. A partir

dos estudos do imaginário, da teoria crítica racial e geográfica, em uma perspectiva

da interseccionalidade2, desenvolvemos um olhar desde dentro (SANTOS, 2002)

das matrizes culturais dos povos originários africanos e ameríndios, para lançar uma

base de como pensar e gerar conhecimento a partir do lugar de fala das periferias do

capitalismo colonialista.

Compreendemos o passado colonial como formação de estrutura binária da

sociedade brasileira (MUNANGA, 2006). De um lado a classe dominante formada

por representantes da baixa nobreza portuguesa, os capitães donatários e suas

famílias, que herdariam as capitanias hereditárias, juntamente que com os juristas

enviados para fiscalizar os capitães, formavam a elite colonial brasileira e juntos com

o clero, comandavam os rumos do país. Do outro lado, povos escravizados,

1 * Geógrafa e doutoranda pelo Departamento de Geografia FFLCH/USP, mestra em Educação pela

FE/USP, arteducadora e formadora em práticas educativas de matrizes afroameríndias e professora da rede municipal de educação da prefeitura de São Paulo.

Erenay Martins-Maciel. http//lattes.cnpq.br/2025834918422523

2 Corresponde à perspectiva de análise que aborda as experiências e vivências submetidas a múltiplas formas de opressão, de maneira simultânea e embricadas, vemos como categorias de análise as condições sociais de gênero, raça e classe. Nossas principais referências são Kimberlé Crenshaw (2002), Sueli Carneiro (2003) e Sheila S. Walker (2018).

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ameríndios, africanos e mestiços, considerados bastardos, sem sobrenomes

“nobres”, os cristãos-novos, vistos como um amalgama de hibridismo e sem cultura,

prerrogativas racistas em que a diferença entre civilizados e selvagens passa pela

cor da pele e os feitores, bandeirantes e capatazes.

Falar em reparação histórica parece incomodar não somente as classes

dominantes. O povo brasileiro, antes de existir, precisa se localizar e se posicionar.

Não se trata simplesmente de uma oposição de cores de pele e sim de assumir os

privilégios que nos segregam e repensá-los. Neste país a história não foi solidária,

foi de guerras e de opressões, o poder foi tomado através da violência. É nítido que

o presente não será diferente, uma vez que a lógica instaurada desde sua formação,

a lógica colonial, perpetua até hoje, sem que houvesse qualquer indenização ou

reparação histórica.

Deve-se balancear direitos em pé de igualdade, e pra isso, é necessário se

questionar esta sociedade e o que define sua distribuição de privilégios sociais.

Exigir direitos humanos e cidadania, como já nos explicou Milton Santos3 em

documentário em que afirma que “no Brasil jamais houve cidadania, que a classe

média não quer direitos, ela quer privilégios, e os pobres não têm direitos. Não há

pois cidadania neste país, nunca houve”.

Ao explanar sobre a condição negra no Brasil, ele discorre sobre como é

diferente ser negro em vários continentes por onde passou, e que no Brasil,

(...) a história de cada um de nós tem um papel a ver com a maneira

como reagimos enquanto indivíduo, mas a maneira como a sociedade se

organiza, é que dá as condições objetivas para que a situação possa ser tratada

analíticamente permitindo por conseguinte, um posterior tratamento político.

Porque a política para ser eficaz depende de uma atividade acadêmica,

acadêmica, eficaz.4

2. Metodologia

Neste trabalho, buscamos abarcar as concepções de mundo geradas pelas

matrizes culturais de origens africanas e ameríndias. A dissertação de mestrado

intitulada Espaçotempo & Ancestralidade de matriz africana em terras caboclas

(MARTINS-MACIEL, 2015) traz algumas contribuições bastante significativas dessas

tradições para a sociedade atual brasileira, alguns dos potenciais de pesquisa e

3 Depoimento vídeo-documentário – https://www.youtube.com/watch?v=b9uJu_IE_k&feature=share 4 https://www.youtube.com/watch?v=bvEgzA6SACA&feature=share

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campos investigativos para uma ciência decolonial.

Um dos pontos reforçados é a própria denominação de caboclo, presente no

título do trabalho (MARTINS-MACIEL, 2015), o termo foi difundido como se

resignasse a mestiçagem entre brancos com os negros da terra5. Entretanto,

Caboclo/a é o nome dado à entidades que carregam a força e presença ancestral

ameríndia, reverenciadas como mestre/as e condutore/as de rituais de cura, passou

a ser cultuado como a força destas terras em cultos africanos em territórios

ameríndios. Por isso, a caboclaria é a própria presença e permanência ancestral

destas terras e seu poder, sua ação de cura. Pra falar do poder desta palavra, sua

etimologia tem origem no tupi antigo, caabo icó; caabo só, significa caçar

(BARBOSA, 1951: 42) é o símbolo do/a caçador/a, que é guerreiro/a também, no

imaginário religioso afroameríndio. Dentro do panteão afroameríndio, a figura,

entidade, guia espiritual, comanda grandes falanges de qualidades específicas,

coordena terreiros, sendo considerado/as mestre/as, assim chamado/as em

Pernambuco. No Candomblé, o culto à terra, a terra em que se vive e dela se retira

seu sustento, é priorizado anualmente. As oferendas à estas cerimônias são

dedicadas a/os Cabocla/os, como na Bahia, que o dia da Independência Baiana, 2

de julho, celebra-se também o Dia da/o Cabocla/o6, data reservada para o cultos e

cerimoniais para estas falanges espirituais.

Tampouco podemos nos esquecer da origem da palavra umbanda7, que

também passou por um embranquecimento histórico, através da apropriação no

processo de se gerar símbolos nacionais da “brasilidade”. Suas práticas vão muito

além da institucionalização desta enquanto religião ocidentalizada, cristianizada. Sua

tradição vem dos rituais de cura dos povos de línguas bantu, através da

ancestralidade, a reconciliação com os elementos da natureza e com as divindades

ancestrais. Assim como conjuminam as práticas de pajelança e benzedura de

rezadeira/os e raizeira/os, “mães/pais de àse” ou “de santo”8, que dominam os

5 MONTEIRO, 1994. 6 Menção à Catarina Paraguaçu, indígena Tupinambá liderança nas lutas pela independência da

Bahia

7 … O vocábulo da umbanda origina-se no umbundo e no quimbundo, significando arte de curandeiro, ciência médica, medicina. Em umbundo, o termo que designa o curandeiro, o médico tradicional, é mbanda; e seu plural (uma das formas) é imbanda. Em quimbundo, o singular é kimbanda, e seu plural imbanda, também. Observe-se que a medicina tradicional africana é também ritualística, daí o mbanda ou kimbanda ser comente confundido com o feiticeiro (ndoki em quicongo – q. v. Endoque) que faz malefícios. (LOPES, 2006, p. 219). Assim como ka-ndombe, presente no proto-bantu, encontramos a partícula ka indicando o diminutivo nessa língua, e também presente na língua kibundu: kiandombe pode ser lido como “negro”.

8 O/as quimbanda nas origens do kimbundo; yalorisàs/babalorisàs/babalawo nas línguas de tronco yoruba.

Page 4: Espaçotempo & Ancestralidade em comunidades afroameríndias

conhecimentos ritualísticos das plantas e da magia dos elementos da natureza.

O estilo reflexivo desta pesquisa abrange principalmente as teorias de

Gilbert Durand (2001), método desenvolvido em seu livro e aprimorado pela

mitohermenêutica de Marcos Ferreira-Santos (2005), quem orientou este trabalho

durante o mestrado. Analisando relatos e vivências pelo viés de regimes de imagens

que sinalizam a uma organização mítica do pensamento. Além de ir de encontro com

a Razão Sensível de Michel Maffesoli (1998) em que atribui importância fundamental

às metáforas, à intuição e à sensibilidade. O que dialoga com os pensamentos de

matrizes afroameríndias como de Daniel Munduruku (2001), David Eduardo de

Oliveira (2003). Jesús Chucho García (2018), ressalta-nos princípios metodológicos

de pesquisa e fazer ciência calcados nas tradições africanas como as de povos de

línguas bantu, do antigo Egito. Estabelecemos diálogo também nesta perspectiva

com a obra de Paulo Freire (1983, 2002 e 2003), em que traz as memórias do

continente africano como parte do imaginário afetivo, cognitivo e formativo para os

povos das diásporas.

Este trabalho se apresenta com ênfase na pesquisa qualitativa, contando

com caminhos ampliados pelas ferramentas conhecidas da história oral (MEIHY,

2000). Refletimos sobre a organização do pensamento a partir do princípio da

ancestralidade, anunciando um percurso em que o passado rege o enredo presente

através da interpretação mitohermenêutica. A ancestralidade guia como método e

define o “olhar pra trás por cima do ombro” que diz o contra-mestre de capoeira

Pinguim, nos apontando à recursividade (FERREIRA-SANTOS, 1998) contínua, que,

se fosse desenhada apareceria espiralada. Assim, chegamos ao olhar do símbolo

mais evidente do conjunto dos Adinkra9, o símbolo Sankofa, que pode ser

transliterado pelo provérbio tradicional de língua Akan, da África Ocidental, “olhe

para trás e aprenda o que importa”. (Sanko – voltar, fa – buscar, trazer). Este

símbolo é hoje uma representação que reune a ciência tradicional africana, presente

no imaginário de resistência das diásporas10 africanas como símbolo e conceito,

Sankofar, historicizar o percurso para ressignificar o presente e construir o futuro.

(NASCIMENTO, 1994).

9 Uma das formas de escrita mais antigas da humanidade, originária do oeste africano

(NASCIMENTO,1994). 10 Do grego, dia: através de e spora: semente, semear. Conceito utilizado para se referenciar a povos

dispersos, de maneira imposta e forçada, mas que mantém uma conexão (real e imaginária) com seu lugar e cultura de origem. (http://etimologias.dechile.net/?dia.spora)

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Símbolos Sankofa em uma fotografia da autora, encontrada na paisagem do centro velho de

Salvador/BA – Santo Antônio Além Carmo.

Presente na paisagem investigada e que conduziu esta pesquisa ao

conjunto de símbolos Adinkra; a produção material das culturas afroameríndias e

suas narrativas míticas; a referência do potencial criativo e imaginativo destas

culturas, sendo estas as marcas da resistência destes povos, de suas perspectivas,

concepções cosmogônicas e sua cosmovisão (OLIVEIRA, 2003). Estes são os

referenciais que colocamos em diálogo com a história oral de nosso/as

interlocutore/as, que nos guiam à fundamentação de novas epistemologias,

parâmetros relacionais.

Enfatizamos a visão de mundo presente e resistente nestas comunidades

que mantém suas formas culturais (OLVIVEIRA, 2003) pautadas pelos ensinamentos

da oralidade e da ancestralidade. Sua visão de mundo envolve a matrialidade como

aspecto fundamental de sua organização do imaginário e social. Conceito que

apresenta uma comum-unidade regida pela força matrial, ou seja, pela constituição

de um equivalente simbólico entre mãe, sábia, amante e curandeira que carrega

maestrias religadoras e remediadoras, num exercício da razão sensível.

(FERREIRA-SANTOS, 2005b). Sendo assim, a contribuição de vozes femininas

enquanto interlocutoras e escritoras é apresentada como fundamental para a

elaboração destes novos paradigmas de reterritorializações provocadas por

comunidades afroameríndias nas periferias urbanas e no campo brasileiro. A partir

de vivências experienciadas, de narrativas e relatos de vida considerando-as como

“escrituras de si”, narrativas como obras de vida. Análise textual e de obras de vida,

a partir de narrativas mitológicas, investigação de arquétipos e referências ancestrais

que permeiam as tradições culturais e filosóficas destes grupos e comunidades

envolvidas (FERREIRA-SANTOS, 2010).

Page 6: Espaçotempo & Ancestralidade em comunidades afroameríndias

Este conjunto metodológico dialoga com as novas perspectivas de pesquisa

sobre territorialidades abordadas por geógrafos contemporâneos. Gervásio Rodrigo

Neves (1996) considera que os conflitos entre “territorialidade” x “desterritorialidade”

e reterritorialização atingem todas as escalas: a do globo, dos blocos, dos Estados-

nações, das regiões, das cidades. Considera que os novos territórios estão sendo

formados e transformados em todas as partes sobre os escombros das

desterritorialidades, as novas territorialidades estão em constante processo de

(re)construção11.

Milton Santos (2001) nos apresenta o processo de desenraizamento como

característico da necessidade de renovação do capitalismo, ao analisar o

antagonismo entre a cultura de massas e as chamadas culturas populares. Segundo

ele, a presença da cultura de massas busca homogeneizar e impor-se sobre as

culturas populares, em um “empenho vertical unificador e homegeneizador

conduzido por um mercado cego, indiferente às heranças e às realidades atuais dos

lugares e das sociedades”12.

Rogério Haesbaert, (2004) trata dos múltiplos territórios e da

multiterritorialidade, aponta para as reterritorializações múltiplas, as quais são

construídas por grupos ou pessoas que constroem seus territórios na conexão

flexível de territórios multifuncionais e multi-identitátios13. As problematizações

acerca das novas territorialidades e os conceitos de colonialismo, descolonização e

decolonialidade estão abertas à dialogicidade, pois apontam caminhos para também

questionar a hegemonia cultural capitalista.

3. Espaçotemporalidade em matrizes afro-ameríndias

O Espaçotempo de que estamos tratando, na concepção ancestral, é

unitário. Cada território é a materialização da acumulação desigual14 de

espaçotempos, em que convivem simultaneamente diterentes

espaçotemporalidades. Cada momento é recheado de instantes, acontecimentos

com sentidos dados pela vivência, que ocorre o cotidiano. Para Vaneigem, o espaço-

tempo vivido é o espaço-tempo da transformação e o espaço-tempo dos papéis

(personagens sociais) é o da adaptação. “O presente é o espaço-tempo a construir.

11 NEVES, 1996: 273. 12 SANTOS, 2001: 143. 13 HAESBAERT, 2004: 8. 14 “O espaço deve ser analisado na forma de sistemas espaço-temporais e conta com categorias de

análise: formação sócio-espacial (derivada do conceito marxista de formação social ou formação socioeconômica)...” (BRAGA, 2007: 69).

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Ele implica na correção do passado”.15 O espaçotempo vivido, portanto, o presente

está sempre por construir.16 Nesta espaçotemporalidade é onde e quando se capta a

presença, o que neste instante acontece, como um mosaico do contexto. “Os

diversos logradouros, ruas, estradas não são percorridos igualmente por todos. Os

ritmos de cada qual – empresas ou pessoas – não são os mesmos. Talvez fosse

mais correto utilizar aqui o termo temporalidade em vez da palavra tempo”.17

A espaçotemporalidade vivida é o nível da prática social no cotidiano. Nesta

espaçotemporalidade prevalece as sociedades de tradições agrárias. São estas que

possuem a integralidade de humano e natureza, por isso cultuam e reverenciam a

terra/natureza como parente. Estas sociedades podem ser chamadas unitárias18,

organizam-se em torno do espaçotemporalidade cíclica, espiralada. Progride e

retorna sem nunca se desprender completamente e sem nunca escapar de fato de

sua órbita. “O espaço das sociedades unitárias organiza-se em função do tempo”19.

Este espaço estende-se do centro à circunferência, do céu à terra, do Uno ao

múltiplo.20 O tempo, propriamente dito, é regido por um ciclo natural, indissolúvel,

que corresponde ao sagrado, ao ancestral. Mas o espaço é concedido às

sociedades dos seres vivos, e as humanas, conservando um caráter especialmente

humano21. Contramestre Pinguim trata do espaçotempo, no instante que

rapidamente observamos e sentimos o movimento dos corpos, na corporeidade, não

é cronológico “o tempo que não é o do relógio, é o da vida”. O território é o que se

faz no espaçotempo, como nos transformamos no mundo e como este se mostra e

se transforma.

“O poder do mito reúne os elementos separados, faz viver

unitariamente.22”Nestas sociedades, herdeiras das culturas de matriz africana e

ameríndia, o mito é elemento de integração, é a expressão da ancestralidade, de

explanação e associação aos fundamentos da natureza. Também são consideradas

agrárias porque sua visão de mundo é atrelada aos ritmos orgânicos e ciclos

naturais regidos pelo cosmo. Desenvolveram sua vida cotidiana a partir do respeito e

aprendizagem entre comunidade e o meio que a sustenta. Com estudo em etnias-

15 VANEIGEM, 2002: 231. 16 VANEIGEM, 2002: 239. 17 SANTOS, 2008: 42-3

18 VANEIGEM, 2002: 232; 235

19 VANEIGEM, 2002: 235

20 VANEIGEM, 2002: 235

21 Mas com um viés naturalista xamânico, na medida em que insere seres humanos em pé de igualdade em direitos à vida tanto quanto demais seres viventes no planeta e no universo.

22 VANEIGEM, 2002: 235

Page 8: Espaçotempo & Ancestralidade em comunidades afroameríndias

nação23 africanas, especificamente de tradições de línguas bantu e yorubá, é então

propagada em um princípio helicoidal.

Processo de crescimento do Òkotó, caracol – símbolo

de Exu. (SANTOS, 2002)

Esta é uma imagem alusiva à propagação de energia espaçotemporal de

Exú, que detém, em sua parcela feminina e masculina, a propagação da

fecundidade, do novo, a potencialidade da vida, a dialética exuística.24 A maior

representação desta unidade dinâmica são as resoluções mediante as situações-

limites na vida cotidiana pessoal, (1) a situação a se superar, (2) o/a agente da

transformação (3) a potencial mudança/ou resultado da dicotomia. O espaçotempo

crepuscular, do movimento, da transitoriedade, do devir. A mediação e a triangulação

são critérios de sua existência, o devir. O terceiro é o primeiro, dialéticamente

crepuscular, transitando entre o familiar e o desconhecido, estranhamento e

aproximidades.25 Instalamo-nos no espaçotempo do lugar, “o melhor lugar do mundo

é aqui, e agora...”26 Seus indícios são e estão materializados na paisagem através

da relação entre a natureza e a realização do trabalho humano, ou melhor, da

realização no encontro entre a natureza e o trabalho humano.

Já o caso da matriz européia, em que ocorre sua contínua fragmentação e

dissociação espaçotemporal. O tempo das sociedades industriais, são dissociativas,

no qual o espaço é privativo, exclusividade para quem pode comprá-lo. Caracteriza-

se inicialmente pela sua transformação em “… uma série de pontinhos

aparentemente independentes, mas que na realidade integram-se, segundo certo

23 Uma etnia é um conjunto de pessoas que, histórica ou mitologicamente, têm uma linguagem

em comum, uma mesma religião ou cosmovisão, uma mesma cultura e moram geograficamente num mesmo território. Algumas etnias construíram sozinhas nações. Este é o caso de várias sociedades indígenas brasileiras, africanas, asiáticas, australianas, etc., que são ou foram etnias-nações (MUNANGA, 2004).

24 SANTOS, 2002: 244

25 FERREIRA-SANTOS, 2005: 71; 91. 26 Canção de Gilberto Gil, 1977.

Page 9: Espaçotempo & Ancestralidade em comunidades afroameríndias

ritmo de sucessão”.27

O espaçotempo unitário é simultaneamente e transitoriamente crepuscular, é

um campo de percepção, sensível e sensitivo, transeunte, conectivo, compartilhável.

É captado através da razão sensível, reunindo todos os sentidos e campos de

percepção. O espaçotempo crepuscular é o entremeio, a trajetividade entre pólos

distantes de uma jornada, o caminhar. Tempo de percurso e espaço que se abre sob

o caminhar do peregrino que, para “o caminhante, o caminho se faz ao andar”28...

A própria natureza também se realiza como espaçotempo,

espaçotemporalmente, e a humanidade e seu trabalho também podem ser tidos

como realização espaçotemporal da natureza. A artificialidade, causada pelo

trabalho humano, ocorre como mecanismo de desnaturalização exercida pelo ser

humano em seu território, conforme o grau de distanciamento da natureza de cada

grupo social ou cada sociedade, de maneira local ou global. Dependendo do artifício,

ou técnica.

Assim, empiricizamos o tempo tornando-o material e assimilamos,

desse modo, ao espaço, que não existe sem a materialidade. A técnica entra

aqui como um traço-de-união, história e epistemologicamente.29

Mas não há nada que o humano, pessoa ou coletivo, faça que esteja

desprendido da natureza, e estando atrelado ao artifício, pode retornar e voltar-se à

natureza como refúgio à sua cura, à renaturalização ou reequilíbrio, religare, contra a

fetichização da liberdade, a alienação da natureza, o desenraizamento territorial.

A cada momento mudamos juntos com o espaçotempo. Na ontologia de

Paulo Freire30, o ser humano está sempre em construção e releitura, ou seja, sendo

humano. O lugar é uma expressão do mundo em uma localidade, entrelaçando os

acontecimentos a ela e nela implicada. O lugar (espaço-tempo-mundo/local) é

linguagem e também meio onde a vida se torna possível. A percepção do que o

espaço é dependente e de sua historicização, resulta dos processos técnicos da

construção do espaçotempo social.31

Nisso, o papel do lugar é determinante. Ele não é apenas um quadro de

27 VANEIGEM, 2002: 237

28 (Caminhante, não há caminho, se faz caminho ao andar…) verso de poema do poeta espanhol Antonio Machado, da seleção de cantos poéticos denominada Proverbios y Cantares. https://cdeassis.wordpress.com/2009/08/13/os-caminhos-de-antonio-machado/

29 SANTOS, 2008: 39. 30 FREIRE, 1983. 31 SANTOS, 2008: 38.

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vida, mas um espaço vivido, isto é, de experiência sempre renovada, o que

permite, ao mesmo tempo, a reavaliação das heranças e a indignação sobre o

presente e o futuro. A existência naquele espaço exerce um papel revelador

sobre o mundo. Globais, os lugares ganham um quinhão (maior ou menor) da

'racionalidade' do 'mundo'.32

4. Considerações de encerramento

Aproximar-se do espaçotempo de uma comunidade ou de um lugar é

adentrar-se no mundo em uma escala local envolvida num contexto global. A cultura

é seu principal anunciante, pois é técnica e comunicação em ação, em situação,

vivida e em um cotidiano. De dentro para fora, nunca de fora para dentro, ao menos

se considerar o primeiro caminho primordial, o da Ancestralidade e segundo a

reparação, o olhar de quem precisa aprender com o diferente para aceitar a

diversidade, assumindo sua insuficiência e eliminando a prepotência. Assim como

recorremos a Juana Elbein quando se refere à diferença de um olhar “desde dentro

para fora”, quando salienta a importância de se valorizar a Palavra Atuante, que é

condutora do poder do àse. A oralidade está a serviço da transmissão dinâmica e

permanente, por gerações. Há textos (falados e escritos) apropriados para cada

circunstância ritual sempre transmitidos no nível das relações interpessoais

concretas. Recitados, cantados em invocações, cantigas, narrativas míticas (itans)

que compõem um conjunto de textos constituintes da expressividade

conhecimentos, visões cósmicas, teológicas e éticas.33

Milton Santos nos “alumeia”34 com a epistemologia dos lugares, ao tratar de

cotidiano e território. Resultante dos choques entre os vetores da globalização, que

se instalam para impor sua nova ordem mundial que por sua vez, produz nele uma

contra-ordem, uma reverberação a partir da voz oprimida. Resolvemos este conflito

a partir do fato de que cada pessoa, grupo, instituição, realiza o mundo à sua

maneira. A pessoa, o grupo, constituem o “de dentro” do lugar, com o qual se

comunicam, enquanto o mundo se dá para a pessoa, grupo, instituição, como sendo

o “de fora” do lugar e por intermédio de uma mediação política35 ou a dominação

territorial que trata H. Lefebvre (2006).

Esta lógica rege a propagação da “energia vital”. O que vemos aqui é uma

32 SANTOS, 2001: 114. 33 SANTOS, 2002: 49. 34 Na língua fon, do povo ewe do reino Dahomey (hoje Benin), Lume significa fogo, talvez mais

uma transliteração da língua portuguesa no Brasil, que foi apagada pelo reacismo e o branqueamento.

35 SANTOS, 2001: 114-115.

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conjunção tridimensional em que precisamos, para alcançar tal compreensão, a

fluidez e o preenchimento de vetores implicados por tríades constantemente

relevantes à instância da existência, o espaçotempo-pessoa; espaçotempo-

comunidade; espaçotempo-sociedades; espaçotempo-universo. O que o torna

multiplicadamente crepuscular36, pois está em permanente movimento, no diálogo

dialético entre as extremidades complementares, o equilíbrio precário de que trata

Antônio Nobrega. Compõe então, não somente a expressão corporal das

manifestações populares advindas destas comunidades, mas é um princípio

fundante do pensamento cosmológico e cosmogônico, de sua visão de organização

e realização no mundo. O trajeto que se faz percorrendo.

Sua territorialidade é marcada pela experiência, pela vivência. O registro, a

sistematização e a transmissão do conhecimento é feito pela tradição da oralidade.

O/as mais velho/as são detentore/as do conhecimento e sabedoria, “o saber-fazer”.

O espaçotempo é um campo de percepção, de reterritorialização da mente, do

imaginário regido pela ancestralidade, pelos mitos culturais. Assim, a matrialidade é

o viés condutor de arquétipos femininos que agregam e (re)criam, educam.

O processo de desenraizamento é opressor e busca constantemente

desterritorializar estas populações segregadas espaçotemporalmente. Nesta

dialética de sob(re)vivência, segue a síntese que é um território (re)humanizado

pelas expressões culturais afroameríndias periféricas, que as reterritorializam em

nome da identidade, do reconhecimento, da re(ex)istência e da permanência.

5. Bibliografia

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