espaçotempo & ancestralidade em comunidades afroameríndias
TRANSCRIPT
Espaçotempo & Ancestralidade em comunidades
afroameríndias. Uma perspectiva decolonial desde dentro.
Erenay Martins1
Resumo
A cosmovisão de culturas de matrizes africanas e ameríndias trazem conhecimentos
transmitidos através da oralidade que permeiam a simbologia como representação do imaginário
mitológico e proverbial impressos nas artes e na corporeidade destes povos desde as primeiras
formas de escrita por eles desenvolvidas.
Esta cosmovisão reune conceitos dissociados, o espaço e o tempo. Estas culturas
apresentam a concepção de espaçotempo, onde o espaço é a materialização comunitária do tempo,
que é regido pela natureza e a mitologia. A mitologia, a ancestralidade e seus arquétipos regem a
vivência cotidiana, a organização social e a maneira de territorializarem-se.
1. Introdução
Este trabalho apresenta um estudo que aborda a concepção de
espaçotempo vivenciada por comunidades que, em suas relações com o território,
mantém seu imaginário vinculado ao elo da ancestralidade afroameríndia. A partir
dos estudos do imaginário, da teoria crítica racial e geográfica, em uma perspectiva
da interseccionalidade2, desenvolvemos um olhar desde dentro (SANTOS, 2002)
das matrizes culturais dos povos originários africanos e ameríndios, para lançar uma
base de como pensar e gerar conhecimento a partir do lugar de fala das periferias do
capitalismo colonialista.
Compreendemos o passado colonial como formação de estrutura binária da
sociedade brasileira (MUNANGA, 2006). De um lado a classe dominante formada
por representantes da baixa nobreza portuguesa, os capitães donatários e suas
famílias, que herdariam as capitanias hereditárias, juntamente que com os juristas
enviados para fiscalizar os capitães, formavam a elite colonial brasileira e juntos com
o clero, comandavam os rumos do país. Do outro lado, povos escravizados,
1 * Geógrafa e doutoranda pelo Departamento de Geografia FFLCH/USP, mestra em Educação pela
FE/USP, arteducadora e formadora em práticas educativas de matrizes afroameríndias e professora da rede municipal de educação da prefeitura de São Paulo.
Erenay Martins-Maciel. http//lattes.cnpq.br/2025834918422523
2 Corresponde à perspectiva de análise que aborda as experiências e vivências submetidas a múltiplas formas de opressão, de maneira simultânea e embricadas, vemos como categorias de análise as condições sociais de gênero, raça e classe. Nossas principais referências são Kimberlé Crenshaw (2002), Sueli Carneiro (2003) e Sheila S. Walker (2018).
ameríndios, africanos e mestiços, considerados bastardos, sem sobrenomes
“nobres”, os cristãos-novos, vistos como um amalgama de hibridismo e sem cultura,
prerrogativas racistas em que a diferença entre civilizados e selvagens passa pela
cor da pele e os feitores, bandeirantes e capatazes.
Falar em reparação histórica parece incomodar não somente as classes
dominantes. O povo brasileiro, antes de existir, precisa se localizar e se posicionar.
Não se trata simplesmente de uma oposição de cores de pele e sim de assumir os
privilégios que nos segregam e repensá-los. Neste país a história não foi solidária,
foi de guerras e de opressões, o poder foi tomado através da violência. É nítido que
o presente não será diferente, uma vez que a lógica instaurada desde sua formação,
a lógica colonial, perpetua até hoje, sem que houvesse qualquer indenização ou
reparação histórica.
Deve-se balancear direitos em pé de igualdade, e pra isso, é necessário se
questionar esta sociedade e o que define sua distribuição de privilégios sociais.
Exigir direitos humanos e cidadania, como já nos explicou Milton Santos3 em
documentário em que afirma que “no Brasil jamais houve cidadania, que a classe
média não quer direitos, ela quer privilégios, e os pobres não têm direitos. Não há
pois cidadania neste país, nunca houve”.
Ao explanar sobre a condição negra no Brasil, ele discorre sobre como é
diferente ser negro em vários continentes por onde passou, e que no Brasil,
(...) a história de cada um de nós tem um papel a ver com a maneira
como reagimos enquanto indivíduo, mas a maneira como a sociedade se
organiza, é que dá as condições objetivas para que a situação possa ser tratada
analíticamente permitindo por conseguinte, um posterior tratamento político.
Porque a política para ser eficaz depende de uma atividade acadêmica,
acadêmica, eficaz.4
2. Metodologia
Neste trabalho, buscamos abarcar as concepções de mundo geradas pelas
matrizes culturais de origens africanas e ameríndias. A dissertação de mestrado
intitulada Espaçotempo & Ancestralidade de matriz africana em terras caboclas
(MARTINS-MACIEL, 2015) traz algumas contribuições bastante significativas dessas
tradições para a sociedade atual brasileira, alguns dos potenciais de pesquisa e
3 Depoimento vídeo-documentário – https://www.youtube.com/watch?v=b9uJu_IE_k&feature=share 4 https://www.youtube.com/watch?v=bvEgzA6SACA&feature=share
campos investigativos para uma ciência decolonial.
Um dos pontos reforçados é a própria denominação de caboclo, presente no
título do trabalho (MARTINS-MACIEL, 2015), o termo foi difundido como se
resignasse a mestiçagem entre brancos com os negros da terra5. Entretanto,
Caboclo/a é o nome dado à entidades que carregam a força e presença ancestral
ameríndia, reverenciadas como mestre/as e condutore/as de rituais de cura, passou
a ser cultuado como a força destas terras em cultos africanos em territórios
ameríndios. Por isso, a caboclaria é a própria presença e permanência ancestral
destas terras e seu poder, sua ação de cura. Pra falar do poder desta palavra, sua
etimologia tem origem no tupi antigo, caabo icó; caabo só, significa caçar
(BARBOSA, 1951: 42) é o símbolo do/a caçador/a, que é guerreiro/a também, no
imaginário religioso afroameríndio. Dentro do panteão afroameríndio, a figura,
entidade, guia espiritual, comanda grandes falanges de qualidades específicas,
coordena terreiros, sendo considerado/as mestre/as, assim chamado/as em
Pernambuco. No Candomblé, o culto à terra, a terra em que se vive e dela se retira
seu sustento, é priorizado anualmente. As oferendas à estas cerimônias são
dedicadas a/os Cabocla/os, como na Bahia, que o dia da Independência Baiana, 2
de julho, celebra-se também o Dia da/o Cabocla/o6, data reservada para o cultos e
cerimoniais para estas falanges espirituais.
Tampouco podemos nos esquecer da origem da palavra umbanda7, que
também passou por um embranquecimento histórico, através da apropriação no
processo de se gerar símbolos nacionais da “brasilidade”. Suas práticas vão muito
além da institucionalização desta enquanto religião ocidentalizada, cristianizada. Sua
tradição vem dos rituais de cura dos povos de línguas bantu, através da
ancestralidade, a reconciliação com os elementos da natureza e com as divindades
ancestrais. Assim como conjuminam as práticas de pajelança e benzedura de
rezadeira/os e raizeira/os, “mães/pais de àse” ou “de santo”8, que dominam os
5 MONTEIRO, 1994. 6 Menção à Catarina Paraguaçu, indígena Tupinambá liderança nas lutas pela independência da
Bahia
7 … O vocábulo da umbanda origina-se no umbundo e no quimbundo, significando arte de curandeiro, ciência médica, medicina. Em umbundo, o termo que designa o curandeiro, o médico tradicional, é mbanda; e seu plural (uma das formas) é imbanda. Em quimbundo, o singular é kimbanda, e seu plural imbanda, também. Observe-se que a medicina tradicional africana é também ritualística, daí o mbanda ou kimbanda ser comente confundido com o feiticeiro (ndoki em quicongo – q. v. Endoque) que faz malefícios. (LOPES, 2006, p. 219). Assim como ka-ndombe, presente no proto-bantu, encontramos a partícula ka indicando o diminutivo nessa língua, e também presente na língua kibundu: kiandombe pode ser lido como “negro”.
8 O/as quimbanda nas origens do kimbundo; yalorisàs/babalorisàs/babalawo nas línguas de tronco yoruba.
conhecimentos ritualísticos das plantas e da magia dos elementos da natureza.
O estilo reflexivo desta pesquisa abrange principalmente as teorias de
Gilbert Durand (2001), método desenvolvido em seu livro e aprimorado pela
mitohermenêutica de Marcos Ferreira-Santos (2005), quem orientou este trabalho
durante o mestrado. Analisando relatos e vivências pelo viés de regimes de imagens
que sinalizam a uma organização mítica do pensamento. Além de ir de encontro com
a Razão Sensível de Michel Maffesoli (1998) em que atribui importância fundamental
às metáforas, à intuição e à sensibilidade. O que dialoga com os pensamentos de
matrizes afroameríndias como de Daniel Munduruku (2001), David Eduardo de
Oliveira (2003). Jesús Chucho García (2018), ressalta-nos princípios metodológicos
de pesquisa e fazer ciência calcados nas tradições africanas como as de povos de
línguas bantu, do antigo Egito. Estabelecemos diálogo também nesta perspectiva
com a obra de Paulo Freire (1983, 2002 e 2003), em que traz as memórias do
continente africano como parte do imaginário afetivo, cognitivo e formativo para os
povos das diásporas.
Este trabalho se apresenta com ênfase na pesquisa qualitativa, contando
com caminhos ampliados pelas ferramentas conhecidas da história oral (MEIHY,
2000). Refletimos sobre a organização do pensamento a partir do princípio da
ancestralidade, anunciando um percurso em que o passado rege o enredo presente
através da interpretação mitohermenêutica. A ancestralidade guia como método e
define o “olhar pra trás por cima do ombro” que diz o contra-mestre de capoeira
Pinguim, nos apontando à recursividade (FERREIRA-SANTOS, 1998) contínua, que,
se fosse desenhada apareceria espiralada. Assim, chegamos ao olhar do símbolo
mais evidente do conjunto dos Adinkra9, o símbolo Sankofa, que pode ser
transliterado pelo provérbio tradicional de língua Akan, da África Ocidental, “olhe
para trás e aprenda o que importa”. (Sanko – voltar, fa – buscar, trazer). Este
símbolo é hoje uma representação que reune a ciência tradicional africana, presente
no imaginário de resistência das diásporas10 africanas como símbolo e conceito,
Sankofar, historicizar o percurso para ressignificar o presente e construir o futuro.
(NASCIMENTO, 1994).
9 Uma das formas de escrita mais antigas da humanidade, originária do oeste africano
(NASCIMENTO,1994). 10 Do grego, dia: através de e spora: semente, semear. Conceito utilizado para se referenciar a povos
dispersos, de maneira imposta e forçada, mas que mantém uma conexão (real e imaginária) com seu lugar e cultura de origem. (http://etimologias.dechile.net/?dia.spora)
Símbolos Sankofa em uma fotografia da autora, encontrada na paisagem do centro velho de
Salvador/BA – Santo Antônio Além Carmo.
Presente na paisagem investigada e que conduziu esta pesquisa ao
conjunto de símbolos Adinkra; a produção material das culturas afroameríndias e
suas narrativas míticas; a referência do potencial criativo e imaginativo destas
culturas, sendo estas as marcas da resistência destes povos, de suas perspectivas,
concepções cosmogônicas e sua cosmovisão (OLIVEIRA, 2003). Estes são os
referenciais que colocamos em diálogo com a história oral de nosso/as
interlocutore/as, que nos guiam à fundamentação de novas epistemologias,
parâmetros relacionais.
Enfatizamos a visão de mundo presente e resistente nestas comunidades
que mantém suas formas culturais (OLVIVEIRA, 2003) pautadas pelos ensinamentos
da oralidade e da ancestralidade. Sua visão de mundo envolve a matrialidade como
aspecto fundamental de sua organização do imaginário e social. Conceito que
apresenta uma comum-unidade regida pela força matrial, ou seja, pela constituição
de um equivalente simbólico entre mãe, sábia, amante e curandeira que carrega
maestrias religadoras e remediadoras, num exercício da razão sensível.
(FERREIRA-SANTOS, 2005b). Sendo assim, a contribuição de vozes femininas
enquanto interlocutoras e escritoras é apresentada como fundamental para a
elaboração destes novos paradigmas de reterritorializações provocadas por
comunidades afroameríndias nas periferias urbanas e no campo brasileiro. A partir
de vivências experienciadas, de narrativas e relatos de vida considerando-as como
“escrituras de si”, narrativas como obras de vida. Análise textual e de obras de vida,
a partir de narrativas mitológicas, investigação de arquétipos e referências ancestrais
que permeiam as tradições culturais e filosóficas destes grupos e comunidades
envolvidas (FERREIRA-SANTOS, 2010).
Este conjunto metodológico dialoga com as novas perspectivas de pesquisa
sobre territorialidades abordadas por geógrafos contemporâneos. Gervásio Rodrigo
Neves (1996) considera que os conflitos entre “territorialidade” x “desterritorialidade”
e reterritorialização atingem todas as escalas: a do globo, dos blocos, dos Estados-
nações, das regiões, das cidades. Considera que os novos territórios estão sendo
formados e transformados em todas as partes sobre os escombros das
desterritorialidades, as novas territorialidades estão em constante processo de
(re)construção11.
Milton Santos (2001) nos apresenta o processo de desenraizamento como
característico da necessidade de renovação do capitalismo, ao analisar o
antagonismo entre a cultura de massas e as chamadas culturas populares. Segundo
ele, a presença da cultura de massas busca homogeneizar e impor-se sobre as
culturas populares, em um “empenho vertical unificador e homegeneizador
conduzido por um mercado cego, indiferente às heranças e às realidades atuais dos
lugares e das sociedades”12.
Rogério Haesbaert, (2004) trata dos múltiplos territórios e da
multiterritorialidade, aponta para as reterritorializações múltiplas, as quais são
construídas por grupos ou pessoas que constroem seus territórios na conexão
flexível de territórios multifuncionais e multi-identitátios13. As problematizações
acerca das novas territorialidades e os conceitos de colonialismo, descolonização e
decolonialidade estão abertas à dialogicidade, pois apontam caminhos para também
questionar a hegemonia cultural capitalista.
3. Espaçotemporalidade em matrizes afro-ameríndias
O Espaçotempo de que estamos tratando, na concepção ancestral, é
unitário. Cada território é a materialização da acumulação desigual14 de
espaçotempos, em que convivem simultaneamente diterentes
espaçotemporalidades. Cada momento é recheado de instantes, acontecimentos
com sentidos dados pela vivência, que ocorre o cotidiano. Para Vaneigem, o espaço-
tempo vivido é o espaço-tempo da transformação e o espaço-tempo dos papéis
(personagens sociais) é o da adaptação. “O presente é o espaço-tempo a construir.
11 NEVES, 1996: 273. 12 SANTOS, 2001: 143. 13 HAESBAERT, 2004: 8. 14 “O espaço deve ser analisado na forma de sistemas espaço-temporais e conta com categorias de
análise: formação sócio-espacial (derivada do conceito marxista de formação social ou formação socioeconômica)...” (BRAGA, 2007: 69).
Ele implica na correção do passado”.15 O espaçotempo vivido, portanto, o presente
está sempre por construir.16 Nesta espaçotemporalidade é onde e quando se capta a
presença, o que neste instante acontece, como um mosaico do contexto. “Os
diversos logradouros, ruas, estradas não são percorridos igualmente por todos. Os
ritmos de cada qual – empresas ou pessoas – não são os mesmos. Talvez fosse
mais correto utilizar aqui o termo temporalidade em vez da palavra tempo”.17
A espaçotemporalidade vivida é o nível da prática social no cotidiano. Nesta
espaçotemporalidade prevalece as sociedades de tradições agrárias. São estas que
possuem a integralidade de humano e natureza, por isso cultuam e reverenciam a
terra/natureza como parente. Estas sociedades podem ser chamadas unitárias18,
organizam-se em torno do espaçotemporalidade cíclica, espiralada. Progride e
retorna sem nunca se desprender completamente e sem nunca escapar de fato de
sua órbita. “O espaço das sociedades unitárias organiza-se em função do tempo”19.
Este espaço estende-se do centro à circunferência, do céu à terra, do Uno ao
múltiplo.20 O tempo, propriamente dito, é regido por um ciclo natural, indissolúvel,
que corresponde ao sagrado, ao ancestral. Mas o espaço é concedido às
sociedades dos seres vivos, e as humanas, conservando um caráter especialmente
humano21. Contramestre Pinguim trata do espaçotempo, no instante que
rapidamente observamos e sentimos o movimento dos corpos, na corporeidade, não
é cronológico “o tempo que não é o do relógio, é o da vida”. O território é o que se
faz no espaçotempo, como nos transformamos no mundo e como este se mostra e
se transforma.
“O poder do mito reúne os elementos separados, faz viver
unitariamente.22”Nestas sociedades, herdeiras das culturas de matriz africana e
ameríndia, o mito é elemento de integração, é a expressão da ancestralidade, de
explanação e associação aos fundamentos da natureza. Também são consideradas
agrárias porque sua visão de mundo é atrelada aos ritmos orgânicos e ciclos
naturais regidos pelo cosmo. Desenvolveram sua vida cotidiana a partir do respeito e
aprendizagem entre comunidade e o meio que a sustenta. Com estudo em etnias-
15 VANEIGEM, 2002: 231. 16 VANEIGEM, 2002: 239. 17 SANTOS, 2008: 42-3
18 VANEIGEM, 2002: 232; 235
19 VANEIGEM, 2002: 235
20 VANEIGEM, 2002: 235
21 Mas com um viés naturalista xamânico, na medida em que insere seres humanos em pé de igualdade em direitos à vida tanto quanto demais seres viventes no planeta e no universo.
22 VANEIGEM, 2002: 235
nação23 africanas, especificamente de tradições de línguas bantu e yorubá, é então
propagada em um princípio helicoidal.
Processo de crescimento do Òkotó, caracol – símbolo
de Exu. (SANTOS, 2002)
Esta é uma imagem alusiva à propagação de energia espaçotemporal de
Exú, que detém, em sua parcela feminina e masculina, a propagação da
fecundidade, do novo, a potencialidade da vida, a dialética exuística.24 A maior
representação desta unidade dinâmica são as resoluções mediante as situações-
limites na vida cotidiana pessoal, (1) a situação a se superar, (2) o/a agente da
transformação (3) a potencial mudança/ou resultado da dicotomia. O espaçotempo
crepuscular, do movimento, da transitoriedade, do devir. A mediação e a triangulação
são critérios de sua existência, o devir. O terceiro é o primeiro, dialéticamente
crepuscular, transitando entre o familiar e o desconhecido, estranhamento e
aproximidades.25 Instalamo-nos no espaçotempo do lugar, “o melhor lugar do mundo
é aqui, e agora...”26 Seus indícios são e estão materializados na paisagem através
da relação entre a natureza e a realização do trabalho humano, ou melhor, da
realização no encontro entre a natureza e o trabalho humano.
Já o caso da matriz européia, em que ocorre sua contínua fragmentação e
dissociação espaçotemporal. O tempo das sociedades industriais, são dissociativas,
no qual o espaço é privativo, exclusividade para quem pode comprá-lo. Caracteriza-
se inicialmente pela sua transformação em “… uma série de pontinhos
aparentemente independentes, mas que na realidade integram-se, segundo certo
23 Uma etnia é um conjunto de pessoas que, histórica ou mitologicamente, têm uma linguagem
em comum, uma mesma religião ou cosmovisão, uma mesma cultura e moram geograficamente num mesmo território. Algumas etnias construíram sozinhas nações. Este é o caso de várias sociedades indígenas brasileiras, africanas, asiáticas, australianas, etc., que são ou foram etnias-nações (MUNANGA, 2004).
24 SANTOS, 2002: 244
25 FERREIRA-SANTOS, 2005: 71; 91. 26 Canção de Gilberto Gil, 1977.
ritmo de sucessão”.27
O espaçotempo unitário é simultaneamente e transitoriamente crepuscular, é
um campo de percepção, sensível e sensitivo, transeunte, conectivo, compartilhável.
É captado através da razão sensível, reunindo todos os sentidos e campos de
percepção. O espaçotempo crepuscular é o entremeio, a trajetividade entre pólos
distantes de uma jornada, o caminhar. Tempo de percurso e espaço que se abre sob
o caminhar do peregrino que, para “o caminhante, o caminho se faz ao andar”28...
A própria natureza também se realiza como espaçotempo,
espaçotemporalmente, e a humanidade e seu trabalho também podem ser tidos
como realização espaçotemporal da natureza. A artificialidade, causada pelo
trabalho humano, ocorre como mecanismo de desnaturalização exercida pelo ser
humano em seu território, conforme o grau de distanciamento da natureza de cada
grupo social ou cada sociedade, de maneira local ou global. Dependendo do artifício,
ou técnica.
Assim, empiricizamos o tempo tornando-o material e assimilamos,
desse modo, ao espaço, que não existe sem a materialidade. A técnica entra
aqui como um traço-de-união, história e epistemologicamente.29
Mas não há nada que o humano, pessoa ou coletivo, faça que esteja
desprendido da natureza, e estando atrelado ao artifício, pode retornar e voltar-se à
natureza como refúgio à sua cura, à renaturalização ou reequilíbrio, religare, contra a
fetichização da liberdade, a alienação da natureza, o desenraizamento territorial.
A cada momento mudamos juntos com o espaçotempo. Na ontologia de
Paulo Freire30, o ser humano está sempre em construção e releitura, ou seja, sendo
humano. O lugar é uma expressão do mundo em uma localidade, entrelaçando os
acontecimentos a ela e nela implicada. O lugar (espaço-tempo-mundo/local) é
linguagem e também meio onde a vida se torna possível. A percepção do que o
espaço é dependente e de sua historicização, resulta dos processos técnicos da
construção do espaçotempo social.31
Nisso, o papel do lugar é determinante. Ele não é apenas um quadro de
27 VANEIGEM, 2002: 237
28 (Caminhante, não há caminho, se faz caminho ao andar…) verso de poema do poeta espanhol Antonio Machado, da seleção de cantos poéticos denominada Proverbios y Cantares. https://cdeassis.wordpress.com/2009/08/13/os-caminhos-de-antonio-machado/
29 SANTOS, 2008: 39. 30 FREIRE, 1983. 31 SANTOS, 2008: 38.
vida, mas um espaço vivido, isto é, de experiência sempre renovada, o que
permite, ao mesmo tempo, a reavaliação das heranças e a indignação sobre o
presente e o futuro. A existência naquele espaço exerce um papel revelador
sobre o mundo. Globais, os lugares ganham um quinhão (maior ou menor) da
'racionalidade' do 'mundo'.32
4. Considerações de encerramento
Aproximar-se do espaçotempo de uma comunidade ou de um lugar é
adentrar-se no mundo em uma escala local envolvida num contexto global. A cultura
é seu principal anunciante, pois é técnica e comunicação em ação, em situação,
vivida e em um cotidiano. De dentro para fora, nunca de fora para dentro, ao menos
se considerar o primeiro caminho primordial, o da Ancestralidade e segundo a
reparação, o olhar de quem precisa aprender com o diferente para aceitar a
diversidade, assumindo sua insuficiência e eliminando a prepotência. Assim como
recorremos a Juana Elbein quando se refere à diferença de um olhar “desde dentro
para fora”, quando salienta a importância de se valorizar a Palavra Atuante, que é
condutora do poder do àse. A oralidade está a serviço da transmissão dinâmica e
permanente, por gerações. Há textos (falados e escritos) apropriados para cada
circunstância ritual sempre transmitidos no nível das relações interpessoais
concretas. Recitados, cantados em invocações, cantigas, narrativas míticas (itans)
que compõem um conjunto de textos constituintes da expressividade
conhecimentos, visões cósmicas, teológicas e éticas.33
Milton Santos nos “alumeia”34 com a epistemologia dos lugares, ao tratar de
cotidiano e território. Resultante dos choques entre os vetores da globalização, que
se instalam para impor sua nova ordem mundial que por sua vez, produz nele uma
contra-ordem, uma reverberação a partir da voz oprimida. Resolvemos este conflito
a partir do fato de que cada pessoa, grupo, instituição, realiza o mundo à sua
maneira. A pessoa, o grupo, constituem o “de dentro” do lugar, com o qual se
comunicam, enquanto o mundo se dá para a pessoa, grupo, instituição, como sendo
o “de fora” do lugar e por intermédio de uma mediação política35 ou a dominação
territorial que trata H. Lefebvre (2006).
Esta lógica rege a propagação da “energia vital”. O que vemos aqui é uma
32 SANTOS, 2001: 114. 33 SANTOS, 2002: 49. 34 Na língua fon, do povo ewe do reino Dahomey (hoje Benin), Lume significa fogo, talvez mais
uma transliteração da língua portuguesa no Brasil, que foi apagada pelo reacismo e o branqueamento.
35 SANTOS, 2001: 114-115.
conjunção tridimensional em que precisamos, para alcançar tal compreensão, a
fluidez e o preenchimento de vetores implicados por tríades constantemente
relevantes à instância da existência, o espaçotempo-pessoa; espaçotempo-
comunidade; espaçotempo-sociedades; espaçotempo-universo. O que o torna
multiplicadamente crepuscular36, pois está em permanente movimento, no diálogo
dialético entre as extremidades complementares, o equilíbrio precário de que trata
Antônio Nobrega. Compõe então, não somente a expressão corporal das
manifestações populares advindas destas comunidades, mas é um princípio
fundante do pensamento cosmológico e cosmogônico, de sua visão de organização
e realização no mundo. O trajeto que se faz percorrendo.
Sua territorialidade é marcada pela experiência, pela vivência. O registro, a
sistematização e a transmissão do conhecimento é feito pela tradição da oralidade.
O/as mais velho/as são detentore/as do conhecimento e sabedoria, “o saber-fazer”.
O espaçotempo é um campo de percepção, de reterritorialização da mente, do
imaginário regido pela ancestralidade, pelos mitos culturais. Assim, a matrialidade é
o viés condutor de arquétipos femininos que agregam e (re)criam, educam.
O processo de desenraizamento é opressor e busca constantemente
desterritorializar estas populações segregadas espaçotemporalmente. Nesta
dialética de sob(re)vivência, segue a síntese que é um território (re)humanizado
pelas expressões culturais afroameríndias periféricas, que as reterritorializam em
nome da identidade, do reconhecimento, da re(ex)istência e da permanência.
5. Bibliografia
BARBOSA, Pe. A. LEMOS. Pequeno Vocabulário Tupi-Português. Com quatro apêndices: Perfil da Língua Tupi; Palavras compostas e derivadas; Metaplasmos, Síntese Bibliográfica. Rio de Janeiro: Livraria São José, 1951.
BRAGA, Rhalf Magalhães. O espaço geográfico: um esforço de definição. São Paulo: GEOUSP – Espaço e Tempo, nº 22, pp 65 – 72, 2007.
CARNEIRO, Sueli. Mulheres em Movimento. São Paulo: Estudos Avançados, vol. 17, nº 49, set.-dez., 2003.
CRENSHAW, Kimberlé. Documento para o encontro de especialistas em aspectos da discriminação racial relativos ao gênero. Rev. Estud. Fem. [on line]. 2002, vol. 10, n.1, pp. 171-188. ISSN 0104-026X. Http://dx.doi.org/10.1590/S0104-026X2002000100011.
36 FERREIRA-SANTOS, 2005: 62
DURAND, Gilbert. As estruturas antropológicas do imaginário: intrudução à arquetipologia geral. São Paulo: Martins Fontes, 2001.
FERREIRA-SANTOS, M. Práticas Crepusculares: Mytho, Ciência e Educação no Instituto Butantan – Um Estudo de Caso em Antropologia Filosófica. São Paulo: FEUSP, Tese de doutoramento, 2 vols., 1998.
______________________. O Espaco Crepuscular: Mitohermeneutica e Jornada Interpretativa em Cidades Historicas. Em: PITTA, Danielle Perin Rocha. (org.) Ritmos do Imaginario. Ed. Universitaria UFPE, 2005.
______________________. Arte-Educação, Imaginário & Comunidade: as faces de um mesmo rosto.Cadernos de educação, Cuiabá, v. Edição, n. Especial, 2005.(b)
______________________. Matrices de la persona afro-ameríndia: escritura como obra de vida. In: Flórez, C.M. (org.) Urdimbres. Cali: Editorial Buenaventurriana, Universidad de San Buenaventura Cali, pp. 219-248, 2010.
FREIRE, Paulo e GUIMARÃES, Sérgio. A África ensinando a gente: Angola, Guiné-Bissau, São Tomé e Príncipe. São Paulo: Paz e Terra, 2003.
FREIRE, Paulo. Ação cultural para a liberdade. 10ª ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 2002.
_____________. Pedagogia do Oprimido. 16a ed. Rio de Janeiro, Paz e Terra, 1983.
GALEANO, Eduardo. As veias abertas da América Latina. Rio de Janeiro: Paz & Terra, 1992.
NEVES, Gervásio Rodrigo. Territorialidade, desterritorialidade, novas territorialidades (algumas notas). In.: SANTOS, Milton; SILVEIRA, Maria Laura e SOUZA, Maria Adélia A. de. (org.) Território: Globalização e Fragmentação. 3ªed. São Paulo: Hucitec, 1996.
HAESBAERT, Rogério. Dos Múltiplos Territórios Á Multiterritorialidade. Porto Alegre: UFRGS, setembro, 2004
Jesús Chucho García, Afroepistemologia e afroepistemetódica. In: WALKER, Sheila S. (org.) Conhecimento desde dentro: os afro-sul-americanos falam de seus povos e suas histórias. Trad. Viviane Conceição Antunes. Rio de Janeiro: Kitabu, 2018.
LEFÉBVRE, H. A produção do espaço.Trad. Doralice Barros Pereira e Sérgio Martins (do original La production de l'espace. 4ª éd. Pris: Éditions Anthropos, 2000). Primeira versão: início fev. 2006.
MAFFESOLI, Michel. Elogio da razão sensível. Petrópolis, RJ: Vozes, 1998.
MARTINS-MACIEL, Erenay. Espaçotempo & Ancestralidade de matriz africana em terras caboclas. (Dissertação) Mestrado. Programa de Pós- Graduação da Faculdade de Educação da Universidade de São Paulo (FEUSP), 2015.
MEIHY, José Carlos Sebe Bom. Desafios da História Oral Latino-Americana: O Caso do Brasil. In: FERREIRA, Marieta de Moraes; FERNANDES, Tania Maria e ALBERTI, Verena (org.) História oral: desafios para o século XXI. Rio de Janeiro : Editora Fiocruz/Casa de Oswaldo Cruz / CPDOC - Fundação Getulio Vargas, 2000.
MONTEIRO, John Manuel. Negros da terra: índios e bandeirantes nas origens de São Paulo. São Paulo: Companhia das Letras, 1994.
MUNANGA, Kabengele. Rediscutindo a Mestiçagem no Brasil: Identidade Nacional Versus Identidade Negra. Belo Horizonte: Autêntica, 2006.
MUNDURUKU, Daniel. Meu avô Apolinário. Um mergulho no rio da (minha) memória. São Paulo, Studio Nobel, 2001.
NASCIMENTO, Elisa Larkin. Sankofa: Resgate da Cultura Afro-brasileira. v.1. Rio de Janeiro: SEAFRO\RJ, 1994.
OLIVEIRA, David Eduardo de. Cosmovisão Africana no Brasil, elementos para uma filosofia afrodescendente. Fortaleza: LCR, 2003.
SANTOS, Juana Elbein dos. Os Nagô e a morte: Pàde, Àsesè e o culto Égun na Bahia. Trad. Universidade Federal da Bahia. Petrópolis: Vozes, 2002.
SANTOS, Milton. Por uma outra globalização – do pensamento único à consciência universal. 8a. ed. Rio de Janeiro: Record, 2001.
SANTOS, Milton. Técnica, Espaço, Tempo: Globalização e Meio Técnico-científico-informacional. 5a ed. São Paulo: EdUSP, 2008.
VANEIGEM, Raoul. A arte de viver para a geração nova. Porto, Edições Afrontamento, 1974 (ed. original 1967, Éditions Gallimard); A arte de viver para as novas gerações. S