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“Narrativas da terra, ancestralidade e ruralidade”: as memórias no inventário do
patrimônio imaterial afro-brasileiro em Santa Catarina
FERNANDA MARA BORBA*
Resumo: No âmbito das ações públicas do patrimônio cultural brasileiro, destaca-se o
Programa Nacional do Patrimônio Imaterial (2000) ao viabilizar projetos de identificação,
reconhecimento, salvaguarda e promoção da dimensão imaterial do patrimônio, implementando
a política do inventário, registro e salvaguarda. Nesse contexto, tem-se o Inventário Nacional
de Referências Culturais que identifica os domínios da vida social aos quais são atribuídos
sentidos e valores e que, portanto, “constituem marcos e referências de identidade para
determinado grupo social”. Na esfera catarinense e acerca da cultura afro-brasileira, foi
desenvolvido pela Superintendência Regional do Iphan o Projeto “Comunidades Negras de
Santa Catarina”. Este teve como intuito “preservar a memória do povo afrodescendente no sul
do país”, a partir da dimensão arqueológica, arquitetônica, paisagística e imaterial, utilizando-
se da metodologia supracitada que reconhece e valoriza as memórias das comunidades
envolvidas. Assim, este trabalho pretende apresentar e discutir, especialmente, o uso de
depoimentos orais no inventário do patrimônio imaterial afro-brasileiro em Santa Catarina
incluído do Projeto, a partir da análise das publicações do Iphan e dos processos elaborados
para essa política.
Palavras-Chave: Patrimônio Cultural, Oralidade, Territórios Quilombolas.
Introdução
Esse trabalho tem por intuito revisitar, especialmente, o uso de depoimentos orais no
Inventário Nacional de Referências Culturais do patrimônio imaterial afro-brasileiro
catarinense incluído no Projeto “Comunidades Negras de Santa Catarina”. Este foi
desenvolvido pela Superintendência Regional do Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico
Nacional (Iphan) e publicizado em publicações escritas e audiovisuais. Tratando-se das poucas
* Universidade do Estado de Santa Catarina (UDESC), Doutoranda em História, Bolsista do Programa de Bolsas
de Monitoria de Pós-Graduação (Promop).
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ações oficiais do Instituto no âmbito do patrimônio cultural afro-brasileiro em nível regional, o
Projeto pretende, em permanência, identificar, proteger e promover os elementos que podem
ser vinculados à uma ancestralidade negra no estado e que adquiriram, pela dinâmica local, um
sentido patrimonial, em suas diversas dimensões: arqueológica, arquitetônica, paisagística e
imaterial.
Para pensar o Inventário e a narrativas, o trabalho contempla discussões em torno do
campo do patrimônio cultural imaterial no Brasil, especialmente nos últimos anos e sua relação
com a História do Tempo Presente, e o uso das oralidades, entendidas como uma das linguagens
possíveis para a construção de um registro histórico que, nesse caso, se encontra carregado de
identificações e sentidos. Assim, estruturou-se o texto em três eixos principais: 1) o patrimônio
cultural imaterial no Brasil, sua definição, usos e perspectivas; 2) o Projeto “Comunidades
Negras de Santa Catarina” e 3) as comunidades Sertão de Valongo, Invernada dos Negros e São
Roque, presentes no estado e alvo do Inventário do Iphan, a partir das suas memórias.
Salienta-se que essas reflexões foram resultados de leituras e discussões realizadas junto
a disciplina de “Teoria e Metodologia da História – Linguagens e Identificações” (2015/2) do
Programa de Pós-Graduação em História (PPGH), da Universidade do Estado de Santa Catarina
(UDESC).
1. O patrimônio cultural imaterial afro-brasileiro no Brasil
No âmbito da preservação do patrimônio cultural brasileiro, foi somente mais
recentemente, especificamente a partir da última década, que o Instituto do Patrimônio
Histórico e Artístico Nacional (Iphan), criado em 1937, passou a incluir, ao lado do
tombamento, outro importante instrumento de patrimonizalização, o registro, precedido do
inventário. Este se associa mais fortemente com a “parcela das manifestações culturais ativas
que se caracterizam por sua processualidade” (GODOY; RABELO, 2008: 7), mais do que a
materialidade, estando em consonância com a ideia da preservação dos múltiplos elementos
formadores da sociedade, consolidando a amplitude e pluralidade da identidade brasileira e
trazendo a noção de bens culturais de natureza imaterial. Esse período, na política patrimonial,
foi de suma importância na medida em que o Estado reconheceu a participação da sociedade
nas decisões e no trato dos problemas com a produção e a preservação cultural, bem como
ampliou a própria noção de patrimônio. De acordo Chuva (2012), esse cenário representa
igualmente um momento de “unificação” dos universos material e imaterial com a incorporação
do Conselho Nacional de Referências Culturais – um dos espaços institucionalizados que
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pensava especialmente a imaterialidade no Brasil – ao Iphan – que esteve por muito tempo
atrelado ao chamado patrimônio de “pedra e cal”.
Para além dessa “reforma”, essa ampliação da ideia de patrimônio cultural para a
imaterialidade foi viabilizada, na década de 1990, pela criação de um Grupo de Trabalho do
Patrimônio Imaterial que buscou elaborar uma nova legislação que atendesse às especificidades
da preservação do patrimônio imaterial, com a valorização da cultura viva e o fazer popular, de
forma mais “nacional” e mais “plural”. Criou-se, nesse sentido, o Decreto n. 3.551 de 2000 que
instituiu o “Registro de Bens Culturais de Natureza Imaterial que constituem patrimônio
cultural brasileiro” e o “Programa Nacional de Patrimônio Imaterial” (BRASIL, 2000),
possuidor de quatro Livros de Registro – dos Saberes, das Celebrações, das Formas de
Expressão e dos Lugares. O instrumento do registro se constitui como uma ação de preservação
e salvaguarda dos patrimônios culturais não contemplados pelo Decreto n. 25 de 1937, o qual
estabeleceu o tombamento federal dos bens de natureza material. Inicialmente vinculado ao
Ministério da Cultura e transferido em 2003 para o Iphan, esse novo mecanismo contempla
atividades de identificação, reconhecimento, salvaguarda e promoção da dimensão imaterial do
patrimônio, implementando a política do inventário, registro e salvaguarda do patrimônio
imaterial de relevância nacional.
Como parte do registro, o Inventário Nacional de Referências Culturais é uma
metodologia que tem por meta auxiliar na produção de conhecimentos sobre a heterogeneidade
constitutiva da identidade cultural do Brasil. Ele identifica os domínios da vida social aos quais
são atribuídos sentidos e valores e que, portanto, “constituem marcos e referências de identidade
para determinado grupo social”. O Inventário se destaca ao passo que as referências culturais
são indicadas como patrimônio pelas próprias comunidades envolvidas, diferentemente da
identificação do patrimônio cultural em períodos anteriores, norteada pelos agentes estatais.
Associada à imaterialidade afro-brasileira, foram registrados inicialmente no Brasil, por
exemplo, o Samba de Roda na Bahia, o Samba do Rio de Janeiro, o Tambor de Crioula no
Maranhão e o Jongo no Sudeste, como formas de expressão, e o Ofício das Baianas do Acarajé
e dos Mestres de Capoeira como saberes. Ainda nos estados da Bahia, Pernambuco, São Paulo,
Maranhão, Rio Grande do Sul e Espírito Santo, outros instrumentos de reconhecimento,
salvaguarda e promoção como a identificação e levantamento foram estabelecidos.
Compondo assim, fragmentos de uma História do Tempo Presente brasileira, o
patrimônio cultural imaterial permeia os sentidos diversos atribuídos a uma prática ou um
espaço, que podem, inclusive, abarcar diferentes temporalidades (DOSSE, 2012), considerando
que esses processos partem sempre das experiências humanas, múltiplas e em fluxos. Os usos
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e perspectivas do patrimônio cultural imaterial, por sua própria característica, e inseridos num
mundo contemporâneo, podem ser escritos e reescritos em variadas modalidades de expressão
(ou representação): textuais, imagéticas, sonoras e materiais. Em “Comunidades Negras de
Santa Catarina”, projeto que contemplou o Inventário em tela, tem-se a oralidade (e a
corporeidade) publicizadas por meio da imagem em movimento e do som, sendo entendidas,
portanto, como discursos que refletem sentidos (FERREIRA, 2002) e, por consequência,
múltiplas representações e identificações.
2. O Projeto “Comunidades Negras de Santa Catarina”
Desenvolvido pela Superintendência Regional do Iphan em Santa Catarina, o Projeto
“Comunidades Negras de Santa Catarina” buscou, por meio do Inventário Nacional de
Referências Culturais, identificar, proteger e promover o patrimônio cultural vinculado à
ancestralidade negra em suas diversas dimensões, dentre elas a arqueológica, a arquitetônica, a
paisagística e a imaterial. Ao entender os saberes e os modos de vida das comunidades
tradicionais e demais comunidades negras como elementos fundamentais na constituição das
memórias, a ação permitiu a exposição de parte dessas contribuições, possibilitando igualmente
o conhecimento dessa parcela da população, tradicionalmente invisibilizada na história
catarinense.
Para tanto, entre 2005 e 2008, o Instituto dedicou-se à elaboração do Inventário de três
comunidades catarinenses: Sertão de Valongo em Porto Belo, Invernada dos Negros em
Campos Novos e São Roque, entre Praia Grande e Mampituba, também reconhecidas pela
Fundação Cultural Palmares. A proposta desse estudo foi mapear as manifestações culturais
que os grupos e comunidades reiteram como elementos fundamentais na representação de sua
identidade. De acordo com o órgão, futuramente, as informações reunidas no inventário
constituirão uma base de dados de acesso público, com a finalidade de fornecer subsídios para
a elaboração de políticas públicas em consonância com as culturas locais (GODOY; RABELO,
2008). Atualmente, o Iphan trabalha com cinco categorias de referências culturais, incluídas no
Inventário: 1) ofícios, 2) modos de fazer, 3) celebrações, 4) formas de expressão, 5) lugares e
edificações. O Instituto levantou, a partir da oralidade, uma diversidade de referências culturais
e, com o auxílio da empresa Andrade e Arantes Consultoria e Projetos Culturais e dos Núcleos
de Dinâmicas Urbanas e Patrimônio Cultural (NAUI) e de Estudos de Identidade e Relações
Interétnicas (NUER) da Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC), catalogou e descreveu
68 manifestações culturais. Destas, 17 foram selecionadas para um estudo mais aprofundado,
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resultando em uma publicação (GODOY; RABELO, 2008) e dois filmes-documentários
(BRASIL, 2008a e b). Esses suportes, escolhidos para apresentar as ações finais, valorizam, em
plena era digital, a voz, o corpo e o texto, mediados pelas tecnologias que registram a imagem
e a oralidade. Nesse aspecto, o Iphan e demais envolvidos, estariam em consonância com o que
Almeida (2013: 22) vem pontuar:
A voz desafia muitos dos pressupostos dos estudos literários, cuja tradição se delineia
em torno do impresso, mas que já se abala, há algumas décadas, com as novas
demandas que se impõem pelos estudos da oralidade, principalmente em um país
como o Brasil, possuidor de uma forte tradição na poesia popular, dos cantadores à
música urbana, e onde o rádio e a televisão se estabelecem no século passado, sem
que tenha havido propriamente a configuração de uma tradição letrada.
Assim, escolhidos para visibilizar as narrativas das comunidades tradicionais, a
publicações escritas e os arquivos digitais podem ser percebidos como transmissores dos
conteúdos, mas também como materialidades que se diferenciam pelo tempo e a virtualidade
da transmissão e a possibilidade do transportar o som e imagem em movimento. Trata-se não
somente dos resultados do Inventário, mas as reflexões deste, portanto, uma investigação ligada
aos aspectos sensoriais das novas formas de transmissão e recepção (ALMEIDA, 2013). As
narrativas, a partir de um grupo significativo, apresentam os sentidos do tempo antigo e o
passado negro, os aspectos religiosos e simbólicos, a manipulação de plantas e a lida com a
terra e as práticas tradicionais como a benzedura e o parto. Estas, fontes centrais para a
identificação e reconhecimento desse patrimônio imaterial, evidenciam os lugares e as formas
de expressão presentes e constituintes da cultura dessas comunidades, em processo de
reconhecimento de seus direitos territoriais e culturais.
3. As comunidades Sertão de Valongo, Invernada dos Negros e São Roque a partir
das suas narrativas
A Comunidade Sertão de Valongo, conhecida igualmente como Sertão dos Pretos, se
situa num ambiente rural e de vale no município litorâneo de Porto Belo, e reunia, no período
do Inventário, 34 famílias e 111 pessoas, compondo três famílias-tronco originárias. As
narrativas e discursos de origem levantados fixam os primeiros habitantes neste território ainda
na última década do século XIX, no período da abolição da escravidão no Brasil – motivo pelo
qual o Inventário optou por trata-la como um quilombo de ocupação (GODOY; RABELO,
2008). As falas também informam que o Valongo era uma área mais periférica, longe do litoral,
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e, portanto, sem interesse para os habitantes locais, especialmente pela insalubridade presente
ali, sendo posteriormente ocupada por aqueles que ficaram a margem do processo com o fim
da escravidão. Por outro lado, a ideia de uma comunidade “congelada no tempo” contraria-se
nos depoimentos sobre a venda das terras ou ainda a conversão da comunidade à Igreja
Adventista, datada no início do século XX, um dos eixos privilegiados para a auto-definição do
grupo. O desenvolvimento do Inventário identificou um total de 19 referências culturais,
relacionadas à religiosidade, à ruralidade e à ascendência negra, o fabrico e uso de galhota, os
cultos adventistas de adoração, os conhecimentos tradicionais de ervas-de-chá, o plantio
agroecológico (a rotação de terras e de culturas e o consorciamento de plantas), especialmente
de bananas, os engenhos e as cachoeiras ainda existentes em território valoguense.
Por sua vez, a Comunidade Invernada dos Negros foi a primeira comunidade do estado
a receber, em 2004, a certificação de auto-reconhecimento como remanescente de quilombo
pela Fundação Cultural Palmares. Como a Sertão de Valongo, a Invernada se constitui como
uma comunidade rural, situada no município de Campos Novos, região meio oeste do estado,
enraizada na religião católica e sendo descrita pelo Inventário como um quilombo de legatários
(GODOY; RABELO, 2008). Esse termo faz alusão ao fato de ter sido constituída a posterior
doação, via testamento, de parte das terras de um fazendeiro da região a quatro de seus
escravizados alforriados que, segundo os depoimentos, chegaram ao local no século XVIII. O
documento de nascimento da comunidade, datado de 1877, é um articulador importante na
constituição da identidade do grupo, que reúne atualmente 127 famílias, totalizando mais de
4.000 pessoas, organizadas a partir de um princípio norteador da ocupação das terras herdadas,
o usufruto perpétuo, garantido pelos laços de parentesco, compadrio e geracional de
descendência ou ascendência aos antigos escravizados do local. Entretendo, devido a
cerceamentos constantes de seu território original e à indução de êxodo por motivos
econômicos, existem apenas 34 unidades domiciliares ocupadas na região (GODOY;
RABELO, 2008). O Inventário catalogou 26 referências culturais, dentre as quais merecem
destaque os cemitérios de Corredeira e Arroio Bonito (no qual estão sepultados exclusivamente
ancestrais da comunidade), a caverna do “Tio Beno”, a criação de gado solto e os modos de
fazer baixeiro de lã de ovelha e muro de taipa, evidenciando “um modo de estar no mundo
motivado pelo desejo de continuidade”.
A Comunidade de São Roque se situa entre os municípios de Praia Grande, litoral sul
catarinense, e Mampituba, litoral norte sul-rio-grandense, em um espaço marcado por acidentes
naturais de grande amplitude, nos limites da Serra Geral. As narrativas levantadas remontam o
início da ocupação na segunda metade do século XIX, em virtude da reunião de escravizados
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em torno de um quilombo de fuga, a forma, de acordo com o Inventário, mais comum de
quilombo (GODOY; RABELO, 2008). Apresenta 62 famílias associadas ao seu território, das
quais apenas 26 residem no espaço da comunidade, por motivos econômicos similares aos
apontados no caso de Invernado dos Negros. São Roque se constitui como uma comunidade
rural que professa a fé católica, tendo inclusive sua denominação original “Pedra Branca”,
substituída pelo nome do santo cuja imagem foi trazida ao sítio em meados do século XX. A
Comunidade São Roque representa um caso peculiar entre as comunidades remanescentes de
quilombo, pois duas Unidades de Conservação foram sobrepostas ao seu território
tradicionalmente ocupado: o “Parque Nacional Aparados da Serra” e o “Parque Nacional da
Serra Geral”. Nessa comunidade foram coletadas informações a respeito de 23 bens culturais
de referência local que apresenta uma memorialística da escravidão, da Pedra Branca e do
cemitério do Paredão, enfatizando as técnicas tradicionais de manejo ambiental (sistema de
grotas, etnoconhecimento de plantas medicinais, cultivo e trabalho agrícola). A escolha de
referências culturais que lidam com essa temática, segundo o Inventário, parte do pressuposto
de que a ocupação sustentável do território pela comunidade, durante mais de um século,
demonstra que sua presença no local é condição para a preservação do entorno natural.
A partir das narrativas, percebe-se que o passado ligado à escravidão constitui um fator
comum à história das três comunidades, remanescentes de quilombos, apesar de suas origens
diversas. Os moradores mais antigos ainda contam histórias sobre os antepassados escravizados
que ouviram de seus pais e avós, uma forma de manter vivas as referências importantes sobre
o grupo e o território (Figura 1):
Figura 1 – Pedra Branca, face norte, Comunidade São Roque.
Fonte: Godoy; Rabelo (2008: 21).
“A Roça da Estância, o conhecimento que a gente tem é que se formou a Roça da
Estância por causa que vinham escravos lá da estância que fica na [fazenda] Azulega,
município de Cambará hoje, eles eram escravos de Rael Fogaça que morava no Baio
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Branco [...]. Os alojamentos dos escravos era na estância. Tem o cemitério, tem tudo
lá. E de lá vinham fazer roça aqui na Mãe dos Homens, que hoje é Mãe dos Homens,
mas antes era Roça da Estância. Então por que isso ficou Roça da Estância, porque
vinham eles de lá da estância para plantar aqui, mas eles não habitaram aqui, eles
vinha trabalhar” (Maria Rita dos Santos, Comunidade São Roque, 2008a).
As memórias também apresentam uma estreita ligação dos moradores dessas
comunidades com o sobrenatural, presenciado por muitos, por meio do contato com seres
extraordinários e eventos inexplicáveis. Presentes no cotidiano, esses seres não têm ocasião
especial para manifestarem-se, eles podem aparecer durante o dia, na lida com a roça, ou no
período da noite, quando se está voltando de um baile ou uma festa no entorno da comunidade.
Curiosamente, as falas afirmam o receio de “topar” com essas criaturas e, mesmo aqueles que
nunca as viram, não duvidam de sua existência:
“Eu não tenho medo, eu nunca tive medo desses bichos... Mas às vezes... tem o
gritador, aqui tem um gritador. [...] Ele grita, ele grita: ú, ú. Daí se começar a
remendar ele vem em cima da gente. E é uma sombra, bem alto o gritador. Ih, é alto,
é uma pessoa mas sabe que é alto, né. Alma perdida que diz” (Francisco de Souza,
Comunidade Invernada dos Negros, 2008b).
Outro elemento importante se associa ao conhecimento e a manipulação da flora e de
seu ambiente, com a preservação dos saberes tradicionais sobre os modos de preparo das ervas
(“macerar”, “abafar” ou “curtir no álcool”) e sobre as posologias adequadas a serem
administradas, de acordo com a enfermidade e conforme sua gravidade (Figura 2). Associados
a estes conhecimentos, os moradores das comunidades desenvolveram também sistemas
próprios de classificação de doenças, das ervas e das permissões e interdições de gênero ou de
idade para a sua utilização. Esses conhecimentos e usos, transmitidos de geração em geração e
compartilhados por homens, mulheres e crianças, demonstram a habilidade das estratégias de
adaptação ao meio natural, mas também a uma situação de carência de acesso aos serviços de
saúde oficiais:
“O lugar dela [a Mãe do Corpo] é bem debaixo do umbigo e vai pra lá e pode ir até
debaixo das cadeiras e descadeirar ela. Eu tenho remédio pra fazer ir pro lugar. Pra
puxar a Mãe do Corpo faz uma gemada com um pouco de canela e grupo e pôr bem
em cima do umbigo e ela começa a roncar até que ela vem bem pra debaixo do
umbigo” (Santa de Souza, Comunidade Invernada dos Negros, 2008b).
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Figura 2 – Conhecimento fitoterápico, Invernada dos Negros.
Fonte: Godoy; Rabelo (2008: 21)
Ainda sobre outro aspecto, as comunidades desenvolveram seus territórios mediante
estratégias particulares de uso e ocupação do solo, destacando-se as práticas tradicionais de
manejo ambiental que tem como intuito a manutenção e a preservação de seu ambiente.
Em São Roque, a divisão das terras entre as famílias e a organização espacial da
comunidade são efetuadas a partir de um modelo, segundo as informações orais, herdado, e
sempre atualizado, de acomodação às condições naturais do terreno acidentado, marcado por
declives acentuados, abundância de cursos d’água, escarpas, vales e paredões rochosos. As
grotas definem os espaços de produção, moradia, memória e socialização comunitária dos
membros de São Roque desde seus primórdios:
“Ninguém demarcava terra, era tudo terra em comum. A divisão era de grota em
grota. Todos moravam naquelas beira de sanga e cultivavam. Bem dizer a divisa era
os bicos dos morros. Toda nossa região só tem, no máximo, dez por cento de terra
para agricultura. O pessoal desceu e se acomodou nas grotas, cada um com a sua
área. As grotas têm nome. Cada família se acomodava em uma grota” (Valdomiro
Oliveira, Comunidade São Roque, 2008a).
Na Comunidade Sertão de Valongo, o plantio agroflorestal de bananas e café é uma
prática antiga, envolvendo um método orgânico, sem o uso de adubos químicos ou de
agrotóxicos (Figura 3). Obedecendo ao calendário das fases lunares, os “valonguenses das
bananas”, como são conhecidos desde o início do século pelos moradores dos municípios
vizinhos, afirmam: a melhor fase para plantar a banana é a “vazante” (GODOY; RABELO,
2008):
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Figura 3 – Galhota com folhas de bananeira e cana e a seleção de grãos de café, Sertão de Valongo.
Fonte: Brasil (2008).
“A gente sempre procura o vazante, né? O minguante, a lua, quando ela tá
diminuindo né? Que ela fica mais baixa, né? Dá mais força no cacho” (Moacir
Caetano, Comunidade Sertão de Valongo, 2008).
A criação do gado solto é uma prática bastante comum na Invernada dos Negros,
justificando, em certa medida, o próprio da comunidade que remete a esse ofício, presente há
mais de um século, pois o termo “invernada”, de acordo com o Inventário, refere-se ao local
onde os animais são colocados para pastagem. Nesta comunidade, o gado é criado livremente
e circula entre os vários terrenos para se alimentar, desde a manhã até o anoitecer, quando é
recolhido nos potreiros (Figura 4). Sobre isso, Dona Bertolina recorda:
“E as vacas, nós soltava de manhã, naquele tempo chovia... agora só um dia, dois,
nossa que chuvarada. Naquele tempo chovia quinze, vinte dias, um mês, nossa, só
chuva. Soltava lá elas iam parar nesse fundo aqui [se refere às áreas de Manuel
Cândido] pro lado de lá, daquelas granjas pra lá. E daí de tarde elas tinham que
“voltar”. Daí a gente levava as cavas pra tirar o leite outro dia” (Bertolina de Souza,
Comunidade Invernada dos Negros, 2008b).
Figura 4 – Sra. Bertolina de Souza e a criação do gado solto, Invernada dos Negros.
Fonte: Brasil (2008b).
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Essas e tantas outras práticas, saberes, espaços e celebrações se fizeram presentes nos
depoimentos reunidos pelo Inventário, expostos aqui de forma bastante sintetizada, que, como
salienta, ainda carece de ampliação para pensar outras formas de expressão ou ainda contemplar
demais olhares, como a própria performance, presente em todos os momentos, mas não
discutida nas produções. Ao mesmo tempo, possibilitou a exposição da diversidade de
manifestações e elementos culturais valorizados pelas memórias, sonorizadas e corporificadas.
Algumas considerações e os novos desafios
A patrimonialização no âmbito da imaterialidade tem-se voltado à salvaguarda das
representações culturais populares e tradicionais, de forma diversa e ampla, incluindo na cultura
nacional as manifestações pouco alcançadas pelo tradicional instrumento do tombamento. Nas
práticas dos inventários e registros, cada vez mais, tem ganhado importância e força a voz e a
corporeidade daqueles responsáveis pelas múltiplas manifestações culturais. Aqui, nos
exemplos selecionados, essa oralidade e corpo que ficaram silenciosos em práticas antigas,
ressurgem no espaço também virtual entremeados pela escrita, a complementar e desafiar a
leitura, a demandar ouvidos para além de olhos. As consequências dessa valorização da
vocalidade que se anuncia com os desdobramentos da cultura digital ainda estão para ser
descodificadas, abordadas e contempladas pelas ciências ou ainda pelas políticas públicas
culturais, considerando que ainda são poucas as experiências que se assemelham ao Projeto
“Comunidades Negras de Santa Catarina” no Brasil. Por sua vez, como salientam muito autores
da oralidade e corporeidade, parece ser inevitável, e urgente, a incorporação e a reorganização
das ações estatais e também dos espaços que as pensam dos novos sentidos e suportes de
memórias, possíveis para o registro de uma narrativa e uma memória histórica.
Referências
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2, p. 20-34, jul./dez 2013. Disponível em:
https://periodicos.ufsc.br/index.php/textodigital/article/view/1807-9288.2013v9n2p20/26048.
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http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/decreto/D3551.htm. Acesso em: 8 jun. 2015.
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______. Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (Iphan). “Comunidade de São
Roque: Referências Culturais Quilombolas”. 2008a. 1 filme-documentário (30 min), son.,
color.
______. Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (Iphan). “Comunidade de
Invernada dos Negros: Referências Culturais Quilombolas”. 2008b. 1 filme-documentário
(28 min), son., color.
CHUVA, Márcia Regina Romeiro. Por uma história da noção de patrimônio cultural no Brasil.
Revista do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional, Brasília, n. 34, p. 147-165, 2012.
DOSSE, François. História do Tempo Presente e Historiografia. Tempo & Argumento,
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Acesso em: 20 ago. 2015.
GODOY, Clayton Peron Franco de; RABELO, Marcos Monteiro. Comunidades negras de
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FERREIRA, Marieta. História, tempo presente e história oral. Topoi, Rio de Janeiro, p. 314-
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