espaços de mnemosine

12
Espaços de Mnemosine – memória, fotografia e sites specific Matheus Kayssan Opa – VIS/UnB RESUMO: Esta pesquisa é uma expansão teórica de uma pesquisa artística. Neste contexto, um motivador inicial foi pensar a ruína como motivação para processos criativos. A base para isto foi um questionamento sobre o conceito de Didi-Huberman sobre Anacronismo. Onde pode o/a artista se inserir quando falamos de tempo? Pode ele ou ela tomar para si e manipular temporalidades que não são suas? Espaços que não lhe pertencem? Outro catalisador de ideias é a relação quase que milenar do artista ou da artista para com a memória. Como criar imagens usando espaços abandonados, sites specific, pensando a fotografia como importante instrumento mnésico de um tempo que não é meu? Palavras-chave: Memória. Fotoperformance. Site specific. Fotografia. Anacronismo. Introdução A memória está atrelada à arte desde a própria mitologia grega na Idade Antiga. A Memória era personificada, ali, pela titanide Mnemosine; filha de Urano (Céu) e Gaia (Terra) concebeu as noves musas Calíope (Poesia Épica), Clio (Historia), Erato (Poesia Romântica), Euterpe (Música), Melpômene (Tragédia), Polímnia (Hinos), Terpsícore (Dança), Tália (Comédia), Urânia (Astronomia). Suas funções, de acordo com Kury (1990), se baseavam em

Upload: matheus-opa

Post on 03-Dec-2015

212 views

Category:

Documents


0 download

DESCRIPTION

Paper sobre Arte e Memória

TRANSCRIPT

Page 1: Espaços de Mnemosine

Espaços de Mnemosine – memória, fotografia e sites specific

Matheus Kayssan Opa – VIS/UnB

RESUMO: Esta pesquisa é uma expansão teórica de uma pesquisa artística. Neste contexto, um motivador inicial foi pensar a ruína como motivação para processos criativos. A base para isto foi um questionamento sobre o conceito de Didi-Huberman sobre Anacronismo. Onde pode o/a artista se inserir quando falamos de tempo? Pode ele ou ela tomar para si e manipular temporalidades que não são suas? Espaços que não lhe pertencem? Outro catalisador de ideias é a relação quase que milenar do artista ou da artista para com a memória. Como criar imagens usando espaços abandonados, sites specific, pensando a fotografia como importante instrumento mnésico de um tempo que não é meu?Palavras-chave: Memória. Fotoperformance. Site specific. Fotografia. Anacronismo.

Introdução

A memória está atrelada à arte desde a própria mitologia grega na Idade Antiga.

A Memória era personificada, ali, pela titanide Mnemosine; filha de Urano (Céu) e Gaia

(Terra) concebeu as noves musas Calíope (Poesia Épica), Clio (Historia), Erato (Poesia

Romântica), Euterpe (Música), Melpômene (Tragédia), Polímnia (Hinos), Terpsícore

(Dança), Tália (Comédia), Urânia (Astronomia). Suas funções, de acordo com Kury

(1990), se baseavam em inspirar os aspirantes à arte, além de cantarolar, cantar,

performar em festas do Monte Olimpo.

Outro mito que alia memória à arte é a fábula da sombra pintada que Dubois

(1993) resgata de Plínio, onde dois amantes – homem e mulher – se encontram num

quarto iluminado por uma vela, sabendo que seu amado partiria, a moça com carvão

desenha a silhueta dele na parede; Dubois (1993, p. 118) analisa: “no instante derradeiro

e flamejante, (...) fixar a sombra daquele que ainda esta ali, mas logo estará ausente.”.

O autor (1993, p. 123) também resgata uma carta escrita por Elizabeth Barrett à sua

amiga Mary Russel Mitford:

Page 2: Espaços de Mnemosine

Eu queria tanto possuir algo que me lembrasse de tudo o que pode me se caro nesse mundo. Não apenas a semelhança é preciosa nesse caso - mas as associações e o sentimento de proximidade imposto por esse objeto...o fato de que a própria sombra da pessoa [grifo do autor] esteja fixada aqui para sempre! Por isso os retratos parecem-me de certa forma santificados - e não acho absolutamente monstruoso dizê-lo, enquanto meus irmãos protestam com veemência, que preferiria a tudo o que um arista pôde produzir de mais nobre, conservar tal lembrança de alguém que eu tenha amado com carinho.¹

Na Contemporaneidade, autores como Benjamin, poetas como Baudelaire,

teóricos como Freud e até o próprio Dubois e artistas como Krzysztof Wodiczo com

projeções que trazem de volta acontecimentos como a que se deu em Hiroshima²,

Rosangela Rennó com a série Imemorial (1994)³ e muitas outras e outros que usam de

recursos mnésicos para criar imagens.

Outra nova tendência da fotografia que é importante ressaltar é o Ruin Porn ou

Exploração de Ruínas. Com inspiração numa reportagem de 1946, escrita por Samuel

Beckett, The Capital of the Ruins – onde descreve o hospital em Saint-Lô, França,

destruído pela guerra – e pelo movimento Urbex – Urban exploration que consiste em

adentrar prédios abandonados para achar tesouros, modificar o espaço ou somente

fotografar.

O Ruin Porn, de acordo com Greco (2012), tende a sentir toda a energia que o

abandono pode trazer e propor discussões estéticas, psicológicas e históricas sobre

aquele ambiente que são “espaços marginais preenchidos com objetos obscuros e

velhos. Você pode ver e sentir coisas que você não consegue no mundo normal”

(tradução minha, Greco, 2012).

Esse paper vem discutir, então, as relações do eu-artista com a memória em espaços

abandonados. Analisando a estratégia de formulação de imagens, busca por artistas,

conceitos operatórios relacionados à pesquisa entre memória, ruína, espaço, artes

plásticas e a visão minha sobre a produção, crítica do meu próprio trabalho.

Page 3: Espaços de Mnemosine

Despertar de Mnemosine em mim

Regis (1997) traz a ideia da importância da memória numa Civilização onde a

escrita não é muito elaborada; é com ela, juntamente à oralidade, que as práticas

culturais se perpetuam.

A autora defende que os poetas (e as poetisas) são “Mestres [e mestras] (REGIS,

1997, p. 1) da Verdade”; o/a artista, logo, abençoada ou abençoado pelas Musas, tem

“uma onisciência de caráter adivinhatório” (REGIS, 1997, p. 1); em suma, o trabalho

dele ou dela memória é quase que religioso.

Ralph Waldo Emerson (1803-82), em seu ensaio4 Prudence de 1841, resume a

pós-modernidade atestando que ao patinar sobre gelo fino, nossa segurança encontra-se

tão somente em nossa velocidade. Precisamos andar, andar e andar.

Nessa caminhada, iluminado pelos prédios europeus, muitas vezes marcados pela guerra

ou intempéries do tempo, devaneei sobre o papel da/do artista para com a memória.

Meu Sol em Gêmeos, logo, curioseia-se sobre o que possa ter acontecido

naqueles locais, meu Mercúrio em Câncer sente as energias que ali acumularam durante

o tempo e meu ser-artista cria narrativas, pensa estórias e quer propor imagens na/da/pra

arquitetura em ruína.

A Europa tem várias esquinas e becos que escondem com seus guias turísticos

estórias curiosas. Um exemplo seria a Praça de São Felipe Neri, em Barcelona, onde

destruída pela aviação franquista na Guerra Civil Espanhola deixando ali 42 mortos e

mortas, a maioria crianças.

A narrativa daquele local se conjura com as narrativas próprias do/da artista.

Assim, videoperformei. Limpei os buracos do ataque com minhas próprias estórias,

Page 4: Espaços de Mnemosine

minhas próprias vivências, incorporei aquelas memórias às minhas, as paredes às

minhas, a ruína que persiste frente ao artista em site specific.5

Outra tarefa importante a se pensar é analisar as narrativas de ruínas e propor

imagens dentro de um contexto que me é mais familiar. Logo, o desafio de agora é

catalogar locais dentro do Brasil, um país de história escrita recente, onde seus prédios

não são tão antigos quanto os da Europa e suas ruínas aparentemente não escondem

fábulas e mitos como Roma ou Pompéia, por exemplo.

Mnemosine na Capital Federal brasileira

Brasília, onde resido desde 2011, desacostuma os/as seus/suas residentes com

construções antigas. Cidade recente possui somente prédios modernos com funções

prévias e que se abandonados, procuram arrumar-lhe uma função rapidamente para que

não fique vazio.

O espaço arquitetônico brasiliense é uma contradição, por conseguinte. Fora de

prédios, há grandes vazios, locus de contemplações e devaneios, entretanto, é raro

encontrar ruínas na cidade moderna.

É raro, porém, não é impossível.

O caminhar nas ruas brasilienses e dentre seus prédios me fez realizar o óbvio.

Não é porque o prédio ainda está em uso que não encontraríamos estórias ruinescas. A

própria Universidade de Brasília/UnB esconde em suas paredes, perseguição e

violência.

O filme Barra 68 do diretor Vladimir Carvalho aborda a truculência militar

contra o corpo discente da tal instituição na década de 60 após o Golpe. São espaços

Page 5: Espaços de Mnemosine

específicos que carregam uma energia carregada de fúria e luta contra a repressão que

não se pode passar desapercebido pelos/as poetas, poetisas e artistas que ali transitam.

O Instituto Central de Ciências – ICC possui várias marcas de tiro assim como a

Praça San Felipe Neri, porém um pouco menores, e a quadra perto da Sintfub em frente

ao Instituto de Artes/IdA foi usada como local de catalogamento de estudantes de

esquerda.

A UnB em si carrega várias estórias, fábulas e mitos e ainda correm pelos seus

corredores dezenas de milhares de pessoas todos os dias. Dessa maneira, estes prédios

em uso me atraem pelo força que o barulho dos/as transeuntes provoca em Mnemosine.

Mas, por este primeiro momento, explorarei o silêncio do abandonado e suas memórias.

O lugar mais adequado no Distrito Federal é a Piscina de Ondas.

Mnemosine e o silêncio do abandono

A piscina de ondas foi inaugurada em 1978 e era visitada por muitos e muitas

brasilienses. Hoje encontra-se abandonada e largada aos focos de Dengue, aos pássaros

que chegam voando e aos/às vândalos (sic) e artistas que pulam a cerca para modificar a

ruína.

Nascimento (2005) afirma que Baudelaire trabalha com “o agora e o não mais

agora”, o artista que lida com memória tende a manipular seu próprio tempo e os

tempos que não lhe são seus mais. A autora também destaca o fato da modernidade ser

obcecada pela memória e pela efemeridade das coisas.

Com o surgimento destes fatos, é importante resgatar também o conceito de

Didi-Huberman (2000) sobre o anacronismo – tanto o passado quanto o presente não

param de se modificar.

Page 6: Espaços de Mnemosine

Uma imagem deflagra vários presentes, vários passados – “sempre, diante da

imagem, estamos diante de tempos” (Didi-Huberman, Georges. 2000: 9). O passado

acaba por se mostrar insuficiente à compreensão temporal de uma obra de arte uma vez

que o/a artista – “mestre da verdade” (Regis, 1997) – pode por “em cena a tensão

infinita que existe nos objetos” (Nascimento, 2005: 50) e manipular sua realidade-tempo

e as outras realidades-tempos que não são seus.

A obra, então, é observada como uma forma em perpétua transformação, uma montagem de tempos que revela um paradigma teórico próprio; nele, a temporalidade passa a ser um procedimento crítico que tem como base a ideia de uma dialética aberta, em espiral; A dinâmica da memória atua como o princípio ativo dessa montagem, ela investiga as correlações e os diálogos existentes entre os tempos presentes da/na obra, entrelaçando seus fios. (NASCIMENTO, 2005, 50-51).

Assim, o que acontece com o espaço-tempo-corpo quando eu entro e manipulo

as temporalidades? Um passado que é presente. Um corpo presente no espaço do

passado. Um espaço novo dentro do velho. Um tempo, dois tempos. Tempo A = Tempo

B. Corpo A + Tempo A = Arte = Tempo A + Tempo B.

Propor meu corpo em narrativas que não são minhas, em tempos que não são

meus.

Page 7: Espaços de Mnemosine

Barra 68 - Sem Perder a Ternura. Vladimir Carvalho. Brasil. 2001. 82 min.

BECKETT, Samuel. The Capital of the Ruins, in: Complete Short Prose, 1929 – 1989, editado com introdução e notas por S. E. Gontarski. New York: Grove Press, 1995. p. 275-8.

DIDI-HUBERMAN, Georges. Devant le temps. Histoire de l’art et anachronisme des images. Paris: Minuit, 2000.

DUBOIS, Philippe. O Ato Fotográfico. Campinas: Papirus, 1993.

GRECO, Joann. The Psychology of Ruin Porn. Disponível em:http://www.citylab.com/design/2012/01/psychology-ruin-porn/886, acesso em 15/10/15, às 16:28.

KURY, Mário da Gama. Dicionário de Mitologia  Grega e Romana. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 1990.

NASCIMENTO, Roberta Andrade. Charles Baudelaire e a arte da memória. Alea: Estudos Neolatinos, Rio de Janeiro, v. 7, p. 3, jan./jun. 2005.

REGIS, Fátima. Memória e Esquecimento na Grécia Antiga: Da Complementaridade à Contradição. Logos Comunicação e Universidade (Comunicação e Memória), Rio de Janeiro: Faculdade de Comunicação Social UERJ, 1997, n. 7, p. 20-24.

____________

¹ Esse carta de E. Barrett é citada por Susan Sontag na breve antologia que concluiLa photograpnie (Paris, Scull, col. Plctlon & Cie, 1979). E Dubois (1993, p. 123) a resgata.

² Disponível em https://www.youtube.com/watch?v=WqqSwFscWtI, acesso em 15/10/15, às 15:59.

³ Disponível em http://www.rosangelarenno.com.br/obras/view/19/1, acesso em 15/10/15, às 16:02.

4 “In skating over thin ice our safety is in our speed” WALDO, Ralph E. http://www.emersoncentral.com/prudence.htm

5 OPA, Matheus K. 42 Defluências. Video-arte. Espanha. 2015. 5min. Disponível em: https://youtu.be/02kfD9qbJdU, acesso em 27/10/15, às 22:40.