escritoras da floresta: mulheres do alto juruá e suas ... · visitas feitas pela mãe do monitor...

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1 Escritoras da Floresta: Mulheres do Alto Juruá e suas percepções sobre o cotidiano em uma área de conservação ambiental Ana Carolina Bazzo da Silva Possui graduação em Ciências Sociais pela Universidade Estadual de Campinas UNICAMP e é mestranda do Programa de Pós-Graduação em Antropologia Social da mesma Universidade com o projeto "Calendários e Representações do Tempo na Reserva Extrativista do Alto Juruá: Um estudo sobre os Escritores e Pesquisadores da Floresta". É membro do Centro de Estudos Rurais e editora da RURIS – Revista do Centro de Estudos Rurais, revista semestral que já se encontra no seu terceiro número. Participou da finalização do projeto "Pesquisa e Monitoramento Participativo em Áreas de Conservação Gerenciadas por Populações Tradicionais" em 2004, e da elaboração do “Projeto Pesquisa e Monitoramento da Diversidade Biológica e Cultural no Alto Juruá para o Desenvolvimento Regional - Desenvolvimento de métodos de pesquisa e monitoramento dos ecossistemas e da qualidade de vida na Reserva Extrativista do Alto Juruá” em 2006 e 2007. Participou da organização do livro "Antologia de autores da floresta I". Tem experiência na área de Antropologia, com ênfase em Antropologia Rural e Antropologia e Ambiente. Resumo Este artigo discute uma leitura antropológica de diários escritos por alguns dos moradores da Reserva Extrativista do Alto Juruá, tendo como objetivo principal a descrição e interpretação dos diferentes elementos que nos permitem observar o cotidiano das atividades e das relações entre os moradores e a floresta. Observando aspectos ímpares das representações das escritoras e dos escritores que se preocuparam em nos referir aspectos do papel das mulheres nesse cotidiano e também observando nossos próprios olhares enquanto pesquisadores sobre a relação entre homem e ambiente e sobre trabalhos e rotinas de populações tradicionais e rurais, este artigo também problematiza nosso próprio olhar. Introdução Este artigo se propõe a discutir e expor um olhar antropológico preocupado com a relação entre homem e ambiente em diários escritos por alguns dos moradores da Reserva Extrativista do Alto Juruá, no estado brasileiro do Acre, cuja produção foi incentivada durante mais de dez anos de atividades de pesquisadores acadêmicos no local.

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Escritoras da Floresta: Mulheres do Alto Juruá e su as percepções

sobre o cotidiano em uma área de conservação ambien tal

Ana Carolina Bazzo da Silva

Possui graduação em Ciências Sociais pela Universidade Estadual de Campinas

UNICAMP e é mestranda do Programa de Pós-Graduação em Antropologia Social da mesma

Universidade com o projeto "Calendários e Representações do Tempo na Reserva Extrativista do

Alto Juruá: Um estudo sobre os Escritores e Pesquisadores da Floresta". É membro do Centro de

Estudos Rurais e editora da RURIS – Revista do Centro de Estudos Rurais, revista semestral que

já se encontra no seu terceiro número. Participou da finalização do projeto "Pesquisa e

Monitoramento Participativo em Áreas de Conservação Gerenciadas por Populações Tradicionais"

em 2004, e da elaboração do “Projeto Pesquisa e Monitoramento da Diversidade Biológica e

Cultural no Alto Juruá para o Desenvolvimento Regional - Desenvolvimento de métodos de

pesquisa e monitoramento dos ecossistemas e da qualidade de vida na Reserva Extrativista do

Alto Juruá” em 2006 e 2007. Participou da organização do livro "Antologia de autores da floresta

I". Tem experiência na área de Antropologia, com ênfase em Antropologia Rural e Antropologia e

Ambiente.

Resumo

Este artigo discute uma leitura antropológica de diários escritos por alguns dos

moradores da Reserva Extrativista do Alto Juruá, tendo como objetivo principal a descrição e

interpretação dos diferentes elementos que nos permitem observar o cotidiano das atividades e

das relações entre os moradores e a floresta. Observando aspectos ímpares das representações

das escritoras e dos escritores que se preocuparam em nos referir aspectos do papel das

mulheres nesse cotidiano e também observando nossos próprios olhares enquanto pesquisadores

sobre a relação entre homem e ambiente e sobre trabalhos e rotinas de populações tradicionais e

rurais, este artigo também problematiza nosso próprio olhar.

Introdução

Este artigo se propõe a discutir e expor um olhar antropológico preocupado com a

relação entre homem e ambiente em diários escritos por alguns dos moradores da Reserva

Extrativista do Alto Juruá, no estado brasileiro do Acre, cuja produção foi incentivada durante mais

de dez anos de atividades de pesquisadores acadêmicos no local.

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Como toco o tema da relação entre homem e ambiente é uma questão que em si se

sustenta sobre alguns outros questionamentos de cunho antropológico também, como, por

exemplo: de que maneira podemos observar as relações com o ambiente na narrativa desses

moradores observando seu cotidiano, de que maneira essas relações se misturam com as

intenções de pesquisa acadêmica sobre ambiente que propiciaram a produção dos cadernos e

quais os diferentes sinais de diferença que tais cadernos contém que nos permitem observar a

pluralidade dessa relação (de mulheres para com o cotidiano na floresta, de homens, de crianças).

Devido ao caráter original deste material, proponho inicialmente uma pequena

etnografia e uma descrição de informações sobre o cotidiano das atividades desses moradores-

escritores para que possa desta maneira tentar responder com este olhar a algumas dessas

questões. Esta leitura etnográfica de um material escrito será orientada por um foco possível

dentre de tantos que podemos delimitar quando lemos os cadernos dos moradores da Reserva:

tendo em vista uma intenção de mapear o cotidiano de atividades e de trabalho de mulheres,

homens, crianças e idosos, inicialmente.

Como estas questões se enredam em contextos, cenários, olhares e relações

(antropólogos, políticos, entre os moradores), também proponho uma discussão que leva em

conta o fato de que as informações escritas nesses cadernos além de nos permitirem construir o

cenário do cotidiano e das relações dos moradores nesta área de floresta, são informações

pessoais. Levo em conta, portanto, o fato de que cada diário é também uma fonte sobre a relação

dos moradores-escritores em suas experiências e vivências com os pesquisadores e seus

discursos e intenções de pesquisa. A antropologia também fornece um arcabouço para

pensarmos nessa relação entre discursos distintos que podem ancorar relações e concepções

diferentes sobre o ambiente.

Tomo, pensando nisso, um posicionamento de que os diários dos monitores

constroem em suas narrativas a peculiaridade de relações de parentesco, de vizinhança, de

relações com a floresta e com o cotidiano de atividades realizadas na floresta.

Esse texto se pretende uma construção desse cotidiano e dessas relações pautada

em dados etnográficos que foram colhidos e escritos por outras pessoas, já que, como nos

salientou Geertz, toda descrição também é uma interpretação. A forma como exponho aqui os

elementos que nos permitem observar esse cotidiano e essas relações mostra esse

posicionamento, que, por sua vez, também se ancora em uma bibliografia antropológica e

sociológica específica.

Por fim, pensando no tema das pluralidades da relação entre homem, cotidiano e

ambiente, discuto especificamente os diários de mulheres e como o cotidiano delas muitas vezes

acaba sendo invisibilizado em algumas construções e argumentações que levam em conta o tema

da relação entre homem e ambiente.

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Construindo um contexto

Em 23 de janeiro de 1990, um ano depois do assassinato do seringueiro e

ambientalista Chico Mendes, criava-se no estado do Acre por decreto presidencial a primeira

Reserva Extativista do Brasil, a Reserva Extrativista do Alto Juruá, delimitada dentro da Floresta

Amazônica brasileira. A área se define institucionalmente vinculada a órgãos governamentais

como o IBAMA, estando desde sua formação, portanto, relacionada a intuitos governamentais de

conservação e proteção ambiental. Ao mesmo tempo, sua institucionalização enquanto Reserva

Extrativista se encontra vinculada à luta nacional e internacionalmente reconhecida dos

seringueiros pela legalização do uso que vinham fazendo há mais de cem anos em que foram se

constituindo como moradores da floresta e também reivindicação pela delimitação de uma área

que seria por eles gerenciada, seguindo um intuito inicial e imediato de proteção da mata contra a

ação de madeireiros e grileiros (Cf ALMEIDA, 1992; ALMEIDA, 2004; CUNHA & ALMEIDA, 2003).

Desde os primeiros anos de sua institucionalização a REAJ recebe visitas de

pesquisadores interessados em observar e pensar a viabilidade econômica, ambiental, política e

social desse gerenciamento e uso da terra e dos recursos por parte dos moradores. Um dos

resultados destas pesquisas é um material escrito entre o período de 1993 a 2003 e entre 2006 e

2007 por um grupo de moradores locais que trabalhou junto com pesquisadores acadêmicos

(antropólogos, biólogos, ecólogos, sociólogos, geólogos) anotando dados sobre o cotidiano de

suas atividades e relações com a floresta. No início destes trabalhos de pesquisa, demandou-se

que estes “pesquisadores-moradores”, reconhecidos como "monitores sócio-ambientais"

anotassem dados sobre agricultura, coleta de borracha, caça, pesca e sobre algumas espécies de

anfíbios e de insetos avistados. Os participantes locais receberam durante alguns dos anos de

vigência e financiamento dos projetos um soldo para escrever os chamados "diários de

monitoramento", mas o interesse inicial por parte de alguns surgiu com o contato que tiveram com

as atividades sindicais, com esses pesquisadores e com agentes governamentais. A escrita

destes diários também era uma oportunidade de alfabetização, já que o conteúdo não seria

informado em formato de surveys ou tabelas, mas sim em textos (Cf. POSTIGO, 2003; FRANCO,

1997).

Uma forma inicial de construção dos dados foi o preenchimento de tabelas de caça

que delimitavam informações como o tipo de animal, o tipo de caçada, quantidades e período de

realização de atividades. No entanto, tal forma de construção dos dados não se articulava tanto

com a intenção de alfabetização dos primeiros monitores, e, desde o início do projeto foi aberta

uma possibilidade de delimitação parcialmente livre dos dados, já que durante os treinamentos

realizados para a instrução e formação dos monitores, os pesquisadores acadêmicos os instruíam

sobre as informações básicas que os cadernos deveriam conter (tendo em vista que a proposta

intrínseca aos projetos financiadores de materiais e ajudas de custo relacionava-se também com o

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interesse do uso destes dados em relatórios sobre a viabilidade social e ecológica da Reserva),

mas que acabavam incorporando elementos das distintas experiências destas pessoas.

Deste modo, surgiram formatos de diários temáticos que deveriam conter informações

básicas relacionadas com o tema a ser explorado, como os diários de caça, de pesca, de anfíbios,

de alimentação, de borboletas e libélulas, por exemplo, mas que seguiam a forma de narrativas e

descrições. Esta liberdade permitida deste o início do projeto de monitoramento na forma como os

dados poderiam ser relacionados permitiu também a diferença e a pluralidade, portanto. Enquanto

alguns moradores informavam pontualmente que não haviam ido caçar porque haviam ido ao

roçado “naquele dia”, outros começaram a delimitar mais que os períodos de saída e chegada

para realização de uma atividade, construindo um quadro completo de atividades,

acontecimentos, conversas, pensamentos. Assim, aquele que se iniciara como um quadro

delimitado de um período e de saldos de atividades, aos poucos ia ampliando sua imagem e suas

referências significativas. Podemos traçar períodos recorrentes (diários, mensais, anuais) que

caracterizam alguns marcadores temporais (atividades relacionadas ao tempo dos animais, das

plantas, das pessoas, do ciclo anual de dias especiais) assim como podemos notar, pelas

diferenças, como estas categorizações são distribuídas em diferentes períodos do dia.

Há um questionamento intrínseco a estas observações e ele orienta toda a leitura que

faço dos diários dos monitores sócio-ambientais e inclusive as perguntas que faço pra bibliografia:

o que significa pensar a representação das relações com o trabalho, com a floresta, com os

demais moradores conhecendo tal diferença e atentando para esta pluralidade, mas sem perder

de vista o aspecto institucional e também simbólico dos projetos que possibilitaram a escrita do

material?

Pensando nesse questionamento, descrevo abaixo algumas das principais atividades

que podemos encontrar nos diários dos moradores da REAJ, para que possamos seguir na

construção daquele que seria um cotidiano das relações entre moradores e destes para com a

floresta e para pensarmos como as respostas dos moradores sobre esse cotidiano se relacionam

com as intenções de pesquisa que propiciaram a escrita do material, como por exemplo, o

interesse em mapear o impacto de atividades extrativistas ou da agricultura. A construção de

calendários de atividades comparativos se pauta principalmente no segundo questionamento

acima proposto, que será comentado no final desse texto.

Comecemos nossa construção do cotidiano dos moradores da área descrevendo e

interpretando as atividades que encontramos nos cadernos ao longo da descrição da rotina diária,

mensal e anual por parte dos escritores, tendo em vista marcadores de diferença como idade e

gênero.

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Construindo um cotidiano: interpretando a etnografi a dos

moradores

Viajar

Homens e mulheres realizam viagens para comércio, passeio, visitas durante o ano

todo. É comum encontrarmos menções de atividades de compra e venda de mercadorias, assim

como dos produtos de roçados e de criações domésticas, como realizadas por homens, que estão

sempre viajando para as cidades de Marechal Thaumaturgo e Cruzeiro do Sul seguindo esta

finalidade.

Mulheres também podem partir sem maridos ou pais, com as canoas ou caminhando,

para uma viagem de visita ou à busca de remédios e plantas.

É comum também as crianças seguirem suas mães e seus pais nestas viagens para

visitas, sendo que quando estão maiores, principalmente os meninos, podem viajar com os pais

quando se intenta vender um porco ou feijão para um marreteiro1.

Para os mais velhos, no entanto, viagens para fins comerciais são menos recorrentes.

Durante um ano de informações contidas em um diário, por exemplo, não há muitas menções de

visitas feitas pela mãe do monitor Raimundo Farias Ramos a sua casa, mas sim o contrário:

visitas do filho e de sua família à mãe. Inclusive uma filha sua estava para dar a luz e fora para a

casa da avó Nazaré, parteira reconhecida na região, durante o último mês de gestação.

No entanto, não é difícil encontrar referências às viagens a Cruzeiro do sul em que os

mais velhos estão presentes para receberem a aposentadoria ou mesmo para consultarem-se

com um médico.

Descanso e lazer

Mulheres, homens, crianças, e idosos costumam guardar o dia de domingo e os

feriados não trabalhando, “calmando”2 ou “se divertindo”. Também costumam guardar o intervalo

do almoço ou os dias chuvosos descansando ou estudando (aqui lembramos o papel da escrita na

vida desses pesquisadores-moradores e a influência também da atividade de pesquisa em sua

rotina).

1 Como são chamados os comerciantes independentes do seringal, que percorriam os rios vendendo mercadorias, referenciados sobretudo nos primeiros anos de criação da reserva, quando a memória de um tempo de monopólio de compra e venda de mercadorias por parte dos antigos patrões seringalistas estava bastante presente nas narrativas. Este tipo de relação comercial nos remete ao sistema que administrou historicamente os seringais desde sua formação no começo do século. Os seringueiros (trabalhadores que colhiam o látex e o processavam transformando-o em borracha vegetal) eram obrigados a comprar dos patrões, seringalistas, que agenciavam e arrendavam terras de floresta para a exploração das seringueiras e para eles vender a sua produção. Era sob esse sistema monopolista que vigeu a vida nos seringais durante os ciclos de exploração comercial da borracha vegetal e foi contra ele, sobretudo, que os seringueiros e agricultores da REAJ e de outras áreas do Acre lutaram no final da década de 80 pela livre exploração da terra e da floresta.

Os marreteiros aparecem sempre como tema controverso nas histórias sobre a época dos patrões. Algumas brigas entre seringalistas e seringueiros partem de acusações de compra de mercadorias e venda de borracha para esses comerciantes itinerantes, o que ameaçava o acordo tácito monopolista entre patrões e seringueiros. 2 Palavra local que pode ser entendida como “descansando”

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Durante os dias em que não se trabalha (geralmente são dias em que a família não foi

ao roçado ou não participou de atividades extrativistas), os homens e meninos podem jogar

futebol, sair para caçar ou pescar ou mesmo ficar conversando com os mais velhos.

As mulheres e meninas podem pescar, cozinhar, ficar conversando.

Fazer comida

Fazer comida, principalmente em casa, é uma atividade recorrentemente feminina.

São as mulheres que retiram a goma da mandioca para fazer tapioca, que geralmente cuidam da

carne da caça quando os homens chegam da mata, que preparam o almoço e o jantar.

No entanto, encontramos em alguns cadernos referências a homens que fazem a

comida, ou certos tipos de comida. Homens trabalham também em farinhadas (fazer farinha de

mandioca é atividade coletiva, que dura mais de um dia, muitas vezes). Encontramos homens

preparando carnes de animais abatidos em algumas situações, como quando estão na mata por

motivos de viagens ou de caçadas. Mas também encontramos alguns homens preparando comida

em casa em algumas ocasiões, como no caso do escritor Altemir Firmino, em ocasiões em que

sua mulher estava doente e na ausência de suas filhas.

Plantar árvores frutíferas, plantas medicinais e ve rduras, cuidar das

criações domésticas, lecionar, atender no posto de saúde, participar de

treinamentos e de reuniões, escrever diários, estud ar e participar das atividades de

monitoramento

Atividades como o cuidado com as plantas encontradas nas proximidades da casa e

com as criações de animais domésticos, assim como as atividades de monitoramento e de agente

de saúde podem ser realizadas tanto por homens como por mulheres adultos ou mais velhos,

apesar de encontrarmos também uma recorrência feminina quando observamos trabalhos que

envolvem o entorno do ambiente doméstico, como no caso dos trabalhos no pomar.

Tanto homens quanto mulheres podem sair cedo para alimentar as criações aguar as

verduras, colher açaí e banana ou ordenhar as vacas. Os cuidados com culturas de plantas nas

proximidades da casa ou dos animais domésticos podem ser realizados pelos mais jovens e por

pessoas mais velhas também.

Alguns pontos importantes podem ser notados na narrativa dos diários dos monitores

indicando como a atividade de monitoramento é diferenciada para homens e mulheres adultos e

mais velhos.

Há mulheres que fazem diários de caça e de pesca, como Luciene da Silva e Maria

Bezerra de Holanda. Por vezes são elas quem saem para realizar tais atividades, principalmente a

de pesca, mas geralmente as informações partem das atividades realizadas por maridos e filhos.

Com os homens mais velhos que possuem diários de caça isto acontece também, sendo que

muitos informam quando os filhos e parentes foram pescar e, principalmente, caçar em

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localidades distantes. Diários de alimentação são feitos geralmente por mulheres, que se ocupam

geralmente com a rotina das atividades relacionadas com a casa. Há também homens que

escrevem diários de alimentação, como os monitores Altemir Firmino e Antônio Barbosa de Melo,

descrevendo a rotina alimentar da casa. Vale lembrar que as informações sobre o consumo

domésticos desde o começo dos projetos de pesquisa foram deixadas a cargo das mulheres, que

ao longo das narrativas nos mostraram que também caçavam e colhiam látex, assim como os

homens que escreviam tais diários nos mostravam que também estavam atentos ao consumo e à

rotina domésticos.

Relatórios de reuniões e treinamentos são feitos tanto por homens quanto por

mulheres, também. Há monitores que fizeram diários em que descrevem situações de

treinamentos e de reuniões, como Raimundo Farias Ramos e Antônia Aldilândia Bezerra do

Nascimento, o que nos permite reafirmar estas atividades administrativas, de monitoramento e

prestação de serviços como masculinas e femininas.

“Mariscar”, pescar

Pescar, ou como dizem os moradores, “mariscar” é atividade realizada em qualquer

idade, por homens e mulheres, sendo que não encontrei informações nos diários que nos

permitam classificá-la como preferencialmente masculina ou feminina, apesar de nos lembrarmos

que as mulheres se ocupam a maior parte do tempo com atividades referentes ao círculo

doméstico ou trabalhando com os maridos e filhos nos roçados.

Muitos diários possuem informações iniciais que relatam os moradores da casa e da

vizinhança, o parentesco e ocupação (agricultor, agente de saúde, seringueiro) dos moradores e,

principalmente, suas idades. Observando estas informações podemos descobrir que crianças

pequenas saem para pescar, sabendo desde cedo como colocar armadilhas para peixes ou

pescar com anzol.

Mulheres e homens adultos ou mais velhos saem para pescar juntos às vezes,

principalmente quando a pesca é feita com objetos que implicitamente nos revelam uma atividade

coletiva (como pescar em canoas com redes de tarrafa), mas podem sair sozinhos a qualquer

hora do dia em busca de peixe para o almoço, para a janta ou pra o quebra-jejum (primeira

refeição do dia, anterior ao almoço e bastante semelhante a ele em qualidades de alimentos

consumidos).

Caçar

Diferentemente do ato de pescar, a atividade de caça é geralmente informada como

masculina, segundo a narrativa dos diários. Os diários temáticos de caça são escrito, em sua

maioria, por homens e quando escritos por mulheres, estas nos informam a caça como atividade

de maridos, pais e filhos. Além disso, os nomes dos caçadores informados em outros diários são

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geralmente masculinos. O corte e o tratamento da carne de caça realizado pelas mulheres,

geralmente.

A caçada é atividade realizada por homens de diferentes idades, sendo que os

meninos mais velhos costumam seguir com seus pais e irmãos mais velhos nas caçadas. Os mais

velhos também saem para a mata à procura de animais, no entanto, a distribuição das atividades

no período do dia e os tipos de caçada indicam algumas diferenças no que concerne o item

diferencial da idade quando pensamos nas caçadas.

As caçadas em que se segue procurando os animais por matas diferentes em grande

período de tempo são geralmente realizadas por jovens e homens adultos, como podemos notar a

partir dos diários. Em um ano de informações, o monitor Raimundo Farias Ramos, que é um

senhor com mais de 50 anos, saiu várias vezes durante à tarde ou pela manhã à procura de

rastros de animais ou para esperar sob um pé de comida. No entanto, seu filho Caboclo e outros

jovens da vizinhança, como João, saíam constantemente para caçadas que duravam o dia todo e

em que se distanciavam bastante das matas da comunidade, segundo informa Caboré.

O mais interessante, no entanto, é que podemos encontrar também mulheres

caçadoras, da mesma forma que, se quisermos fazer uma comparação, podemos encontrar

homens fazendo comida.

Para exemplificar, segue uma citação de um diário de cotidiano da monitora Ivanilde

Gomes Pereira:

Hoje minha mãe foi caçar e matou uma paca, que pesou 10 quilos – a

paca estava gorda. Os caçadores eram: minha mãe, Preta e Ivanilde. A paca deu

quatro refeições - uma vez nós almoçamos carne torrada, outra vez foi assada e

duas vezes foi cozida.

Em um artigo em que se preocupa especificamente com os diários escritos por essa

monitora (FRANCO, 1997), Mariana Pantoja Franco nos diz que a família de Ivanilde era

especialmente uma família de mulheres caçadoras e também de mulheres que se ocupavam

inclusive com o corte das seringueiras, relacionando essa observação ao fato de o pai de Ivanilde

ser comerciante e passar grandes períodos longe de casa.

Em sua tese de doutorado (FRANCO, 2001), encontramos também na família

estudada pela autora, mulheres que se ocuparam durante grande parte de suas vidas às

atividades não domésticas, como dona Mariana e sua mãe índia. Capturada quando menina e não

tendo, consequentemente, parentes homens que a amparassem, a mãe de dona Mariana se

ocupava de atividades como a coleta de seringa, passando a filha Mariana logo a se ocupar

dessas atividades também, tendo inclusive uma conta separada para ela com os patrões. Em

entrevistas descritas na tese, dona Mariana nos diz o quanto preferia o trabalho fora de casa, o

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que nos permite observar que além de uma possibilidade para as mulheres, não necessariamente

o trabalho doméstico era por elas visto como preferencialmente feminino.

Trabalhar no roçado

Os trabalhos com o roçado, em suas diferentes fases também podem ser realizados

por homens e mulheres de diferentes idades. No entanto, é mais comum encontrar homens

saindo cotidianamente para os cuidados com a manutenção e limpeza do roçado que mulheres.

Todos ajudam, inclusive as crianças, na quebra, colheita e na preparação final do feijão ou do

milho, por exemplo.

Não encontrei referências a roçados femininos em nenhum dos diários lidos até agora.

As referências ao roçado onde se foi trabalhar são sempre relacionadas à classificação masculina

de sua posse: “fui arrancar mandioca no roçado do Ivo”, “fomos brocar no roçado do Bibir”. Há

referências, no entanto, que indicam que mulheres podem plantar algumas culturas de plantas em

roçados pertencentes aos seus pais ou maridos, podendo dispor daquilo que cultivaram de acordo

com seus interesses. Ivanilde Gomes Pereira informa, por exemplo, que ela e sua irmã Preta

plantaram um pouco de tabaco para poderem comprar mercadorias com o dinheiro conseguido

com a venda deste artigo agrícola.

Construir e reparar casas, cercas, canoas e ferrame ntas

Geralmente a construção e o reparo de casas, de canoas, de cercas e de ferramentas

são atividades realizadas por homens. Reparos e construções de casas, canoas e cercas são

informadas como atividades realizadas pelos próprios monitores, por parentes ou por outros

homens da vizinhança.

Arrumar a casa

Os cuidados com a arrumação da casa e com as tarefas domésticas, assim como com

os filhos pequenos são atividades cotidianamente femininas.

São as mulheres quem lavam a roupa, as panelas e limpam a casa, sendo que não

encontrei nenhuma menção a homens realizando tais atividades.

Utilizando as descrições acima e relacionando sua distribuição ao longo do dia,

podemos também tentar construir o que seria um dia de atividades para mulheres, homens e

crianças.

Homens em um dia de atividades

Os homens acordam cedo, comumente as cinco ou seis horas da manhã, e buscam

lenha para fazer o fogo ou buscam água para cuidar dos canteiros de verduras. Logo após o

quebra-jejum, podem seguir ao roçado de mandioca para arrancar comida para os porcos de

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casa, deixando a comida no chiqueiro. Logo seguem para o roçado, onde prepararão o terreno

para novo plantio, plantarão, colherão um roçado que estiver pronto ou arrancarão mandioca para

começar a afazer farinha à tarde. Podem também partir para arrumar uma canoa ou uma cerca ou

mesmo sair para pescar ou andar pela mata para caçar um animal. Geralmente voltam para casa

antes do almoço, podendo passar o período anterior ao almoço cortando cachos de banana ou

colhendo um pouco de açaí. Durante o período do almoço, descansam em casa e conversam.

Após o almoço voltam para o roçado ou seguem para a realização de outras atividades, como a

pesca, a caça ou a realização de reparos.

Podem acordar cedo para cortar seringa, cortando a estrada logo após o quebra-

jejum. Podem voltar para casa após cortar, retornando para a mata mais tarde para colher o leite

que ficou depositado nos frascos localizados abaixo dos cortes. Durante parte da tarde do mesmo

dia, ainda podem ir brocar no roçado, pastorar na mata, pescar no igarapé, ou mesmo atender a

um doente e limpar o posto, se trabalharem como agente de saúde.

Uma manhã ou uma tarde de trabalho pode ser usada para realização de pequenas

viagens também, retornando-se no mesmo dia.

Quando pretendem fazer uma viagem mais longa, deixam os animais aos cuidados

dos parentes ou mesmo da esposa, se ela não viajou também, retornando no outro dia ou dias

depois, o que dependerá das condições das chuvas e dos rios e também dos interesses

relacionados à viagem.

Retornam no final da tarde para o jantar e para o banho. Se forem monitores,

escrevem os seus diários neste período. Conversam com a família ou com vizinhos e visitantes ou

ouvem algo no rádio antes de dormir.

Mulheres em um dia de atividades

Mulheres também acordam cedo, junto com os homens, e podem passar grande parte do dia com

os trabalhos domésticos. Quebram o jejum, saem para cuidar da alimentação das criações.

Durante a manhã, se não foram pescar ou não foram para o roçado com os homens, arrumam a

casa e lavam a roupa. Voltam do roçado ou da pesca para preparar a comida e, depois do almoço

saem para o rio para lavar as panelas. Se elas trabalharam no roçado ou foram pescar de manhã,

cuidam da roupa e da casa à tarde. Quando os filhos são pequenos, a rotina e a permanência na

casa são mais intensas, devido aos cuidados que os bebês e crianças menores requerem.

As mulheres também podem se dirigir para o roçado arrancar mandioca para fazer

farinha durante parte da manhã ou da tarde, como os homens. Podem seguir em pequenas

viagens sozinhas ou com algum homem da casa durante parte da tarde ou da manhã também,

retornando no mesmo dia para realizar outras atividades, que podem ser o cuidado com as

criações ou mesmo a limpeza da casa ou da casa de farinha.

A rotina das viagens mais longas é semelhante para mulheres e homens.

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Se as mulheres trabalharam fora de casa durante a tarde, retornam para fazer a janta

e tomar banho, o que marca o início da noite e o final do ciclo bastante variado de atividades

diárias.

Crianças, idosos e o cotidiano das narrativas

O dia de homens e mulheres idosos não difere muito do dia de homens e mulheres

adultos, a não ser no que concerne à recorrência de algumas atividades, como no caso de longas

caçadas que passam por diferentes matas. É comum encontrar pessoas mais velhas trabalhando

durante o preparo da farinha. Os diários lidos até agora não forneceram, no entanto, mais

informações sobre a idade como item classificatório para pensarmos na distribuição da rotina

diária de atividades, sendo que os mais velhos participam de grande parte das atividades

descritas.

As crianças também possuem um dia cheio de atividades. As meninas bem jovens

também iniciam cedo o seu dia, podendo sair para ajudar os pais com as criações de animais ou

com a busca de lenha para fazer o fogo do café. Podem seguir seus pais indo ao roçado para

quebrar tabaco ou milho, debulhando feijão ou enrolando folhas de tabaco. Também se ocupam

cuidando dos irmãos mais jovens. Não encontrei menções a meninas jovens indo brocar ou

derribar, no entanto.

As meninas também podem ficar em casa ajudando com as tarefas domésticas,

limpando a casa, lavando a roupa, preparando as refeições. Participam da pesca e do feitio de

farinha.

Os meninos podem sair cedo para pescar ou acompanhar seus pais ao roçado, para

debulhar, quebrar, secar folhas de tabaco ou feijão, como as meninas. Ajudam também nas

farinhadas e podem sair de manhã para pescar. Com os pais aprendem bem cedo também a

atividade de corte e coleta de seringa, assim como logo acompanham os homens mais velhos nas

caçadas.

Os jovens e as crianças também freqüentam aulas. Encontramos também menções

sobre suas brincadeiras.

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Concluindo e construindo o olhar sobre cotidiano de mulheres

e homens

Calendários

Escrever sobre a leitura antropológica da relação entre homem e ambiente é tocar em

temas muitos. Escrever sobre os olhares antropológicos que neste sentido podem ser lançados

para os diários escritos por antigos seringueiros e agricultores de uma área de floresta é escrever

sobre vários olhares possíveis.

Tentarei, portanto, expressar um dos caminhos argumentativos possíveis que podem

partir de leituras antropológicas sobre as narrativas do cotidiano que encontramos nesses

cadernos que são fruto da interação complexa entre escritores- moradores e pesquisadores, entre

experiências locais e os discursos externos que juntos orientaram a delimitação do conteúdo e

dos formatos desses textos. Tal interação, por si só, já seria um dos temas que poderia explorar

aqui neste artigo antes de pensar em qualquer outro caminho. De certo modo ela já se encontra

problematizada na descrição dos cadernos, já que a etnografia é um exercício interpretativo.

O olhar interpretativo que lancei durante estes últimos quatro anos em que me

dediquei à leitura e à descrição dos diários segue o mesmo princípio que me permite delinear a

descrição acima, um olhar que se pauta em três pontos principais:

* os diários são orientados pelos interesses de pesquisadores acadêmicos em

monitorar a vida social e os impactos ambientais das atividades dos moradores num contexto de

institucionalização da área enquanto Reserva Extrativista.

* os diários contém particularidades da vida social e pessoal de cada escritor, além de

suas visões particulares sobre a relação com a própria escrita dos cadernos e com o contexto que

a propiciou.

* minha leitura dos cadernos também é uma representação dessa representação, uma

interpretação da interpretação dos dados propostos pelos pesquisadores e escrito pelos monitores

que tenta dialogar com essa relação contrastante entre o proposto e o respondido.

Foi levando em consideração esses pontos que segui nas conclusões seguintes sobre

a leitura desses elementos e atividades que constroem em minha leitura o cotidiano dos

moradores da REAJ.

Tais posicionamentos também se ancoram em leituras específicas, sobretudo as que

se preocupam em estudar a relação entre homem e trabalho, homem e cotidiano, homem e

ambiente utilizando calendários de atividades ou os discutindo, assim como discutindo a relação

13

entre o tempo social e o tempo abstraído que implicitamente nos remete ao uso de calendários

relacionando-os à rotina cotidiana de populações rurais ou florestais.

A proposta de análise da distribuição das atividades ao londo dos meses e do ano em

calendários se relaciona com a tentativa de delimitação do aspecto sociológico e antropológico da

representação do cotidiano pelos moradores-escritores da REAJ e a forma como construí esses

calendários aponta para a investigação das particularidades da relação desses moradores-

escritores com os próprios diários. O intuito em investigar tais aspectos se inspira em questões

teóricas proposta por autores como Evans-Pritchard (EVANS-PRITCHARD, 1999), Émile Durlheim

(DURKHEIM,1996) e Marcel Mauss (MAUSS, 1974), que discutiram como as representações

sobre a rotina, o tempo e o espaço se relaciona com o ritmo da vida social de diferentes

sociedades, assim como os sistemas simbólicos que ancoram tais representações, que, por

conseqüência, ancoram vivências e experiências desse cotidiano, do tempo e do espaço.

Discussões como a que Evans-Pritchard faz sobre as categorias com as quais os Nuer

representam tempo, espaço e pautam suas experiências temporais e espaciais influenciaram

autores como E. P. Thompson (THOMPSON, 1998), que discute também como a medição do

tempo abstrato que sustenta as relações cotidianas na modernidade foi uma construção

historicamente delimitada.

O uso de calendários dos ciclos de atividades anuais foi proposto também por autores

que se ocuparam de estudos com populações rurais, como Manuel Correia de Andrade

(ANDRADE, 1973) ao estudar a constituição histórica das atividades agrícolas e pecuárias no

Nordeste a partir da sucessão de ciclos de importância econômica de alguns produtos. Em um

ponto de sua argumentação, o autor propõe a descrição das relações de trabalho no agreste

brasileiro contemporâneo à sua pesquisa e utiliza um esquema circular em que relaciona

diferentes culturas e produções com os meses do ano em que são realizadas (Idem, p.172).

A proposta de Andrade se distancia da forma como outros autores relacionaram as

atividades de diferentes populações rurais ou indígenas com a forma como o cotidiano dessas

atividades é representado temporalmente ou com as categorias que estas populações usaram

para delimitação dos ciclos de recorrência destas atividades. Esta relação entre representação e

prática está exposta na argumentação de Pierre Bourdieu em Sens Pratique, quando discute

calendários anuais para os Kabila argelinos, de Evans-Pritchard quando constrói quadros em que

confronta as categorias anuais dos Nuer com o calendário em meses da forma como construímos,

de Philipe Descola, quando constrói um calendário circular relacionando a periodização Achuar

relativa à observação de astros e o ciclo climático ambiental para depois discorrer sobre as

atividades agrícolas e sociais empreendidas e de Marcel Mauss, que descreve os padrões de

comportamento social dos Esquimós no Verão e no Inverno, relacionando o que chama por

morfologia social com a apreensão e categorização do tempo do ambiente.

Pensando no ponto que nos permite unir o aspecto antropológico dos intuitos destes

autores, podemos dizer que a construção de calendários anuais para alguns dos diários dos

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pesquisadores-moradores também se assentou no intuito de observar a relação entre a

construção de um quadro de atividades a partir dos meses em que foram realizadas, mas a partir

também das categorias referentes a uma dinâmica dos relacionamentos sociais e de uma

dinâmica dos relacionamentos com o ambiente que se expressam nas particularidades das

representações de cada diário e escritor.

Levando em consideração que cada diário, como notamos sobretudo quando

comparamos as atividades e a forma como são informadas nos diários de mulheres e de homens,

percebemos que cada escritor nos permite observar as particularidades de seu cotidiano e de

suas relações a seu modo. Ao longo desses quase catorze anos de pesquisa e produção de

diários de monitoramento, temas e relações não requisitadas pelos pesquisadores foram

aparecendo nos diários, como é o caso de mulheres que fazem diários exclusivamente dedicados

a nos informar sobre as atividades domésticas. Outras mulheres nos informam sobre o cotidiano

de suas atividades fora de casa, ajudando os maridos, pais, irmãos e parentes em atividades

extrativistas, atividades agrícolas e mesmo caçando. Alguns homens, por sua vez, constroem as

narrativas de maneira que nos informam não somente seu dia dentro da rotina de trabalhos e de

relações com a floresta e com outros moradores, mas nos permitem ver todo o cotidiano da

família, informando concomitantemente aquilo que mulheres, filhas e filhos faziam durante o

mesmo dia de trabalho.

Talvez a inserção de temas como as atividades domésticas como cuidados com os

filhos e com a limpeza da casa tenham sido uma maneira de algumas das escritoras nos

comunicarem como suas atividades também eram parte de relação com o cotidiano e mesmo com

a floresta, haja vista o ambiente doméstico também ser um elemento significativo que nos permite

observar tal relação (Cf. WOORTMANN & WOORTAMNN, 1997; DESCOLA, 1989; BOURDIEU,

1991).

Pensando que construímos uma representação do cotidiano anual e diário dos

moradores com a floresta a partir daquilo que eles nos permitem observar e a partir de suas

representações intrínsecas sobre seu próprio cotidiano, observadas nas diferentes respostas que

dão para os temas inicialmente requeridos como objeto das pesquisas e também,

consequentemente, para os questionamentos intrínsecos a elas, proponho a construção e

discussão de calendários de atividades para dois diários.

15

16

Calendário referente ao ano de 1999 e ao ano de 2000, descrito pelo monitor Altemir Firmino

Monitor: Altemir Firmino Localidade Barraco Velho Diário de “dia-a-dia” (assim nomeado pelo morador)

Período (dia/mês/ano): 15/05/1999 a 23/01/2000

maio junho julho agosto

caçar caçar caçar

pescar pescar pescar pescar

viajar para Cruzeiro do Sul

viajar para Marechal Thaumaturgo

viajar para Marechal Thaumaturgo

viagens de passeios ou para transporte de pessoas e mercadorias

viagens de passeios ou para transporte de pessoas e mercadorias

viagens de passeios ou para transporte de pessoas e mercadorias

participar de reuniões da ASAREAJ

participar de treinamento (atendimento de saúde)

participar de treinamento (produção de borracha FDL)

alimentar os porcos, gado ou galinhas

alimentar os porcos, gado ou galinhas

derribar derribar

encoivarar

brocar roçado 1 (tabaco) brocar mato roçado 1 (tabaco)

brocar roçado

plantar roçado 1 (tabaco)

olhar roçado 1 (tabaco)

apanhar roçado 2 (feijão)

colher frutas e plantas colher frutas e plantas

plantar canteiro de verduras

plantar canteiro de verduras

aguar canteiro de verduras aguar canteiro de verduras

piracema

caindo fortes chuvas

guardar dia santo guardar dia santo

atender doentes (é agente de saúde)

atender doentes (é agente de saúde)

atender doentes (é agente de saúde)

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setembro outubro novembro dezembro janeiro

caçar caçar caçar caçar

pescar pescar pescar pescar pescar

viajar para Marechal Thaumaturgo

viajar para Marechal Thaumaturgo

viajar para Marechal Thaumaturgo

viagens de passeios ou para transporte de pessoas e mercadorias

viagens de passeios ou para transporte de pessoas e mercadorias

participar de reuniões da ASAREAJ

participar de reuniões da ASAREAJ

participar de reuniões da ASAREAJ

participar de treinamento (fiscal do Ibama)

participar de treinamento (atendimento de saúde)

participar de treinamento (atendimento de saúde)

alimentar os porcos, gado ou galinhas

alimentar os porcos, gado ou galinhas

alimentar os porcos, gado ou galinhas

alimentar os porcos, gado ou galinhas

derribar derribar

encoivarar

brocar

plantar semente de capim

plantar semente de capim

plantar milho plantar milho

quebrar roçado 1 (tabaco)

quebrar roçado 1 (tabaco)

enrolar folhas de tabaco

apanhar roçado 2 (feijão)

secar e catar feijão secar e catar feijão

brocar roçado 3 (milho)

arrancar mandioca para fazer farinha

arrancar mandioca para fazer farinha

arrancar mandioca para fazer farinha

arrancar mandioca para fazer farinha

torrar a farinha torrar a farinha torrar a farinha torrar a farinha torrar farinha

colher frutas e plantas colher frutas e plantas colher frutas e plantas colher frutas e plantas

cuidar do canteiro de verduras

construir uma nova casa

construir canoa

comemorar feriado guardar dia santo comemorar feriado

atender doentes (é agente de saúde)

atender doentes (é agente de saúde)

atender doentes (é agente de saúde)

atender doentes (é agente de saúde)

atender doentes (é agente de saúde)

limpar o posto arrumar, limpar o posto de saúde

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Calendário referente ao ano de 1997, descrito em diário escrito pela escritora e pesquisadora moradora Maria do Socorro Teixeira da Silva

Monitora: Maria do Socorro Teixeira da Silva

Local: Restauração/Rio Tejo

Período (dia/mês/ano): 01/04/1997 a 22/09/1997 e 1/11/1997 a 30/01/1998

Diário: "Diário do dia-a-dia", de tudo que ocorre durante o dia (nomeado assim pela moradora)

abril maio junho julho

descascar mandioca para fazer farinha

cozinhar ou tratar a carne cozinhar ou tratar a carne

fazer a mudança para o outro lado do rio

trabalhar em um canteiro para plantar cebola

cuidar dos filhos

pescar

arrumar a casa

limpar a cacimba

lavar roupa lavar roupa lavar roupa lavar roupa

viajar para Foz do Tejo

Viajar para Cruzeiro do Sul

agosto setembro novembro dezembro janeiro

cozinhar ou tratar a carne

cuidar dos filhos cuidar dos filhos cuidar dos filhos

arrumar a casa arrumar a casa arrumar a casa arrumar a casa arrumar a casa

limpar a cacimba

lavar roupa lavar roupa lavar roupa lavar roupa lavar roupa

viajar para Foz do Tejo

arrumar a casa viajar para Foz do Tejo

Viajar para Cruzeiro do Sul

Viajar para Cruzeiro do Sul

Viajar para Cruzeiro do Sul

atender no posto (é agente de saúde)

atender no posto (é agente de saúde)

atender no posto (é agente de saúde)

atender no posto (é agente de saúde)

fazer limpeza no posto fazer limpeza no posto

Observação: a monitora não escreve o que fez durante o mês de outubro

Ao invés de procurar aqueles diários que conteriam informações mais completas sobre

o ano de atividades agrícolas, por exemplo, dos moradores da REAJ, me propus a notar como

cada diário poderia ser fonte para a construção de calendários distintos. Inicialmente, informações

como, por exemplo “o rio estava cheio”, “choveu”, ou mesmo “lavei roupa”, “limpei o posto de

saúde”, não eram atividades ou menções requeridas pelas pesquisas que tinham como intenção

monitorar o impacto de algumas atividades. No entanto, tais comentários são parte do cotidiano e

das experiências desses moradores, e, por isso, devem fazer parte dos calendários de atividades,

se continuamos seguindo os três posicionamentos que salientei importantes na leitura

antropológica e sociológica que fiz desses cadernos.

Assim como as mulheres foram nos mostrando que as atividades domésticas eram

parte constituinte das atividades locais, os moradores foram nos mostrando que chuvas, viagens,

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vendas, compras, cheias e secas dos rios eram parte de seu cotidiano e, portanto, de sua relação

com a floresta.

A proposta dos calendários acima é, portanto, mais que uma intenção de explicitação

de como as atividades comentadas e descritas são distribuídas ao longo dos anos, são

recorrentes em alguns períodos dele ou não, mas também em mostrar que os moradores estão

nos fornecendo dados de suas próprias representações sobre suas relações sociais e simbólicas

que fazem parte do diálogo conjunto que ampara as argumentações e descrições dos leitores de

seus diários.

Se escolhêssemos, por exemplo, informações sobre agricultura ou sobre caça e pesca

em diários selecionados estaríamos invisibilizando o papel das atividades e mesmo das narrativas

das mulheres na construção de nosso olhar etnográfico. O olhar feminino e sua rotina está

presente nos diários de muitos homens, inclusive, que descrevem como o conjunto familiar

participa das atividades cotidianamente realizadas no ambiente doméstico, no roçado, nas

relações entre vizinhos e nas relações institucionais.

Esse não é, no entanto, um posicionamento de uma antropóloga que lê diários

femininos. Ele se ancora em uma bibliografia que se posiciona criticamente em relação à

objetividade das descrições etnográficas e, mais que isso, que sustenta esse posicionamento

teoricamente, como é o caso de Pierre Bourdieu. Se nos lembrarmos do conceito de habitus, nos

lembramos como nossos olhares, discursos, corpos são moldados pelas condições e pelas

experiências que nos permitem ser o que somos e que nos orientam a agir e a pensar o mundo de

acordo com o que somos. Os pesquisadores falavam e propunham temas que se baseavam em

noções sobre ambiente e sociedade a partir de seus campos de experiências e de seus discursos

(se quisermos incluir um termo aqui mais caro a Foulcault que a Bourdieu, mas também

elucidativo nesse caso). A resposta dos moradores em seus diários compartilhava das

experiências que os construíram enquanto tais e era orientada pelo habitus constituído e

constituidor de suas visões de mundo e suas vivências. Seguindo a proposta de Bourdieu,

podemos arriscar uma resposta para o porquê da pluralidade nas respostas dos diários às

perguntas intrínsecas às pesquisas e seus discursos que deve muito ao conceito de habitus,

portanto.

Pensando nisso, sigamos para as conclusões que se referem aos diários femininos e à

rotina das mulheres como parte da rotina dos agricultores e ex seringueiros da REAJ.

Em seu livro Mulheres da Floresta, Cristina S. Wolff conta a história das mulheres do

Alto Juruá e de seu papel na formação dos seringais. Índias capturadas ou nordestinas trazidas

para se casarem com os trabalhadores das estradas de seringa, essas mulheres tinham em

comum seu papel na construção das relações entre esses moradores que para a Amazônia foram

incentivados pelos ciclos da borracha e lá se estabeleceram, construindo com a floresta uma

relação prática e simbólica concomitantemente.

20

Em um artigo, Ellen Woortmann nos diz sobre o papel das mulheres em uma história

mais recente: a de luta pelos direitos sobre a floresta que, dentre outros acontecimentos políticos

e sociais, culminou na criação da REAJ. Além de salientar o papel das mulheres na construção de

toda a história e cotidiano dos seringais e da vida dessa população na floresta, a autora nos

salienta a importância delas nesse novo contexto de queda do valor comercial da borracha e de

institucionalização das terras (como assentamentos ou como reservas). Segundo a autora, o

papel das atividades femininas nas colocações foi invisibilizado pelos discursos acadêmicos e

locais, mesmo os fatos mostrando como são essenciais na totalidade das atividades produtivas

nos seringais, o que os moradores-escritores dos diários também nos mostraram, de certa

maneira, quando somam elementos aos questionamentos e incentivos dos pesquisadores. No

caso dos dados, os próprios homens nos mostravam esta importância quando descreviam como

as mulheres se envolviam em atividades como o feitio de farinha e mesmo com o roçado. No caso

dos calendários, a delimitação especificamente preocupada com o ano agrícola ou com o ano de

atividades produtivas excluiria esses trabalhos femininos, assim como a importância do ambiente

doméstico na constituição do cotidiano e dos relacionamentos.

Os moradores que escreveram os diários nos permitiram ver, portanto, que os

relacionamentos com a floresta e com as atividades realizadas cotidianamente estão

simbolicamente conectados com o ambiente doméstico e com atividades como as realizadas

pelas mulheres que não inicialmente eram requeridas pelas pesquisas desenvolvidas no local. A

principal conclusão pensando neste olhar antropológico possível que dei a minha leitura dos

diários, é que observando aspectos que muitas vezes não observaríamos em estudos sobre

populações rurais ou sobre ambiente e sociedade pudemos ver esses aspectos importantes

muitas vezes invisibilizados. Alem disso, observando tais aspectos poderíamos inclusive rever e

repensar nossas próprias pesquisas e representações sobre a relação entre homem e ambiente.

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