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Página 1 escrito por Amilton Júnior O amor é a cura para o mundo, o remédio para a alma

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escrito por

Amilton Júnior

O amor é a cura para o mundo, o remédio para a alma

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Romântico Anônimo

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Capítulos Capítulo 01 .................................................................................................................................... 5

Capítulo 02 .................................................................................................................................... 9

Capítulo 03 .................................................................................................................................. 14

Capítulo 04 .................................................................................................................................. 19

Capítulo 05 .................................................................................................................................. 24

Capítulo 06 .................................................................................................................................. 29

Capítulo 07 .................................................................................................................................. 34

Capítulo 08 .................................................................................................................................. 39

Capítulo 09 .................................................................................................................................. 44

Capítulo 10 .................................................................................................................................. 49

Capítulo 11 .................................................................................................................................. 54

Capítulo 12 .................................................................................................................................. 59

Capítulo 13 .................................................................................................................................. 64

Capítulo 14 .................................................................................................................................. 69

Capítulo 15 .................................................................................................................................. 74

Capítulo 16 .................................................................................................................................. 79

Capítulo 17 .................................................................................................................................. 84

Capítulo 18 .................................................................................................................................. 89

Capítulo 19 .................................................................................................................................. 94

Capítulo 20 .................................................................................................................................. 99

Capítulo 21 ................................................................................................................................ 104

Capítulo 22 ................................................................................................................................ 109

Capítulo 23 ................................................................................................................................ 114

Capítulo 24 ................................................................................................................................ 119

Capítulo 25 ................................................................................................................................ 125

Capítulo 26 ................................................................................................................................ 130

Capítulo 27 ................................................................................................................................ 135

Capítulo 28 ................................................................................................................................ 140

Capítulo 29 ................................................................................................................................ 145

Capítulo 30 ................................................................................................................................ 150

Capítulo 31 ................................................................................................................................ 155

Capítulo 32 ................................................................................................................................ 160

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Romântico Anônimo

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Capítulo 33 ................................................................................................................................ 165

Capítulo 34 ................................................................................................................................ 170

Capítulo 35 ................................................................................................................................ 175

Capítulo 36 ................................................................................................................................ 180

Capítulo 37 ................................................................................................................................ 185

Capítulo 38 ................................................................................................................................ 190

Capítulo 39 ................................................................................................................................ 195

Capítulo 40 ................................................................................................................................ 200

Capítulo 41 ................................................................................................................................ 205

Capítulo 42 ................................................................................................................................ 210

Capítulo 43 ................................................................................................................................ 215

Capítulo 44 ................................................................................................................................ 220

Capítulo 45 ................................................................................................................................ 225

Capítulo 46 ................................................................................................................................ 230

Capítulo 47 ................................................................................................................................ 235

Capítulo 48 ................................................................................................................................ 240

Capítulo 49 ................................................................................................................................ 245

Capítulo 50 ................................................................................................................................ 250

Capítulo 51 ................................................................................................................................ 259

Capítulo 52 ................................................................................................................................ 264

Capítulo 53 ................................................................................................................................ 269

Capítulo 54 ................................................................................................................................ 274

Capítulo 55 ................................................................................................................................ 279

Capítulo 56 ................................................................................................................................ 284

Capítulo 57 ................................................................................................................................ 289

Capítulo 58 ................................................................................................................................ 294

Capítulo 59 ................................................................................................................................ 299

Capítulo 60 ................................................................................................................................ 304

Capítulo 61 ................................................................................................................................ 309

Capítulo 62 ................................................................................................................................ 314

Capítulo 63 ................................................................................................................................ 319

Capítulo 64 ................................................................................................................................ 324

Capítulo 65 ................................................................................................................................ 329

Capítulo 66 ................................................................................................................................ 334

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Capítulo 67 ................................................................................................................................ 339

Capítulo 68 ................................................................................................................................ 344

Capítulo 69 ................................................................................................................................ 349

Capítulo 70 ................................................................................................................................ 354

Capítulo 71 ................................................................................................................................ 362

Capítulo 72 ................................................................................................................................ 367

Capítulo 73 ................................................................................................................................ 372

Capítulo 74 ................................................................................................................................ 377

Capítulo 75 ................................................................................................................................ 382

Capítulo 76 ................................................................................................................................ 387

Capítulo 77 ................................................................................................................................ 392

Capítulo 78 ................................................................................................................................ 397

Capítulo 79 ................................................................................................................................ 403

Capítulo 80 ................................................................................................................................ 408

Capítulo 81 ................................................................................................................................ 414

Capítulo 82 ................................................................................................................................ 420

Capítulo 84 ................................................................................................................................ 430

Capítulo 85 ................................................................................................................................ 435

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Capítulo 01 A Cidade da Paz era onde o sol nascia com resplendor, o dia começava

com os cantos dos pássaros, as muitas árvores espalhadas pela cidade

balançavam suas copas e os diversos jardins que enfeitavam o lugar garantiam

um perfume em cada canto. Seus quase vinte mil habitantes escolhiam a hora

de folga nos parques, nas bibliotecas ou em outros atrativos para reunir a

família e os amigos, a simpatia morava no olhar de cada um, a felicidade para

eles não depende de muita coisa.

Começo do ano. Segunda-feira. Seis horas da manhã.

O despertador tocou.

Gustavo estava prestes a dar o seu primeiro beijo quando foi tirado do

sonho. Era o início do último ano de ensino médio, primeiro dia de aula, ele não

podia se atrasar. Destravou o alarme, de olhos fechados se sentou na

aconchegante cama, ficou parado por alguns segundos enquanto observava o

chão, esticou os braços, bufou, era o recomeço. Ao se olhar no banheiro do

quarto percebeu o quanto estava desanimado, a franja bagunçada o deixava

com ar de cansado, perdido nos próprios pensamentos passou a imaginar como

seria aquele ano, se conseguiria passar no vestibular, se daria início ao sonho de

se tornar pediatra, se quando tudo terminasse perderia os amigos que ao longo

dos anos conquistou e, o que arrepiava os pelos do braço e causava um frio na

barriga, se finalmente daria um beijo.

— Já são seis e dez! — a mãe bateu na porta fazendo o garoto voltar da

viagem à lua.

A água morna tocou o corpo do jovem de dezesseis anos, que em poucos

meses completaria os dezessete, acordando-o de uma vez. De banho tomado

vestiu o uniforme do colégio, sem muita animação apenas passou a mão pelos

cabelos já secos, não se preocupava tanto em penteá-los.

— Bom dia — cumprimentou os pais quase que inaudivelmente ao se

sentar para o café da manhã.

— Bom dia! — o pai era animado, tentava passar isso a todos que

estivessem ao seu lado.

Eduardo Queiroz era Biomédico em Cidade da Paz, um homem alto de

cabelos grisalhos e olhos escuros, tinha a barba sempre bem feita e se vestia

sempre de forma social. Apesar da postura séria era dono de um coração alegre

e sempre estava disposto a contagiar com sua alegria aqueles que o rodeavam.

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— Bom dia, querido — a mãe acariciou a testa do filho —. Animado para

retomar as aulas?

Juliana Queiroz era uma mulher que se dedicava à família, de estatura

média possuía uma grande vaidade com os cabelos sempre lisos e retocados no

tom loiro, amante da discreta maquiagem aparentava ser bem mais jovem do

que realmente era, seu modo descolado divertia seus muitos amigos.

— Nem um pouco — Gustavo respondeu sério enquanto tomava o leite.

— Que horror! — a mulher reclamou —. Na sua idade eu não via a hora

de voltar à escola para não ter que lavar louças...

— Sei... — o biomédico riu —. O que você queria de verdade era me ver.

O garoto emburrado teve que abrir um sorriso.

O senhor e a senhora Queiroz foram os primeiros namorados um do

outro, conheceram-se na época da escola e desde então estiveram unidos pelo

afeito que os circundava.

— E então, filho, algum problema em voltar a estudar? Sua mãe e eu

estamos aqui para ouvi-lo sempre — a família era unida, se entendia e

compreendia, um era o suporte do outro e Gustavo sabia disso.

— Não sei se será tão bom... Tenho medo de como as coisas caminharão...

— Apenas acontecerá o que tiver que acontecer.

— E os meus amigos? E se nunca mais puder vê-los?

— Nunca mais é um pouco forte, não acha? — Juliana segurou a mão do

garoto —. Cada um seguirá um rumo diferente, é fato, a vida é assim, mas se

forem seus amigos de verdade estarão sempre ao seu lado de um jeito ou de

outro, você vai ver...

— Como será a minha vida longe da escola? E se eu não conseguir

enfrentar o mundo? E se os meus sonhos simplesmente naufragarem?

— Quanto drama, meu jovem — Eduardo sabia o quanto o filho era

dramático —. Você não está sozinho no mundo, tem a sua família que o ama

incondicionalmente e que o apoiará em cada decisão correta.

— Estaremos sempre juntos — a mulher sorriu para os “homens de sua

vida”, como ela mesma dizia —. Até o fim!

<<>>

O Colégio Inova era melhor escola de ensino médio da cidade, nela apenas

ingressavam os alunos que passavam por uma rígida prova, tinham que provar

o merecimento pela vaga. O colégio imitava os modelos americanos, com

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armários espalhados pelos corredores, salas para determinadas disciplinas,

quadras para os variados tipos de esportes, banheiros nos quais os alunos

podiam tomar banho após o treinamento do time de futebol, por exemplo, e

uma piscina para os praticantes de natação. A verdadeira escola dos sonhos.

A fachada do Colégio Inova era cheia de estilo, logo na entrada a área

verde se destacava pelo espaço, os jovens aproveitavam os bancos espalhados

para se reunirem com os amigos ou namorarem apaixonados. Os funcionários

daquele lugar não faziam a linha “carrasco” com exceção da dona Zumira, a

inspetora antipática, uma mulher rígida, baixinha, que usava óculos de lentes

grossas, um apito insuportável e falava gritando como se todos fossem surdos.

Ela era o verdadeiro pesadelo dos alunos, sobretudo de Gustavo.

~2016~

Segundo semestre. Hora do intervalo.

Após muito ensaiar Gustavo se aproximou de Júlia, a garota mais bonita da sala,

não tinha um menino que não se interessasse por sua beleza. O garoto sabia que tinha

chances, mas era muito vergonhoso, até que em belo dia passou por cima da timidez.

— Po-podemos c-conversar? — gaguejou um pouco, as pernas tremularam.

— Claro — a garota abandonou a roda das amigas ouvindo alguns risos contidos

e foi com seu admirador para a área verde —. O que deseja?

— Você — ele corou violentamente, não podia responder aquilo, não era para ter

respondido aquilo, mas o nervosismo o descontrolou.

— Não precisa ter vergonha — ela riu —. Eu também o acho bonitinho, a gente

pode tentar,

— Tentar? O que quer dizer? — o turbilhão de pensamentos não o deixavam

raciocinar.

— Namorar, bobo... — dessa vez ela gargalhou.

— Ah! — seu sorriso tímido tomou força, estava mesmo envergonhado.

De pedido feito e aceito ele tentou beijar Júlia, afinal era isso o que sempre

acontecia nos filmes logo que casais se formavam.

— O que significa isso? — o apito de Zumira soou, sua voz no volume máximo

assustou o garoto.

Ao encarar os olhos da inspetora Gustavo estremeceu, não queria levar problemas

para casa, sua única saída foi correr e desde então não teve coragem para falar com Júlia

mais uma vez.

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Ao descer do carro e se deparar com a inspetora antipática Gustavo

assistiu aquela lembrança com se fosse um filme, sentiu as bochechas corarem,

abaixou a cabeça, apressou os passos.

Já eram sete horas e quinze minutos da manhã quando o garoto entrou na

sala, atrasado, e não foi poupado do comentário de Gilmar, o professor de

Matemática.

— Qual será a desculpa da vez? Lutou com um dinossauro? — o professor

provocou risos na turma sem ser sua intenção —. Tem algum palhaço aqui? —

fazendo a sala ficar em silêncio apoiou a mão no ombro do seu melhor aluno e o

aconselhou: — Seja mais responsável a partir de hoje, eu sei que você consegue!

Gustavo se sentou na fileira do meio, na segunda carteira deixando a que

estava a sua frente vaga. Virando-se para trás cumprimentou Isaque, seu

melhor amigo.

— Algum aluno novo?

— Até agora não... Por que se atrasou? Pensei que não viria.

— Eu gosto de dormir... — reclamou irônico.

— As moças podem prestar atenção na aula? — Gilmar era um professor

rígido, “hora de estudar” em suas palavras “era hora de estudar”.

<<>>

Thânia Camargo era a diretora do Colégio Inova, uma mulher alta, sempre

vestida elegantemente que desfilava pelos corredores da escola exibindo o som

do salto alto. Tendo simpatia como segundo nome era amiga dos alunos,

cumprimentava a quem fosse sempre com o sorriso no rosto, um exemplo de

profissional.

— Licença — ela pediu ao professor de matemática antes de interromper a

aula —. Sejam muito bem-vindos de volta — cumprimentou os alunos —.

Quero que aproveitem ao máximo esse último ano. Também quero apresentar a

vocês uma nova colega — indo ao corredor voltou trazendo consigo uma garota

—: a querida Gabriela Campos.

Até então desatento Gustavo prendeu a atenção na aluna nova que, sobre

sua concepção, era a mais bela de todas.

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Capítulo 02

Seis horas da manhã. Toca o despertador.

Gabriela abriu os olhos, mesmo enxergando a insistente escuridão a garota

abre um sorriso, desliga o aparelho, procura ao lado da cama sua bengala e se

guia até o banheiro. Sem dificuldade alguma toma o seu banho, logo os

pensamentos invadem sua mente.

Gabriela era uma garota gentil, desafiada pela vida: sofreu um acidente

ainda pequena, perdeu a visão, mas o que não foi empecilho algum para o seu

sucesso, deu a volta por cima e conquistou a própria independência. Seu único

problema era desacreditar em um futuro no qual viveria os seus dias com

alguém que a amasse, ela não acreditava que fosse viver uma história de amor,

se não fosse cega talvez conseguisse.

Enquanto tomava banho a garota sentiu um formigamento na barriga, era

o nervoso por saber que daria início a uma nova etapa em sua vida: começaria o

último ano escolar em uma escola nova. Havia se mudado há poucas semanas

para a Cidade da Paz, o seu pai fora o motivo, ele era professor de Português e

a ótima oportunidade de lecionar no Colégio Inova fez toda a família se mudar.

Gabriela não fazia ideia de como as coisas seriam, se dariam ou não certo, se

faria ou não novos amigos, se a aceitariam ou a desprezariam. Embora

determinada ela era bastante insegura.

De banho tomado, roupa trocada e os cabelos lisos e dourados

perfeitamente penteados a garota se juntou aos pais para o café da manhã e não

hesitou em demonstrar suas dúvidas:

— Devo mesmo ir à escola?

— Se quiser um pouco mais de tempo nós vamos entender — a mãe

respondeu, já aflita.

Laura Campos, a mãe de Gabriela, era formada em enfermaria, mas desde

que a filha nasceu não exercia a função, dedicava-se inteiramente ao bem estar

da filha. Loira desde que nascera era um pouco menor que a maioria das

mulheres, “super-protetora” com a filha sempre alimentava o medo de que

Gabriela passasse por algum problema, a amava indescritivelmente.

— Acho melhor que vá — o pai deu sua opinião.

Eliseu Campos era professor de Português, um homem gentil, que

representava a integridade e que conquistava seus alunos. Sua altura estava na

média, sua barba era sempre rala e os olhos azuis o tornavam atraente.

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— Também acho — Gabriela concordou —. O que tiver que ser será.

— Eu tenho certeza de que a acolherão muito bem — a mãe preocupada

segurou as mãos da filha com um sorriso no rosto —. Você é encantadora, não

se preocupe com bobagens.

— Além disso estaremos sempre ao seu lado — o pai completou —. Medo

todo mundo tem, nunca estamos preparados para aquilo que é novidade, mas

precisamos ter coragem e colocarmos nosso rosto no mundo, é se arriscando

que se conquista.

Já no carro com o pai, a caminho da escola, Gabriela o surpreendeu com a

repentina pergunta:

— Será que algum dia alguém vai gostar de mim?

— Por que isso? — estranhou.

— Não sei se gostariam de mim da maneira como sonho... É possível

alguém que não enxerga ter uma família?

— Mas é claro que sim! Você pode realizar qualquer sonho, basta acreditar

— aconselhou —. E o amor não se resume em beleza ou naquilo que é

considerado o certo, para o amor de verdade não existem limites. Quando se

ama não há obstáculo que não seja vencido.

A garota nada disse, apenas abriu um sorriso, aquelas sábias palavras a

confortaram.

<<>>

Risadas, conversas, algumas correrias, entusiasmos em reencontrar os

amigos, os bons e velhos colegas de classe. Perceptiva enquanto ao lado do pai

andava pelo prédio do Colégio Inova, Gabriela notou o clima do lugar, pôde

concluir que eram muitos os alunos, todos animados.

— Então é você a talentosa Gabriela? — a diretora Thânia a recebeu em

sua sala.

— Talentosa é um pouco de exagero — a garota sorriu modesta passeando

as mãos pelos braços da cadeira.

— Garanto que não é — Eliseu se orgulhava da filha e não hesitava em

elogiá-la perante quem fosse —. Posso ir para a minha sala?

— Como quiser. Eu mesma levarei sua filha à sala de aula.

— Boa sorte, minha pequena — o professor depositou um beijo na testa da

garota.

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Ao sentir que seu pai já não estava mais ao seu lado Gabriela sentiu um

vazio no peito, seus olhos se avermelharam sem que ela soubesse, uma vontade

angustiante de chorar a tomou.

— Está sentindo alguma coisa? — a diretora repousou a mão sobre o braço

da aluna nova em um gesto de carinho, de apoio.

— Na verdade sim — uma lágrima pesada pingou —. Medo.

— Não precisa se intimidar, separei uma das melhores salas para que você

estude tranquilamente, seus colegas saberão acolhê-la muito bem.

— O problema sou eu — Gabriela decidiu pôr para fora o que a sufocava

por dentro, uma reclamação que seus pais não poderiam ouvir, talvez não

entendessem —. Se eu não fosse cega as coisas seriam diferentes, tenho certeza.

— Não pense dessa forma, ao menos você tem saúde, pode aproveitar a

vida como muitas pessoas que almejam não conseguem — a mulher secou a

lágrima no rosto da garota —. Cada um de nós temos um processo a passar,

uma barreira a enfrentar, ninguém é totalmente perfeito, a gente só precisa

acreditar em nós mesmos e deixar a vida seguir o seu percurso. Nem sempre as

coisas serão fáceis, mas as dificuldades é o que nos fortalecem!

— Tem razão — Gabriela deu um novo sorriso. Levantando-se sugeriu: —

Vamos?

— Como quiser.

— Licença — a diretora pediu ao professor Gilmar antes de interromper a

aula —. Sejam muito bem-vindos de volta — cumprimentou os alunos —.

Quero que aproveitem ao máximo esse último ano. Também quero apresentar a

vocês uma nova colega — indo ao corredor voltou trazendo consigo a garota —.

A querida Gabriela Campos.

Todos notaram que era uma aluna especial, que tinha as suas limitações.

Disfarçando o nervosismo com o sorriso no rosto Gabriela não controlava a mão

trêmula, que fazia a bengala balançar sobre o chão.

— Bem-vinda, querida — Gilmar a cumprimentou.

— Obrigada — a garota respondeu tímida, fazendo a suave voz soar.

— Senhor Gustavo — o professor fez o aluno despertar do encantamento

—, ajude a garota a se sentar.

O rapaz obedeceu. Aproximando-se daquela que ocuparia o lugar a sua

frente percebeu o quão bonito e meigo era aquele rosto, como um verdadeiro

cavalheiro pegou na mão da garota e com cuidado a guiou até a carteira. Ainda

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acanhada Gabriela deu um discreto sorriso e agradeceu em tom de voz baixo,

quase sussurrante.

— Obrigada.

O garoto apenas sorriu, bobo.

— Agora aproveitem a aula e sejam bons colegas — Thânia deixou a sala.

Gustavo mal prestava atenção no professor, apenas conseguia se

concentrar no dedilhar da menina à sua frente na máquina de escrever para

deficientes visuais. Algo diferente se manifestava dentro dele, o coração

balançava de um jeito diferente, o perfume da garota o fazia viajar ainda mais

nos mundos paralelos que sua mente criava.

— Eu entendo que a garota seja muito bonita e que seus neurônios

adolescentes estejam todos aguçados, mas eu também quero muito ter alguns

minutos da sua atenção, lorde Gustavo — o professor deu três batidas no

ombro do aluno, fazendo-o corar violentamente pelos comentários e risos dos

colegas.

Sem graça o garoto afundou seus olhos no caderno, não queria servir de

piada.

<<>>

Finalmente o sinal tocou. Era a hora do intervalo.

— Quer que o espere? — Isaque perguntou ao amigo, já havia notado a

forma como ele olhava para a aluna nova.

— Acho que vou fala com ela — Gustavo sussurrou —. Isso é, se ela for

uma das últimas a sair.

— Tudo bem, a gente se vê — já na porta o loiro disse em voz alta,

ironizando: — Boa sorte, lorde Gustavo!

— Eu te mato — Gustavo apenas mexeu os lábios, mas mesmo assim soou

perigoso.

Vendo que o aluno ainda não sairia da sala Gilmar logo entendeu, dando

uma piscadela para o garoto o deixou a sós com Gabriela, ele precisava ser

rápido se fosse tentar uma aproximação, logo Zumira poderia aparecer os

expulsando dali.

— Quer que a ajude? — Gustavo se ofereceu, bastante acanhado.

— Acho que sim — a garota tentava achar a mochila.

— É disso que precisa? — o garoto guiou sua mão até o acessório.

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Sentindo o toque daquele que poderia ser um bom amigo Gabriela

agradeceu esbanjando a linha perfeita que seus dentes brancos formavam.

— É sim, obrigada.

— Já tem com quem passar o intervalo? — o futuro pediatra se preocupou,

teria avançado demais?

— Acho que não... Onde posso ficar?

Era a oportunidade perfeita.

— Então venha comigo — sugeriu —. Podemos ir ao pátio.

Apegando-se a sua bengala a garota se lembrou de que ainda não estava

familiarizada com o lugar, precisou de ajuda.

— Posso segurar em seu braço? — apontando para os olhos justificou

acanhada: — Não enxergo.

Gustavo dessa vez não poupou o largo sorriso:

— Mas é claro!

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Capítulo 03

Sentindo-se orgulhoso, já se achando o conquistador, Gustavo caminhou

com sua nova amiga pelos corredores do Colégio Inova até a movimentada área

verde. Pisando tranquilamente pelo chão Gabriela pôde sentir a grama fofa e o

perfume das muitas flores que enfeitavam o lugar.

— Aqui é um jardim bem grande — o rapaz comentou —. Possui desde

violetas até as mais cheirosas rosas. A gente costuma vir para cá e aproveitar o

intervalo, refresca o calor desse verão típico.

— Percebi mesmo — a garota fechou os olhos e se concentrou naquilo que

a rodeava —. Parece muito bonito.

— Imagine alguma coisa florida — Gustavo guiou a mão da aluna nova

até uma margarida —, colorida, cheia de vida. É assim que enxergamos esse

jardim.

Sentindo a textura da flor que apalpava Gabriela deu um novo sorriso,

nunca alguém além de seus pais e médicos a descrevera as paisagens do

mundo.

— Lorde Gustavo — Isaque se aproximou do casal em tom de brincadeira.

— Gabriela, eu lhe apresento o bobo da corte — o futuro pediatra

arrancou risos dos amigos —. Esse é o meu melhor amigo.

— Um verdadeiro irmão, donzela — o mais extrovertido beijou a mão da

garota em postura de cavalheirismo, o que claro, causou algo estranho em

Gustavo, já sentia ciúme?

— A gente se conhece desde a primeira série.

— E nunca mais nos separamos.

— Um melhor amigo... — a filha do professor de Português refletiu —.

Como é ter um amigo assim?

A pergunta pegou os jovens rapazes de surpresa, não sabiam ao certo o

que responder, mal conheciam a aluna nova, não queriam causar estranhezas e

afastá-la.

— É como ter um diário — a resposta de Isaque foi ainda mais

surpreendente aos ouvidos do amigo.

— Um diário? — Gabriela sempre foi bastante curiosa, gostava de

explicações um tanto complexas.

— É poder contar tudo o que quiser sem sentir medo de que vão descobrir

por algum acaso — Gustavo respondeu.

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— Além disso é se meter em muita fria — o garoto deu um sorriso maroto

—. Resumindo, é ter um irmão não de sangue, mas de coração, que você sabe

que pode contar sempre.

— Se ele não fosse tão sarcástico eu estaria emocionado com tão belas

palavras — o filho do biomédico brincou.

— Estamos aqui para isso, lorde Gustavo — riu travesso.

— Realmente, vocês só não são legitimamente chamados de irmãos

porque seus pais são diferentes — a garota comentou —. E eu quero

parabenizá-los por isso, não é em todo lugar que se encontra uma amizade

assim, que honre o significado da palavra.

— Bom, agora que já nos conhece um pouco conte sobre você — Isaque

sugeriu.

— Aposto que tem muito que dizer — Gustavo insistiu.

— Nem tanto — ela continuava acariciando a margarida enquanto seu

olhar vagueava em direções aleatórias —. Eu era de outra cidade, meu pai

sempre teve o sonho de trabalhar aqui, então como ele conseguiu a

oportunidade nós viemos para cá. De onde venho não tinha amigos, no máximo

colegas que me ajudavam em algumas coisas, mas que não possuíam tanta

paciência. Eu não os culpo — abaixou a cabeça, suspirou —, amigos de cega? É

um fardo.

—Fardo? — o jovem Gustavo não concordou —. Quem disse isso para

você?

— Nem precisam — Gabriela forçou um sorriso –. Eu sei que é. Não quero

que tenham pena de mim por isso, eu já me acostumei.

— Não faça um julgamento tão cruel — Isaque começou —. Nos outros

lugares talvez não tivesse amigos de verdade, mas aqui pode contar com a

gente, estaremos com você.

— Será? — ela custava acreditar em alguém.

— Eu prometo — o futuro pediatra não se acanhou em tocar a mão da

garota em um gesto cordial. Sua intenção, a partir daquele momento, era fazê-la

feliz.

<<>>

A aula voltou.

Com a turma a professora Luciana, de Arte. Era uma mulher morena, alta,

de cabelos compridos e sempre trançados, vestia o seu avental branco que

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guardava nos bolsos alguns pincéis, levava consigo algumas apostilas que

descreviam obras dos mais famosos artistas.

— Bom dia, meus queridos — seu jeito era meigo, simpático, conquistava

os alunos —. Antes de mais nada preciso dar as boas vindas à nossa nova

colega — dirigiu-se até Gabriela que agradeceu o cumprimento —. Enfim, como

todos sabem esse é o último ano escolar, cada um de vocês trilhará um

caminho, seguirá algum rumo, poderão na estrada da vida se separar — aquela

era maior preocupação dos muitos adolescentes, que sabiam que a vida

mudaria, sobretudo a de Gustavo, seu desejo era manter aqueles que

conquistou ao longo dos anos para sempre em sua vida —. Pensando nisso eu

quero proporcionar bons momentos entre vocês, que ficarão guardados em suas

memórias, os quais em hora de saudade os confortarão. E para dar início aos

projetos anuncio a apresentação de danças!

Um entusiasmo tomou conta da sala, mas alguém logo se sentiu

apreensivo, temia não ser uma boa ideia.

— Eu quero que formem casais, um garoto e uma garota, eu mesma os

instruirei ao estilo de dança e começaremos os ensaios. Não se preocupem se

nunca fizeram algo do tipo, isso é uma escola estamos aqui para aprendermos.

Gustavo não perdeu tempo, aproximou-se do ouvido de Gabriela e fez o

convite:

— Aceita ser a minha parceira?

É claro que ela queria participar, tinha sim vontade, porém a insegurança

falava mais alto, era mais forte: uma cega dançar?

— Não acho que seja uma boa ideia...

— Só por que não pode ver?

— Isso não é suficiente? Imagina o mico que vai pagar.

— Mico por estar dançando com uma garota bonita? — as palavras

simplesmente saíram, pareciam ter vida própria —. Bom... Q-quero dizer...

— Tudo bem, eu aceito — receber um elogio transformou a decisão da

garota, para a felicidade do seu admirador que não disse mais nada, apenas

sorria feito um bobo, ou como uma criança que ganha o doce predileto.

<<>>

Já era de tarde. Em seu quarto Gustavo jogava videogame com Isaque, o

jogo era The Walking Dead e provocava diferentes reações nos dois

adolescentes.

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— Vai me deixar ser o padrinho do casamento? — Isaque, sem tirar os

olhos da TV, questionou.

— Casamento? Do que está falando? — Gustavo se esforçava para se livrar

das gangs de zumbis.

— Eu já pesquei tudo.

— Droga! — game over —. Agora me explique melhor essa história de

casamento.

Deitando na cama com as vistas cansadas o loiro respondeu:

— Você e a aluna nova já são um casal, só falta assumirem isso.

— Acho que está indo longe demais — o de cabelos pretos tomou um gole

do suco —. Conhecemo-nos hoje...

— Então admite que se vê como um casal?

— Eu não disse isso...

— Mas também não negou — Isaque era bom em persuadir os outros —.

Vai me chamar para o casamento? — riu debochado.

— O bobo da corte não poderia faltar — Gustavo se entregou.

Levantando-se da poltrona caminhou até a janela do quarto, observando o céu

azulado —. Nunca pensei que fosse gostar de alguém além de Júlia...

— A Júlia só é perfeita, só isso. Qual o garoto que não sonha em ficar com

ela? O seu jeito com Gabriela não é a mesma coisa, ver os dois conversando é

como assistir aqueles romances cheios de clichês baratos. “Gusbela” —

gargalhou —, já shippei!

— Você é apressado — o futuro pediatra jogou uma almofada no amigo —

. No fundo tem razão, sinto algo diferente pela aluna nova, uma coisa que

nunca senti por ninguém.

— Amor — o travesso sorriu –. Lorde Gustavo, nem só de guerras um

homem sobrevive...

— Amor...? – Gustavo riu desacreditado —. Não faço ideia de como

demonstrar isso.

Caminhando até o amigo Isaque o segurou pelo ombro, fitando os olhos

aconselhou:

— A encare sem medo e diga “eu te amo”.

— Ela não enxerga — revirou os olhos.

— Melhor ainda, beije de uma vez.

— Você não presta — riu contido.

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— Eu sei... — admitiu —. Escreva, mande cartas, mensagens, mas não

revele sua identidade. Um belo dia você, quanto tiver cheio de coragem,

assuma quem é.

— Como um admirador secreto?

— Seja mais original e menos clichê em criar o pseudônimo.

— O que sugere?

— Batmam, Spider-man, Ben10. Não são os nomes verdadeiros, logo

ninguém os descobre.

— O que acha de Secreto Apaixonado?

— Lorde Gustavo, você não é um detetive — Isaque achou graça da falta

de criatividade do velho amigo —. Romântico Anônimo, o que acha?

— Já falei que não vivo sem você? — os verdadeiros irmãos se abraçaram.

— Um lorde precisa de um conselheiro. Acho que estou apto a subir de

posição.

Usando uma régua Gustavo encenou a nomeação:

— Conselheiro do Rei!

Esses são os adolescentes. Uma hora tão adultos, mas em outras...

<<>>

Gabriela amava os livros, mergulhava nos romances que lia, sentia-se na

pele dos personagens favoritos. Passeando com os dedos pelas letras em braile

se lembrou de Gustavo, do quanto ele parecia gentil, de como gostou de estar

ao seu lado.

— Finalmente, um bom amigo... — o frio na barriga provocou o seu

sorriso apaixonado.

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Capítulo 04

Os melhores amigos Isaque e Gustavo também se reuniam após as aulas

para, além de jogarem, estudarem para o vestibular. Enquanto o primeiro

sonhava com a faculdade de Engenharia Química o segundo tinha como

objetivo se tornar um excelente pediatra, mas para que os sonhos se

concretizassem ambos sabiam que seria necessário muito esforço nos estudos.

Seus pais não lhes deixavam faltar nada, mas não eram tão ricos ao ponto de

conseguirem bancar com escolas tão caras.

— Isaque, seus pais estão aí — Juliana, mãe de Gustavo, informou ao

garoto que tinha por alguém das família.

— Ah! É verdade — Isaque se lembrou do compromisso que tinha —. Vou

ao médico.

— Médico? — o outro estranhou — Algum problema?

— Nada demais, apenas consulta rotineira — mentiu —. Falamo-nos mais

tarde.

— Está certo.

No caminho para o consultório Isaque não disse palavra alguma, a tensão

era grande, o medo de que as suspeitas se confirmassem era ainda maior.

— Quer conversar? — Ana, sua mãe, tentou.

— Acho que não — ele precisava de um pouco de silêncio.

— Independente de qual for o resultado, estamos juntos nessa — Marcos,

seu pai, temia o que iria acontecer.

Angústia.

O peito do garoto loiro, que insistia em manter os cabelos desgrenhados,

era inundado por angústia. O sorriso ainda infantil, dado pelos dentes

invejavelmente alinhados, sumira de seu rosto, no lugar um semblante

preocupado. Seus olhos que remetiam à cor de uma floresta antes brilhavam,

agora estavam ofuscados pelos pensamentos pessimistas. No fundo ele já sabia

qual era o seu problema.

— Sejam bem-vindos — o doutor Alair era um homem alto, já velho, que

possuía um grande amor pela profissão, recebia os seus pacientes sempre com

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um alegre sorriso no rosto, mesmo que a conversa que se seguisse fosse

delicada.

— Os exames já chegaram? — Isaque logo questionou.

— Sim — o médico tirou da gaveta de sua mesa uma pasta cuja etiqueta

grafava o nome do garoto —. Eles estão aqui.

— Já sabe qual é o resultado?— a mãe perguntou apertando as mãos,

tentava esconder o nervosismo, mas seu esforço era em vão.

— Na verdade sim — o velho homem mantinha o semblante suave —. Dei

uma olhada logo que chegaram, sabia que hoje teríamos consulta por isso nos

os importunei.

— E qual é? — Isaque era o mais aflito.

Percebendo o quanto seu paciente estava apreensivo o doutor lançou um

olhar para Marcos, que de prontidão entendeu o recado, em um gesto de

carinho, de companheirismo, massageou os ombros do filho, querendo dizer

que tudo ficaria bem.

— Meu jovem, eu não vou esconder de você a verdade, meu papel é ser o

mais transparente possível e indicar aos meus pacientes que podemos juntos e

com persistência trilharmos bons caminhos.

Um filete de lágrima escorreu pelo rosto do futuro engenheiro, não

aguentava mais tanto suspense.

— Estou com a doença?

— Sim — o médico respondeu com um semblante piedoso. Segurando as

mãos do paciente que mais gostava tentou lhe confortar: — Você possui

grandes chances de cura, daremos todos nós o nosso melhor, não quero que

pense que tudo está acabado, as coisas estão apenas começando e você vai sair

dessa.

Com os olhos encharcados Isaque forçou um sorriso, mas suas palavras

revelaram o que ele sentia:

— Sabe quantas pessoas ouvem que vão sair dessa? Inúmeras. Sabe

quantas acreditam? Todas. Faz ideia de quantos saem? Poucas. Não quero que

me iludam, digam de uma vez quanto tempo ainda tenho.

Suspirando, o doutor Alair respondeu:

— Uma vida inteira se acreditar. Como eu disse, há chance de cura, mas

preciso da sua ajuda. Preciso que antes de tudo aceite o problema e o encare

como mais um desafio dos tantos que a vida lhe porá a enfrentar. Preciso que

acredite em suas próprias forças, olhe para frente, lute! É com luta que se vence

uma guerra, é acreditando que se conquista.

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— Acreditar em minhas próprias forças? Como posso acreditar em mim

mesmo sabendo que tem um bicho me destruindo por dentro?! — Isaque

levantou a voz —. Não é mais simples dizer você vai morrer, desista de tudo e

aguarde pela morte?! Para quê criar esperanças onde elas não podem existir?

— Querido, ouça o doutor, ele sabe o que diz — Ana tentou acalmar o

filho, aquele que cuidou com tanto carinho, que viu crescer, dar os primeiros

passos, que ajudou a levantar dos primeiros tropeços —. Muitas pessoas

conseguem a cura, porque elas acreditam e se esforçam para isso. Você é um

guerreiro, desde que esteve dentro de mim eu pude sentir o que estou dizendo,

não é uma doença que vai lhe parar.

— Mãe, não se iluda e não tente me iludir — o garoto estava cegado pela

angústia —. Não é mais fácil iniciar um processo de desapego ou invés de

alimentar esperanças?!

— Não. Não é. Você é o meu filho, farei o impossível para o seu bem, não

vou deixar que se entregue!

— Mas se eu quiser não há quem possa me impedir!

— Isaque, entenda, existem tratamentos, medicamentos que enfraquecem

a doença, procedimentos que a destroem enquanto ainda há tempo — o médico

afirmou —. Vamos ajudá-lo...

— NÃO VÃO! — o garoto estava revoltado, não queria ouvir mais nada

—. Não percam tempo e nem dinheiro com o impossível. Eu não vou perder o

meu!

— Você vai! — Marcos usou sua autoridade de pai —. Ana, leve-o para o

carro, conversarei melhor com o doutor.

Um choro amargo.

Isaque queria entender. Precisava entender. Mas as explicações não

vinham. Na vida nem tudo tem explicação, algumas coisas simplesmente

acontecem sem ter um motivo, mas tudo o que aparece possui um objetivo,

uma conclusão, basta esperar.

No caminho de volta para casa o rapaz apenas alimentou a raiva que

crescia em seu peito, não queria viver aquilo, não queria notar olhares de

misericórdia com os quais seria visto quando descobrissem o seu problema, não

queria receber tapinhas de piedade nas costas, não queria que se preocupassem

com ele.

— Filho, vamos conversar... — Ana tentou interromper os passos de

Isaque.

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— Deixem-me em paz! — furioso, o garoto subiu as escadas, bateu a porta

do quarto.

— Ele precisa de um tempo — Marcos, compreensivo, abraçou a mulher

que derramava sentidas lágrimas.

— Droga de vida! — o adolescente gritava enquanto lançava ao chão

alguns brinquedos que colecionara durante a infância e os livros que sempre

guardara com carinho –. Um doente! Um desprezível e miserável doente! Um

bicho! Um fardo! — descarregou sua fúria nos lençóis da cama —. Ser visto

como um injustiçado? Prefiro a morte! — as palavras rancorosas apenas saíam

—. Eu odeio tudo e todos! — prestes a lançar um retrato ao chão Isaque passou

a observar a fotografia, ele ainda era pequeno, devia ter uns três anos, seus pais

possuíam um belo sorriso, felizes pelo filho que tinham, sempre o amaram, o

acolheram em todos os momentos, todos os momentos.

Choroso, ele correu do quarto e buscou o colo dos pais.

— Eu não quero morrer — sua voz estava embargada pelas tantas

lágrimas.

— E quem disse em morte? — Ana apertou o filho nos braços.

— Você vai sair dessa — Marcos acariciou a testa do filho —, nós

prometemos.

<<>>

Assinar bilhetes amorosos como Romântico Anônimo era, aos olhos de

Gustavo, uma brilhante ideia, a melhor que seu amigo tivera em anos. Mas um

problema surgiu, como a garota conseguiria ler? Logo a solução apareceu.

A Cidade da Paz possuía uma estilosa e atualizada biblioteca, que

abrangia um acervo diversificado de livros dos mais diferentes autores, desde

nacionais como Machado de Assis até internacionais como Nickolas Sparks.

Nela trabalhava Leila, a prima do futuro pediatra, que tinha como função

auxiliar os deficientes visuais, dentre os seus serviços estava a responsabilidade

em criar fichas para aquelas pessoas, com o auxílio da máquina em braile, a

solução para o jovem Gustavo.

— Preciso muito da sua ajuda — o garoto suplicou animado.

— Mas é claro — a moça já tinha os seus vinte e três anos —. Diga o tema e

eu recomendo o livro.

— Não é isso, é um pouco mais trabalhoso.

— Como assim? — ficou curiosa.

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— Antes preciso que prometa uma coisa.

— Prometer o quê?

— Apenas prometa, confie em mim.

— Tudo bem, eu prometo — revirou os olhos —. Agora diga do que se

trata.

— Meus pais não podem saber de jeito nenhum, muito menos o seu tio.

— Pode acabar com o mistério?

— Estou gostando de uma garota — revelou acanhado.

— Que lindo, apaixonou-se! — a moça riu —. Mas o que eu tenho a ver

com isso? — cortesia não era muito o seu forte.

— A garota não enxerga — Gustavo ignorou o comentário da prima —,

mas eu preciso escrever a ela o que sinto. Aceita me ajudar?

— Mas é claro — Leila riu travessa —. Quem garante que vou escrever

exatamente o que diz?

— Ah! É sério que vai me fazer essa desfeita?

— Não se preocupe — ela gostava de zombar o primo —. Esse será mais

um dos nossos segredos e eu prometo que serei fiel. Apenas quero uma mesa

reservada no casamento — sugeriu irônica.

— Como quiser — o sorriso no rosto do garoto revelava que estava mesmo

apaixonado.

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Capítulo 05

Um novo dia começava.

Gustavo acordou bem disposto, para a surpresa dos pais, cantarolando,

assoviando, distribuindo sorrisos e “bons dias”, nem parecia a mesma pessoa

que no dia anterior levantou tão desanimada e sonolenta. Tanta alegria tinha

um motivo, a vontade chegar logo à escola possuía uma razão.

O futuro pediatra, assim que pisou nos corredores do Colégio Inova,

correu até um armário especial. Tirando da mochila um envelope discreto o

perfumou com o Malbec que levara consigo, passou o papel pelo vão da porta

continuou o seu trajeto sorridente até a sala.

Gabriela chegou alguns minutos antes do início da aula, com a ajuda do

pai foi até o seu armário pegar algumas coisas, já conhecia o caminho até a sala,

por isso Eliseu a deixou ali. Apalpando os objetos que queria a garota percebeu

algo diferente, alguma coisa que ela não se lembrava de ter colocado no lugar.

Com o teto treinado descobriu o envelope, mais do que depressa o abriu, tendo

em mãos um recado sutil:

Apenas queria que soubesse de uma coisa: é a mais bela das

garotas dessa escola.

Romântico Anônimo

A filha do professor de Português abriu um sorriso encantador. O que

mais a impressionava em tudo aquilo era o fato de autor se preocupar em lhe

entregar um bilhete que ela pudesse ler, independente de quem fosse era uma

pessoa especial. Com mil pensamentos rondando a jovem mente Gabriela levou

o papel ao nariz e sentiu o perfume ali depositado. Para ela, aquilo poderia

servir como uma pista de quem seria o seu admirador.

Ao ver aquela que tanto esperava chegar, Gustavo rapidamente tirou a

mochila que guardava o lugar da garota e, de prontidão, a ajudou a se sentar.

— Oi... — Gabriela o cumprimentou tímida.

— Como vai? — o garoto perguntou acanhado —. Animada para mais um

dia de aula?

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— Agora sim — sua resposta poderia estar dizendo muitas coisas,

Gustavo começou a alimentar esperanças quanto ao que desejava —. Acredita

que deixaram um bilhete no meu armário?

— Sério? — ele queria saber o que ela havia achado da surpresa —.

Gostou?

— Amei — a garota ficou levemente corada, o que causou no futuro

pediatra algo diferente, novo, uma vontade de tocá-la, de dizer o quanto ela era

linda, mas não teve coragem, talvez estivesse avançando demais, preferiu se

deixar enfeitiçar pelos olhos azuis que, infelizmente, eram submersos em uma

insistente escuridão —. Você acha que alguém poderia gostar de mim?

— Por que não gostaria?

— Sou cega — Gabriela respondeu como se a resposta fosse óbvia.

Gustavo encostou as mãos e, sorrindo, deu sua resposta:

— Só um idiota não gostaria de você.

A garota nada disse, nem precisava, o desenho que seus lábios formaram

no rosto já era suficientemente bom para Gustavo. Virando para frente ela ficou

pensativa, seu amigo foi o primeiro garoto que lhe teceu um elogio tão

eloquente.

<<>>

Júlia Siqueira era, como a maioria dos seus colegas diziam, a patricinha do

colégio, sabia que sua beleza chamava a atenção e que bastasse uma palavra sua

para que qualquer garoto beijasse os seus pés, essa convicção lhe tornava ainda

mais arrogante. Exibia os longos cabelos loiros e olhos encantadoramente

verdes, todos esses tracejos disfarçavam a ardilosa alma.

Desde que conhecera Gustavo percebeu no rapaz um ótimo pretendente,

era bonito, chamava a atenção, além de ser inteligente e uma pessoa querida

por aqueles que o conheciam, um namorado que lhe renderia bons comentários.

Começou a desejá-lo por puro interesse logo no primeiro encontro, quando por

medo da inspetora Zumira ele saiu correndo. Vendo que o garoto não a

procuraria mais ela decidiu dar os seus pulos, mas talvez fosse tarde, um

obstáculo poderia cruzar o seu caminho.

Aproveitando que aquela que teria por rival estava a sós na área verde do

colégio durante o intervalo, Júlia se aproximou de Gabriela, sentando-se ao seu

lado.

— Gostando da escola?

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— Muito boa — a garota tentava reconhecer aquela voz, mas suas

tentativas eram falhas —. Quem é você?

— Sou Júlia, uma grande amiga de Gustavo... E das pessoas? O que tem a

dizer?

— São todas legais, tenho sido bem acolhida aqui.

— Que bom... Você é cega, né? — perdeu o senso.

Gabriela não esperava por aquilo, não soube o que dizer.

— Desculpe-me se a ofendi — Júlia fingiu arrependimento —. Achei que

não visse problema nisso, não podemos nos envergonhar pelo que somos.

— E eu não me envergonho...

— Eu entendo. É mesmo difícil ser o errado, o diferente — ela não estava

disposta em poupar as desprezíveis palavras —. Ah! Desculpe-me de novo... Eu

e a minha boca grande.

De fato Gabriela já estava se sentindo desconfortável com aquilo, do que

ela menos precisava era de alguém com preconceitos. A arrogante garota logo

percebeu que seu plano estava funcionando, abriu um sorriso satisfeito.

— E quanto ao Gustavo? O que tem a dizer?

— Ele é ótimo — sua fala começou a soar secamente, não queria continuar

aquela conversa.

— Ele é perfeito... É uma pena você não poder ver o quanto ele é bonito,

charmoso, não acha que seria ruim para ele andar com alguém igual a você?

— Igual a mim? Qual o problema comigo?

— É sério que não sabe? – Júlia era cada vez mais arrogante, já Gabriela

não encontrou palavras para retrucar, apenas abaixou a cabeça se apegando em

sua bengala —. Preciso ir... Foi bom conhecê-la... Mas pense no que eu falei, o

Gustavo é perfeito, mas você tem algum defeito.

Durante todo o acontecido o futuro pediatra esteve na fila da cantina

aproveitando para ligar a Isaque, que sem avisar faltara a aula e agora não

atendia as ligações. Com dois lanches em mãos o garoto voltou a se sentar com

aquela que o cativava, percebendo em seu rosto alguma preocupação.

— Aconteceu alguma coisa? — ele entregou o lanche —. Fizeram alguma

coisa para você?

— Não é nada...

— Por que será que não estou acreditando? Não confia em mim? —

insistiu.

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A garota suspirou, não sabia se seria uma boa ideia desabafar o que

aconteceu, mas talvez fosse necessário ouvir do próprio amigo o que ele achava

dela.

— Você é perfeito. Eu não.

— O que quer dizer? — estranhou — Perfeito ninguém é.

— Você é bonito, pode conquistar a quem for, mas não comigo por perto,

uma simples cega.

— Quem falou isso?

— Não é o caso — escondeu a verdade –. Queria saber o que estava

acontecendo, não queria? Agora que já sabe eu vou andar por aí...

Já em pé Gabriela sentiu Gustavo pegá-la pelo braço fazendo-a se sentar

novamente, dando as mãos o garoto declarou:

— Eu não me importo com o que as pessoas são ou deixam se ser, se eu

gosto delas é claro que as manterei por perto. A opinião alheia nunca me

interessou. Eu quero ser seu amigo, independente das diferenças e dificuldades,

mas e você? Quer ser minha amiga?

A garota não se conteve mais, aquelas foram as melhores palavras que

ouvira, do seu modo tímido e receoso abraçou o novo amigo, começava ali uma

cumplicidade, um sentimento mútuo.

Mas a cena não agrava a todos, de longe Júlia assistiu a tudo, sentindo um

nervoso no peito. Ela não gostava de Gustavo pela boa pessoa que era, mas sim

pela beleza e pelo status que teria.

<<>>

Isaque acordou naquele dia sentindo um cansaço pesado, um desânimo

angustiante, preferiu ficar em casa e passar toda a manhã trancado em seu

quarto, deixando as lágrimas de dúvidas e incertezas rolarem, tentava entender

o porquê de tudo aquilo.

— Leucemia... — reclamou consigo mesmo — Câncer... Um doente... Que

serventia eu vou ter?

Ele não acreditava que poderia sair daquele problema, não via esperança,

infelizmente acreditava que aquilo traria o seu fim. Como muitas outras

pessoas, estava se entregando ao próprio sofrimento.

— Filho — Ana bateu na porta —, você tem visita.

— Mande embora! — o garoto tentou disfarçar a voz embargada pelo

choro.

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— Ou abre a porta ou eu arrombo! — era Gustavo.

“Alguém para zombar. Alguém para sentir pena. Alguém para humilhar”. Isaque

se esqueceu que aquele era o seu melhor amigo e que não faria nada do que ele

pensava. Resolveu abrir a porta, mas correu de volta à cama escondendo o rosto

no travesseiro.

— Filho... Para com isso... É o Gustavo.

— Eu não sou surdo! — seu jeito grosseiro estava sendo algo novo —. E

não sei por que veio, não devia perder tempo.

— Podemos conversar a sós? — Gustavo pediu.

— Claro — Ana fazia força contra as lágrimas.

Sentando-se ao lado do amigo o futuro pediatra tirou o travesseiro que

escondia o rosto do entristecido garoto, queria entender o que acontecia.

— Vai me dizer por que está desse jeito? Faltou e nem me avisou...

— Se eu fosse você procurava outro amigo, não perderia o meu tempo.

— Se eu quisesse outro amigo não estaria aqui agora... O que está

acontecendo? Qual é o problema?

Isaque, antes que pudesse responder, deixou as lágrimas rolarem, aquilo

afligia o seu peito, parecia sufocar sua alma.

— Eu estou doente... — abaixou a cabeça — Eu tenho câncer.

Aquilo foi um choque para o mais novo.

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Capítulo 06

Ninguém está preparado para um desafio, não completamente, sempre

existe um receio por trás da coragem, dúvidas por trás da certeza, um

sentimento de incapacidade. O problema não era com Gustavo, mas ele via

como se fosse, o desafio era também dele, o obstáculo estava também em seu

caminho.

— Não precisa dizer que sente muito e nem que é uma pena — ainda de

cabeça baixa Isaque percebeu o silêncio do amigo e começou sua declaração —

Eu sou um doente e nada vai mudar isso.

— Acha mesmo que seria tão frio ao ponto de apenas dizer que sinto

muito e que tudo é uma pena? — ver a tristeza profunda que afogava aquele

que tinha por irmão entristeceu ainda mais o futuro pediatra, aquele que

sempre se importava com os amigos, aquele que não media esforços para ajudá-

los — Você não é apenas mais um dos meus tantos amigos, é simplesmente o

melhor, o irmão que eu sempre quis ter... Eu não apenas sinto muito como

prometo estar ao seu lado em tudo o que precisar.

— Não seja idiota — Isaque ergueu os olhos tendo no rosto um sorriso

forçado —. Ouviu o que eu disse? Não é um resfriado passageiro, é um câncer!

Sabe quais são as chances de vida que tenho? As mais nulas possíveis. Não

perca o seu tempo com alguém que cedo ou tarde estará esticado em uma urna,

pronto para ser devorado pela terra.

— Desde quando passar cada momento, bom ou mau, com aqueles que

gostamos é perda de tempo? — Gustavo encarava os olhos entristecidos,

ofuscados pela angústia — E se fosse o contrário? E se eu fosse o que estivesse

doente? Você me daria às costas? Iria simplesmente jogar fora anos de

convivência? Seja sincero e me responda.

O garoto deixou as lágrimas escaparem com mais força, olhando para as

próprias mãos que se apertavam aflitas respondeu:

— É claro que não.

— Então não seja tão duto consigo mesmo e deixe as pessoas que o ama,

que se importam com você o ajudarem — apoiando a mão no ombro do

melancólico, o bom amigo concluiu: — Eu sempre estarei aqui.

— Não é tão simples e nem tão fácil quanto parece — Isaque resolveu

colocar para fora aquilo que o consumia por dentro —. Eu não consigo ver

solução, eu não consigo alimentar esperanças — voltando os olhos para aquele

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que era um verdadeiro parceiro continuou: — Muitas foram as pessoas que

acreditaram nas palavras de consolo daqueles que as rodeavam e não

alcançaram o milagre. Quantos sonhos foram apagados? Quantas histórias

tiveram o seu ponto final decretado? Quanta fé que não adiantou coisa alguma?

Como eu posso viver sabendo que tem algo dentro de mim me devorando,

destruindo-me? E eu também não posso prejudicar outras pessoas, não quero

obrigá-las a me ouvirem, a me ajudarem...

— E não precisa. Quem é de verdade o ouvirá e o ajudará sem que você

suplique, estarão a todo momento querendo o seu bem. Esqueça isso de que não

se salvará, a medicina está avançada, os recursos são outros, mas depende

também da sua fé, da sua vontade de viver, do seu desejo de vencer... Não pode

se entregar dessa maneira toda vez que um problema se apresentar, não pode

simplesmente ignorar as tantas soluções por causa do medo, da angústia. Se

você não tem força suficiente, eu posso lhe ajudar, seus pais podem ajudá-lo,

você não está sozinho, tem a mim e tem a eles.

— Mas e os outros? Não quero que sintam pena, que mostrem compaixão

e nem que me vejam com indiferença, desprezando-me, como se eu estivesse

perdido a própria sorte.

— Isso depende de você, mostre que está lidando com o desafio

tranquilamente, que tudo está sob controle, que acredita na solução.

Isaque apenas assentiu, sem nada dizer. Mas Gustavo ainda queria provar

que sua amizade e suas palavras eram verdadeiras.

— Além de tudo isso um lorde precisa da companhia do seu conselheiro,

eu preciso de você.

O garoto abatido dessa vez abriu um sorriso espontâneo, largo e alegre,

abraçou aquele que crescera com ele, aquele que era de fato um irmão, poderia

ser não de sangue, mas do coração.

— Obrigado, lorde Gustavo, por tudo!

<<>>

“[...] Foi bom conhecê-la... Mas pense no que eu falei, o Gustavo é perfeito, mas

você tem algum defeito...”

Gabriela estava se deixando levar pelas palavras de Júlia, as dúvidas

estavam voltando, o sentimento por uma culpa que não deveria existir

começava a se apresentar. Em seus pensamentos as indagações surgiam, talvez

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não fosse certo ela ser amiga de alguém como Gustavo, talvez ela estivesse se

prestando ao papel de ridícula, talvez ela apenas fosse um atraso na vida do

garoto, afinal de contas ela não enxergava, possuía mesmo um defeito, algo com

o que se envergonhar. Tudo isso era verdade, apenas para a sua mente.

Mas a garota se lembrou do sentimental bilhete que recebera, das

agradáveis palavras grafadas no papel, do trabalho que o seu autor teve em se

preocupar ao escrevê-las em braile e do perfume marcante, o qual ela não

enjoava de sentir.

Apenas queria que soubesse de uma coisa: é a mais bela das

garotas dessa escola.

Romântico Anônimo

Ela não se cansava de repetir aquelas palavras, que pareciam tocar o seu

coração, abrasar a sua alma e obrigá-la a sorrir além de causarem um frio na

barriga, algo nunca sentido antes.

— Filha? Posso entrar? — Laura, sua mãe, bateu calmamente na porta do

quarto.

— Claro — a menina logo escondeu o bilhete —. Está tudo bem?

— Tudo ótimo e vejo que com você melhor ainda — a enfermeira se

sentou ao lado da filha, logo percebeu o semblante irradiante —. Nem preciso

perguntar se está gostando do colégio, a resposta o seu rosto já dá.

— É mesmo diferente de tudo aquilo que pensei... As pessoas são ótimas,

os professores incríveis, só tenho o que agradecer por termos mudado para cá.

— Tanto entusiasmo não teria alguém como motivo? — a mãe suspeitou.

— Alguém? Do que está falando? — o sorriso tímido surgiu no rosto de

Gabriela, o sorriso que Laura conhecia bem.

— Você sabe, minha querida, e eu sei que é absolutamente normal essas

coisas acontecerem... Quero que confie em mim para dizer os seus segredos,

além de mãe e filha sempre fomos grandes amigas.

— Existe um alguém oculto — a garoto decidiu se abrir, afinal se não

confiasse em sua mãe para revelar os segredos do coração em quem mais

poderia confiar?

— Alguém oculto? — a mulher riu divertida, pensou que fosse alguma

brincadeira —. Ajude-me a entender mais essa novidade da juventude de hoje.

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— Estou falando disso — a menina tirou o bilhete das costas —. Quer que

eu leia?

— Se puder.

— Apenas quero que saiba de uma coisa: é a mais bela das garotas dessa

escola — Gabriela leu cada palavra como se fosse a primeira vez.

— Que fofo, minha querida — a enfermeira apertou a amada filha em um

abraço animado —. Quem é o rapaz das antigas?

— Esse é o problema, ele não tem nome.

— Nem uma pista?

Passeando os dedos pelos pontinhos salientes a garota respondeu

sorridente:

— Romântico Anônimo, é essa a assinatura.

— Minha princesa está crescendo — a mulher passeou a mão pelo

delicado rosto da menina —. Apenas quero que conte comigo para tudo e não

me esconda nada.

— Esconder o quê? Confio cegamente em você – Gabriela fez o trocadilho,

provocando risos.

<<>>

No caminho de volta para casa, enquanto caminhava com os fones de

ouvido no volume máximo, Gustavo foi surpreendido pela aparição de uma

pessoa que, embora estudasse na mesma sala que ele e no passo lhe despertara

o seu interesse, agora era indiferente estar ou não presente.

— Gu! — Júlia abraçou o garoto beijando-o no rosto como se fossem

amigos íntimos de longa data —. Que surpresa agradável!

— Ah! Oi! — o rapaz se retraiu.

– Será que podemos conversar? — a garota alisava o cabelo querendo

chamar a atenção.

– O que você precisa saber? É sobre alguma tarefa?

— No meio da rua não, bobo — Júlia segurou o braço de Gustavo, que se

afastou causando um clima estranho entre eles —. Que tal irmos à sorveteria? –

ela insistiu sugerindo.

— Sinto muito, mas não posso, tenho algumas coisas para resolver,

estudar um pouco para o vestibular...

— Vestibular? — ela o interrompeu — Ainda estamos no começo do ano e

você já pensa em vestibular? Para com isso, vamos aproveitar a vida!

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— Se você não se interessa pelos estudos eu apenas lamento, mas essa é

uma das prioridades em minha vida — ele não queria parecer grosseiro, mas

também não controlou as palavras.

Porém Júlia não desistiria tão fácil das suas intenções, era determinada em

suas ambições.

— Então eu falo aqui mesmo o que há tanto tempo venho guardando.

Aquela história de namoro ainda está em pé?

Antes de responder o futuro pediatra pensou um pouco, não queria

ofender.

— Eu sinto muito, mas não, não está.

— Não está? — ela não se conformaria — Como assim não está? Ninguém

deixa de achar outra pessoa bonita do nada.

— Eu sim — as palavras simplesmente saíram.

— Está me chamando de feia?! — começou o vitimismo.

— Eu não disse isso...

— Mas é o que pareceu! Sabe de uma coisa? Vá lá perder tempo com

aquela ceda, uma defeituosa! — na hora da raiva é difícil encontrar alguém que

se controle, no entanto algumas coisas não deveriam ser ditas, podem marcar

para sempre.

— O que você disse?! — ele não admitiria um absurdo tão grande.

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Capítulo 07

Ao invés de contornar a situação, amenizar o impacto da infeliz fala Júlia

manteve aquilo que disse reafirmando ainda mais acidamente:

— O que você ouviu! Olhe para você Gustavo, bonito, educado, teria a

garota que quisesse se rastejando aos seus pés, implorando pela sua companhia.

Mas não, prefere uma cega, alguém que pode prejudicar a sua reputação,

ofuscar o seu status!

— Eu não consigo acreditar no que estou ouvindo — o moreno se

indignava mais a cada palavra proferida: — Eu não imaginava que a sua mente

fosse tão fechada, tão preconceituosa. O simples fato de Gabriela não enxergar a

condena em uma eterna solidão? A viver com o desprezo do mundo?

— Essa é a realidade, meu querido, ninguém gosta de defeituosos — a

loira não poupava ofensas.

— Defeituosa é você que possui uma mente tão antiga, tão ultrapassada.

— Você deveria ser o meu namorado, o MEU!

Rindo desacreditado Gustavo retrucou:

— Acha mesmo que sou capaz de gostar de pessoas como você? Com o

seu modo de agir e ver as coisas? Gabriela é simplesmente uma amiga, mas com

certeza eu namoraria com ela, mesmo sendo uma defeituosa segundo as suas

palavras, sabe por quê? Porque ela é ainda mais linda por dentro, uma beleza

que você não possui e que por certo jamais terá.

— É o que está por fora que deveria interessá-lo.

— O que está por fora acaba, se corrompe, o que está por dentro é eterno

— dando às costas àquela que agora veria como inimiga Gustavo interrompeu

os passos e voltando os olhos sobre a garota mandou o seu ultimato:

— A propósito, fique longe de mim, não me importune mais. Também

faça um favor à Gabriela e a deixe em paz, ela não precisa da sua amizade.

Feita por menos, humilhada, ridicularizada, foi assim que Júlia se viu,

mas é claro que ela não se daria por vencida, consigo mesmo ela falou:

— Ainda virá atrás de mim feito um cachorro.

<<>>

Naquele novo dia que se iniciara, durante a aula, Gustavo combinou com

aquela que encantava os seus olhos de ir à biblioteca da cidade, um lugar que a

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garota nunca fora, mas que tinha muita vontade de conhecer. Logo após o

almoço, querendo aproveitar ao máximo a tarde que prometia ser a melhor de

sua vida, o futuro pediatra buscou Gabriela em sua casa, prometendo à mãe da

menina que cuidaria muito bem dela. A biblioteca não era tão longe, dava para

ir andando.

— Três andares com escadas rolantes, ar condicionado para ofuscar o

calor, mesas de madeira com bancos estofados, estantes gigantes com muitos

livros, uma iluminação agradável e um silêncio gostoso, pessoas concentradas

em suas leituras, casais apaixonados lendo juntos algum romance e pufs em

alguns cantos do prédio, fora os computadores prontos para uso — Gustavo

descreveu todo o lugar para a amiga logo que ali entraram, usando um tom de

voz mais baixo.

— Computadores? — a garota se espantou —. Pensei que fosse uma

biblioteca...

— Digamos que é uma biblioteca moderna, afinal de contas vivemos na

era da tecnologia, ela precisava evoluir.

— Entendo... E esse cheiro? — ela percebeu o ar diferente.

Respirando fundo de olhos fechados o rapaz respondeu:

— É dos livros, característico daqui. Em qual seção você quer ir?

— Seção?

— Romance, aventura, ficção científica, drama...

— Romance — a garota o interrompeu antes que terminasse —. É do que

mais gosto — ela não pôde deixar de se lembrar do misterioso Romântico

Anônimo.

A forma como Gabriela anunciou a sua escolha fez Gustavo entrar em um

ligeiro transe, observando melhor as íris azuis o deixaram extasiado.

—Então vamos — ele voltou em si começando a passear, quando percebeu

que deixar a menina para trás se envergonhou —. Desculpe a minha lerdeza —

seu tom de voz era divertido. Ainda que de forma retraída, pegou na mão de

Gabriela perguntando em seguida: — Podemos ir?

— Claro — ela tinha no rosto um sorrido diferente.

A garota não sabia explicar o que sentia, nem por que sentia, mas o toque

de Gustavo era uma sensação diferente, uma paz ao seu peito, a voz suave do

garoto era agradável aos seus ouvidos que desejavam ouvir mais daquele som.

Conforme andavam o rapaz percebeu algo que até então esteve oculto na

sua percepção sobre Gabriela: o perfume adocicado de maracujá, um perfume

penetrante no mesmo tempo que envolvente.

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— A Escolha, Como eu era antes de você, Querido John, O Amigo... — o

futuro pediatra lia os títulos das obras para a amiga que atenta tentava escolher

algum.

— O Amigo fala sobre o quê? — a garota indagou.

— Isso é com você — Gustavo guiou as mãos da menina na contra-capa do

livro —. Essa é a sinopse, mas só você pode ler.

Era em braile. Pigarreando delicadamente, Gabriela começou:

— Laura era uma garota tímida, bastante retraída, que ao se mudar para a

nova escola sente uma ansiedade fora do normal, um medo em não ser aceita.

Porém Eduardo a vê como alguém gentil, alguém interessante, alguém que faz

o seu coração acelerar e seus pensamentos ficarem abobados. Ele, então, decide

se aproximar, conquistá-la aos poucos e envolvê-la com o seu amor — ouvindo

a leitura Gustavo percebeu semelhança entre a história e suas emoções, Gabriela

poderia ser a garota do livro e ele o rapaz que a deseja amavelmente —. Os

jovens adolescentes se permitirão ao tão nobre sentimento? — a garota abraçou

o livro no peito abrindo o sorriso que sempre encantava o seu admirador —.

Vou levar esse.

— Ótima escolha — o rapaz respondeu suave, bobo, perdido naquele

sorriso branco e perfeito, admirado por aquela pele clara e macia —. Quero

muito saber como a história vai terminar.

— Dê-me a sua mão — em pé, no corredor entre as estantes da seção de

romance, Gabriela surpreendeu Gustavo com o pedido que logo foi atendido:

— Perceba a delicadeza dos pontinhos — ela o ajudava a passar o dedo pelo

escrito em braile, enquanto ele a encarava nos olhos incrivelmente azuis, que

não denunciavam em nenhum aspecto a cegueira da garota, a não ser pelo olhar

sempre vago, indefinido —. Eles guiam o seu dedo à próxima palavra, além de

ler as palavras de amor você pode senti-las, está praticamente dentro da história

— a menina não podia explicar, mas fato é que ela precisava tocá-lo novamente,

arrumou naquilo um pretexto para sentir a sua mão.

O calor que emanava do toque de Gabriela era agradável ao garoto, que

desejava aquilo para sempre em sua vida, mas não sabia como prosseguir em

seu objetivo.

— Primo! — Leila surpreendeu os jovens adolescentes com sua repentina

aparição — Que bons ventos o trazem aqui? — olhando para a garota que

acompanhava Gustavo ela abriu um sorriso, logo entendeu tudo, deu uma

piscadela ao primo que riu envergonhado — Não vai me apresentar essa

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belezura? — Leila, simpática, envolveu Gabriela em um abraço, entusiasmando

a garota ao seu respeito.

— E-essa é minha amiga — ele gaguejou no começo, mas retomou o

controle sobre a voz —, Gabriela.

— Tão bonita quanto o nome — elogiou.

— Obrigada — a menina respondeu tendo o mesmo sorriso acanhado de

sempre —. E você, quem é?

— Leila, a melhor prima do seu amigo.

— Muito convencida — o rapaz brincou, de fato aquela era a prima que

ele mais gostava.

— O que fazem aqui? — a extrovertida indagou.

— Compras — Gustavo revirou os olhos, sua resposta provocou o riso da

companheira —. Lendo, o que mais seria?

— Sei... — Leila deu uma nova piscada para o primo, que naquela hora só

faltou agradecer pela amiga não enxergar, poderia ter passado uma grande

saia-justa —. Bom, fiquem a vontade.

— Na verdade eu já escolhei o que ler — a garota estendeu o livro —.

Acho que já estamos de saída.

— Venham comigo, então, vamos fazer o cadastro.

Gabriela se esqueceu da timidez e guardando a bengala na bolsa que

levava se deixou guiar por Gustavo, ambos deixaram a biblioteca como um

verdadeiro casal apaixonado, próximos um do outro, de mãos dadas. Enquanto

caminhavam a garota teceu elogios à Leila, gostou de conhecer a moça, amou o

modo como fora tratada. Também se mostrou animada por ter pisado pela

primeira vez em uma biblioteca.

— Obrigada — mesmo sem enxergar a menina acertou o beijo na bochecha

do jovem adolescente, que na mesma hora corou, passou a mão pela região do

beijo e abriu um sorriso bobo —. Obrigada por estar sendo um amigo

maravilhoso!

— Não precisa me agradecer — ele percebeu como a amiga ficava ainda

mais bonita quando feliz —. Sinto-me lisonjeado pela sua companhia.

Os bons amigos passaram em frente a uma sorveteria, querendo mimar

ainda mais Gabriela, Gustavo pediu que a garota o esperasse por alguns

segundos, logo ele voltou com o sorvete de casquinha em mãos. Ajudando-a a

pegá-lo ele não pôde segurar a risada quando a menina se lambuzou.

— Deixa de ser bobo — ela não sabia o que fazer.

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— Não se mexa — ele abriu a câmera do celular e tirou uma foto —. Agora

sim.

— Você gravou isso? — a adolescente se preocupou.

— Não tenha medo, essa foto será somente minha — aproximando-se da

garota tomou outra atitude —. Vou ajudá-la a se limpar.

Ela estava com um bigodinho de sorvete e alguns respingos na bochecha,

com as pontas do dedo o garoto limpou seu rosto, mas ao encostar próximo aos

lábios avermelhados os observou com maior atenção deixando, ainda que sem

perceber, que seu rosto se aproximasse do de Gabriela.

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Capítulo 08

Próximo de dar o seu primeiro beijo, um passo importante em sua vida,

um passo que era também bastante aguardado, Gustavo voltou em si

afastando-se da garota, constrangido, envergonhado, desconcertado.

— Está tudo bem? — Gabriela estranhou o repentino silêncio.

— S-sim — gaguejou, respirou fundo e retomou o controle sobre a

gagueira que sempre o incomodava em momentos de nervosismo —. Podemos

continuar?

— Claro — ela abriu um sorrido, o mesmo que insistia em prender os

olhos de seu admirador —. Só quero que você saiba de uma coisa — procurou a

mão do amigo juntando os dedos —, você me proporcionou os melhores

momentos. Há muito tempo eu não fazia um passeio assim.

Se Gabriela pudesse enxergar veria as covinhas infantis que se formaram

nas bochechas coradas do garoto, que respondeu ao comentário:

— Amigos são para essas coisas.

Após um dia que poderia ser considerado um dos melhores de sua vida

Gustavo se deitou para dormir, mas antes de fechar os olhos e atrair o sono não

resistiu a vontade de desbloquear a tela do celular e abrir a galeria em busca da

foto da garota encantadora lambuzada de sorvete, uma cena da qual ele nunca

esqueceria e em todas as vezes que ela retornasse em sua mente o faria abrir um

sorriso apaixonado.

“— Claro — ela abriu um sorrido, o mesmo que insistia em prender os olhos de

seu admirador —. Só quero que você saiba de uma coisa — procurou a mão do amigo

juntando os dedos —, você me proporcionou os melhores momentos. Há muito tempo eu

não fazia um passeio assim”.

Escutando a voz daquela que conquistou o seu coração o futuro pediatra

sentiu uma vontade grande de se declarar, de dizer o que realmente achava de

Gabriela, de revelar os sentimentos que ela lhe despertava, mas não sabia como

agir, o que fazer, o que falar. Tinha medo de acabar com uma amizade que já

era importante. A melhor opção a escolher era aguardar, seguir o tranquilo

fluxo do destino.

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Quando disse que há muito tempo não fazia um passeio como aquele

Gabriela estava dizendo a verdade, o fato era que a garota nunca teve amigos

com os quais saísse, seus passeios eram sempre na companhia dos pais, não que

fosse menos importante, era sim agradável, mas sair com um bom amigo a fez

perceber que era diferente, era divertido e dava um gostinho de “quero mais”.

“Gustavo...”

Ela não conhecia, mas ouvir aquele nome ou simplesmente lembrá-lo

causava um gelo em sua barriga, suas mãos pareciam ter vida própria e

tremulavam delicadamente, seus lábios desenhavam um sorriso espontâneo.

Embora não pudesse se lembrar do rosto daquele que ela não sabia o que

significava para si, conseguia se lembrar nitidamente da suave voz que a

agradava, do toque que era do mesmo tanto agradável, com isso nascia o desejo

por reencontrá-lo, mal podia esperar para que o novo dia nascesse.

Um simples e bom amigo ou algo a mais? Alguém que aqueceria o seu

coração de um jeito especial? Alguém que gostaria dela de uma maneira

diferente, um tanto mais intensa? Gabriela não conseguia responder ao certo,

mas de uma coisa tinha certeza: Gustavo é a melhor pessoa que conheci em toda a

minha vida.

<<>>

Um novo dia se iniciava ainda mais ensolarado, típico de verão, enfeitado

pelo canto dos muitos pássaros.

Animada, Gabriela entrou no seu quarto dia de aula, ansiosa por falar com

alguém especial. Ao pegar algumas coisas em seu armário foi novamente

surpreendida por mais um bilhete do seu admirador secreto.

Sinto-me perdido em seu olhar, seu sorriso parece me tirar a

razão. Por que a sua presença é tão especial?

Romântico Anônimo

O coração da jovem adolescente pulsou mais forte em seu peito, o perfume

já conhecido no papel abriu um sorriso irradiante na garota, que guardando o

presente no bolso suspirou ainda mais apaixonada.

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— Finalmente beijou — Isaque, ao ouvir toda a história, precipitou-se

quanto ao desfecho.

— Fala baixo! — Gustavo temeu que alguém pudesse ter escutado — Dei

para trás... Não tive coragem.

— De novo? — o loiro se indignou — Perdeu mais uma oportunidade de

ser feliz, de provar o que a vida tem de melhor — usou um tom debochado.

— Do jeito que fala parece até que não estou vivendo.

— De fato não está, mas o entendo, tem medo de afastá-la.

— E perder a oportunidade de passar o resto dos meus dias com alguém

tão especial, tão diferente da maioria das outras garotas, tão... indefinível.

— Lorde Gustavo, postura, a duquesa vem aí.

Na mesma hora em que viu Gabriela na porta da sala, o garoto se levantou

prontificado a guiá-la até a carteira. A garota não pôde esconder o semblante

satisfeito ao perceber a aproximação do amigo, afinal de contas, já esperava pela

recepção.

— Dormiu bem? — ele não sabia ao certo como iniciar a conversa, optou

pela cordial pergunta.

— Como uma criança despreocupada e, cá entre nós, acabei sonhando

com você — declarou tímida.

— Sonhando comigo? — ele se espantou, às suas costas Isaque se divertia

com aquilo.

— Sim — ela respondeu acanhada, envergonhada, mas até aquele jeito

encantava o seu admirador —. Não sonho como você, mas sua voz me disse

muitas coisas.

— Que coisas? — o jovem apaixonado se interessou.

Gabriela se lembrou das doces palavras que ouvira durante a noite, sua

timidez não lhe permitira repeti-las, teve que despistar o amigo:

— Nada demais, mas foram as melhores coisas que já ouvi em sonhos.

Isaque não conseguiu se controlar, soltou uma gargalhada há muito presa

em sua garganta, recebendo em troca o olhar fuzilante de seu melhor amigo,

que de dentes cerrados e voz baixa ameaçou:

— Eu ainda o coloco numa forca! — o pensamento era medieval.

— Isaque?! — Gabriela percebeu a presença do garoto — Nem o

cumprimentei.

— Não se preocupe, donzela, estou acostumado a ser colocado de

escanteio — fingiu o drama.

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<<>>

— Para falar a verdade o tratamento será um tanto chato e difícil — o

doutor Alair, responsável por cuidar de Isaque, conversava com Ana, a mão do

garoto —. O problema possui o grau um tanto grave, dá tempo de revertermos,

mas vamos precisar de paciência.

— Ele não vai querer se ajudar, vai continuar com o discurso de que tudo

será perda de tempo — a mulher reclamou aflita —. Eu não quero perder o meu

bem mais precioso, o meu único filho!

— Nesse momento o papel da família é fundamental — o velho e

atencioso homem começou o conselho —. Ele precisa encontrar a persistência e

a esperança em vocês, os pais, a força de que ele vai precisar terá que vir de

vocês. Não vai adiantar se lamentar pelos cantos ou chorar abraçados, o

remédio principal é acreditar e lutar.

— Como se fosse tão simples... — o desespero causava a desesperança.

— Eu sei que não é, mas também não é impossível. Os próximos passos

serão trabalhosos, os desafios que vêm por aí são grandes, eu preciso contar

com a sua ajuda de mãe para juntos tirarmos o seu filho dessa situação.

— Darei o meu melhor — a mulher enxugou as lágrimas —. Quero salvar

o meu filho.

<<>>

Embora estivesse indo à escola normalmente Isaque escondeu de todos

que sentia algum mal estar, queria evitar preocupações as quais julgava

desnecessárias, e queria provar a si próprio de que era forte o suficiente para

viver com aquilo que sugava suas forças.

Era aula de Educação Física. Vicente, o professor, costumava ser rígido em

suas aulas, fazer os alunos alcançarem seus próprios limites e suarem a camisa

literalmente era o seu objetivo. Como preparação ao exercício do dia, o

professor ordenou que os rapazes dessem voltas na quadra, correndo, o

máximo de tempo possível, sem parar.

Isaque, mesmo sabendo que poderia ser um erro participar daquilo, não

iria pedir para ser mais um dos observadores, não queria levantar suspeitas

quanto ao seu problema, decidiu passar por cima das próprias dificuldades e

atender ao pedido do professor.

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— Tem certeza de que está tudo bem? — antes que a largada fosse dada

Gustavo mostrou preocupação quanto à saúde do amigo.

— Está tudo ótimo — o rapaz se mostrou bem disposto —. Não precisa se

preocupar. Qualquer coisa eu paro.

— Conheço sua teimosia...

— Eu estou bem! – começou a se irritar — Não quero que fique

preocupado, não quero que ninguém fique!

A corrida começou.

Isaque parecia querer mostrar que era o melhor, o mais rápido, o mais

forte. Corria mais do que o solicitado, assustando além do seu melhor amigo, o

professor Vicente.

Mas uma fraqueza repentina e intensa tomou o corpo do garoto que,

sentindo a cabeça girar, sofreu um apagão, caiu no médio da quadra,

desacordado.

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Capítulo 09

Deitado na maca do hospital em um dos tantos quartos Isaque era

monitorado pelos aparelhos ligados ao seu corpo enquanto recebia o soro.

Dormindo, exausto pela situação, era acompanhado por seus pais, que aflitos se

abraçavam, aguardavam ansiosos pelo momento em que o filho querido abrisse

os olhos. Junto deles estava Gustavo, era considerado um membro daquela

família, seu papel era estar ali, em um momento tão difícil.

— Precisamos dar início ao tratamento — logo que recebeu as informações

sobre o que aconteceu com seu paciente o doutor Alair se colocou a caminho, a

saúde do adolescente era algo muito importante ao bom médico — Ele queira

ou não.

— Eu concordo — Marcos, o pai, afirmou —. Ele precisa acreditar que

pode sair dessa.

Angustiada, Ana se aproximou do filho acariciando sua testa, depositou

ali um beijo cheio de carinho, proteção, um beijo de mãe.

Isaque despertou com a cabeça tonta. Percebendo o que acontecia não

poupou a irritação.

— Não precisava de nada disso! Eu estou bem! — tentou se levantar, mas

não conseguiu.

— Você desmaiou! — o médico começou sua fala — Será que agora vai

entender a gravidade do problema e nos ajudar a ajudá-lo? Sabe que agora a

sua capacidade tem um limite e dele você não pode passar.

— Está querendo dizer que agora sou um incapaz? Estão querendo me

convencer de que sou um doente? Eu posso fazer o que eu quiser do jeito que

eu quiser! — o desabafo era cheio de ira.

— Não mais! — Marcos queria que o rapaz entendesse os fatos —

Ninguém aqui o chamou de inválido e nem de doente, apenas queremos que

entenda de uma vez que a vida lhe impôs um desafio, um difícil desafio, o qual

você não vencerá sem ajuda!

— E esse desafio veio acompanhado de limites, ultrapassá-los poderia

prejudicar a si próprio — Ana completou ternamente.

— Querem saber de uma coisa? Deixem-me morrer em paz! — a falta de

esperança cresceu mais uma vez — SAIAM DAQUI!

— Filho... — a mãe tentou continuar o diálogo, mas foi interrompida.

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— SAI! — o garoto colocou as mãos no rosto querendo esconder as

lágrimas que caíam — Saiam todos vocês!

O quarto se esvaziou, mas Gustavo que até então se manteve calado não

atendeu ao pedido do amigo, continuou ali e continuaria por quanto tempo

conseguisse.

— Eu falei para sair — Isaque abaixou o tom de voz —. Por favor, deixe-

me sozinho...

— Você não precisa provar nada a ninguém — o futuro pediatra se

aproximou do desesperançoso jovem —. Quis correr feito um louco para

mostrar que pode, que nada o para, mas sua atitude foi ridícula.

— Eu posso...

— Você não pode se não tiver ajuda.

— Não perca o seu tempo, siga a sua vida e convença os outros a me

deixarem morrer, esse é o desfecho, o fim.

— Acha justo com todos nós que nos importamos com você perdê-lo?

Chorarmos a sua morte? Faz ideia do susto que nos deu? Consegue imaginar o

quanto fiquei preocupado ao ver o meu melhor amigo, aquele que conheço

desde que me entendo por gente, aquele que sabe coisas sobre mim que nem

meus pais sabem, esticado sobre o chão? Aparentemente sem vida? — os olhos

de Gustavo se encheram d’água — Acha justo nos ver querendo ajudá-lo,

querendo apoiá-lo, enquanto recebemos o seu “não”?!

— Por que tem que ser assim? — Isaque não pôde mais conter o choro

angustiado, um choro desesperado por segurança —. Por que comigo? Tudo

estava tão bem, tão certo...

— Há males que vêm para bem, no futuro as respostas virão, as

explicações surgirão, mas para que o amanhã chegue você precisa se ajudar no

hoje.

— Eu não consigo acreditar em soluções — o garoto abaixou a cabeça, as

lágrimas pingavam sobre a roupa, molhavam o lençol que o cobria —. Eu não

consigo vê-las...

— Mas eu, o seu médico e os seus pais conseguimos e acreditamos que a

solução existe, que a conclusão para esse desafio será a melhor de todas —

Gustavo não diria, mas ver aquele que era um verdadeiro irmão tão abatido o

entristecia como nada o entristecera —. Estamos todos com você — precisou

abrir os braços e acolher o amigo —. Eu, o seu lorde, estou com você e juntos

vamos sair dessa! Acredite em mim, acredite em você, prove a todos nós que

você consegue vencer os desafios, os obstáculos da vida.

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Júlia não era garota de desistir logo no primeiro problema de alguma coisa

que tanto queria, ela não tinha desistido de conquistar Gustavo, atraí-lo com o

seu charme, seduzi-lo com suas palavras que poderiam ser dóceis, mas que

tornariam amargas com o tempo. Como parte do plano, a garota decidiu que se

aproximaria de Gabriela, conquistaria a confiança da garota, ou menos tentaria,

e no final a colocaria contra o rapaz desejado.

Era o fim da tarde, nuvens começavam a tomar conta do céu, nuvens de

tempestade, quando Gabriela foi surpreendida por uma visita inesperada.

— O que deseja? — recebeu Júlia em seu quarto.

— Uma reconciliação.

— Reconciliação? — ela não era guardar mágoas ou ressentimentos, não

entendeu o que sua visitante quis dizer.

— Não começamos a nossa relação muito bem, acho que poderíamos

recomeçá-la — aproveitando que sai ouvinte não enxergava a astuta garota

revirava os olhos, debochava livremente —. Isto é, se você aceitar.

Embora não fosse de alimentar raivas, a amiga de Gustavo também não

tinha memória fraca, lembrava-se dos ácidos comentários que recebera de Júlia,

mas seu bom coração, sempre pronto a perdoar, decidiu que o melhor era dar

uma nova chance àquela que a ofendera.

— Tudo bem — Gabriela abriu um discreto sorriso —. Aliás, nem

precisava se desculpar, eu já não me lembrava do que aconteceu.

— Mas eu lembro todas as noites antes de dormir, não sabe como me sinto

enojada com isso — aquele arrependimento não passava de cena.

— Então agora que sabe que não possuo nenhuma mágoa pode voltar a

dormir sossegada — a inocência da jovem adolescente divertia sua rival.

— Só vou ficar realmente tranqüila se você aceitar sair comigo agora.

— Sair com você? Não acho que seja uma boa ideia.

— Por favor, aceite — Júlia pegou na mão daquela que tinha por

adversária —. Faça isso e prove que me desculpou de verdade. Não deixe essa

culpa continuar me importunando.

Acreditando que era a única que poderia fazer a paz voltar naquela que

aparentava desejar uma amizade, Gabriela por fim aceitou o convite, mesmo

algo lhe dizendo que não era a decisão certa.

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— Onde estamos? — a garota se guiava com a bengala enquanto tentava

acompanhar Júlia, que propositalmente apertava os passos.

— No parque — bufou, sair com uma cega, em suas palavras, era o maior

sacrifício que fazia.

— Venta forte — na verdade uma tempestade se aproximava.

— Bem forte — tudo que percebia Gabriela comentava, aquilo irritava a

garota interesseira.

— É trovão? — ouviu o estrondo.

— Qual é? Tudo que nota você precisa falar? — Júlia perdeu a paciência —

Desculpe, eu só estou um pouco nervosa.

A garota nada retrucou, agora tinha certeza de que aceitar o convite foi

um grave erro.

Os trovões estavam mais intensos, as rajadas de vento mais fortes, as

nuvens se enegreciam cada vez mais, alguns discretos pingos já tocavam a terra.

Tudo perfeito para o plano de Júlia, que fingindo ter recebido uma ligação

anunciou:

— Você vai ter que me desculpar mais essa vez, aconteceu um imprevisto

— beijou o rosto de Gabriela em um gesto de despedida —, eu preciso ir!

A garota dos olhos azuis tentou, mas não teve tempo para pedir que sua

“companheira” ao menos ligasse para alguém, já que estava sem celular. Sem

saber o que fazer decidiu ficar no banco que já estava, sentada, na esperança de

que algum conhecido a encontrasse. Poucos minutos depois a jovem

adolescente percebeu que as pessoas ao seu redor estavam eufóricas, apertavam

os passos como se estivessem fugindo de algo, de fato estavam fugindo da

chuva, que chegou da maneira como anunciava.

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Quando ia embora do hospital Gustavo se assustou com o tempo fechado,

temendo se arriscar na tempestade que a qualquer momento chegaria ligou à

sua mãe, que logo o buscou.

A chuva era pesada, o limpador de pára-brisa dos carros mal dava conta,

enquanto raios pareciam rasgar o céu, atravessar as nuvens, e trovões soavam

seu potente som. Observando as calçadas alagas o futuro pediatra notou uma

garota encolhida, tentando se proteger da tempestade na fachada do Parque da

Cidade. Forçando as vistas não pôde acreditar no que descobrira.

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— Mãe, para! — o garoto abriu a porta, sem se importar com a chuva

pulou para fora do carro, correu ao encontro daquela pela qual era apaixonado.

Gabriela chorava. Desde criança tivera medo de tempestades, mas naquela

tarde a apreensão era maior: não sabia onde estava, não conseguia fazer ideia

de como voltaria para casa, todo o receio se manifestou nas lágrimas, no choro,

quebrantando o peito do seu amigo.

— Eu estou aqui — ouvir a voz de Gustavo foi reconfortante —. Venha

comigo — o garoto a envolveu em um dos braços ajudando-a a se levantar.

Entrou junto da garota no banco traseiro do carro, ela soluçava por causa

do medo, ele não pôde se conter, teve que abraçá-la e, além de depositar um

beijo em sua testa, dizer:

— Está tudo bem, meu amor...

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Capítulo 10

Se ouvira a última fala de Gustavo, Gabriela não dissera, apenas se

manteve no abraço do garoto, sendo aquecida pelo calor que emanava do corpo

aconchegante, enquanto seus olhos fechados derramavam sentidas lágrimas, ela

não conseguia acreditar que as pessoas pudessem ser tão más.

O garoto, por sua vez, preferiu não se incomodar pela fala espontânea,

que simplesmente fora dita, optou em manter aquele que abraço que o fazia se

sentir importante, protetor, que o fazia se sentir o que mais queria: ser o

namorado da garota dos olhos azuis, que lembravam também a imensidão do

céu.

A menina tremia, era o frio que a incomodava, a situação só não era mais

difícil por causa da boca companhia ao seu lado.

— O que aconteceu? — o rapaz indagou —. Por que saiu sozinha? Poderia

ter falado comigo...

— Eu não queria sair... — presa na eterna escuridão que envolvia os seus

olhos, Gabriela se sentou melhor, afastando-se do corpo em que sua cabeça

repousara —. Mas não tive escolha.

— Por quê? — ele queria saber, precisava saber.

— Júlia insistiu bastante, disse que queria se aproximar, criar uma

amizade, se redimir.

— Redimir-se sobre o quê?

Até aquele dia a garota conseguira esconder, mas naquela hora teve que

revelar a dolorosa verdade:

— Ela disse que eu deveria me afastar de você, disse que é um garoto

lindo, perfeito e que ter a companhia de uma defeituosa como eu pode ser ruim

para a sua imagem.

— Eu não acredito nisso — Gustavo passou as mãos pelo rosto,

transtornado por aquilo que ouvira —. Por que não me contou antes?

— Porque eu sabia que iria ficar chateado – ela percebeu o tom de voz do

amigo e, repousando a mão sobre sua perna, disse: — Mas não precisa se

preocupar, eu sei que você não é assim, que possui um coração nobre, não vou

me importar com os comentários de ignorantes.

Em outras palavras ela queria dizer que não tinha problema quanto ao que

sofresse, apenas não queria que Gustavo se preocupasse com ela, ou que

comprasse suas brigas. O rapaz entendeu aquilo, ainda mais maravilhado

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observou por longos segundos o rosto suave da que para ele era a mais linda

garota, precisava se declarar, desejava revelar o que sentia, mas lhe faltava a

coragem.

Do retrovisor a mãe do garoto percebeu o clima, não queria intimidar os

jovens, preferiu o silêncio do seu sorriso bobo de mãe coruja.

Após deixarem a especial garota em sua casa Juliana começou as

provocações:

— Está tudo bem, meu amor — repetiu as palavras do filho em meio as

risadas —. Foi muito fofinho.

— Vai começar — o garoto revirou os olhos sentindo suas bochechas

arderem de vergonha.

— Não precisa ficar tímido, meu querido — sem tirar os olhos da avenida

a mulher conversava com aquele que conhecia até mesmo no escuro —. Não há

motivos para se envergonhar quanto ao amor. Ele existe e deve ser sentido,

compartilhado, abrasado.

— Mas não é tão fácil — Gustavo resolveu revelar seus anseios à sua mãe

—. Eu sinto algo diferente por ela desde o dia em que a vi, mas não consigo

dizer a verdade, parece que minha garganta se fecha e as palavras não surgem...

Eu sei que a amo, eu sinto isso, sinto a vontade de protegê-la, de ser os seus

olhos, mas não vejo caminhos que me façam chegar ao meu objetivo.

— Ah! O primeiro amor é cheio de tantas ansiedades e intensidades —

Juliana suspirou apaixonada, nostálgica —, essa é a beleza da vida. Não tenha

pressa, meu filho, no tempo certo o que tem que acontecer acontece, a nossa

parte é lutar para que as coisas aconteçam. E se isso for animá-lo saiba que ela

também gosta de você, talvez esteja confusa pelas muitas dúvidas que cercam

sua mente, mas seu sei que seu coração balança com a sua companhia.

O garoto deu um sorriso de entusiasmo, ao se olhar no retrovisor percebeu

algo diferente em seu rosto, algo que surgiu no simples ato de pensar naquela

que aos seus olhos era a mais perfeita das garotas.

Desde que chegara em casa e se trocara, Gabriela optou pelo silêncio do

seu quarto, deitou-se na cama enquanto pensava em tudo o que acontecera,

chegou a se culpar por ter confiado em alguém que não deveria, mas como seus

pais diziam que faz o bem não tem o que perder, só perdem aqueles que não

sabem aproveitar a nossa sinceridade e bondade.

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Mas algo ainda mais importante sondava a sua mente, algo que a fazia

sentir as pernas bambearem e uma ansiedade pulsar em seu peito.

“Está tudo bem, meu amor”.

Seria apenas o jeito carinhoso de Gustavo para tratá-la ou será que o

garoto sentia o mesmo que ela por ele? Sim, ela gostava do amigo, mas não de

um modo simples como a maioria das pessoas que se simpatizam umas pelas

outras, era de uma maneira mais complicada, ela parecia gostar de alma, em

outras palavras, ela o amava, sua presença a deixava tranquila, ela desejava por

mais daquele garoto. As palavras que ouvira “... meu amor”, balançaram o seu

ser.

— Quer conversar? — Laura sabia o que a filha tinha passado, já

imaginava que fosse recorrer à solidão.

— Quero sim — a garota logo se sentou na cama, indicando com a mão

para que sua mãe fizesse o mesmo —. Preciso muito do seu conselho.

— Pode falar, minha querida, sempre desejarei o melhor para a sua vida.

— Eu estou apaixonada — uma lágrima discreta rolou pelo delicado rosto.

Era um misto de sensações, medo e coragem.

— Que lindo... — a mulher retirou a lágrima do rosto daquela que tanto

amava, daquela pela qual daria sua própria vida se preciso fosse —. Não

precisa se afligir por isso, como eu disse antes, é natural.

— Eu gosto do Gustavo, mas não deveria... Além de nem ao menos saber

como declarar os meus sentimentos, eu deveria entender que sou uma

defeituosa, talvez seja um erro.

— Não repita isso, você não é uma defeituosa, apenas é testada pela vida

de uma forma mais severa, o que não implica em condená-la a se privar do

amor, dos seus nobres sonhos. Quando o amor é verdadeiro as diferenças não

importam.

— Mas e seu estiver me iludindo? E se meu sentimento não for recíproco?

— Você só vai saber tentando... E eu sei que ele é apaixonado por você,

que sente algo, deixe o tempo se encarregar de uni-los.

O garoto que tanta admirava apaixonado por si? Aquela ideia fez o rosto

da jovem adolescente irradiar com o sorriso apaixonado, o sorriso do amor.

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Desde que conversara com Gustavo, Isaque esteve mais calmo, mas ainda

assim as incertezas quanto ao futuro o intimidavam, perturbavam a sua mente,

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dificultavam o nascer da esperança. Ele ainda estava internado, precisava ficar

em observação, por certo teria alta no dia seguinte, até lá continuaria se

afogando no medo que apertava a sua alma, se não fosse Ana visitá-lo.

— Posso lhe fazer companhia? — a mulher pediu.

— Claro — sentou-se —. Meu pai já foi?

— Sim, tem conferência essa noite.

Não querendo pressionar o garoto Ana evitou as perguntas, sentou-se na

poltrona ao lado de Isaque e colocou sua atenção no filme que passava na

televisão. O rapaz, no entanto, sentia-se culpado pela forma como a tratou,

poderia ter sido um pouco mais maleável, atencioso, mas não o foi, o

importante é que agora poderia ter voltado atrás.

— Mãe, eu preciso que me desculpe por esses últimos dias, eu não agi

certo.

— Não precisa se sentir culpado por nada — ela se espantou com o pedido

daquele que cuidou com tanto carinho —. No fundo eu entendo o que está

passando, sei que é tudo um tanto assustador, eu entendo a sua reação.

— A verdade é que não consigo entender que possa sair dessa — o garoto

deu início ao desabafo —, nem correr eu consegui, tenho medo de que viva o

resto dos meus dias limitado.

— Eu quero que você entenda uma coisa — Ana se levantou

aproximando-se do filho e lhe acariciando como sempre fazia —, os limites

serão momentâneos, não duradouros. Se acreditar e seguir o tratamento em

pouco tempo a sua vida voltará ao normal.

— As coisas vão mudar... Meu cabelo vai cair, eu vou ficar fraco, não serei

mais o mesmo.

— Por pouco tempo, meu querido — a mulher abraçou o desconsolado

adolescente, sentindo suas lágrimas caindo sobre a camiseta que vestia. Era

doloroso, mas ela precisava ser forte por ele —. E estarei ao seu lado em cada

situação, a cada etapa... Estaremos juntos como sempre estivemos.

Isaque apertou o abraço que o fazia se sentir seguro. Restava-lhe apenas

arregaçar as mangas e acreditar que tudo daria certo, que as coisas ficariam

bem.

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Um novo dia começou. Uma iluminada sexta-feira.

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Ao chegar ao colégio e adentrar a sala de aula Júlia foi ao encontro de

Gabriela antes de se juntar com suas amigas. Beijando a garota no rosto como se

fossem amigas de longa data declarou:

— Adorei o nosso passeio, precisamos repetir a dose! — existia deboche

em suas palavras.

Gabriela não soube como reagir, ficou imóvel, mas tinha alguém que

falasse por ela.

— Falsa — Gustavo não se intimidou, sentado atrás da menina que

gostava enfrentou aquela que tinha por rival, aquela da qual queria distância.

— Oi? — a loira dos olhos verdes não entendeu o ataque.

— Falsa — o garoto repetiu, dessa vez mais nitidamente —. Acha legal

convidar os outros para sair e deixá-los sozinhos em meio uma tempestade?

Agora sei o quão desprezível é.

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Capítulo 11

Júlia encarava Gustavo como se não soubesse o que dizer, de fato não

sabia como se defender perante uma atitude injustificável. Ela conhecia a

gravidade do problema em que se metera, o que não imaginava era que as

coisas cairiam sobre si.

— Não foi bem assim que aconteceu.

— Ah! Não? — o garoto estava sem paciência para mentiras ou desculpas

infundáveis.

— Não tenho culpa de ter acontecido um imprevisto. Eu não esperava

que... — foi interrompida.

— Chega! — o futuro pediatra não admitia que maltratassem aqueles com

os quais se importava, era como se o fizessem diretamente a ele — Eu sei que é

mentira, sei que não houve imprevisto algum, sei que inventou esse pretexto

para colocar em prática o seu plano nojento, o que não entendo é o porquê

dessa implicância.

— Talvez porque nós formemos um casal muito melhor — ela não se

importou com a presença de Gabriela ao dar sua resposta, seus olhos eram fixos

em seu ouvinte —. Será que não percebe que sou eu a garota perfeita para você?

Faz ideia do quão comentado seria o nosso envolvimento?

— Quer dizer que para você não importa o amor, a reciprocidade dos bons

sentimentos, a cumplicidade entre os amantes; para você o que importa são os

comentários, é o que vão dizer, o que vão achar, para você o importante é

chamar a atenção — Gustavo sorriu indiferente —. Mas para mim o que

realmente importa é a paz que um relacionamento pode trazer ao coração —

colocou as mãos nos ombros da amiga —. Além disso, somos apenas amigos.

— Eu sei, mas é só uma questão de... — e mais uma vez foi interrompida.

— Somos apenas amigos — o garoto não queria que uma opinião infeliz

afastasse de si a garota que realmente amava, embora ela não o soubesse —. E

se não for pedir muito quero que nos deixe em paz, esqueça que existimos, são

queremos a sua audiência. Eu não gosto de você — revelou indiscreto.

Acostumada em sempre ser paparicada, sempre estar rodeada por pessoas

que se interessavam por sua popularidade Júlia frustrou-se ao ouvir a última

frase. “Eu não gosto de você”. Calada, procurou o seu lugar.

— Não foi um pouco duro? — até então quieta Gabriela indagou, não

queria que o amigo entrasse em discussões por sua causa.

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— Nem um pouco. Ela mereceu.

A primeira aula daquele dia era da professora Luciana, de Arte, que havia

preparado o primeiro ensaio com foco na apresentação de dança que

aconteceria dentro de poucos meses. Reunindo toda a turma no pátio do

Colégio Inova a professora encorajou os seus alunos.

— Não quero tímidos envergonhados se escondendo, quero que todos

participem — embora suas palavras fosse um tanto duras, seu modo de falar as

suavizava —. Não será problema algum não saber dançar, o problema é não

querer aprender. Darei play em uma melodia romântica, mais lenta e branda,

formem as duplas e dancem descaradamente, estarei atenta a cada um,

ajudando-os nos passos.

Gustavo parecia a animação em pessoa, deixava claro o quão ansioso

estava por aquele momento. Tanto entusiasmo possuía uma explicação, sua

parceira era a amável Gabriela, que por sua vez não estava nem um pouco

animada.

— Prefiro não participar — a garota colocou para fora sua decisão —. Não

é nem um pouco lógico alguém como eu participar de algo assim. Meninas não

faltam nesse lugar, escolha qualquer uma, mas me desculpe...

— Nós já conversamos sobre isso, pensei que estivesse tudo acertado — o

garoto protestou abatido.

— Não posso ser tão ridícula a esse ponto.

— Enfrentar os seus próprios limites não lhe atribui a qualidade de

ridícula, muito pelo contrário, prova o quanto é destemida.

— Entenda, não é uma boa ideia — ela parecia irredutível —. Será uma

desengonçada entre tantos aprumados. Não é justo com você ter uma parceira

que pisará no seu pé a cada passo.

— Mas e se eu disser que tudo o que mais quero é dançar com você? — o

futuro pediatra uniu as mãos entrelaçando os dedos —. Amigos de verdade se

metem em confusões, em aventuras, sem se preocuparem com a vergonha, a

única coisa que lhes importa é a alegria de estarem fazendo maluquices com

aqueles que gostam. É minha amiga?

— Mas é claro.

— Então dance comigo.

Alguém insistindo em dançar na sua companhia. Gabriela se sentiu lisonjeada

pelo quanto fora querida, levantou-se do banco sendo imitada por Gustavo, que

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possuía um rosto admirado. Desenhando o sorriso encantador que apenas ela

sabia dar indagou o nobre cavalheiro:

— Aceita ser os meus olhos?

“Aceitaria ser a sua vida”, o garoto pensou encarando aquele rosto tentador

ao toque, às carícias e à maior demonstração de afeto, ao beijo.

— Mas é claro — respondeu com um sorriso aberto, perceptível aos

ouvidos da menina na entonação da voz.

Para o centro do pátio se dirigiu o jovem casal, o apaixonado casal, que

ainda são soubera como se assumir.

A música começou.

O som que fazia os corpos se guiarem harmoniosamente soou delicado.

Como um verdadeiro cavalheiro Gustavo guiou as pequenas mãos de

Gabriela até seu pescoço, com aquela aproximação notou o quanto era maior

que a garota, o quanto se sentia na obrigação de protegê-la. Levando suas mãos

à cintura fina da adorável menina, aproximou-a um pouco mais de si, sentiu o

seu adocicado perfume das rosas, o seu bom e suave adocicado perfume das rosas.

Ao ter as mãos guiadas ao pescoço do rapaz Gabriela descobriu o quanto

ele era maior que ela, por certo seus olhos batiam em seu pescoço, ela sentiu o

queixo do garoto repousar sobre sua cabeça enquanto os corpos se

aproximavam e os movimentos da envolvente dança começaram. Pôde sentir o

batimento cardíaco do garoto além de perceber o seu penetrante perfume

amadeirado, o bom e marcante perfume amadeirado. Aquela aproximação

diferente era, para ela, algo indescritível, mas muito bom, irrecusável.

O casal estava em perfeita sincronia. Os olhos que o observavam se

enchiam de admiração. Um completava o outro.

Embora não tivesse a visão Gabriela ganhara um dom à altura: percepção.

Não precisou de muito tempo para se completar em Gustavo, logo entendeu os

passos da música e ficava cada vez mais independente do garoto. Sentindo-se

segura ela interrompeu os movimentos de repente, dirigindo os olhos confusos

aos do amigo especial abriu um sorriso destilando suas doces palavras:

— Preciso perguntar se acha que estou feliz?

— Não — ele não se conteve e com as costas das mãos acariciou o rosto

sereno —. Seus olhos revelam o tamanho da sua alegria.

— Não pode imaginar o quanto gosto de você — abraçou-o

desejosamente, como se aquele simples abraço fosse o que a mantinha viva —, o

quanto é especial para mim.

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Ele apenas retribuiu o abraço sentindo os olhos se encharcarem, aquelas

foram as melhores palavras que escutara em toda sua vida.

“Eu te amo”.

Ainda que em pensamento, Gustavo se declarara.

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Após a aula de dança Júlia se sentiu ainda mais solitária, observar

Gustavo e Gabriela juntos, trocando os mesmos passos, conversando

afetuosamente, afligiu o seu coração de uma forma estranha, diferente. Ela

percebeu que entre o casal existia algo maior que amizade, mais consistente,

mais especial, algo que ela percebeu que fazia falta em sua vida, algo que de

fato nunca vivera, nunca sentira e, que agora, desejava viver.

Decidiu ir embora para casa ao término das aulas sem a companhia de

suas amigas, queria ficar um pouco sozinha, talvez para entender os próprios

pensamentos, a confusão de sentimentos. Enquanto caminhava refletiu sobre o

quanto realmente era querida, o quanto realmente se importavam com ela,

notou que vivia ilusões, estavam ao seu lado por interesse, a viam como ela via

Gustavo, fonte de popularidade.

Ver a forma como aquele casal se combinava a fez sentir falta de ter

alguém especial em sua vida, alguém que a entendesse em seus anseios, alguém

que pudesse transformá-la para melhor, alguém que fizesse a diferença no

simples ato de existir.

Ao abrir a porta do apartamento no qual morava a garota foi surpreendida

pela visão de um homem que, descontroladamente, jogava objetos ao chão

enquanto murmurava palavrões consigo mesmo.

— Pai? — ela correu ao seu encontro, mas foi rudemente lançada contra o

chão. Levantando-se dolorida questionou: — O que está acontecendo?

— Deixe-me em paz! — o homem tinha uma garrafa em mãos com o

líquido que transtornava sua mente. Dando passos estonteados repetiu sua

ordem ainda mais alto: — Deixe-me em paz!

— Por que está assim? — assustada, derramava lágrimas, nunca vira o pai

naquelas condições — Por que fez isso?

— Eu quero ficar em paz! — lançou a garrafa na direção da filha que,

esperta, desviou a tempo —. Você só me dá desgosto. É igual a ingrata da sua

mãe, suga o máximo que pode e nunca se satisfaz! Eu odeio vocês! — declarou

subindo as escadas —. Odeio! — repetiu várias vezes, degrau após degrau.

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Júlia não sabia como reagir, não soube como organizar a mente

conturbada, sua solução foi se jogar sobre o chão enquanto as lágrimas pesadas

pingavam dolorosas, sentidas. O assunto mãe era pesado, a sua a abandonara

ainda pequena, fora embora sem dizer adeus e nunca mais voltou; tal fato fazia

a garota se sentir rejeitada. Ouvir que era odiada pelo próprio pai foi ainda pior,

certo era que eles não possuíam um relacionamento bom, mas as duras palavras

causaram uma dor intensa, como se o seu coração fosse esmagado.

— Eu quero morrer...

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Capítulo 12

Final de semana. Um momento para nos conectarmos com nós mesmos,

abrir um bom livro com uma envolvente história e mergulhar em cada palavra;

ligar a TV, escolher a um filme predileto e se entregar a cada emoção; colocar os

fones de ouvido, abrir a playlist de músicas favoritas e meditar em cada

melodia. Também é um momento para que aqueles que se gostam de alguma

forma estejam juntos, aqueles que se amam conversarem apaixonados; um

momento para nos dedicarmos a nós e àqueles que se importam conosco.

Gustavo sempre combinava alguma coisa com Isaque para os fins de

semana, ora aproveitar os jogos de videogame outrora fazer uso da quadra

poliesportiva da cidade, eles sempre estiveram juntos. Porém, como o amigo

ainda internado em observação, o futuro pediatra recorreu a outra companhia

não mais importante, mas também não menos: convidou Gabriela para que

fossem ao Parque da Cidade, o mesmo onde a garota viveu uma triste

experiência, mas que dessa vez prometia ser incrível, ele garantiu.

Quando recebeu o convite Gabriela sentiu um frio na barriga, a ideia de

passar algumas horas ao lado do garoto provocava certa ansiedade em seu

peito, não era uma ansiedade dolorosa, aquela que sufoca, era uma ansiedade

suportável, a do amor.

Ao ver a garota dentro do vestido comprido e florido Gustavo se agraciou

ainda mais, ao se aproximar e sentir o mesmo perfume adocicado das rosas que

ela sempre usava sentiu o coração acelerar. Se não fosse por aquela “timidez

idiota”, segundo suas próprias palavras, ele poderia beijá-la, dizer como se

sentira ao vê-la tão bonita, declarar que ela era a mais bela namorada, mas o

que existia era uma simples amizade, nada além disso, suas palavras

precisavam ser mais brandas.

— Você está linda.

O perfume amadeirado de sempre, o perfume que ela mais amava. O

simples ato de sentir aquele cheiro já provocava diferentes sensações em

Gabriela, que desejava senti-lo de uma maneira um pouco mais intensa, um

pouco mais próxima. Se não fosse o medo em afastar uma amizade tão graciosa

que vinha se solidificando ela poderia declarar que ele era o namorado mais

cheiroso e, por que não, mais galanteador. Ouvir um elogio daquela voz suave e

ligeiramente arrastada balançou não apenas o coração da garota, como também

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a sua alma, que se pudesse abandonaria aquele corpo e unir-se-ia àquela que a

completava.

— São seus olhos — respondeu tímida, a timidez que encantava o

Romântico Anônimo.

— Vamos? — o garoto a pegou pela mão ajudando-a a descer os degraus

da escada logo a frente a porta de sua casa e a guiando até o carro.

Os cabelos loiros de Gabriela pareciam mais lisos e brilhosos que o de

costume, se não fosse a voz do pai da garota soar Gustavo continuaria a encará-

la por longos minutos.

— Cuide bem dela!

— Não se preocupe — rapidamente virou os olhos ao homem sério.

— Aproveitem — Laura, mais descontraída, aconselhou aos jovens, sabia

que aquele passeio era muito importante à filha.

— Partiu? — a mãe de Gustavo deu a partida no carro —. Vocês têm

muito que aproveitar hoje!

E o sábado apenas começava.

Depois do amigo muito insistir a garota concordou em deixar a bengala no

carro, ela precisava confiar nele, precisava de fato se entregar ao que desejava.

— Sinta o perfume das flores — na entrada do parque, tendo em mãos

uma cesta de passeio e vendo o carro da mãe se afastar, o futuro pediatra

sugeriu —, aposto que na primeira vez não a deixaram apreciar a beleza desse

lugar, mas eu prometo que hoje tudo será diferente.

Atendendo ao pedido do garoto Gabriela inspirou o ar ao seu redor e teve

que confessar o quanto era bom, seu aguçado olfato percebeu a existência de

jasmins, rosas, margaridas e violetas, além da mistura de tantos outros

perfumes que ela não soube identificar.

— Venha – Gustavo uniu as mãos, o toque, como de praxe, liberou alguma

energia entre os adolescentes, uma energia descomunal, a energia do amor

juvenil —. Você precisa conhecer o lago de águas cristalinas.

O lago em questão era a prova viva do quão bem administrado era aquele

parque, a água límpida que exalava apenas o suave cheiro dos peixes exóticos

que ali nadavam encantava os olhos de quem a visse.

“De quem a visse...”

O garoto se recordou da limitação da amiga, mas ele já tinha a solução.

— Sente-se — ajudou-a prestativo —. Importa-se de molhar os pés?

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Perceber o esforço do bom amigo para que ela pudesse aproveitar ao

máximo aquele dia provocou um sorriso no rosto angelical.

— Claro que não.

O sorriso que enfeitiçava o apaixonado adolescente.

A água era reconfortante ao toque, agradável era senti-la. Gabriela

também notou o passear dos belos peixes por entre os seus pés, as cócegas

causadas a fizeram abrir uma gargalhada gostosa, o som enfeitiçou Gustavo

que se esqueceu do resto, a observou com maior atenção, descobriu as singelas

covinhas que se formavam nas bochechas da amada menina, “por que tão

linda?”.

— Olha a selfie! — lembrou-se de registrar o momento, o qual ele precisava

guardar para sempre.

Muitas eram as opções para o lazer no Parque da Cidade da Paz e o

próximo escolhido por Gustavo foi o espaço com diversos brinquedos dignos

de um parque de diversões.

Conforme se aproximavam Gabriela pôde ouvir o entusiasmo das crianças

que corriam de um lado para o outro, riam alto e felizes, aproveitavam a

disposição infantil.

— Agora vamos balançar — o garoto anunciou entusiasmado.

— Balançar? — ela se preocupou — É perigoso... Pelo menos para mim.

— Não vejo problema algum — e novamente as mãos se apertaram —, eu

estou com você.

“Sim, você está comigo”.

A garota topou enfrentar mais aquele medo. Na verdade sempre tivera

vontade de ir a um parque como aquele, divertir-se nos brinquedos como a

maioria das pessoas, no entanto sempre se achou incapaz, sempre pensou que

estaria pagando mico por suas limitações. Mas naquele dia foi diferente, a

motivação surgiu de um alguém especial, de um alguém por quem seu coração

acelerava.

Ainda insegura Gabriela se sentou no balanço prendendo firme as mãos

nas correntes, seu rosto deixava claro a apreensão que aquele simples

divertimento lhe causava.

– Se não quiser eu entendo, não precisa se forçar a nada — Gustavo disse

compreensivo.

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— Se não for agora nunca será — ela respondeu —. Eu confio em você e

quero passar por cima dos meus medos.

O garoto não declarou, mas é claro que aquilo o fez se sentir importante.

Colocando-se atrás da garota o futuro pediatra começou a empurrá-la com

delicadeza, queria que ela relaxasse, se soltasse da tensão, aproveitasse de

verdade cada minuto.

Conforme ia para frente e voltava para trás a jovem adolescente pôde

desfrutar do vento que os movimentos causavam, sentiu seus cabelos

balançarem livremente, relaxou um pouco as mãos, descansou o corpo,

precisava aproveitar aquela novidade.

— Já perdi o medo! — riu como uma criança animada.

Gustavo entendeu o recado, colocou mais animação naquele balanço

pedindo a alguém que filmasse tudo com o seu celular. Gabriela já estava

entregue a mais aquela diversão, as gargalhadas pelo vai e vem que provocava

um “gelinho” em sua barriga eram frequentes, pelo calor das emoções declarou

o que apenas seu coração sabia:

— Eu te amo! — ela nem percebeu.

Mas ele sim.

As palavras soaram como o tocar de uma harmoniosa orquestra, como o

cantar de belos pássaros, como o passear da suave brisa pelas copas das

árvores. Os ouvidos do garoto agradeceram por aquilo.

“Mas ela pode estar dizendo isso como amiga”, sua consciência alertou

fazendo-o parar de criar expectativas que não passassem de sonhos, de ilusões.

Conforme caminhavam pelo parque de mãos dadas dando gargalhadas

alegres os jovens amigos passavam aos olhos que os observavam a ideia de que

era um casal de namorados, mas não um simples casal, um belo casal, um casal

completo no qual um era a peça integrante do outro, no qual um existia pelo

outro. De fato era essa a verdade, mas eles ainda não sabiam.

Gustavo avistou uma árvore grande que gerava uma sombra

aconchegante, ao seu redor flores tornavam o ambiente anda melhor, elas

combinavam com o vestido de Gabriela, era o local perfeito para mais um

registro.

— Fique aqui — pediu —, dê o seu melhor sorriso, eu preciso eternizar

essa imagem.

E assim a garota o fez.

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Pela tela do celular ele admirava uma garota linda, perfeita, que pela cor

dos olhos lembrava a imensidão do céu e o aconchego do mar.

Mas aquele sorriso...

Que sorriso era aquele?

Um sorriso de anjo...

A imagem estava eternizada no papel de parede do celular do Romântico

Anônimo.

— Tire comigo — a doce e tranquila voz soou fazendo o pedido ser

irrecusável.

— Claro.

Gustavo, ainda que receosamente, envolveu o pescoço de Gabriela com o

braço direito.

Deu o clique.

Uma foto ainda mais bela.

A garota o beijara no rosto.

— Você é um anjo.

Gustavo precisava beijá-la depois de um elogio tão único, especial...

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Capítulo 13

Mas não o fez.

Era o medo. O velho e ruim medo, aquele que assustava pela ideia de

afastar uma amizade tão boa quanto aquela. Talvez seja esse um dos tantos

dilemas da adolescência: medo em se arriscar, mesmo que seja por uma boa

causa, mesmo que seja para ser feliz.

— Por que diz isso? — seu desejo era em ouvi-la falar.

— Porque é a verdade — embora não enxergasse Gabriela sabia

exatamente para onde guiar seus olhos, sempre encarava os de Gustavo —. Eu

não sabia que se mudar para cá seria tão bom assim, eu não imaginava que

fosse encontrar um amigo tão especial quanto você.

— Isso quer dizer que você gosta de ser minha amiga — o garoto a

envolveu no abraço enquanto caminhavam pelo corredor de flores que tornava

o ambiente naquele parque ainda mais agradável, ainda mais aconchegante,

ainda mais romântico.

— Eu não gosto — os passos foram interrompidos abruptamente —. Eu

adoro! — um abraço entusiasmado, típico entre bons e velhos amigos, envolveu

aquele casal que se amava, mas que por medo não assumia de uma vez.

Enquanto Gabriela aguardava, Gustavo estendia uma toalha sobre o chão

embaixo de uma tantas árvores que garantiam sombras refrescantes que

mesclavam o ápice do verão no mês de fevereiro. Cuidadoso, o garoto fez

questão de enfileirar os potes mostrando seu capricho. Naquele lanche

preparado pelo próprio adolescente apaixonado não faltavam saborosas

guloseimas, tudo havia sido feito pensado no rosto angelical.

Ajudando a garota a se sentar o futuro pediatra anunciou o cardápio:

— Geleia de morango para passar nas torradas, doce de leite para

acompanhar os pães de queijo, além de pãezinhos com queijo e presunto. Para

beber temos suco natural de framboesa. Pode escolher o que quiser.

— Uau! — a menina se encantou —. Por que foi se ocupar desse jeito?

— Não foi ocupação alguma — ele se sentou ao lado daquela que lhe

despertava diferentes sensações —. Nunca será incômodo fazer algo pensando

em você, querendo agradá-la.

As bochechas de Gabriela se avermelharam, percebendo aquilo a garota

abriu um sorrido tímido e novamente prendeu a atenção do seu admirador

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secreto. Gustavo não se cansava em observar os compridos fios longos da

garota que caíam sobre as suas costas, para ele os olhos azuis proporcionavam

uma paisagem única ainda mais pelo brilho intenso que deles irradiava, as

covinhas infantis que se exibiam a cada sorriso o derretia de amores e de novo

surgia a indagação: “Por que tão linda?”

— Bom, vou querer para começar a torrada com geleia — tirou o garoto de

seu transe —. Ajuda-me a passar?

— C-claro — ele não esperava pela sugestão.

As mãos maiores envolveram as delicadas com ternura, eram quentes,

macias ao toque. As pequeninas mãos se estremeciam com as que as encobriam

sentindo a firmeza das mesmas e o calor agradável que delas emanava.

Gustavo guiou a garota no deslize da faca pela torrada, de todos os

momentos aquele estava sendo o melhor. Gabriela sentiu o peito acelerar com

aquele envolvimento um tanto mais intenso, a cada segundo daquele sábado

tão especial aumentava sua certeza: estava apaixonada.

Levando a crocante torrada à boca a jovem adolescente não pôde evitar

que seus lábios se lambuzassem pela geleia, um “bigode”rosa se formou logo

abaixo o seu nariz, o garoto não pôde conter o riso.

— É um bobo mesmo — ela já se acostumava com as zombarias, aliás,

gostava daquele jeito do amigo, na verdade era bom ouvir o som das suas

gargalhadas —. Será que lorde Gustavo pode me ajudar a limpar essa sujeira?

— Claro, duquesa Gabriela, mas antes... — ouviu-se o clique de uma foto

—. Agora sim.

Ela revirou os olhos.

O futuro pediatra pegou o guardanapo. Estar tão próximo àquela boca

mais uma vez era difícil ao rapaz, que desejava ainda mais selar os lábios

avermelhados.

— Eu quero conhecê-lo — a afirmação repentina pegou o garoto de

surpresa.

— O que quer dizer?

— Ver o seu rosto. Deixa?

— Claro — não sabia exatamente como seria aquilo, mas ficou tentado a

descobrir.

Não poderia ser de um jeito melhor.

Tendo a permissão desejada Gabriela levou as suaves mãos ao rosto de

Gustavo, era esse o seu modo de ver, descobrir formatos, descobrir o mundo.

Começando pelo queixo ela pôde sentir que s primeiros fios da barba nasciam,

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eram delicados, quase imperceptíveis, mas ela os notou. Sem malícia alguma

passeou pelos lábios, percebeu que eram finos e quentes. Levou as mãos ao

nariz, era pequeno e, segundo suas próprias palavras, fofinho. Conheceu as

bochechas suaves, lisas ao toque, encontrou as covinhas que se formavam, não

pôde deixar de sorrir ao notar que possuíam algo em comum. Subiu para a

testa, percebeu a franja que a escondia, sentiu os cabelos lisos por entre os

dedos, conheceu o garoto de que gostava.

Aquilo era diferente, proporcionava uma sensação única, nunca sentida e

que, talvez, nunca fosse sentir. Conforme os toques começaram Gustavo fechou

os olhos, concentrou-se em sentir os delicados dedos que passeavam pelo seu

rosto, mergulhou nas emoções que palpitavam o seu peito, o desejo de viver

aquilo para sempre ou pelo menos pelo resto dos seus dias nascera em seu

coração, o misto de sentimentos e emoções não tomavam conta apenas da sua

carne, envolviam também a sua alma.

Terminada a descoberta a garota encarou o vazio em silêncio, em seu rosto

um ligeiro sorriso quebrava a serenidade, ela parecia pensar. De fato estava,

analisava o que sentira, o que seus dedos singelos viram por ela, concluiu com o

brilho no olhar:

— Você é lindo! Não adianta perguntar como isso funciona, não

entenderia, apenas se convença de que é lindo!

Ela não se acanhou em declarar.

Ele estava mais apaixonado.

— Então é isso — em frente à casa da amiga o Romântico Anônimo deu

início à despedida —. Espero que tenha gostado.

— Gostado? — a garota o abraçou mais uma vez, no entanto um pouco

mais forte, estava claro que queria continuar daquele jeito por muito tempo

ainda —. Eu amei. Obrigado por tudo, obrigado por existir!

O perfume adocicado das rosas pegou na roupa de Gustavo que pelo

retrovisor do carro via a encantadora adolescente diminuir aos poucos.

O penetrante perfume amadeirado fez companhia a jovem adolescente,

que mal poderia esperar pela hora em que estaria novamente ao lado de tão

nobre rapaz.

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Algumas pessoas alimentam a maldade em seus próprios corações pelo

simples prazer que um ato tão desprezível pode causar, sem motivo algum se

embebedam pela ruindade, gostam de possuir uma alma sombria. Outras não.

Alguns são injustiçados pela vida, são colocados literalmente à prova de

fogo sem auxílio algum, sem apoio aparente. Sofrem decepções, são excluídos,

deixados de escanteio, tratados como se não significassem coisa alguma.

Júlia não era uma má pessoa, apenas se escondia atrás de uma armadura

que não a fizesse sofrer, que a poupasse dos ataques de um mundo tão

desordenado, tão catastrófico, tão cruel. Preferia fazer sofrer, preferia iludir a

ser iludida, sempre pensavas no pior, sempre fazia o pior. Ser abandonada pela

mãe a afligia intensamente, embora ela nunca o declarasse; seu conturbado

relacionamento com o pai a fazia acreditar que todos os relacionamentos e

envolvimentos seguiriam o mesmo padrão, ela não podia se arriscar sendo uma

pessoa de bons amigos, tinha medo de se machucar ainda mais, embora sua

autodefesa já a machucasse sem piedade alguma.

Encontrar o pai bêbado e ainda escutar que era odiada pelo mesmo a

jogou em uma tristeza profunda, em uma escuridão sem fim, em uma solidão

angustiante. Ela não tinha em quem se apoiar, com quem desabafar, descobriu

que estava sozinha em um mundo lotado, olhou ao seu redor e não encontrou

um ombro amigo, um abraço acolhedor.

Desde sexta-feira andava pelas ruas da Cidade da Paz sem rumo, sem

direção, sem saber o que fazer de sua vida, sem saber qual caminho escolher:

persistência ou desistência? Uma coisa ela tinha decidido: para casa não

voltaria, não daria a quem a odiava o desprazer de sua companhia.

Já era sábado. A noite encobria o dia. Júlia se viu em um bairro afastado

da iluminada cidade, um bairro no qual a violência ditava as regras, um bairro

que era contrário ao resto do município tão famoso por sua tranquilidade.

A garota tinha o,s olhos inchados, pesadas foram as suas lágrimas, árduo

era o seu caminhar. Com a mente cansada aceitou se juntar em um grupo de

jovens desorientados, que encontravam na bebida forte e na mistura de

entorpecentes a falsa sensação de consolo, de refúgio. O efeito extasiante era

passageiro, ao seu término voltavam as assolações, ainda mais fortes.

Mas Júlia se entregou àquilo. Não se preocupou com o depois, não se

importou se iria cair em um caminho sem volta, precisava desfazer tudo que a

sufocava.

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Deu risadas fora de si, contou piadas sujas, não se importou com a malícia

dos rapazes à sua volta, antes se mostrou cordial

à falta de respeito.

Toque de recolher.

Uma correria tomou conta do lugar, as luzes dos barracões e de casas mal

terminadas se apagavam. Júlia não soube o que fazer, não sabia para onde ir, o

mundo a sua volta girava distante, o som de muitas vozes eram vagas, apenas

conseguiu se esconder atrás de alguns arbustos. Embora a visão fosse turva

percebeu um grupo de homens mal encarados passearem pelo local, pareciam

procurar por algo, na verdade procuravam a algum desobediente para que

dessem sua lição.

Júlia não era inocente. O resto de sobriedade que ainda restava em sua

mente a fez sair dali, com as pernas bambas procurou refúgio, entrou em uma

das mais movimentadas rodovias. Seus pés se arrastavam pelo acostamento, os

faróis dos carros agrediam sua visão, as fortes buzinas nem ao menos a

assustavam.

Um carro parou.

Uma mulher a acolheu.

— Venha comigo.

Seus olhos se escureceram.

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Capítulo 14

A cabeça doía, dava a sensação de ter saído do corpo, a tontura ainda era

persistente. A visão embaçada se sentia incomodada pela claridade que a janela

de vidro deixava passar, embora confortável aquele não era o seu sofá, Júlia se

viu em um lugar desconhecido, não estava em sua casa.

Sentando-se rapidamente acabou arrependida, a tontura apresentou um

pico mais alto. Coçando os olhos a garota observou ao seu redor, tentava se

lembrar de como havia chegado ali, mas sua memória apenas registrara o

momento no qual ela entrou no bairro afastado, dali em diante tudo parecia ter

sido apagado.

— Bom dia! Uma mulher de cabelos ruivos, que possuía olhos verdes

atrás das lentes dos estilosos óculos, aproximou-se de sua hóspede, exibindo os

dentes alinhados em um sorriso singelo —. Sente-se bem?

— Quem é você? O que estou fazendo aqui? — pela primeira vez em sua

vida sentiu medo do desconhecido.

— Fique tranquila, você está segura aqui — a mulher se aproximou um

pouco mais —. Meu nome é Fátima, sou nova na Cidade da Paz. Ontem a

encontrei desnorteada pela estrada, pensei que precisasse de ajuda então a

trouxe para a minha casa.

Também pela primeira vez a garota se sentiu realmente segura.

— Venha comigo, não precisa se acanhar, somos apenas nós duas aqui —

a ruiva estendeu a mão —. Preparei o café da manhã.

Fátima era psicóloga. Há alguns anos ela abandonou a Cidade da Paz,

decidiu que construiria sua vida e lutaria por seus ideais em outro lugar, mas o

tempo se passou e uma saudade do lugar no qual crescera nasceu em seu peito.

Agora ela estava de volta, mas não era por simplesmente sentir saudade, existia

um motivo ainda maior, mais importante, um desafio a ser vencido.

A mesa estava farta. Nada que Júlia não houvesse experimentado, mas

havia ali algo diferente, algo que a garota sempre imaginou que um dia pudesse

ter: tudo já estava preparado e, o melhor, especialmente a ela. Mas por que

aquilo? Por que alguém que nem ao menos a conhecida a ajudaria? O que

estava por trás daquilo? As dúvidas e incertezas logo surgiram, a incômoda

desconfiança também marcou sua presença.

De longe, a mulher observava sua visita se servir, aparentava estar mesmo

com fome, por algum momento Fátima pensou em se juntar à garota, mas

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preferiu esperar, planejava ganhar sua confiança, ouvir o seu desabafo e assim

ajudá-la de uma maneira melhor.

— Por certo está se perguntando o porquê de tudo isso — finalmente a

ruiva se aproximou puxando uma cadeira e se sentando diante a solitária

adolescente —. Apenas gostei de você, senti a vontade de acolhê-la e, então, o

fiz.

“Gostei de você”. acostumada a ouvir que a odiavam Júlia se maravilhou

com a frase dita, mas precisava ser cautelosa, afinal de contas não conhecia

aquela mulher.

— Eu agradeço por tudo, mas preciso...

— Não vá embora — Fátima fez sua súplica colocando sua mão sobre a da

garota —. Quero dizer, não agora. Eu a levo de volta para casa, mas antes

queria conversar.

Um toque acolhedor. Foi essa a definição que Júlia encontrou para o toque

entre as mãos, sentiu-se confortável com aquilo, começou a ter segurança,

parecia que o destino lhe reservara um momento especial: alguém queria ouvi-

la e ter sua atenção.

— Tudo bem... Sobre o que quer falar? Precisa conhecer a cidade? —

puxou assunto.

— Na verdade já a conheço, eu queria falar sobre você.

— Sobre mim?

A mulher assentiu.

— O que estava fazendo ontem para ficar tão mal?

Não era uma pergunta do tipo qual o seu nome, era algo pessoal, que mexia

em seus sentimentos, que cutucaria uma ferida aberta. A garota nunca foi de

contar os seus problemas, dividir com alguém o peso das aflições, sempre

pensou ser capaz de viver sozinho, mas de uns tempos para cá se sentia cada

vez mais sufocada pela solidão do caminho que optou seguir, agora que teria a

chance de dividir com alguém o seu fardo faria uso da oportunidade.

— A cada dia que passa perco a vontade de viver, parece que o brilho da

vida simplesmente se ofusca e que nada mais possui sentido... Desde pequena

me olho para o lado e não enxergo um ombro amigo, um alguém que me

entenda do jeito que sou e que me ajude a criar esperanças quanto ao futuro. Saí

de casa sem rumo, pensei que aliviar a mente fosse a solução para tantos

obstáculos, mas agora que voltei à realidade parece que tudo é ainda pior...

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Atenta a cada palavra a psicóloga se compadeceu por aquela jovem

menina que embora nova na idade parecia possuir uma velha alma já cansada

de tanto sofrimento.

— Não é fugindo dos problemas que os resolvemos — Fátima deu início

ao seu discurso —. Apenas criamos novos. Quando mais jovem eu tive a mesma

ideia que a sua, pensei que correndo dos desafios eu estaria livre deles, de fato

fiquei, mas por pouco tempo, eles voltaram ainda mais fortes e até hoje preciso

lidar com as dificuldades, os medos e anseios.

— Bater de frente com os problemas quanto se está sozinho não é tão fácil

quanto parece — a loira prosseguiu no desabafo —. Saber que foi rejeitado pela

mãe e é odiado pelo pai é uma dor quase impossível de se enfrentar... Vivo com

essa dor em meu peito, com essa angústia infindável: por que me rejeitaram e

por que me odeiam?

A mulher se espantou com a descoberta, sentiu um nó se formar em sua

garganta, não esperava ouvir uma história tão triste e marcante, algo que nunca

ouvira nem mesmo de seus pacientes, mas sabia que era real.

— Eu sinto muito — Fátima abraçou a garota como se fosse uma amiga de

muitos anos —. Eu faço ideia do quão difícil pode ter sido a sua vida até aqui,

mas se permitir eu trilharei o caminho da vida ao seu lado, estarei com você em

tudo o que precisar... Os problemas existem para todos, todos são desafiados

pela vida e sozinho ninguém consegue vencê-los, mas se dermos as mãos e

unirmos nossos sentimentos passamos por todos eles.

Enquanto era abraçada por aquela mulher que parecia ter caído do céu e

ouvia suas atenciosas palavras, Júlia fechou os olhos se concentrando na

sensação de proteção que estava desfrutando, aquilo era simplesmente

maravilhoso, um sonho de vida, o sonho da garota.

<<>>

Durante a manhã daquele domingo ensolarado Gustavo caminhou

sorridente até a casa do seu melhor amigo, ainda extasiado pelo sábado que

tivera não possuía motivos para amarrar a cara, aliás, desde que conhecera a

“mais bela das garotas”, segundo suas próprias palavras, ele nunca mais acordou

de mau humor, algo que fazia sua mãe chamar a garota de “santa Gabriela”.

— Lorde Gustavo — os dois irmãos se abraçaram —, que bons ventos o

trazem?

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— Preciso das palavras do meu conselheiro — o futuro pediatra se sentou

na cama confortável —, mas antes quero saber como ele passou esses últimos

dias, tirou uma folga no hospitale me deixou na mão.

— Ele precisava de descanso — Isaque decidiu se entregar á brincadeira,

não existia fórmula melhor do que o bom humor para passar por aquela

complicada situação —. Estava sobrecarregado pelos problemas do seu lorde e

resolveu se afastar.

— E diz isso na maior cara-de-pau? — Gustavo jogou um dos travesseiros

—. Ele quase morreu!

— Quase, mas não morreu — retrucou debochado —. Respondendo sua

pergunta passei bem — jogou-se na poltrona, esparramado —. Mas não via à

hora de sair daquele lugar.

— Eu imagino... — o assunto era delicado, Gustavo não sabia se podia

avançar ou não, tudo era ainda muito novo.

— Mas e você? Como tem passado sem mim? — Isaque indagou cheio de

ironia.

— Maravilhosamente bem — respondeu no mesmo tom.

— Lorde Gustavo, o senhor me feriu — colocou a mão sobre o peito como

se estivesse ofendido —. Acho que vou procurar outro reino que me valorize...

— E perder as minhas explicações de matemática? — arqueou a

sobrancelha — Sei...

— Pensando melhor vou me submeter ao seu descaso.

— Da próxima vez que se internar leve o celular — o pedido revelou que

Isaque fazia falta —. Saí com Gabriela – declarou tímido.

— Huuummm... Um encontro! — Isaque provocou.

— Eu fiquei mais apaixonado ainda — os olhos brilhavam —. Tive uma

vontade enorme em declarar tudo o que sentia, mas me faltou coragem.

— No seu caso nem digo mais nada — ligou o videogame enquanto

escolhia o jogo —, o tempo vai se encarregar de fazer todo o trabalho.

— Mandei que entregassem alguns presentes a ela — disse envergonhado.

— Esse é dos meus! — jogou o controle para o amigo — Agora se prepare

para ser massacrado, Romântico Anônimo — riu contido.

<<>>

Sombras eram as eternas companhias de Gabriela, que vivia em uma

escuridão infinita, sem um começo e muito menos sem um fim, mas isso não a

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privava de viver as sensações, desfrutar as emoções e mantê-las em sua

sensitiva memória, que trazia de volta à garota cada momento vivido.

Ela precisava confessar que Gustavo transformou a sua vida de uma

forma que ninguém conseguia fazer, aquela primeira semana na Cidade da Paz

fora a melhor de toda a sua vida e o garoto era o motivo.

Embora fosse domingo a garota recebeu uma entrega que atiçou a

curiosidade de seus pais. Passeando os dedos pelos presentes ela descobriu que

ganhara uma caixa de bombons em forma de coração, junto á caixa um buquê

de flores, que pelo cheiro adocicado que lembrava o seu perfume só podiam ser

rosas. Mas o melhor estava por vir.

— Filha, essa cartão veio junto — a mãe o entregou entusiasmada, parecia

ser ela a presenteada.

Eu precisava presenteá-la de alguma forma a fim de dizer

que penso em você a cada segundo. Depois de muito procurar

encontrei aquilo que representasse sua delicadeza, que lembrasse

sua doçura, que trouxesse à tona sua suavidade: as rosas... Por

sua causa olho para essas belas flores e me vem à mente o seu

rosto angelical.

Romântico Anônimo

Um sorriso apaixonado foi tirado de Gabriela.

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Capítulo 15

Uma nova semana se iniciava na Cidade da Paz, onde o dia amanhecia

com a sinfonia dos pássaros e o balançar da brisa sobre as muitas árvores

espalhadas pelo lugar; seus moradores tinham motivo para caminharem rumo

aos compromissos cantarolando canções tão tradicionais.

Júlia, porém, submersa naquele mundo que cercava sua mente, cheio,

cheio de sombras e incertezas, não conseguia ver alegria em começar um novo

dia, em alguns momentos a ideia de não existir a agradava, já estava cansada da

aproximação de terceiros cercada por interesse, estava cansada de fingimentos,

cansada de não ter pessoas sinceras em sua vida e, talvez o que mais a sufocava,

cansada de não encontrar respostas para os angustiantes porquês que apenas

cresciam em seu peito.

Mas a garota estava decidida a mudar. Precisava mudar. Após a conversa

com Flávia viu que fugir dos problemas não é uma atitude sensata, já que em

determinado ponto do caminho o reencontro é inevitável e eles estarão ainda

mais fortes. Ela planejava recomeçar suas atitudes, meditar nos erros e corrigi-

los, queria novos envolvimentos, relações diferentes, era o momento da

transformação.

Adentrando o Colégio Inova, Júlia se alimentava de coragem para começar

sua remissão com alguém que feriu gravemente, tinha noção de que poderia ser

interpretada mal, mas precisava tentar. Já na sala de aula avistou Isaque,

Gustavo e Gabriela conversando, o trio era bonito, deixava claro o

companheirismo existente, ela também queria provar daquilo.

— Bom dia – cumprimentou cordialmente.

O futuro pediatra não conseguia acreditar naquilo, já havia pedido à

colega de classe que se afastasse e não os importunasse mais, sua atitude em

cumprimentar soou como provocação, sua resposta foi o silêncio. Assim como o

amigo, Isaque se indignou, não cria que o cumprimento fosse um gesto sem

segundas intenções, também agiu como se nada houvesse acontecido.

Gabriela, no entanto, era diferente, em seu coração existia o dom do

perdão, ao longo de sua vida cheia de limitações ela aprendeu a relevar as

situações, sempre evitou guardar mágoas, sabia que o ressentimento é um

veneno para a alma. Receptiva a qualquer um que quisesse uma aproximação

sorriu alegre e respondeu:

— Bom dia!

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Júlia agora tinha certeza de que a aproximação seria um desafio e tanto,

mas se surpreendeu com aquela com quem agiu tão vergonhosamente. Dirigiu-

se ao seu lugar de costume, embora sua vontade fosse outra, porém seus passos

precisavam ser mais lentos.

— O que ela está querendo com isso? — Gustavo não se conteve em

declarar suas desconfianças.

— Talvez pense que já esquecemos tudo e que agora vamos passar uma

borracha sobre o passado — Isaque ironizou.

— Ou talvez precise de amigos de verdade — Gabriela não enxergava com

os olhos, mas sempre enxergou com o coração —. Vocês já imaginaram como

seriam suas vidas se não tivessem um ao outro?

Aos garotos aquela indagação soou como um sermão.

Durante o intervalo das aulas Gustavo foi até o seu armário pegar alguns

livros, o que ele não esperava é que receberia uma surpresa, talvez a melhor dos

últimos dias.

Legal, sincero, companheiro, bondoso, ótimo amigo, bonito,

cheiroso, charmoso, inteligente... São tantos os adjetivos que

podem lhe definir, mas um já pode dizer tudo: você é especial.

Adolescente Apaixonada

O rapaz só faltou dar pulos pelo corredor, já suspeitava de quem poderia

ser aquele bilhete. Dobrou-o com carinho e antes de guardá-lo no caderno

depositou um beijo no papel impresso, um beijo cheio de sentimento, um beijo

que ele desejava dar naquela que ali escrevera, que conquistara o seu coração.

<<>>

A aula terminou, mas a ideia de voltar para casa iniciava no coração de

Júlia uma angústia, ela não resistiu e desviou os passos para a casa de sua nova

amiga, precisava de mais conselhos, de novos desabafos.

— Que prazer! — Fátima recebeu a garota com um abraço afetuoso e logo

a levou para dentro de casa —. Nunca poderia imaginar que a veria tão logo.

— Espero não estar incomodando, mas eu precisava muito ouvir o que

tem a me dizer sobre algumas coisas.

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— Nunca será incômodo receber sua visita — a mulher, enquanto

arrumava a mesa para o almoço, ouvia com atenção aquela de que tanto

gostava —. E pode confiar em mim, tudo o que me disser ficará apenas entre

nós.

A de olhos verdes não podia explicar o porquê, mas a ruiva lhe trazia

sensação de segurança, de proteção, de paz. Se fosse difícil se abrir com as

outras pessoas aquela mulher parecia ter o dom de tornar tudo mais fácil, mais

simples, Júlia conseguia declarar os seus sentimentos sem receio algum.

— Eu já errei muito apesar da pouca idade, nunca me interessei pelas

pessoas, por aquilo que elas eram, mas sim por aquilo que elas poderiam me

proporcionar. Minhas amizades, se que é que posso considerá-las assim, são

regadas por interesse e não por cumplicidade, amor, e nesses últimos dias estou

vendo como isso me agride — seus olhos atentos sobre Fátima observavam

como a mulher exibia uma felicidade no rosto, nada parecia dar errado em sua

vida.

— Realmente, nenhum de nós consegue viver sozinho, sem ter em quem

se apoiar em um mundo tão estreito — a ruiva se sentou servindo a garota —.

Por que você não procura novas amizades? Mas dessa vez procurando a

essência humana, aquilo que elas podem lhe ofertar ao coração.

Agradecendo por ser servida Júlia respondeu:

— Na verdade meu desejo é esse e eu gostaria de me aproximar de um

grupo em especial, o qual tem motivo suficiente para me odiar, mas que eu

quero reverter isso, redimir-me pelo que fiz. Hoje os cumprimentei, mas fui

ignorada, apenas um alguém que deveria ansiar pelo meu distanciamento

respondeu com satisfação.

— Já tentou se desculpar?

— Desculpar-me? — aquilo não era uma atitude tão simples a ter.

— Sim, exercer o perdão — a mulher envolveu as mãos frias da garota,

precisava convencê-la de seus conselhos —. Se você errou da forma tão dura

como descreve deve pedir desculpar, mostrar o quão arrependida está, ter

sinceridade nas palavras e no olhar.

Júlia nunca pediu desculpa a ninguém, nunca se rebaixaria ao ponto de

provar que está arrependida, nunca concordaria de que suas ações foram

erradas, era isso o que as pessoas queriam ouvir, não era isso o que ela faria.

— O perdão não quer dizer humilhação, é um ato nobre capaz de ofuscar

todos os atos errôneos. Quem pede perdão mostra a pureza do espírito, revela

que está com o coração aberto a amar, a ser diferente — a psicóloga soube

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desvendar os olhos daquele que, atenta, a ouvia e, então, reforçou: — Pode ser

que para você pedir desculpa seja vergonhoso, voltar atrás seja covardia, mas se

está realmente disposta a ter uma vida diferente e não correr o risco de

envelhecer na solidão peça desculpas a quem for preciso, prove que mudou sua

visão, permita-se em ser feliz passando por cima do próprio orgulho.

Fátima tinha razão, a garota reconheceu isso e se quisesse de fato viver o

que aqueles que ela admirou viviam, teria que encobrir o seu ego e trilhar um

caminho diferente.

Júlia simplesmente se maravilhou com os dotes culinários daquela que

com tanto carinho a acolhera, há muito tempo não almoçava de forma tão

agradável, podendo conversar, contar sobre o seu dia, dividir segredos e

confissões. Ela via a mulher como uma mãe, uma mãe que nunca teve, mas que

seria capaz de renegar tudo o que tinha para viver uma história de mãe e filha.

Mas aquela tarde reservava uma surpresa: uma ligação nada agradável.

— Posso saber onde o desgosto está? — era o seu pai —. Não precisa

responder, já sei que está me desonrando com vagabundos! — ele não poupava

ofensas, isso parecia agradá-lo —. Quando chegar teremos uma conversa séria!

A loira não teve tempo para retrucar, mas já imaginava o que a

aguardava: gritaria, agressões, humilhações. O semblante até então alegre se

contraiu, era agora de preocupação, aflição.

— O que houve? — embora na ouvira, Fátima já desconfiava sobre o teor

da breve conversa.

— Preciso ir, meu pai já está nervoso.

— Eu a levo.

— Não é necessário — ela sabia que o pai ofenderia aquela mulher sem

dificuldade alguma e isso poderia afastá-las.

— Já decidi que a levarei, não adianta recusar.

Durante o caminho Júlia se preocupou ainda mais, sua imaginação já

criava cenas de tristeza, de dor, cenas que poderiam ficar no imaginário, mas

que já eram reais.

Além de levar a garota ao prédio, Fátima a acompanhou até o

apartamento, parecia prever o que aguardava a entristecida adolescente.

— Finalmente! – ao abrir a porta Rui não viu a presença da terapeuta, com

grosseria puxou a filha para dentro.

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— O que significa isso? — a psicóloga não assistira aquilo sem ter reação, a

mulher tranquila e serena dava lugar a uma mulher destemida e enérgica —.

Por acaso estamos lidando com algum marginal?!

— Quem é essa intrusa? – o de cabelos grisalhos se surpreendeu com

tamanha petulância de alguém que nem o conhecia.

— Não é nem uma intrusa, é minha amiga! — embora sofresse nas mãos

daquele homem Júlia não passava por nada calada, dizia o que vinha em sua

mente, enfrentava-o da forma como queria.

— Isso não me importa, apenas quero que ela saia da minha casa, preciso

ter uma conversa de pai para filha!

— Não confunda conversar com agredir — a mulher era firme em sua

postura –. Além do mais ela estava comigo se é essa sua preocupação.

— Não sabia que você gostava de se envolver com velhas — o homem se

dirigiu à garota em tom de sarcasmo —. O que ela está lhe dando? Por acaso

tem um cabaré e você vai jogar o meu nome de vez no lamaçal?

— Cala a boca! — Fátima não ouviria um insulto como aquele sem se

descontrolar; em uma atitude corajosa deixou a marca de sua mão no rosto de

um homem tão vil, o som do estalo denunciava a força de suas mãos e a

ardência que Rui sofria.

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Capítulo 16

Rui era um homem arrogante que forçava as coisas a saírem do seu jeito.

Seu modo descontrolado de agir já fora responsável pelo afastamento de muita

gente, inclusive o da sua filha. Em parte seu nervosismo se devia ao uso

constante de bebidas que o dono de uma rede de supermercados fazia, se os

seus negócios não estavam falidos os principais responsáveis eram aqueles que

por ele trabalhavam.

Levar um tapa na cara de uma mulher era muita humilhação para Rui,

algo que ele não engoliria tão simplesmente, é claro que daria o seu troco.

— Ordinária! — alçando a voz ao máximo o homem pegou Fátima pelos

braços arrastando-a para dentro com violência, seus olhos exibiam toda a sua

fúria — Quem pensa que é? Com quem pensa que está falando?! —

esbravejando ele chacoalhava a mulher que se assustava com tanta

agressividade.

— Pai! Chega! — Júlia não controlava as lágrimas de desespero que

rolavam pelo seu rosto, tentou afastar as duas pessoas, mas em vão, seu pai a

empurrou covardemente.

Embora fosse terapeuta, alguém visto como símbolo da paciência e

tranquilidade, Fátima sabia quando ser profissional e quando agir da maneira

que realmente era. Chutou o seu opressor no joelho, empurrou-o para trás com

raiva, livrou-se de um verdadeiro louco.

— COVARDE! — gritou — Como pode ser tão baixo? Como pode agir de

forma tão desprezível?!

Sentindo a cabeça latejar pela pancada que sofrera ao cair e o joelho clamar

por solução para a dor intensa, Rui se levantou cambaleante, também pelo

efeito do álcool, e continuou os seus insultos:

— Abusada! Acha mesmo que pode ditar o que devo ou não fazer? Eu sou

Rui Siqueira e Rui Siqueira não dá ouvido à mulheres tão insignificantes!

— Eu sei quem é você embora gostasse de não saber — a mulher ajeitou a

alça da bolsa no ombro e, aproximando-se do homem, concluiu: — Não quero

que encoste nem um dedo na garota, está me escutando? Ou eu mesma lhe dou

uma surra digna de Rui Siqueira!

— Vá embora e fique longe da minha filha ou então...

— Ou então vai me matar? — Fátima possuía um tom de zombaria —

Homens como você não me dão medo, me fazem rir! — seus pesados passos

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foram até a porta — Júlia, qualquer coisa me conte, não tenha medo de

covardes! — com força bateu a porta.

Visivelmente transtornado Rui puxou o cinto da calça, fitando a filha com

seu olhar cheio de ira deu início às agressões:

— Isso é por ter nascido e feito da minha vida um inferno! — a garota não

reagia, apenas recebia aquilo que sei pai lhe ofertava — Isso é por existir e me

fazer lembrar aquela desgraçada! Eu odeio você!

Livrando-se da surra Júlia correu ao próprio quarto, trancou a porta,

fechou as janelas, tirou do guarda-roupa algum tipo de bebida forte, destampou

a garrafa, tomou um gole sentindo a queimação, mas não hesitou em parar,

precisava se embriagar, precisava se livrar daquele pesadelo nem que fosse por

algumas horas, queria se desligar do mundo e de toda a sua calamidade.

Voltando para casa, dirigindo pelas ruas e avenidas da Cidade da Paz,

Fátima não pôde mais reter o choro, o triste e agonizante choro. Ela possuía um

carinho enorme por aquela garota, saber que ela estava nas mãos de um

desequilibrado angustiava a psicóloga, ela precisava agir, tinha que fazer

alguma coisa, mas ainda não era o momento certo. Uma coisa ela tinha

decidido: não ficaria longe daquela que amava.

<<>>

“Em tempos de guerra a dor, a aflição, a incerteza sobre o dia de amanhã, a falta de

fé e a desesperança são os sentimentos que imperam sobre os corações amedrontados, os

corações que se questionam se pulsarão por muito tempo ainda ou não.

Esses sentimentos não afligem apenas os soldados, aqueles que estão arriscando

suas próprias vidas para o bem de uma nação inteira, por um povo que nem ao menos os

conhece, como também afligem os entes queridos, os amigos e familiares, que não sabem

ao certo se tornarão a abraçar o guerreiro ou não.

Mas existe algo que sofre ainda mais: o amor, a paixão. Casais amantes de si

mesmos, que são separados por uma guerra, angustiam-se muito, afinal de contas um

encontrou no outro o alento para a sua alma, aquilo que os atraiu de uma maneira

diferente, intensa, não querem se separar, já não pode viver sem estarem juntos.

Daniela era uma jovem mulher que possuía grandes planos para o futuro, mas

esse futuro só aconteceria com a presença de Elias em sua vida, o soldado do Exército

Brasileiro, que fora convocado a guerrear durante a Segunda Guerra Mundial. Grávida

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de seu esposo, ela temia perdê-lo para a atrocidade humana, o simples ato de pensar

naquilo causava calafrios em seu corpo, a criança que crescia em seu ventre parecia

entender o sentimento e se manifestava agitado.

Conforme o tempo passava notícias de soldados mortos chegavam, felizmente o

nome do seu amado nunca esteve nas listas, mas isso não era o suficiente para que

Daniela se enchesse de paz, há meses não recebia cartas daquele que amava

incondicionalmente e isso a preocupava mais do que pensar na própria morte.

Em todas as datas marcadas para a volta dos soldados brasileiros a jovem marcou

presença na orla da praia de Salvador, seus olhos atentos e desconsolados procuravam

ansiosos pelo homem que fazia seu peito acelerar, mas ele nunca estava lá.

13 de agosto de 1946. Segundo boatos aquela era a última data de chegada dos

guerreiros da nação e, como de praxe, Daniela para lá se dirigiu, desta vez com um

garoto que beirava os dois anos de idade agarrado à sua mão. Mesmo que lhe dissessem

coisas horríveis para abalar suas esperanças a mulher nunca desistiu de esperar por

Elias, algo lhe dizia que ele voltaria aos seus braços, nem que fosse o último homem a

voltar para casa.

Elias era um jovem soldado que se casara cedo com aquela que tanto amava, mas

ao ser convocado para a guerra que estava em seu auge precisou passar por cima do

coração, ser mais forte que a intensidade dos nobres sentimentos que sentia pela esposa,

dizer adeus sem alimentar esperanças de reencontros e partir não olhando para trás.

Ele se destacou no batalhão, era um dos que derrubava mais inimigos, era peça

fundamental para o avanço das trincheiras, quando ferido não desistia, antes persistia,

era notório que só entregaria os pontos caso ceifassem sua vida.

Porém, em uma noite distraída, o soldado foi capturado por alemães junto aos seus

colegas e levado cativo de forma bruta e violenta, sendo ameaçado de morte torturante

caso bancasse o esperto; sua cabeça era desejada.

Meses se passaram com Elias naquela situação, sem receber notícias da amada e

sem poder escrever suas cartas cheias de romantismo. Foi em uma noite de esperanças

perdidas que ele olhou para o céu e perguntou o porquê de todo aquele sofrimento, o

porquê de estar atrás de grades sem nada dever a ninguém, o porquê de precisar

aprender a viver sem ouvir a voz de Daniela e sem sentir os suaves toques da mulher.

Durante o tempo que guerreou nunca derramou uma lágrima, mas naquela noite seu

choro foi amargo.

— Guarde suas lágrimas para o choro da alegria — uma mão pousou sobre o seu

ombro lhe chamando a atenção, era Jorge Souza, o seu general —. Hitler está morto, a

guerra terminou.

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Elias desejava que a imensidão do oceano se reduzisse a uma curta distância,

ansiava pelo momento que abraçaria aquela que amou tão intensamente, mas dúvidas

cercaram sua mente. E se ela tivesse perdido as esperanças? E se ela tivesse tocado a sua

vida e agora vivia um novo amor? Talvez ela nem se lembrasse mais do seu nome. Ao

menos estaria de volta em casa, onde poderia recomeçar sua vida.

O relógio no pulso marcava o meio-dia, o soldado já conseguia avistar terra firme e

uma multidão ansiosa pela chegada dos guerreiros, mas talvez ninguém estivesse no seu

aguardo, seria melhor deixar todos desceram do navio e, então, ele desceria.

Casais se beijavam saudosos, pais e filhos se abraçavam sedentos por aquele

momento, a alegria em cada olhar e sorriso era observada pelos olhos de Daniela, que

ainda procuravam pelo rosto mais bonito, mas que nada encontravam. A praia se

esvaziava, ninguém mais descia do navio, a jovem mulher pegou o filho no colo, deu as

costas e começou os seus passos lentos tentando encontrar respostas para o futuro, em

como seriam as coisas dali por diante, em como conseguiria viver sem o amor da sua

vida. Ela se esforçava em segurar as lágrimas.

— Daniela? — uma voz soou. A doce e inconfundível voz de Elias.

Ela se virou aonde a voz veio, abriu um sorriso alegre, sentiu o peito palpitar, seu

coração parecia estar a ponto de explodir, as lágrimas rolaram espontâneamente, suas

pernas tomaram vida e correram ao encontro do tão amado home. Pai, mãe e filho se

abraçavam contentes na orla da praia, finalmente depois de tantas dúvidas agora a

certeza: o futuro começava”.

As luzes se acenderam, olhos avermelhados puderam ser vistos, pessoas

emotivas aplaudiam o belo filme que acabaram de assistir. Gabriela, também

emocionada, experimentava mais uma novidade em sua vida; a garota dos

olhos azuis foi ao cinema. Gustavo esteve em todo o momento ao seu lado,

sussurrando em seu ouvido o desenrolar da história.

— Gostou? — embora acanhado o garoto tomou coragem e limpou o

suave rosto da amiga encharcado pelas lágrimas.

— Eu amei — abriu o sorriso tímido de sempre —. Não poderia ter

provado coisa melhor.

— Eu sabia iria gostar.

— E o que é que você não acerta? — a garota questionou. Dando um beijo

no rosto do amigo concluiu: — Você é especial.

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Agora Gustavo tinha certeza de quem se tratava a Adolescente

Apaixonada.

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Capítulo 17

A cada sorriso tímido ou aberto, a cada toque suave e a cada beijo inocente

que recebia no rosto Gustavo se sentia ainda mais apaixonado pela garota dos

olhos azuis, era inexplicável o motivo, mas ele não se preocupava em encontrar

explicações, concentrava-se em viver todas aquelas sensações.

Com Gabriela as coisas não eram diferentes, perceber a importância que

tinha para o rapaz era como se sentir a única no mundo, ser tão bem cuidada

pelo amigo a fazia se sentir especial, de fato era. Dentre tantos sentimentos o

desejo em declarar a verdade pela qual seu peito clamava se sobressaía, mas era

acompanhado pelo medo de afastar uma amizade tão incrível.

Na praça de alimentação do shopping o futuro pediatra ajudou, como um

verdadeiro cavalheiro, a jovem adolescente se sentar, os olhos atentos que a sua

volta os observavam se enchiam de esperanças quanto às pessoas de nobres

corações.

A garota já não tinha mais vergonha em se servir, pelo menos perto de

Gustavo o receio ia para bem longe, o garoto a confortava.

— Mas eu queria saber qual é a sua opinião sobre o filme — o garoto

questionou —. O que concluiu sobre ele?

— Bom... — pensou por alguns segundos —. Primeiro que o amor

verdadeiro ultrapassa fronteiras, vence distâncias e não se deixa perder pelo

tempo e segundo que eu quero viver algo assim, algo verdadeiro.

As últimas palavras envolveram o jovem rapaz que fitava os olhos

brilhantes como se os desejasse, como se quisesse observá-los pela eternidade,

sim, ele queria isso. Entrelaçando os dedos sobre a mesa não hesitou em sua

declaração:

— Tenho certeza de que viverá.

Gabriela abaixou os olhos, estava se concentrando na troca de calor entre

as mãos, assimilando o que ouvira, era com ele que ela desejava viver aquilo,

somente com ele.

— Eu preciso agradecê-lo — a afirmação quebrou o encanto do momento.

— Pelo quê?

— Por ser tão bom, ter tanta paciência, querer me proporcionar os

melhores momentos e garantir que eu possa vivê-los — a garota sorriu

encantadora —. Embora nos conheçamos há tão pouco tempo nossa amizade já

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é a melhor que tive em toda a minha vida, não consigo me imaginar sem ela, já

não dá para ficar sem você — seu sorriso se abriu.

“Já não dá para ficar sem você”. Gustavo não esperava ouvir aquilo, não

tinha reação para demonstrar. Aéreo, passou a mão pela própria cabeça, seus

olhos irradiavam alegria, seu sorriso exibia os claros e alinhados dentes, sua

resposta surgiu de dentro do coração.

— Eu não acredito em coincidências, não dou crédito ao acaso, confio na

predestinação... Conhecemo-nos tão de repente e tão de repente nos

aproximamos intimamente, é coisa do destino, escritos de Deus— suas palavras

balançavam o coração de quem as ouvia —. Não precisa me agradecer por nada

que fiz, faço ou farei, vou continuar fazendo a fim de ter como pagamento o

sorriso mais bonito que posso contemplar — a garota não conteve aquilo que

seu amigo tanto gostava nela. Uma preocupação surgiu na mente do futuro

pediatra, aquilo não era coisa que se dizia às namoradas? Não importava mais,

ele precisava revelar aos poucos aquilo que sentia. Unindo as mãos novamente

concluiu: — Independente do que aconteça, do curso da vida, eu quero ser para

sempre os seus olhos, o seu guia.

“Eu quero ser para sempre os seus olhos, o seu guia”. Quando Gabriela

imaginou que ouviria algo tão magnífico quanto aquilo? Nunca. Mas ouviu,

ouviu do garoto que gostava, que apreciava a companhia, cuja presença

passava segurança e a doçura da voz garantia tranquilidade.

Uma lágrima brotou no olho esquerdo da garota, escorreu pelo seu rosto

marcando o caminho percorrido e pingou sobre as mãos logo abaixo. Até com

aquilo Gustavo se impressionou, a paixão tornava cada gesto especial, único,

diferente, mesmo que já os tivesse visto em outras pessoas.

— Por que está chorando?

Levando a mão do amigo até os lábios depositou um suave e delicado

beijo, abrindo o mesmo sorriso irradiante de sempre respondeu com ternura:

— Porque estou feliz... Você me faz feliz!

<<>>

Naquela tarde de segunda-feira Isaque começaria o tratamento, a sua luta

contra um mal que o atingira, mas que, como todo sofrimento, serviria de

aprendizado ao seu futuro.

Adentrando o hospital o garoto parecia estar mais perceptivo, observava

cada canto de maneira diferente, com mais atenção. Muitas eram as pessoas ali,

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cada uma com um problema, com um desafio, algumas em situações mais

simples outras em mais complexas, o que existia em comum a todas era que

estavam acompanhadas por pessoas especiais, tinham em quem se apoiar assim

como ele, que era amado e ajudado pelos dedicados pais.

Ana imaginava o que o filho sentia, afinal ele sabia quais eram os efeitos

da quimioterapia, as transformações que seu corpo e seu modo de viver

sofreriam, no entanto era necessário, só assim as coisas terminariam bem.

Marcos sempre foi um tanto reservado, preferia ficar na sua, mas também

sabia quais eram os sentimentos do unigênito filho naquele momento tão difícil.

Apoiando as mãos no ombro do garoto deu o seu conforto enquanto

caminhavam pelos corredores do hospital.

— Talvez esteja se perguntando o porquê, mas a resposta para algumas

perguntas não costumam chegar tão logo, ela demora meses ou até anos para

que nos explique os porquês de tantas adversidades. Pense que esse desafio

será apenas mais um tijolo na sua bela construção, pense que será algo que o

deixará mais forte, sábio na vida.

— É difícil se convencer de tudo isso — os olhos do loiro eram

desconsolados, por mais que tentasse se livrar dos tantos medos não conseguia

totalmente, restavam incertezas.

— Mas não impossível — Ana se ajuntou ao diálogo —. Que graça teria a

vida se ela não nos ensinasse a viver? É o medo que nos deixa mais corajosos,

são as dúvidas que nos fazem mais entendidos, é a guerra que nos vitoriosos.

— Eu amo vocês — as lágrimas correram, mas foram compensadas pelo

abraço triplo, cheio de companheirismo.

— Vamos lá? — a enfermeira possuía certa simpatia no semblante.

— Claro — o rapaz forçou um sorriso, em seu coração ainda existiam

receios.

Agora sozinho Isaque adentrou o espaço onde as quimioterapias eram

realizadas, um lugar frio, sem muita cor, que exalava os mais tristes e

desesperançosos sentimentos.

Sentando-se na cadeira indicada o garoto fechou os olhos, suspirou

profundamente e recostou a cabeça no encosto. Logo sentiu uma mão fria

pousar sobre o seu ombro.

— Ansioso?

— Um pouco.

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— Fique tranquilo, sempre há esperanças — a mulher sorriu —. Podemos

começar?

— Sim — a voz saía com dificuldade.

A enfermeira calmamente procurou alguma veia, quando finalmente a

encontrou passou um pano gelado sobre a pele, provocou a saliência da veia

desejada e injetou o líquido da solução, mas também da transformação.

Começava uma nova etapa na vida de Isaque.

O adolescente não conseguiu segurar as lágrimas que insistentemente

forçavam a barreira que os olhos fechados provocavam.

Antes da bonança sempre vem a tempestade.

<<>>

Os problemas existem para todos, ninguém se salva deles. Porém a força

para enfrentá-los não está em todo mundo, uns têm mais e outros menos, o que

ninguém pode fazer é tentar fugir, esconder-se, eles sempre aparecem.

De tanto se embriagar Júlia adormeceu no quarto trancado e escuro, as

horas se passaram e ela despertou já perto das onze da noite, sentindo a cabeça

latejar e as coisas ao seu redor girar. Precisando de um banho adentrou o

banheiro, sentiu a água fria refrescar o seu corpo, aliviar sua tensão. Ainda

sonolenta se encarou no espelho, notou os olhos inchados e as olheiras

profundas, não pôde evitar o suspiro desconsolado e a lamentação por viver tão

desamparada, tão sozinha.

Com fome, a garota foi á cozinha do apartamento e enquanto comia o

cereal que prepara foi surpreendida pela grave voz de Rui.

— O encosto acordou? — tinha tom de zombaria.

— Não enche — sua voz parecia pesada.

— Só quero alertá-la quanto a sua nova amiga, ela não presta!

— Você não sabe de nada...

— É claro que eu sei! E, como o seu pai, exijo que fique longe daquela

devassa, quero que se afaste — os xingamentos não eram poupados.

— Para ditar o que devo ou não fazer você é meu pai, mas para me dar o

mínimo de atenção, de carinho, de amor você se esquece disso, deseja que eu

nem existisse, muito conveniente, não acha?

Desenhando um semblante triste, de arrependimento, aquele homem se

aproximou da filha a passos lentos, acariciando o rosto da garota com as costas

das mãos se achegou ao seu ouvido e declarou:

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— Se não está satisfeita vá embora... Boa noite.

Por alguns instantes Júlia esperou por uma atitude diferente, por palavras

afáveis, mas todo o seu entusiasmo se desfez em sentidas lágrimas. Aquela era

sua dura realidade que, embora difícil, precisava ser levada com naturalidade,

como se fosse normal. Em seus pensamentos ela não poderia se dar ao luxo de

lamentar, chorar, mas em sua alma a ferida ardia, a dor incomodava.

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Capítulo 18

Poucos dias depois...

Era sexta-feira, o final de semana já exalava o seu cheiro, mas ainda tinha

um dia inteiro a ser enfrentado.

Júlia continuava naquela perturbação de espírito, ainda se sentia

desamparada em um mundo tão cheio, as coisas perdiam o brilho

gradativamente e com isso a vontade de viver. Porém, naquela manhã

ensolarada, a garota despertou com uma vontade enorme de mudar as coisas, já

decidida sobre qual seria o seu primeiro passo: conquistar o perdão.

Durante todo o primeiro bloco de aula observou com atenção aqueles com

os quais se redimiria, eram unidos, ajudavam-se, não pareciam ter problemas e

nem dificuldades, exibiam a beleza de uma amizade verdadeira, uma amizade

regada pelo amor.

O sinal para o intervalo tocou. Era o momento.

Mas a jovem não tinha coragem suficiente, imaginava que seria ignorada

mais uma vez ou até mesmo ridicularizada, ofendida. Pelo comportamento que

teve ela sabia que era aquilo o que merecia. Reuniu as forças e antes que o trio

saísse da sala ela pediu:

— Podemos conversar?

Um clima estranho caiu sobre cada um.

Relutante, Gustavo respondeu:

— Seja breve.

Frieza. Júlia sentiu isso, mas não podia se abater, o não já era garantido,

seu desafio era conquistar o sim.

— Eu sei que fui ridícula em minhas atitudes, não agi da maneira certa,

mas eu quero muito o perdão de vocês — seu modo de falar esbanjava o

arrependimento pelos erros e a sinceridade do pedido —. Eu preciso do perdão

de vocês.

O futuro pediatra e seu melhor amigo se entreolharam, sabiam qual seria

o desfecho da conversa caso deixassem a decisão nas mãos da garota que os

acompanhava, então o primeiro deu seu ultimato:

— Acha que é tão fácil assim? Apronta todas e depois aparece com

discursos de arrependimento pensando que tudo vai ficar bem?

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— Claro que não. Eu reconheço que talvez não seja fácil para vocês

acreditarem em mim, mas eu imploro que ao menos tentam — o desespero por

alcançar aquele desejo era visível na garota.

— Não, não é fácil — Isaque tomou a palavra —. Como podemos confiar

em alguém que foi capaz de fazer o mal a um dos nossos?

— Se soubessem o fardo que carrego nas costas por certo entenderiam — o

desabafo começou e com ele lágrimas de pura verdade rolaram pelo rosto

entristecido —. Não são vocês que não têm com quem conversar, com quem se

divertir para se aliviar da opressão... Eu não tenho uma mãe, meu pai já

declarou o seu repúdio por mim e a cada dia prova o que disse. Eu sei que nada

justifica minhas ações, mas é claro que as influenciaram. Vocês, que são tão

felizes, não podem imaginar o tamanho da minha dor, o peso das lágrimas que

caem dos meus olhos, a escuridão que cerca o meu mundo... — correu dali,

correu para se refugiar em algum canto isolado.

Os jovens amigos ficaram pasmos com o discurso, não podiam acreditar

que por trás de alguém tão esnobe e prepotente existia uma alma afligida pela

vida, oprimida pelo sofrimento, frágil.

— Eu não sei o que dizer... — Gustavo sentia alguma vergonha pelo modo

como vinha agindo.

— Mas eu sim — Gabriela possuía um semblante sério —. Falando por

mim, não fazem ideia de como tem sido mais fácil lidar com as limitações

estando com vocês, tendo essa amizade tão incrível — embora seus olhos

fossem dispersos, suas palavras revelavam uma mente concreta —. Isaque,

consegue imaginar o quão sufocante seria passar pelo atual momento sem o

apoio de um amigo como o seu? — a reflexão era profunda —. Todos erramos e

não conseguimos corrigir os nossos erros se não tivermos apoio, ajuda. Ela

merece o nosso perdão, talvez as coisas em sua vida melhorem se abrirmos os

nossos corações.

— Você tem razão — Isaque jogou a mochila sobre a mesa —, eu vou falar

com ela — saiu em disparada.

A verdade jamais revelada era que o garoto gostava de Júlia,mas não

podia se deixar levar por uma aparência atrativa enquanto a alma era obscura,

mas naquele dia tudo se clareou, a obscura alma poderia se transformar em

algo cheio de amor, de luz, bastassem um carinho especial e uma compreensão

sincera.

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Isaque vasculhou cada corredor do Colégio Inova, observou com atenção

cada canto do lugar, mas foi entre as árvores da área verde que encontrou a

garota aflita, sentada sobre a grama com a cabeça apoiada nos joelhos e

fungando o nariz repetidas vezes.

— Podemos conversar? — o rapaz se sentou cautelosamente ao lado da

adolescente.

— Sim — Júlia ergueu os olhos inchados e respondeu com a voz

embargada.

— Antes de qualquer coisa preciso que desculpe a todos nós, não

sabíamos do seu problema...

— Eu entendo – enxugou as lágrimas forçando um discreto sorriso —. Mas

e vocês? Podem me perdoar?

O garoto pôde observar melhor os olhos verdes ofuscados por uma

tristeza intensa, uma imensidão de dor no espírito, a pior dor quem um homem

pode enfrentar já que para ela não existem medicamentos físicos, apenas

remédio que não se toma, sente-se.

— É claro — sorriu simpático —. Sua atitude é nobre e merecedora do

nosso perdão. Hoje em dia é muito raro alguém se arrepender do que fez e

provar isso.

— Vocês são ainda mais nobres por aceitarem o meu pedido.

Reconhecendo o difícil momento que Júlia enfrentava, Isaque tomou a

atitude que gostaria receber caso aquela fosse sua história: aproximou-se mais

da garota, envolveu-a com um dos braços e permitiu que ela repousasse a

cabeça sobre seu peito.

— Agora coloque para fora tudo aquilo que a aflige, divida o faro que está

carregando.

Aquele gesto acolhedor foi especial para a jovem abatida, que nunca

experimentara algo tão bom. Fechou os olhos, concentrou-se no bem estar que

sua alma sentia e abriu seu coração para revelar as suas dores:

— Ninguém sabe, pensam que ela morreu, mas na verdade a minha mãe

abandonou nossa família quando eu era ainda muito pequena, desde que me

entendo estou cercada por dúvidas, talvez eu não fosse suficiente — uma

discreta lágrima escapou sendo colhida pelos suaves dedos do garoto que

também possuía os olhos verdes —. Meu relacionamento com meu pai sempre

foi conturbado, ele me odeia sem que eu saiba o motivo, nunca demonstrou

algum carinho por mim e isso também me corrói... Fui do jeito que fui porque

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queria atenção, mas a descoberta foi decepcionante: atenção todos podemos ter,

carinho nem sempre vamos receber.

Se ainda estivesse se lamentando pelo problema que enfrentava Isaque

ágoras se envergonhava, embora sua situação fosse crítica ele tinha apoio,

recebia motivação para prosseguir na caminhada, nos momentos de fraqueza

teria de onde tirar forças e além dos pais estarem dispostos a amá-lo

incondicionalmente ele possuía uma amizade verdadeira, algo que faltava na

vida de Júlia e tornava a caminhada ainda mais cansativa.

— Nem todo mundo tem o privilégio de desfrutar uma amizade regada

por sentimentos nobres e sinceros, nem para todo mundo a vida abre essas

portas, mas agora se sinta lisonjeada, meus amigos e eu estaremos dispostos em

lhe acolher.

— Mesmo depois de tudo?

— Passado é passado — antes de continuar o garoto refletiu —. Aceita

escrever uma nova história?

— Com certeza — seu sorriso dessa vez foi maior, pedir perdão foi o seu

maior acerto.

Algumas pessoas só precisam de um pouco de atenção, de carinho, de se

sentirem realmente amadas, seja nas relações mais íntimas ou nas amizades. A

deficiência de tais valores pode causar desafeto, desesperança e uma melancolia

infinita.

<<>>

Sempre após a aula Júlia se encontrava com Fátima e naquele dia especial

não seria diferente, mas o local para o encontro saiu do costumeiro, dessa vez as

duas amigas estavam no tranquilo Parque da Cidade da Paz. Enquanto

lanchavam a garota agradecia incansavelmente pelo conselho da psicóloga, algo

que transformou parte da sua história.

— Quando nos abrimos aos belos valores vivemos melhores — a terapeuta

comentou —. Podemos não ter toda a riqueza do mundo, mas se a nossa alma

está bem amparada temos toda a riqueza da vida!

— Nem consigo acreditar no que está acontecendo — o semblante antes

abatido agora exibia felicidade —. Eu não poderia sonhar que me sentiria tão

bem.

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— Melhor do que pedir perdão é perdoar — os olhos de Fátima pairavam

sobre o céu azulado, observando o passear de muitos pássaros —. É um alívio

para nós mesmos, saímos de nossa própria prisão.

— Precisou perdoar alguém?

— Sim, mas na minha opinião o perdão mais importante que já dei foi o

que recebi de mim mesma. Precisei me perdoar para continuar com os meus

objetivos, precisei alimentar esperanças de que viveria dias melhores apesar de

tudo — segurando as mãos daquela que tinha por filha a psicóloga sugeriu: —

Pratique o perdão sempre que puder.

— Seguirei todos os seus conselhos — Júlia ainda se agradecia pela nobre

atitude que tomara.

— Gosto muito de você, deve imaginar, não sabe como estou me sentindo

a vendo tão contente, tão irradiante. Fico ainda mais feliz por saber que a ajudei

em uma importante conquista.

Aproximando-se mais da terapeuta a garota lhe deu um abraço.

— Obrigada... Por tudo.

De longe, escondido, Rui a tudo assistiu.

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Capítulo 19

Conhecer o mar, sua imensidão e seu acolhimento, qual o ser humano que

nunca teve esse desejo? Gabriela sempre ouvira falar na escola ou em

programas de TV sobre as águas azuis que pareciam infinitas, que se perdiam

no horizonte, que pareciam desbocar no universo e, com isso, nascia em seu

peito a vontade de conhecê-las, mas existia um “porém”, como ela veria? Se

fosse em outros tempos a resposta talvez ficasse vaga, contudo no atual

momento a resposta era concreta: Gustavo seria os seus olhos.

Naquele fim de semana os pais de ambos os jovens marcaram de se

reunirem a fim de conhecerem melhor uns aos outros enquanto

proporcionavam bons momentos ao casal que se amava, mas que pelas

incertezas não se assumia. Ao receber a notícia a garota não se agüentou de

tamanha alegria, agradeceu tanto aos pais que parecia ter ganhado o melhor

presente de sua vida e de fato era, passar algum tempo junto ao garoto que

gostava era o melhor dos presentes.

Já era noite, com a ajuda da mãe Gabriela organizou o que levaria para a

breve viagem, Laura, por sua vez, percebeu o quão entusiasmada a filha estava.

— Tudo isso porque vai passar um momento diferente com os seus

queridos pais? — indagou com ironia.

— Claro que sim! — se a pergunta tivesse outra formulação por certo a

resposta não seria dada tão logo —. Sempre é bom estarmos em família.

— Estarmos em família, sei — a mulher repetiu em tom debochado —.

Pensa que me engana, Gabriela Campos? A conheço desde que a vi pela

primeira vez, sempre soube reconhecer até mesmo os seus choros e suas

resmungos.

— Se não acredita, então qual seria o porquê — o contra-ataque fora

surpreso.

— Bom... É um pouco complicado dizer — no fundo Laura sentia certo

receio com o possível relacionamento da garota, a ideia de que ela estava

crescendo e criando asas a angustiava ainda que de forma sutil, o que sempre

foi normal às mães apegadas aos filhos.

— Eu sei o que está pensando — fechou a mala e se sentou na cama, gesto

repetido pela mãe —. E sim, você está certa, quem de nós não nos animamos em

saber que estaremos perto daquele ou daquela que tanto gostamos? O Gustavo

é alguém muito especial — as covinhas brotaram em suas bochechas rosadas

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causando o sorriso da enfermeira —, um garoto que jamais imaginei conhecer,

um amigo que nunca poderia sonhar que teria, o que sinto por ele é algo

inexplicável — a garota segurou as mãos de sua ouvinte e, com os olhos

dispersos, concluiu: — Mas o meu amor por você e pelo papai sempre será o

mesmo: intenso, completo e incondicional.

A emocionada mulher envolveu a apaixonada adolescente em um abraço

repleto de carinho e proteção, se sentia receio pelo futuro agora também sentia

orgulho da filha tão sábia.

— Eu te amo tanto ao ponto de não me perdoar se lhe acontecer algo que

cause dor, feridas.

— Não precisa se preocupar, eu sei que a melhor enfermeira do mundo

poderá me ajudar a cicatrizá-las se necessário...

<<>>

— Já que ela também enviou cartas, o que acho que seja extremamente

medieval, julgo ser a hora exata para que lorde Gustavo abocanhe sua presa —

Isaque jogou o controle sobre a cama e as costas no encosto da poltrona.

— Lorde Gustavo não abocanha presas — o futuro pediatra revirou os

olhos —, ele ornamenta as flores — orgulhou-se pela filosófica frase.

— Bravo! — aplaudiu animado —. Já pode escrever um romance.

— Será mesmo que eu deva escrever um romance? — estreitou os olhos —

. Eu reparei bem no jeito que saiu correndo atrás de Júlia e como olhou para ela

o resto da aula — arqueou as sobrancelhas, vitorioso.

— Oh! Meu Deus! Que golpe baixo! — levou a mão coração fingindo

ofensa —. Só caiu um arrependimento pelo modo que a tratamentos, não sabia

que as coisas eram tão difíceis em sua vida.

— Um arrependimento? Sei... — Gustavo conhecia bem o amigo de longa

data, já tinha certeza do que fingia respeitar —. Desde quando gosta dela?

— Lorde Gustavo... — a desculpa esfarrapada vinha a cavalo.

— Conselheiro Isaque! — o rapaz usou a autoridade de um rei em sua fala

—. Se não confiar em mim vai confiar em quem? Eu sei que gosta dela, só quero

que assuma.

— Quem vê pensa que você assumiu o que sente por Gabriela — bufou.

— Para você, sim — ele sempre foi bom nos argumentos

Isaque teve que se render:

— Desde muito tempo... — não queria revelar aquilo, estava relutante.

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— Desde quando eu pensava gostar? — a mais novo logo entendeu tudo.

— Sim... Mas além de você ser apaixonado por ela eu não procurava

apenas beleza física, queria alguém que soubesse viver de verdade para chamar

de minha namorada e Júlia nunca mostrou essa virtude.

— Mas agora sabemos o motivo e tudo pode mudar... Finalmente vai

desencalhar! — jogou uma almofada em comemoração.

— Olha quem fala — forçou um sorriso que em poucos instantes se desfez

—. Talvez agora já seja tarde — precisava desabafar.

— O que quer dizer com tarde?

— Quem vai querer ficar com um doente e que pode morrer?

— Eu não posso acreditar nisso.

— Eu vou ficar feio, careca, sem cor — os olhos se avermelharam e os

lábios fingiram um sorriso de “tudo bem” —. Quem vai gostar de uma

aberração?

— Isaque, você não é e nem será nenhuma aberração — Gustavo vestiu

um semblante sério —. E como você mesmo pensa, quem só olha para o exterior

não é digno de viver um amor — aproximando-se do garoto cabisbaixo o fez

erguer a cabeça —. Pode parar com o choro e lute por aquilo que o fará feliz, se

ela estiver disposta a passar ao seu lado esse momento difícil é porque o

merece.

— Obrigado — mais velho pôde sorrir —. Mesmo...

— Gustavo! Vamos? — a mãe do jovem adolescente gritou da sala —. Sua

tia precisa descansar.

Ambas as famílias eram tão unidas ao ponto de se considerarem uma só, o

que era bonito de se ver em um mundo no qual a brutalidade parece imperar.

— Eu quero que você viaje conosco amanhã — Gustavo fez o pedido antes

de descer do quarto.

— Eu não posso ir...

— Mas eu quero que vá.

Apoiando a mão ombro do melhor amigo Isaque reafirmou sua decisão

ainda com o sorriso no rosto:

— Aproveite com a sua futura namorada e me traga algumas conchinhas.

— Sim, senhor — abraçou aquele que tinha por irmão —. Cuide-se!

O garoto queria sim ir, mas escondeu que não vinha se sentindo bem por

causa do tratamento, queria evitar contratempos, não queria estragar o sábado

de ninguém. Aos poucos aquele pensamento de que era um fardo retornava à

sua mente entristecida.

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Surpreendentemente animado em ter acordado tão cedo Gustavo colocava

as malas dentro do carro, embora a viagem fosse de apenas um dia algumas

coisas precisavam ir junto. Na varanda da casa, observando o céu que ainda era

enfeitado por algumas estrelas, o garoto ficou pensativo, tentava imaginar como

que conseguiria se declarar algum dia à garota que amava, algo visto como um

enorme desafio.

— Ansioso? — Eduardo se colocou ao lado do filho enquanto esperava a

esposa se maquiar.

— Um pouco — o adolescente riu tímido.

— E eu sei o porquê.

— Sabe? — arregalou os olhos e engoliu seco, nunca teve uma conversa do

tipo que suspeitava estar para acontecer com aquele que tinha por exemplo de

homem.

— Claro que sei — o mais experiente levou o olhar ás estrelas que ainda

brilhavam —. Todos nós em algum momento da vida passamos por isso, o que

é extremamente normal. Uns lidam mais facilmente outros com dificuldade,

mas no final todos conseguimos.

— Nem todos — aquele era o momento para receber um conselho querido

—. Eu não vou conseguir, consigo nem me declarar.

— Quanta pressa — o homem riu divertido —. Tudo o que é mais

demorado tem mais consistência, mais valor... Viva calmamente, tudo no seu

tempo, na hora certa eu sei que vai acontecer, sempre acontece, seja com

palavras ou atitudes, com um “eu te amo” ou um beijo... Sempre acontece.

— Qual é o assunto da hora? — Juliana surgiu entre pai e filho.

— Nenhum! — o garoto escondeu —. De pai e filho.

— Ah! É assim? Então apenas eu vou passar o maior “tempão” com

Gabriela — o ataque fora bem pensado.

— Relaxa, meu amor, apenas estávamos falando como está bonita —

Eduardo desconversou, para o alívio do filho.

— Acham mesmo? — a mulher deu uma voltinha exibindo o longo

vestido florido.

— Meu pai tem sorte em ter se casado com você — o adolescente piscou.

— Então vamos, temos um sábado inteiro para aproveitarmos!

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Vendo como os pais se amavam Gustavo se viu indagado: viveria aquilo

também?

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Uma garota sorridente, simpática, que não se envergonhava em exibir as

charmosas covinhas desceu do carro usando óculos escuros, vestindo um

vestido, não tão longo, branco com estampas que remetiam ao mar. Exalava o

suave aroma das rosas, o adocicado perfume característico e deixava os longos

fios loiros livres para dançarem com o vento.

O coração de Gustavo falhou uma batida.

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Capítulo 20

Um verdadeiro anjo. Era essa a definição que o garoto apaixonado poderia

dar para aquela que conquistou o seu coração de uma forma especial e tão

breve. Parecia que a cada dia que se passava ela ficava ainda mais perfeita aos

olhos do adolescente.

As famílias que agora dariam início a uma nova amizade reservaram um

cantinho agradável na maravilhosa praia, enquanto observavam o casal de

longe teceram elogios.

— Gabriela é uma garota adorável — Juliana comentou —. Nunca alguma

menina conquistou o meu filho de um jeito tão surpreendente.

— Seu filho não fica muito atrás — Laura desenhou um sorriso satisfeito

—. Que fique entre nós, mas ele foi responsável por muitos suspiros da minha

pequena...

— E não acho uma má ideia que eles namorem — Eliseu, para um pai de

menina, estava muito a vontade com aquela situação —. O rapaz parece ser de

boa índole.

— E é — Eduardo estufou o peito para falar sobre o filho —. Gustavo

sonha em ser pediatra, estuda incansavelmente para garantir sua vaga em uma

das melhores faculdades, só tenho motivos para me orgulhar.

— Só estão demorando um pouco para se assumirem — Laura lamentou.

— O melhor é deixarmos que o tempo se encarregue disso — Juliana os

observava —. Ele escreverá uma linda história.

Grande era a ansiedade de Gabriela para viver mais aquela novidade,

passar por cima de mais uma das suas limitações e provar para o mundo que

era capaz de viver a mais bela das vidas. O entusiasmo se confundia com o

nervosismo, o doce nervosismo que o seu amigo lhe provocava.

Gustavo, por outro lado, sentia uma vontade quase incontrolável em se

declarar, ver a garota tão bem produzida em seu modo simples, porém

delirante, o fez ter a certeza de que era com ela que gostaria de viver o que seus

pais viviam: uma verdadeira história de amor.

— Pronta para conhecer mais uma beleza desse mundo? — uniu as mãos

sentindo a costumeira energia que transitava pelos dedos sempre que se

tocavam.

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— Sempre pronta — o sorriso da menina era ainda mais encantador, algo

que tirava o ar do Romântico Anônimo.

— Então tire as sandálias, quero que sinta o calor da areia.

A garota obedeceu.

Os jovens apaixonados amigos deram início ao caminhar pela orla da

praia rumo às águas que se moviam em exuberantes e delicadas ondulações, as

mãos estavam juntas, os dedos se enlaçavam. Prestando atenção naquele

momento o futuro pediatra pôde sentir como ele era reconfortante, algo que

pedia para ser eterno. Precisou registrar uma selfie.

— Você e suas fotos — a Adolescente Apaixonada escutou o click da

câmera.

— As belas coisas existem para que sejam eternizadas de alguma forma —

sua resposta filosófica fora espontânea.

— Acha mesmo que estou bonita? — o sorriso tímido se manifestou em

Gabriela, que antes de sair de casa pediu a ajuda da mãe para se arrumar a fim

de impressionar o seu admirador nem tão secreto assim.

Elogiar uma garota. A tarefa não era tão fácil. Levando os dedos livres à

orelha, como fazia sempre que envergonhado, Gustavo inspirou coragem e

expirou palavras amáveis.

— Você está sempre bonita.

Borboletas no estômago, um sorriso bobo de adolescente. Gabriela ouviu

aquilo que tanto queria.

A jovem mulher passou a se concentrar no que seus pés sentiam, a areia

que penetrava por entre os dedos provocava uma sensação curiosa, assim como

o calor morno que os cobria. Pisar sobre aquele chão único, diferente, era

simplesmente adorável.

Além de assistir ao sorriso de satisfação que a amada exibia, o Romântico

Anônimo também se deixou encantar pelos cabelos que eram agitados pela

brisa que soprava do mar. Por algum instante ele tomou a decisão de beijá-la, o

rosto já se aproximava, mas o encanto se quebrou e a coragem se transformou

em receio.

— Pegue isso — Gustavo entregou uma conchinha à garota —. Essa é mais

uma das belezas do mar.

A textura em seu interior era lisa, mas no exterior as saliências

dificultavam o deslizar do dedo.

— Incrível — mais aquela novidade encantou a sonhadora.

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— Podemos colecionar várias dessas depois, mas agora quero que se

entregue ao acolhimento do mar.

— Acha mesmo que seja uma boa ideia? — as preocupações começaram a

surgir —. Não quero que por minha causa todo o passeio se transforme em

tragédia.

— Confia em mim? — a pergunta era encorajadora.

— Claro — a resposta confiante.

— Então venha ser feliz.

A água no começo estava morna, mas conforme o jovem casal avançava os

passos ela se tornava refrescante. Gabriela pôde desfrutar das famosas ondas

que vinham ao seu encontro e se chocavam contra os seus joelhos e molhavam o

vestido.

— Eu vou contar até três — o garoto colocou mais firmeza nos dedos que

se seguravam —. No três você pula.

— Certo.

— Um... Dois... Três...

A sensação de pular sobre as ondas e sentir o vento que marcava presença

no rosto provocou as gargalhadas na adolescente desafiada pela vida, parecia

uma criança que acabara de ganhar um novo brinquedo. Aquele som fazia de

Gustavo um alguém ainda mais apaixonado, podia ser considerado o melhor da

sua vida.

— Agora quero que se liberte e sinta de verdade a gostosura de onde

estamos — o maior sugeriu.

— Como assim? — a menor se preocupou —. Acho que já aproveitei tudo

o que poderia — a insistente escuridão que cercava a garota trazia consigo as

dúvidas e receios.

— Quero que abra os braços, feche os olhos e se concentre no vento que

nos açoita e na água que nos refresca.

Sem a guia do amigo, Gabriela o obedeceu, mas logo um desequilíbrio a

fez procurar em quem se apoiar, como já era esperado encontrou o prestativo

garoto.

— Isso não é para mim, você já me ajudou muito.

— Você vai conseguir — o Romântico Anônimo se colocou atrás da

Adolescente Apaixonada, uniu os braços e os abriu vagarosamente. Pôde sentir

o perfume que exalava dos loiros e compridos fios, além do característico

adocicado perfume das rosas. Aquela proximidade tão intensa lhe provocou

novamente o desejo de beijá-la.

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Perceber o quanto Gustavo se importava fez Gabriela se sentir amada e,

consequentemente, mais apaixonada. Pôde inspirar o perfume amadeirado,

marca registrada do amigo e, sentir o calor que envolvia seu corpo. Também

desejou beijá-lo.

O rapaz respirou fundo, tudo o que conseguiu fazer foi beijar o rosto da

tão amada amiga e sussurrar em seu ouvido:

— Confie em você; eu sei que consegue.

Aos poucos se afastou da garota.

A jovem adolescente, embora com medo, permaneceu na posição, tudo

que poderia fazer para agradecer ao parceiro pelas coisas que vinha vivendo era

atender um dos seus singelos pedidos. Concentrou-se no vento, atentou-se à

água e o resultado foi a sensação de liberdade.

O esforçado aluno que desejava conquistar a vaga de medicina na

faculdade tirou do bolso da bermuda jeans o celular, companheiro de todas as

horas e tratou de filmar o semblante satisfeito e o sorriso animado da tão bela

Gabriela, mas o melhor ainda estava por vir.

— Eu amo você — a garota gritou em alto e bom som toda a sua gratidão.

Mas a declaração poderia ser de amiga para amigo.

Sempre emotivo Gustavo guardou o celular enquanto controlava as

alegres lágrimas e como resposta envolveu a menina que amava em um

afetuoso abraço e com ternura declarou:

— Você é muito importante para mim.

A loira dos olhos azuis, por sua vez, não hesitou em libertar as lágrimas de

felicidade e apertar o abraço ao ponto de poder sentir os batimentos cardíacos

do outro e, no mesmo também declarou:

— Você é a melhor coisa que já me aconteceu.

Mesmo com todos aqueles motivos para certezas Gustavo não se

encorajou a pedir Gabriela em namoro, continuou no acolhedor abraço,

embriagando-se no adocicado perfume das rosas.

<<>>

Fátima, como de praxe, reservava os sábados para as compras e naquele

dia não foi diferente. Estando na nova cidade não conhecia muito bem as coisas,

até mesmo em um simples supermercado poderia ser surpreendida.

Empurrando o carrinho pelo corredor de produtos de limpezas sentiu alguém

tocar seu ombro, um alguém indesejado.

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— Seja bem-vinda ao meu estabelecimento — Rui possuía um sorriso

forçado, de más intenções.

— O que... C-como assim? — ela se deu conta —. O que quer?

— Apenas conversar — o ar de mistério no homem era também de ameaça

—. Sei que ainda se encontra com a minha filha e isso não me agrada nem um

pouco.

— Não existo para agradá-lo.

— Não foi isso o que ouvi de você há alguns anos — a frase provocou o

espanto nos olhos da mulher —. Surpresa? — o empresário riu esnobe —. Até

quando acha que me enganaria? Eu sei quem é você Fátima Souza, ou deveria

dizer, Helena Siqueira?

— Não faço ideia do que está falando — tentou se esquivar, mas foi

agarrada no braço.

— Não fuja de mim, Helena, não é sensato... Eu sei o que veio fazer aqui,

mas não estou disposto a facilitar as coisas — soltou-a vagarosamente

possuindo um olhar intimidador —. Eu não vou deixar você conquistar Júlia,

ela é a minha filha, a que você abandonou!

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Capítulo 21

Fátima era na verdade Helena, a mulher que abandonou Júlia anos atrás e

que agora tentava corrigir o erro do passado e, assim, amenizar a dor do

arrependimento.

— Eu imploro que fique longe desse assunto — a mulher suplicou tendo

os olhos lacrimejantes —. Deixe-me apagar tudo o que aconteceu, deixe-me

viver tudo aquilo que ainda não vivi ao lado da minha filha.

— Ah! Helena... Ainda tão inocente — o som da risada saiu fanhoso —

Acha mesmo que voltaria e daria início ao seu plano de um modo tranquilo?

Você me deixou com um estorvo para sustentar, acha mesmo que seria

bonzinho e a veria de volta sem interferir em nada? Burra! Teria sido melhor

continuar onde estava.

— Ainda tão desprezível! Eu voltei pela minha filha e não vou desistir dos

meus objetivos!

— Agora é fácil chamar de sua filha, agora que todo o trabalho pesado já

foi feito, agora que você tem uma profissão e o futuro garantido. É mesmo

muito fácil, mas eu garanto que torno a sua tarefa impossível! Júlia não é garota

de perdoar, faz questão de jogar na cara dos outros quando os despreza, com

você não será diferente — Rui tinha uma voz de ameaças —. Quando ela souber

de toda a história vai odiar tê-la conhecido.

— Não é isso o que eu acho — a psicóloga enxugou a lágrima que

escapara e se posicionou firme perante o ex-marido —. Ela gosta de mim, tem

passado por cima da sua ordem para conversar comigo, eu já a conquistei.

O homem aplaudiu como se tudo fosse genial e com o insistente sorriso

irônico estampado no rosto afirmou:

— É uma questão de séria conversa para que tudo isso acabe. Ela precisa

saber, ou melhor, ela vai saber que a mulher que tanto tem admirado, que se

aproximou se fazendo de boa amiga, é a principal causadora da sua dor, do seu

sofrimento! Não há psicólogo que a faça entender sua atitude egoísta!

— Imbecil! — Helena não conteve a raiva e a descarregou em um tapa no

rosto do homem —. Eu não vou deixar que você estrague a minha vida outra

vez nem que para isso eu precise matá-lo! — a declaração fora surpreendente.

— Além de covarde é também assassina — em tom de deboche Rui fez

sinal de positivo com as mãos enquanto controlava a fúria que a ardência do

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tapa provocou em seu ego —. Que mãe maravilhosa, um exemplo, a melhor do

mundo!

— Nós bem sabemos quem foi o principal causador disso tudo, sabemos

que foi você o motivo de toda essa desgraça.

— Não, não venha colocar a culpa em cima de mim, bem ou mal eu cuidei

daquela que você desprezou — os olhos fitos sobre a mulher resplandeciam

intimidação —. Eu cuidei, você desprezou!

— Trata aquela que diz ter cuidado tão mal, sem amor de verdade, sem o

carinho necessário, como pode querer interferir na minha aproximação?

— Eu te amei — a revelação —. Eu te amei com todas as minhas forças,

tanto que nunca mais consegui me envolver com outra mulher. Olhar para Júlia

sempre me fez lembrar o quão idiota fui ao me entregar aos seus encantos.

A mulher apenas encarava aquele que falava, as palavras pareciam não se

formar mais em sua mente, ela não esperava por aquela declaração repleta de

sinceridade, verdade.

— Mas você apenas amava a si própria — os olhos do empresário caíram

sobre o chão —, cheguei a me sentir insuficiente — voltou a encarar a ex-esposa

—. Eu sofri, eu chorei, eu me senti incapaz... Agora é a sua vez!

— Eu precisava ganhar a vida, fazer as coisas acontecerem, livrar-me de

um louco — Helena deu início a sua explicação —. Nós éramos muito jovens e

agimos de forma precipitada, por impulso, confundimos tudo aquilo com

amor...

— Você confundiu com amor! — a voz do homem sobressaiu a da mulher

—. Eu prometi que seríamos muito felizes, era só uma questão de tempo,

contudo a sua escolha foi me dar as costas e, o pior, fazer uma inocente pagar

pelos seus atos.

— Estou disposta a corrigir tudo, mas preciso que me ajude.

Dando as costas Rui fez sua última declaração:

— Tarde demais.

<<>>

A sábado fora simplesmente incrível, aquela era a melhor definição para

um dia tão especial o qual Gustavo ansiava por viver muitas vezes ainda.

Recostado sobre uma pedra na beira do mar tendo a amiga com a cabeça

repousada em seu ombro o garoto admirava o pôr-do-sol enquanto criava em

sua mente diversas cenas para o futuro.

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— Já agradeci o suficiente? — Gabriela quebrou o silêncio acolhedor

tirando o rapaz de seus devaneios.

— Nunca vai precisar me agradecer pelo que faço — instintivamente os

dedos do jovem apaixonado tocaram o rosto angelical da garota ao lado,

acariciando-o com delicadeza —. Tudo aquilo que fizer por você sai do meu

coração.

Levando a mão até os dedos que a acariciava a menina dos olhos azuis

suspirou com o toque, por um momento achou que deveria se declarar e, quem

saber, dar início ao que já deveria ter acontecido há muito tempo, mas o medo

de estragar o presente a privava do futuro.

— Sabe que é a melhor pessoa do mundo, não sabe?

— Eu tento — os olhos castanhos tomavam uma coloração acinzentada

diante a luz do sol, o elogio fez nascer nas bochechas do Romântico Anônimo as

costumeiras covinhas infantis —. É bom deixarmos resplandecer aqui que

sentimos pelas pessoas das quais gostamos, esse é o meu jeito: ajudando-as,

protegendo-as.

— Se eu pudesse ficaria ouvindo a sua voz eternamente — Gabriela não se

intimidou na afirmação —. As coisas aconteceram tão rapidamente, mas já me

ligaram a você.

— Gosta de me ter como seus olhos?

— São os melhores que eu poderia ganhar — riu abertamente —. E por

falar nisso você poderia me descrever como é o fim da tarde no mar — sugeriu.

— Está bem, vamos lá — pigarreou antes de começar, passou um dos

braços por trás do pescoço da Adolescente Apaixonada, deixando o contato

ainda mais hospitaleiro —. As ondas estão um pouco mais agitadas e maiores,

batem nas pedras com firmeza e provocam a música natural do mar. O sol aos

poucos se esconde por trás da imensidão de águas azuis que parecem infinitas.

A noite começa a esconder o dia, as primeiras estrelas já podem ser vistas,

estrelas que exibem o seu brilho sem acanhamento. E há o vento que é soprado

do mar com mais força, fazendo as árvores dançarem em um ritmo acelerado,

assim como os seus cabelos, os mais perfeitos cabelos...

Gabriela imaginou cada detalhe dentro daquilo que conseguia, a escuridão

que a cercava possuía um limite: sua imaginação. Afastando-se singelamente de

Gustavo a garota se colocou perante o mesmo, ainda sentada sobre a areia da

praia o indagou:

— As tais águas azuis são como os meus olhos?

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O garoto se prendeu naquele olhar simples, porém terno, tímido, contudo

exuberante. Sentiu-se preso mais uma vez, seu coração deu sinal de vida e as

mãos tremulavam, a visão dos fios loiros que caíam suavemente sobre o rosto

delicado era como a de um anjo.

— Eles são ainda mais perfeitos.

Aquele sorriso acanhado que sempre encantava o Romântico Anônimo foi

exibido uma vez mais. Levando as mãos ao tosto do rapaz a jovem adolescente

passou a tocá-lo, prestou ainda mais atenção e afirmou:

— A sua beleza é tão intensa quando a do mar que me descreveu —

descendo a mão até o peito do garoto concluiu: — E ela também está aqui.

Ainda que insegura Gustavo levou suas mãos ao rosto de Gabriela fitando

os olhos que pareciam poder vê-lo, os olhos mais bonitos que já vira. Os rostos

estavam se aproximando, os corações aceleravam enquanto as respirações se

intensificavam, o ardor da ansiedade consumia as almas entusiasmadas, mil

pensamentos vagavam pelas mentes apaixonadas. Um beijo.

Na verdade um celinho.

Um discreto e tímido celinho.

Mas que provocou os sorrisos bobos, a timidez exagerada, os sentimentos

confusos.

Foi seguido por um abraço amistoso.

No entanto ninguém mencionou a ideia do “namorar”.

<<>>

Um domingo ensolarado. Um bom dia para reunir os parentes mais

íntimos ou então os amigos mais próximos, desabafar sobre a semana que

findou e fazer planos para a nova semana que se inicia; preparar um almoço

sem discrição e passar os minutos de folga ao lado de quem se quer bem.

As famílias de Isaque e Gustavo se reuniram na casa do segundo para um

almoço agradável que, enquanto não saía, era aguardado pelos velhos amigo na

frente do videogame.

— Vocês o quê?! — Isaque ficou pasmo, mas não tirava os olhos do carro

adversário.

— A gente se beijou — Gustavo revirou os olhos pressionando o “x”,

soltando o turbo do veículo que dirigia sem se importar com as regras da boa

civilização —. Não foi um beijo de cinema, foi só um celinho, mas que para mim

significou muito.

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— O próximo passo é pedir a duquesa em casamento, mi lorde.

— Sem pressa, conselheiro — deu a curva, acelerou, rasgou a linha de

chegada e zombou: — Sem pressa...

Gabriela acordou sorridente naquela manhã ouvindo o alegre canto dos

pássaros. Tomou seu banho matutino, vestiu algo confortável e foi à procura

dos pais pela casa.

— Finalmente a bela adormecida levantou — Eliseu ironizou enquanto

ajudava a esposa por a mesa.

— Que cheiro é esse? — a garota farejou —. Lasanha? — mordeu os lábios

—. Que horas são? — indagou com espanto.

— Hora de almoçar — Laura arrumou os pratos. Aproveitou que o marido

foi lavar as mãos e perguntou o que tanto desejava, cheia de entusiasmo: —

Como foi lá?

— Nós nos beijamos — o rosto enrubesceu.

— Não creio! — a mulher parecia uma adolescente animada pela amiga

que “desencalha”.

— Só um celinho — o semblante era sonhador —, mas que diz muita

coisa!

Mãe e filha se abraçaram. Uma nova e linda história estaria para começar?

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Capítulo 22

Mais uma semana se iniciava na Cidade da Paz e com ela mais uma

manhã de verão ressurgis com toda sua glória, despertando os pássaros a

cantarem e os girassóis a se abrirem.

Ainda extasiada pelo melhor dia de toda a sua vida, Gabriela despertou

bem humorada, sorridente em apenas se lembrar da existência do seu grande

amigo. Quando a água morna tocou seu corpo a lembrança do beijo acanhado

pairou sobre sua mente e com isso um friozinho na barriga. Como seria vê-lo

novamente?

Feita uma adolescente apaixonada a garota suspirava tranquilamente,

enquanto tomava o café da manhã todo seu contentamento era visto pelos pais,

que se enchiam de alegria por saber que a filha vivia aquilo que almejava.

A passos calmos, como se pisasse em favos de mel, Gabriela adentrou o

Colégio Inova com certa ansiedade pulsando no peito, a ansiedade em

reencontrar o seu primeiro e, provavelmente, único grande amor, a ansiedade

que a paixão causa nos amantes corações. Pegando algumas coisas no armário

encontrou uma mensagem, que pelo perfume Malbec exalada do papel

denunciava sua autoria.

Delicada como a rosa, dócil como o mel e suave como a brisa

que sopra do mar nas primeiras horas do dia... Quando acordei

pela manhã surgiu a indagação: como definir uma garota tão

esplêndida? Aquelas foram as palavras dadas como resposta, mas

talvez a melhor dela seria rainha... rainha do meu coração.

Romântico Anônimo

Conforme o indicador passeava pelas saliências dos pontilhados, o

coração transbordava felicidades, a Adolescente Apaixonada abraçou o

pequeno e cheiroso papel com ternura, declarando ao vento suas palavras:

— Isso quer dizer que ele pensa em mim... — o sorriso bobo era no mesmo

tanto encantador.

Na espreita Gustavo a tudo observou, inclusive ouviu a frase proferida,

naquele momento a ficha caiu: ela morava em seus pensamentos.

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Aula de matemática, o paraíso de uns e o pesadelo de outros.

Gustavo nunca foi muito fã da matéria, embora suas notas não

decepcionassem, e isso colaborava nos seus momentos de distração enquanto o

professor Gilmar falava, falava e falava mais um pouco.

“Gabriela”. Para o futuro pediatra aquele nome que escrevera na última

folha do caderno era o mais lindo de todos e a sua dona de igual maneira.

Enquanto observava o escrito se lembrou do celinho tímido dado na praia e o

quanto aquilo significou para si. Amava-a de uma forma estranha, de uma

forma que não encontrava meios para explicar, simplesmente a amava.

Desejava tê-la ao seu lado para sempre, construir com aquela garota uma

família, quem saber, ter filhos, chamá-la de sua adorável esposa. A cena

projetada para o futuro arrancou um sorriso discreto do Romântico Anônimo,

que almejava o acontecimento das coisas em um piscar de olhos.

— Lorde Gustavo, que belezinha — o professor pousou a mão sobre o

ombro do aluno —. Essa garota é uma jovem de sorte — apontou com o dedo o

nome desenhado no caderno.

O rapaz sentiu seu rosto queimar e o coração acelerar, suplicou em

pensamento que o professor não pronunciasse o que estava escrito, não queria

se transformar em piada, como se amar fosse algo a se zombar.

— Mas ela será ainda mais sortuda se você prestar atenção na aula e assim

garantir o futuro dos dois — deu uma piscada divertida.

— Pode deixar — desnorteado, abriu a matéria em questão —, pode

deixar...

— Foi por pouco, Romântico Anônimo — Isaque sussurrou ao pé do

ouvido do amigo em tom irônico.

— Eu ainda te quebro — ameaçou, por fim, mordendo os dentes.

A aula terminou. Todos saíam para o intervalo quando Gilmar pediu que

Gustavo esperasse um pouco, e assim aconteceu.

— Eu sei, devo focar mais nos estudos, mas eu... — o garoto começou a se

justificar.

— Estou apaixonado e não sei o que fazer — o professor completou

revirando os olhos. Puxou a cadeira perto de sua mesa e gesticulou para que o

aluno ali sentasse —. Eu sei, é uma fase difícil, ainda mais quando não se tem

coragem para declarar aquilo que muito se deseja, mas a minha preocupação é

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que isso comece a prejudicá-lo, você precisa aprender a controlar os seus

sentimentos.

Desabafar com o professor de matemática seria uma boa ideia, afinal de

contas eles não possuíam nem um grau de parentesco, sendo assim as chances

de ter que se explicar nas reuniões de família eram nulas.

— Controlar os sentimentos — riu desconsolado —. Como se fosse

possível... Eu olho para ela e sinto uma ardência aqui dentro que me fortalece,

enche-me de coragem para dizer tudo o que sinto, mas uma frieza me toma e

com isso o receio em perdê-la.

— É o amor — o homem riu divertido —. O velho e bom amor... Se você a

ama tanto quanto diz se declare o quanto antes, arrisque-se logo que possível,

você vai ver como as coisas serão melhores, como tudo ficará mais fácil. Vai

poder dizer o que está entalado na garganta sem medo de ser feliz, sem o receio

de estragar tudo.

— Eu posso me declarar aos poucos — os olhos castanhos se encheram de

brilho —, posso conquistá-la vagarosamente e quando sentir que tudo está

consolidado...

— Diga eu te amo!

Professor e aluno sorriram, o amor seguia sua obra.

Ao sair da sala Gustavo encontrou seus três amigos o aguardando, sorriu

para Júlia, pegou na mão de Isaque e deu um beijo sem vergonha alguma no

rosto de Gabriela, uma atitude inesperada, porém a certa.

— Vamos? — sorriu animado —. Vamos nos permitir! — seu melhor

amigo também sorriu entendendo a indireta.

Para que ter medo se ser feliz é bem melhor?

<<>>

Contagiado por aquilo que o parceiro de longos anos vivia, Isaque

convidou a garota pela qual era apaixonado a um passeio pelas ruas da Cidade

da Paz, queria arriscar um futuro desejado. Vestiu sua melhor bermuda jeans, a

melhor camisa estampada e calçou os tênis descolados, passou o marcante

Sintonia, ajeitou o penteado no espelho, deu uma piscadela e saiu em busca da

felicidade.

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Ao escutar a campainha do apartamento tocar, Júlia passou a mão pelos

fios loiros jogando-os um pouco sobre a testa, respirou sobre a mão querendo

sentir o próprio hálito, abriu a porta com nervosismo.

— Podemos ir? — o garoto sugeriu.

— Claro — ajeitou a bolsa no ombro sorrindo tímida.

Era um passeio simples, sem algum destino concreto, apenas para que as

horas se passassem com uma boa conversa se desenrolando. Passando em

frente a uma sorveteria o rapaz decidiu demonstrar um gesto cavalheiro e

convidou sua companhia a um sorvete. Sentados, um de frente para o outro,

enquanto se refrescavam do calor de trinta graus, Isaque indagou:

— Já namorou?

A pergunta inesperada provocou o riso em Júlia, que sincera respondeu:

— Muitas vezes.

A resposta espantosa provocou algo estranho no interior do garoto, seria

ciúmes? Não! Ele não admitia sentir ciúmes!

— Quero dizer com sentimento, se namorou por amar...

— Na verdade não — o olhar vago parecia buscar alguma lembrança

distante —. Nunca amei por amar, apenas por prestígio.

— Tem medo de amar? — ele queria chegar a um ponto específico,

começou a preparar o caminho.

— Eu não acredito no amor — a revelação fora surpreendente —. Uma

garota abandonada pela própria mãe e que ainda vive com a rejeição do pai não

pode pensar que a vida é um conto de fadas, no qual um dia encontrará o

príncipe dos seus sonhos e viver feliz para sempre. A vida real nem sempre tem

um final feliz — o desabafo ressentido provocou a compaixão em seu ouvinte,

ele não esperava escutar tais palavras —. Mas e você — seus olhos voltaram a

encarar o mais novo amigo —, acredita no amor?

— Claro — sorriu, disfarçando o espanto pela descoberta —. Ele é que o

acalenta a alma e encanta o nosso modo de viver, aprendi isso com o tempo...

Nunca podemos ter medo de amar, é como ter medo de viver.

Palavras regadas à sabedoria. Júlia se maravilhou com aquilo, jamais

escutara algo tão agradável quando o assunto era sentimento.

— Já viveu um amor? — questionou curiosa.

— Não tive a oportunidade — respondeu simples -. O amor não deve ser

vivido com qualquer um, mas com alguém que nos faça sorrir mesmo quando

todos os motivos que temos são para lamentações, alguém que nos entenda e

nos aceite do jeito que somos. Isso é viver um amor.

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— Como alguém tão sensível nunca atraiu ninguém?

— Atrair eu atraí — encheu-se de orgulho com a diversão no rosto —. Mas

nunca fui atraído. A garota que me atrai talvez não saiba disso, mas eu acredito

que a hora esteja para chegar.

— Confia em mim como sua nova amiga? — a curiosidade cutucou.

— Claro.

— Então me diga quem é, talvez eu possa ajudá-lo.

— Com certeza pode me ajudar.

— E então, quem é?

— Você.

A loira dos olhos verdes ficou boquiaberta jamais passou pela sua cabeça

que aquele garoto pudesse ter algum sentimento por ela.

— Júlia... — Isaque uniu as mãos com suavidade enquanto mantinha os

olhares fixados —. Eu sempre gostei de você, mas precisava conhecer a sua

alma e finalmente alcancei o meu objetivo, ela é tão bela quanto você e precisa

ser amada... Pode parecer loucura, mas eu nunca tive medo de loucuras, antes

as enfrentei audacioso e conquistei muitas coisas, por isso quero saber se você

aceita namorar comigo.

Até aquele ponto os namoros que a garota vivera foram farsas, nunca

tiveram sentimentos envolvidos a não ser os de interesses carnais. Nunca um

garoto a pediu em namoro de forma tão especial, dócil, romântica... Sua

resposta poderia colocá-la em uma história de amor, seu maior medo era o de

amar incondicionalmente e no final de tudo receber o desprezo, a ingratidão e a

solidão. Embora radiante de alegria, o coração da adolescente também se

dividia entre dúvidas.

— Eu posso pensar? — perguntou insegura.

— O tempo que precisar — respondeu compreensivo.

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Capítulo 23

Alguns dias mais tarde...

Era uma agradável tarde de feriado no verão dos últimos dias de fevereiro

que Helena, ainda se denominando Fátima, passava com Júlia no Parque da

Cidade da Paz, dentre os tantos diálogos o que provocava um turbilhão de

sentimentos na adolescente: o pedido de namoro.

— Já aceitou? — a mulher indagou curiosa.

— Ele está esperando até agora — riu se sentindo culpada —. Eu ainda

não sei o que fazer, tenho medo do interesse acabar e tudo o que vivermos ser

jogado fora.

— Quando se ama realmente nunca se cansa de amar — comentou

nostálgica —. Você gosta do garoto?

— Foi o primeiro que aproximou com cuidado, que não me pressionou a

decisões breves, nesses últimos dias descobri nele um papo bom, uma

companhia que sinto mexer com os meus sentidos — deixou o olhar vago para

o céu —. Passei a gostar do garoto que nunca sonhei em namorar.

— Então por que não para de temer ao futuro e se entrega ao presente? —

a mulher viu ao longe mãe e filha se divertindo nos brinquedos infantis e não

pôde evitar que uma flechada atingisse o seu peito, o arrependimento pelo que

fez no passado só aumentava.

— Porque o presente pode estragar o futuro.

Aquilo fazia sentido. Helena reconheceu, mas logo seu conselho driblou o

modo de pensar que a filha desenvolvia:

— O presente só estraga o futuro se a escolha for errada... Acha que

escolher viver algo com o garoto que te pediu em namoro pode ser uma má

escolha?

Na mente de Júlia o rosto travesso daquele que a conquistava a cada dia e

com isso a resposta por entre o sorriso apaixonado:

— Não... Eu tenho certeza que não.

Segurando a mão daquela para a qual desejava revelar toda a verdade, a

psicóloga aconselhou mais uma vez:

— Então viva essa oportunidade sem medo do amanhã.

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A garota deitou a cabeça sobre o colo da que tinha por amiga, agradecia

aos céus por aquela mulher surgir em sua vida enquanto a aflita mãe acariciava

os lisos fios loiros e tentava achar uma maneira de contar o que mais queria.

— Sonha em reencontrar sua mãe? — a inesperada pergunta precisava ser

feita, necessitava de respostas.

Por alguns longos instantes a adolescente digeriu a indagação, um filme

de sua vida passou por seus olhos e com ele a desagradável resposta:

— Prefiro a morte — cheia de rancor —. Ela me deixou como se fosse um

alguém qualquer, um simples brinquedinho do qual ela enjoou e tratou em se

desfazer.

— E se ela explicasse os motivos e tentasse o seu perdão?

— Receberia apenas o meu desprezo! Não há o que justifique uma atitude

que arruinou toda a minha vida.

Antes que pudesse argumentar mais alguma coisa Helena se calou ao ver

a aproximação de Rui, suas pernas pareciam não existir mais e seu coração

parecia ser expurgado pela garganta, o medo erra terrível.

— Boa tarde! — foi simpático —. Que coincidência nos encontrarmos aqui.

— Ou seria perseguição? — Júlia se sentou ao lado da mulher.

— Tenho coisas mais importantes a fazer — revirou os olhos —. Como vai,

Fátima? Pronta para encarar o futuro?

— Sempre preparada — a terapeuta forçou um sorriso, não podia

demonstrar o medo que sentia.

— Assim é melhor, devemos estar sempre prontos para as surpresas da

vida, assim não somos pegos de desprevenidos — sorriu misterioso —. Eu

gostaria de convidá-la para um jantar nos próximos dias, acredito que a minha

filha vá gostar muito! — o plano era nojento, mas esperto.

— Não acho que seja uma boa ideia... — a mulher tentou se esquivar.

— É uma ótima ideia! — Júlia se animou —. E é claro que você não pode

me fazer essa desfeita.

— Então tudo resolvido — o homem possuía um semblante triunfal —,

depois eu te ligo e marcamos — piscou para Helena —, tenho o seu cartão.

O futuro é mesmo uma caixinha de surpresas.

<<>>

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Após um almoço especial na casa de Gabriela, Gustavo foi à casa de seu

velho amigo, enquanto revisavam algumas matérias do colégio o assunto

namoro surgiu:

— Quer dizer que está tomando um chá de cadeira? — o futuro pediatra

não pôde conter o sarcasmo —. Isso é que é ser paciente.

— Por ela eu envelheço esperando — retrucou esperançoso —. Eu sei que

já a conquistei, é só uma questão de muito pouco tempo.

— Como sempre convencido.

— Não é só lorde Gustavo que tem o seu charme.

— Eu ouvi direito? — coçou os ouvidos —. Fui chamado de charmoso?

Um elogio? — colocou a mão na testa do mais velho —. Tem febre?

— Acho que o amor tem me deixado sensível — ironizou —. Mas e quanto

a você? Já se declarou?

— Ainda não...

— Preparando o terreno, não é? — riu travesso.

— Construindo uma fortaleza — piscou maroto —. Mudando o assunto,

como tem sido o tratamento? Está se sentindo bem?

Dizer a verdade ou ocultá-la? Por alguns breves segundos Isaque se viu

entre os dois caminhos, preferiu o mais fácil.

— Muito bem — mentiu —. Nem parece que tenho a doença — queria

evitar preocupações.

— Que bom — fingiu acreditar, sabia reconhecer quando o amigo

escondia as coisas, sabia também que deveria se preocupar.

<<>>

Mais um dia de aula começava, um dia que reservava surpresas.

Logo que chegaram ao Colégio Inova os garotos foram levados pelo

professor de Educação Física, Vicente, à quadra, precisavam acertar detalhes

sobre o campeonato de futebol que aconteceria em poucos dias.

— As inscrições já estão abertas, basta que preencham os formulários —

exibiu o amontoado de papéis que tinha em mãos —. Lembrando que os

participantes serão recompensados na média final além de terem algumas

regalias nas próximas aulas, como por exemplo, serem isentos das cinqüentas

voltas pela quadra, isso, claro, se a sala de vocês ganhar — riu divertido —. E

então cambada — seu jeito de falar era um tanto espontâneo. Soprou o apito

antes amarrado no pulso — Preenchendo!

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Isaque olhou para o papel a ele entregue com animação, entusiasmo, tudo

o que queria era, pelo menos no último ano, fazer parte do time da escola, que

participaria de grandes eventos no final do ano, aquela era uma oportunidade

para que ele demonstrasse seu potencial.

— Não vamos participar — Gustavo tomou o folheto —. Nem eu e nem

você.

Confuso, o adolescente indagou:

— E por que não?! Era o nosso sonho desde que entramos aqui.

— Era, não é mais — o mais novo possuía um rosto sério.

— Você não pode interferir assim na minha vida — em uma tentativa

falha de recuperar o formulário avançou contra aquele que só queria o seu bem

—. Gustavo, para de graça!

— A gente não vai fazer isso — amassou os papéis.

— Qual é?! — irritou-se — Não sou nenhuma garotinha que atende a tudo

o que você pede! Eu quero e vou fazer isso! — deu as costas.

— Você não vai! — segurou-o pelo braço —. Você não deve!

— E por que não?

— Esqueceu do seu problema? Esqueceu que pode morrer? — a teimosia

que o irritava fez com que o futuro pediatra perdesse o controle sobre as

palavras e sobre o tom da voz —. Esqueceu dos limites? Esqueceu que já não é o

mesmo de antes?!

— Esqueci que sou um inútil! — saiu correndo.

Júlia escrevera uma carta sentimental ao novo amigo, nela estava à

resposta para a pergunta feita há dias. Ao vê-lo correndo em sua direção no

pátio da escola se entusiasmou, mas acabou frustrada por ser empurrada pelo

garoto como se fosse invisível. Logo atrás vinha Gustavo, no mesmo fulgor.

— O que está acontecendo?

— Depois eu explico... — voz ofegante.

Conseguindo alcançar o amigo o Romântico Anônimo tentou uma

conversa, mas a fúria de Isaque era forte, fez com que o futuro engenheiro

virasse ao companheiro de tantos anos e lhe desse um soco no nariz

esbravejando:

—Fica longe de mim! Eu odeio você! ODEIO!

Percebendo que sangrava Gustavo desistiu da perseguição, mas não

desistiria daquela com o qual tanto se importava.

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Isaque pegou suas coisas para ir embora, o que conseguiu aproveitando a

distração dos funcionários e o portão aberto. “Inútil”. Uma voz gritava em sua

consciência enquanto corria pelas ruas. “Não pode participar de um simples

campeonato”. A dor na cabeça era intensa. “E ainda por cima atrapalha os sonhos dos

outros”. Tontura forte. Desnorteado, foi parar no meio da avenida. Uma moto o

atingiu em cheio.

A correria no hospital era assustadora, tentavam a todo custo achar um

doador compatível, mas não existia, simplesmente não existia. O doutor Alair já

não tinha soluções; Marcos, que além de pai do acidentado era o diretor do

hospital se desesperava por saber que a cada segundo perdido as chances de

vida do filho diminuíam.

— O que está acontecendo? — Gustavo chegou junto de seus pais ao

agitado lugar e perguntou à Ana com os olhos encharcados, não podia perder o

amigo.

— Ele vai morrer... — a mulher abraçou Juliana, buscando consolo —.

Precisa de medula óssea, eu e meu marido não somos compatíveis e não tem

ninguém que possa doar. A situação está grave, ele vai morrer.

— Eu preciso saber se sou compatível — o garoto suplicou —. Eu quero

saber!

Na pressa das coisas as enfermeiras realizaram o exame, em meia hora

surgiram com o resultado, positivo.

“A culpa é sua. Se não fosse tão direito teria evitado tudo isso, se ele morrer você

será o motivo”. Os pensamentos perturbavam Gustavo.

— Eu vou doar — decidiu convicto.

— Negativo — o doutor Alair recusou —. Não tem idade.

— Não vou ver o meu melhor amigo, o meu irmão, morrer sem fazer

nada!

— Eu não posso autorizar, minha carreira corre riscos!

— Mas eu como diretor autorizo — Marcos agradeceu pelo milagre —.

Assumo qualquer responsabilidade, mas salvem o meu filho!

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Capítulo 24

Pouco antes...

Isaque pegou suas coisas para ir embora, o que conseguiu aproveitando a

distração dos funcionários e o portão aberto. “Inútil”. Uma voz gritava em sua

consciência enquanto corria pelas ruas. “Não pode participar de um simples

campeonato”. A dor na cabeça era intensa. “E ainda por cima atrapalha os sonhos dos

outros”. Tontura forte. Desnorteado, foi parar no meio da avenida. Uma moto o

atingiu em cheio.

O motoboy, que estava em seu horário de serviço, não esperava pela

repentina aparição do garoto, não teve tempo suficiente para desviar, não pôde

impedir a trombada que lançou o adolescente poucos metros a frente, caído no

chão, desmaiado. Também caído, o motoqueiro se levantou depressa,

desesperado ao ver o corpo esticado sobre o chão. Sua reação foi nobre, com

dificuldade sustentou Isaque nos braços e correu com as próprias pernas ao

hospital, que ficava próximo dali.

Entrou angustiado no estabelecimento médico clamando por socorro,

pedindo que salvassem o garoto desacordado. Por sorte o doutor Alair, que

fazia plantão naquele dia, estava perto do paciente e, ao vê-lo, de pronto

concluiu o que acontecia.

— Vamos cuidar dele! — ajudou os enfermeiros a por o rapaz sobre a

maca.

— Eu juto que não foi por querer, eu nem o vi! — o motoboy se justificava

visivelmente abalado.

— Continue o seu dia — o médico pediu —, mas volte mais tarde e

conversamos melhor.

Aquilo não era culpa da quimioterapia, o bom médico tinha certeza, sua

suspeita era de que as células do paciente se enfraqueceram além do esperado,

se os exames confirmassem aquilo aí sim os motivos para preocupações

surgiriam.

Os resultados saíram, a suspeita fora confirmada.

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— Marcos, antes de qualquer coisa preciso que se controle — Alair entrou

na sala do diretor do hospital -. O assunto é sério.

— O que houve? — percebendo que a coisa era grave o homem se afligiu

—. Algo com o meu filho?

— Lamento que sim.

— Diga logo!— o desespero já nascia.

— Ele sofreu um acidente, já está recebendo os cuidados médicos, mas há

um problema maior.

— Meu Deus! — em tom de lamentação o aflito pai passou as mãos sobre

a cabeça, temeroso, receoso.

— Ele precisa urgentemente da doação de medula óssea.

— Ele vai morrer! — Ana entrou em desespero ao receber a notícia —. Nós

já sabíamos que isso poderia acontecer, procuramos em toda a região por

doadores e não encontramos se quer uma pessoa compatível!

— Deve haver uma solução — o médico estava pensativo.

— Ela pode estar longe — o diretor comentou desesperançoso —, talvez

não dê tempo — deu um soco na mesa em um momento de ira, sentia-se

perdido perante o transtorno —. Nem para doar algo para o meu próprio filho

eu sou capaz!

Ana também não possuía compatibilidade, ao escutar aquilo saiu correndo

pelos corredores do frios, culpando-se por não poder fazer nada por aquele que

tanto amava; chorando amargamente.

<<>>

Cabisbaixo, após deixar Gabriela em sua casa, Gustavo seguiu seu trajeto

tendo o nariz revestido por curativos feitos na enfermaria do colégio, havia se

quebrado com o soco que recebera. Entre seus pensamentos a dúvida se Isaque

o perdoaria por ter sido um tanto rude, nada do que havia dito tinha por

intenção machucar, ofender, fora a forma que ele encontrara para proteger

aquele que não queria perder, mas que agora já poderia ter perdido.

Ao chegar em casa assustou a mãe.

— Envolveu-se em brigas? — Juliana o indagou pasma.

— Isaque... — respondeu abatido.

— Isaque? — assustou-se —. Como, se está internado?

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— Internado? — o futuro pediatra não evitou o espanto —. Por que

internado?

— Sofreu um acidente e agora corre riscos — a mulher declarou

entristecida —. Sua tia ligou contando.

“A culpa é toda sua”. Uma voz soprou em seu ouvido, era o consciência que

o convencera daquilo tão brevemente.

<<>>

Tudo aconteceu muito rápido. Uma vida precisava ser salva.

Gustavo adentrou o centro cirúrgico vestido naquela roupa que mais

parecia um pijama, a característica vestimenta hospitalar. O lugar era

depressivo, provocava o aperto no coração, as inúmeras aparelhagens

espalhadas pelo espaço causavam aflição, mas tudo ali estava por uma boas

causas.

— Deite-se aqui — o anestesista indicou a maca, possuía cordialidade no

modo de falar —. Não se preocupe, o procedimento é simples. Fiquei sabendo

que são melhores amigos, pense que a vida dele depende dessa boa ação que

terá, imagine que agora ambos terão uma ligação ainda mais forte.

Ajeitando-se na estranha forma da cama cirúrgica o Romântico Anônimo

não pôde controlar a lágrima sentida que rolou por seu rosto e com ela a

angustiada pergunta:

— Ele vai ficar bem?

— Com a sua ajuda, sim — o médico encontrou a veia do rapaz, injetou ali

a agulha, entregou uma máscara de gás que deveria ser colocada sobre o rosto e

pediu: — Conte de dez a um.

— Dez... Nove... Oito... Sete... — sentiu como se a mente se libertasse do

corpo que a prendia —. Seis... Cinco... — tudo girava —. Quatro... Três... — não

pôde concluir. Começava uma importante etapa.

Os olhos castanhos se abriram.

Gustavo não se lembrava do motivo que o levara a estar sobre a cama do

quarto de um hospital, mas as lembranças voltaram como em um passe de

mágica ao ver o rosto de Ana.

— Você foi um verdadeiro herói — a mulher era agradecida, os olhos

inchados de tanto chorar agora davam lugar a um sorriso repleto de esperança

—. Serei eternamente grata à sua bondade.

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— Foi uma prova de amizade — a mãe do garoto acariciou sua testa —. A

maior prova que já vi em toda minha vida.

— Apenas fiz o que deveria fazer — a voz soava fraca e as costas pareciam

arder, o que seria extremamente normal por alguns dias —. Afinal de contas a

culpa é toda minha — a revelação era um tanto surpreendente —. Ele queria

participar do campeonato de futebol, mas eu o impedi, disse que existiam limite

que o impossibilitavam... Ele julgou tudo como se eu o tivesse chamado de

inútil e, então, saiu descontrolado.

— Não se preocupe com isso, meu bem — Ana segurou a mão daquele

que tinha por membro da família —. A culpa não é sua, não é de ninguém,

talvez seja apenas da teimosia do seu amigo, que insiste em cegá-lo para a

realidade.

— Eu não quero perdê-lo — a afirmação em tom de súplica foi feita com o

choro sentido que se manifestava —. É o meu único amigo em um mundo no

qual não se pode confiar em qualquer um, construído a base de mentiras, não

posso perder uma amizade de tanto tempo...

— Tudo vai ficar bem — Juliana sentiu o coração se quebrantar —. Eu

prometo.

Após vinte e quatro horas Gustavo seria liberado da internação, Isaque,

por sua vez, ficaria no isolamento já que por um certo período, até que o

organismo se acostumasse com as novas células, ele ficaria muito mais

vulnerável a infecções ou outros problemas. No entanto o doador da vida

ficaria oculto, pelo menos até ele estar pronto para receber a notícia.

Durante os dias que se passavam o futuro pediatra apenas pensava em

soluções para conquistar o perdão do melhor amigo, imaginar que aquela

amizade tão única em sua fórmula estaria arruinada provocava angústias em

seu peito. Ele não poderia aceitar aquilo. Ele não aceitaria aquilo. Nunca

desistiu das pessoas que eram realmente importantes em sua vida, não era

agora que desistiria.

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Poucos dias mais tarde...

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O mesmo domingo que para uns era vivido tranquilamente em um parque

florido, para outros era propício a lutar pela vida. A última situação era a que

descrevia Isaque, que já no quarto aguardava ansiosamente pela notícia de alta.

— Toda essa ansiedade para reencontrar o amigo? — Ana jogou sua

indireta.

— Ele não é meu amigo — revirou os olhos, entendera a referência —.

Amigos não nos privam dos nossos sonhos.

— Não se for para o nosso bem — a mulher aconchegou o filho em um

abraço —. Os amigos são capazes de qualquer coisa para o nosso próprio bem,

você não imagina.

— Amigos de verdade, não o Gustavo...

— Acha mesmo que essa besteira pode ser capaz de destruir uma amizade

construída há anos?

— Uma besteira? — sentado na cama o adolescente se afastou da mãe,

encarando seus olhos —. “Essa besteira” me fez ter que receber uma doação! Eu

quase morri!

— Não seja tão infantil, você sabe que mais cedo ou mais tarde iria

precisar disso — a afirmação fora um tanto agressiva ao garoto que nos últimos

dias se mostrava sentimental ao extremo. Percebendo isso, Ana se retratou —.

Desculpe, eu não quis dizer no sentido que está pensando. Só quero que abra os

olhos e veja que se não tiver mais Gustavo como amigo para toda hora será

difícil encontrar outra pessoa para confiar...

— Esse doador tão misterioso se mostrou mais amigo que certas pessoas

— disse aquilo como se dissesse que encontrar outra pessoa não fosse tarefa

difícil.

— Ah! É? — a mãe sorriu —. Então vamos acabar com esse mistério, eu já

volto com o seu doador.

Isaque não podia acreditar naquilo, ficou boquiaberto procurando

palavras a declarar, mas sem as encontrar. Sentiu algo diferente em seu peito,

uma emoção que nunca sentira, jamais poderia imaginar quem fora o seu

espontâneo doador. Ele sabia que doar era uma prova de amor ao próximo, mas

quando o doador era alguém tão íntimo existiam sentimentos além envolvidos,

sentimento de parceria, de companheirismo, de amizade sincera, do amor em

mais uma de suas formas: amor de amigos, um amor que quando verdadeiro,

nada é capaz de abalar. As lágrimas de alegria, satisfação e felicidade correram

pelo rosto que ainda possuía tracejos da infância.

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— Eu disse que poderia contar comigo para tudo — Gustavo declarou

tento os olhos encharcados, incerto se dava ou não um abraço naquele que

quase perdera para as adversidades de uma doença, aquele que amava como

seu irmão —. E cumpri a minha promessa.

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Capítulo 25

“Era o primeiro dia de aula na primeira série. As crianças corriam de um lado

para o outro eufóricas, os inspetores pareciam enlouquecer tentando acalmá-las,

enquanto tal proeza apenas era conquistada pelas dóceis professoras. Vendo os pais

partirem alguns dos pequenos choravam como se estivesse sendo abandonadas enquanto

outros, com um sorriso satisfeito, davam tchau como se quisessem mesmo de um tempo

só para eles.

No primeiro dia em um ambiente totalmente desconhecido é normal as crianças se

acanharem, assustarem-se, não foi diferente com o pequeno garoto loiro, que possuía

arredondados olhos verdes e uma bochecha que convidava uma mordida, além das

covinhas que lhe garantiam adjetivos como ‘fofinho’ e ‘lindinho’; ele entrou na escola

segurando firme a mão de sua mãe, fazendo força para não chorar já que fora avisado de

que aquilo seria um tanto vergonhoso, mas os olhos avermelhados e o beiçinho que se

formava denunciavam o seu medo.

— Vai ficar tudo bem, meu amor — a mãe, com muito carinho, depositou um beijo

na cabeça do querido filho —. Logo venho lhe buscar.

Vendo a mãe partir o menino respirou fundo, entrou na sala, cumprimentou a

professora e escolheu um lugar no canto, onde imaginou que não seria incomodado.

Ajeitou a mochila no encosto da cadeira e a lancheira colocou entre os pés, precisava

proteger a comida em seus pensamentos infantis.

Com o passar dos minutos a sala se encheu, mas o silêncio que imperava naquele

lugar deixava em dúvida se todos ali eram mesmo crianças. O último a entrar foi um

garoto de cabelos pretos que lhe garantiam uma franja incômoda sobre a testa e cobria,

por vezes, os olhos castanhos; as bochechas rosadas também possuíam covinhas, com um

rosto assustado encarava a todos que o encaravam também, uma péssima experiência,

sentiu vontade de correr, mas precisava mostrar que era corajoso, segundo as instruções

dos pais. O único lugar que restara era atrás do garoto loiro, ele não teve outra opção.

Querendo quebrar o gelo entre seus alunos a professora sugeriu que formassem

duplas, um arrasta-arrasta de mesas e cadeiras tomou conta da sala de aula, as duplas se

formaram. Dois alunos, porém, mantiveram-se imóveis, como se não tivessem entendido

o pedido, Cecília, então, precisou interferir.

— Vocês podem se sentar juntos? — a primeira professora daquelas crianças

possuía um cabelo que caía sobre os ombros, alta, usava óculos que escondiam os lindos

olhos brilhantes e a sua doce voz parecia materna, seu jeito carinhoso a transformava em

uma irmã daqueles pequenos.

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— Claro — o de cabelos pretos, percebendo que o colega a sua frente não

responderia, tomou a palavra e levou a carteira ao seu lado.

— Muito obrigada — Cecília agradeceu.

— Eu sou o Gustavo — com aquele jeito de criança estendeu a mão a um

cumprimento.

O loiro encarou o garoto ao lado por alguns segundos, acanhado deu as mãos.

— Isaque.

A aula teve início.

— Podem pegar os lanches e irem ao pátio — a professora informou após o sinal

bater —, vemo-nos daqui a pouco.

— Esse é meu! — um garoto de aspecto valentão, o maior da sala, segurou a

lancheira de Isaque, seu olhar era intimidador.

O menor estalou os olhos, os lábios tremulavam amedrontados e o rosto ganhava

um semblante choroso.

— A margarida vai chorar? — o valentão gargalhou tomando o que queria com

violência —. O que temos aqui? — abriu —. Só coisas gostosas... É meu!

Vendo que a professora estava distraída com algumas alunas que por certo

trocavam figurinhas Gustavo se compadeceu pelo colega que estava a ponto de desmaiar

com tudo aquilo e reagiu:

— Se eu fosse você não faria isso.

— Qual é baixinho? — começou a dar socos nas mãos, assustando ainda mais

Isaque —. Vai encarar? Tenho o dobro da sua idade! — com toda a valentia, mentiu, era

no mínimo alguns dois anos mais velho, repetira a primeira série ao menos duas vezes.

— Eu acho que a diretora vai gostar de ver você — Gustavo ameaçou sem medo s

sem saber atingira o ponto fraco do opressor.

— Mas eu não — largou a lancheira —. Pego vocês na saída — é claro que não

faria aquilo, mas não queria demonstrar o medo.

Certo de que tudo ficaria bem Isaque agradeceu tímido:

— Obrigado...

Mais extrovertido Gustavo abraçou o novo amigo fazendo uma promessa:

— Pode contar comigo para tudo”.

Toda aquela lembrança invadiu a mente do agora destemido adolescente.

Isaque viu que o amigo não se esquecera de como tudo começou, percebeu que

aquele era de fato o companheiro que o ajudava em todos os momentos. Com

certa dificuldade se levantou da maca, caminhou vagarosamente até o menor

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mantendo a seriedade no rosto, próximo daquele que tanto gostava deixou uma

lágrima cair, abriu um sorriso, cedeu o abraço.

O medo que consumia Gustavo se desfez em pedaços, agora tinha certeza

de que tudo continuaria bem, de que as coisas ainda seriam como eram antes,

não perdera uma pessoa tão importante em sua vida. Abraçado aquele que

tinha por irmão reclamou, em tom descontraído, com a voz embargada:

— Quebrou o meu nariz.

— Nem ligo — o mais velho zombou —. Eu gosto muito de você, irmão...

— era um pedido de desculpas.

— Eu também te amo, irmão — a prova de que a cumplicidade sincera e

amizade verdadeira continuariam.

Amigos não podem dizer que se amam? Qual é o ignorante que formulou

tão ultrapassada “regra”?

Ana não pôde conter as lágrimas emotivas, assistiu ao que é um

sentimento cercado de veracidade; aquilo atingiu o seu coração.

<<>>

Desde o dia em que Isaque sofrera o acidente, Júlia se indagou pelo que

estaria acontecendo, o porquê do garoto ficar tão mal ao ponto de precisar de

uma doação, buscou informações em Gustavo, o qual revelou a verdade na

intenção de preservar a história que apenas começava. A partir dali indagações

surgiram na mente da garota, não eram do tipo “quer mesmo ficar com um

doente?”, mas sim “e se perdê-lo?”. Precisava visitar aquele que a acolheu,

precisava declarar sua resposta.

— Júlia? — o rapaz se espantou com a visita noturna.

— Sim — desacompanhada entrou no quarto, um tanto acanhada.

— Vou deixá-los a vontade — Ana fechou a revista —, qualquer coisa

estou na cantina.

A sós com aquele que despertava sentimentos confusos em seu peito a

adolescente declarou seu desapontamento:

— Por que não me contou antes? Por que escondeu de mim?

Isaque já imaginava o que estava em questão, suspirou desconsolado,

respondeu abatido:

— Quem vai namorar com um doente? Com um alguém que não é capaz

de nem ao menos fazer parte do time de futebol da escola?

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— Amar de verdade não é amar o que as pessoas têm, mas o que elas são

em sua integridade — a garota que esbanjava brilho nos olhos verdes mostrou

também sua sabedoria —. As conquistas não querem dizer nada sobre o caráter.

— Mas e quanto à doença? Vai me dizer que é seu sonho namorar um

doente?

— Leia isso — entregou uma carta manuscrita —. Eu iria lhe dar no dia em

que se acidentou. Leia e saiba a minha resposta.

O garoto temeu, ali poderiam estar escritas palavras amargas ao paladar,

palavras que o afligiriam como uma seta aflige as aves nos céus, palavras de

desânimo. Mas precisava saber a verdade, precisava entender como a vida

fluiria dali por diante.

Querido Isaque,

Há alguns dias me indagou com a pergunta que a maioria

das garotas na minha idade sonha em ouvir: “aceita namorar

comigo?”. Confesso que eu jamais esperei por isso, sempre levei a

vida na diversão, na zoeira, é claro que as confusões cercariam

minha pobre mente.

Conhecê-lo me fez mudar de visão e pensamento. Eu queria

enxergar as coisas como você as enxerga, com suavidade, atenção,

buscando nos mínimos detalhes algum sentido para a vida; eu

queria saber viver, assim como você.

Não queria me afastar. Talvez o medo pelo futuro, herança

das experiências passadas, colocou as indagações em minha

mente, eu não queria transformar uma amizade que estava

apenas começando em uma tragédia caso o namoro não

funcionasse. Eu estava decidida a vê-lo somente como um amigo

e assim permanecer, mas a decisão racional é uma, a emocional

é outra.

Fomos nos envolvendo e eu descobri em você alguém disposto

a me dar carinho, atenção, companheirismo e cumplicidade;

alguém que me aceita pelos meus defeitos e que se mostra sempre

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apto a entendê-los; alguém que faria meus dias cinzentos se

transformarem em dias ensolarados.

É claro que eu aceito ser a sua namorada.

Com amor,

Júlia.

A cada palavra lida e vírgula notada o coração do jovem adolescente

pulsava apaixonado, finalmente tinha em mãos a resposta para uma pergunta

delicada, não era uma simples resposta, era uma verdadeira declaração de amor.

Motivos para a sua felicidade não faltavam, afinal de contas era aquilo o que

mais queria, mas as dúvidas logo surgiram tentando privá-lo de viver algo que

tanto almejava.

— Nas atuais circunstâncias não acho que seja uma boa ideia — declarou

sério —, estou doente e você não pode...

Júlia o calou com um beijo apaixonado, há muito planejado, um beijo que

os tirou daquele quarto de hospital e os levou a um reino distante, onde impera

o amor; um beijo que marcava o início de um novo capítulo na história de

ambos os jovens amantes.

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Capítulo 26

“Eduardo, com toda sua imaginação e incertezas, levou a garota pela qual estava

apaixonado ao parque de árvores altas, flores encantadoras, perfume agradável e vento

refrescante, onde diversas histórias de amor passaram a escrever capítulos diferentes,

capítulos queridos, capítulos transformadores, envolventes.

Laura, sempre tímida e incerta quanto a sua vida, não via no garoto um simples

amigo, um alguém não pudesse abraçar do modo como gostaria, aconchegar-se no calor

do seu corpo como almejava, beijá-lo como desejava. Ela via naquele garoto o amor de

sua vida, via naquele garoto o homem que queria ao seu lado para sempre, um alguém

com quem construiria um futuro brilhante, alguém que chamaria de seu para o resto dos

dias.

O jovem receoso, enquanto caminhava junto à adolescente pelos corredores de

arbustos, criava na própria mente cenas que precisavam sair da imaginação e mergulhar

na realidade, planejava frases para o pedido que sonhava em realizar, mas poderia

colocar tudo o que viveram no esquecimento, poderia terminar com uma amizade

consolidada, com uma cumplicidade que só aumentava. No entanto ele não podia

continuar com aquilo, amava-a não como uma irmã, mas como a garota que seria a

mulher da sua vida, precisava declarar os verdadeiros sentimentos e, assim, lutar pelo

porvir.

— Sente-se aqui — indicou o banco para a amiga —, eu tenho uma importante

coisa a dizer.

Laura já imaginava aquele momento, sabia que entre os dois não existia uma

simples amizade, sabia que o que os unia era o amor, mas ainda assim estava insegura.

— Eu não sei ao certo como começar isso, mas peço que tente me entender — o

garoto desviou o olhar para o vazio enquanto as palavras eram ditas —. Você deve saber

o quanto me importo contigo, o quanto é importante para mim e o quanto considero a

sua companhia — suas mãos começavam a ficar pegajosas e o peito acelerado —. Mas a

verdade é que o que sinto por você não é amizade, um dia foi, mas hoje não mais — deu

uma ligeira pausa —. O que quero dizer é que o que sinto por você...

— É amor! — a garota completou desenhando um sorriso exuberante,

surpreendendo Eduardo, que sentiu as coisas se tornarem fáceis —. É claro que é amor!

Eu te amo, você me ama, nós nos amamos e o que eu mais desejo é viver esse amor!

O adolescente antes inseguro agora estava satisfeito com a própria atitude, iria

sim viver um amor com aquela que tanto amava.

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Laura, por sua vez, se sentiu orgulhosa por ter tido coragem em declarar seus

sentimentos sem receios, sem medos, afinal de contas que mal há em amar?

Prendendo os olhares que pareciam se completar Eduardo aproximou seu rosto da

que seria sua namorada, tocou os narizes, provocou o riso apaixonado de ambos e uniu

os lábios em um beijo repleto de amor, de nobres sentimentos, de ternura, de alento às

almas que se desejavam”.

Finalmente Gabriela terminara de ler o livro recomendado por seu grande

amigo, satisfeita com o final jogou as costas sobre a cama, levou o livro ao peito

o abraçando e abriu um sorriso bobo. Seu sonho era viver aquilo que seus

personagens queridos conseguiriam viver.

Batendo na porta antes de entrar a mãe da Adolescente Apaixonada

apareceu com uma caixa em mãos, sentando-se ao lado da filha declarou o que

estava estampado no rosto da garota:

— Pensando em Gustavo?

— Mãe? — assustou-se, seus devaneios a tiraram do mundo real por

alguns segundos, nem mesmo a batida na porta escutara —. Não sei do que está

falando — porém a face ruborizada revelava a verdade.

— Tudo bem, então — Laura fingiu acreditar —. Pegue isso — guiou as

mãos da filha sobre a caixa embrulhada em um elegante papel de presentes —.

É para você.

A sós em seus aposentos Gabriela, curiosa, desembrulhou o presente,

descobriu uma caixa de chocolates, passando os dedos percebeu o formato de

coração e descobriu no seu fundo um cartão preso pela fita de cetim que

envolvia a surpresa. Com atenção desfez o nó, com ansiedade passeou o

indicador pelas saliências no perfumado papel.

Querida Gabriela,

Sabe aquele dia que acordamos com uma vontade tão grande

em fazer a diferença na vida daqueles que tanto amamos? Pois é,

hoje eu acordei assim e a primeira pessoa que surgiu na minha

mente foi você. Eu precisava revelar isso, precisava contar que

até em meus sonhos a sua presença me privilegia.

Quero que receba esse presente não apenas como algo

material, algo que o tempo é capaz de destruir, mas sim como

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algo sentimental, que sempre será eteno. Embora o presente seja o

tal material a intenção surgiu do meu coração, ele bate por você.

Romântico Anônimo.

O sorriso bobo foi ainda maior. Aquela declaração provocou arrepios em

sua pele e paz no seu espírito.

Estudando para o vestibular do fim de ano Gustavo se concentrava nas

tantas contas quanto o rosto de um alguém especial dominou seu pensamento.

A concentração se esquivou, a vontade de estudar também, ele precisou

desbloquear o celular e encarar por algum tempo seu papel de parede que

mostrava o dia no Parque da Cidade, quando Gabriela o beijara no rosto e o

momento ficara eternizado em uma foto.

Seu coração pulsou de uma maneira diferente, de uma forma mais forte,

quanto mais encarava a fotografia mais o garoto desejava estar ao lado daquela

que inundava sua mente, circundava seus sonhos, provocava aquele misto de

sentimentos. Suspirou incerto quanto ao que faria, declararia de uma vez tudo o

que sentia ou não? Tinha medo, o medo que aflige todos os apaixonados, o

medo que mais tarde se transforma em coragem, a coragem que garante a

experiência da paixão.

<<>>

Era uma sexta-feira cheia de tensões à Helena, que teria um compromisso

pelo anoitecer, um compromisso nem um pouco desejável, um compromisso

que mudaria muita coisa caso a vingança de um homem falasse mais alto.

Era a noite do jantar na casa de Rui.

A terapeuta não pôde recusar o convite, seria uma desfeita para Júlia, que

muito gostava de sua companhia, sua única opção fora passar o dia todo se

preparando para o pior, organizando seus pensamentos para que pudesse

argumentar, defender-se, explicar suas razões.

Estacionou em frente ao prédio, olhou para as estrelas e suspirou

apreensiva, desceu do carro sentindo a angústia que apertava seu peito e

sufocava a garganta. Tocou a campainha, foi recebida calorosamente pela filha.

— Fátima! — a garota sentia-se feliz, seus olhos demonstravam seu

contentamento —. Preparamos uma lasanha saborosa!

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— Quer dizer que você cozinha? —a psicóloga forçou o sorriso, queria

ofuscar todo seu nervosismo.

— Eu tento — Júlia foi modesta —. Vamos, entre, meu pai está arrumando

a mesa.

— Seu pai organizando um jantar — Helena demonstrou desconfiança —.

O que será deu nele?

— Ele tem mudado nesses últimos tempos, parece mais próximo.

— Isso é bom?

— Acho que sim, prefiro não tirar conclusões tão logo, apenas aproveito o

presente.

— Fátima! — o homem apareceu na sala do apartamento cumprimentando

a visita com cortesia —. Minha filha não falava em outra coisa que não fosse

esse jantar.

— É bom saber que sou querida — a mulher se confundia com tudo aquilo,

não sabia ao certo quais eram as intenções do ex-marido, se via em uma

angustiante incógnita.

— Muito querida — Júlia a abraçou com entusiasmo.

— Pois então vamos comer, já está tudo pronto.

Realmente o paladar de Helena confessou que a lasanha estava ótima, foi

na terceira garfada que a ficha caiu: aquele era o seu prato predileto, Rui sabia

disso, as dúvidas aumentavam.

— Gosta de lasanha? — o homem indagou sorrindo.

— Muito — a terapeuta respondeu ainda mais desconfiada —. Na verdade

sempre gostei.

— Não disse? — dirigiu-se à filha —. Sempre estou certo em minhas

suspeitas, eu falei que ela amaria a nossa lasanha.

— Nem todo mundo é igual — a adolescente revirou os olhos —, mas

parabéns pelo acerto.

— Está mesmo muito boa — a psicóloga elogiou.

— Eu sei — ele era convencido —. Por que se tornou terapeuta? — lançou

a pergunta como se planejasse iniciar um amistoso e distraído diálogo.

— Por muitas razões — a mulher pensou um pouco mais —, ma a

principal é que sempre tive o desejo de ajudar aqueles que precisam, fazer a

diferença na vida das pessoas, esse foi o melhor caminho.

— Que é trilhado com perfeição — Júlia declarou admirada —. Essa

mulher foi uma das melhores pessoas que entraram em minha vida.

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— Eu imagino — Rui tomou um gole do refrigerante —. Mas não é

desgastante ouvir o problema dos outros todo o santo dia?

— Não quando se quer ajudar, quando se sente bem ajudando — a

psicóloga respondeu —. Eu amo o que faço, não tenho motivos para me

arrepender, sinto-me bem assim.

— E família? — o que se encaminhava como sendo uma conversa entre

amigos se mostrou um embate de inimigos —. Seu marido, seus filhos. Não têm?

— Nunca me casei e nem nunca tive filhos — Helena, antes relaxada,

voltou a sentir o pavor.

— Nunca? — o homem perguntou em tom irônico —. Vai mesmo renegar

os seus pela segunda vez?

— Eu não estou entendendo.

— É claro que entende...

— Pai, o que está fazendo?

— Apenas descobrindo a verdade — levantou-se calmamente e caminhou

até o bar, pegou da estante uma garrafa de vinho, virou o líquido fresco em

uma taça de cristais e deu o primeiro gole mantendo o sorriso superior — Ela é

a sua mãe — mostrou satisfação com o gosto da bebida.

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Capítulo 27

Revelações um tanto bombásticas custam a serem digeridas, aceitas por

aqueles que as recebem, ainda mais quando podem mudar o modo de viver, o

modo de encarar a realidade, o modo de enfrentar o mundo com a sua verdade.

Júlia ficou estática por alguns segundos encarando aquela que tinha por

grande amiga, aquela que tinha por melhor pessoa em sua vida, aquela que

conquistara sua confiança. Não podia acreditar que a bela história não passava

de uma grande farsa. Forçou um sorriso e, calmamente, fez sua indagação:

— Isso é mentira, não é?

A terapeuta apenas mexia os lábios, a voz não saía, sua garganta parecia

estar travada, amarrada por alguma coisa.

— Apenas diga que é mentira e vamos continuar o jantar — a garota dos

olhos verdes fez seu pedido.

Helena pensou em desmentir aquilo, desejou se esquivar do problema da

maneira mais fácil: ocultando a verdade, escondendo o passado e evitando suas

duras consequências. A mulher já conhecia a própria filha o suficiente para

saber que se revelasse a verdade seria desprezada, não alcançaria o perdão,

teria que conviver com o ódio de alguém que amava, com a repulsa de alguém

que queria sempre ter ao lado.

— É claro que é... — a voz trêmula não pôde completar a frase.

— Verdade — Rui se aproximou tranquilamente da mesa tendo em mãos

a taça de vinho e no rosto um olhar triunfal —. Helena... Helena... Não cometa o

mesmo erro do passado, você conhece os resultados, não renegue aquela que

saiu de suas entranhas, não pela segunda vez.

— Helena? — a adolescente questionou confusa —. Do que estão falando?

O que querem dizer? — angustiava-se.

— Não dê ouvidos a esse louco — a psicóloga se levantou depressa,

intencionava ir embora.

Porém Rui sempre foi esperto, antes de agir pensava em como dar os

passos, imaginava os caminhos que se formariam. Rindo irônico tirou do bolso

as chaves, provocou:

— Vai continuar sendo a Helena do passado? Vai mesmo renegar a filha e

fugir dos problemas como sempre fez?

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— Cala essa boca! — a mansa e tranquila terapeuta se transformou em

uma descontrolada e irada mulher —. Você não tem o direito de destruir a

minha vida dessa maneira! Você não pode me privar de corrigir os erros!

— Fátima? — Júlia já compreendia tudo, com lágrimas nos olhos deu mais

uma chance para que as coisas se explicassem e, insistiu em acreditar que tudo

não passava de uma grande confusão —. É esse o seu nome, não é?

— O nome dela é Helena — o homem jogou as chaves sobre a mesa e

dando as costas sugeriu: — Entendam-se, você finalmente descobriu quem é a

mulher que lhe abandonou covardemente — debochou no tom de voz —. Boa

noite, queridas.

— Desgraçado! — a psicóloga agarrou o empresário por trás antes que ele

pudesse subir as escadas, jogou-o contra a parede —. Como pode ser tão

desprezível?

Rindo como se tudo aquilo o divertisse Rui respondeu:

— Eu disse que não facilitaria as coisas.

Descontrolada, Helena deu início às bofetadas que distribuía no ex-marido,

que não reagia, apenas gargalhava irritantemente.

— CHEGA! – Júlia tirou a mãe de cima do pai empurrando-a brutalmente

—. Eu não posso acreditar que no que está acontecendo! — o rosto da garota

estava encharcado pelo amargo choro —. Como pôde ser tão ridícula ao ponto

de se fazer de minha amiga esse tempo todo enquanto não passava da

causadora do meu sofrimento?! — não hesitou ao descarregar sua raiva em um

tapa no rosto daquela que lhe concedera a vida, naquela que sempre desejou

encontrar para desabafar ira que sentia — Faz ideia do que eu passei?!

Consegue imaginar as dúvidas que cercavam minha mente?! Sempre achei que

fui a culpada pela sua rejeição, sempre achei que o problema era eu, mas agora

sei a verdade — sua voz aumentava conforme a raiva em seu peito crescia —.

Você é o problema! Você é a desprezível! VOCÊ!

— Eu quero que me perdoe! — jogada ao chão a mulher pediu entre as

lágrimas de dor e desespero —. Eu imploro!

— Sabe o que vai receber de mim? — apontou o dedo no rosto da

psicóloga, tamanho era seu abatimento —. NOJO!

Cegada pelo ódio que dominava sua mente Júlia pegou as chaves e saiu

do apartamento, correu para fora do prédio sem um objetivo ou um destino

certos, apenas correu.

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— Satisfeito? — desconsolada, Helena se levantou e pegou sua bolsa —.

Agora pode organizar uma festa para comemorar o sucesso do seu plano —

limpou o choro —. Conseguiu transformar a minha vida em um inferno!

— É só o começo — ainda no chão o homem começava a sentir os efeitos

da bebida forte, mas ainda era lúcido às provocações: — Eu quero que você

sofra o dobro de tudo que sofri.

As lágrimas se intensificavam na desesperada terapeuta, que de cabeça

baixa saiu dali.

<<>>

“[...]

— Helena... Helena... Não cometa o mesmo erro do passado, você conhece os

resultados, não renegue aquela que saiu de suas entranhas, não pela segunda vez.

[...]

— Vai continuar sendo a Helena do passado? Vai mesmo renegar a filha e fugir

dos problemas como sempre fez?

[...]

— O nome dela é Helena — o homem jogou as chaves sobre a mesa e dando as

costas sugeriu: — Entendam-se, você finalmente descobriu quem é a mulher que lhe

abandonou covardemente.

[...]”

Quanto mais corria pelas escuras ruas da Cidade da Paz mais sua mente

era perturbada por aqueles flashes de lembranças. Júlia sentia algo no peito que

jamais sentira, algo que parecia subir para a garganta e sufocá-la cruelmente,

era a dor na alma, uma dor gerada pela decepção, pela desilusão, uma dor sem

limites que pode até matar.

A adolescente queria se desligar do mundo e de toda aquela brutalidade.

Voltou ao bairro afastado da cidade, onde a violência e a índole duvidosa

ditavam as regras, indicavam que entrava e quem saía, quem vivia e quem

morria.

Certa do que faria, sentindo-se consumida pela profunda angústia, a loira

dos olhos verdes se aproximou de um grupo de jovens açoitados pela crueldade

do mundo, que deliravam sobre a paz que almejavam conquistar. Entregou

algumas notas de alto valor ao que parecia o mandante de tudo e se afastou dali

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com uma garrafa de bebida fatal e alguns pacotes de produtos que poderiam

lhe garantir a tranquilidade.

Olhou ao redor da rodovia movimentada, não achando algum lugar

reservado adentrou a mata iluminando o caminho com a lanterna do celular.

Sentou-se ao lado de uma árvore seca, destampou a garrafa ingerindo grandes

goles do líquido que ardia ao descer, mas que mais tarde a tiraria do mar de

sofrimento. Abriu os pacotes, fez as misturas que já conhecia, acendeu o

isqueiro, embriagou-se na ilusão dos entorpecentes. Dava início à busca pela

paz.

<<>>

Ao ver a filha sair tão desconsolada e desesperada com tudo o que

descobrira, Helena se angustiou como uma verdadeira mãe. Dirigindo atenta

pelas ruas e avenidas, adentrava cada bairro à procura da garota, mas nada

encontrava, nem sequer uma pista por aqueles que ainda estavam acordados.

Mas uma lembrança especial a levou de volta no primeiro lugar em que se

encontrou com a jovem adolescente, mas também nada obteve.

Angustiada, desceu do carro e começou sua caminhada pelo acostamento

sentindo os olhos se incomodarem pelos faróis de carros e caminhões.

Observando ao redor teve a intuição de adentrar a mata, a intuição de mãe, a

intuição que lhe garantiu encontrar aquela que, com tanta aflição, procurava.

Contudo a maneira como Júlia estava era desanimadora, preocupante. A

garota resmungava palavras incompreensíveis, não conseguia se colocar em pé,

não estava no mundo real. A terapeuta, então, esforçou-se ao pegar a filha nos

braços e a levou até o carro, depressa se encaminhou ao hospital, a adolescente

tremia, salivava descontrolada, parecia entrar em colapso. Os médicos,

atenciosos, levaram Júlia a uma ala especial, o uso das drogas fora excessivo,

causara o seu coma.

Helena passou a madrugada no hospital, por diversas vezes ligou ao

apartamento de Rui, mas o embriagado homem nada percebeu. A psicóloga

temia que o pior viesse a acontecer, a ideia de que perderia a filha sem nem ao

menos conquistar o seu perdão a entristecia grandemente, angustiava-a como

nada, nunca, lhe angustiara.

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O relógio marcava dez da manhã naquele sábado conturbado quando Rui

chegou ao hospital, assustado, apreensivo, não imaginava que a filha fosse se

entregar tanto a um caminho sem volta.

Sendo levado à sala de espera se impressionou ao ver Helena ali, não

poupou acusações:

— É tudo sua culpa! Se não tivesse ressurgido das cinzas nada disso

estaria acontecendo.

— Talvez eu tenha minha parcela de culpa, confesso que a tenho — a

mulher afirmou —. Ao menos passei a noite toda atrás dela, cuidando dela,

mesmo sabendo que tudo será em vão, que nada irá adiantar para que eu

alcance o seu perdão. No entanto você estava em sua casa, embriagado,

refugiando-se no prazer da bebida e, além disso, não foi eu quem revelou a

verdade.

Em seu interior o empresário deu razão àquele discurso, considerou-se o

maior culpado por aquela situação, não deveria ter revelado algo tão sensível

de uma forma tão bruta. Apesar de não manter um bom relacionamento com a

garota ele garantia que ela estivesse segura, que nada lhe faltasse, assegurava-se

de que aquele dia jamais chegaria. Apesar de tudo amava a filha, era o fruto de

um amor que, infelizmente, existiu somente para ele, perder Júlia seria como

perder parte de um passado, não uma simples parte, a parte mais especial.

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Capítulo 28

Muitos de nós simplesmente não conseguimos lidar com as adversidades,

sentem-se afogados em um mar de desespero e buscam refúgio se jogando em

coisas que os tirem, ainda que por pouco tempo, da realidade do mundo. No

entanto o que causa bem-estar também pode destruir, na verdade causa uma

falsa sensação de alívio, contudo a destruição é real, é trágica.

Desacordada, monitorada por equipamentos e pelos olhos atentos de

médicos e enfermeiros Júlia ainda estava dopada pelos entorpecentes que

consumira durante a madrugada, as altas doses lhe apagaram os sentidos, o

cansaço da mente a prendia no sono.

Pela janela de vidro Rui observava a filha com ternura, de um modo que

nunca havia feito, notou o quão bonita a garota era ao mesmo tempo que se

culpou por não ter cuidado da mesma da maneira como deveria, como todo

bom pai faria. Sentiu-se um completo idiota por ter descarregado na

adolescente as frustrações de um passado mal resolvido, ela era a mais inocente

de tudo, não merecia passar por tudo o que passou. Um medo que jamais o

perturbara parecia tocar seu corpo, medo de perder a filha, de não ter tempo

para corrigir os erros.

Mantendo a distância de Rui, Helena também observava a adolescente

sentindo o coração ser consumido pela culpa. Ver a garota naquelas condições a

fez concluir que se tivesse levado-a junto nada daquilo estaria acontecendo,

julgou-se como uma péssima e covarde mãe, uma mãe que não pensou nas

consequências de sua atitude egoísta, uma mãe que não passou de uma má

pessoa, a pessoa que jamais deveria ter passado pela vida daquela jovem.

— O que você fez é estelionato — o homem declarou sem tirar os olhos de

sobre Júlia.

Ouvindo a voz do ex-marido a terapeuta foi tirada de seu transe e deu sua

resposta:

— Não falsifiquei documentos. Apenas menti para vocês.

— Consegue ser ainda mais suja — o empresário se indignou —. Eu

deveria ir agora mesmo lhe entregar a polícia, denunciá-la por abandono.

— Se é esse o seu desejo... — Helena já não tinha esperanças de

reconquistar aquela que teria todos os motivos do mundo para lhe repudiar,

não fazia a mínima ideia de como poderia lutar, para ela o melhor seria a prisão,

ou até mesmo a morte, não via sentido em continuar sua vida.

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— Você sabe que não faria isso — Rui a encarou seriamente —. Eu te amei

como jamais amei ninguém. Ver a justiça da vida sendo feita já será suficiente.

“Eu te amei como jamais amei ninguém”. E a psicóloga nunca foi tão amada

quanto foi por aquele homem.

Seu coração se quebrantou, agora conseguia ver o quão errônea foi sua

atitude, o quão inconsequente era na época em que não soube amar

verdadeiramente. Sua resposta ante tal declaração foi o silêncio, um silêncio que

gritava em seu ser o quão arrependida ela estava.

<<>>

O sol já dava lugar às estrelas naquele sábado turbulento quando Júlia

despertou fraca, estonteada, sem saber o que causou seu estado, sem se lembrar

daquilo que fez após descobrir uma triste verdade, uma verdade angustiante.

Sendo avaliada pelos médicos recebeu a notícia de que já estava fora de risco,

mas que ainda assim continuaria no hospital, precisava se recuperar totalmente.

— Filha, podemos conversar? — após bater na porta do quarto Rui pediu

acanhado.

A garota percebeu o tom de voz diferente, um tom de voz que transmitia

proteção, carinho, acolhimento. Era um tom de voz paternal. Porém o passado

era mais forte do que qualquer atitude do presente, a adolescente não aceitaria

as mudanças sem antes desconfiar delas.

— Não — respondeu friamente.

— Mas nós precisamos... — insistiu.

— Eu já disse que não! — Júlia ergueu a voz —. Nunca me amou, nunca

cuidou de mim, sempre me desprezou. Agora me deixe morrer! Eu odeio você!

— as lágrimas caíam pesadas.

O empresário não teve alternativa, abatido deixou a filha em paz, iria

embora para casa, mas voltaria no dia seguinte.

Atenta aos passos do ex-marido, Helena notou quando ele se dirigiu ao

estacionamento do hospital, visivelmente transtornado. Sedenta por notícias da

filha a psicóloga correu ao encontro de Rui.

— Como ela está? — segurou firme em seu braço, percebendo que não

obteria respostas chantageou: — Eu sou a mãe dela e exijo saber!

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— Mãe? — o homem riu irônico, desacreditado, soltando-se da mulher —.

Que espécie de mãe é você? Nem mesmo os animais abandonam seus filhos,

antes morrem por eles.

— Você não pode fazer isso, não pode me culpar ainda mais — a mulher

lamentou com o choro sufocando sua garganta —. Eu preciso saber como ela

está, é minha filha!

— Não é! — descontrolado, Rui alçou a voz segurando Helena pelos

braços, apertando-a com ira no olhar —. Por sua causa não fui o pai que

sonhava em ser, por sua causa culpei minha própria filha por algo que jamais

deveria, por sua causa transformei a vida de quem eu deveria amar em um

grande pesadelo! — o empresário jogou a ex-mulher sobre o chão fazendo sua

ameaça: — Fique longe de mim ou o fim da sua história será o pior que pode

imaginar!

— Vai me matar?! — chorando amargamente a terapeuta esbravejou.

O homem encarou sua rival duramente, antes de entrar no carro deu sua

fria resposta:

— Não duvide da minha ira!

<<>>

Luzes apagadas, solitária escuridão, melancólica noite. Deitada de barriga

para cima, encarando o teto pouco iluminado, Júlia se lembrava das coisas que

vivera nos últimos anos e como sua vida mudara nas últimas semanas. Tudo

parecia perfeito, equilibrado, sob controle, mas ao mesmo tempo tudo

desmoronava tudo parecia enfrentar um tsunami não de águas, mas de

emoções e sentimentos. Uma lágrima rolou pelo rosto entristecido, pingou

sobre o travesseiro, abriu caminho para as muitas outras lágrimas, cada vez

mais intensas, sufocantes, amargas.

A vida sempre fora esse paradoxo.

<<>>

O domingo amanheceu seguindo o padrão de outros dias, ensolarado,

quente, propício ao canto dos pássaros. Com a ajuda das enfermeiras Júlia

tomou um banho, vestiu roupas novas, tomou o café da manhã e se

surpreendeu com as visitas que recebera, nunca poderia imaginar que algum

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dia aquelas pessoas estariam ao seu lado, ajudando-a a passar por um mau

momento.

— Como você está? — Gabriela perguntou calmamente, sua principal

característica.

— Agora melhor — abriu um sorriso, o primeiro sorriso depois de tantas

turbulências.

— Mas é claro que estaria melhor — Gustavo começou a distrair o clima

antes tenso —, nós mudamos o mundo.

— Lorde Gustavo, sempre convencido — Isaque riu.

— Vai dizer que é mentira?

— Seu ego está ocupando muito espaço já — Gabriela debochou.

— Até você?! — fingiu estar ofendido.

— Perdeu moral — o comentário de Isaque causou as gargalhadas.

— Como conseguem viver tão bem? — Júlia os indagou —. Nenhum de

vocês parece ter problemas.

— Acredite, nós temos — o Romântico Anônimo declarou.

— Mas tudo se é suportável quando se tem ajuda — a Adolescente

Apaixonada encontrando as mãos da amiga as segurou em um gesto de

companheirismo —. Temos um ao outro, encontramos um no outro forças para

continuarmos a vida e, agora, você tem a nós.

— E poderá contar com a gente para qualquer coisa — o namorado da

jovem abatida se aproximou da garota, beijou-a no rosto, querendo dizer que

ele estava ali, que ele seria o seu porto seguro.

— A Helena que se fez de Fátima todo esse tempo é na verdade minha

mãe, a mulher que me deixou ainda pequena, quando eu não passava de uma

ingênua criança.

— Nós entendemos a sua raiva contra essa mulher e não vamos forçá-la a

lhe aceitar em sua vida — Isaque deu início ao conselho, já havia conversado

com Rui que tudo relatara —, mas achamos que seu pai merece uma chance,

nem que seja a única.

— Durante toda a vida vivi com o seu desprezo, nada mais justo que seja

essa a sua recompensa.

— Ele está disposto a corrigir os erros e acertá-los, ele mesmo nos disse —

Gustavo afirmou —. Arrependeu-se da maneira como agiu, sente-se afligido

por ter errado tanto, suplicou-nos que tentássemos fazer com que você aceite

sua visita.

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— Eu não sei... — abaixou os olhos, cheia de dúvidas —. Não posso

confiar tanto...

— Ele é tão vítima de tudo isso quanto você — Gabriela declarou —.

Escutamos seu desabafo e descobrimos o quanto ele sofreu por causa do

passado. Ele realmente amava Helena, não soube reagir à dramática separação,

mas agora seus olhos se abriram e ele deseja recuperar tudo aquilo que perdeu.

Devemos retribuir às pessoas o esforço que elas fazem para provarem o seu

amor, dê uma chance e ele.

Apertando a mão da adolescente Júlia fez sua súplica:

— Perdoe-me por ter agito tão mal com você quando nos conhecemos.

Mesmo depois de tudo você está aqui, tentando me ajudar.

— Guardar rancor de quem nos ama realmente é um veneno para nós

mesmos — a sábia garota espantava aos seus ouvintes a cada palavra amistosa,

a cada pensamento exposto —. Se não quiser perdoar o seu pai é um direito seu,

mas ao menos o ouça.

Ficando alguns segundos pensativa Júlia deu seu ultimato:

— Tudo bem, eu aceito falar com ele — mesmo assim as incertezas

cercavam sua mente.

Os três amigos deixaram o quarto animados, sentiam que a missão fora

cumprida.

Rui se animou com a decisão da filha e andou pelos corredores do hospital

sentindo o coração pulsar mais forte a cada passo, conforme se aproximava a

emoção crescia, parecia que era a primeira vez que falaria com a filha, de fato

era, sua primeira vez como um verdadeiro pai.

Colocou a mão na maçaneta.

Não tinha forças para abrir a porta.

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Capítulo 29

Mas ele precisava vencer o medo e o orgulho se realmente estivesse

disposto a transformar um passado turbulento em um futuro glorioso.

Precisava ser forte, erguer a cabeça e lutar por aquilo que deixou se afastar, por

aquilo que deveria ter lutado há muitos anos, pelo amor de sua filha.

— Podemos conversar? — Rui fez sua pergunta como se esperasse pelo

pior.

— Claro — a garota dos olhos verdes encolheu as pernas, sentando-se na

cama —. Algum problema?

O empresário estava surpreso com a recepção, mais ainda com a forma

como a filha falava, nunca durante aqueles dezessete anos notou o quão doce

era o falar da adolescente.

— Na verdade sim —aproximou-se de Júlia um tanto acanhado, hesitante

—. Talvez você possa imaginar sobre o que é.

— Helena? — abaixou os olhos pensativa e ao erguê-los novamente

prosseguiu:

— Embora tenha razão isso não poderia ser motivo para que eu a tratasse

tão mal durante todos esses anos; você foi a maior vítima de um erro cometido

em conjunto, a que mais sofreu, a que menos deveria sofrer — sem saber ao

certo o que fazer o empresário envolveu as delicadas mãos da filha e fitou seus

olhos nos da adolescente, encontrando ali alguém que clamava por carinho,

proteção —. Eu não soube como lidar com as situações, não via caminhos para

continuar a minha missão, com o desespero e a raiva me consumindo durante

tanto tempo fui um idiota em descarregar tudo em alguém que precisava do

meu apoio, da minha atenção — seus olhos se encharcaram —. Eu não

imaginava que estava causando em sua vida um mal tão grande, eu não

imaginava que toda a sua angústia poderia lhe colocar em cima de uma cama,

eu preciso do seu perdão!

Enquanto escutava o desabafo Júlia encarou o pai de uma maneira

diferente, encontrou naquele homem sério, com semblante durão um alguém

sensível, vítima dos erros de um passado mal escrito, alguém que também

precisava de carinho, ajuda, atenção.

— Eu não posso ser tão hipócrita ao ponto de dizer que tudo bem, que não

foi nada, porque na verdade as feridas me consomem, a dor é muito forte, as

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lembranças me oprimem, mas eu sonhava com esse dia — abriu um sincero

sorriso —. O dia que eu conheceria o meu pai.

— Isso quer dizer que...

— Perdôo, mas não esqueço — o característico jeito agressivo da jovem

adolescente provocou os risos do mais velho —. E agora você me abraça.

Sem jeito o empresário abriu os braços, mas foi Júlia quem deu o primeiro

passo abraçando o pai com ternura, com desejo, da forma que sempre quis. Rui

envolveu a garota sentindo a vontade de protegê-la dali por diante, com o

dever de ser seu protetor, de uma forma que sempre deveria fazer.

A reconciliação estava completa.

<<>>

Helena passou aquele domingo chorando amargamente, sentindo uma

dor descomunal consumi-la. A aproximação gradativa entre ela e sua filha nos

últimos dias ia muito bem, seu plano funcionava perfeitamente, mas agora nada

fazia sentido, tudo estava perdido, não existiam esperanças.

A mulher pensou em ir ao hospital, cogitou falar com a filha, tentar mudar

os rumos dos fatos, mas sabia que a tentativa seria vã, não a deixariam entrar,

sua própria filha a repudiava. Tudo por causa de uma atitude precipitada em

um passado corriqueiro.

A psicóloga acostumada em ajudar as pessoas a enfrentarem os seus

problemas agora não sabia o que fazer com sua própria vida, não via soluções

para o próprio problema, sua mente perturbada enxergava só uma saída.

“Não há razões para viver quando não se tem o que se quer. Espero que Júlia possa

me perdoar, eu a amei de verdade”.

Dobrou o papel, colocou-o sobre o criado-mudo ao lado do abajur. Sentou-

se na cama, respirou fundo e levou à cabeça o revólver. Fechou os olhos com

intensidade, derramou as lágrimas com pesar, destravou o gatilho.

— A culpa não é sua — uma mão pousou sobre o seu ombro, enquanto a

outra mão abaixava o revólver —. A culpa nunca foi sua.

Trêmula, a terapeuta abriu os olhos, em sua frente estava o seu pai que a

encarava sério.

— O que eu devo fazer? — ela era dependente dele.

— Cobrar do verdadeiro culpado — o homem sorriu malicioso.

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Agora Helena tinha a solução, rasgou o bilhete que escrevera e agradeceu

a repentina aparição do pai. O único problema era que aquele homem estava

morto, há muito tempo.

<<>>

Depois de tantos contratempos Gustavo finalmente encontrara no final da

tarde daquele domingo um tempo para passar junto à garota que despertava

seus nobres sentimentos. A fim de ter momentos especiais levou a garota ao

Jardim Botânico da Cidade da Paz, um lugar que reunia as mais diferentes

espécies de flores e árvores, um lugar onde a tranquilidade cercava seus

visitantes.

Gabriela nunca visitara algum lugar como aquele, os perfumes misturados

de tantas flores era uma novidade adocicada, o clima ameno refrescava o calor

escaldante de um verão rigoroso, a brisa que soprava pelo ambiente provocava

uma sensação de bem-estar à Adolescente Apaixonada. Violetas, orquídeas,

samambaias, bromélias, girassóis e tantas outras espécies encantavam a garota,

que com o dom do tato aguçado notava a beleza de cada planta.

Deitados um ao lado do outro sobre a grama convidativa enquanto o

espetáculo do pôr-do-sol acontecia, garoto e menina conversavam como bons

amigos, embora soubessem que os sentimentos eram mais intensos.

— Gostou do passeio? – com os olhos voltados para cima o futuro pediatra

questionou.

— Como sempre me surpreendendo — embora não enxergasse com os

olhos da carne Gabriela enxergava com os olhos da alma, sabia que o lugar era

incrível —. Tirou muitas fotos?

— Mas é claro, não seria eu se não tirasse fotos.

— Por que faz isso? — ela nunca entendera o motivo.

— Para eternizar nossos momentos — respondeu romanticamente.

— Eu sei que não é só por isso, eu sei que tem um motivo a mais, mas eu

quero ouvi-lo de você.

O Romântico Anônimo se virou para a amiga encontrando os vagueantes

olhos azuis que encaravam o infinito. Não sabia o que responder, não sabia se

dizer a verdade era uma boa ideia, não imaginava o que a declaração poderia

causar. Percebendo o longo silêncio a Adolescente Apaixonada virou o rosto na

direção do companheiro e afirmou sorridente:

— Eu sei que está me olhando.

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Gustavo não conteve o riso, já não se espantava com a esperteza da garota,

mas ainda assim se admirava dela.

— E ficaria incansavelmente por toda a eternidade.

— E o lorde Gustavo dá lugar ao filósofo que mora dentro dele — a

adolescente sorriu tímida —. E, então, por que tira tantas fotos?

— Eu tenho esperanças de que um dia possa vê-las — foi sincero ao

responder —, e isso médico nenhum pode mudar.

— Eu já sabia — Gabriela voltou a encarar o vazio —, na verdade sempre

soube. Talvez esse seja o maior sonho daqueles que estão ao meu redor, não

nego que também seja o meu, mas alguns sonhos só podem ficar presos em

nossa imaginação.

— Eu sei que procura evitar frustrações e desilusões e reconheço que está

certa, é melhor nos conformarmos com a realidade ao invés de planejarmos um

futuro impossível — Gustavo voltou os olhos ao céu que exibia suas primeiras

estrelas —. No entanto as esperanças sempre vão existir, elas sempre farão parte

da nossa vida e eu sempre me deixarei ser guiado por elas.

— Não quero que sonhe tão alto, não quero ser o motivo da sua decepção.

O Romântico Anônimo sabia que revelar aquele sonho poderia causar

sentimentos de culpa na garota que amava, ele não deixaria que ela se sentisse

incapaz. Juntando as mãos e se aproximando mais da jovem adolescente o

garoto a confortou:

— Enxergando ou não você sempre será uma pessoa incrível, iluminada,

que eu amor ter por perto, com quem eu amo passar horas conversando. Não

importa suas condições exteriores, para mim o que importa é saber que sou

privilegiado em ter a sua companhia.

— Eu já disse que você é o melhor amigo que alguém poderia ter?

— Nem precisa, eu sei — seu ego sempre exaltado também provocava

risos.

— É a melhor pessoa que conheci — a garota se aproximou mais do amigo,

repousando a cabeça no peito do maior, fechando os olhos e se sentindo

acolhida.

O coração de Gustavo acelerou e com o misto de sentimentos e emoções o

desejo de declarar o que há tanto ensaiava, pedir o que tanto almejava.

Envolvendo a cintura da menor com os braços o jovem adolescente também

fechou os olhos, deixando ser embriagado pelo adocicado perfume das rosas.

— Posso fazer um pedido? — indagou.

— Claro — respondeu.

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“Aceita namorar comigo?”

Aquele era o pedido, aquele era o anseio, o desejo de um coração

apaixonado, sedento pelo amor que apenas aquela garota seria capaz de dar.

Contudo o insistente medo ainda vivia, ainda existia e ainda afligia o futuro

pediatra com dúvidas e incertezas, com indagações e questionamentos sobre o

futuro.

— Nunca me deixe — trocou as palavras, mas o sentido era o mesmo.

— Eu prometo — respondeu sabendo qual era de fato o pedido —. Não

desista de mim, nunca...

— Nunca desisto daquilo que me faz feliz — afirmou tendo o

conhecimento de que Gabriela o amava.

O jovem e temeroso casal que não se assumia de uma vez continuou

naquele lugar até que o sol fosse embora, ao se separarem sentiam como se uma

parte deles partisse também, um vazio que os tomava, o vazio que só seria

preenchido no próximo reencontro.

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Capítulo 30

Algumas semanas depois...

O outono já dava sinais de sua aproximação, as manhãs não eram mais tão

quentes, sopravam uma brisa fria que arrepiava os braços descobertos, ainda

assim o sol imperava e ao meio-dia esbanjava seu calor.

Aula de Arte. Apresentação de danças. E a música da vez era Where Is

The Light, uma canção que, em resumo, passa a mensagem de motivação, diz

que o mundo vai sim querer nos derrubar, mas que devemos ser fortes e

encontrarmos a luz.

Gustavo e Gabriela, segundo os olhos que os observavam, formavam a

dupla favorita da apresentação, a sincronia entre ambos era mesmo espantosa,

os passos dados de forma errada eram imperceptíveis, se é que existiam, um se

deixava guiar pelo outro.

O ritmo da música pedia algo mais envolvente, cogitava que os casais

aparentassem estar apaixonados, tarefa realizada com proeza por muitas duplas,

porém com maestria pelo casal que se amava, ainda que em segredo dentro dos

seus corações.

A garota era da altura do peito do futuro pediatra, o que poderia ser ainda

mais notado pela aproximação de ambos. As mãos livres se ocupavam ou no

pescoço ou na cintura enquanto as outras mãos se uniam e bailavam conforme a

música. Os pés dançavam unidos, um seguia o outro, um parecia viver pelo

outro. O Romântico Anônimo encarava sorridente a menina que tanto amava,

com ternura e com o desejo de fazer daquela aproximação mais do que uma

simples amizade. Encarando os olhos azuis, tão belos quanto o céu e tão

intensos quanto o mar, o garoto navegava por seus pensamentos, imaginava

quão belo poderia ser o futuro, mas para tal precisaria vencer o medo do

presente.

A Adolescente Apaixonada, como de costume, sentia-se protegida ao lado

do querido amigo. Perdida no característico perfume amadeirado tentava

entender a razão pela qual gostava tanto do parceiro, por que os sentimentos

eram tão profundos. A resposta surgiu em sua mente: “é o amor”, provocando

um sorriso tímido, o sorriso que enfeitiçava Gustavo.

— Você é ainda mais linda sorrindo — arriscou um elogio sussurrando no

ouvido de Gabriela —. Por mim sorriria sempre.

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Aquela voz... Aquela voz era o melhor som que ela poderia ouvir, aquela

suave voz provocava em seu coração a pulsação mais agitada, aquela voz era

reconfortante.

— Por mim você falaria para sempre.

A dança continuava.

— Gosta de me ouvir falar?

— Eu mais que gosto — respondeu acanhada.

O garoto sorriu.

A dança continuava.

— Sabia que sou um felizardo por tê-la como amiga?

— Por que se sente assim?

— Porque pessoas como você são raras, estão em extinção e como eu já

prometi farei o impossível para mantê-la ao meu lado.

— Eu também — repousou a cabeça no tronco do garoto —. Eu também...

A dança continuava.

— Agora repitam o último período e na finalização quero que os rapazes

beijem suas parceiras, faz parte da encenação musical — a professora instruiu.

E assim foi feito.

Sempre perceptivo, Gustavo percebeu o nervosismo e desconforto de

Gabriela, nem ele queria que o momento com o qual sonhava, um momento

especial, acontecesse de forma tão simplória, sem sentimento, sem emoção, sem

o verdadeiro gosto daquilo que ele sentia por ela.

Beijou sua testa exibindo os dentes alinhados e as covinhas infantis.

A jovem adolescente sorriu apaixonada.

Não foi um beijo de amigos ou entre irmãos, foi algo diferente, especial,

algo que chamou a atenção dos olhares ao redor, algo que atraiu as tantas

palmas, todos já sabiam qual era o melhor casal.

Animado, o futuro pediatra agradeceu a exaltação como um verdadeiro

cavalheiro, inclinando corpo para frente e fingindo tirar o chapéu. Gabriela, por

sua vez, exibia as covinhas acanhadas, estava feliz.

<<>>

A vida é uma metamorfose, constantemente estamos em mudança, seja no

modo de falar, de se comportar, de enxergar o mundo ao redor. Nunca estamos

de fato prontos, sempre há algo mudando em nós mesmos. Porém a esperada

transformação também assusta, não sabemos se seremos aceitos, não sabemos

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se vamos fazer parte de algum grupo, a metamorfose também traz dúvidas e

inseguranças.

Isaque faltou aquele dia, transformações viam acontecendo

gradativamente, nos últimos dias, por conta do tratamento contra a leucemia, o

garoto vinha perdendo os cabelos, o que não pararia tão cedo. Encarando-se no

espelho o adolescente precisou confessar que as mudanças aconteciam, não

adiantava mais fugir, precisava enfrentar.

Ao invés de ir para a escola, Isaque se dirigiu ao salão de beleza junto a

mãe, certo do que faria, convicto de que era necessário. A máquina soou,

começou a abrir caminho, pedaços de cabelo caíam sobre o colo do garoto

escorrendo para o chão, ele não pôde mais conter a aflição, fechou os olhos,

deixou que as lágrimas rolassem. Comovida, Ana pousou a mão sobre a perna

do filho acariciando a região, querendo dizer que tudo ficaria bem, que as

coisas iriam melhorar.

No caminho de volta para casa o adolescente se manteve calado, perdido

nas próprias indagações, questionador quanto o sentido da vida, procurando

respostas para os turbulentos pensamentos. Foi para o seu quarto, ali deixou

que o choro fluísse.

Gustavo havia sido avisado por Ana sobre o que aconteceria e logo após a

aula se dirigiu à casa do melhor amigo cumprir o seu papel, ajudar a quem

precisava, cuidar de quem gostava.

— Filho, você tem visita — a mulher bateu na porta.

Enxugando o choro o garoto teve a ideia de expulsar quem quer que fosse,

mas não queria voltar a ser o desequilibrado, aquele que não sabia enfrentar os

próprios desafios.

— Mande entrar — a voz soou desanimada, abafada.

A porta se abriu.

— Sou eu — o futuro pediatra entrou.

Isaque já imaginava, já esperava pela visita, sabia que jamais seria

desamparado por aquele que tinha como irmão. Aflito, encarou o melhor amigo

com cara de choro, forçou um sorriso angustiado, entregou-se ao abraço do

mais novo deixando as lágrimas continuarem seu percurso.

Por alguns instantes o Romântico Anônimo se manteve calado, apenas

cedia o ombro para que o mais velho, alguns poucos centímetros menor,

desabafasse toda a dor.

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— E a doença cumpre sua missão — afastou-se rindo indiferente —, estou

feio.

— Veja pelo lado bom, gosto de você por seu coração — querendo quebrar

o clima tenso Gustavo usou seu senso de ironia.

— Lorde Gustavo, você é um idiota — o garoto sorriu com sinceridade —.

Estou mesmo feio? — preocupou-se.

— Pergunte isso a sua namorada — sentou-se na cama —, mas não, não

está.

— Melhor — também se sentou.

— Ela mandou um beijo — revirou os olhos, sentiu-se ridículo mandando

recados românticos —. Disse que o ama e que só não veio porque sabe que

ficaria constrangido.

— Você contou a ela? — começou a se irritar.

— É sua namorada, tem o direito de saber — defendeu-se.

— Tem razão — foi compreensivo —. E cadê o meu beijo? – perguntou

debochado.

— Respeite a garota, ela não merece isso — retrucou divertido —. Pegue

— estendeu um caixote embrulhado —, eu queria fazer a diferença.

Curioso, Isaque desembrulhou o presente e encontrou ali o boné que disse

a alguns dias querer usar.

— Você lembrou?

— Se colocar um boné na cabeça vai te deixar mais confortável eu queria

ser o benfeitor.

— Eu não sei o que dizer... — percebeu o quanto a amizade era sincera,

importante e o quanto gostava daquilo. Emocionou-se.

— Não diga nada, apenas quero o meu abraço — abriu os braços —,

aproveite meu bom humor!

Aquilo era amizade em seu significado mais puro. Muitos confundem a

razão da palavra, acham que amizade é algo simples, corriqueiro e não a

valorizam da forma como deveriam. Amigo é uma extensão da família, ainda

que não tenha o laço de sangue, não compartilhe o mesmo DNA, é tão

importante quanto, às vezes supera.

<<>>

E a vida prossegue em sua metamorfose.

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Júlia vivia uma excelente fase, seu pai se revelara um indivíduo “bacana”,

do bem, um pai e tanto, um alguém que precisou sofrer uma “pressãozinha”

para passar a enxergar a importância das coisas.

Na tarde daquele dia Rui e filha foram ao cinema, divertiram-se à beça

com uma comédia romântica, riram juntos como nunca haviam feito, uma

experiência diferente a ambos, uma experiência única.

Ao término da sessão o empresário levou a adolescente para a praça de

alimentação do shopping, pela primeira vez pai e filha se sentavam juntos para

comer, mais uma novidade que revelava o prazer da vida: estar com aqueles

que se ama.

— Gostou do dia?

— Eu adorei! — a garota respondeu entusiasmada —. Não imaginava que

fosse tão bom.

— Nem eu — o homem refletiu —. Não consigo acreditar que pude perder

tantos prazeres. Parece que deixei de viver uma vida.

— Não pense assim, pense que agora tudo se resolveu, que estamos juntos

tendo a oportunidade de fazermos a vida fluir por um caminho diferente.

— Você tem razão, afinal, quem vive de passado é museu — provocou as

gargalhadas divertidas.

O que pai e filha não sabiam era que estavam sendo observados por

Helena, que camuflada por entre as outras pessoas os encarava com ira, não

aceitava aquela situação, era para ela estar com Júlia rindo alegremente,

passando bons momentos.

— Você sabe o que deve fazer — a mão pesada pousou sobre o seu ombro

e a voz fria soou em seu ouvido —. A culpa não será sua, a culpa nunca fui sua.

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Capítulo 31

Era uma tarde ensolarada de outono naquela terça-feira, uma tarde que

mesclava o fulgor do sol com o vento frio que por ora soprava. Isaque, sentado

em um dos bancos no Parque da Cidade, usava o boné que ganhara de seu

amigo e em silêncio aguardava a chegada de sua namorada. Dizem que o

silêncio é o maior som que podemos ouvir e, de fato, essa fala faz sentido, a

mente do futuro engenheiro químico sofria com os altos pensamentos que nela

soavam, pensamentos de incerteza e de medo, medo do que diriam, medo de

como o veriam, medo dos próximos dias, meses e até anos.

Desde que resolvera ser raspar toda a cabeça o garoto não teve coragem de

voltar à escola, sentia-se envergonhado pela atual situação, mesmo sabendo que

seus amigos o ajudariam no que fosse preciso, mas o motivo principal para essa

falta de coragem era outro.

O que Júlia diria?Como a namorada o veria dali por diante? Agora que a

doença deixava sua marca a garota continuaria ao seu lado? Continuaria

declarando o seu amor a alguém como ele? Essas eram as dúvidas de Isaque,

que se esquecera de uma coisa importante: a alma não enxerga como enxerga a

carne; a carne até pode muito se importar com o exterior, porém a alma muito

se preocupa com o interior.

Logo o adolescente avistou uma garota deslumbrável, segundo suas

próprias concepções, que caminhava em sua direção com o sorriso no rosto e o

brilho no olhar, ele observou melhor a delicadeza com que ela caminhava, o

charme com que seus cabelos longos e lisos balançavam, estava ainda mais

apaixonado por ela e não queria perdê-la, contudo questionamentos se faziam

necessário.

— Oi! — sorridente, Júlia se sentou ao lado do namorado exalando o

perfume enérgico e beijo o rosto do garoto —. O que houve para andar tão

sumido? — já sabia a resposta, mas queria ouvir dele.

— Isso explica — apontou para o boné com um semblante desconsolado

—. Agora sou uma verdadeira aberração — forçou um sorriso —. Precisamos

ser sinceros um com o outro, essa é a minha situação, estou doente, fraco, vai

mesmo passar os seus dias ao lado de alguém como eu?

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Romântico Anônimo

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— Defina alguém como você.

Pensativo, de olhos baixos, Isaque começou:

— Doente, fraco, que a qualquer momento pode sofrer um desmaio ou

uma crise de medo pelas circunstâncias — segurou o choro —. Feio, atrativo

para a piedade, foco dos olhares de compaixão, esse é alguém como eu.

— Essa é a sua definição, mas ainda não ouviu a minha — Júlia trouxe o

olhar do namorado de encontro ao seu —. Bonito, simpático, amável, divertido,

um amigo leal, um amor para a vida, um alguém que se preocupa com os

outros, que faz a diferença na vida daqueles que ama, que ocupa um lugar

especial no coração de cada um que conquista. Esse é o alguém como você.

— Eu não acho...

— Tenha certeza! Eu não estou com você para viver somente momentos

bons, para desfrutar de uma vida sem problema algum, isso não existe. Eu

estou ao seu lado porque quero fazer a diferença, porque com você eu aprendi o

que é ser humano, o que é ter amigos e o que é sentir o amor... Eu estou ao seu

lado porque o amo.

O casal cedeu ao beijo apaixonado e acolhedor, desejado e tranquilo.

Sorrindo alegremente, tendo os olhos encharcados e as covinhas à mostra,

Isaque declarou:

— Eu também te amo.

— Então tire esse boné.

— Não é uma boa ideia...

— Não nos amamos? — uniu as mãos —. Eu existo e estou aqui para ser o

seu apoio no que precisar. Se tivermos vergonha um do outro não há

sentimento verdadeiro, mas se confiarmos um no outro nunca vamos esconder

nossos defeitos ou vergonhas.

Acanhado, inseguro, o garoto tirou aquilo que cobria sua cabeça e,

desviando o olhar, falou entristecido:

— Agora esse sou eu.

E novamente Júlia uniu os olhares, ternamente proferiu sábias palavras:

— Você está lindo... Se tivesse feio é claro que eu diria — provocou risos

no adolescente —, mas não, você continua sendo o namorado mais lindo desse

mundo.

Isaque descobriu sinceridade nos olhos que o encaravam, agora tinha

certeza de que o amor que o unia àquela garota era verdadeiro.

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Romântico Anônimo

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O ambiente era devastado.

Poltronas jogadas ao chão, mesas e cadeiras quebradas brutalmente, cortinas

rasgadas violentamente. Os estilhaços de vidro comprovavam a troca de tiros e as

paredes eram marcadas pelo terror que ali fora instaurado.

Aquela era a visão da sala de estar de um casarão do período colonial.

De um lado a mulher sangrava, dava seus últimos resmungos, suspirava pelos

derradeiros minutos. Do outro o homem sentia as dores da luta, a ardência dos cortes e o

sufoco das balas que afligiam seu corpo; encostado sobre a parede, com o rastro de

sangue atrás de si, sentia as luzes se apagarem, mas precisava de uma última ação.

Esforçou-se por rastejar pelo chão sentindo como se o corpo fosse moído por

equipamentos de tortura, agonizava, chorava feito uma criança, as forças pareciam faltar,

mas o desejo que o consumia servia de impulso.

A mulher percebeu, abriu um sorriso encantador, o sorriso que enfeitiçou aquele

que lutava contra a morte para a ação final; também era seu desejo, também se esforçou

ao máximo, venceu as dores que consumiam o seu corpo, que pareciam esmagar sua

alma, dirigiu-se ao homem.

Eram amantes. Viveram um amor proibido, intenso, quente. Suas famílias eram

rivais, odiavam-se como se odeia o mal, não podiam escutar seus nomes, nem ao menos

se lembrar de suas existências. Tanto rancor foi o precursor da barbárie.

O pai da moça descobriu o romance, que aos seus olhos, era sórdido. Ordenou que

matassem o rapaz e lho trouxessem a cabeça, mas a filha o ouviu, correu a salvar o

homem que amava, disposta a renegar o luxo e se arriscar à miséria, para assim estar

com o amor de sua vida. Tentou barrar os homens sujos, que traíram a confiança de seu

pai e também a atacaram, não obedeceram ao mandato, não deveriam colocar as mãos

nela.

As luzes se apagavam aos amantes.

Contudo a força do amor era ainda muito grande.

As luzes se apagavam aos amantes.

Contudo a distância entre os corpos diminuíam.

As luzes se apagavam aos amantes.

As mãos se uniram. Os sorrisos se abriram.

E as luzes se apagaram.

As cortinas se fecharam. Os aplausos emocionados soaram. A super

produção de teatro chegou ao fim passando uma linda mensagem.

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Romântico Anônimo

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— Que nem a morte vence o amor — Gabriela concluiu entusiasmada,

ainda encantada pela bela história que pôde acompanhar —. E você, o que

concluiu?

— Que o ódio pode destruir vidas — Gustavo respondeu em tom sério, a

filosofia daquela peça fora um tanto profunda a uma mente que ainda se

formava.

— E mais uma vez eu preciso lhe agradecer — a garota o abraçou contente

—. Primeira vez que fui a um teatro.

— E o que achou? — deixou de lado o assunto “peça” e focou no assunto

“Gabriela”, o qual mais lhe interessava.

— Sensacional. Foi como se eu estivesse dentro da história, no mínimo

incrível!

Ajudando a amiga a atravessar a rua e subir na calçada, o Romântico

Anônimo novamente sentiu a vontade de declarar o que sentia, embora já fosse

nítido, porém, como de costume, o medo o travou.

— Fico feliz em saber que lhe proporcionei um bom momento.

— A maioria dos meus bons momentos é você quem me proporciona a

Adolescente Apaixonada não hesitou ao declarar —. É como eu sempre digo,

sua existência é muito importante para mim.

Gustavo encarou profundamente aqueles olhos azuis que radiavam, sabia

que amava a garota, sabia que era ela quem queria como namorada, sabia que

estava apaixonado apenas por aquele rosto angelical e que nem um outro o

faria sentir os mesmos sentimentos. Para quê perder mais tempo? Por que adiar

ainda mais o óbvio? Por que não começar desde já a viver e se entregar aquele

amor? Ele a beijaria, seria essa a sua forma de declarar tudo o que sentia, estava

perto de atingir o objetivo, de iniciar o que já tinha iniciado, confirmar o que

todos já sabiam, mas uma voz interrompeu aquele momento decisivo.

— Gabriela? — um garoto alto, loiro, que atrás do olhar profundo

escondia olhos verdes chamou a garota pelo nome.

— Sim — a garota respondeu desconfiada.

— Não se lembra de mim? — achou que a garota enxergava.

— Como se chama?

— Como assim, como me chamo? — achou que era zombaria —. Sou eu,

Guto, seu irmão.

Ela não sabia que tinha um irmão.

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Romântico Anônimo

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A vida é feita de fases e a cada uma delas reagimos de maneiras diferentes.

Umas são fáceis de serem enfrentadas, outras exigem um pouco mais de esforço,

fato é que todas nos fortalecem, nos tornam experientes, nos ajudam na

construção dos nossos dias.

A atual fase na vida de Rui o tirara do vício da bebida, a alegria de viver

parecia retornar àquele coração antes abatido, seus dias eram mais felizes, o

prazer pelo trabalho era notado por seus funcionários, tudo estava iluminado.

Helena, no entanto, passava por mais uma fase tenebrosa, sufocante,

escura e fria. Não sentia vontade por mais nada, não tinha desejo por bons

sentimentos, sua missão que antes era reconquistar a filha agora se

transformava em vingança, queria agir contra aquele que via por culpado da

situação, agir contra Rui.

De soslaio, dentro do carro, em frente ao supermercado do ex-marido, a

terapeuta passou o dia todo na espera do homem, possuía um plano

arquitetado, vontade de cumpri-lo era o que não faltava. O sol se foi e a noite

chegou. A psicóloga, já cansada de tanto esperar, decidiu ir embora, mas a sorte

parecia estar ao seu lado, viu sua vítima sair do estabelecimento, era a

oportunidade.

Concentrada, mirando o revólver contra Rui, Helena precisou de somente

um impulso.

— A culpa não é sua.

Disparou seguidas vezes. Deu uma arrancada violenta e fugiu, deixando

para trás marcas da sua violência.

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Capítulo 32

Aquela noite prometia ser atípica na Cidade da Paz.

— Meu irmão? — Gabriela não acreditava —. Que brincadeira é essa?

— Não é brincadeira nenhuma — o rapaz insistiu —. Eu não posso

acreditar que você não se lembra de mim — abriu um sorriso discreto —, eu te

peguei no colo!

— Como pode ser seu irmão sem que ela soubesse? — Gustavo o

interrogou —. Deve estar havendo algum engano.

— Eu tenho certeza do que estou dizendo. Se esforce um pouco, você era

ainda muito pequena quando fomos separados, mas eu sei que pode se lembrar

de mim...

— Eu não posso! — a garota começou a se irritar —. Eu não enxergo,

nunca pude vê-lo se é que o que está dizendo faz sentido — apegou-se no braço

do amigo querendo segurança —. Meu pais nunca disseram nada, eu nunca o

percebi em casa, só pode ser mentira.

— Eliseu e Laura terão que contar. Vamos para casa e descubra a verdade.

O Romântico Anônimo aquela história esquisita, surreal; em silêncio

acompanhou a amiga até sua casa sentindo a insegurança que a acompanhava.

— Se precisar de alguma coisa pode me ligar — sugeriu preocupado.

— Amanhã conversamos — respondeu aflita.

— Mãe? — o jovem de vinte e cinco anos abriu um largo sorriso ao ver a

mulher abrir a porta.

O semblante de Laura, no entanto, remetia ao espanto.

<<>>

O empresário sangrava enquanto resmungava palavras incompreensíveis.

Uma aglomeração se formou ao redor do homem que sentia suas forças se

acabar. Rui morria.

O resgate não demorou em chagar. A sirene tocava alto. Os médicos

estavam desesperados por salvar a vida daquele cidadão que de uma maneira

brutal e covarde estava posto à sombra da morte.

Foram quatro tiros espalhados pelo corpo de Rui, porém um lhe atingira o

peito colocando suas chances de sobrevivência próximas ao nada. Uma correria

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tomou conta do centro cirúrgico. As balas precisavam ser removidas com

cautela. O paciente entrava numa situação hemorrágica.

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— É verdade que eu tenho um irmão e ninguém me contou? — a família

se sentou ao redor da sala, a situação ficava quente, as revelações pareciam

surgir de repente, eram as reviravoltas da vida.

— Gabriela, entenda... — Eliseu deu início às palavras percebendo que sua

esposa não sabia o que dizer, mas acabou interrompido pelo filho.

— Não há nada que entender, é simples, vocês me esconderam dela esse

tempo todo! — Guto era sarcástico —. E tudo por causa de um acidente, uma

fatalidade.

— Você sabe muito bem que não foi uma simples fatalidade — o professor

de português ergueu a voz —. Você sabe o que motivou isso.

— O que motivou isso foi a falta de amor de vocês! — declarou como se

desabafasse —. Um simples acidente, coisa de criança, foi o suficiente para que

me trancafiassem em um hospício cheio de loucos! — as lágrimas revoltadas

saltaram dos olhos rancorosos.

— Foi necessário!

— Por quê?— enfrentou como se fosse vítima de tudo aquilo.

— Por sua causa sua irmã é cega! — Laura revelou o segredo.

A Adolescente Apaixonada se espantou, sempre acreditou que nascera

com a deficiência, mas de uma hora para outra a história mudava.

O rapaz não sabia que ele fora o causador daquilo, nunca lhe revelaram,

nunca permitiram que tivesse contato com a garota.

— O seu ciúme doentio só aumentava, as terapias não eram mais

suficientes e os seus surtos psicóticos apenas cresciam — a mulher continuou,

lutando contra o choro —. Ou o afastávamos dela ou você a mataria! — tal

declaração era forte.

— Eu não tenho culpa de ter sido trocado — como uma criança abatida

Guto reclamou —. Eu não tenho culpa de ter frustrado os planos de vocês, eu

não tenho culpa de ter nascido!

— Como saiu da clínica? — Eliseu perguntou controlando o nervoso.

— Fugi — o rosto entristecido tomou um semblante alegre de repente —.

Agora tem orgulho de mim?

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O homem abaixou a cabeça, não sabia o que dizer, não tinha o que dizer.

Laura, por sua vez, precisava fazer alguma coisa, sempre amou o filho, conhecia

bem os motivos que fizeram a história tomar aquele rumo, precisava proteger

sua família.

— Precisa voltar para lá — aproximou-se do rapaz unindo as mãos —,

precisa melhorar de verdade, se vermos o seu esforço aí sim teremos muito

orgulho de você.

— Ela sabe que vocês mudaram para cá por minha causa?

Mais uma verdade descoberta. O Colégio Inova nunca foi a ambição de

Eliseu, existiam muitas outras escolas nas quais ele sonhava lecionar, porém nos

últimos meses o tratamento do filho sofria dificuldades, o moço não progredia,

os médicos julgaram como benéfica a maior aproximação da família e era ali, na

Cidade da Paz, onde o jovem estava internado.

— Depois eu vou conversar com a sua irmã — a enfermeira respondeu —,

mas antes preciso que volte à clínica — seu modo de falar era paciente.

— Ela sabe que é adotada? — seu intuito não era visitar os pais, dizer um

“olá”, mas sim deixar sua marca por tudo que passou, pela rejeição que sofreu,

não por sua mãe, mas pelo seu pai, no entanto todos teriam que pagar pelo

passado.

— Cala essa boca! — Eliseu ordenou.

— Ela precisa saber — Guto desenhava um sorriso irônico.

Laura fechou os olhos, suspirou.

Gabriela se agarrou à bengala, esperou que alguém dissesse alguma coisa

que a confortasse.

<<>>

Júlia chegou ao hospital desesperada, angustiada. Sentia que toda uma

bela história estava prestes a terminar, a acabar e já imaginava de quem era a

culpa, criava suspeitos em sua mente.

— Eu preciso vê-lo! — tentou passar por cima dos enfermeiros.

— Você precisa se acalmar — um deles tentou segurá-la, mas foi

empurrado.

— Eu quero entrar! — exigiu —. É o meu pai!

— Ele está em cirurgia correndo risco de vida — revelar algo tão sério

daquela forma não era o certo a se fazer, mas só assim a garota parou de insistir.

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— Meu pai vai morrer? — o estado de choque era perceptível, a angústia

consumia o seu peito, o choro não demorou a se manifestar.

— Estamos fazendo o possível para que não, mas precisamos que se

acalme e aguarde pacientemente por notícias.

As esperanças aos poucos morriam.

<<>>

— É direito dela saber a verdade — Guto se levantou do sofá e caminhou

vagarosamente em direção a irmã —. Eu peço desculpas pelo transtorno, não

era a minha intenção causar toda essa turbulência, acredito que sua vida com

eles é um verdadeiro mar de rosas, mas a justiça precisa ser feita — passeou o

dedo pelo rosto da garota enquanto era observado atentamente pelos pais —.

Também lamento pela visão, não era a minha vontade deixá-la cega quando a

joguei do berço, na verdade era outra — riu sarcástico —, matá-la — declarou

frio.

— Seu moleque! — Eliseu não mais se conteve, puxou o filho pelo braço,

intencionava arrastá-lo para fora dali, o levaria nem que fosse a força para o

lugar de onde não deveria ter saído.

Mas Guto agora já era um homem, seu pai já não tinha mais a mesma

força sobre ele e, então, o empurrou furioso.

— E voltamos ao passado, mas dessa vez eu sou o forte!

— Filho, por mim, para com isso, vamos voltar ao hospital, vamos

continuar o tratamento — Laura suplicou apreensiva.

— Por você? — zombou com desprezo —. O que você fez quando aqueles

homens de branco me levaram embora?

— Você sabe que eu não tive escolha...

— Você é a esposa desse homem, não a empregada, tinha sim outras

escolhas!

— Deixe a sua mãe fora disso! — o professor intimou.

— Você é o maior culpado — apontou o dedo no rosto do pai —. Ele,

Gabriela, ele é o culpado pelos nosso afastamento, ele me trancafiou naquele

lugar horrível, ele me desprezou! — começou a chorar —. Nunca me aceitou do

jeito que eu era, aposto que me considerava uma aberração e, então, adotou

você e aproveitou a ocasião para se desfazer de mim!

— Você precisava de ajuda!

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— Eu precisava de compreensão! Eu sempre vi as fotos de vocês, felizes,

sorridentes, uma família de verdade. Onde eu estava? — riu desacreditado —.

Sendo dopado por remédios, ouvindo blá blá blás de velhas ridículas, escutando

promessas de que se eu me esforçasse voltaria para casa. MENTIRAM! — tirou

do bolso um canivete, instaurando o terror —. Mas agora estou disposto a ficar

com vocês para todo o sempre, vamos estar unidos para a eternidade —

encarou a irmã —. Ela será a primeira que levarei comigo.

Eliseu não assistiria aquilo sem fazer nada. Revoltado, empurrou o filho

sem poupar forças, o qual bateu a cabeça e, com a contribuição dos

medicamentos que tomava, desmaiou.

— O que aconteceu? — Gabriela se levantou assustada.

— Vá para cama — seu pai ordenou —. Algumas coisas precisam ser

postas em seus devidos lugares.

A adolescente não hesitou em obedecer.

Virava para um lado, virava para o outro. Sentava-se, tornava a se deitar.

Sua mente estava inquieta, seus pensamentos a sufocavam junto as intensas

lágrimas. Tantas descobertas, revelações e ninguém foi lhe ajudar, ninguém foi

contar a verdade dos fatos, ninguém a poupou de descobrir verdades tão

dolorosas.

Não sabia que hora era, mas imaginava que já fosse de madrugada quanto

escutou o movimento dos pais, prontos para saírem, levariam Guto de volta á

clínica.

Independente, pegou a mochila, tirou o material da escola e encheu de

roupas enquanto o choro se fortalecia. Com a guia da bengala desceu as escadas,

colocou a mão na maçaneta da porta da sala, suspirou profundamente, saiu.

Entristecida, angustiada, abatida pelas descobertas, açoitada por

revelações, Gabriela caminhava pelas desertas ruas da Cidade da Paz naquela

madrugada fria de outono. Sentia-se desamparada, sozinha e culpada pelo

sofrimento de alguém que nem sabia existir. Sentia-se rejeitada por saber que

não passava de uma simples adotada, segundo suas próprias palavras, uma

pobre coitada que despertara a piedade dos outros ou que servia como

substituição para expectativas não correspondidas. Sentia-se enganada por

saber que viveu mentiras, ilusões, por saber que a verdade estava longe de sua

realidade.

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Capítulo 33

Gabriela continuou os seus passos pelas desertas ruas da Cidade da Paz,

alvoroçando os cães que latiam exaltados, despertando seus donos que se

irritavam. O choro angustiado a acompanhava, as tantas dúvidas insistiam em

lhe fazer companhia, a dor na alma não passava.

Os passos solitários continuavam. Passos desamparados. Passos pesados.

“Adotada”. Aquilo insistia em lhe perturbar. Quando é que poderia

imaginar algo assim? Tudo era tão real, parecia tão fatídico, enquanto não

passava de ilusão. Por que lhe esconderam algo tão importante? Por que

ocultavam dela o que tinha direito de saber? Por que foram tão descuidados ao

ponto de deixar que uma coisa tão séria fosse revelada de uma maneira tão

banal?

Os passos continuavam e as lágrimas os acompanhavam.

“Derrubada do berço”. Por que mentiram? Por que a fizeram acreditar que

nascera daquela forma? “Um irmão”. Por que não lhe permitiram saber isso? Por

que afastaram duas pessoas que poderiam viver coisas incríveis?

Os passos continuavam por entre aquela escuridão eterna que dominava

os olhos azuis.

Sem saber para onde estava indo, sem imaginar onde já estava, a garota

prosseguia os seus passos, caminhando à própria sorte.

Um morro.

A queda.

Gabriela perdera os sentidos.

Laura jurava que havia trancado a porta, tinha certeza disso, mas o fato de

encontrá-la aberta a perturbou. Correu ao quarto da filha, mas nada encontrou

além dos cadernos jogados sobre a cama e algumas gavetas do guarda-roupas

remexidas. Correu aflita pela casa, quanto mais procurava mais se angustiava

por nada encontrar.

— Eliseu... — chamou o marido controlando o amargo choro.

— O que houve? — percebeu o estado da mulher.

— A nossa filha... — não conseguia completar.

— O que aconteceu com ela? — já desesperada se dirigiu á escadaria, mas

foi interrompido pela revelação.

— Ela fugiu.

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Desamparada, sentindo-se abandonada, Júlia passou toda a madrugada

no quarto que receberia seu pai, em pé, diante a janela de vidro, aguardando as

horas se passar, esperando o despontar do primeiro raio de sol. Quando a

manhã de quarta-feira se iluminou a garota dos olhos verdes ligou para o

namorado, a única pessoa em quem confiava, a única pessoa com quem poderia

contar.

— Não acredito que ficou aqui todo esse tempo sem me ligar — ao

encontrar a namorada Isaque n]ao tardou em acolhê-la nos braços.

— O meu pai... — as lágrimas rolaram molhando o ombro do garoto —.

Por que tem que ser assim? Tudo estava tão perfeito, tão iluminado...

O promissor engenheiro sentiu um nó se formar na garganta ao escutar a

voz embargada, teve forças apenas para apertar aquele abraço, para s=mostrar

que a amada não estava sozinha.

— Vai ficar tudo bem — declarou —. Eu prometo.

Aquilo não queria dizer que Rui sairia da triste situação, mas que

independente do que acontecesse Júlia não estaria largada à própria sorte. A

garota entendeu isso, entendeu que teria ajuda, que teria em quem se apoiar e

isso a consolou.

<<>>

Animado para mais um dia no Colégio Inova por um motivo bastante

especial, o Romântico Anônimo penteava os cabelos exibindo toda a vaidade,

perfumou-se sem economizar e deu um sorriso na frente do espelho, tudo

precisava estar perfeito. Pronto para recolher a mochila sentiu o celular vibrar,

estranhou a ligação que vinha de um número desconhecido, mesmo assim

atendeu, talvez fosse importante.

— Quem é?

— Laura, mãe de Gabriela — a voz falhava.

— Aconteceu alguma coisa? — percebeu o tom choroso.

— Ela está aí?

Sentiu um frio percorrer todo seu corpo.

— O que aconteceu com ela? Onde ela está? — desesperou-se.

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— Eu não queria lhe preocupar com isso, mas ela fugiu — o choro se

tornou mais nítido —. Preciso desligar, se souber de alguma coisa me avise.

“Ela fugiu”. Gustavo sentiu as pernas bambearem, um medo descomunal

preencheu seu coração, um medo jamais sentido, medo de perder alguém que

muito amava. Convicto do que faria saiu correndo pelas ruas da cidade,

desviou o caminho da escola para encontrar aquele alguém especial;

perguntava a quem visse pela garota, detalhava suas características com

perfeição, mas as respostas negativas o afligiam cada vez mais.

Continuou as buscas incansavelmente. Atentava-se a cada canto por onde

passasse. Sua sede era em encontrar a menina que desde o primeiro contato lhe

despertara sentimentos tão intensos, naquela hora viu o quanto se importava

com ela, o quanto realmente a amava. Era ao ponto de sentir uma lança

transpassar o seu peito só de pensar o que poderia acontecer.

O sol do meio-dia raiava, era forte, ardido, mas não intimidou o jovem

adolescente que, mesmo sem saber aonde mais ir, continuava a busca. Fome?

Não sentia. Sede? Nem se incomodava. Cansaço? Não descansaria enquanto

não tocasse em Gabriela.

Ao se dar contra viu que estava em um bairro distante, andou tanto que

nem percebeu. Continuou sua busca. Ao longe avistou uma garota sentada

sobre o asfalto, recostada sobre um barranco, com as pernas encolhidas, rosto

escondido atrás dos joelhos e chorosa. Aproximou-se mais. O coração pulsou

mais forte, os olhos se encheram d’água, correu ao encontro daquela pela qual

era apaixonado.

— Meu amor — não se ouviu, antes abraçou a Adolescente Apaixonada

como se há muito tempo não a visse, contente por encontrá-la, satisfeito por

achá-la.

— Gustavo? — o medo que Gabriela sentia se esvaiu, agarrou-se ao

pescoço daquele que em segredo amava, sentir o perfume amadeirado trouxe

tranquilidade à sua atormentada alma.

— Por que fez isso? — era tudo o que queria entender.

— Eu não sei — de fato não sabia, as dúvidas do momento cegaram sua

mente, a falta de escolhas a fez seguir aquela inconsequente opção —. Como me

achou?

— Eu iria até o fim do mundo se preciso fosse — mais uma declaração —.

Não imagina o quanto me importo com você — mais uma —. Não faz ideia do

medo que senti ao pensar que a perderia — e mais outra.

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— Você é mesmo um anjo — apertou o longo abraço —. E também não

consegue imaginar o quanto vale na minha vida.

— Nunca mais faça isso — enterrou os dedos nos cabelos da garota —,

sentir a sua falta é a pior coisa que já senti.

— Você precisa saber de uma coisa — os corpos se afastaram —. Uma

coisa que talvez mude uma vida toda.

— Pode falar — uniu as mãos, encarava os olhos.

— Eu descobri que... — sentia-se insegura em declarar, um filete de

lágrima desenhou seu percurso pelo rosto delicado —. Eu sou adotada.

Agora tudo fazia sentido. Agora o jovem adolescente entendia o porquê

de toda aquela confusão e, conhecendo bem a amiga, sabia como ela se sentiu.

— Seus pais estão atrás de você — revelou —. Independente de qual seja a

forma como chegou na vida deles, eles o amam intensamente.

— Ou talvez me vêm como substituta para algo que não funcionou —

declarou entristecida, desacreditada —. Aquele rapaz é mesmo meu irmão,

escondido de mim todo esse tempo, trancafiado em uma clínica. Não foi pelo

colégio que viemos para cá, foi por causa dele, um injustiçado, que por minha

causa vive preso.

— Eu acho que essa não seja a real história — pegou o celular —. Vou

avisar sua mãe que a encontrei, vocês precisam conversar e entender o porquê

de tudo. E não quero que se culpe ou se sinta mal por ter sido adotada o

importante é que temos uma garota encantadora ao nosso lado.

<<>>

A temperatura atingia os trinta graus, fazia calor naquele início de outono,

porém Helena estava coberta da cabeça aos pés, de cortinas fechadas, portas

trancadas, televisão no volume mínimo, perdida nos próprios pensamentos.

Chorava feito uma criança, sentia a dor do arrependimento pelos erros do

passado e pelas atitudes descontroladas do presente, sentia-se culpada.

— Não chore, minha filha — a grave voz de seu pai soou aveludada —.

Você não pode ser fraca.

Vagarosamente a mulher ergueu os olhos, observou ao redor, encontrou o

homem alto de barba branca e cabelos rasos sentado na poltrona à sua frente,

observando-a com olhos atenciosos, acolhedores.

— O que eu faço? — suplicou por alguma solução.

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— O que já está fazendo, o que veio fazer aqui — o velho sorriu simpático

—. Reconquistar a sua filha sem se importar com os obstáculos, sem se

intimidar por quem entrar no seu caminho, sem hesitar em passar por cima de

quem for preciso.

— Culpa... — o choro se intensificou, mal deixava as palavras saírem e a

voz soar —. Eu sinto a dor da culpa e não sei como aliviá-la, não sei como

ignorá-la, continuo sentindo-a infinitamente.

— Eu já falei para você, minha querida...

— O quê?

O senhor de cabeça branca se levantou calmo e tranquilo, caminhou até a

filha. Como todo bom pai acolhe os seus filhos em um momento de dor, o velho

acolheu sua filha no colo. Acariciava os seus cabelos acalmando-a, alisava seu

rosto confortando-a, abraçava-a com ternura, fazia-lhe se sentir amada,

protegida, segura do resto do mundo e de todos os perigos. Sorria gentil para a

psicóloga deixando claro o seu orgulho por ela.

— A culpa não é sua — uniu as mãos com afeto —. A culpa nunca será sua

— abraçou-a com mais força.

Seria bom se fosse real. Helena não percebia, mas todas aquelas cenas,

todos os seus diálogos existiam apenas em sua mente, era ela quem os criava a

fim de se justificar perante tantas atrocidades.

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Capítulo 34

Ainda desacordado, com curativos pelo corpo e soro injetado nas veias,

Rui foi levado ao quarto no qual ficaria. Júlia, ao ver o homem tão perto ao

mesmo tempo em que tão distante, não conteve o amargurado choro enquanto

acariciava o rosto do pai. Percebendo a aflição que pressionava a garota dos

olhos verdes, Isaque a abraçou por trás, a fez sentir que não estava sozinha.

— Ele vai acordar e você vocês ainda viverão muitas coisas juntos.

— Será? — indagou desacreditada, sem esperanças —. Antes eu dizia que

se esse dia chegasse não daria a mínima, mas hoje sinto que me importaria

incondicionalmente. Tudo estava tão perfeito, mas...

— Mas vai ser ainda melhor — o garoto de boné a interrompeu —. O que

você acha que explica toda essa aproximação entre vocês?

Pensando um pouco a adolescente respondeu:

— Milagre?

— Isso, um milagre — sorriu acolhedor —. Muitas pessoas acreditam em

milagres mesmo tendo todos os motivos para desacreditarem. Eu mesmo pensei

que estava condenado à solidão por conta do meu problema, não tinha

esperanças de dias promissores, mas o milagre de ter pessoas especiais em

minha vida me alcançou e tudo se clareou — beijou o rosto da namorada com

ternura —. Milagres existem e vão alcançar o seu pai.

Acostumada com o pessimismo, com a vida egoísta e com os

relacionamentos movidos a puro interesse material, Júlia se espantou com as

tais palavras e com o fato de alguém estar passando ao seu lado um momento

tão difícil, indesejável. Virou-se para o namorado encarando os também olhos

verdes, abriu um sorriso singelo, uniu as mãos e declarou sincera:

— Se você não estivesse aqui eu tenho certeza de que tudo estaria perdido,

escuro, mas agradeço aos céus por terem me presenteado com o seu amor —

aquela foi a sua forma de dizer um “eu te amo”.

— Eu também amo você — sorridente, Isaque, em um beijo sereno, uniu

os lábios que se atraíam.

E assim o amor entre um casal que jamais fora imaginado crescia e se

intensificava; tornava-se incondicional, verdadeiro, eterno.

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Muitas podem ser as indagações e poucas as respostas. Muitas podem ser as

nossas incertezas e pouca a convicção. Muitos podem ser os medos e pouca a coragem. A

aflição pode assolar e o refrigério quase nem aparecer, contudo é só uma fase, ela vai

passar e o sol vai raiar.

De volta em casa Gabriela tomou seu banho deixando que as lágrimas se

misturassem à água que caía do chuveiro; os olhos inchados e fundos

denunciavam a tristeza que a consumia, o desespero que o fato de ter sido

enganada quanto própria história lhe causava.

Receosa desceu as escadas, seus pais a aguardavam na sala, aqueles que a

amavam não importassem as consequências.

— Podemos conversar agora? — paciente, Laura ajudou a garota a se

sentar.

— Acho que sim — respondem sem tanta animação.

— Pergunte o que quiser — Eliseu permitiu tranquilamente, não era um

mau homem embora o surto da noite que se passara deixasse sua personalidade

em xeque.

— Por que me esconderam que sou adotada? — a pergunta já era esperada

e precisava ser respondida.

— O nosso sonho era ter um casal de filhos, mas depois que Guto nasceu

nunca mais pude gerar — a enfermeira deu início à explicação —. Os anos se

passaram, a minha capacidade de engravidar apenas diminuía, os tratamentos

não ajudavam e as esperanças se acabavam. Por diversas vezes perdi o que

gerava, isso prejudicava a minha saúde, pensamos em desistir de um sonho tão

intenso e impossível.

— Um belo dia, quando levávamos Guto para um passeio no parque de

diversões, avistamos mãe e filha brincando como se fossem irmãs, riam,

gargalhavam, esbanjavam alegria — o professor de português continuou.

— Aquilo me entristeceu.

— Sua mãe se perguntava o porquê de viver aquilo, tentava entender por

que o destino agiu de forma tão cruel, foi quando vimos que a felicidade

depende apenas de quem quer vivê-la. Somos nós os únicos responsáveis pelo

nosso futuro, por alcançarmos os nossos sonhos, cabe a nós vencermos os

obstáculos.

— Adoção era a solução — Laura sorriu satisfeita —. O meu sonho em ter

uma filha para pentear seus cabelos e brincar de tantas coisas não estava

perdido, não era utópico, eu poderia realizá-lo, eu tinha o direito e o dever de

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realizar meu próprio desejo. Fomos a um orfanato e um bebê especial foi o que

despertou os nossos sentimentos. Você Gabriela, você nos conquistou.

— Sabíamos que não teríamos o mesmo sangue, mas não é isso que define

uma família, não é isso que une as pessoas, mas sim o laço do amor, ele é o que

une uma verdadeira família.

— Mas ninguém precisava saber, não tinha porque saberem. Contamos

apenas para nossos parentes e para o seu irmão. Não planejávamos lhe contar

nada, não queríamos que crescesse com o sentimento de rejeição. Alguém pode

ter lhe dado às costas e nós agradecemos por isso.

— Nós te amamos.

A garota dos olhos azuis sentiu sinceridade no soar de cada palavra,

palavras confortantes a um coração atribulado.

— E por que me esconderam que eu tinha um irmão? — a pergunta era

mais delicada, mas também exigia explicações.

— Guto sofre de alguns transtornos e ciúme em demasia — o homem

começou —, desde pequeno passa por terapias, mas as melhoras nunca foram

significantes. Sempre nos entristecemos por ver o nosso filho naquelas

condições, sem saber lidar com os sentimentos, sem controlar as emoções e a

cada hora apresentando um humor. Isso afastava muita gente do seu lado, era

como açoite para nós.

— Antes de a adotarmos conversamos com ele, o seu irmão ficou bastante

animado com a ideia, o que nos motivou também — a mulher prosseguiu —.

Você foi para casa e despertou naquele garoto um sentimento diferente, o

escutamos dizer que a amava e que cuidaria de você. O problema é que o ciúme

também aumentou.

— Um bebê indefeso precisa de cuidados especiais, de uma atenção maior,

erramos por não saber explicar isso a Guto, ele se sentiu trocado, o ciúme

crescia.

— Um triste dia, cegado pelos surtos que sempre o maltratavam, ele te

pegou do berço, em um gesto infeliz, tomou a atitude violenta.

— Eu me revoltei, errei novamente. Achei que a situação passara dos

limites, não tive outra escolha a não ser trancafiá-lo em uma clínica. Achei que

as coisas poderiam melhorar, mas me iludi.

— Não queríamos contar a verdade, o seu irmão não precisava ganhar o

ódio de mais uma pessoa, achamos que o odiaria se soubesse a verdade. Um dia,

quando ele estivesse melhor, contaríamos a verdade.

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— Jamais odiaria alguém — a Adolescente Apaixonada se sentiu culpada

—. Ainda mais sabendo que era meu irmão.

— Não queríamos que as coisas se revelassem dessa maneira,

esperávamos que a verdade nos visitasse de uma forma mais branda, porém foi

assim que o destino quis — a mão justificou os fatos.

— Mas entendemos que erramos, sabemos que era um direito seu

conhecer a verdade sobre a própria história e por isso pedimos o seu perdão.

Carinho na hora da dor, atenção nos momentos de tristeza, ajuda quando

a fraqueza parecia privá-la de continuar na luta pela independência. Eliseu e

Laura sempre estiveram ao seu lado, eram os seus pais não importassem as

circunstâncias, o amor que os unia era o que realmente importava e Gabriela

sabia de tudo isso, abriu os braços com um sorriso no rosto e declarou os

sentimentos:

— Não precisam pedir perdão, eu os amo!

Pais e filho se uniram em um abraço acolhedor, um abraço que os protegia

da brutalidade de um mundo cruel.

<<>>

Pela janela do quarto Júlia via que o sol aos poucos deixava a paisagem e

dava espaço à beleza da noite, mas seu pai ainda não acordara. Porém, de uma

hora para outra, o homem despertou, confuso tentou discernir quem lhe fazia

companhia, não pôde conter o espanto:

— Filha?

Ao ouvir a voz do empresário a jovem adolescente se encheu de alegria,

abraçou aquele que custou a entender que amava, o olhar de esperança

retornou àquele semblante.

— Sim, sou eu — respondeu contente, satisfeita —. Quem mais poderia

estar aqui?

“Ter uma filha”. Agora Rui sabia o que aquilo representava, conheceu o

privilégio de ter alguém sangue do seu sangue, carne da sua carne, olhando por

ele, provando que o amava, mostrando que se importava.

— Que bom que está aqui — agradeceu —. E desculpe por tudo isso.

— A culpa é de quem fez isso — a garota declarou —. E eu sei quem foi —

estava convicta —, mas não vai ficar assim — seu rosto exibia desejo por justiça.

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— Aquela garota metida, prepotente, cheia de si a cada dia se mostra uma

garota dócil, tranquila, amável — os olhos de Isaque brilhavam ao falar da

namorada —. A cada dia eu tenho certeza de que é com ela que devo passar o

resto da minha vida.

— Se ela se preocupou tanto com o pai eu acredito que as mudanças são

mesmo reais — Gustavo comentou, mas seu olhar lhe fazia parecer distante.

— Pode ter certeza — o amigo percebeu —. O que houve, mi lorde? Triste

por alguma coisa?

— Não adianta disfarçar... — riu desanimado —. Não pense que é inveja,

mas vendo você tão feliz por estar amando me deixa revoltado comigo mesmo.

Por que não consigo me declarar? Por que não sou como você?

— Medo? Insegurança? — o mais velho se aproximou do mais novo —.

Ou é apenas o seu jeito de construir as coisas.

— Jeito de covarde.

— Eu não diria isso, diria que é de um verdadeiro amante. Existe prova de

amor maior do que correr por alguém pela cidade inteira?

— De que adianta fazer isso e escrever bilhetinhos se não consigo fazer o

que é realmente necessário? — o futuro pediatra precisava de respostas —. Eu

já sei como isso vai terminar, alguém corajoso vai aparecer, conquistar a garota

que eu amo e tê-la para sempre — as lágrimas saltaram, lágrimas de vergonha

por se sentir tão incapaz —. Eu vou perder o amor da minha vida por ser tão

medroso! — cedo demais para dizer aquilo? Não, ele tinha certeza do que

queria e sentia.

— Você está enganado — Isaque apoiou a mão no ombro do amigo e

continuou sua conclusão: — Acha mesmo que ela não percebe todo o seu

carinho? Acha mesmo que tudo está passando batido? Aos poucos você está

construindo um elo tão forte que talvez nem a morte seja capaz de romper.

Quando esse amor for descoberto o mundo terá que confessar: é verdadeiro!

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Capítulo 35

As luzes estavam apagadas, o silêncio imperava naquela casa, por certo

todos já dormiam, com exceção de um da família. A tela do celular estava acesa,

exibia uma tarde especial, a garota, sorridente, beijava o rosto do jovem rapaz

que não escondia o semblante apaixonada. Gustavo encarava a bela garota

enquanto no peito batia a vontade de estar ao seu lado.

Levantou o travesseiro.

Recolheu o delicado cartão.

“Legal, sincero, companheiro, bondoso, ótimo amigo, bonito,

cheiroso, charmoso, inteligente... São tantos os adjetivos que

podem lhe definir, mas um já diz tudo. Você é especial”.

O Romântico Anônimo não se cansava de ler aquelas palavras, de acariciar

o papel perfumado com o adocicado perfume das rosas, ainda mais por saber

de quem era sua autoria, quem lhe dirigira uma declaração tão... inestimável.

Ele realmente estava apaixonado.

Mas não era uma paixão comum, corriqueira, que qualquer pessoa em

qualquer momento da vida pode sentir, era uma paixão intensa, que ao mesmo

tempo que desenhava o sorriso em seus lábios angustiava o coração com

incertezas; uma paixão acolhedora e avassaladora, paradoxalmente.

Em outras palavras era um amor apaixonado.

De que serviria a paixão sem um amor de verdade?

A paixão é um sentimento forte e profundo, que quanto regado ao amor se

torna eterno, contudo é também um sofrimento prolongado. Gustavo sofria por

não conseguir demonstrar os milhares de sentimentos que o enchiam, sentia-se

fraco por não ter coragem o suficiente, se julgava pormenor em sentir tanto

medo, em estar dando passos tão lentos.

A pressa não é inimiga da perfeição?

Pois então, ele se esquecera disso, não via o futuro que breve chegaria.

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Aqueles que se amam se conectam um com o outro mesmo sem saberem.

Pensam um no outro, se importam um com o outro, sentem a falta um do outro

quando estão distantes. Gabriela também estava deitada na cama, mas o sono

custara a aparecer, o garoto que amava era o responsável por aquela querida

insônia.

“Delicada como a rosa, dócil como o mel e suave como a

brisa que sopra do mar nas primeiras horas do dia... Quando

acordei pela manhã surgiu a indagação: como definir uma

garota tão esplêndida? Aquelas foram as palavras dadas como

resposta, mas talvez a melhor delas seria... rainha do meu

coração”.

Aqueles bilhetes assinados por Romântico Anônimo e perfumados com o

penetrante Malbec não poderiam ser enviados por outra pessoa que não fosse

Gustavo. A garota dos olhos que remetiam ao mar tinha certeza de que era ele,

estava convicta disso, mas não conseguia entender o motivo para tanta demora

para que ele se declarasse.

Talvez fosse medo de acabar com uma amizade tão agradável ou, na pior

das hipóteses, ele não gostasse dela daquela forma.

“— Meu amor — não se ouviu, antes abraçou a Adolescente Apaixonada como se

há muito tempo não a visse, contente por encontrá-la, satisfeito por achá-la”.

Não. Ele a chamara de “meu amor”, gostava sim dela, talvez quisesse ter

certeza do que sentia.

“— Eu iria até o fim do mundo se preciso fosse — mais uma declaração —. Não

imagina o quanto me importo com você — mais uma —. Não faz ideia do medo que

senti ao pensar que a perderia — e mais outra”.

Não. Ele tinha sim certeza do que sentia. Então talvez não se importasse

tanto e quisesse esperar mais um pouco.

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“— Nunca mais faça isso — enterrou os dedos nos cabelos da garota —, sentir a

sua falta é a pior coisa que já senti”.

É. Ele se importava.

Gabriela abriu um sorriso. Sabia que o amava e que por ele era amada.

Talvez tempo. Sim, eles precisavam de mais um pouco de tempo, logo viveriam

aquilo para o que foram designados, para aquilo que a vida reservou, aquilo

que Deus escrevera.

<<>>

Quinta-feira, semana se encaminhando para o final.

Sonolento, Gustavo entrou no Colégio Inova, sua indisposição era nítida,

seu cansaço perceptível. Correra por quase toda a cidade no dia anterior, agora

sentia os efeitos.

Abriu o armário. Pegou alguns livros. Deixou um papel cair. Praguejou

por aquilo, seu corpo doía só de abaixar, mas a curiosidade era maior do que

qualquer outra coisa.

“Chega um momento na vida da gente que paramos para

pensar sobre a importância que cada um daqueles que nos

rodeiam têm para nós. Esse momento chegou para mim e eu notei

o quão difícil seria viver sem aqueles que eu amo.

Contudo, sem você seria impossível.

O amigo que sempre quis ter encontrei em você, o

companheiro para a vida eu achei em você, o parceiro que me

faz rir e me encoraja perante os desafios está em você. Além de

importante você é especial e eu agradeço a Deus por você existir”.

Adolescente Apaixonada

Indisposição? Cessou-se. Cansaço? Não existia mais. Dores? Anestesiadas

por aquelas palavras. O futuro pediatra colocou um sorriso no rosto, sentia-se o

desejado, tinha orgulho próprio, irradiou a felicidade pelos corredores da escola.

Parou na porta da sala e observou a garota pela qual era apaixonado; por

alguns segundos teve que sorrir perante tanta beleza e graciosidade.

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— Bom dia — beijou o rosto da amiga.

— Bom dia — Gabriela se espantou, sentiu o rosto corar e o coração

acelerar ao respirar o perfume amadeirado.

— Dormiu bem?

— Muito bem.

— Sonhei com você — revelou.

— Comigo? — lisonjeou-se —. E o que fazíamos? — perguntou curiosa.

— Cuidávamos dos nossos filhos — respondeu simples, sorriu para Isaque

e deixou a garota atordoada com a descoberta.

Isso é amor.

<<>>

Depois de tanto insistir Gabriela convenceu a mãe a levá-la aonde estava

Guto, seu desejo era visitá-lo e dar sua contribuição ao tratamento do irmão,

acreditava que poderia fazer a diferença.

Apegada à sua bengala a garota se sentou em um dos bancos do florido e

imenso jardim que existia na conceituada clínica, aguardava, a sós, pelo rapaz

que aceitou a visita da irmã.

— Gabriela? — o rapaz soou a voz.

— Guto? — a adolescente abriu um sorriso —. Sente-se — apalpou a

região no seu lado —. Quero conversar com você.

Arisco, o jovem de vinte e cinco anos atendeu ao pedido, não esperava

uma conversa pacífica, imaginava uma troca de ofensas.

— O que quer saber?

Sempre perceptiva, Gabriela notou o tom de voz seco, tentou suavizar o

clima:

— Quero ser sua amiga, aceita?

Guto encarou aquela que era sua irmã por alguns segundos em silêncio, a

resposta foi dada:

— Claro — receoso uniu as mãos —. Eu sempre quis vê-la para pedir

desculpas.

— A culpa não foi sua e nem de ninguém — respondeu compreensiva —.

Como me conhecia?

— Fotos — soltou as mãos e encarou o vazio —. Eu sempre pedi que me

mostrassem como você estava, queria ter certeza de que não havia te

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machucado. Esconderam de mim o seu problema — controlou a vontade de

chorar —, eu não sabia...

— E estou bem — declarou animada —. Estou viva e estou aqui,

conversando com o meu irmão. Não enxergar não resume a minha vida em um

monte de problemas, por certo esse era o meu destino, não precisa se culpar.

“Conversando com o meu irmão”. Pensativo naquela frase Guto se sentiu

amado, não odiado, sentiu-se tranquilo de uma forma que raramente se sentia.

— Posso conhecê-lo?

— O que quer dizer?

— Aproxime-se.

O rapaz sentiu o toque da garota em seu rosto, no começo achou estranho,

mas logo se acalmou, percebia que entre eles não existiria nenhuma mágoa,

nenhum ressentimento.

— É alto como o papai e bonito como a mamãe.

— Acha mesmo? — maravilhou-se.

— Tenho certeza.

Mas o jovem não tinha domínio sobre as próprias ações, nem sempre

mantinha uma mente lúcida, às vezes o surto era forte.

— Aquele dia eu quase te matei — gargalhou como se ouvisse uma piada

—, mas hoje eu não fico só no quase — agarrou o pescoço da irmã —, você

tomou o meu lugar!

— Era para se comportar! — um enfermeiro surgiu por entre as árvores

injetando o sonífero no paciente.

— Vamos, querida — Laura também se aproximou, assustada —. Vamos

embora.

Retomando o fôlego, sentindo o coração disparado, Gabriela afirmou:

— Ele precisa de ajuda.

— Aqui é onde o ajudam — a mulher retrucou.

— Ele precisa da nossa ajuda!

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Capítulo 36

A vida é uma constante busca por respostas, algumas já sabemos, mas

insistimos em nos enganar porque a verdade costuma machucar. Júlia, a garota

dos olhos verdes que sofrera uma intensa transformação no modo de viver, já

imaginava quem era o culpado pelo que acontecera com Rui, mas não queria

acreditar que o suspeito fosse capaz de algo tão banal; em outros tempos jamais

suspeitaria daquela pessoa.

— Filha? — Helena não conteve o olhar emotivo ao encarar a adolescente.

— Para você é Júlia — a garota não estava ali para um diálogo afetuoso

entre mãe e filha, até porque aquela mulher já não representava coisas boas em

sua vida, remetia-a a um passado cruel e doloroso —. Quero ter uma conversa

séria.

— Sobre o quê? — o olhar antes de contentamento agora era de decepção.

— Eu sei que foi você — afirmou —. Foi você quem atirou contra o meu

pai — declarou convicta, certa do que dizia, como se já condenasse Helena por

aquilo.

— Deve estar havendo algum equívoco — tentou se explicar.

— O único equívoco que existiu foi o de eu ter confiado em alguém tão

baixo — não poupou as pesadas e rancorosas palavras —. Acredita mesmo que

fazendo o mal contra o meu pai iria conseguir se aproximar de mim? Eu

descobri que o amo de uma forma intensa, ele é parte de mim e quem for o seu

inimigo será o meu também.

— Está sendo injusta — sobre o rosto da terapeuta caiu um semblante de

tristeza, os olhos que brilharam quando contemplaram quem era a visita se

ofuscara —. Eu nunca fui capaz de fazer o mal a quem quer que seja.

— Isso não é verdade. Será que achou que me abandonando estava sendo

justa ou benevolente? Pensou apenas em você, olhou somente para a própria

vida e se esqueceu das consequências, nem se deu ao trabalho de imaginar o

que aconteceria comigo. Julgou como melhor opção me deixar para trás e

continuar a viver como se nada tivesse acontecido.

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— Eu me arrependi. Eu voltei disposta a enfrentar qualquer obstáculo

para conquistar a minha filha e viver com ela tudo aquilo que perdi. Eu amo

você.

— Não fale em amor, é a pessoa mais indigna de mencionar tão nobre

sentimento! — os olhos de Júlia estavam encharcados, não eram lágrimas de

tristeza, eram de ódio profundo, rancor intenso, lágrimas desacreditadas —.

Arrependimento não muda o passado, antes a açoita por causa dele, então

poupe palavras tão mentirosas.

— O que posso fazer para alcançar o seu perdão? — Helena suplicou por

respostas.

— Nada — a adolescente respondeu irredutível —. Pensando melhor pode

fazer sim, o que fez de melhor durante todos esses anos, ficar longe de mim e

do meu pai.

— Está me pedindo para desistir de você? — questionou desconsolada.

— Já desistiu uma vez, pode desistir muitas outras.

— Você não pode fazer isso comigo — agarrou-se ao braço da filha,

derramou as lágrimas —. Estávamos indo tão bem, a cada dia nos tornávamos

grandes amigas, nossa aproximação se intensificava , passei a amá-la mais do

que a minha própria vida — encarava os olhos verdes fixamente —. Era uma

questão de muito pouco tempo para que eu pudesse revelar a verdade, mas

aquele inútil estragou tudo — colocou a raiva no tom de voz —. A culpa é toda

dele, não é minha, é dele! — tentou convenceu a jovem moça.

— Eu não posso acreditar nisso — Júlia ficou estupefata —. A culpa é toda

sua e de todo o seu egoísmo — soltou-se das mãos daquela mulher com

agressividade —. Vou descobrir a verdade, juro que vou, e se eu souber que

tem dedo seu eu a coloco na cadeia ou não me chamo Júlia Siqueira!

Dando aquela conversa por encerrada a garota seguiu o seu caminho.

Helena, no entanto, entrou em casa, recostando-se sobre a parede da sala

deixou o corpo escorregar enquanto as lágrimas caíam, cada vez mais fortes,

cada vez mais pesadas. “A culpa é toda sua”. Pela primeira vez alguém a culpara

por alguma coisa e, o pior, sua própria filha era quem a acusava, aquilo foi

como uma flechada em seu peito.

“Era uma tarde de verão na Cidade da Paz. O sol quente irradiava o seu fulgor

enquanto a brisa suave debaixo das sombras das árvores era um ótimo refresco. Helena

era jovem ainda, saía da adolescência, e conhecem o seu primeiro amor.

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— Gosto tanto da sua amizade — a ruiva declarou ao líder do time de natação do

Colégio Inova, Rui Siqueira —. Como pode duas pessoas antes desconhecidas se

tornarem tão próximas?

— Destino — o garoto cobiçado por muitas adolescentes abriu o sorriso para a

garota dos olhos verdes, o sorriso que conquistava a quem quer que fosse —. Também

me sinto amparado pela sua companhia, é diferente das outras, é única.

Os olhos da menina apaixonada brilharam como cristal, sua vontade era declarar o

que realmente sentia, o que verdadeiramente queria. Aquele era também o desejo do

jovem atleta, era apaixonado por aquela amiga e não queria mais perder tempo. Uniu as

mãos, ficou os olhares e, com o insistente jeito sedutor, propôs:

— Aceita ser mais do que uma amiga e se transformar no amor da minha vida?

Quer ser minha namorada?

O coração de Helena saltitou com maior altiveza em seu peito, não acreditava que

ouviu as palavras que mais sonhava em ouvir, não acreditava que o que era sonho se

tornava realidade.

— É claro que eu aceito — respondeu afobada encarando os olhos cor-de-mel —. É

tudo o que mais quero.

Sem perder tempo Rui deu o próximo passo beijando a garota que amava. O beijo

que antes se resumia apenas na união dos lábios passou a narrar a batalha entre corpo e

alma que buscavam domínio sobre tantas emoções juvenis, era um beijo há muito

desejado, um beijo apaixonado. Helena, extasiada, encarou o garoto que amava, sorria

desacreditada, exibia toda sua felicidade.

— Safados! — uma voz grave quebrou o encanto de toda aquela magia —. Não

sabia que o então parque onde se encontravam para estudar encenava toda essa safadeza!

— era o pai da garota, um homem sisudo, de cabeça branca e coração ruim.

— Eu posso explicar — Rui se levantou humildemente disposto a convencer

aquele homem.

Mas o cidadão possuía um coração distorcido pela maldade, agarrou o adolescente

pelo colarinho de camiseta pólo e o jogou covardemente ao chão.

— Vagabundo!

Rui não revidaria, aquela não era a sua índole.

— Devassa! — agarrou o braço da filha —. Em casa lhe dou uma lição!

— É essa a filha que tenho? — empurrou a garota contra o sofá —. Uma

imprestável que joga o meu nome na lama?

— Eu não fiz nada de mais! — a tentativa de se explicar lhe garantiu um tapa no

rosto.

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— Claro que não fez nada demais, vai dizer que é amor, vai dizer que todas as

garotas da sua idade tem um namoradinho — subiu em cima de Helena —. Mas você

não precisa de outros garotos, tem a mim! — passou a beijar o pescoço da ruiva —. É a

mim que pertence! — daria início ao constante ato nojento.

Helena estava cansada daquilo, não suportava mais a vida indigna e repugnante

que tinha ao lado daquele homem, o empurrou de si, derrubando-o no chão. Saiu

correndo.

— Volta aqui, sua vagabunda! — o inescrupuloso homem correu atrás da menina

até que a encurralou na parede —. PERTENCE A MIM! — gritou a plenos pulmões.

— CHEGA! — esbravejou ainda mais forte —. Eu não suporto mais —

empurrou o indivíduo.

Atrás daquele homem uma escada.

Rolou pelos vinte degraus.

Caiu morto.

Assistindo a toda aquela trágica cena Helena se desesperou, correu ao encontro do

pai, tentou acordá-lo, percebeu que ele estava morto e que a culpa era sua. A mente

daquela adolescente entrou em colapso, seu estado de choque não lhe permitia pensar.

— A culpa não é sua — o homem de cabelos brancos pousou a mão sobre o ombro

da garota, era o mesmo homem esticado no chão, envolto de sangue —. A culpa é

daquele rapaz... Rui”.

Recordando-se daquele triste episódio do passado a terapeuta se

convenceu:

— A culpa não é minha, é daquele rapaz!

<<>>

Todos nós, em algum momento da vida, nos deparamos com dois

caminhos, duas decisões, e apenas um pode ser tomado. No passado, Laura não

teve escolha, precisou internar o filho ou coisas tenebrosas aconteceriam, ela

agora tinha certeza do que suspeitava, ainda mais por presenciar a investida de

Guto contra Gabriela.

Perturbada pela cena a enfermeira voltou à clínica, já era noite , as estrelas

já se exibiam. Antes de conversar com a psiquiatra responsável pelo filho, Laura

o visitou, mas este dormia sob os efeitos do sonífero; possuía um semblante

sereno, calmo e tranquilo, não parecia o agressor de sempre e aquilo sufocou a

garganta da mulher.

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— Gabriela tem razão — Izabel, a psiquiatra, recebeu a mãe do paciente

em sua sala —, ele sente a falta dos pais, se enciúma por causa da irmã, a culpa

pelo distanciamento e isso afeta no progresso do tratamento.

— Eu tenho medo — Laura confessou angustiada —. Não podemos deixar

Gabriela tão vulnerável a ele, é perigoso.

— É ainda mais perigoso manter essa distância — a doutora afirmou —. A

presença da família no tratamento contra transtornos mentais é fundamental ao

paciente, ele se sente aceito, amparado, protegido por ela e, infelizmente, Guto

vive o contrário. Vocês o jogaram aqui dentro como se fosse uma ameaça,

ausentaram-se da vida desse jovem como se a gente fosse responsável por sua

melhora, mas não é assim. Ele precisa de vocês, ele quer sair daqui, percebemos

o seu esforço para melhorar, mas sozinho é praticamente impossível.

— Eu concordo — a enfermeira deixou que o choro aparecesse —. Posso

vê-lo mais uma vez?

— Claro — respondeu cordial.

O rapaz ainda dormia, levando a mãe de volta ao passado, quando todas

as noites ela se sentava na cabeceira da cama e acariciando aquele garoto

indefeso o fazia adormecer; em outras noites cantarolava algumas músicas de

ninar e o punha para dormir. Ele era o seu amor, o seu tesouro, ela o amava.

Agora o garoto já era um homem, um bonito homem, que se não fosse

pela mente judiada estaria vivendo coisas incríveis. A mulher se aproximou,

acariciou os cabelos lisos e negros, levou a mão ao rosto sereno e, quando

percebeu o sorriso infantil, não conteve mais a emoção. Beijou o filho, o amava,

estava decidida em ajudá-lo.

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Capítulo 37

Uma nova sexta-feira acontecia na Cidade da Paz trazendo consigo boas

notícias aos muitos moradores.

Fora de risco algum Rui fora liberado a voltar para casa, era o que ele mais

desejava, ficar próximo a filha e protegê-la do que quer que fosse. Ainda não

entendia como aquelas coisas se submeteram a ele, embora fosse um homem

bastante sério não colecionava inimigos, ninguém tinha motivo para odiá-lo.

Ou quase ninguém.

Lembrou-se dos episódios com Helena e de como havia desmascarado tal

mulher perante a filha, ela tinha motivos de sobra para querer o seu mal. Porém,

aquele homem ainda era muito apaixonado pela terapeuta, ainda a amava

apesar de tudo, mesmo que as suspeitas fossem convictas ele não a acusaria,

seria incapaz de ver a pessoa que amou por todos aqueles anos atrás das grades,

sentir-se-ia culpado.

Ao ser deixado pelo táxi na porta do prédio no qual morava o empresário

suspirou aliviado, sentia-se seguro naquele lugar, protegido do resto do mundo.

Sorridente, cumprimentou o porteiro; feliz, saudava a quem cruzasse seu

caminho, mas foi ao chegar a seu apartamento que as lágrimas emotivas

romperam as barreiras dos olhos durões. Abrindo a porta encontrou a sala

enfeitada por todos os cantos com fotos suas, desde a época em que era jovem

até os dias atuais, infelizmente poucos eram os retratos que exibiam ele e sua

filha juntos, mas o painel montado especialmente a Rui confortava aquele

arrependimento:

Você é o cara!

Os dizeres o emocionaram ainda mais. Sua filha preparara uma

verdadeira festa para comemorar o seu retorno.

— Seja bem-vindo! — Júlia, Isaque e Gabriela disseram em uníssono,

alegrando aquele coração.

O homem sempre sério, durão, abrira um sorriso inundando pelas

lágrimas de contentamento, nunca imaginou que viveria uma surpresa como

aquela, era a melhor sensação de sua vida.

— Não vou dizer que não precisava porque eu gostei muito — arrancou os

risos dos jovens —. Mas devo agradecer pelo carinho.

— Agradeça à garota mais linda desse mundo — Isaque beijou o rosto da

namorada —, foi ela quem organizou cada detalhe.

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— Filha... — o emotivo empresário envolveu a adolescente em um sincero

e forte abraço —. Você é muito especial na minha vida... Perdoe-me pela

ignorância desse anos, por ter sido tão errôneo.

— A culpa é da vida — Júlia respondeu também emocionada —, não sua.

O importante é que hoje estamos aqui, celebrando esse momento.

— Atenção para a selfie! — Gustavo anunciou com o celular em mãos.

— Lá vem o fotógrafo — Gabriela ironizou.

— Eu sei que você ama esse fotógrafo — o Romântico Anônimo não se

conteve e beijou o rosto da amiga, fazendo-a corar bruscamente e desenhar no

rosto um acanhado sorriso.

— Quer dizer que temos mais um casal? — Rui não segurou a curiosidade

e fez seu comentário inocente.

— Estamos quase lá — Isaque declarou.

— É... — o futuro pediatra confirmou —. Quem sabe...

Percebendo a timidez da amiga Júlia sugeriu:

— E essa foto? Sai ou não sai?

E aquele momento tão incrível fora eternizado.

A festa entre as cinco pessoas seguiu o seu roteiro, riram, divertiram-se,

por algum tempo se esqueceram de um mundo de desafios e responsabilidades

que tinham a enfrentar, estavam entre verdadeiros amigos e quanto estamos

entre verdadeiros amigos o que importa é o prazer do momento, o mundo é só o

resto.

Chegou a hora de cada seguir o seu rumo.

Acompanhando os bons companheiros e o namorado até o lado de fora do

elegante edifício a garota dos olhos verdes pediu para que os garotos se

afastassem por alguns instantes, precisava conversar com Gabriela.

— Ficou tímida com a ideia de formar um casal com Gustavo, não foi? —

sua pergunta foi direto ao assunto.

— Um pouco — a garota dos olhos azuis respondeu em um tom de

desconsolo.

— Sabia que ele te olha apaixonado? — encarando o garoto em questão

Júlia continuou: — Como agora está te olhando com cara de que precisa de você,

mas não apenas como amiga, como sua namorada.

— Promete que guarda segredo?

— Pode confiar em mim.

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— Eu também preciso dele dessa forma, é o meu sonho — revelou

acanhada, envergonhada —. Mas e se não for o que ele realmente quer? E se

isso estragar nossa amizade?

— Qualquer um que os vê sabe o quanto são apaixonados um pelo outro.

Arrisque-se, o único risco que vai correr é o de viver feliz para sempre —

abraçou a amiga com ternura —. Vocês serão um casal inspirador a todos nós.

Embora ninguém soubesse Helena esteve por ali na espreita, assistindo a

cada movimento, atenta a cada fato. A gota que despertou o seu ciúme doentio

foi ver a filha, a que julgava como sendo sua propriedade, abraçar outra pessoa,

uma garota. Irou-se completamente, revoltou-se. Fechou os vidros do carro e

deu uma arrancada perigosa, assustando os jovens amigos.

<<>>

Pronta para dormir Laura não pôde adiar por mais tempo um assunto

tão importante, precisava chegar a um acordo com o marido, precisava lutar

pelo filho.

— Eliseu, nós temos que conversar.

Tirando os óculos de grau, fechando o livro e o repousando no criado-

mudo ao lado da cama, o professor de português foi atencioso.

— Pode falar.

— É sobre o nosso filho.

— O que ele aprontou dessa vez? — quanto a Guto ele era sempre

pessimista.

— Ele precisa de nós, é nosso dever ajudá-lo a sair daquele lugar.

— E o que você quer que eu faça? Que o cure? — zombou —. Não há nada

o que possamos fazer, a mente é dele, não nossa. E eu não posso simplesmente

tirá-lo da clínica, sabemos o quão desequilibrado está, representa ameaças.

— Somos os culpados — e enfermeira afirmou —. Por todos esses anos

escondemos o nosso filho, tentamos mesclar o problema o trancafiando naquele

lugar, deixando-o à própria sorte. Ele sente a nossa falta, sente que é rejeitado, e

isso implica na sua melhora.

— Eu não tenho culpa se ele é louco — as palavras soaram pesadas —.

Não é responsabilidade minha os problemas que ele têm.

— Não posso acreditar nessa frieza — a mulher reclamou —. Ter um filho

era o seu maior sonho. Você ficou tão contente quando descobriu que era um

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menino, saiu por aí anunciando a todos os seus amigos, dava para perceber o

quão orgulhoso estava — uniu as mãos fixando os olhares —. É impossível que

todo esse sentimento e que toda aquela alegria tenham sido aniquilados

— Pensei que teria um filho normal, que se transformaria em um homem

de sucesso e enchesse essa casa de netos — desabafou entristecido —. Não

consigo acreditar que a vida nos deu esse desafio. Não deixei de amá-lo, penso

neles todos os dias, sei que é o meu filho, mas o mundo é cruel, o excluiria, o

aniquilaria da sociedade. Eu não tenho vergonha do nosso filho — deixou o

coração falar —, eu sinto medo do que pode acontecer a ele.

— Eu sei e também sinto — Laura abraçou o marido —, mas se nos

unirmos, se formos mais presentes, podemos ajudá-lo a ter uma vida melhor. O

nosso amor incondicional pode até mesmo o curar dessa escuridão, podemos

salvá-lo de um futuro incerto.

O homem nada disse, mas dentro de si existia a concordância com cada

palavra.

<<>>

Final de semana. O sábado era frio, as muitas nuvens dificultavam o

resplendor do sol e a brisa gelada derrubara as temperaturas, contudo, mesmo

assim, o casal favorito na apresentação de danas do Colégio Inova foi ao parque

da cidade ensaiar os passos.

Animado por passar aquela tarde de sábado ao lado da garota que amava,

Gustavo vasculhou a playlist do celular até encontrar Lego House, de Ed

Sheeran.

— Concede-me o prazer dessa dança? — pediu à amiga.

— Mas é claro que sim — Gabriela respondeu.

E novamente os corpos sincronizados deram início aos perfeitos passos,

era mesmo o casal mais belo aos olhos de quem o visse. Atento às íris azuis que

o encaravam ao ponto de fazê-lo pensar que a garota enxergava, Gustavo não

poupou elogio:

— Sabia que é uma pessoa muito bonita?

— Você sempre diz isso — a Adolescente Apaixonada sorriu

graciosamente, acelerando o coração de seu eterno admirador —. E é claro que

eu amo ouvir.

Os passos tomavam conta do pátio do parque, chamavam a atenção dos

muitos visitantes.

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— Ontem você não negou que éramos um casal — disse de repente, certa

do que queria saber.

— Só um louco negaria — e de novo o frio na barriga se manifestou em

Gustavo, que se sentia mais perto do que nunca da revelação, da declaração dos

seus verdadeiros sentimentos.

— Seria meu namorado?

— E quem não seria? — sua vontade era em afirmar outra resposta, mas

aquela fora julgada como melhor, não deixaria as coisas tão na “cara”.

A música controlava os corpos dos dançarinos, que sem perceberem

encantavam a muitos observadores.

— Não é isso que quero saber — insistiu —. Sem me julgar por minha

beleza — após tanto ouvir se convenceu de que era mesmo bonita.

— É claro que eu namoraria você.

— Por quê? — queria respostas, sonhava que naquele dia tudo se

concretizaria, que finalmente não perderiam mais tempo lutando contra o

inevitável.

Gustavo observou o rosto angelical com atenção, ele a amava, seu coração

dizia isso, para quê perder mais tempo?

— Porque você é a garota mais especial que conheci, porque você torna os

dias mais coloridos, porque você é um exemplo que eu muito admiro, porque

você é a pessoa ideal para mim, a que eu sonho terminar os meus dias ao lado

— passeou o indicador pelo rosto suave —. Porque você é linda — “na verdade,

porque eu te amo”.

Os rostos estavam mais próximos do que nunca.

As respirações já eram trocadas.

Os olhos se fecharam.

A distância entre os lábios era a menor possível.

Aplausos.

Aqueles malditos aplausos quebrarem o encanto.

Destruíram a magia.

O casal agradeceu ao reconhecimento.

Não foi daquela vez.

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Capítulo 38

Perturbada com todos os últimos acontecimentos desde a tentativa de

assassinato contra o pai até o carro que passara violentamente em frente ao

condomínio, Júlia não conseguia pensar em outra coisa que não fosse afastar o

perigo para bem longe. Suas suspeitas eram mais do que claras, não havia

dúvidas, porém perante às autoridades a certeza de nada vale se provas

concretas não forem apresentadas.

Certificando-se de que o pai ficaria bem, a garota dos olhos verdes pediu a

ajuda do namorado a fim de executar o plano arquitetado, se tudo fosse como

ela imaginava o único desfecho da história seria Helena atrás das grades.

— Eu exijo entrar! — a adolescente foi barrada pelo segurança na central

de monitoramento do supermercado que seu pai fundara.

— Só posso lamentar — o homem estava irredutível —. Ninguém entra

aqui sem autorização.

— Autorização? — Isaque ironizou —. Sabe com quem está falando?

— Eu sou a filha do dono — declarou triunfante —. E os donos têm

autorização para fazer o que quiserem com suas coisas a menos que queira ser

demitido, aí eu posso voltar outro dia.

Sem saída o segurança destravou a porta, a passagem estava livre.

— Isso não é trabalho de polícia? — o futuro engenheiro questionou.

— Sim, claro — Júlia respondeu animada, como se as ideias em sua mente

fossem infalíveis —. Mas nós podemos dar uma mãozinha. Ligue os

computadores, eu executo os programas, precisamos desmascarar as ameaças

dessa sociedade.

E assim foi feito.

Os olhos atentos às telas dos computadores assistiam a todos os fatos do

dia em que Rui sofrera os tiros. Pela cronologia, um carro preto estacionou em

frente ao supermercado no final da tarde, enquanto o sol ia embora. Quando a

noite já imperava e o empresário pisou fora do estabelecimento, aconteceram os

disparos, o casal de namorados pôde notar de onde eles surgiram: do carro

preto. Atenta a cada detalhe Júlia dobrou sua atenção na brusca saída do carro,

pausou o filme aplicou o zoom, anotou a placa.

— Sabe de quem é? — Isaque estava curioso.

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— Tenho quase certeza — tirou o celular do bolso —. Depois que aquele

carro estranho quase atropelou a gente, eu pedi para o porteiro me mostrar as

gravações — abriu a galeria de fotos, exibiu o carro preto —. Como pode ver

são muito parecidos.

— Mas a placa é diferente — o garoto se atentou.

— Sim, mas ainda são o mesmo carro — deu zoom na tela do celular —.

Está vendo a frase “Heal the World”? agora veja o carro do supermercado —

olhos no computador —. É a mesma frase, na mesma posição e com o mesmo

formato.

— Então o criminoso atentou contra o seu pai e trocou a placa?

— Correto. Assim dificultaria o trabalho da polícia.

— Parece coisa de filme!

— Seguindo o roteiro, o bandido vai se dar mal — encarou o celular com

ameaças —. Muito mal!

<<>>

Aquele domingo de temperaturas baixas prometia muita emoção.

Helena não conseguia tirar a visão do abraço entre Júlia e Gabriela, ela

fora a amiga da garota, fora ela quem a acolheu quando todos lhe viraram as

costas, aquilo era injusto. Porém, a terapeuta não deixaria tudo como se nada a

atormentasse, tudo a incomodava.

— Você sabe o que precisa ser feito — seu pai estava na poltrona da sala,

encarando-a friamente —. Não acha que está sendo gentil em demasia? Pessoas

boas são exploradas até que tenham suas forças esgotadas.

— O que quer que eu faça? — gritou em meio ao surto —. Que mate todos

que estão no meu caminho?

— Que ideia maravilhosa — o velho sorriu gélido —. Isso é o que você faz

de melhor, mas a culpa não será sua, e sim daqueles que atrapalharam os seus

planos, eles te provocaram, é um direito seu revidar à altura.

— Tem razão — a psicóloga desequilibrada tomou um semblante perverso

—. A culpa não é minha — levantou-se do sofá —, mas daqueles que me

provocam.

Com um plano devasso e nojento criado em sua mente, Helena tomou um

banho demorado, vestiu um vestido vermelho e comprido, calçou as sandálias,

maquiou-se exageradamente e escondeu os longos fios ruivos debaixo da

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peruca morena; colocou os óculos escuros e deu um sorriso na frente do

espelho. Sua loucura a consumia.

A mulher conhecia o suficiente sobre cada pessoa que estava na vida de

Júlia, o suficiente para causar o caos e instaurar o terror, o suficiente para

colocar em prática sua perversa demência. A primeira vítima?

— Gabriela Campos, a garota cega — de soslaio, espreitando a casa da

adolescente, a terapeuta avistou-a no jardim, era o momento perfeito —.

Menina — chamou-a no portão —, venha cá — fingiu uma voz atribulada.

— O que houve? — a garota se agarrou à bengala enquanto se dirigia ao

portão, ingênua e inocentemente —. Precisa de ajuda?

— Muito — forçou o choro —. Será que posso entrar?

— Claro — tirou o cadeado —. Do que precisa?

— De morte! — tapou o nariz de Gabriela com um pano encharcado de

éter, fazendo-a desmaiar —. Nada mais.

<<>>

— Precisamos conversar com o delegado — Júlia pediu para o policial que

a atendera —. É sobre o caso do meu pai.

Rubens era um homem alto, rosto rígido e sério, olhar fixo, voz grave ao

soar, o delegado da Cidade da Paz, que prezava pela honra do nome do

município, que não aceitava crimes mal resolvidos.

— Espero que não vieram me importunar com suspeitas — também não

gostava de perder tempo.

— Eu acho que vou esperar lá fora — Isaque “tremeu na base”.

— Você vai ficar aqui — a garota o segurou —. Garanto que são provas

concretas.

— E onde elas podem chegar?

— Elas concluem que vocês estão sendo passados para trás, feitos de

criancinhas ingênuas ou, em outras palavras, de burros — a adolescente era

bastante sincera.

— Burro? — o delegado se indignou —. Uma pivete me chamando de

burro?

— Eu acho que vou esperar lá fora — Isaque anunciou com a voz

fraquejando.

— Você vai esperar aqui! — a voz grossa ordenou.

— Então eu vou ficar aqui — a voz adolescente soou fina.

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— Apenas me ouça — a tranquilidade de Júlia era surpreendente —. O

senhor vai me entender.

A filha do empresário Rui contou todas as suas suspeitas e revelou as

provas, espantando Rubens que precisou confessar com um sorriso gentil:

— Mandaram muito bem. Poderiam substituir dez dos meus homens.

— Trabalhar aqui e correr o risco de ser baleado? — o futuro engenheiro

era mesmo medroso, para a diversão da namorada —. Nós agradecemos.

— Não é aqui que ficam os bandidos, eles são levados à penitenciária — o

homem declarou enquanto pegava suas coisas —. Podem nos levar à casa da

suspeita?

— Agora mesmo! — Júlia, destemida, levava jeito para a coisa.

Saíam da delegacia quando o celular de Isaque tocou, a ligação não trazia

boas notícias.

— Gustavo?

— Aconteceu uma coisa horrível — a voz era afobada, desesperada.

— E o que foi?

— Sequestraram Gabriela —agora a voz se misturava com o choro —. Foi

Helena, ela sequestrou a garota que eu amo — arrependia-se por demorar tanto

em declarar o que sentia —. Vai machucá-la!

<<>>

Tranquila, serena, segura de si. Helena se dirigiu ao bairro afastado da

Cidade da Paz onde o crime ditava as regras e a polícia parecia não ter força.

Adentrou uma estrada de terra, sabia exatamente o que fazer. Estacionou em

frente um casebre abandonado, pegou sua vítima nos braços e a levou para

dentro do sombrio lugar. Esperta, amarrou a garota em uma cadeira,

amordaçou-a e se sentou na cadeira à sua frente. Pacientemente encarava a

prisioneira, esperava que ela acordasse.

Amarrada, impossibilitada de se mexer, sentindo a frieza ao seu redor,

percebendo pelo cheiro que era um lugar desconhecido, Gabriela se desesperou,

tentou gritar, mas a corda amarrada em sua boca não lhe permitia isso, as

lágrimas começaram a rolar espontâneamente.

— Não fique assim, ceguinha — a psicóloga fez sua voz soar de uma

forma seca, calculista, fria —, eu garanto que não vai doer, você não vai nem ver

— de braços e pernas cruzadas, sobrancelha arqueada e olhos fixos sobre a

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Adolescente Apaixonada, Helena concluiu: — Eu juro que vai ser muito rápido,

embora mereça algo lento e bastante doloroso.

A garota dos olhos azuis não conseguia reconhecer aquela voz, mas sentia

que ela proferia raiva, ira, sentimentos pesados, pensamentos cruéis. Quem

faria isso com ela? Não conseguia encontrar respostas. Sempre procurava ser

gentil com as pessoas, ser simpática com o mundo, não tinham motivos para lhe

fazer o mal.

— Que deselegância a minha, nem me apresentei — trocou as pernas de

posição —. Sou Helena Siqueira, a mãe de Júlia, aquela garota que você e seus

amigos rejeitavam, mas que eu acolhi — dirigia as palavras esbanjando o ódio

—. Talvez esteja pensando porque eu a seqüestrei, mas não pense muito,

envelhece. Eu venho incansavelmente tentando conquistar o amor da minha

filha, mas tem sido tudo em vão, eu não alcanço o seu perdão — libertou o

choro —. Eu luto, luto e luto, mas ela não reconhece o meu esforço, porém

penso rápido e já tenho a solução para o meu problema — enxugou as lágrimas

—. O que você faria se todas as pessoas que ama ou gosta fossem aniquiladas e

só sobrassem você e a que tem por inimiga, mas que te ama mais que tudo? —

percebeu o pavor se intensificar em Gabriela —. Acho que entendeu a minha

solução. Vou tirar todos os obstáculos do meu caminho — aproximou-se da

prisioneira —, um a um — levou a boca ao ouvido da jovem adolescente —, até

que reste somente a mim e a minha filha — gargalhou animada —. Não é o

plano perfeito? — aplaudiu contente —. Mal posso esperar para completá-lo!

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Capítulo 39

Passar pelo medo de perder alguém que tanto se ama é uma das piores

sensações que todo o ser humano enfrenta durante a vida, contudo o medo é

ainda pior quando sabemos que a pessoa da qual gostamos está nas mãos de

gente cruel, inescrupulosa e que não pouparia a maldade. Laura sentia aquele

medo sufocá-la, pressioná-la, como se fosse ela a seqüestrada. Quando o marido

saiu para a delegacia, a mulher entrou em um desespero jamais sentido antes,

as luzes pareciam se apagar.

“Após tantas tentativas frustradas para engravidar outra vez, sonhando em

abraçar uma garota, Laura entrou no orfanato de Paraisópolis, sua antiga cidade,

sentindo uma ansiedade forte, desejosa em conquistar algumas daquelas crianças.

A cada passo se maravilhava com os pequenos que corriam de um lado para o

outro enquanto eram vigiadas pelos bons inspetores. Apesar de tudo eram felizes,

transmitiam alegria no olhar, paz ao gargalhar.

Ela e seu marido queriam uma criança mais nova, a qual eles poderiam

acompanhar o crescimento, ajudar nos primeiros passos e ouvir as primeiras palavras

que soariam com a dificuldade infantil. Foram levados ao berçário onde diversos bebês

esperavam por algum casal de bom coração e com amor para dar. Dormiam

profundamente, um sono tranquilo, um sono sereno, como alguém pôde rejeitá-los? De

mãos dadas, marido e mulher passearem por entre as crianças, atentos a cada uma,

perceptivos a quais sentimentos se manifestariam.

Foram conquistados por uma menina que, mesmo dormindo, abriu o sorriso ainda

sem dentes, formou as fofas covinhas nas bochechas rosadas e levantou os pequenos

braços como se quisesse pegar algo. O casal, sorridente, entreolhou-se, era aquela, aquela

seria a filha deles, aquela traria felicidade ao lar, aquela lhes daria a oportunidade de

cuidar de mais um filho”.

Foi assim que a história de Laura e Eliseu começara com Gabriela, uma

história de amor, compreensão, mas que agora corria o risco de ter o ponto final

antecipado.

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Revolta. Raiva. Eliseu estava transtornada com aquela situação, não

suportava a ideia de que sua amada filha estava nas mãos de uma vil

desconhecida, que aparentemente não teria motivo algum para cometer tal

barbárie. Sempre procurou andar de acordo a lei e pelos princípios da boa

convivência, nunca criou inimigos, mas agora se via numa terrível injustiça:

sofria com a crueldade de alguém sem amor.

Angustiado, o professor de português adentrou a delegacia, nem ao

menos pediu autorização, entrou na sala do delegando encontrando também os

amigos de Gabriela.

— Mostre-nos logo o que tem — Rubens manteve a postura exigente —.

Não quero perder tempo com amadores.

— Leia — jogou um papel sobre a mesa —. Essa desequilibrada vai

machucar a minha filha!

“Sabe quando queremos muito alguma coisa e não há o que

façamos para que dê certo? Começamos a nos exaustar e parar de

lutar tão de pressa. A gente para, analisa e descobre os obstáculos

que bloqueiam o nosso caminho. A partir daí mudamos de

estratégia e vemos que a solução é remover as dificuldades.

Eu lutei, mas não foi suficiente, os obstáculos estavam mais

fortes, então peguei outro trajeto na estrada da vitória, um trajeto

que vence as barreiras, aniquila-as.

Tenho uma filha, adoraria reconquistá-la, mas os invejosos

não deixam. Ela não percebe, mas cada pessoa ao seu lado quer

prejudicá-la, privá-la de bons momentos com a pessoa que tanta

a ama. Então, a fim de ajudá-la, resolvi tirar esses interesseiros

do seu caminho. Em breve seremos somente ela e eu, ninguém

mais.

Sei que vai me agradecer”.

— Isso soa como declaração de guerra — o delegado se levantou, convicto

do que faria —. Então vou guerrear!

— O que vai fazer? — Eliseu questionou aflito.

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— Vasculhar essa cidade, procurar em cada buraco, no meu território

ninguém comete crimes!

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Após ouvir aquela carta sombria Gustavo teve o coração inundado pelo

pavor, medo de perder alguém que amava, mas que ainda não lhe havia

declarado. Abaixou a cabeça até os joelhos e, sentado no sofá da delegacia,

deixou a angústia se esvair do seu peito.

Muitas eram as lembranças que vagueavam pela mente do Romântico

Anônimo, desde o primeiro dia em que vira Gabriela até o dia no qual

dançaram apaixonadamente no parque da cidade. Percebeu mais uma vez o

quanto ela representava em sua vida, era impossível descrever com palavras, só

era possível sentir no coração.

— Vai ficar tudo bem — Isaque se sentou ao lado do velho amigo —, o

bem sempre ganha no final.

— É o que acontece na ficção — os olhos avermelhados se ergueram —,

mas na vida real as coisas costumam seguir caminhos contrários. Faz ideia da

dor que estou sentindo?

— É claro que eu faço, você a ama embora não o diga, qualquer um

consegue ver isso no seu rosto e na sua tanta preocupação. Eu sei que o medo

que você está sentindo é algo apavorante, que o aflige impiedosamente, mas

precisa acreditar em um final feliz.

— E se eu perdê-la? — as pálpebras não susteram mais as pesadas

lágrimas e o jovem rapaz chorou feito um menino indefeso —. Não me declarei

enquanto tive tempo, não fui capaz de expor meus sentimentos, posso ter

perdido a maior oportunidade da minha vida.

Cedendo o ombro sempre disponível, abraçando aquele que considerava

seu irmão, Isaque o confortou (ou tentou confortar):

— As coisas vão ficar bem, eu sinto.

<<>>

— Em poucas horas a noite chega e eu vou poder sair daqui com o seu

corpo — Helena encarava o relógio de pulso —. Você prefere morrer agora ou

mais tarde? — perguntou friamente, embriagada pela loucura —. São apenas

essas opções que posso lhe ofertar.

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A Adolescente Apaixonada sentiu o pavor crescer. Perdida naquela

escuridão sem fim não sabia onde estava, não tinha ideia do que fazer, não

esperava por salvação.

Tirando as amarras da boca de Gabriela, a psicóloga voltou a se sentar em

frente à garota, pronta para iniciar seu discurso:

— Antes de morrer eu acho digno que você ouça a minha história e, assim,

entenderá os meus porquês — pigarreou, cruzou as pernas e arqueou a

sobrancelha —. Meu pai era um homem bastante violento, frio, todos o

respeitavam por medo, o veneravam pela angústia que dele podiam receber.

Depois da morte de minha mãe ele se transformou ainda mais, revoltou-se

contra vida, odiava existir — fez uma pausa encarando a prisioneira —. Eu era

linda, delicada, assim como você e meu pai resolveu começar sua perversão. Ele

abusava de mim, revelou ser o monstro que todos já sabiam que era, mas que

ninguém tinha coragem o suficiente para deter. Minha vida se resumia em

satisfazer os desejos de meu pai, fui por longos anos vista como objeto em suas

mãos — limpou a discreta lágrima bruscamente —. Então eu o matei — revelou

secamente, provocando arrepios em sua ouvinte —. Foi um acidente, juro que a

culpa não é minha! — afirmou como estivesse sendo interrogada —. Não é

verdade, pai?

— Claro, minha querida — sua mente perturbada trouxe de volta o seu

pai —. A culpa nunca é sua, mas daqueles que ficam em seu caminho.

— O que o senhor acha que devo fazer? Aniquilar essa garota ou mantê-la

intacta?

— O que deve ser feito — o velho tinha um olhar dominador, o olhar que

sempre encarou a, agora, terapeuta e que sempre lhe apavorou —. Aniquile os

obstáculos.

— Você ouviu, querida? — aproximou-se da garota à sua frente —. Ele

mandou aniquilá-la.

Gabriela se assustou com tamanho delírio, embora não enxergasse sabia

que não tinha ninguém ali além delas e se desesperou ainda mais sentindo a

aproximação de sua opressora.

— Eu prometo que não vai doer — Helena encharcou um pano com álcool

e o passou no pescoço da adolescente, que sentindo a pele esfriar soltou as

angustiadas lágrimas —. Vou aplicar a injeção — colocou a agulha na ponta da

seringa tendo um semblante tranquilo, como se aquilo fosse o certo, como se

fosse o necessário — e você vai dormir em alguns segundos, para toda a

eternidade.

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Pronta para colocar suas intenções em prática a ruiva foi interrompida

pelo toque do celular.

— Que foi? — perguntou irritada.

— Mãe? — era Júlia.

— Minha querida? — soltou a seringa ao ouvir a voz da filha —. É você?

— Sim, mãe, sou eu, sua filha, que muito a ama.

— O que deseja, meu amor? — a agressiva mulher dava lugar a uma

amável mulher —. Vai voltar a falar comigo?

— Mas é claro que sim, nunca deveria ter parado. Fique onde está, vou

buscá-la para fugirmos juntas.

Encarando sua vítima Helena esbravejou:

— Não conseguiram tirar a minha filha de mim! Não conseguiram!

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Aquela conversa não passou de armação, os policiais aproveitaram que a

terapeuta atendera a ligação e rastrearam de onde ela falava. Agora tinham

soluções para o problema a enfrentar.

Esperto, Gustavo a tudo se atentava, pediu a Isaque que buscasse um

pouco de água e saiu correndo. Aproveitando a distraída correria dos muitos

militares que se armavam para a operação, o futuro pediatra invadiu uma das

viaturas, escondendo-se no porta-malas, cobrindo-se com os coletes que ali

estavam. Estava camuflado.

Voltando com a água em mãos, o futuro engenheiro estranhou a ausência

do amigo, mas brevemente ligou os pontos. Correu para fora da delegacia,

gritou para que esperassem, mas em vão, as viaturas davam as violentas

arrancadas, tinham uma vida à salvar.

Para o medroso Isaque restou apenas uma coisa: torcer para ter a

oportunidade de reencontrar o grande amigo.

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Capítulo 40

A terapeuta estava bastante ansiosa pela chegada da filha, imaginava que

finalmente as coisas sairiam como ela vinha planejando, não passava pela sua

mente que tudo era uma grande armação. Alisando os cabelos em frente ao

espelho quebrado que tinha na sala da casa abandonada, Helena abriu um

sorriso animado, mas a declaração que faria Gabriela ouvir não era tão

aconchegante:

— Finalmente ela notou que vocês não passam de barreiras entre mim e

ela, vamos ficar juntas por toda a eternidade, viveremos uma bela história de

mãe e filha — virou-se para a prisioneira —. Talvez eu esteja enganada, se ela

não me perdoar aí eu serei obrigada a concluir os meus projetos. Passo por cima

de qualquer obstáculo.

A Adolescente Apaixonada, por sua vez, só conseguia sentir a saudade

dos pais e uma vontade absurda de estar ao lado de Gustavo, o garoto que lhe

transmitia segurança, que a fazia se sentir protegida. Tudo o que mais almejava

naquelas angustiantes horas era voltar para casa, para a sua vida normal e

sentir o abraço daqueles que amava mais do que qualquer outra coisa.

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As viaturas apressadas invadiram o bairro afastado, assustando seus

moradores, deixando os integrantes do crime organizado alarmados e

preparados para qualquer ataque que poderiam sofrer. Mas naquele domingo o

foco não era eles, o que não quer dizer que nunca seria.

A estrada de terra fora coberta por pó conforme os carros passavam, logo

uma casa no meio do mato ficou visível, o plano era mandar Júlia para lá

enquanto os militares ficariam escondidos, prontos para a surpresa do dia.

Esperto, Gustavo esperou que os dois policiais descessem da viatura na

qual estava, jogou de canto os coletes que o cobriam, pulou o porta-malas e

correu mata dentro. Sem que ninguém o visse, sem que suspeitassem da sua

presença, o futuro pediatra acessou os fundos da casa abandonada, agora só lhe

restava encontrar uma passagem, seu desejo era salvar a garota que gostava,

que lhe despertava sentimentos tão intensos, que o faziam sorrir apaixonado e

versejar romanticamente.

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— Mãe? — alguém bateu na porta, a voz era inconfundível.

— Filha? — a ruiva abriu a porta colocando à sua dianteira o revólver,

assustando a garota dos olhos verdes —. É só você mesmo?

— Sim, apenas eu. Posso entrar para conversarmos? Quero fugir com

você.

— Entre, entre — puxou a filha e fechou a porta, guardou o revólver na

bolsa pendurada em seu ombro —. Entendeu que devemos ficar juntas, não foi?

E que ninguém nesse mundo a ama tanto quanto eu.

— É isso sim — Júlia encontrou a amiga amarrada na cadeira, angustiada,

desprotegida —. Eu só quero saber de uma coisa — aproveitou a oportunidade

—, por que me abandonou?

— Por que o seu avô mandou — respondeu sincera —. Sente-se — trouxe

a cadeira recostada em um canto para mais perto —. Eu vou contar tudo, toda a

verdade.

“Com a morte do pai Helena ficou muito sensível, chorava por pouca coisa, sentia-

se abandonada no mundo, desamparada por todos que a rodearam, sedenta pela atenção

de alguém. Rui se condoeu por aquilo, amava a garota, decidiu que passaria cada

segundo ao seu lado, para todo o sempre.

— Só você me dá o que eu quero, atenção... — recostada sobre o ombro do garoto

que lhe despertava a paixão em frente, em frente à calçada de casa, sob a luz do luar, a

ruiva declarou —. Não faz ideia de como o amo.

— Eu te amo ainda mais — acariciou o rosto da namorada —. E estarei sempre

aqui, quando precisar, para o que precisar.

Helena abriu um sorriso apaixonado e atraiu Rui para um beijo envolvente. Mas

naquela noite o casal estava mais suscetível aos desejos da paixão, mais vulneráveis à

consumação do amor. O beijo se intensificou, a chama que os unia se fortaleceu,

passaram aquela noite juntos, perto um do outro, amantes um do outro.

Ao acordar pela manhã a garota se lembrou do que acontecera; percebendo a

ausência de Rui sentiu o coração apertar. ‘Fui usada?’. Engano dela, era amada por

aquele garoto que a desejava sobre qualquer outra coisa. Cavalheiro, como sempre fora, o

jovem adolescente atraente apareceu com uma bandeja em mãos e o seu melhor sorriso

estampado no rosto. Colocou aquilo diante a adolescente e declarou o que já era notório.

— Fiz para você.

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Guloseimas saborosas, um suco agradável ao paladar e pães cobertos por creme.

Era um mimo e tanto para Helena, que não sabia como agradecer.

— Você existe? — perguntou com o brilho no olhar —. O que eu posso fazer para

recompensá-lo?

— Dar-me o seu sim — respondeu misterioso.

— O meu sim? — questionou duvidosa.

— Aceita ser a minha esposa?

Era muita emoção de uma só vez, todas se manifestaram pelas lágrimas da garota,

que abraçando aquele que mais amava nessa vida deu sua resposta:

— É claro que você tem o meu sim.

Em poucos meses aconteceu o casamento e em poucas semanas o fruto daquela

noite especial que se passara pôde ser colhido: o jovem casal abraçava sua filha, uma

linda garota de olhos verdes que exibia um sorriso contente.

Os dias se passavam e uma angústia tomava conta de Helena, cada vez mais forte,

cada vez maior.

— Como pôde me trair dessa maneira? — em um dos surtos psicóticos o pai a

acusou de traição —. Como pode dizer que ama o culpado pela minha morte?

— A culpa não é dele — o choro era manifesto —. É minha! — reconheceu —.

Fui eu quem o empurrou das escadas, sou eu a culpada!

— Não minha querida, tudo aconteceu por causa do seu maridinho desprezível —

a mente perturbada reproduzia fielmente as mais sórdidas características daquele velho

—. Se ele não tivesse aparecido em sua vida nada teria acontecido e nós seríamos muito

felizes juntos.

— O que quer que eu faça?

— Faça-o pagar por isso, cause nele o sofrimento, abandone-o, prove que não o

ama — fixou os olhares —. Ele matou o seu pai.

Os surtos de Helena a faziam procurar culpados para problemas que elas causava,

sua mente se convencia do imaginário, mesmo se recordando de cada detalhe. Suas

escolhas e decisões precipitadas eram justificadas por aqueles surtos psicóticos como

sendo instruídos pelo pai, o homem que ela matara.

— O que está fazendo?— Rui a encontrou fazendo as malas —. Aonde vai?

— Não posso continuar vivendo com o assassino do meu pai — respondeu

friamente —. Eu preciso ir embora.

— Assassino do seu pai? — não pôde compreender a acusação —. Eu nunca

levantei se quer a voz contra ele!

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— A culpa é toda sua!

— Helena, pare com isso — o jovem rapaz a segurou fortemente, encarando com

seriedade os olhos verdes —. Vamos conversar, você não está bem, precisa se acalmar.

Sem ressentimento algum a ruiva estapeou o rosto daquele que um dia declarou

amar, deixando ali a vermelhidão intensa como sinal da sua raiva. Encarando

duramente os olhos castanhos que a fitavam incrédulos Helena proferiu suas últimas

palavras antes de sair daquela casa para nunca mais voltar.

— Eu sinto nojo de você e se me importunar eu juro que me mato! Se me ama

realmente deixe-me em paz!

E de uma forma incompreensível, incerta, questionável, aquela história de amor

chegava ao fim”.

— Seu pai é mesmo um assassino — a psicóloga afirmou secamente —.

Um assassino desprezível.

Júlia não conseguiu entender aquela história, tudo era confuso para a sua

mente, o que pôde concluir é que o pai pagara por algo que não devia e ainda

era chamado de assassino desprezível.

— O meu pai não é um assassino — defendeu-o —, e desprezível é você!

— esqueceu-se do plano atacando a mulher que odiava com todas as forças —.

Você me abandonou, deixou para trás o homem que a amava em sinceridade,

transformou-se em uma louca que erra e faz os outros pagarem por isso —

levantou-se bruscamente —. Mas agora chega, você vai para a cadeia!

O semblante tranquilo de Helena tomou uma forma espantosa,

desacreditada e logo a ira tomou o seu corpo, percebeu que estava sendo

enganada.

— Quer dizer que não vai ficar comigo?

— Nem se estivesse maluca como você!

— É por causa deles... — concluiu.

— Para com isso! Chega! A culpa é toda sua, somente sua, sempre será

apenas sua!

— Você prefere ver os seus amigos mortos? — a ruiva se agarrou em

Gabriela, levantando-a da cadeira —. Prefere que eles sofram? — sem pudor

algum lançou a prisioneira contra o chão, que batendo a cabeça violentamente

sentiu o mundo girar.

Gustavo, que até então se manteve escondido e ouvindo todas aquelas desculpas,

não pôde mais se conter e, armado com um pedaço de madeira, preparou-se para atacar a

ardilosa e desequilibrada mulher.

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— Acho que não vai ser hoje que o bem vencerá o mal — atenta ao espelho Helena

notou cada movimento, rápida se virou para o adolescente, sacou o revólver, fez o seu

disparo.

Com a pancada na cabeça Gabriela viu um clarão, a luz incomodou os

seus olhos, mas com o passar dos segundos se estabilizou e a visão lhe foi

restaurada, seu coração pulsou contente,a primeira pessoa que surgiu em sua

mente foi Gustavo. Ao ver o garoto desconhecido pronto para atacar sua

opressora, a Adolescente Apaixonada sentiu o coração pulsar mais forte,

embora nunca o tivesse visto seus sentimentos não se enganaram, era ele.

Ao escutarem o disparo os policiais invadiram a casa, antes que Helena

pudesse fazer a própria filha de refém dispararam contra a mulher, atingindo-a

no ombro. Pela dor soltou a arma, cambaleou, foi capturada pelos homens da

lei.

Gabriela correu ao encontro do adolescente desfalecido, colocou sua

cabeça em seu colo, encarava-o com o coração apertado, percebeu o quanto ele

era bonito e como o seu peito balançava de uma forma ainda mais intensa por

contemplá-lo.

— Está enxergando?— Júlia correu ao encontro do casal, já certa do que

acontecia, do milagre que presenciava —. Esse é o Gustavo.

A garota sorriu apaixonado enquanto lágrimas de dor corriam por seu

rosto.

O Romântico Anônimo sangrava.

Gustavo levou a mão fria ao pescoço da garota pela qual se deslumbrava,

pela qual sentia grande apreço.

— Eu... Amo... Você... — a cada palavra a voz ficava mais baixa.

A cabeça tombou para o lado.

A mão caiu sem vida.

Os olhos se fecharam cansados enquanto do peito rios de sangue

transbordavam.

Dor. Era tudo o que sentiam.

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Capítulo 41

Sirenes da ambulância soavam desesperadas. Ágeis, desejosos por

garantirem a sobrevivência de uma vida os médicos acolheram Gustavo,

colocaram-no no veículo e saíram em disparada rumo ao hospital. Helena, por

sua vez, havia sido atingida por balas de borracha, nenhum atendimento

especial se fazia necessário; algemada, fora empurrada para uma das viaturas e

levada para a delegacia. Atordoada com os movimentos estressados Júlia, antes

de ir com um dos policiais, encarou Gabriela exibindo o triste olhar e suplicou:

— Perdoe-me por tudo isso.

Abraçada ao pai, que também estava com os agentes de segurança, a

garota dos olhos azuis respondeu abatida:

— A culpa não é sua.

A namorada de Isaque precisou abraçar a Adolescente Apaixonada e,

deixando as intensas lágrimas percorrerem seu rosto, pediu mais uma vez:

— Eu preciso que me perdoe por tudo.

— Eu perdôo — foi humilde —, sem ter o que perdoar.

Aflita, sentindo-se responsável por toda aquela tragédia, Júlia seguiu o seu

caminho.

Eliseu, reconhecendo a milagre que alcançara sua filha, não pôde deixar

de comentar:

— Você está enxergando! — acolheu-a em seus braços —. Faz ideia da

felicidade que estou sentindo?

— Imagino — sorriu melancólica —. Gustavo vai ficar bem?

— Vai, minha querida — acariciou os fios loiros —. Vai sim...

<<>>

— Eu quero ver o meu filho! — Juliana exigia, se não fosse os enfermeiros

que a seguravam teria passado por cima do médico —. Eu preciso saber como

ele está! — encolerizava-se.

— Primeiro você precisa se acalmar — o doutor afirmou pacífico —. Por

agora sua entrada não é permitida, ele está passando por uma cirurgia.

— Cirurgia?! — a mulher se desesperou —. Está me dizendo que o meu

filho está no meio de uma cirurgia? O que está acontecendo?! — aumentou a

voz —. Quem fez isso?!

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— Como ele está? — Eduardo chegou afobado, precisando de

informações, mas como o bom biomédico que era sabia que as respostas não

sairiam tão depressa.

— Graças a Deus! — o médico exclamou —. Acalme sua esposa, depois

conversamos.

Levados a um quarto especial, Juliana reclamou o que sentia, revelou ao

marido o medo que se manifestava em seu peito e a afligia intensamente, dor de

mãe.

— Nosso filho está morrendo! — procurou o abraço do marido —. Tem

noção da gravidade?

— Não vamos perdê-lo — tentou acalmá-la.

— Como sabe? Como pode garantir? — a desesperança era maior que

qualquer confiança, sobressaía às crenças —. Ele está em cirurgia! Foi baleado

no peito! — a revolta crescia —. Vão tirar o nosso filho de nós.

— Não! Não! Não! — o homem apertou o abraço, via que sua missão

naquele momento era dar esperança aos corações desacreditados —. Ele é um

bom garoto, um ótimo filho, a vida não será tão cruel.

— Esse é o problema, a vida... A injusta vida!

Os angustiados pais precisaram aguardar mais algumas horas até que a

notícia que tanto almejavam receber chegou aos seus ouvidos.

— Terminamos a operação — o médico declarou —. Vocês poderão vê-lo,

mas com distância.

Ansiosos por contemplarem aquele que amaram tão incondicionalmente,

marido e mulher andaram pelos corredores do hospital, a cada passo o peito

acelerava, a cada segundo a tensão crescia. Pela janela de vidro que cercava

todo o centro cirúrgico o casal pôde ver o filho em uma situação angustiante,

apavorante, uma situação na qual nunca imaginaram que poderiam ver aquele

garoto. O Romântico Anônimo estava conectado a muitos aparelhos que o

ajudavam a respirar, a sobreviver, e outros que monitoravam seus fracos

batimentos cardíacos.

— Por quê? — a mãe derramava muitas lágrimas, já não tinha controle

sobre elas, seus pensamentos eram os mais pessimistas.

— Ele vai ficar bem — Eduardo manteve sua fé em pé, mesmo com os

tantos motivos que tinha para fraquejar —. Precisamos acreditar.

— Precisamos, também, de sangue — o médico revelou —. Ele sofreu uma

hemorragia intensa, não temos em nossos estoques alguém compatível, é

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necessário que a doação aconteça até amanhã ou não sabemos o que pode

acontecer. Vocês podem doar?

Pai e mãe se sentiram incapazes perante aquela situação, incapazes de

salvarem o próprio filho da morte, incapazes de darem chance àquele que

significava tanto a eles. Lembraram-se de Isaque, mas a solução era

praticamente utópica.

<<>>

Já era noite. Uma turbulenta e triste noite de domingo.

Após dar o seu depoimento na delegacia Gabriela pediu que a levassem

ao hospital, precisava de notícias, de certezas e, embora tivesse um enorme

motivo para se felicitar não conseguia comemorar o milagre que recebera, não

fazia sentido se alegrar sabendo que a pessoa mais especial que conhecera em

toda sua vida corria o risco de partir para nunca mais voltar.

Depois de muita insistência permitiram que a Adolescente Apaixonada

visse o garoto do qual era amante, na mesma janela de vidro o encarava e se

sentia mal por vê-lo naquelas condições, naquela situação trágica. Não pôde

conter o choro, um choro angustiado, amargo, que lhe fazia soluçar. Percebeu o

quanto o amigo era bonito, descobriu que o amava mais do que poderia

imaginar, precisava dele ao seu lado, precisava do que apenas ele poderia lhe

dar: o seu amor.

“Apenas queria que soubesse de uma coisa: é a mais bela das garotas dessa escola”.

Lembrou-se de um dos bilhetes que recebera. Embora todos estivessem

assinados pelo agradável e misterioso Romântico Anônimo, a garota dos olhos

que remetiam à imensidão do mar sabia a real identidade do autor de tão belos

escritos, não havia dúvidas, pela forma como Gustavo a tratava só podia ser ele.

“Sinto-me perdido em seu olhar, seu sorriso parece me tirar a razão. Por que a sua

presença é tão especial?”

As lembranças faziam a tristeza e o medo crescerem.

Recordou-se do dia em, perdida à própria sorte, tomava chuva e da forma

como aquele jovem adolescente a acolheu.

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“– Está tudo bem, meu amor...”

O dia no parque também vagueou por sua mente trazendo consigo uma

fala inesquecível:

“— Nunca será incômodo fazer algo pensando em você, querendo agradá-la”.

Não pôde deixar de se recordar do dia no qual conheceu o mar, de como

Gustavo fora tão cavalheiro, gentil, próximo. Não pôde se esquecer do discreto

celinho que deram durante aquele dia agradável; tal pensamento acelerou

aquele coração apaixonado e um sorriso romântico mesclou o semblante

amargurado.

Contudo, a próxima lembrança a faria ter certeza de que todo aquele medo

de perder o amigo era explicado pelo nobre sentimento que existia entre eles.

“— Porque você é a garota mais especial que conheci, porque você torna os dias

mais coloridos, porque você é um exemplo que eu muito admiro, porque você é a pessoa

ideal para mim, a que eu sonho terminar os meus dias ao lado — passeou o indicador

pelo rosto suave —. Porque você é linda”.

— Você também é especial — declarou ao vento —. Importante.

Insubstituível. Não pode me deixar, não pode se esquecer de mim, meu maior

desejo é estar ao seu lado para sempre e quando digo para sempre é mesmo

para sempre, até após a inevitável separação.

“O Romântico Anônimo sangrava.

Gustavo levou a mão fria ao pescoço da garota pela qual se deslumbrava, pela qual

sentia grande apreço.

— Eu... Amo... Você... — a cada palavra a voz ficava mais baixa”.

— Eu também amo você — o fato de não poder tocá-lo era ainda mais

angustiante —. Sou completamente apaixonada por você — por fim declarou.

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A segunda-feira iniciava e, seguindo a tendência do fim de semana,

totalmente nublada, fria e chuvosa.

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Quando recebera a notícia Isaque sentiu como se fosse ele o baleado, não

conseguia acreditar que o seu melhor amigo, aquele que confortava a quem

fosse preciso, estava em uma situação inimaginável. Seus pensamentos ficaram

ainda mais turbulentos por saber que o futuro pediatra precisava de sangue,

que ele poderia ser a solução, mas isso dependia do seu estado de saúde.

Logo cedo, sem querer perder nem um segundo, o promissor engenheiro

adentrou aquele hospital que guardava tristes memórias, as quais ele queria

muito esquecer. Antes de proceder ao exame de sangue o garoto se concentrou

em suas preces, pediu que o milagre acontecesse e que a salvação surgisse de

onde ninguém imaginava.

Angustiado, precisando de respostas, Isaque esperou no quarto reservado

ao melhor amigo pela determinação do exame. Sabia que Gustavo não tinha

muito tempo, que suas condições eram difíceis de aceitar, mas ainda sim

alimentava esperanças.

— Já temos o resultado — o doutor Alair procurou seu paciente,

apressado declarou: — Venha comigo, você está curado!

<<>>

Após os depoimentos de Gabriela e Júlia acerca os últimos

acontecimentos, saiu o veredicto provisório quanto à situação de Helena. Ao

invés de permanecer na delegacia a terapeuta foi encaminhada para a clínica de

repouso. Esperta, não tardou em reconhecer onde estava, irada fez força contra

os enfermeiros.

— É tudo culpa deles! — debatia-se na entrada do lugar —. É mentira o

que disseram! Eles são os assassinos, os traidores! — não poupava a garganta —

. Aquele bando de mentirosos enganou vocês — procurava a quem convencer

—. Eu sou não louca, eles que são! — agrediu um dos homens, quebrando seu

dente.

Sem mais paciência injetaram um sonífero naquela que poderia ser vista

como equilíbrio na sociedade, mas que não passava de um alguém surtado,

uma ameaça.

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Capítulo 42

Isaque estava realmente curado, o milagre fora espantoso, admirando até

mesmo os médicos. Desde que recebera a doação da medula óssea sua melhora

fora significativa, o doutor Alair já imaginava que as expectativas seriam

ultrapassadas, o que ele não esperava era que acontecesse tão rapidamente.

— Tem certeza de que poso doar? — o futuro engenheiro ainda estava

preocupado —. Não quero prejudicar ao invés de ajudar.

— Fique tranquilo — o velho médico preparava seu paciente para a coleta

—, suas células estão todas regeneradas e a sua defesa normalizou. Há alguns

dias eu já observava isso, mas esperei o tempo certo para trazer as boas notícias

— apoiou a mão no ombro do garoto —. E mais uma vez a amizade entre você e

Gustavo nos emociona.

Agulha injetada.

Sangue coletado.

“Estavam na quarta série, já eram grandinhos, tinham uma mentalidade mais

madura, o que garantiu também o amadurecimento de uma amizade que prometia durar

para sempre. Eram unha e carne, corpo e sombra, sempre estavam juntos, dividiam

segredos infantis regados de imaginação. Apesar da pouca idade sabiam que tinham um

no outro total confiança, já se consideravam irmãos.

Gustavo era o mais novo por questão de dias, mas sempre foi mais alto do que

Isaque e se gabava pelos poucos centímetros de diferença. Podiam brigar, era uma

questão de segundos para que logo voltassem a, juntos, gargalhar. Sempre foi assim,

sempre seria assim.

Até a quinta série Isaque foi o mais introvertido, era inseguro, possuía um rosto de

assustado e servia de chacota pelos grandalhões da escola, mas quando se cansou daquilo

dobrou as mangas e partiu para a vida popular, o que deu muito certo, deixou de ser o

retraído da turma para chamar a atenção com suas palhaçadas.

Porém, naquela tarde de aula, durante o intervalo de um bloco para o outro, o

garoto tímido precisou esperar o fiel companheiro do lado de fora da sala, já que o mesmo

conversava com o professor. Cansado da demora foi tomar um pouco d’água e ao voltar

não pôde acreditar nos grandalhões que encurralavam seu amigo e se divertiam com as

provocações.

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Fazer alguma coisa ou se afastar? Enfrentar ou chamar outras pessoas? Era o

amigo dele, aquele que sempre o ajudava quando precisava, era seu dever passar por

cima dos próprios medos a favor de alguém importante.

— O que está acontecendo?! — a criança estufou o peito.

Gargalhando, o líder dos opressores, que deveriam estar na sétima série e por isso

se achavam tanto, encarou o menor.

— Não é da sua conta, baixinho! Agora vá com a sua creche!

— Eu fiz uma pergunta e quero resposta! — embora seu coração parecesse estar

perto de explodir, seu rosto transmitia paz e tranquilidade, espantando até mesmo o seu

melhor amigo.

Sentindo-se ofendido, o grandalhão se aproximou de seu rival a passos lentos,

olhos rígidos e maxilar contraído, apertando o braço de Isaque ameaçou em sua ordem:

— Dá um fora!

— Deixe o meu amigo em paz! — retrucou no mesmo tom.

— Eu dou as ordens — aumentou a força —. Obedeça!

Esperto, o garoto dos olhos verdes chutou a canela de seu opressor com o máximo

de força, ainda não satisfeito executou seu golpe baixo com maestria, derrubando o

maior. Os aliados do “chefão” se espantaram, não sabiam o que fazer. estreitando os

olhos, o pequeno grande homem deu seu ultimato:

— Caiam fora!

Envergonhados, como medrosos, tiveram que obedecer.

— O que foi isso? — Gustavo se orgulhou pelo amigo.

— Nada demais — respondeu se sentindo o herói; dando as mãos continuou: —

Pode contar comigo para tudo!”

Lembrando-se daquele episódio de anos atrás, Isaque abriu um sorriso,

estava cumprindo com a sua promessa.

<<>>

Aquela segunda-feira nublada ainda guardava emoções.

Aproveitando o milagre da visão, percebendo as coisas ao seu redor com

admiração, Gabriela se sentia contente por aquilo, poderia finalmente

conquistar maior independência, lutar pelos seus sonhos sem qualquer

limitação, agora seria completamente feliz. O que afligia seu coração era o fato

de um alguém especial e tão nobre estar passando por um momento tão

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conturbado e, o pior, talvez por sua causa. Mas ele sempre acreditou que boas

coisas acontecem com boas pessoas, suas esperanças eram grandes.

Logo após o almoço, perdida em seus pensamentos, a garota dos olhos

azuis recebeu uma visita inesperada, porém querida.

— Podemos conversar um pouco? — Júlia entrou no espaçoso quarto,

possuía um rosto abatido.

— Claro — a Adolescente Apaixonada foi simpática —. Sente-se.

— Eu vou direto ao ponto. Preciso pedir desculpas por tudo novamente e,

principalmente, pelo que aconteceu com Gustavo, sei o quanto se importa com

ele,, o quanto gosta dele e o quanto pode estar sofrendo.

— Como eu disse nada é culpa sua, mas se a deixarei mais tranquila é

claro que a desculpo.

— Obrigada — abaixou a cabeça e não conteve mais a vontade de chorar.

— O que está acontecendo? — Gabriela se aproximou daquela que

precisava de alguém que ouvisse seus desabafos —. Pode confiar em mim.

— Eu não entendo a vida — começou —. Até ontem eu não sabia quem

era a minha mãe, confesso que já acreditava em sua morte e, de repente, ela

aparece se mostrando uma pessoa tão egoísta. Quando eu a conheci pensei que

fosse mesmo aquela dócil e amável Fátima, na qual encontrei uma amiga e

tanto, encontrei uma mãe de verdade, mas tudo se revelou uma grande ilusão,

nada foi verdade, tudo não passou de engano.

— Talvez ela quisesse mesmo se aproximar, mostrar que gosta de você e

que se arrepende de tudo o que aconteceu. Quem sabe a chance que ela quer

seja o que vai mudar sua vida por completo, quem sabe o perdão seja a chave

para as portas trancadas?

— Eu não consigo acreditar nela, não consigo confiar, não mais — ergueu

os olhos abatidos, ofuscados pela dor, perturbados pelo sofrimento —. Ela

causou tudo o que aconteceu entre mim e o meu pai, ela o fez de brinquedo em

suas mãos, uma atitude inaceitável.

— Entendo e acredito que no seu lugar estaria revoltada do mesmo modo,

mas perdoar é a essência do ser humano — deu início ao sincero conselho —.

Você não precisa ter uma vida de mãe e filha, não precisa abraçá-la contra a

vontade, mas limpe o seu coração desses sentimentos tão obscuros, diga que a

perdoa e viva em paz. Eu sempre perdoei muitas pessoas embora mantivesse

meu distanciamento porque é mais importante ganharmos tempo amando

quem nos ama do que perdermos tempo odiando quem nos fez o mal —

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abraçou a desconsolada amiga —. Limpe sua alma e deixe a vida seguir o seu

trajeto.

<<>>

Convencida de que aquela era a solução Júlia atendeu ao conselho de sua

amiga e se dirigiu à clinica na qual Helena estava internada. Após muita

insistência foi permitido que mãe e filha se comunicassem.

— Júlia? — a terapeuta tentou acariciar o rosto da garota, mas esta se

afastou duramente —. Ainda chateada comigo? — percebeu o gesto —. Fiz o

que fiz por amá-la, pensei que assim poderíamos nos aproximar.

— Acha mesmo que insistindo nessas atitudes precipitadas e

inconseqüentes poderá me conquistar? Fazer o mal para as pessoas que eu amo

é como o fazer a mim mesma e eu não posso aceitar isso.

— Quando nos conhecemos pensei que gostasse de mim...

— Gostava — revelou com sinceridade —. Eu conheci uma mulher

acolhedora, amiga, amável, encontrei na Fátima o que sempre quis ter em

minha vida, mas que jamais alcancei — a voz embargou —. Encontrei naquela

mulher tão boa uma mãe, eu me sentia protegida estando ao lado dela, sentia-

me amada e segura — limpou a discreta lágrima que escorria dos esverdeados

olhos —. Mas a verdade apareceu, como sempre aparecerá, ainda que tardia.

Descobri que tudo não passava de mentiras, de ilusões, descobri naquela

mulher bondosa alguém egoísta, prepotente, que apenas enxerga a própria

satisfação, baseia-se nos próprios interesses sem se preocupar com as

consequências, com as pessoas que pode machucar, com os corações que pode

destruir. Se eu amei a Fátima hoje odeio quem ela é.

— Você não pode dizer que me odeia, sou sua mãe — a psicóloga

derramou as lágrimas, o que escutara da própria filha era, para si, pior do que

levar um tiro —. Não fiz tudo o que fiz por vontade própria, por meu desejo, foi

obrigada a fazer.

— Tudo não passa de desculpas, imaginação de uma mente

desequilibrada. Quando queremos acertar nada nos faz errar, penso assim e

acho que é o certo. Além disso não diga que é a minha mãe, você nunca esteve

ao meu lado, nem imagino o que vivi durante esses anos todos; não foi uma

mãe, foi um monstro!

— Mas eu me arrependi — Helena insistiu em sua defesa, precisava

convencer a garota, precisava conquistá-la de qualquer forma —. Voltei

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decidida e conquistar o seu amor e estava indo bem se não fosse o seu pai,

aquele ignorante, que ao invés de me ajudar arruinou todos os meus planos.

— Arruinou todos os seus planos? — indagou incrédula —. Você destruiu

a vida dele, quebrou o coração de um homem que a amava e continuaria te

amando mais que tudo, como pode chamá-lo de ignorante e atribuir a ele a

culpa? — defendeu o pai —. Você é a única responsável por tudo o que

aconteceu, você ditou o seu futuro que no passado deu às costas ao que tinha de

mais valioso. Pessoas que a amassem e que a ajudassem a enfrentar tudo aquilo

que viveu com seu pai não iriam faltar, mas preferiu outro rumo, preferiu o

caminho mais fácil, preferiu fugir dos problemas — fez uma pausa —.

Esqueceu-se de que os problemas enquanto não foram resolvidos nos

perseguem aonde quer que vamos.

— Eu só queria o seu perdão...

— E você o tem, eu a perdôo por tudo — declarou com veracidade nas

palavras —. Perdôo-a pelas sombras de rancor e ódio que garantiu ao meu

caminhar — levantou-se de banco no florido jardim —. Mas a minha aceitação e

o meu amor jamais serão seus.

À passos fortes e apressados a garota dos olhos verdes seguiu o seu

caminho, deixando o passado no passado.

Para Helena não havia mais o que pudesse ser feito, não existiam soluções,

ela errou e agora estava fadada a uma eterna consequência triste, sombria e

solitária. Ainda sentada no banco a mulher abaixou a cabeça e, com os olhos

fechados, chorou amargamente.

Uma mão pousou sobre o seu ombro.

Não era o seu pai.

Não era nenhuma ilusão da mente angustiada.

— Rui? — seus olhos brilharam.

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Capítulo 43

O homem alto, de cabelos grisalhos, rosto atraente encarou os olhos

verdes da mulher pela qual um dia muito se sentiu apaixonado, a mulher que

na juventude lhe despertara sentimentos tão intensos, sentimentos que

nenhuma outra mulher pôde despertar no bem sucedido empresário.

Helena o amava, sabia que o amava, embora dissesse que sua volta à

Cidade da Paz era somente por Júlia, ela tinha dentro de si o desejo de

reconquistar o único homem que amou, porém os primeiros encontros foram

ácidos e com isso seu anseio se ofuscou.

— O que faz aqui? — levantou-se depressa encontrando nos olhos

castanhos o mesmo olhar que em dia a enfeitiçara.

— Precisamos conversar — respondeu suave, tranquilo, amistoso —, nem

que essa seja a última vez.

— Antes de qualquer coisa, perdoe-me — a terapeuta possuía um olhar

fixo, sincero —. Eu tentei matá-lo, agi feito um covarde, insisti no erro que

afasta as pessoas de mim, pessoas que eu gosto.

— Eu aceito o seu pedido e também quero o seu perdão — afirmou

seriamente —. Talvez as coisas acontecessem de uma maneira melhor, mais

prazerosa e todos nos sofreríamos menos. Mas eu não consegui agir da forma

certa, não fui razoável, também tenho a minha parcela de culpa.

— A culpa não é sua, nunca foi, ela é toda minha — pela primeira vez a

psicóloga assumira a responsabilidade por seus atos —. Eu era feliz e não sabia,

eu tinha tudo o que precisava, mas me deixei levar pela loucura...

— Poderia ter confiado em mim — pelo impulso da conversa e do olhar

entristecido da mulher que fazia seu peito acelerar, Rui uniu as mãos, tocou os

dedos, permitiu que depois de tantos anos se sentissem —, poderia ter

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declarado que algo a perturbava. Sempre amei você e sempre deixei isso claro,

não a julgaria se continuasse me culpando pela morte do seu pai, antes tentaria

aliviar suas turbulências.

— Eu sempre soube — forçando o sorriso Helena deixou que a lágrima

percorresse um pesado caminho pelo seu rosto, uma lágrima de

arrependimento, de solidão, de profunda amargura —, mas não quis acreditar.

Eu também o amava mais que qualquer coisa, ainda o amo, contudo não

consegui controlar os meus pensamentos, eles foram o meu próprio veneno.

— Poderíamos ter construído uma vida juntos, poderíamos ter escrito a

melhor história que o mundo leria — desviou o olhar driblando o choro que aos

poucos tomava força —. Você não consegue imaginar a falta que me fez durante

todos esses anos, ver a garota que eu amava partir foi a pior dor que já senti,

imaginar que poderia estar morta e que nunca mais a veria sufocava o meu

peito — engoliu o árduo choro voltando o olhar para sua atenta ouvinte —.

Quando a vi pela primeira vez desde que voltara, minha vontade não era

agredi-la, afastá-la, era abraçá-la, voltar com o nosso amor.

— Por que não o fez? — indagou entristecida —. Eu o aceitaria se você me

aceitasse, nunca me esqueci do seu rosto e de como estar ao seu lado era

gratificante.

— Eu não consegui. Culpei-a pela forma como convivi com a nossa filha,

pelo vício da bebida ao qual me entreguei, por tudo de ruim que me aconteceu

— desabafou.

— Eu sinto muito — declarou sincera —. E lamento não conseguir mudar

o passado, não tenho esse poder, mas posso mudar o futuro se você quiser. Eu

prometo que faço o tratamento da forma certa, prometo que me esforço para

sair daqui, prometo que o amarei da maneira que não amei, prometo que

conquisto a nossa filha.

As palavras eram tentadoras, a possibilidade delas se cumprirem era

animadora, mas o empresário não poderia se arriscar mais uma vez, dizem a

segunda decepção é pior que a primeira, poderia ser um erro se entregar

novamente a alguém que destruiu o seu coração, que o fez desacreditar na

paixão, no amor verdadeiro.

— Não posso aceitar — a resposta perfurou sua garganta, mas era

necessário passar por aquela dor, era consequência da autodefesa —. Não posso

acreditar, as feridas ainda incomodam.

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— Eu sei que ainda me ama — encarou-o gentilmente —. Sei que ainda

provoco todos aqueles confusos sentimentos em seu peito, assim como faz

comigo.

Encarando o olhar pelo qual um dia se apaixonou Rui não pôde controlar

suas vontades, suas ações e beijou Helena com desejo, com vontade, com

nostalgia, com amor e com paixão. Relembrou naquele beijo a imensidão do seu

desejo e do seu amor por aquela mulher, sentiu mais aquela vez tudo que

sempre sentia ao beijá-la, ao tocá-la, ao aproximá-la de si.

Recebendo o estonteante beijo daquele que significava muito em sua vida,

a terapeuta foi leveda de volta ao passado, quando o simples fato da

aproximação de Rui provocava “borboletas”em seu estômago, quando o

melodioso soar da voz daquele homem arrepiava sua pele e quanto o toque do

amado a fazia se esquecer do resto do mundo e a levava a um paraíso que

existia somente para eles.

Com lágrimas escorrendo por seu rosto, o empresário se afastou da

mulher, como se tirasse partes do próprio corpo rompeu a ligação das mãos,

reuniu forças de onde nem existia e declarou suas últimas palavras:

— Adeus, Helena...

Partiu com pesar na alma, seus pés faziam força contra o invisível que o

puxava para trás, precisou correr, fugir do amor, fugir para não sofrer.

Como água que vaza por entre os dedos Helena sentiu que todos os

sentimentos que existiam entre eles se esvaíram, acabaram-se, chegavam ao fim.

Caindo de joelhos sobre o florido jardim da clínica conceituada debruçou os

braços sobre o banco de madeira, repousou sua cabeça e sob o céu nublado

chorou amargamente. Chorou a perda de um amor inesquecível, chorou o fim

de uma vida, chorou o fim da própria vida.

Aflito, abatido, entristecido e arrasado Rui entrou no carro, debruçou-se

sobre o volante e deixou que o choro se intensificasse, acontecesse como o de

uma criança.

— Ela o ofendeu? — Júlia o abraçou comovida.

— Eu a amo... Muito — declarou.

A revelação fez com que a garota dos olhos verdes se sentisse egoísta,

sentiu-se culpada como se o provável afastamento fosse por sua causa, ainda

que doesse precisou sugerir:

— Então seja feliz com ela, tente de novo...

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— Não posso — confessou —. Ela nos causou muito mal, provocou nossas

muitas lágrimas, eu jamais a colocaria de volta em nossas vidas depois de tudo.

— Eu não quero vê-lo sofrer por isso. Se estiver preocupado comigo não se

importe, o que realmente importa é a sua felicidade e se ela estiver em Helena a

perdoe por tudo e recomece sua vida.

— Eu não quero passar por tudo mais uma vez — enxugou as lágrimas e

encarou a filha —. Daqui por diante seremos nós dois e eu prometo que o nosso

futuro será muito melhor que o passado — abraçou-a ternamente —, eu

prometo.

<<>>

O relógio naquela segunda-feira estava próximo da meia-noite quando

Gustavo foi levado ao quarto, já não corria perigo algum, porém a fraqueza

ainda o deixava adormecido. Seu pai precisou fazer uma viagem de conferência

em outro estado, para que Juliana não ficasse sozinha Isaque se prontificou para

lhe fazer companhia.

— Quando é que poderíamos imaginar que o veríamos nessas condições?

— a mulher acariciou a testa do amado filho —. Sempre estive por perto em

todos os momentos, protegendo-o de todos os perigos, mas ainda assim parece

não ter sido suficiente.

Ouvindo o desabafo o futuro engenheiro repousou sua mãe sobre a

daquela que tinha por uma verdadeira tia, seu gesto queria dizer que tudo

ficaria bem. Comovida pelos últimos acontecimentos ela abraçou o melhor

amigo do filho, aquele que estava com a família em todos os momentos.

— Obrigado, Isaque, obrigado por ser verdadeiro, sincero; a amizade que

existe entre vocês é algo que muito nos inspira a acreditar em dias melhores e

eu só tenho o que agradecer.

— Apenas retribuo o que recebo — respondeu cordial —. Precisei muito

dele nos últimos meses, não daria as costas quando precisasse.

— Eu sei disso, agradeço pelo que fez e quero que saiba que estou muito

contente pelo milagre que recebera, você merece.

— O presente é de todos nós.

Agora que já estava tranquilizada por saber que o filho não corria risco

algum Juliana conseguiu sentir fome, aproveitando a companhia foi fazer um

lanchinho.

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Ansioso para que o amigo saísse daquele lugar e, assim, pudesse contar a

grande novidade, Isaque sentou-se na poltrona ao lado da maca enquanto

observava o chamado “lorde Gustavo”. Quase sendo pelo sono o “conselheiro

do lorde” despertou ao ouvir os resmungos do Romântico Anônimo, que

abrindo os olhos encontrou o garoto de boné o encarando atencioso, não pôde

conter o riso e nem a provocação:

— Parece minha sombra — a voz soava com dificuldade — ou é muito

amor que sente...

— Mal agradecido — revirou os olhos, parecia ofendido —. Doei sangue

para você e é assim que me agradece?

— Doou sangue? — não conseguiu disfarçar o susto —. Quer dizer que...

— Sua medula é milagrosa — declarou sorridente, feliz pelo que

aconteceu —. Estou curado!

Os olhos cansados exibiram a felicidade que a bondosa alma sentira

naquele momento conturbado.

— É uma pena eu não conseguir me mexer — lamentou —. Finalmente

posso descontar aquele nariz quebrado.

— Continua sendo um ingrato... Sabe por que está aqui?

— Porque levei um tiro.

— Porque foi um herói! — respondeu animado —. Batalhou como um

digno lorde e salvou a donzela Gabriela, estou orgulhoso!

— Ela está bem? — preocupou-se.

— Melhor impossível!

— Melhor impossível?

— Prefiro que ela conte a novidade — jogou-se na poltrona confortável —.

Você vai gostar.

— Isaque?

— Fala — bocejou cansado.

— Obrigado.

Levantando-se outra vez o garoto deu sua nostálgica resposta, o

cumprimento de uma opressa:

— Pode contar comigo para tudo, lembra?

Gustavo sorriu, é claro que lembrava, é claro que ambos se ajudariam,

eram amigos, mais do que melhores e verdadeiros amigos, eram irmãos, ainda

que não de sangue, mas unidos pelo coração.

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Capítulo 44

A terça-feira clareou. Embora o vento da manhã derrubasse as

temperaturas o sol raiava sua luz e aquecia os corpos tremulantes. Felizes, os

pássaros cantavam, os jardins ainda estavam floridos e as folhas das árvores

davam sinal de que o outono começava seu trabalho.

De óculos escuros, roupas de inverno e sem poupar o adocicado perfume

das rosas, Gabriela foi levada pela mãe ao hospital da Cidade da Paz, onde seu

amigo tão especial estava internado, aguardando que os médicos lhe

trouxessem as boas notícias.

— Olá — a garota fingia não enxergar.

Ao ver a porta do quarto e se abrir se deparar com o envolvente sorriso da

jovem adolescente Gustavo sentiu o coração acelerar e uma satisfação tomar sua

alma. Ver que a amiga estava bem, que o perigo já não existia, era reconfortante,

todo o esforço valera mesmo à pena.

— Vou deixá-los a sós — Juliana percebera o clima entre o casal, não

ficaria “segurando vela” —. Qualquer coisa podem me chamar.

Aproximando-se do Romântico Anônimo, a garota dos olhos azulados fez

sua suave pergunta:

— Como se sente?

— Cada vez melhor — uniu as mãos, impulsionado pelo momento —. E

você? Ficou tudo bem?

— Como poderia ficar mal se o meu herói estava comigo? Serei

eternamente grata ao lorde Gustavo.

— É para isso que os amigos servem — declarou encarando o delicado

rosto, tentador ao toque —. Eu não ficaria de braços cruzados esperando que

fizessem alguma coisa, sempre achei que deveria cuidar de você.

— Como consegue ser tão especial? — indagou mais apaixonada —.

Nunca conheci alguém que se importasse tanto com outra pessoa como se

fossem tão intimamente ligadas.

— E não somos intimamente ligados? — devolveu outra pergunta —.

Desde que a conheci descobri em você um nobre coração, uma admirável

garota, é claro que eu sempre vou me importar e sempre farei o impossível para

estar ao seu lado em todos os momentos.

— E sempre vou agradecer — sorriu cordialmente —. Mudando de

assunto eu tenho uma novidade para contar, resultado de toda essa confusão.

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— E o que seria — mostrou-se curioso.

Tirando os óculos e observando o garoto pelo qual era apaixonada,

Gabriela revelou a verdade:

— Estou enxergando!

O futuro pediatra demorou alguns segundos para assimilar a informação,

para entender o que escutara. Sentando-se na cabeceira da cama hospitalar fez

sua pergunta para confirmar a certeza:

— Eu ouvi direito?

— Aconteceu quando Helena me jogou e bati a cabeça. O mundo se

clareou, agora vejo cada detalhe.

Abraçando com animação a garota que, talvez em oculto, amava, o jovem

adolescente declarou emocionado:

— É a melhor notícia que eu poderia receber, não imagina o quanto estou

feliz!

— Imagino sim — respondeu ainda mais animada —. Sabia que ficaria

contente.

— Preciso mostrar uma coisa — desbloqueando o celular abriu a galeria e

acessou o álbum de fotografias que exibiam o jovem casal nos diversos

momentos que passaram juntos, desde o sorvete lambuzado, passando pela

experiência na praia até os dias mais recentes —. Eu sabia que um dia as veria.

A cada foto a Adolescente Apaixonada percebia o cuidado de Gustavo por

ela, notou que os momentos vivenciados irradiavam algo no olhar de cada um,

algo que ela não soube definir, mas que poderia ser explicado como admiração

um pelo outro, carinho de um para com o outro, amor que atraía um e puxava o

outro.

— Passamos tudo isso junto? — estava emocionada.

— Foram os melhores momentos — respondeu com o brilho nos olhos, o

prazer no rosto —. E eu ainda quero viver muito mais.

— E vamos — com o calor do momento a garota deixou de lado as

incertezas e beijou o rosto de seu admirador, extasiando-o —. Obrigado,

Gustavo, por estar na minha vida...

<<>>

Diferente do casal que se amava, mas não se assumia, Isaque e Júlia foram

para o colégio. Durante toda a aula o futuro engenheiro químico notou o

silêncio da namorada, percebeu que algo a afligia, imaginava o que seria. Não

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quis se intrometer, mas na hora do intervalo, quando estavam juntos na área

verde, o garoto se mostrou preocupado.

— Aconteceu alguma coisa?

— Nada de mais — repousando a cabeça sobre o ombro do namorado a

garota refletiu melhor, precisava desabafar com alguém, dividir o fardo com

alguém em quem pudesse confiar —. Na verdade muitas coisas — sentou-se a

frente do garoto —, mas não precisa se preocupar.

— Preciso sim — tocou o rosto da adolescente em um gesto de carinho —.

Eu amo você — declarou ternamente —, e amar é se preocupar, importar-se.

Desviando o olhar para o chão por alguns segundos Júlia começou o seu

discurso:

— Ontem me despedi da minha mãe em definitivo, disse tudo o que sentia

vontade, mas confesso que não sei se fiz o certo — um nó se formou em sua

garganta —. Sempre quis ter uma mãe, sempre senti a falta de uma, mas

quando finalmente a conheci não pude aceitá-la.

— Não se culpe por isso e nem se sinta mal, tudo é reflexo do que viveu

no passado — aconselhou atencioso —. Seria mesmo difícil para você conhecer

a mulher que foi embora, seria inevitável o distanciamento, seria normal querer

se defender. Mas perdoar qualquer um de nós consegue, basta querer.

— Já a perdoei, mas não consigo vê-la como minha mãe, não posso aceitar

que se aproxime de mim e do meu pai — as lágrimas sentimentais brotaram nos

olhos desconsolados —. Eu sinto medo do que poderia acontecer embora minha

vontade fosse estar ao seu lado, fosse viver o que nunca vivi.

— Por que não se arrisca?

— Porque eu não posso mexer na ferida — declarou indefesa.

Abraçando aquela que tinha amor de sua vida Isaque tentou confortá-la:

— Siga o seu coração, tente mudar seus sentimentos, vencer os medos,

cessar as dúvidas. Eu sei que não é tão simples, eu sei que cutucar a região

dolorida costuma ser incômodo, mas para que algumas conquistas sejam feitas

é necessário que antes soframos — acariciou a cabeça repousada em seu ombro

—. E eu estarei aqui para o que for preciso.

<<>>

Algumas semanas mais tarde...

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Depois de muito conversarem sobre assunto, Laura conseguiu convencer

o marido a participar de alguma seção na terapia do filho, o que poderia ser

gratificante no mesmo tanto que decepcionante.

— Podem entrar — a doutora Isabel, que além de psiquiatra era também a

psicóloga responsável pelo tratamento de Guto, abriu a porta da sua sala na

clínica em que o rapaz se tratava.

Ansiosos pelos próximos minutos o casal se sentou no confortável sofá

que existia no ambiente com iluminação tranquila, um suave fundo sonoro e

um perfume agradável, aspectos que garantiam a paz aos pacientes.

— Estão mesmo de acordo? — a mulher questionou —. Talvez saiam

daqui com a visão mudada não somente sobre o filho de vocês como ao próprio

comportamento.

— É o que queremos — Eliseu estava sério.

— Um conselho, seja mais flexível, tenha um pouco mais de sentimento

pelo seu filho, a culpa pelo que está acontecendo não é somente dele — a fala

foi tão séria quanto o professor de português.

— Ele sabe que viríamos? — a mãe não suportava mais a demora.

— Na verdade não, faremos uma surpresa, quero ver qual será a sua

reação.

Em pouco instante alguém bateu a porta. Diferentemente dos pais a

terapeuta estava bastante tranquila, serena, calma, abriu a porta com simpatia,

recebeu seu paciente com muita cordialidade.

— Como vai? — abraçou-o afetuosamente.

— Acho que bem — respondeu animado, sentia-se bem nos encontros com

Isabel.

— E vai ficar melhor ainda — fechou a porta —. Tenho uma surpresa para

você.

— Boa ou má?

— Você é quem vai me dizer.

Levando o rapaz para perto dos pais a psicóloga não precisou dizer mais

nada, Guto já entendera o recado. O jovem abriu um sorriso animado, seus

olhos emotivos lacrimejaram, a sensação de alegria era grande.

— Meu filho! – Laura o abraçou ternamente, acolhendo-o forte em seus

braços —. Feliz por nos ver?

— É claro — respondeu com a mesma alegria —. Nem sempre vocês

veem.

Levantando-se cauteloso Eliseu estendeu a mão.

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— Olá.

Ainda mais emocionado Guto recusou a frieza de um aperto de mãos e

abraçou o pai como há muito não fazia, parecia que não o via há muitos anos.

sendo encarado pela esposa e pela doutora, o professor não resistiu e também

abraçou aquele que era sangue do seu sangue, descobriu naquele gesto o

quanto era amado por aquele rapaz e o quanto o amava, o quanto se importava

com ele.

— Eu te amo — a declaração feriu o coração daquele pai, que precisou

exibir sua emoção através das não frequentes lágrimas —. Obrigado por estar

aqui — o pai nunca o visitava.

Bastante emocionada Laura se juntou aquele abraço, um abraço em

família.

— Vamos conversar? — a terapeuta disfarçou a emoção —. Em breve

vocês terão todo o tempo do mundo para se abraçarem — sentou-se ao lado do

paciente —. O que sente vendo-os aqui?

— Muita felicidade — respondeu sincero —. Nunca poderia imaginar que

os dois viriam.

— Achava impossível?

— Achava que meu pai não gostava de mim — os olhos brilhavam —.

Mas ele me abraçou — sorriu tímido.

— Nunca deixei de amá-lo — Eliseu se mostrou sentimental —. Apenas

enganei a mim mesmo, alimentei-me de preconceitos que não deveriam existir e

por isso quero pedir o seu perdão.

Aquilo era algo novo, um pedido de perdão vindo do homem que sempre

rejeitou o filho por achar que seus problemas não passavam de egoísmo ou

exibicionismo.

— É claro que eu perdôo — Guto respondeu —. Não o culpo por ser um

imbecil — tudo não passou de encenação, sua raiva era grande, seu rancor

ainda maior —. Não o culpo por ter me substituído; não o culpo por ter me

rejeitado; não o culpo por não saber ser pai — a declaração pegou a todos de

surpresa, o desabafo era ácido.

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Capítulo 45

Eliseu não sabia o que dizer e nem como agir, estava mesmo disposto a

corrigir o erro, estava disposto em ajudar o filho a sair daquela situação, por

alguns instantes pensou que a tarefa não seria difícil, mas todas as suas

expectativas minguaram, restaram apenas o susto, o espanto e as incertezas.

— Filho? — Laura tomou a palavra —. Estamos todos dispostos em

unirmos nossa família e apagarmos o passado, queremos viver dias diferentes

daqui para frente, dias nos quais a felicidade será nossa maior companhia.

— Felicidade? – riu irônico, desacreditado, debochado —. Felicidade por

pensar que os perdoei? Nunca vou me esquecer do dia que fui trazido para cá,

da forma como fui deixado à minha própria sorte, da rejeição que sofri! — os

olhos estavam encharcados —. Vocês não querem me tirar daqui, querem se

aliviar da culpa que carregam e, assim, serem tidos como benfeitores de toda a

história.

— Isso não é verdade — usando da tranquila serenidade, como de

costume, Isabel aconselhou: — Abra o seu coração, esvazie dele os sentimentos

rancorosos, todos estão arrependidos pela maneira errônea como deixaram o

passado ser construído e agora querem reformá-lo.

— Ruínas nunca são reformadas, ficam lá para sempre, para que se

lembrem do que as causou.

— A vida não é uma ruína, é um livro entregue a cada um e sempre

estamos sujeitos a escrever certas palavras de uma maneira equivocada — a

psicóloga manteve sua calma —. Mas podemos concertas as coisas conforme

viramos as páginas, essa é a filosofia, não haveria o bem sem o mal e nem o

certo sem o errado.

— Além disso nós o amamos — a apreensiva mãe declarou o que sentia

seu coração —. Reconhecemos que erramos, mas foi na inocência, nossa

intenção era acertar, era ajudar, era salvar!

— Trancafiando o filho junto de centenas de loucos? — ironizou mais uma

vez —. Que ótima ajuda, que excelente atitude, característica de pai e mãe que

se envergonham do filho que têm e fazem o impossível para escondê-lo dos

amigos, dos familiares e do resto do mundo — aplaudia mantendo o gélido

olhar —. Que ótimos pais!

— Nunca quisemos escondê-lo e jamais nos envergonharíamos de um

filho independente do que ele fosse — Eliseu abriu sua boca, viu como

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obrigação mudar toda aquela visão, aqueles pensamentos influenciados pela

mistura de maus sentimentos —. Colocamo-lo em uma clínica para que se

curasse e não sofresse por causa de si mesmo e por causa do preconceito que

cerca a sociedade lá fora — seu olhar era fixo no filho, passava sinceridade,

verdade —. Erramos por achar que conseguiria isso sozinho, mas aqui estamos

nós, arrependidos, dispostos em conquistar a sua confiança.

— É inacreditável a capacidade que vocês têm para inventar desculpas,

por que não viram roteiristas? — escarneceu prepotente —. Aceitem a

consequência de seus atos e continuem fazendo aquilo que sempre fizeram:

desprezem-me!

— Guto, confia em mim, não confia? — Isabel encarou o frio olhar de seu

paciente.

— Talvez...

— Acredite em mim, eles estão arrependidos, sabem que erraram e agora

só querem uma oportunidade para desfazer todo esse desentendimento. Ajude-

os a ajudarem-no, acredite que querem o seu melhor. Seu sonho sempre foi

voltar para casa e assistir a filmes enquanto comesse pipoca, igual antigamente

— precisou enxugar a lágrima que percorria o rosto do rapaz, lágrima de

tristeza, mas também de raiva —. O sonho está a um passo de se realizar,

depende apenas de você.

— Era um sonho infantil — forçou o sorriso —. Agora não é mais isso o

que eu quero — seu sorriso agora era maquiavélico, seus olhos irradiavam

fatalidade e as palavras que viriam a seguir revelariam seu sombrio

pensamento —. Só vou me contentar quando os vir mortos! — tentou avançar

contra os pais, mas a terapeuta foi mais esperta, injetou o sonífero no aflito

jovem, aflito pelo passado, afligido pela história de sua vida.

— Por hoje é só — Isabel suspirou cansada —. Mas não quero que

desistam, é na base da persistência que conquistamos o impossível.

Os pais concordaram em silêncio, deixaram aquele lugar com grande

pesar, o desafio era muito grande, maior que imaginavam.

<<>>

Helena se perturbava a cada dia que passava naquele lugar, arquitetava

planos para sair dali e se vingar, mas todos eram infundáveis, impossíveis de

acontecer.

— Hora do remédio — um casal de enfermeiros adentrou o seu quarto.

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— Será que eu posso conversar com você a sós? — dirigiu a pergunta à

enfermeira —. É algo íntimo.

Comunicando-se pelo olhar o casal assentiu em atender o pedido, não

achavam que a paciente fosse alguma ameaça.

— Sobre o que é? — a enfermeira era simpática, atenciosa.

— Chegue mais perto — a ruiva pediu ingenuamente —. É íntimo —

sorriu como se tivesse envergonhada.

Acanhada, a profissional se aproximou o suficiente para que estivesse

vulnerável à maldade de alguém descontrolado. Ligeira, a formada em

psicologia, mas que não encontrava equilíbrio nem para si própria, agarrou-se

ao pescoço da enfermeira, apertava sem dó, encarava os olhos esbugalhados

sem ressentimentos.

Perdeu os sentidos.

— A culpa não é sua — o velho surgiu escorado na parede, mesmo

semblante sério, mesmo sorriso contido —. Salve-se!

Sem perder tempo Helena trocou as vestimentas, vestiu a máscara,

recolheu as bandejas, agora era a enfermeira.

— Como foi lá? — o companheiro à sua espera logo questionou.

— Muito bem — a voz abafada não pôde ser reconhecida.

A procura de saídas Helena andou pelos corredores da clínica atenta a

cada porta, observadora de cada repartição, nada escapava de seus olhos

curiosos e nem de sua percepção aguçada.

O alarme disparou.

— Tranquem as portas, vasculhem cada canto, a paciente Helena está

tentando fugir — os alto-falantes soaram a voz do diretor daquele lugar.

A terapeuta sentiu o peito acelerar, a adrenalina subir em seu corpo, a

tensão esmagar o seu coração. Fingindo obedecer às instruções encontrou a

saída, trancada. Observou ao redor, notou o extintor de incêndios preso à

parede, arrancou-o dali com força, estourou os vidros da porta, chamou a

atenção por causa do barulho, tirou a máscara e a toca, sorriu sarcástica, fugiu

triunfante pelo extenso jardim do lugar. Correu o mais rápido possível, escalou

as grades altas pintadas de branco e, antes que os guardas pudessem entrar em

ação, colocou os pés na rua, estava livre.

Continuou a correr, a segunda parte do plano era posta em prática.

Acelerou os passos, notou uma mulher pronta para entrar no carro, empurrou-a

com brutalidade fazendo-a cair cheia de sacolas em mãos, roubou as chaves,

pisou fundo no acelerador, caiu na estrada.

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— E agora?! O que eu faço?! — questionou aflita consigo mesmo, cometia

ultrapassagens imprudentes.

— Você sabe, já conversamos sobre isso — o velho ao seu lado respondeu

tranquilo —. Ninguém se importa mesmo, todos deixaram isso claro, merece

descansar ao meu lado, podemos passar um bom sossego juntos.

— Eu amo a minha filha, é com ela que quero passar momentos, é com ela

que quero viver tudo aquilo que não vivi, quero só mais uma chance.

— Você esgotou todas elas, minha querida — sua mente persuasiva

continuava a afogá-la na própria loucura —. Não soube como trabalhar, não

soube como agir, se tivesse seguido o meu conselho ficariam unidas para a

eternidade, o plano era infalível! A morte as amarraria para sempre.

Esse era o plano, sempre foi a intenção, uma sombria intenção.

— Mas dessa vez eu conseguiria.

— Não, minha querida, ela rejeitou você e o seu amor. Eu não. Eu quero a

sua atenção, eu quero a sua companhia, eu quero amá-la para todo o sempre.

“Batia, chutava, esmurrava, proferia palavras pesadas aos ouvidos, humilhava

com maestria. Aquele homem não era um marido, era um monstro. A mulher, cheia de

hematomas pelo corpo, com a boca sangrando e os olhos amortecidos, chorava

amargamente, escondia a filha atrás de si enquanto recebia os ataques do homem bêbado.

— Vagabunda! — esbravejava raivosamente —. Pão com ovo?! — reclamou a

miséria que por sua própria causa assolava aquela casa —. Não sou homem de comer

pão com ovo! — o álcool não o tirava da realidade, apenas o tornava mais forte para

agredir a quem quer que fosse —. É sua obrigação me dar coisa melhor!

— Você não deixou dinheiro... — em uma decisão infeliz, retrucou.

— Calada! — esbofeteou a esposa, aquela que deveria amar, mas ele era o tipo de

pessoa que faria o mal aos próprios pais, não respeitaria uma mulher —. Vá agora me

dar coisa melhor!

– Fique no quarto — sussurrou para a pequena garota, que assustada com tudo

aquilo correu pelo corredor da humilde casa —. Já faço o seu jantar — proferiu ao

marido.

Mancando, caminhou até o próprio quarto, encarou-se no espelho e muito se

entristeceu pelo que via; abriu a gaveta da cômoda, sacou o revólver. Levou o cano à

garganta, acionou o gatilho, caiu sangrando, antes de fechar os olhos para nunca mais os

abrir encarou os olhos de desespero da pequena Helena, o coração pulsou a última vez.

A garota de seis anos foi arrastada de debaixo da cama, jogada para perto da mãe

ouviu as duras palavras de seu pai:

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— Ela não te ama, preferiu abandoná-la, para sempre!

Nada seria feito. Temiam aquele homem, ninguém o enfrentaria”.

Helena se lembrou daquele fato, sentia a falta da mãe, sempre sentiu

saudade, sempre desejou a oportunidade de abraçá-la, recordar a cor dos seus

olhos, relembrar o seu tom de voz, desejos que jamais foram atendidos.

— Sua mãe estará esperando por você — o velho anunciou —. Eu

prometo.

A ruiva continuou o seu percurso, pegou o sentido para o litoral, já estava

decidida.

Desceu do carro roubado, olhou para o céu, suspirou atribulada e

começou a caminhar descalça pela areia quente da praia. Seus passos eram

lentos, vagarosos, calmos. Sentiu a água tocar seus pés, estava morna, mas

conforme os passos prosseguiam podia sentir o refresco.

— Vem — com o rosto brilhando sua mãe apareceu em meio as ondas do

mar, tinha um sorriso lindo, um rosto angelical, fruto da sua mente.

Passos dados.

Nível da água que subia.

Passos dados.

Nível da água que subia.

Cabeça coberta.

A boca se abriu.

As bolhas de ar flutuavam e estouravam na superfície.

Os braços se abriram.

A rigidez se afrouxou.

A luz do sol que refletia na superfície se apagou.

A mente descansava, para sempre.

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Capítulo 46

Era uma sexta-feira fria e chuvosa naquele final de abril, o outono esteve

mais acentuado nos dias derradeiros e o inverno já anunciava sua chegada. Os

guarda-chuvas estavam armados, as vestimentas tinham por função aliviar o

frio, o pesar estava em cada semblante, as plantas tinham suas folhas

carregadas d’água e também pareciam abatidas, o céu cinzento tornava aquele

dia melancólico. Protegido pela tenta estava o corpo sendo velado por olhos

entristecidos e até mesmo culpados. Júlia não esperava que algum dia entraria

em um cemitério.

Rosto sereno, cabelos bem penteados, olhos fechados e os lábios formando

um discreto sorriso, mãos unidas sobre o peito, véu cobrindo até metade do

corpo e um exuberante buquê de flores recostado ao lado da urna. Helena

descansava de uma vida bagunçada, de uma mente perturbada.

Apesar de tudo era sua mãe. Quando recebeu a trágica notícia Júlia chorou

feito uma criança, talvez imaginasse que no futuro conseguiria perdoar

realmente, mas agora o tal futuro não existia mais. Encarando os olhos fechados

a garota suspirou desconsolada, desamparada, deixou que as lágrimas

seguissem o livre percurso pelo rosto aflito.

Era o amor de sua vida. Rui amava aquela mulher, sempre amou e para

sempre a amaria. Embora no último diálogo que tivera com Helena suas

palavras soaram pesadas, carregadas pelo rancor, por sentimentos irados, não

era aquilo que o seu coração almejava, seu anseio era por conseguir viver o que

queria, mas não teve coragem, deixou que o ressentimento falasse mais alto e

agora chorava a perda de um alguém especial.

Assistindo ao sofrimento de pai e filha, Gustavo, Isaque e Gabriela

também se faziam presentes naquele momento de dor, cumpriam com a

amizade que os unia, estavam ali para o que fosse preciso. Em outros tempos

Júlia sabia que passaria por aquilo sem o apoio de nenhuma daquelas que

considerava suas amigas, mas agora estava sendo diferente, estava amparada

por pessoas preciosas, fruto do conselho de sua mãe.

— Eu agradeço por estarem aqui – a garota dos olhos verdes tomou forças

para discursar —. Preciso reconhecer que conquistei nossa amizade por causa

dessa mulher — sorriu entristecida —, ela me aconselhou que corresse atrás do

perdão de vocês, que provasse o meu arrependimento e assim o fiz, o resultado

não poderia ser melhor — encarou cada um dos seus ouvintes com ternura —.

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Apesar de todos os acontecimentos ela é a minha mãe, embora não aceite eu

entendo o porquê das suas ações e a perdôo por tudo, porque ela me deixou

presentes especiais: amizade e o amor do meu pai!

Suas palavras foram seladas pelos aplausos emotivos de seus amigos e

pelo afetuoso abraço de seu pai.

— Foi ela a mulher que conquistou o meu coração quando ainda ermos

jovens — Rui deu início às suas sentidas palavras —. Desde então fizemos

tantas juras de amor, tantos planos para o futuro, imaginávamos uma vida na

qual o nosso amor seria maior que qualquer desafio — observou a aliança de

ouro que conservara em seu dedo por todos aqueles anos —. Mas a vida é uma

constante e surpreendente metamorfose, nem sempre acontece o que queremos

e nem sempre estamos prontos para as reviravoltas que a história da nossa vida

costuma dar. Nunca deixei de amá-la e nem nunca deixarei — em um gesto de

carinho beijou o rosto de Helena, recebendo os aplausos de seus emocionados

ouvintes.

A urna deixou a tenda rumo à sepultura. Acompanhada por Isaque, Júlia

dava seus lentos passos sentindo a angústia na alma; Gabriela e Gustavo

caminhavam de mãos dadas sentindo a emoção daquela hora, já Rui andava ao

lado do caixão, com a mão repousada sobre a tampa, sentia-se mais perto

daquela amada mulher.

Urna engavetada. Sepultura fechada.

A garota dos olhos verdes repousou o buquê sobre a luxuosa sepultura,

encarou o lugar com profunda tristeza, acolhida pelo namorada declarou suas

finais palavras:

— Amei conhecê-la.

Aplausos.

Helena errou, fora impulsiva demasiadamente, mas amava a filha e

conseguiu transformar a sua realidade, deixou algum legado. Merecia as

homenagens, afinal tudo o que fez foi por arrependimento e também por amor,

seu torto tipo de amor.

<<>>

Dias depois...

O mês de maio era um mês bastante especial, era o mês de aniversário dos

dois grandes amigos: do lorde e de seu conselheiro.

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— Agora que ela enxerga ficou mais fácil — Isaque se divertia com as

aflições do velho parceiro —. Se não conseguir falar escreva de uma vez o que

sente.

— Ela ainda não sabe ler da mesma maneira que a gente — Gustavo

revirou os olhos —. Agora que ela enxerga está muito mais difícil, tenho que me

controlar ao máximo para não ficar com cara de bobo — suspirou apaixonado.

— Cara de bobo? – o mais velho gargalhou com vontade –. Você fica

admirando ela então? — sorriu provocador.

— Admiro sim, mas não fico babando feito certas pessoas — retrucou

triunfante —. Aliás, quando vão se casar?

— Casar? — engasgou com o refrigerante —. Nem tão cedo.

— Menina que namora quer casar — relembrou a cantiga de infância

causando a diversão nostálgica. Atravessando a rua mudou o assunto: — E esse

cabelo? Daqui a pouco nem precisa mais de boné.

— Lorde Gustavo — reverenciou-se no meio da calçada —, sua medula é

milagrosa!

— Eu sou um anjo na vida de quem me conhece — declarou convencido,

cheio de orgulho próprio —. Não espertava que fosse se curar tão logo.

— Coisas da vida — respondeu pensativo —. Você precisou de sangue, eu

era o único que poderia doar, o que acha disso?

— Que temos uma missão — sua resposta possuía um tom enigmático.

— Talvez sejamos os salvadores do mundo — manteve o mistério.

— Ou foi só coincidência mesmo — rindo, terminou o delírio.

— A melhor de nossas vidas.

Abriu a porta.

— Surpresa! — um coral cantou o típico “Parabéns!”.

Com direito a bexiga e fotos de infância, os dois amigos foram

surpreendidos por uma festa inesperada, preparada no capricho e com muito

carinho, já que era esse o sentimento que eles despertavam naqueles que os

rodeassem.

As famílias estavam reunidas, Júlia e Gabriela também marcaram

presença com os pais, aquela tarde de sábado estava mesmo muito boa.

— Para gente?! — chorão, Isaque tinha os olhos marejados.

— Claro, conselheiro! — Gustavo respondeu animado —. Até porque

merecemos!

— Vai começar — Gabriela arrancou as gargalhadas.

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— Mas merecem mesmo — Júlia concordou —. Principalmente o meu

príncipe — beijou o namorado causando os assovios e a vontade em Gabriela

de fazer o mesmo, chegou a trocar um olhar com o garoto que amava, mas

faltou a coragem.

— Vocês estão sempre juntos, queríamos que passassem por esse

momento juntos também — Juliana justificou a surpresa.

— Ver o quanto são bons amigos emociona a todos nós — Ana se derretia

pelos garotos, os via como irmãos realmente.

— Mostram para nós o que é lealdade, fidelidade, o que é ser homem nos

relacionamentos, independente de qual for — Marcos, mais sério, mostrou sua

admiração.

— Até banho já tomaram juntos! — Eduardo, sempre extrovertido, causou

as gargalhadas e abraçou os rapazes —. Nunca furaram o olho do outro, nunca

ficaram de fofoquinhas, são os meus orgulhos — acabou se emocionando —.

Por causa de vocês eu ainda acredito na amizade!

— São mesmo dois jovens bastante especiais — Rui declarou sincero —.

Fizeram a diferença na vida da minha filha e quem é amigo dela

automaticamente ganha a minha admiração.

— Acolheram a nossa filha com tanto amor e carinho, com tanto respeito

ao ponto de nos fazer acreditar na bondade humana — Laura, cheia de

sabedoria, discursou brevemente –. São dois garotos maravilhosos que se

tornarão grandes homens!

— Os melhores alunos que um professor poderia ter – Eliseu se encheu de

orgulho ao falar dos adolescentes —. E além disso possuem um coração nobre,

rico!

— Agora é a vez de vocês discursarem — Gabriela puxou o coro: –

Discursem!

Sempre remetendo suas ações a de um nobre da Idade Média, Isaque

ergueu a mão direita pedindo atenção, pigarreou debochado e começou suas

palavras:

— É muito prazeroso saber o quão querido sou, é também enobrecedor —

arrancou as risadas –. Eu não poderia imaginar que receberia algo assim,

embora quisesse muito — fez uma pausa misteriosa —. Obrigado! — recebeu os

aplausos, firmou a pose de imperador, prosseguiu: — Não poderia deixar de

falar de uma pessoa muito importante na minha vida, alguém que eu sinto

orgulho por ter ao meu lado, sinto-me privilegiado por ter sua companhia.

Alguém que esteve ao meu lado nos piores momentos, chorou comigo, mas que

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também se alegrou pelas minhas conquistas — encarou fixamente o velho

amigo —. Eu seria capaz de entregar a minha vida por esse alguém, por que a

sua amizade tem um valor inestimável.

— Nada que um milhão não compre — disfarçando a emoção o

Romântico Anônimo ironizou.

— Nem o ouro pode comprar a sua amizade — revelou sorrindo, abriu os

braços, acolheu o mais novo e terminou usando as palavras que todos já

esperavam do jovem sentimental: — Eu amo você, irmãozinho.

Aplausos repletos de admiração.

Seguindo o ritmo, Gustavo tomou sua posição, vestiu um rosto sério, deu

início ao discurso digno de um lorde:

— Também sinto-me honrado por toda essa recepção e querência, é muito

importante receber todo esse reconhecimento e eu agradeço de coração —

encarou os olhares atenciosos —. Aqui está alguém diferente do que o mundo

cria, diferente da atrocidade e egoísmo humanos — puxou o amigo para mais

perto —. Alguém que eu amo ter bem próximo, alguém que me faz saber que

não sou o que sou em vão, alguém que eu sinto ser verdadeiro, alguém que

poderá por algum motivo estar longe, mas que sempre estará dentro do meu

coração — abraçou o melhor amigo —. Mais do que melhor amigo, mais do que

parceiro ou companheiro, é o irmão que pedi a Deus e que eu guardarei para o

resto da minha vida.

Abraçaram-se fortemente, eram unidos, eram sinceros, eram verdadeiros,

eram recíprocos. Eram um só.

Eram diferentes do resto.

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Romântico Anônimo

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Capítulo 47

Era um domingo ensolarado de maio, porém frio. A Cidade da Paz era

conhecida por suas estações rigorosas, o tempo obedecia ao tempo, seus

cidadãos estavam sempre preparados.

O dia era tranquilo. Famílias se reuniam nas praças, deixavam de lado a

conexão online para se conectarem fisicamente com aqueles que gostavam. Pais

e filhos divertiam-se como crianças enquanto se distraíam com jogos de

tabuleiro; grupos de amigos passavam o tempo livre juntos, enquanto casais

apaixonados se encaravam como se encara uma embriagante obra de arte.

Sorridentes, Gustavo e Gabriela resolveram passar aquela tarde de

domingo em uma das mais floridas praças da Cidade da Paz, na qual árvores

altas sobressaíam aos bancos de madeira, jardins floridos exibiam a beleza da

flora, a brisa gelada era um frescor no verão, mas que em dias mais frios

obrigava as pessoas a se aproximarem mais.

O casal de amigos sentou-se em um dos tantos assentos. Admirada, a

Adolescente Apaixonada observou ao seu redor e se maravilhou com a beleza

da natureza, observou alguns poucos pássaros cantarem e agradeceu por ter a

oportunidade de conhecer aquilo que antes era apenas formato em sua mente.

— Eu não imaginava que as coisas fossem tão belas assim — comentou

com o brilho no olhar, o brilho que a deixava ainda mais especial, o brilho que

enfeitiçava o seu admirador —. É tão diferente...

— O mundo seria um lugar maravilhoso se não fosse o egoísmo humano

— declarou pensativo —. Contudo ainda existem pessoas maravilhosas, que se

importam umas com as outras, que sabem o que é viver — encarou a

Adolescente Apaixonada —, ainda existem pessoas com valor inestimável.

— É uma pena que nem todas saibam onde está o real valor das coisas,

seriam mais felizes e satisfeitas consigo mesmas.

Desde que a garota dos olhos azuis recuperara sua visão um novo desafio

se apresentou em sua vida: reaprender a ler. Agora precisava reconhecer as

letras, saber ordená-las a fim de construir uma palavra, vinha mandando bem

no aprendizado, parte disso se devia às aulas particulares que ganhava do seu

bom amigo.

— Hoje apenas quero que aprenda a escrever o próprio nome — o futuro

pediatra sugeriu —. Depois a deixarei conhecer todo esse lugar.

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Romântico Anônimo

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— Ótimo — tirou da bolsa o lápis e um caderno de caligrafia —. Por onde

começo?

— Antes quero que observe — segurou o lápis, apoiou o caderno sobre a

perna e começou a escrever tranquilamente o nome que para ele era o mais belo

de todos —. Não precisa de pressa, nem de correria, escreva letra por letra,

sinta-as.

Reconhecendo as letras Gabriela pegou o caderno novamente, firmou o

lápis entre os dedos da mão esquerda e começou as curvas de cada um dos

símbolos que nos permitem a leitura, colocava esforço naquele simples

trabalho, dobrava a atenção sobre cada letra. O Romântico Anônimo observava

aquele delicado esforço em silêncio, sentia-se importante por ajudar alguém que

tanto gostava em mais uma de suas dificuldades.

— Assim?

— Perfeito — realmente, estava mesmo perfeito para alguém que não

tinha tanta experiência.

— Agora eu quero aprender o seu — aqueles olhos serenos encaravam os

ardentes do jovem rapaz.

— É assim — as letras saíram um tanto tremidas por conta do nervosismo

que só crescia dentro de si.

A garota tentou, mas o “v” não queria sair, por mais que tentasse não

conseguia, estava a ponto de desistir.

— Calma — aproximou-se da amiga pegando em sua mão direita,

sentindo o característico choque que sempre acontecia ao se tocarem,

respirando o adocicado perfume das rosas, o melhor segunda sua opinião —.

Não é tão difícil quanto parece — deu início ao caminhar do lápis sobre o papel

—, basta ter calma.

O perfume amadeirado levou Gabriela a uma sensação de conforto, de

paz, deixou ser guiada por aquela mão suave que muito gostava de ter sobre a

sua, observou com atenção o modo de escrever enquanto seu coração apenas

dizia estar apaixonado por aquele garoto.

— Sua vez...

Respirou fundo e, como uma criança que rabisca os seus primeiros traços,

a jovem adolescente escreveu o nome que constantemente invadia os seus

pensamentos.

— Viu como é fácil?

— Com você tudo fica mais fácil — fez sua declaração.

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Romântico Anônimo

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A última frase prendeu os dois apaixonados um no outro. Gustavo criava

certezas sobre a atração que sentia pela amiga, perdia-se na imensidão dos

olhos azuis que contrastavam com a delicada pele clara e se misturavam com

aquele tranquilo sorriso. Gabriela, por sua vez, espantava-se com o que sentia

ao encarar os brilhantes olhos castanhos, que contrastavam com os cabelos

negros, os quais pela lisura caíam sobre a testa, não podia deixar de se

maravilhar pelas covinhas infantis daquele sorriso tímido, ela o achava bonito,

mais que isso, era apaixonada por ele.

A desconexão entre os olhares deu fim aos longos minutos de observação.

— Quero mostrar uma coisa — entrelaçou os dedos puxando a garota para

junto de si —, vai gostar.

Era o chafariz ao centro da praça, que exibia água cristalina e era cercado

por flores de variadas espécies, uma imagem romântica ao mesmo tempo que

embriagante.

— É tão lindo — a adolescente fez sua conclusão.

— Pode se aproximar.

E assim ela o fez. Observou de perto detalhe, passeou os dedos por entre

os ornamentos que deixavam o ambiente com um toque ainda mais especial,

agradavelmente especial. Acostumada a apenas sentir a textura das coisa agora

podia vê-las, admirá-las por tanta beleza, inspiração para o seus escritos não

faltaria.

Perceber o quanto sua parceira se alegrava a cada descoberta enchia o

coração do Romântico Anônimo de felicidade, ainda mais por passar esses

momentos tão especiais ao seu lado e poder registrá-los nas tantas fotografias,

que depois, quando sentisse seu coração se afligir pela distância, via-as com

atenção, com ternura, com o jeito romântico de encarar as coisas.

Dizem que simplicidade atrai boas coisas, Gustavo acreditava nisso e

então não hesitou em comprar o algodão doce de um senhor que ia passando

por ali.

— Sua namorada? — perguntou discreto.

— Ainda não — respondeu baixo, mas sorridente, esperançoso.

— Ama-a? — questionou sábio.

O garoto pensou um pouco, analisou os sentimentos que moravam dentre

de si, respondeu convicto:

— Não poderia amar outra pessoa.

Aquele senhor tinha uma vasta experiência na escola da vida, aprendera

com os erros que lhe garantiram a sabedoria.

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Romântico Anônimo

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— Eu os observei com atenção, ela também o ama — entregou os doces —.

Durante o meu caminhar por essa estrada longa e cheia de surpresas vi amores

serem desfeitos por conta do medo, se é por isso que ainda não são namorados

encontre a coragem de que precisa dentro dos olhos daquela que ama, o amor

não é um sentimento individualista, nós o encontramos nos outros corações.

Estupefato por aquele conselho, Gustavo desabafou:

— Mas e quando nunca se encontra a coragem de que precisa?

— Já viu um lutador vencer as batalhas se deixando levar por covardias?

— sorria singelo, acolhedor —. Às vezes é importante que nos arrisquemos —

entregou o troco —. Desejo uma boa sorte!

Voltando de encontro àquela que despertara o seu amor, o Romântico

Anônimo sorria exuberante, estava apto a atender ao conselho, mas quando

chegou o momento trocou as palavras:

— Já comeu?

— O que é?

— Saboreie

Sentindo a textura Gabriela matara a chamada.

— É o meu preferido! Como soube?

— Apenas queria fazer um mimo — piscou —. E preciso falar uma coisa.

— Para mim? — fixou os olhares, daquele jeito que travava o jovem rapaz,

que o intimidava a declarar suas emoções, revelar os seus sentimentos.

— É sim — respondeu acanhado —. Só quero que ouça, apenas isso.

— Tudo bem. Pode começar.

O futuro pediatra suspirou apreensivo, respirou profundamente em busca

de forças, abriu sua boca:

— Quando Helena sequestrou você e todo o pesadelo começou eu não

sabia o que fazer, precisava protegê-la, mas não podia atrapalhar o trabalho dos

policiais e colocar a sua vida em risco, mas o que sinto por você falou mais alto.

Eu tive medo de perdê-la, senti que nunca mais a veria se não fizesse alguma

coisa, culpar-me-ia pelo resto dos meus dias — fez uma pausa a fim de

encontras as palavras certas —. Você não é uma simples amiga, só mais uma na

minha vida, o sentimento que tenho vai além de amizade, ultrapassa essa

limitação. Quando a vi amarrada, vulnerável á crueldade de alguém que nem

ao menos convivera ao seu lado, esse sentimento me impulsionou a salvá-la,

esse sentimento não é amizade — encontrou a coragem necessária nos olhos

azuis —, é...

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Romântico Anônimo

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Ouvindo cada dizer Gabriela sentia o seu peito acelerar, sempre sonhou

com aquele dia, sempre imaginou aquela conversa, sempre criou em sua mente

o chamado “diálogo perfeito”, mas o medo, aquele indesejável medo se

manifestou, ela não podia ouvir o que viria a seguir, não estava pronta, não

mais.

— Não termine — colocou o indicador sobre os lábios do falante —. Eu

não posso ouvir, eu não posso viver isso — seus olhos brilhavam por conta das

lágrimas que se acumulavam —. Eu não posso arriscar tudo.

Automaticamente os olhos de Gustavo se avermelharam, sua boca se

fechou confusa, seu peito se angustiou. Parecia que finalmente viveria aquilo

que almejava, por alguns segundos acreditou que poderia declarar todo o seu

amor, todos os seus sentimentos, mas o que realmente aconteceu foi a decepção,

como se um balde de água fria atingisse sua alma, como se uma flecha a

perfurasse.

— Mas eu... — tentou dizer.

— Talvez eu também... — a Adolescente Apaixonada o interrompeu,

entrelaçou os dedos e juntou os olhares que se identificavam, completavam-se,

comunicavam-se entre eles no idioma do amor —. Mas não estou pronta, não

sei como passar por isso, não sei como viver algo assim — deixou a lágrima

correr —. Eu preciso de um tempo...

Tudo que o Romântico Anônimo menos queria ouvir era “eu preciso de um

tempo”. Ele sabia qual seria o seu comportamento, atenderia ao suplicado

pedido afastando-se, ficando no seu canto, fingindo não existir. Afastou as

mãos com grande pesar, declarou abatido:

— Tudo bem. Essa é a sua escolha.

Teria a história que mal começara o seu ponto final decretado?

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Capítulo 48

“Levantou-se naquela manhã fria e chuvosa, sentindo os pelos dos braços se

eriçarem precisou trazer o cobertor enrolado ao corpo, caminhou até o criado-mudo,

ligou o abajur e se distraiu com a foto de uma mulher alta, cabelos pretos, olhos verdes e

de sorriso encantador. Abriu um tristonho sorriso, olhou para a cama e não encontrou

aquela que tanto amava, os olhos se encheram d’água, o coração palpitou.

Foi até a cozinha, esquentou o leite, despejou na xícara, misturou o achocolatado,

pegou alguns biscoitos colocando-os sobre a bandeja e sentou-se à mesa. Olhou para a

cadeira ao seu lado e não encontrou a mulher que amava. Na tentativa de driblar aquela

ausência foi até a sala, ligou a TV enquanto tomava o café da manhã.

Lavou o rosto, escovou os dentes e encarou os próprios olhos pelo espelho,

lembrou-se de que em todas as manhãs recebia o ‘bom dia’ especial, mas que se ausentara

em sua vida há algumas semanas. Ligou o chuveiro, sentiu a água morna escorrer pelo

corpo e se recordou de como tudo aconteceu.

A chuva era intensa, a noite turbulenta e a pressa notável. Cecília suplicava para

que Diego diminuísse a velocidade, o desespero que a ideia de um possível acidente

causava em sua mente provocava as lágrimas de pânico, mas ele parecia estar surdo, não

se importava com os pedidos aflitos, garantia-se no volante, sempre achou que tudo

estava sob o seu controle.

Uma curva acentuada.

Alta velocidade.

Pista molhada.

O carro capotou diversas vezes, a lataria provaria a brutalidade do acidente, os

vidros todos quebrados denunciavam a gravidade da imprudência, antes de ter os olhos

fechados o motorista encarou a esposa ensanguentada, desacordada, mal sabia ele que

sua vida jazia nela.

Acordou na maca de um hospital se surpreendendo com os olhares atentos de

tantos enfermeiros sobre si, que ao notarem o despertar do paciente agradeceram às suas

crenças.

— Onde ela está? — questionou afobado —. Como ela está? Eu preciso vê-la! —

exigiu se levantando.

— Filho, acalme-se — sua mãe o aconselhou, chorava abatida —. Você precisa

descansar.

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Romântico Anônimo

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— Eu quero ver a minha esposa, mãe! — o remorso já incomodava sua alma —.

Como ela está? — suplicava por respostas, desesperado.

— Ela não resistiu — revelou com grande pesar, proferindo palavras suficientes

para ferir o coração de Diego como se uma espada o tivesse perfurado.

A culpa era sua, sua mente dizia. Ele era o responsável por aquela dor, ele colocou

fim em uma história de amor tão bem escrita, desenvolvida, que cativava quem a

conhecesse a procurar o tal sentimento em um alguém importante. Mas agora, por causa

da própria ignorância, por conta do ego fatal, não tinha mais o amor de sua vida para o

acariciar quando desejasse, para o abraçar quando precisasse ou para amá-lo

apaixonadamente quando seus corações necessitassem.

Não fazia mais sentido continuar nesse mundo, era perturbador enfrentar o

sentimento de culpa que assolava seu espírito, era angustiante encarar os retratos

espalhados pela casa sabendo que não passavam de fotos e que nenhuma daquelas

recordações voltaria a acontecer.

Saiu na varanda do quarto.

Olhou para os vinte andares a baixo.

Deixou o corpo ser levado pelo vento.

Se alguém perguntasse poderiam dizer que morrera de amor”.

As luzes se acenderam e pessoas enxugando as lágrimas puderam ser

vistas. Impactada pelo desfecho daquele filme que durante todos os noventa

minutos levou a acreditar em um final feliz, Júlia não tinha reação, não sabia o

que falar, apenas sentia.

— Forte, né? — na praça de alimentação Isaque, também estupefato,

quebrou o longínquo silêncio.

— Apenas foi exposta a complexidade do amor — refletiu intelectual —.

Muitos o vivem como um sentimento corriqueiro, não dão o devido valor, mal

sabem que ele pode matar.

— Você morreria por mim?

— Talvez eu não existisse sem você — declarou acanhada.

— Não era isso o que parecia antes.

— Antes eu não enxergava com os olhos da alma, mas hoje tenho a

verdadeira visão — encarou os olhos verdes de seu encantado ouvinte —. Esse

filme me obriga a revelar uma coisa, sinto-me culpada por tudo o que

aconteceu, pela forma como a minha mãe se foi.

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Romântico Anônimo

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— A culpa não foi de ninguém — entrelaçou os dedos sobre a mesa em

um gesto de carinho —. Algumas coisas simplesmente acontecessem sem que

tenhamos qualquer domínio sobre elas.

— Tenho sim minha parcela de responsabilidade — declarou sincera —.

Ceguei-me pelos rancores e sentimento de desprezo por aquela que era minha

mãe, mas que como qualquer outro ser humano esteve suscetível aos erros —

deixou o choro discreto fluir —. Ela só queria um pouco de amor, de carinho, de

atenção e a única coisa que eu pude dar foi desprezo, ódio, raiva. Eu não

consegui controlar...

Aproximando-se mais da namorada levou sua cabeça ao ombro,

acariciando os fios loiros declarou afetuoso:

— Sua mágoa foi profunda, apenas você sabe o quão duro foi crescer sem

mãe e, o pior, sem a atenção do próprio pai. Todos entendemos o porquê das

suas atitudes, acredito que ela já esperava que essa seria a sua reação, porque

seria a de qualquer outra pessoa.

— Depois que a vi naquele caixão bateu o desejo de fazer tudo diferente,

de perdoar. Acredito que se eu fizesse isso hoje ela estaria entre nós, talvez

alcançasse a felicidade que nunca teve, o prazer de viver que nunca sentiu.

— Ela foi muito perturbada pela própria mente e ser preso por si próprio é

a pior prisão que um ser humano pode enfrentar. Pense que agora ela está

descansando, está livre da prisão, está melhor assim.

— Mas ela poderia estar bem ao nosso lado, vivendo conosco,

aproveitando a vida e toda sua beleza — discursou ressentida.

— Poderia, mas não está e a culpa não é sua — encarou os brilhantes olhos

esverdeados —. Cada um faz sua própria escolha e nós não temos o poder de

interferir nisso. Pense nas pessoas que estão ao seu redor, naquelas que apenas

querem o seu melhor e que provam isso a cada momento, viva você o que a sua

mãe não pôde viver.

Agarrando-se ao pescoço do nobre garoto Júlia sentiu paz, conforto,

proteção, sentiu que ele era o seu porto seguro.

— Obrigado — agradeceu comovida —. Mesmo com todos os motivos

para me odiar encontrou uma maneira de me amar.

— E quem disse que eu a odiava? — surpreendeu com a indagação —. Eu

nem sabia quem você era — provocou os risos —. Na verdade eu nunca odiei

essa garota linda — alisou o rosto sereno —, sempre a amei em oculto — juntou

os lábios em um gesto romântico.

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Romântico Anônimo

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<<>>

Tempo.

Tempo cura, mas também machuca.

Tempo ajunta, mas também espalha.

O tempo traz respostas, mas também cria dúvidas.

Tempo pode significar segundos como também milênios.

O tempo pode acabar, mas quem disse que ele não pode ser infinito?

O tempo escreve a história, e a história constrói o mundo.

Por mais que fosse o seu sonho chamar aquele garoto que não saía dos

seus pensamentos de “meu amor”, Gabriela sentia medo de, por algum motivo,

perdê-lo para sempre. Apesar da pouca experiência de vida sabia bem as

consequências de um relacionamento mais íntimo que ia desde uma paixão

avassaladora até uma separação irreversível. Tinha medo de arriscar aquela

amizade tão importante, tinha medo do possível final infeliz.

Deitada em seu quarto com as luzes apagadas enquanto procurava o sono,

a Adolescente Apaixonada não conseguia tirar aquele rosto especial, viciante à

vista, de sua aflita mente, simplesmente não podia tirá-lo. Começou a se

recordar da forma como tudo aconteceu, como ficaram tão próximos, como

estavam tão ligados um ao outro, ao ponto de arriscarem suas vidas um pelo

outro.

“— Porque você é a garota mais especial que conheci, porque você torna os dias

mais coloridos, porque você é um exemplo que eu muito admiro, porque você é a pessoa

ideal para mim, a que eu sonho terminar os meus dias ao lado — passeou o indicador

pelo rosto suave —. Porque você é linda”.

A garota dos olhos azuis ouviu aquelas palavras como se fosse a primeira

vez, palavras que declaravam muito mais que um “eu te amo”, palavras que

prometiam uma vida eterna entre o casal, uma vida que nunca acabaria, era

uma promessa! Gabriela tomou sua decisão, pena que ainda teria uma noite

inteira a enfrentar.

<<>>

Amor.

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Amor pode ser de pai para filho.

Amor pode ser entre amigos.

Amor pode ser entre o homem e a natureza.

Maneiras simples do amor. Mas existe uma complexa.

Amor pode existir entre duas pessoas apaixonadas, duas almas que se

completam.

Esse é o mais difícil amor. E com ele o tempo não combina.

Alimentou tantos sonhos, imaginou tantos momentos, chegou a sorrir com

as tantas projeções de sua mente que por serem tão desejadas pareciam reais.

Tudo não passou de ilusão.

Tudo se definia como tempo perdido.

Gustavo entendeu aquele pedido por um tempo como a declaração de

uma incerteza. Para ele Gabriela não sabia o que queria, não tinha convicção

dos próprios sentimentos tanto quanto ele, não o amava como ele a amava, não

o queria como ele a queria.

Encarou o rosto angelical pela tela do celular, sentiu a lágrima molhar o

travesseiro, tentou excluir a fotografia, mas as forças lhe faltaram. Virou-se para

o canto e fechou os olhos.

“Aquele sorriso acanhado que sempre encantava o Romântico Anônimo foi exibido

uma vez mais. Levando as mãos ao tosto do rapaz a jovem adolescente passou a tocá-lo,

prestou ainda mais atenção e afirmou:

— A sua beleza é tão intensa quando a do mar que me descreveu — descendo a

mão até o peito do garoto concluiu: — E ela também está aqui”.

Por mais que quisesse não conseguia se esquecer daquela que amava. Mas

estava decidido a enterrar todos aqueles sentimentos, a se esquecer de tudo o

que viveu com alguém incerto. “Um tempo?” pensou “Seria melhor que confessasse

não me amar”.

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Capítulo 49

O sol raiava naquela segunda-feira, porém o clima característico de outono

obrigava às pessoas matinais a colocarem um agasalho. Na Clínica da Paz, onde

pessoas com transtornos mentais eram tratadas, o jardim estava coberto por

folhas mortas, molhadas pelo orvalho da manhã, refletoras da luz solar. Os

pacientes caminhavam tranquilos de um lado ao outro, riam sozinhos ou em

conjunto, conversavam consigo mesmos ou com os companheiros de longa

data, observavam o céu como se vissem alguma obra de arte, admiravam os

pássaros como se almejassem ter sãs para também usufruírem do privilégio de

voar, de ser livre de si mesmo.

Guto, no entanto, estava isolado em um dos bancos do vasto jardim.

Encurvado, com as mãos entre os joelhos, atentava-se ao trabalho de pequenas

formigas, que em grupos carregavam folhas para algum lugar. Não eram

sozinhas, muito menos solitárias, a todo momento estavam acompanhadas e

sempre paravam para se comunicar uma com as outras e, assim, as carreiras

daqueles pequeninos insetos fluíam. Olhou para o lado e não viu ninguém, se

quer uma alma viva, a cada dia que passava a sensação de abandono se tornava

sua única companhia.

Levantou-se cauteloso e observou ao seu redor, notou que os enfermeiros

eram atentos, fugir daquele lugar mais uma vez não seria tarefa fácil. Seus olhos

se fixaram sobre outro paciente, que olhava para a copa de uma árvore e fingia

anotar suas observações sobre a palma da mãe, um plano surgiu na mente de

Guto.

— Você pode me ajudar? — pediu ingênuo.

— Não me atrapalhe — os olhos por trás das lentes grossas não se

desviaram do foco.

— Eu tentei — suspirou cansado —. Desculpe por isso — esbofeteou o

estômago do colega, com força suficiente para lhe fazer cuspir sangue e se

contorcer sobre o chão —. Socorro! — gritou como se nada fosse culpa sua —.

Tem alguém morrendo aqui! — aumentou a voz em um tom de desespero.

Uma muvuca de enfermeiros e pacientes se formou em torno do

acidentado, aproveitando a distração o agressor de todos se esquivou, apertou

aos passos, escalou as grades brancas.

— Parado aí! — um dos guardas o pegou em flagrante.

O rapaz não deu ouvidos, escalou com mais pressa.

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O homem não teve outra escolha, precisou acionar a cerca elétrica.

Mas já era tarde demais.

O irmão de Gabriela estava livre mais uma vez.

Vestido com os tecidos da Clínica da Paz, Guto correu pelas ruas e

avenidas da cidade empurrando obstáculos, desviando-se de pessoas e

causando o caos no trânsito. Ofegante, cansado e suando pela correria se

escondeu em baixo de um caminhão, seus olhos desesperados observavam a

todos que caminhavam pelas ruas.

Assustado, sentindo medo como uma criança, apreensivo com toda aquela

situação, o jovem de vinte e cinco anos procurava, por entre a multidão, alguém

a quem pudesse pedir ajuda, alguém que o levasse para casa já que o lapso em

sua memória não lhe permitia recordar algumas coisas.

Um homem de estatura média, barba rala e olhos azuis surgiu

caminhando tranquilamente, tendo por baixo do braço uma pasta verde, a

mesma que sempre carregava quando ia cuidar dos assuntos pessoais. O rapaz

atribulado reconheceu aquela figura, saiu afobado do esconderijo, gritou

entusiasmado:

— Pai?!

Sua alegria não foi duradoura.

Um acidente.

O apagão.

Eliseu viu o filho passar por cima do carro e se chocar violentamente

contra o chão, a dor foi sentida em seu peito, largou a pasta e correu ao

encontro daquele que era sangue do seu sangue e carne da sua carne. Repousou

a cabeça sobre o colo, tentava sentir a respiração colocando o dedo no nariz, não

podia acreditar no que estava acontecendo.

— NÃO! — as lágrimas exibiam a angústia enquanto o grito era a

demonstração da dor.

E mais uma vez o Hospital da Cidade da Paz era tomado pelo agito de

médicos focados em salvar uma vida.

Guto estava no centro cirúrgico, desacordado, rodeado de enfermeiros,

recebendo a atenção de um dos mais conceituados cardiologistas do hospital

que tentava o todo custo reanimá-lo. O suor corria pela testa do especialista,

quanto mais tentava menos esperança tinha.

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— Hora do óbito... — um dos da equipe médica já acreditava no pior.

— Ainda não — o médico interrompeu a fala que não queria ouvir,

enxugou o suor e tentou mais uma vez, conseguiu — Graças a Deus!

As horas se passaram. O relógio já beirava às quatro horas da tarde

quando o rapaz dos olhos verdes os abriu resmungando. Prestativa, Laura logo

acionou a campainha e se aproximou daquele que muito amava.

— Filho — passou a mão pelo rosto machucado —, como se sente?

— Não consigo me mexer — reclamou com o soar da debilitada voz.

— É normal, são os medicamentos — confortou-o —. Por que fugiu de

novo, meu querido? Por que fez isso?

— Eu me sentia sozinho, ninguém conversa comigo naquele lugar,

ninguém gosta de mim onde vocês me deixam — a lágrima sentimental rolou

até o travesseiro —. Eu queria conversar com vocês, queria ver como estavam

— queria uma vida normal.

— Estamos bem, meu querido — acariciou os fios loiros sem conseguir

conter a forte emoção —, e estamos todos aqui, ao seu lado, prontos para o que

precisar.

— Gabriela está aqui?

— Quer falar com a sua irmã?

— Muito.

Permitida sua entrada a Adolescente Apaixonada assim o fez, embora seu

coração estivesse angustiado já que Gustavo faltara a aula naquele dia,

demonstrou alegria em encontrar o irmão, não queria transmitir os sentimentos

de tristeza e confusão.

— Queria falar comigo?

— Sim — Guto abriu um sorriso satisfeito —. Preciso pedir perdão — era

sincero em suas palavras —, perdão pela forma como a tratei, mesmo assim

você está aqui e só pode ser por preocupação e quem se preocupa é porque

gosta.

— Mas é claro que eu gosto de você — sorriu abertamente beijando o rosto

do rapaz —. É meu irmão independente de qualquer coisa e eu sempre me

preocuparei com a sua vida.

— Achei que tinha perdido o meu lugar, que você o roubara de mim, mas

eu estava errado, se fosse assim hoje não estaríamos aqui.

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— Que bom que entende isso — uniu as mãos com ternura —. Somos uma

família, ninguém pode ocupar o lugar do outro porque cada um de nós temos

nossa própria importância, somos únicos do nosso modo e ninguém pode nos

substituir.

— Obrigado — seu semblante era o de alguém alegre, o de alguém que se

sente especial, aceito —. Acha que vou ficar bem?

— Eu tenho certeza — abraçou-o carinhosamente —. E poderá contar

comigo para o que precisar.

Eliseu não sabia se o filho aceitaria conversar, mas os seus sentimentos

paternos falaram mais alto, precisava se arriscar a uma possível rejeição.

“Era ainda muito pequeno, as palavras não eram ditas embora os primeiros passos

já tivessem sido conquistados. Era um menino muito bonito, chamava a atenção de

mamães corujas e de doces vovós.

Deitados na cama, pai e filho brincavam com ursos de pelúcia, o menor gargalhava

exibindo os primeiros dentinhos; os braços ainda molengas não conseguiam segurar por

muito tempo o brinquedo, mas seu pai estava sempre ali, para o que ele precisasse.

Cabeça repousada sobre o peito do maior e carícias na cabeça atraindo o sono

gostoso, antes de se aventurar nos “sonhos dos anjinhos” as palavras saíram:

— Papai...

O homem ria abobado, contente, alegre, seu coração transbordava de felicidade”.

Mas o rumo das coisas mudou, o professor de português sabia que a culpa

era totalmente sua, se o filho estava naquelas condições a responsabilidade era

sua.

— Podemos conversar? — surgiu acanhado.

— Pai? — reconheceu aquela voz —. Entre. Não posso me mexer.

Aproximando-se do rapaz e encarando o olhar triste misturado a alguns

machucados pelo rosto, Eliseu não conseguiu segurar o choro, deitando sobre o

peito do filho suplicou ressentido:

— Perdoe-me, é tudo culpa minha...

— Acontece nas melhores famílias — ao invés de agressões ou

xingamentos foram proferidas sábias palavras —. A culpa nem sempre é nossa,

nem sempre existem culpados, existem circunstâncias — surpreendeu.

— De onde tirou isso? Foram as melhores coisas que ouvi.

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— Sinto que a morte se aproxima — encarou os olhos azulados do pai

sobre si —. Não há mais tempo para odiar, eu preciso amar quem está ao meu

lado. Não tenho amigos, nem colegas, mas tenho a melhor família do mundo e é

ela que eu devo amar.

Eliseu se encheu de alegria, comoção, abraçou o filho chegando a erguê-lo

do colchão, mas percebeu que os braços do rapaz não o envolviam.

— Não consigo me mexer. É por causa dos medicamentos.

— Eu amo você, meu filho — declarou o que sempre foi sua obrigação

declarar, mas que nunca o pôde fazer pela falta de coragem —. Pode ser que

não acredite, mas do meu jeito errado sempre o amei, sempre me preocupei

com o seu bem-estar, com a sua saúde, do meu jeito torto sempre procurei ser o

seu pai.

— Entendo — mostrou compreensão —. Apenas quis me ajudar.

— Reuni vocês aqui porque o assunto é delicado — o médico responsável

pela situação de Guto iniciou sua explicação para a família —. Precisarão ser

fortes e prestativos.

— Pode falar — a mãe já afligia.

— Fizemos alguns exames, algumas radiografias e chegamos a uma

conclusão — fez uma pausa angustiante —. Guto perdeu todos os movimentos,

está tetraplégico.

Susto. Apreensão. Desespero.

O desafio era mais gigante do que se imaginava.

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Capítulo 50

A terça-feira começou nublada, fria, mas como de costume logo as nuvens

se dissipariam e o sol tocaria a terra. Para Gustavo o dia estava ainda mais

pesado, a animação que tinha para se arrumar como em todas as manhãs fugira

de si, a vontade de estudar acabara, se não fosse pelo amigo que tinha mudaria

de escola, não suportaria ter que encarar alguém que muito significava em sua

vida sem poder demonstrar os tantos sentimentos.

Apenas em obediência aos pais foi para o colégio decidido em não assistir

às aulas. Ao se deparar com Isaque logo na entrada não conseguiu disfarçar o

rosto abatido e os olhos tristonhos.

— Não queria vir, não é? — o mais velho já havia desvendado o porquê

do problema.

— Para falar a verdade não queria vir nunca mais — sorriu cabisbaixo.

Não adiantaria falar para continuar a vida, esquecer a garota em questão

ou deixar de se lamentar por alguém que talvez não merecesse. Isaque conhecia

bem a intensidade dos sentimentos de Gustavo por Gabriela, não era algo

simples, passageiro ou uma paixonite adolescente, era algo mais complexo,

forte, que fazia parte dele e tentar intervir naquilo seria como mexer em uma

ferida profunda.

— Eu entendo — abraçou-o como sempre fizera nos momentos difíceis —.

Se aquilo que sente for recíproco a gente sabe que a história terá um final

diferente — encarou-o como um pai encara o filho durante um nobre conselho

—. Além disso temos um ao outro, pode contar comigo.

— Eu sei, sempre soube — forçou um novo sorriso naquele semblante

confuso —. Vou para a sala de música, não fale para ninguém, não quero

participar das aulas hoje.

— Sabe que não pode ficar matando aula, não sabe?

— É só dessa vez... Eu prometo.

E para lá se foi o adolescente entristecido — entristecido pelo amor.

<<>>

Gabriela, assim como seus pais, sofrera muito com a notícia que recebera,

imaginava que o irmão não aceitaria aquela situação tão facilmente, por certo

ele se julgaria acidamente e se revoltaria com a própria vida quando soubesse a

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verdade. Não sabia o que fazer, como ajudar seus angustiados pais e como

auxiliar seu irmão nos difíceis dias que chegariam. Precisava de conselhos,

precisava desabafar.

Precisava das palavras de Gustavo.

Mas achava que por sua causa o indesejável distanciamento entre eles

aconteceu, já não contaria mais com o apoio daquele garoto especial, que

sempre esteve ao seu lado mostrando as boas coisas da vida e a ajudando na

tarefa do viver.

Ao entrar na sala de aula e, novamente, encontrar a carteira atrás da sua

vazia, sentiu o peito apertar, o que nunca sonhou acontecer era uma triste

realidade causada pelos tantos dilemas e questionamentos do amor, pela

injustiça de um sentimento tão contraditório que ao mesmo tempo no qual

alimenta coragens absurdas derrama um medo inexplicável.

— Ele não vem hoje? — perguntou afligida.

— Acho que não — Isaque respondeu.

Comovida por aquela situação Júlia encarou o namorado e apenas com o

olhar deixou claro o que queria dizer. O futuro engenheiro pediu desculpas a si

próprio, mas não poderia deixar que uma história tão inspiradora tivesse um

final tão trágico.

— Gabriela, não se acanhe em me responder, quero que seja sincera — foi

sério em seu breve discurso —. Você o ama da maneira como ele a ama?

A garota dos olhos azuis ficou pensativa por alguns instantes, já havia

negado uma vez aquele sentimento e a consequência era sufocante, não poderia

fugir do óbvio mais aquela vez.

— Até mais — os olhos brilhavam por conta das lágrimas que já se

formavam.

— Então vá atrás dele e revele tudo o que sente — Júlia aconselhou —.

Não perca mais o seu tempo, pode ser que depois seja tarde demais...

— Onde o encontro?

— Na sala de música — Isaque revelou —. Prepare-se para o mau humor

— já imaginava como seria a recepção —. Será apenas um disfarce, é como um

caranguejo que se esconde na carapaça ao se sentir ameaçado.

— Mas com jeitinho você o tira de lá — a garota dos olhos verdes piscou

sorridente.

<<>>

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A sala de música era um espaço bastante amplo no Colégio Inova, um

salão na verdade, onde diversos instrumentos eram exibidos, desde a família

das cordas até a família dos metais, desde as vozes do soprano até o baixo,

todos bem cuidados, lustrados perfeitamente, afinados como o exigido. Outros

equipamentos musicais como o metrônomo e o diapasão eram confeccionados,

outros instrumentos que fugiam do uniforme de uma orquestra também faziam

parte da coleção e podiam ser utilizados pelos alunos.

Além de bom estudante, Gustavo era também um ótimo músico, seu

instrumento predileto era o violino, mas o gracioso violão não ficava muito

atrás. A fim de cantar, manifestar aquilo que sua alma sentia, o adolescente

apaixonado optou pelo instrumento que se guiava por cifras, as seis cordas

dariam conta tranquilamente do desenho musical a seguir.

Fez soar as primeiras cifras.

Os dedos eram ágeis.

“As I drove across on the highway

My jeep began to rock

I didn't know what to do so I stopped and got out

And looked down and noticed I got a flat”

[Eu dirigia pela estrada

Quando o meu jipe começou a balançar

Eu não sabia o que fazer, então parei, e saí

Olhei para baixo e percebi que tinha um pneu furado]

Olhos atentos sobre o dedilhar.

“So I walked out, parked the car like sideways

So I can find what I can fix

I looked around there were no cars on the highway

I felt a strange feeling like a mist”

[Então eu saí com o jipe, e parei no acostamento

Para que pudesse encontrar algo para consertar

Eu olhei em volta, não tinha um carro na estrada

Eu senti uma coisa estranha, como uma névoa]

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Olhou para frente como se encarasse uma volumosa plateia, constituída

por tantos instrumentos.

“I walked down towards the end of the road

And in the fog a woman appeared

She said don't you worry my friend I'll take care

Take my hand, I'll take you there”

[Eu comecei a andar em direção ao fim da estrada

E no meio da neblina, apareceu uma mulher

Ela disse, "não se preocupe, meu amigo, deixa comigo

Pegue minha mão, eu te levarei lá"]

Pegou fôlego.

Fechou os olhos.

Soltou o pulmão.

“Woah-oh

Take me to a place without no name

Take me to a place without no name

Take me to a place without no name

Take me to a place without no name”

[Oh oh

Leve-me para um lugar sem nome

Leve-me para um lugar sem nome

Leve-me para um lugar sem nome

Leve-me para um lugar sem nome]

Conforme se aproximava da sala de música Gabriela se encantava por

aquela voz suave ao mesmo tempo que enérgica.

“As she took me right through the fog

I see a beautiful city appear

Where kids are playin'

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And people are laughin' and smiling and

Never in fear”

[Enquanto ela me guiava pela neblina

Eu vi uma linda cidade aparecer

Onde as crianças brincavam

E as pessoas riam e sorriam

Nunca há medo]

A garota dos olhos azuis conhecia a letra, entendia sua mensagem, seu

clamor por sossego.

“She said "this is the place where no people have pain"

With love and happiness

She turned around looked down at my eyes

And started cryin'

She grabbed my hand, you got a friend”

[Ela disse "este é o lugar onde ninguém sente dor"

É amor e felicidade

Ela deu a volta, e olhou em meus olhos

E começou a chorar

Pegou minha mão, "você tem um amigo"]

Viu o garoto que amava cantando como se fosse a única coisa que queria,

como se fosse tudo o que lhe restara.

“Woah-oh

Take me to a place without no name

Take me to a place without no name

Take me to a place without no name

Take me to a place without no name”

[Oh oh

Leve-me para um lugar sem nome

Leve-me para um lugar sem nome

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Leve-me para um lugar sem nome

Leve-me para um lugar sem nome]

Gustavo cantava como se aquelas palavras dissessem a verdade, era a

verdade que ele queria viver.

“She started likin' me kissin' me and huggin' me

She didn't really, really want me to leave

She showed me places I've never seen

Things I've never done

This really looks like a lotta fun”

[Ela começou a gostar de mim, me beijar, me abraçar

Ela, na verdade, não queria que eu fosse embora

Ela me mostrou lugares que nunca tinha visto

Coisas que nunca tinha feito

Isso realmente parece muito divertido]

Os dedos dançavam sobre as cordas, o som era o resultado de uma

perfeita sincronia entre música e poesia.

“I seen the grass and the skies and the birds

And the flowers surrounded by the trees

This place is filled with love and happiness

And not a world could I wanna leave”

[Eu vi a grama e os céus e os passarinhos

E as flores cercadas pelas árvores

Este lugar é repleto de amor e felicidade

E não é um mundo do qual eu queira sair]

E o verso a seguir era uma clara revelação do que o jovem cantor almejava

para o próprio futuro.

“So then I went in my pocket took my wallet on out

With my pictures of my family and girl

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This is the place that you choose to be with me

When you thought you could be in another world”

[Então eu coloquei a mão no bolso, e peguei minha carteira

Com fotos de minha garota e minha família

Este é o lugar que você escolheu para ficar comigo

Quando você pensava em estar num outro mundo]

O pedido por um alívio:

“Ooh-ooh

Take me to a place without no name

Take me to a place without no name

Take me to a place without no name

Take me to a place without no name”

[Oh oh

Leve-me para um lugar sem nome

Leve-me para um lugar sem nome

Leve-me para um lugar sem nome

Leve-me para um lugar sem nome]

A súplica por um refúgio:

“Ooh-ooh

Take me to a place without no name

Take me to a place without no name

Take me to a place without no name

Take me to a place without no name”

[Oh oh

Leve-me para um lugar sem nome

Leve-me para um lugar sem nome

Leve-me para um lugar sem nome

Leve-me para um lugar sem nome]

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Os últimos dedilhares.

Suspirou aliviado.

Aplausos inesperados.

Elogio surpreendente:

— Além de tudo é ainda um cantor maravilhoso — a garota que

despertava o turbilhão de emoções no Romântico Anônimo surgiu por entre os

instrumentos —. O melhor! — sorriu tímida, o mesmo sorriso que levava o

jovem apaixonado a muitos de seus devaneios.

— O que faz aqui? — não pôde evitar o espanto.

— Vi que não posso mais perder tempo com medos e incertezas, preciso

viver aquilo que me faz feliz — caminhava a passos tranquilos na direção do

garoto de seus sonhos —. Não posso deixar a melhor pessoa que conheci ir

embora da minha vida sem fazer nada — sorriu abertamente —. Eu quero

primeiro pedir o seu perdão e dizer que quero muito ser sua namorada... Você

me aceita?

Gustavo não esperava por aquilo, para ele tudo já estava perdido, nada

teria volta, para o seu coração a história estava mais que finalizada e não havia

solução. Mas agora, em um piscar de olhos a falta de esperança deu lugar à

convicção, o medo foi ocupado pela coragem, a triste solidão pela imensa

companhia do amor.

— É claro que perdôo — sorriu de orelha a orelha —. E é óbvio que a

aceito como minha namorada.

— Prometo que o levarei a esse lugar sem nome onde seremos muito

felizes, onde nunca mais teremos medo de nos amar — abraçou-o

afetuosamente deixando o misto de tantos sentimentos serem expressos pelas

lágrimas derramadas.

— Eu te amo — finalmente pôde declarar, seu coração estremecia de

felicidade.

— Eu te amo ainda mais — apertou aquele confortável abraço dizendo as

inevitáveis palavras.

— Agora pode me dizer o que a aflige — olhou dentro de seus olhos —.

Aprendi a conhecê-la nos mínimos detalhes e sei que tem algo acontecendo.

— Meu irmão sofreu um acidente, perdeu os movimentos — foi

interrompida pelo choro angustiado —. Não sei o que fazer, como ajudar minha

família, não sei como será daqui por diante.

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Alisando o suave rosto com atenção o Romântico Anônimo fez sua

afirmação:

— Nós vamos passar por isso juntos, prometo.

— Vocês aí! — a estridente voz e o zumbido ensurdecedor do mal quisto

apito interromperam o beijo que estava para acontecer —. Já para a sala se não

se quiserem que a Tânia já os case! — era Zumira, que relevou a situação por

estar comovida com as tantas declarações que ouvira sem que a ninguém a

percebesse.

Animado, o jovem casal saiu em disparada.

Viraram o corredor.

Gustavo encostou a amada garota na parede.

Gabriela sorriu apaixonada.

Beijaram-se.

Um beijo repleto de sentimentos, de desejos, de paixão e de amor.

Puderam sentir o quão forte era aquilo que os unia, experimentaram o sabor

daquilo que entre eles existia.

Enquanto a carne se completava as almas se amavam.

Eram um só.

Take me to a place without no name.

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Capítulo 51

Daniela Almeida era uma mulher muito elegante e atraente; escritora,

andava sempre muito bem vestida e perfumada, sempre sorridente esbanjava

simpatia por onde passava; seus olhos azuis passavam segurança a quem os

encarasse; seus compridos fios claros que dançavam conforme o movimento

despertavam muitos olhares sobre si e suas covinhas que eram deixadas a

mostra quando sorria lhe garantiam um charme especial.

Havia se mudado recentemente para a Cidade da Paz pela fama de

tranquilidade que aquele lugar proclamava aos arredores, depois do turbulento

relacionamento que vivera ao lado um namorado ciumento paz e calma era

tudo o que o seu coração desejava. Sempre aberta a novas oportunidades queria

conhecer pessoas diferentes e com elas criar um futuro melhor.

Sempre atenta aos mínimos detalhes, mania que ganhara com a bem

sucedida profissão, observava as pessoas que caminhavam ao seu redor,

gostava de criar personagens baseada naquilo que via, sua inspiração era

simples, estava no ser humano.

Tranquila, enchia o carrinho de compras aos poucos, desfilava pelos

corredores com graciosidade, deixando o perfume como rastro, não tinha quem

a não percebesse. Em um momento de distração, enquanto lia o rótulo de um

dos mais sofisticados vinhos, não percebeu que as rodas destravadas ganharam

vida e partiram independentes.

— Pensei que fosse me atropelar — o homem grisalho evitou o acidente.

— Que distraída! — lamentou envergonhada —. Eu estava...

— Eu sei — a interrompeu cordialmente —. Estava dedicando toda a sua

atenção para o vinho — apontou para a estilosa garrafa de vidro —. Se aceita a

minha sugestão — tirou o outro da prateleira —. Esse cai muito bem no inverno

da Cidade da Paz.

— Que sorte a minha, um especialista — entregando-se àquele diálogo

prazeroso, Daniela devolveu o que tinha pego, com delicadeza aceitou a

sugestão daquele que lhe falava —. Tem certeza de que não vou me

arrepender?

— Garanto que não — exibiu a perfeita dentição.

Atenciosa, a talentosa escritora analisou melhor aquele homem, em tão

poucos segundos pôde avaliar sua altura maior que a média, o tronco

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fortalecido e o semblante que transmitia uma mistura entre o sério e o

descontraído. Era um belo homem.

— É nova por aqui? — ele conhecia bem os clientes do lugar, jamais havia

visto alguém que com aquele sorriso embriagante se tornaria inesquecível.

— Cheguei a poucos dias, ainda estou me adaptando — aproveitou a

brecha para uma pergunta: — Conhece algum parque por aqui? — era o

ambiente perfeito para que suas ideias fluíssem —. Amo o contato com a

natureza — as perfeitas covinhas insistiam em marcar presença e enfeitiçar

aquele que as admirava.

— É um dos nossos pontos turísticos — referiu-se ao famoso Parque da

Cidade da Paz —, não há um morador ou visitante que não o conheça. Se quiser

podemos marcar de o visitarmos — observou as mãos desvestidas de alianças

—, adoraria ser o seu anfitrião nessa maravilhosa cidade — arriscou.

Mal conhecera aquele homem e já recebera um convite para sair e, o pior

(ou melhor), adorou aquilo. Tirando da bolsa um cartão o entregou ao seu novo

amigo que lhe transmitia um sentimento confuso de calma e ansiedade.

— Quando puder me ligue — insistiu com a bala simpatia —, mas não

demore.

Seu convite fora aceito? Ele não imaginou que seria tão fácil conquistar a

amizade de uma mulher tão atraente. Estava apaixonado por ela, não precisou

dos oito segundos didáticos para que aquilo acontecesse, bastou que os seus

olhos se encontrassem.

Havia jurado para si mesmo que nunca mais se apaixonaria, não se

deixaria levar pela confusão do amor, mas já estava decidido a quebrar tal

juramento. Não era só pela beleza de Daniela e o seu perfume marcante que o

atraíram, algo mais especial ocupava o lugar de ingrediente mais importante

naquela receita sentimental. Não conseguia explicar, apenas sabia que sentia

coisas diferentes como se voltasse aos anos de adolescência, quando se

apaixonou perdidamente por alguém que não soube valorizar.

— A propósito — estendeu a mão antes que a mulher seguisse o seu

caminho —. Rui.

Tocando a mão quente ela sentiu o peito palpitar.

— Daniela — seus olhos brilhavam.

O nome não poderia ser melhor, ele pensou.

<<>>

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A dor do parto era recompensada com o bebê em seus braços.

Todo o esforço daqueles nove meses agora era exibido pela linda criança.

Seguindo o protocolo as enfermeiras levaram o recém-nascido ao berçário,

passaria por alguns exames rotineiros e, quando estivesse liberado, voltaria ao

aconchego materno.

Porém, existiam infiltrados naquela equipe.

Era uma enfermeira perfeita, conseguia até mesmo aplicar as injeções

solicitadas e auxiliar nos trabalhos de parto, mas ninguém sabia quais eram

suas reais intenções. Vestida dos pés à cabeça, tendo parte do rosto coberto pela

máscara e os olhos escondidos atrás das lentes grossas, pegou o bebê, olhou ao

redor com atenção, como se nada estivesse acontecendo andou pelos

corredores, mas na saída foi surpreendida pelo segurança grandalhão.

— Evite transtornos — segurou em seu braço —, volte como se nada

estivesse acontecendo e faremos de conta que não vimos nada — apontou para

uma das tantas câmeras espalhadas pelo lugar —. Todos aqui estão sendo

monitorados constantemente — sorriu irônico.

Aquele não era qualquer hospital, era requisitado pelos críticos, sua fama

se espalhava por toda a América Latina, assim como a cidade era reconhecida

pela paz. A meliante sabia disso, não se deixou levar pelo que lhe disseram.

Pensou rápido.

Jogou a inocente criança para o alto.

O segurança se assustou. Focou em salvar a vítima.

A jovem criminosa correu o mais rápido que pôde.

Do lado de fora um carro a esperava. A arrancada foi furiosa. A fuga

veloz.

O lugar era escondido, ficava no afastado bairro da Cidade da Paz, onde o

crime se refugiava e fluía tranquilamente.

A jovem garota adentrou o prédio com aspecto de abandono, desceu onde

seria o porão, mas não era um simples porão, era amplo, espaçoso e sombrio,

com corredores longínquos; uma construção escondida da luz do sol. Tirou as

roupas de enfermeira e se apresentou diante a figura de um líder, que se

escondia por baixo da capa preta e atrás da máscara misteriosa; ninguém sabia

se era um homem ou uma mulher, a voz ficava irreconhecível.

— Você falhou — afirmou friamente, os olhos amarelados pela máscara

transmitiam o medo.

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— Perdoe-me — curvou-se reverente —. Eu prometo que não acontecerá

mais.

— Não mesmo — levantou-se pacificamente —. Sabe o que acontece com

quem falha, não sabe? — aproximou-se de sua ouvinte a passos lentos.

— Suplico que me dê mais uma chance — segurou o choro, lágrimas não

comoviam o tal líder, irritavam-no.

— Lamento, mas não posso tolerar erros — puxou da bainha a espada, o

artefato medieval soou seu ruído —. Você foi um erro — estalou os dedos.

Submissos, seus dois comparsas, um de cada lado, segurou a garota que se

debatia, tentava escapar, mas sua força era insuficiente.

— A tarefa era tão fácil, tão simples — tom de voz era sereno —. Roubar

um bebê, que dificuldade existe nisso? Você falhou — ergueu o objeto fatal —.

Não posso tolerar erros.

Sentindo a morte se aproximar ela fez sua proposta:

— Eu os entrego a você.

— Aprendeu a negociar? — riu contido enquanto guardava a espada —.

Que garantia pode me dar caso não cumpra sua promessa?

Lutando contra as lágrimas declarou o que era protocolo aos que

falhassem:

— Tirarei minha própria vida.

— Muito bem — acariciou o delicado rosto coreano —. Isaque e Gustavo,

eu quero os dois em minhas mãos! — estalou os dedos novamente atraindo

seus aliados —. A Cidade da Paz viverá o que jamais viveu!

Longe da presença do líder a garota pôde exibir todo o seu sofrimento,

arrependia-se por ter entrado naquilo, mas agora não tinha saída, ou morreria,

<<>>

Aquela manhã de sábado seria muito importante à família Campos, não

poderiam mais adiar o inevitável, era direito de Guto saber o que realmente

acontecia já que quase uma semana se passara do trágico acidente e seus

movimentos continuavam nulos.

— Como vai, campeão? — a doutora Isabel adentrou, junto da família, o

quarto do paciente.

— Melhor — respondeu cansado —. Só queria andar um pouco, mas acho

que os medicamentos são um tanto fortes.

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— Você também vai precisar de muita força — aproximou-se do rapaz em

um gesto de carinho e também de apoio —. O desafio cresceu um pouco mais,

mas com persistência podemos vencê-lo.

— O que quer dizer? — preocupou-se.

Recebendo o consentimento daqueles que ali estavam a psiquiatra e

também psicóloga suspirou fundo, era difícil para ela também a missão de

revelar algo tão intenso da mais suave maneira possível.

— O acidente foi muito impactante, contudo temos motivo suficiente para

agradecermos por sua vida, ela foi poupada e você está conosco — fez uma

pausa serena —. Mas uma sequela ficou e com o tratamento adequado ela

poderá ter um reflexo menor em sua vida... Os seus movimentos foram

perdidos.

— Como é que é?! — não compreendeu muito bem, talvez não quisesse

compreender.

— Nada muito grave — a mãe se aproximou, seu lado materno a

impulsionava em confortar o filho —. Como a doutora disse você está vivo,

quanto ao resto vamos passar por tudo juntos.

— Vocês querem dizer que eu vou ficar paralítico? — tentava a todo custo

mexer seus membros, mas em vão, começava a se convencer da notícia.

— Com o tratamento você pode recuperá-los — a terapeuta tentou

mostrar as soluções —. Basta ter persistência.

— Persistência? Tratamento? Eu vou me transformar em um inválido e

vocês querem dizer que tudo bem? — as lágrimas de revolta se misturavam

com a voz estridente —. Matem-me! — pediu desesperado —. Eu quero que

façam isso! — exigiu, sem noção do que dizia —. É meu direito!

Sua solução não estava na persistência de um tratamento, mas na

desistência do término da vida. Sua solução tinha um nome, eutanásia.

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Romântico Anônimo

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Capítulo 52

O ser humano possui inúmeros direitos, alguns fundamentais, como o

direito à vida, outros precisam ser assegurados pela lei, como o direito à morte.

Porém, a sociedade contemporânea nunca esteve preparada para o diálogo

acerca da morte, seja ela como for, antes procura fugir do tabu e adiar a

discussão.

Teria o ser humano direito sobre a própria morte? Direito à morte não

estaria relacionado ao direito da vida? É justo alguém viver por um tempo

indeterminado com uma dor que nunca passa? É digno viver com o

pensamento de que agora não se tem mais o que oferecer ao mundo? Até onde

vale a pena?

Egoísmo? Pecado? Atitude abominável? Questões polêmicas que rondam

a sociedade e que estão longe de acabar; longe de serem esclarecidas. Como

definir a chamada “boa morte”?

A doutora Isabel conhecia bem o seu paciente, o suficiente para entender

que aquela já era a sua decisão, uma inviável decisão que para ser concretizada

teria que passar por cima de milhares de pensamentos.

— Querido — tocou as mãos do rapaz em um gesto suave —, não é tão

fácil quanto parece — esclareceu —. No nosso país o que você vê como direito é

crime. Ninguém está autorizado a seguir esse procedimento, ele é praticamente

utópico.

Embora vivesse recluso da sociedade, Guto conhecia muitos assuntos, era

um jovem esperto que sempre teve acesso às informações, tinha argumentos.

— Não se lutarmos — insistiu —. Viver não é ficar fadado a uma cama

pelo resto dos seus dias sem poder fazer nada, dependendo da ajuda de

terceiros, isso não é dignidade! — afirmou convicto das próprias palavras —.

Vocês preferem que eu fique nessas condições para sempre e infeliz do que

acabar logo com isso e descansar de dias tão sombrios?

— Não queremos o seu sofrimento, meu filho — Laura tomou a frente do

diálogo, as emoções que a cercavam eram manifestas —, mas você está sendo

egoísta — julgou-o —. Pense um pouco na nossa dor, pelo sofrimento que nós

que o amamos vamos ter que passar.

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— Então prefere que eu seja visto como um inválido para satisfazer a

felicidade de pessoas que mal viveram ao meu lado — a revolta retornava

àquele coração —. Isso é egoísmo!

— A vida é uma dádiva — a mulher prosseguiu com o pensamento que

cultivava —. Quantas pessoas não dariam tudo o que têm por mais alguns

minutos de vida? Você não está morto e nem contraiu uma enfermidade

terminal, apenas está sendo testado e com persistência poderá sair disso.

Valorize o que tem!

— De que me adianta a vida se não poderei vivê-la? — indagou com

lágrimas nos olhos instaurando o prolongado silêncio naquele quarto de

hospital —. Como pode ter certeza de que as tais pessoas querem mesmo viver?

Por certo estão rendidas aos egoísmos daqueles que as cercam e por isso

insistem a passar por cada segundo de dor!

— Você não pode pensar assim! — os sentimentos intensos causaram o

descontrole emocional em Laura, que não conteve o máximo volume da voz —.

Você não tem o direito de morrer! Não existe isso! — o desespero em perder um

filho enquanto assistiria era grande em seu peito, ela tinha esperanças, sua

crença a fazia acreditar que as coisas se resolveriam.

— Calma — Eduardo a envolveu em um abraço, queria dizer que tudo

ficaria bem independente do que acontecesse.

— Eu não quero perdê-lo — desabafou —. Não quero passar pela dor de

ver um filho partir e não poder fazer nada! — suas palavras eram comoventes,

eram de uma mãe angustiada que dera a luz a quem mais queria e que não

aceitaria uma situação como aquela tão facilmente.

— Mãe, eu sei que sente grande amor por mim, durante todos esses anos

foi quem esteve mais próxima e por sua causa não me perdi na própria cabeça

— o rapaz declarou sincero —, mas entenda que agora não há nada que possa

ser feito, eu não quero passar o resto dos meus dias vendo as pessoas indo e

vindo, contentes e alegres, enquanto eu apenas terei que me contentar em

assisti-las — tentou se justificar —. Já passei por desprezo, por solidão e já me

julguei uma vergonha, nada disso me deu vontade de desistir, mas agora não

há nada que possamos fazer, prove o seu amor de mãe me ajudando a realizar o

meu desejo — a sugestão era desafiadora.

— Qual a mãe que provaria o seu amor entregando o próprio filho à

morte? — olhou indignada para o jovem de vinte e cinco anos —. Vou provar o

meu amor lutando contra essa loucura! — estava inflexível —. Apenas Deus dá

a vida, está em Suas mãos o direito de tirá-la, não nas nossas.

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— Agora está querendo dizer que Deus quer ver o meu sofrimento? —

contra-atracou —. Está certa que Ele se alegra em ver o sofrimento dos homens,

a dor das pessoas?

— Ele desafia, mas ensina a vencer o desafio!

— Alienada — proferiu as palavras como um insulto —. Sua crença no

que não existe a cega no próprio egoísmo — declarou acidamente.

Laura preferiu o silêncio. Cria no que cria, nada e nem ninguém mudaria

isso.

Eliseu também não esperava passar por isso, depois que alcançou o

perdão do filho tudo o que menos queria era perdê-lo, seu desejo era a partir

daqueles dias viver o que não viveu, usufruir da dádiva que é ser pai.

Aproximando-se de Guto e unindo as mãos sugeriu ternamente:

— Por que não tenta? Os médicos disseram que com o tratamento

adequado seus movimentos poderão voltar, a paralisia possui algumas chances

de cura — embora mínimas as chances realmente existiam, para que se

concretizassem precisariam do esforço incansável do paciente –. Eu prometo

que se nada adiantar irei ajudá-lo no seu desejo — sua decisão fora polêmica.

— Como pode fazer isso? — Laura não pôde acreditar —. Como pode ser

tão desumano?

— Desumano é não aceitar a escolha do outro — sua posição naquele

assunto estava claro —. Antes de desistirmos precisamos tentar, não quero que

ele se engane e parta desse mundo perdendo a chance de viver o que poderia —

contudo também possuía fé —. Deus não quer o sacrifício, Ele ama o esforçado,

aqueles que se dedicam em alcançar o milagre — justificou o pensamento —.

Guto, você aceita tentar?

Não era uma simples proposta, era uma promessa.

— Eu aceito — encontrou segurança no pai —. Também prometo me

esforçar — seu anseio era em viver dignamente —, contudo quero ser feliz.

— E você vai conseguir — contente pela decisão do irmão Gabriela se

aproximou do rapaz a fim de encorajá-lo —. Vivi anos submersos em uma

escuridão, também pensei em desistir, também fraquejei nas minhas

esperanças, mas eu sentia uma vontade tão grande em viver, em passar pelas

experiências incríveis que podemos sentir nesse mundo e por isso me dediquei

ao máximo em vencer minhas próprias limitações — acariciou a testa do irmão

—. Hoje estou aqui, contemplando a luz do mundo e eu sei que você pode sair

dessa se também acreditar.

Era esse o segredo. Guto precisava acreditar.

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Ninguém pode ser obrigado a viver infeliz pelo resto da vida, mas tem por

obrigação lutar por mudar isso, aplicar esforços o máximo que puder, acreditar

na própria capacidade. Ninguém deve desistir sem antes tentar, mas tentar de

verdade, pedir ajuda se necessário, não fingir que tentou apenas para justificar

os próprios atos.

A vida é mesmo uma dádiva que deve ser usufruída com dignidade e

cada um sabe até onde pode ir.

<<>>

O espetáculo do pôr-do-sol naquela tarde de sábado teve o seu início.

Recostados sobre uma árvore grande, volumosa, com galhos vem floridos,

o casal de namorados assistia o show da natureza. Gabriela repousava a cabeça

sobre o peito de Gustavo, enquanto o jovem adolescente a envolvia com os

braços. Estavam felizes por viver o que sempre almejavam.

— Não acho que tenhamos o direito sobre a morte, mas quando não se

tem o que fazer e a dor ou o desespero são as únicas companhias acredito que a

única maneira de descansar seja partindo — o Romântico Anônimo deu sua

opinião —. Até o último segundo um milagre pode acontecer, depende de

muita coisa.

— Eu não sei o que pensar — a Adolescente Apaixonada refletiu —.

Acredito que tudo tenha um porquê, tudo tem uma explicação e só quem passa

por aquilo pode descobrir a razão... Não quero que o meu irmão sofra, mas

também não quero que desista.

— A vida é mesmo uma incógnita — encarou o sol avermelhado —, nunca

conseguimos as verdadeiras respostas.

Aproveitando a companhia almejada um do outro o casal deixou que

apenas o som do vento nas folhas das árvores marcasse sua presença. Eles não

precisavam de um diálogo duradouro para que se contentassem, para eles o

importante era estarem juntos, isso porque as almas se encontravam.

— Estava pensando em uma coisa — Gustavo quebrou o silêncio

aconchegante —, demoramos tanto para que acontecesse o inevitável, qual seria

a razão?

— Algumas coisas dependem de tempo — a garota dos olhos azuis

declarou seu pensamento —. Com o tempo fomos nos envolvendo, conhecemo-

nos melhor, quando vimos já não tinha sentido estarmos tão distantes ao

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mesmo tempo que tão próximos — encarou os olhos castanhos que possuíam

um insistente brilho —. Foi melhor assim.

— Desde quando você gostou de mim? — queria muito descobrir.

— Desde que você me ajudou no primeiro dia de aula — respondeu

nostálgica —. Com o passar das semanas minha certeza apenas crescia, eu não

gostava de você, eu o amava — declarou envergonhada —, só não sei o porquê.

— Porque sou irresistível — gabou-se em tom brincalhão —. Sempre vi em

você o que jamais vi em nenhuma outra garota — acariciou o sereno rosto

afetuosamente —. É muito bonita fisicamente, ninguém pode negar, mas a sua

alma exibe o quão bela é sem que você saiba — encarou o envolvente olhar –.

Seus olhos parecem um abrigo, um abrigo de onde nunca quero sair — suas

declarações românticas eram dadas constantemente, finalmente pôde exibir

tudo aquilo que sentia, mas que sempre esteve em oculto no seu coração.

— Também encontrei em você o meu porto seguro — sorriu apaixonada –.

Nunca havia me apaixonada e nunca imaginei que me apaixonaria, mas

aprendi que a incógnita vida é também uma caixinha de surpresas, quando eu

menos esperava ela me trouxe você, o garoto dos meus sonhos.

Um beijo tranquilo foi motivado por aquelas palavras.

Viviam o amor verdadeiro.

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Capítulo 53

Aquele domingo de outono estava agradável, o clima favorecia aos grupos

de amigos que quisessem aproveitar o descanso ao ar livre, também era

favorável ao encontro de casais no famoso Parque da Cidade da Paz, onde a

tranquilidade era a maior atração.

Desde que conhecera Daniela, Rui não tirava a mulher da cabeça, estava

encantando por tanta formosura, elegância e simpatia, seu maior desejo era que

o dia de folga chegasse logo e ele pudesse encarar os deslumbrantes olhos

azuis. Não sabia o porquê daqueles sentimentos juvenis, apenas sabia que era

maravilhoso senti-los novamente depois de tanto tempo. Sentado em um dos

aconchegantes bancos aguardava pacientemente a chegada de sua companhia.

A escritora sentia o mesmo, não conseguia acreditar que o turbilhão de

sentimentos que ela fazia seus personagens sentirem agora voltava contra si,

passou os dias que se sucederam ao encontro daquele homem galanteador

pensando em como driblar os próprios desejos, em como mesclar os

pensamentos adolescentes, por mais que tentasse não conseguia. Ao receber a

ligação de Rui convidando-a para um dia no parque agiu feita uma garota

apaixonada, primeiro disse que não tinha certeza se estaria desocupada, puro

charme, bastou que seu admirador insistisse um pouco mais para que

confirmasse a presença. Agora estava ali, a alguns passos do homem de óculos

escuros, cabelos grisalhos e que vestia uma camiseta do Iron Maiden, sentiu-se

nostálgica como se voltasse aos tempos da juventude.

— Cheguei — apresentou-se animada, sentando-se ao lado do empresário.

— Mulheres e a demora para se arrumar — descontraiu o clima, mas o

beijo que deu no rosto da nova amiga foi mais que um gesto de cumprimento a

quem visse —. Acertou direitinho — referia-se ao trajeto.

— Não foi tão difícil, apenas me perdi três vezes, nada de mais — zombou

da própria dificuldade —. Então esse é o comentado parque? — observou ao

redor respirando o ar puro, notando as pessoas alegres, sentindo a paz daquele

lugar mágico —. É mesmo fonte de inspiração — sorriu surpreendida.

— Eu sabia que iria gostar — entusiasmada era ainda mais linda, pensou

—. Artistas costumam ser pessoas mais sensitivas, sempre se envolvem com o

exterior, esse lugar combina com o seu perfil.

— Gostei do artista — agradeceu ao elogio em tom humorado —. A

propósito, qual o seu trabalho?

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— Nada muito complexo — tirou os óculos revelando os olhos castanhos

que refletidos ao sol se tornavam mais claros, algo que sua ouvinte não deixou

escapar da aguçada percepção —. Aquele supermercado onde nos encontramos

— “bendito supermercado” — é meu.

— Quer dizer que o meu primeiro amigo nessa cidade é um empresário?

— questionou divertida —. As pessoas precisam ver isso — aproximou-se mais

do companheiro —, ficarei famosa! — não era atiração, a escritora apenas era

extrovertida, mas gostou da aproximação, pôde sentir o penetrante perfume

Biografia.

Rui, por sua vez, foi embriagado pela colônia de maracujá, se antes

pensava estar apaixonado pela nova amiga agora tinha certeza.

— Fale um pouco sobre você — sugeriu exibindo seu olhar quarenta e

quatro —; já que seremos amigos precisamos nos conhecer.

— Está certo — sendo observada com aquele olhar ela seria capaz de topar

qualquer coisa —. Venho de um passado difícil — refletiu sobre os dias

distantes —, mas não me deixei abater e continuei a buscar pelos meus sonhos.

Sempre escrevi e queria me transformar em uma escritora reconhecida, queria

expor as minhas ideias para o mundo e consegui — orgulhava-se daquilo, era a

conquista de um desejo infantil —. Hoje tenho livros publicados, fãs que

mergulham em minhas palavras, posso dizer que a minha vida é quase perfeita.

— Quase perfeita? — interessou-se.

— Ainda procuro por um grande amor e por uma realização que não pude

concretizar nos anos que se passaram — tal realização era algo importante que

talvez jamais acontecesse —. Mas e o Rui? — mudou o assunto —. Quem é ele?

— Ele é um homem solitário — suspirou cansado, a história que deveria

contar era um tanto exaustiva —. Apaixonei-me pela pessoa errada, casamos,

tivemos uma filha e então ela fugiu. Recentemente retornou às nossas vidas,

causou grandes reviravoltas — pausou a fala, ainda sentia algo por Helena,

afinal fora o seu primeiro grande amor —, mas agora descansa em paz.

— Eu sinto muito — percebeu a aflição em seu amigo —. Como a sua filha

está? — uma de suas qualidades era sempre se colocar no lugar das outras

pessoas, não demorou muito para que refletisse sobre a adolescente.

— Está melhor — sorriu contido —. Ainda tentamos entender a surpresa

das coisas, no fundo sabemos que foi melhor assim, aproximamo-nos mais de

uma forma que nunca aconteceu.

— Que bom que pensam assim, certas coisas acontecessem para que a

nossa casa se arrume — refletiu sabiamente.

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Percebendo que Daniela se condoeu por sua situação, Rui viu que poderia

confiar nela, também poderia se preocupar consigo.

— Quanto ao seu passado difícil quando quiser falar sobre isso estarei

atento, pode desabafar.

— Tudo bem — finalmente encontrara alguém que também se preocupava

com os problemas alheios, mais uma qualidade que a atraiu —. E, então, vamos

ficar apenas sentados mesmo? — levantou-se como uma criança enérgica —.

Quero muito conhecer cada detalhe desse paraíso! — abriu os braços, tamanho

era o entusiasmo, encantando aquele que a observava.

Recolocando os óculos escuros, escondendo as mãos nos bolsos da calça

jeans, formou um ângulo de quarenta e cinco graus com o cotovelo.

— Vamos?

A escritora entendeu o gesto, passou o braço pelo espaço e juntos, homem

e mulher, fizeram-se adolescentes e foram conhecer a beleza do Parque da

Cidade da Paz.

<<>>

Júlia ainda sofria com tudo o que acontecera, ainda se sentia culpada pela

forma como a mãe partira, ainda se culpava por não ter perdoado enquanto

tivera tempo.

Sem que ninguém soubesse a garota dos olhos verdes passou pela

floricultura, comprou um exuberante arranjo de rosas e se dirigiu ao calmo

cemitério. O lugar era limpo, livre de correrias ou estresses, as muitas árvores

garantiam sombras frias e o silêncio deixava que as almas dos viventes soassem

seus sentimentos.

Repousando as flores sobre o túmulo da mãe, a que sempre quis conhecer,

mas que pela forma como as coisas aconteceram rejeitou com todas as forças, a

jovem adolescente observava a foto emoldurada que retratava uma mulher

feliz, alegre, que escondia atrás do sorriso contente uma eterna tristeza, uma

insistente perturbação.

Deixou os sentimentos se manifestarem através das janelas, passeava a

mão pela sepultura como se acariciasse aquela mulher, jurava que se soubesse

da verdade teria agido de uma forma melhor, teria sido mais compreensiva,

ajudaria a mãe a se livrar daquela prisão. Com tanto remorso agora entendia a

importância de não julgar as pessoas sem antes ouvi-las, entendê-las, sem antes

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lhes dar a chance de explicar os próprios motivos e desabafar os sentimentos; o

julgamento mal feito pode empurrar alguém para o abismo.

Mas agora já não adiantava mais, Helena não podia receber aqueles

presentes e nem ouvir o arrependimento, o pedido por perdão; tais atitudes

deveriam ser feitas enquanto ela estava em vida, não agora que a matéria

retornava ao pó. Talvez uma chance apenas fosse tudo o que Júlia quisesse,

almejasse, mas sabia que era impossível e teria que viver com uma for que não

merecia, mas que nascia em seu coração.

— Olá — uma voz soou, era tranquila, amigável.

— Oi — levou o olhar para a direção do som, não reconheceu aquela que

lhe falava —. Conhecemo-nos?

— Talvez eu a conheça — respondeu simpática —. Ayshla — estendeu a

mão.

— Júlia — aceitou o cumprimento —. Posso ajudar em alguma coisa?

— Na verdade sim, você conhece duas pessoas que estou tentando

contato, mas que até agora não consegui — olhou para a sepultura —. Perdoe-

me por estar falando disso em um momento tão inoportuno, mas quando a vi

não pude deixar a oportunidade passar.

— Tudo bem... Quais seriam as duas pessoas?

— Gustavo e Isaque.

Ayshla era a recruta.

<<>>

Realmente apaixonada.

Sentia-se leve.

Sentia-se amada.

Sentia-se alegre.

Sentia-se realizada.

Gabriela finalmente vivia aquilo que sempre quis. Enxergava, visualizava

o colorido do mundo e sentia o amor, que tornava os seus dias ainda melhores.

Se antes não conseguia tirar Gustavo da mente, agora já se acostumava com a

ideia de a cada segundo estar pensando no namorado, imaginando o futuro,

sonhando com a vida que poderiam construir, com a família que poderiam ter.

Esforçando-se no caderno de caligrafia a Adolescente Apaixonada ouviu o

tilintar da campainha, como seus paus estavam com Guto ela foi atender e se

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surpreendeu com o entregador que tinha em mãos um buquê de variados tipos

de flores, mas não era um buquê qualquer, era maior que o comum.

— Realmente te amam — comentou cedendo o presente.

— Concordo — riu divertida —. Só acho um pouco de exagero um buquê

tão grande.

— Pense que ele quis expressar o tamanho do amor — acostumado com

aqueles romantismos o rapaz sempre tinha a explicação para as surpresas —.

Isso também é para você — entregou um cartão —. Parabéns por tudo isso,

acontece apenas com pessoas que merecem.

Ao se despedir do jovem entregador, Gabriela avaliou o adocicado

perfume que exalava das vívidas flores, que esbanjavam beleza e delicadeza.

Curiosa, abriu o cartão e com certo esforço leu as palavras escritas em letras

cursivas.

Eu te amo

Romântico Anônimo

Simples, ao mesmo tempo em que esplêndido.

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Capítulo 54

Júlia, sempre com um pé atrás ante qualquer desconhecido, precisava

averiguar aquele pedido, precisava entender sua real intenção.

— Como os conhece? — seu semblante era coberto por desconfiança.

— Quem não os conhece? — Ayshla sorriu simpática, queria e precisava

conquistar a confiança da garota dos olhos verdes —. Sou produtora de TV e

estamos atrás de dois amigos que posam estrelas o nosso comercial — inventou

aquela história —. Após dias de pesquisa descobri que eles possuem o perfil

ideal para os personagens, é uma oportunidade para que além de

reconhecimento eles comecem a ganhar dinheiro, não acha?

A proposta da coreana era mesmo tentadora, seria algo muito bom para a

vida dos garotos que possuíam grandes sonhos para o futuro profissional e

Júlia sabia disso, mas algo dentro de si não a convencia sobre a veracidade

daquelas palavras, precisava de certezas.

— Pode estar mentindo e não passar de uma golpista — foi sincera e

direta, seu humor naquele dia não era o dos melhores —. Preciso de garantias.

Vítima de tráfico humano quando ainda menor, Ayshla fora trazida de

Seoul para o Brasil, onde sem decisões sobre a própria vida se tornou

propriedade nas mãos de criminosos perigosos que se escondiam na Cidade da

Paz. Não muito alta possuía cabelos longos e pretos, os olhos escuros

transmitiam certo cansaço, cansaço oriundo de uma vida criminosa que ela não

desejava, mas que se quisesse continuar respirando deveria vivê-la. Esperta,

tirou do bolso o crachá onde estavam inscritos os seus dados pessoais, sua

profissão e o nome da emissora para a qual trabalhava, tal crachá não passava

de arma nas mãos de vigaristas.

— Preciso do seu telefone — Júlia cedeu —. Vou conversar com eles e

assim que estiverem disponíveis podemos nos encontrar.

— Ótimo — estendeu o cartão de visitas —. Mas os apresse, essa é uma

oportunidade difícil de aparecer e fácil em perder. Sei que namora um deles,

quem sabe apareça algo para você? — motivou um pouco mais.

— É... Quem sabe — convenceu-se, ser famosa era um dos seus sonhos,

mas que naquelas circunstâncias poderia se tornar um grande pesadelo.

Irradiante. Essa era a definição para o olhar distraído de Rui que garantia

ao seu semblante uma alegria descomunal. Chegou em casa quando o sol já ia

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embora, seu sorriso esplêndido mostrava o quão agradável fora aquela tarde.

Júlia nunca o vira daquele jeito, nunca o notara tão feliz, não demorou muito

para que o questionasse.

— Ganhou na loteria? — possuía um tom divertido.

— Quase isso, ou melhor que isso — o empresário se aproximou da filha

adolescente se sentando ao seu lado no confortável e espaçoso sofá —.

Precisamos conversar.

Finalmente, depois de tantos anos, o homem que já tinha os quarenta anos

de idade encontrara alguém especial que lhe devolvesse a crença no amor, que

o fizesse ter esperança sobre tal sentimento. Porém, tudo o que menos queria

era afastar a filha novamente, era tornar a machucá-la, era causar feridas que

perdurassem o tempo; precisava saber qual seria a opinião da filha, naquela

nova fase de união queria tomar as próprias decisões usando o consenso,

agradando a todos.

Abaixando o volume da TV que transmitia um filme de faroeste, Júlia se

sentou e virou sua atenção ao pai.

— Está apaixonado? — tornou o discurso que viria em um semblante de

espanto.

— Como sabe?

— Seus olhos — sorriu cordial —. Chegou aqui feito um garoto babão, só

poderia ser essa a explicação.

— Realmente é — sua voz transmitia alguma preocupação, certa dúvida

—. Mas o que você acha disso?

— Quando vamos jantar juntos? — as coisas estavam mais fáceis do que se

imaginava.

— É sério?

— Claro — respondeu amigável —. Vivemos anos de sombras, não foram

dias, foram anos, praticamente uma vida e nunca fomos felizes de fato —

precisou interromper a fala quando se lembrou da mãe —. Pelo que pude

descobrir sobre o passado você era romântico, acreditava que viveria uma

história perfeita com aquela que muito amava, mas tudo terminou em decepção

— juntou as mãos em um gesto de carinho, de compreensão e afeição —.

Nunca o vi se envolver com alguém sentimentalmente, antes sempre viveu

afogado nas próprias amarguras — encarou os olhos castanhos com ternura,

cumplicidade —. Fui agraciada pelo amor, conheci esse sentimento que me

transformou, quero muito que o viva também, você merece passar o resto dos

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anos ao lado de alguém que ame e que também sinta o mesmo — abraçou-o

com envolvimento —. É o que desejo.

O homem que a algum tempo atrás era pura revolta se emocionou ao

enxergar na filha uma grande amiga, que o apoiaria em atitudes importantes,

que estaria ao seu lado nos momentos cruciais.

— Embora não pareça, por causa do meu jeito durão, eu a amo muito —

colocou sentimento naquele abraço —. Como sempre amei — por fim revelou.

Ouvir aquilo encheu a garota dos olhos verdes de alegria, a emoção

resplandecia nas suaves lágrimas.

<<>>

A segunda-feira começava.

Sentado na mureta a frente do portão do Colégio Inova, Gustavo esperava

ansiosamente pela chegada da namorada, precisava vê-la, precisava ouvir a sua

voz. Poucos minutos se passaram até que Gabriela desceu do carro e, exibindo

aquele sorriso encantador, aproximou-se do Romântico Anônimo.

Um beijo de bom dia.

— Amei as flores — de mãos dadas começaram a caminhada pelos

corredores da escola —, foi bem criativo em levar a floricultura para minha casa

— estava de bom humor naquela manhã.

— Se não for para impactar nem faço — deixou as infantis covinhas à

mostra —. Passou bem esse domingo?

— Poderia ter sido melhor.

— Poderia?

— Você não estava comigo — declarou amavelmente.

Cada vez mais apaixonado. Conforme os dias se passavam e aquela

relação acontecia, o futuro pediatra se apaixonava mais e mais pela garota dos

olhos azuis, de uma forma intensa e inexplicável.

— Também senti a sua falta — envolveu o pescoço da Adolescente

Apaixonada com um dos braços mantendo o lento ritmo da caminhada —. Por

um lado é bom quando não nos falamos — encarou o olhar que remetia ao agito

do mar —, vamos o quão importante somos um para o outro.

— E especial também — levou as mãos ao rosto que apresentava os

primeiros fios de barba —. Mais do que senti a sua falta, senti uma vontade

enorme de falar com você como se nunca mais fôssemos nos ver — aquele

sentimento estranho a perturbou durante a noite —. Confesso que senti medo.

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Talvez fosse “coisa de menina” ou simplesmente uma forma de Gabriela

declarar os próprios sentimentos, Gustavo não se preocupou com aquilo,

apenas se importou em confortar aquele que muito amava.

— O importante é que estamos juntos e mesmo distantes um do outro

estaremos unidos pelo laço que nos acompanha — alisou os fios loiros e beijou

a testa descoberta —, eu prometo.

O sinal tocou.

A aula teve o seu início.

O primeiro bloco era do professor Gilmar, o de matemática, que pela

forma sempre extrovertida de encaminhar as aulas garantia o ótimo

desempenho de seus alunos. Mas naquele dia algo estava diferente. O professor

brincalhão estava sério, entrou calado, apagou a lousa ainda calado e se sentou

em sua cadeira mantendo o descomunal silêncio.

— Bom dia para o senhor também — Isaque sempre tivera liberdade com

o professor e achou que aquilo fosse mais uma de suas brincadeiras, apenas

encenação, mas não era bem assim.

O olhar gélido focado na caderneta dos alunos se levantou lentamente

encarando cada pessoa naquela sala, não conseguindo reconhecer de onde

surgira aquela frase precisou perguntar:

— Quem é o engraçadinho? — a voz soou mais grave que o normal, mais

firme, mais misteriosa.

— Quem mais seria? — Gustavo perguntou debochado como se a resposta

fosse óbvia, poderia ser para ele, mas não para o professor Gilmar.

— Se estou perguntando é porque não sei — senso de humor não existia

naquele homem.

— Só poderia ter sido eu — o futuro engenheiro ergueu as mãos —, seu

aluno mais querido – tentou provocar a descontração de Gilmar, mas não

funcionou.

— Já entendi — o professor tirou os óculos de grau e se levantou

calmamente, caminhando até Isaque vestiu um sorriso cínico, parando a sua

frente o indagou: — O que sou seu?

— Professor.

— E o que você é meu?

— Aluno.

— Ótimo — bufou irritado —. Agora já sabe qual é o seu limite.

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Enquanto Gilmar voltava para sua mesa, Gustavo virou para trás sem

entender nada.

— O que foi isso?

— Eu não sei — espantado, o mais velho respondeu.

— Se antes eu era o palhaço da turma agora sou o carrasco — colocou os

óculos —, não queiram me ter como inimigo.

Nada fazia sentido.

<<>>

Olhe para a sua vida, para o que você é e para aquilo que tem. De uma

hora para outra descobre que esse não é de fato você, que a sua história não

passa de ilusão, que a verdade ao seu respeito foi ocultada de seus olhos. Como

se sentiria?

Gabriela, embora não deixasse resplandecer, possuía pensamentos cruéis

sobre a sua existência, sobre a sua história. Amava sua família, sabia que o que

existia entre eles era verdadeiro, mas ainda assim a vontade de entender o

próprio “eu” a incomodava.

Chegou da escola, almoçou em silêncio e foi para o seu quarto, atitude que

despertou a preocupação de Laura.

— Aconteceu alguma coisa? — entrou no quarto que tinha a porta

entreaberta.

— Nada — respondeu desconsolada.

— Conheço a minha filha e sei que algo a perturba — sentou-se ao lado da

jovem adolescente acariciando-a —. Pode confiar em mim, sou sua mãe.

— Em qual lugar me encontrou?

Laura não esperava por aquilo.

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Capítulo 55

A enfermeira jamais esperou por aquele dia, nunca imaginou que a filha

fosse ter curiosidade sobre o passado, tinha medo do que poderia ser

descoberto já que nem ela conhecia a verdadeira história. Um dos motivos pelo

qual escondeu o ato da adoção era aquele, não queria perder a garota, amava-a

sobre qualquer coisa, a ligação entre elas de fato não era sanguíneo, o que as

envolvia era mais forte, eram nobres e fortes sentimentos, tal laço Laura não

deixaria que se rompesse.

— Por que quer saber? — questionou preocupada —. Por acaso não somos

mais suficientes para você? — suas palavras soaram ácidas.

— Claro que não é isso — a garota dos olhos azuis se defendeu ofendida

—. Eu os amo como as pessoas mais importantes na minha vida, independente

de como tudo aconteceu vocês são a minha família, a minha verdadeira família!

— Então por que isso agora? Qual a razão dessa vontade? — a enfermeira

procurou entender embora que dentro de si prometia não revelar uma palavra

que desse pistas.

— Todos conhecem a própria história, todos sabem como surgiram e como

a vida aconteceu, mas eu não — os olhos abatidos lutavam contra as lágrimas

de dúvidas —. Sempre acreditei em algo que não era verdade, vivi uma ilusão,

mas não culpo ninguém por isso, sei que foi em minha defesa — limpou a

discreta gota d’água que escorria pelo rosto delicado —. Porém tenho o direito

de ao menos tentar conhecer a minha história, compreender os motivos do meu

passado, eu quero me conhecer.

A garota tinha razão, era a sua vida, era um direito entender como as

coisas aconteceram, ninguém poderia privá-la de algo que apenas ela tinha o

poder de manejar.

— Tudo bem, se é esse o seu desejo — embora que contra a própria

vontade Laura cedeu ao pedido —. Você estava no orfanato da cidade onde

morávamos, por certo foi lá que as coisas aconteceram — levantou-se da cama

—. Não queira entendê-las, os machucados poderão causar feridas incuráveis.

Pronta para partir a mulher foi surpreendida por um forte abraço da

jovem adolescente, que declarou aquilo que sentia com todo o coração.

— Amo vocês e sempre amarei.

— Eu sei... — e no fundo entendia os motivos de Gabriela.

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<<>>

A terça-feira clareou.

No hospital da Cidade da Paz os médicos se preparavam para uma

importante cirurgia que aconteceria às sete horas. A tensão era notável, a

seriedade do problema era um tanto angustiante.

— Se tudo correr bem e conseguirmos êxito daremos início às fisioterapias

— o médico informou no tom profissional.

— Quais são as chances de que isso aconteça? — Eliseu o indagou.

— As melhores possíveis — sorriu cordial —. Em poucos minutos

levaremos o paciente, sejam fortes e atraiam bons pensamentos.

Com o acidente Guto sofreu uma fratura no pescoço, que teve como

consequência a paralisia dos demais membros, porém com a cirurgia que tinha

por objetivo a correção do problema seus movimentos voltariam

gradativamente, com a ajuda dos tratamentos em poucos meses tudo estaria

normalizado. Era o que esperavam, já que a cirurgia poderia ser um fiasco e

irreversível.

— Preparado? — Laura se aproximou do filho, seu rosto transmitia

segurança, confiança, porém o seu coração de mãe agonizava angustiado.

— Ainda acho eu o melhor seria desistir de tudo isso — respondeu

desconsolado —. Se tudo der errado a sentença será apenas uma, ficar para

sempre em cima de uma cama dependente da ajuda dos outros.

— Se os tais “outros” a que se refere forem a sua família pode ter certeza

de que eles o ajudarão com o coração aberto — a mulher tentou confortá-lo.

— Sabemos que não será preciso passar por esse sacrifício — afirmou

convicto —. Meu pai me fez uma promessa, não deixará que eu sofre pelo resto

dos meus dias.

Por conta daquele assunto marido e mulher não estava, em uma boa fase.

Se por um lado a enfermeira julgava aquilo como uma loucura descabível, o

professor de português não queria que o rapaz vivesse infeliz, já que ao longo

daqueles vinte e cinco anos o filho não teve motivos para sorrir.

— Sei da minha promessa e também sei da sua — Eliseu colocou a mão

sobre a de Guto em uma atitude carinhosa, afetuosa —. Quero ver o seu esforço,

meu filho, quero que tente ao máximo continuar com a gente.

— Podemos ir? — os enfermeiros entraram.

— Agora mesmo — o sorridente jovem não se mostrava preocupado,

antes tinha a animação como companhia.

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— Como pôde reafirmar sua promessa? Faz ideia da gravidade que isso

representa? — Laura proferiu suas palavras de revolta —. Que espécie de pai é

você que entrega o próprio filho à morte?

— Ao invés de me julgar por que não tenta me entender? — Eliseu estava

farto daquilo, ninguém parecia compreendê-lo embora as respostas para a sua

decisão fossem muito claras —. Vivo com uma culpa me perseguindo aonde

quer que eu vá, o quer que eu faça — desabafou —. Tratei esse garoto como se

fosse uma aberração, o culpei por todos os problemas que aconteceram e fiz

questão de deixar isso claro — o choro de arrependimento o tomou —. Fui um

monstro em todos esses anos, errei mais do que acertei e se agora terei a chance

de fazê-lo feliz, de atender ao seu pedido, de poupar o seu sofrimento eu o

farei! — concluiu certo em sua decisão.

A enfermeira apenas abraçou o marido, não sabia do tamanho da sua

angústia, mas estava certa em dividir aquele peso e mudar os rumos do futuro.

A operação durou algumas horas amargas, não foi tão fácil de se realizar e

em alguns momentos a vida do paciente provou do seu limite. Mas agora Guto

acordava no centro cirúrgico, ao seu redor médicos e enfermeiros ansiosos por

aquele momento, esperançosos em ouvir alguma palavra.

— Consegue nos ouvir? — o médico tomou a frente.

— Sim — a resposta foi dada em sussurro.

— Por que está chorando? — notou as lágrimas.

— Sinto dor, muita dor...

Era um bom sinal.

<<>>

Enquanto os nervos se afloravam no hospital Gabriela foi à escola, porém

sua intenção não era estudar.

— Aceita fazer uma pequena viagem? — sugeriu ao namorado.

— Aonde? — perguntou curioso.

— Ao lado da cidade vizinha.

— E vamos matar a aula?

— É por uma boa causa.

— Claro que sim...

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Companheiros um do outro o jovem casal se dirigiu à rodoviária, pegou o

ônibus intermunicipal e deram início ao passeio. Percebendo que a namorada

mantinha um estranho silêncio Gustavo decidiu descobrir a razão.

— Aconteceu alguma coisa?

— Posso confiar em você?

— Estou me entregando às suas mãos indo para sabe-se lá onde — exerceu

o “draminha” básico —, se eu confio em você pode confiar em mim.

Sorrindo, a garota dos olhos azuis repousou a cabeça no ombro do

Romântico Anônimo querendo encontrar apoio, proteção e também

compreensão.

— Quero descobrir quem é a minha mãe, quero conhecer a minha própria

história, mas não quero que conte a ninguém, não quero que os meus pais

pensem besteira, esse é apenas um desejo que não mudará o que é realidade.

— Entendo o seu lado, também faria isso, sempre queremos conhecer o

nosso passado, descobrir como viemos ao mundo e o que motivou isso —

envolveu a garota com um dos braços —, mas você estará preparada para o que

pode descobrir?

— Estará ao meu lado quando eu precisar?

— Como sempre estive.

— Então estarei preparada.

Paraisópolis ficava a poucos quilômetros da Cidade da Paz, era um

município maior, com cem mil habitantes, possuía um ambiente agradável,

pessoas bonitas, simpáticas e respeitosas.

Buscando todas as informações na internet Gabriela descobriu o endereço

do único orfanato daquela cidade, após pedir por algumas instruções chegou ao

destino.

— Tem certeza disso? — parados em frente ao lugar Gustavo percebeu a

apreensão da garota.

— Não sei... — a ansiedade gerava medo.

— Não precisa fazer se não quiser. Tem uma família maravilhosa que a

ama, esse é apenas um capítulo distante na história, que não precisa ser

remexido.

Pensando um pouco mais a Adolescente Apaixonada tomou sua decisão.

— Alguns capítulos iniciais interferem nos finais...

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Era uma senhora de idade avançada, usava óculos de lentes grossas, um

coque na cabeça e batalhava contra o teclado do computador, focada em

preencher os tantos formulários. Ao perceber a presença dos dois adolescentes

interrompeu o seu trabalho, simpaticamente obedeceu ao protocolo.

— No que posso ajudá-los?

Sem saber ao certo como começar a garota dos olhos azuis encarou o

namorado, tentando encontrar nele a solução. Esperto, o futuro pediatra

respondeu:

— Precisamos de informações sobre uma criança adotada há dezesseis

anos mais ou menos.

— Não sei se posso atendê-los — a senhora franziu a testa.

— A tal criança sou eu — a jovem adolescente tomou coragem, tirando os

documentos da mochila se apresentou: — Gabriela Campos, fui adotada ainda

pequena.

Coincidência do destino ou coisas da vida, aquela senhora foi quem

acolheu a indefesa Gabriela e agora contemplava uma linda garota.

— O que precisa saber?

— Quem é a minha mãe? Quem sou eu?

A sábia mulher notou o anseio da jovem garota por conhecer a própria

origem. Vasculhou as informações do computador. Imprimiu alguns papéis.

Grampeou-os. Guardou em um envelope.

— Aqui está, minha menina — entregou os documentos, sabia que estava

se arriscando, mas sentiu que precisava ajudar de alguma forma —.

Independente do que venha descobrir saiba que é uma garota especial, seu

valor é inestimável!

Aquela senhora conhecia a verdade, mas não a revelaria.

No caminho de volta para casa Gabriela tentou por diversas vezes ler os

papéis, mas algo dentro de si não deixava que aquilo acontecesse. Guardou o

envelope na mochila e recostou a cabeça no vidro do ônibus. Querendo

amenizar aquela angústia, Gustavo puxou a namorada para perto de si e,

abraçando-a, disse o que ela precisava ouvir:

— Vai ficar tudo bem...

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Capítulo 56

Enquanto Gabriela e Gustavo corriam atrás do passado na cidade de

Paraisópolis, Isaque e Júlia participavam das aulas no Colégio Inova, porém

algo estava fora do normal, algo afligia a garota dos olhos verdes e a calava,

causava o seu silêncio. O futuro engenheiro químico, sempre perceptivo, não se

deixou enganar, tinha certeza de que a namorada não estava bem e na hora do

intervalo decidiu que descobriria o que acontecia.

— Está tudo bem? — sentou-se no banco ao lado da adolescente.

— Sim — observou a área verde ao redor, sua resposta monossilábica fora

também quase inaudível.

Definitivamente não estava nada bem.

— Pode confiar em mim — insistiu —. Não vou julgá-la, apenas quero que

confie em mim, eu me preocupo com você.

Relutante consigo mesma entre declarar ou não o que sentia Júlia suspirou

abatida, não sabia como começar aquele desabafo, talvez estivesse fazendo um

drama desnecessário, poderia pensar que ela apenas quisesse chamar a atenção.

Porém o sentimento estranho que a apertava por dentro era verídico, não era

carência, era sério.

— É a minha mãe — conforme declarou o choro se fez presente, um choro

que por toda a manhã vinha segurando, mas que naquele momento foi mais

forte que o seu esforço em escondê-lo —. Ainda me culpo por tudo o que

aconteceu, ainda acho que se tivesse sido um pouco mais razoável ela teria a

oportunidade de se livrar das tantas opressões — procurou conforto nos

também olhos verdes do namorado —. Eu só queria uma chance para fazer

tudo diferente.

Aquilo era impossível. O passado jamais voltou e nunca voltará, o segredo

para que não nos culparmos por ele é vivermos com sabedoria o presente, é

pensarmos bem antes de tomarmos nossas decisões, escolhermos o nosso

caminho.

— Mas a culpa não é sua, já conversamos sobre isso — o garoto afirmou

juntando as mãos querendo dizer que sempre estaria ali —. As coisas

aconteceram muito depressa, a descoberta aconteceu de uma forma espantosa,

sua reação foi em legítima defesa com medo de sofrer ainda mais — enxugou as

pesadas lágrimas —. Entenda que você não tem culpa de nada.

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— Não consigo — recorreu ao abraço do fiel e bom companheiro chorando

em seu ombro —. Por mais que eu tente não consigo...

— Vamos passar por isso juntos — acariciou os longos fios loiros —, é por

isso que namoramos.

<<>>

A tarde chegava ao fim quando Guto foi levado ao quarto. Embora tivesse

passado por uma operação complicada não se deixou abater, possuía um

semblante alegre e a razão daquilo era que pela primeira vez se sentia amado

pelos pais.

— Como vai, campeão? — Eliseu espatifou a franja do primogênito —.

Pronto para mais uma?

— Deus o livre! — sempre apavorada Laura se manifestou.

— Estou bem — o rapaz respondeu —. Apenas sinto um pouco de dor,

mas vendo vocês aqui chego a me esquecer dela.

Aquele sempre foi o desejo do jovem rapaz, sempre sonhou com o dia no

qual sentiria paz estando ao lado de sua família.

— As dores são um ótimo sinal — o médico esclareceu —. Quer dizer que

a sensibilidade voltou, ou seja, os nervos sensoriais estão se comunicando com o

cérebro. Com as sessões de fisioterapia a volta dos movimentos será a próxima

conquista.

— Graças a Deus! — a mulher se alegrou com aquela notícia, para ela seus

pedidos foram atendidos e a ideia absurda de Guto já não apresentava chances

de se concretizar.

— O nosso rapaz vai precisar de se esforçar muito, o tratamento a seguir

não será tranquilo — alertou —. Mas com esses pais maravilhosos tenho certeza

de que qualquer obstáculo será ultrapassado — sorriu com simpatia —. Vou

deixá-los a sós para matarem a saudade.

Observando com atenção os pais ao seu lado Guto manteve o sorriso

aberto, sua declaração feriria os corações daqueles que a ela ouvissem.

— Obrigado por cuidarem de mim. Pensei que estaria sozinho como

sempre estive, mas fico feliz por saber que estava errado.

— Você é o nosso filho — o professor de português conteve suas emoções

—. Um pai e uma mãe jamais deixarão o filho para trás.

— O que aconteceu ao longo desses anos não foi por não gostarmos de

você ou não nos importarmos — Laura acariciou o rosto do amado rapaz —. Foi

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por muito gostarmos de você que decidimos que o melhor a se fazer era

procurar por ajuda.

— Falhamos por não nos termos feito presentes — Eliseu continuou —,

por acharmos que não poderíamos fazer nada, mas agora queremos colocar

uma pedra sobre esse passado conturbado e, se você aceitar, queremos viver

coisas incríveis daqui por diante.

— É claro que aceito —o emocionado rapaz deu sua resposta —. Quero

muito esquecer o que já foi e ser feliz ao lado das pessoas que amo.

Errar faz parte do ser humano, mas corrigir os erros é a essência do ser

humano.

<<>>

Naquela noite agradável de outono as famílias Queiroz e Ferreira

decidiram que se encontrariam em um dos luxuosos restaurantes da Cidade da

Paz, sempre que tinham algum tempo livre estavam juntos, aquela amizade

inspiradora vencia o tempo e prometia ser eterna.

Como os dois bons irmãos que eram Gustavo e Isaque se sentaram juntos,

um tanto afastados dos pais, precisavam do apoio um do outro por conta dos

tantos acontecimentos.

— Pode falar — o futuro pediatra pediu —. Depois eu falo.

— É a Júlia — seu olhar demonstrava o quão preocupado estava —.

Continua se culpando pelas coisas que aconteceram e nesses últimos dias tem

estado distante, calada. Dá para perceber que fica pensativa, mas os tais

pensamentos a machucam e eu me sinto mal por não conseguir mudar isso.

— Já tentou convencê-la de que tudo foi uma fatalidade e que qualquer

um no seu lugar teria feito o mesmo?

— Já, mas em vão. Ela está certa de que a culpa é toda sua.

— E se nós a distraíssemos? — sugeriu animado.

— Distração? — analisou em rápidos segundos —. Do jeito que estás não

sei se aceitaria.

— Vamos combinar de sair e aí tentamos diverti-la, fazer com que se

esqueça dessas preocupações e perceba que passar o resto da vida remoendo

alguma coisa que não aconteceu por sua causa é pura falta de tempo —

arquitetou o plano —. Jogue o seu charme e eu tenho certeza de que tudo dará

certo.

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— Ponto para o lorde Gustavo — reconheceu que a ideia era boa —. Mas e

você? O que iria contar?

— Sempre soube que posso confiar em você, sempre tive certeza disso,

mas agora o assunto é um pouco mais complicado — começou se justificando

—, promete que ficará apenas entre nós?

— Como sempre prometi.

— Eu disse que não contaria para ninguém, mas preciso dividir esse

problema porque quando ele estourar não saberei como agir — suspirou

pesado —. Gabriela e eu fomos para Paraisópolis hoje, onde ela foi adotada, seu

desejo é por descobrir toda a verdade sobre o passado, quer contato com a mãe.

Embora não ache uma boa ideia assegurei que sempre estarei ao seu lado, mas

não sei se fiz a coisa certa.

— Fez o que deveria fazer — Isaque, que já exibia os fios loiros ainda que

curtos, tomou uma posição rígida na cadeira —. Como seu conselheiro garanto

que tomou a atitude correta — tornou o clima pesado da preocupação em algo

mais tranquilo de suportar —. Todos temos o direito de nos conhecermos, todos

temos vontade de saber quem somos, esse é um direito dela e a sua obrigação é

cumprir com a promessa porque bem sabemos que descobertas costumam ser

turbulentas.

— Você tem razão, conselheiro — uniu as mãos em um gesto de

cumprimento.

Enquanto comiam o Romântico Anônimo teve sua mente invadida por

pensamentos acerca do futuro, um certo medo se fez presente ao seu lado,

precisava colocar para fora.

— O que será da gente nos próximos anos? — a pergunta era inesperada

—. Digo, sempre passamos por tudo juntos, sempre procuramos conselhos um

no outro, sempre nos ajudamos — explicou —. Mas cada um seguirá o seu

rumo, por certo entraremos em faculdades diferentes, não posso perder o meu

único amigo.

— Esse é o sentimental lorde Gustavo — ironizou em tom de brincadeira

—. Não pense nisso agora, mas fique sossegado, estarei no seu velório — os

planos para o futuro eram um tanto tenebrosos...

— Credo — às vezes se perguntava como conseguia ser amigo de alguém

tão direto e prático.

— É só o meu jeito de falar que estaremos sempre juntos, até o fim... —

explicou-se.

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Os medos existem, mas quando os relacionamentos são sinceros nem o

tempo, nem a distância e nem mesmo a morte os podem apagar.

<<>>

Somos constantemente testados pela vida, cercados por questionamentos

sobre nós mesmos. Quem somos? Aonde vamos? O que queremos de verdade?

Dúvidas que nos acompanham por dias, meses, anos, por toda a nossa vida.

Algumas respostas são breves em aparecer, outras apenas o tempo as pode

trazer, certo é que algum dia conheceremos a nossa razão, viveremos a nossa

missão, olharemo-nos no espelho e conseguiremos nos definir.

Desde que chegara em casa Gabriela tentava encontrar as respostas que

seu coração ansiava em receber, por mais que pensasse não chegava a lugar

algum. Não teve coragem para ler os papéis, mas conforme os minutos se

passavam a curiosidade apenas crescia.

Estava deitada. Virava de um canto para o outro em busca do sono,

invertia as posições, escondia-se embaixo do travesseiro, mas nada adiantava. O

remédio para aquela insônia estava no criado-mudo ao lado de sua cama,

porém a sensação que a Adolescente Apaixonada tinha era a de que se

colocasse as mãos sofreria alguma dor.

As horas se passavam. O sono não chegava.

Cansada de lutar contra o inevitável, sentou-se na cabeceira da cama,

ligou o abajur, pegou o envelope. Daria início à busca da sua história.

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Capítulo 57

A madrugada era escura, fria e cercada pelo som do vento forte. As

árvores dançavam descompassadamente, as flores perdiam suas folhas, a poeira

do chão cobria carros e tudo o que existisse ao ar livre; por certo o dia

amanheceria debaixo de frio e chuva.

O bairro afastado da Cidade da Paz sempre fora uma incógnita para as

autoridades, que eram curiosas por descobrir o que acontecia e, assim, colocar

as mãos nos criminosos que lá mandavam. Se nenhum ataque ofensivo fora

cometido era em nome da proteção à população, uma vez que a máfia possuía

armamentos perigosos, mas isso não queria dizer que as investigações de

possíveis infiltrados não acontecessem.

Vestido como um daqueles maus homens, encapuzado como a maioria

dos meliantes, o delegado Rubens dava início a uma importante fase da

operação: acesso ao chamado líder. Naquela noite as descobertas seriam

cruciais para que o sentimento por justiça ganhasse força.

Sentado em uma posição de honra, prestigiado com respeito, venerado

como um soberano, essas eram as condições do líder, um alguém incerto, um

alguém sem identidade, misterioso, que ninguém conhecia.

— Líder, a mercadoria já pode ser avaliada — um de seus súditos se

apresentou; seu rosto também era coberto, mas sua voz não negava que era um

homem.

— Espero que tenhamos coisas boas dessa vez — a desconfigurada voz

soou, era grave demais para ser de uma mulher ao mesmo tempo em que fugia

da lógica de ser a de um homem —. Vamos — levantou-se com autoridade —.

Quero ver o que me trouxeram.

A sala era ampla, iluminada por lâmpadas de baixa luminosidade, seu

clima possuía maldade, despertava mau estar nos homens bons, provocava nojo

no delegado Rubens.

Pessoas encapuzadas estavam enfileiradas, uma do lado da outra,

possuíam as mãos amarradas e apenas as partes íntimas escondidas por algum

tecido. Com a ordem do líder os capuzes foram tirados descobrindo os rostos

de adolescentes injustiçados pela vida, separados de suas nações por conta da

perversidade que reinava nos corações daqueles homens, vítimas do tráfico

humano, fadados a uma vida infeliz.

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— Todos na flor da idade — aquele alguém cruel avaliava cada membro

de seus corpos, averiguava qual daqueles jovens que possuíam um semblante

assustado poderia trabalhar em sua corja —. Não fiquem tão apreensivos, não

vou matá-los — seu tom de voz era insuportável —. Quem eu tenho que matar

morrerá agora!

Tiros.

Corpos caíram.

O pavor tomou o delegado Rubens, acelerou seu coração.

— É isso o que acontece com invasores, pensam que estão sendo espertos,

mas os meus homens são ainda mais — olhou ao redor focando no delegado —.

Não concorda?

— Sim, líder! — tomou postura de reverência aniquilando as

desconfianças daquele que detinha grande poder.

— Sinto muito — afastou-se dos jovens adolescentes —, mas nenhum de

vocês me impressiona — estalou os dedos como ordem para que os

encapuzassem novamente —. Vendam-nos, quero muito dinheiro!

Aquilo era o retrato da nojeira humana, Rubens não conseguia assimilar o

que vivenciara, não ficaria de braços cruzados.

— Líder — aproximou-se do superior enquanto os adolescentes eram

levados a força e os gritos de desespero o angustiavam —, peço permissão para

descarregar o dinheiro que trouxe — sabia que a quadrilha também assaltava

bancos, aquela era uma estratégia para que o seu plano funcionasse.

— Permissão concedida — respondeu simples. Vendo o suposto recruta

seguir seu caminho deu ordem aos demais homens: – Garantam a ele uma

morte prazerosa, ninguém passa despercebido por aqui.

O delegado já esperava por ataques, estava em um campo minado cujo

idealizador não possuía qualquer mente, era inteligente, esperto, que conseguia

passar por caminhos lamacentos sem se sujar e nem deixar rastros.

Caminhando pelos corredores da construção subterrânea ouviu passos

atrás de si, escondeu-se em um vão entre paredes, próximo aqueles que o

perseguiam não hesitou no ataque surpresa, derrubou um a um manipulando o

revólver. Sua atitude fora arriscada, com certeza chamaria a atenção com o

barulho, precisava correr.

— Invasores! — um dos demais meliantes gritou —. Fechem as saídas! —

ordenou enérgico.

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Romântico Anônimo

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— Não vão me derrubar — o líder esbravejou —. Delegado de merda! —

sabia com quem lidava.

Rubens, com a cabeça descoberta, suava por conta da adrenalina, parecia

ter se esquecido do trajeto que deveria fazer tamanha era a apreensão.

— Não acredito que tem um verme entre nós — a voz soou em suas

costas, se não tivesse sido rápido o suficiente ao abaixar levaria uma pancada na

cabeça com a barra de ferro.

— Precisa ser mais esperto — chutou o opressor no peito –. Ou morre –

mirou na cabeça, espirrou sangue sobre as paredes.

Mas a fuga ainda era um objetivo.

Finalmente encontrara o brilho da lua, estava a salvo.

— Se eu fosse você não suspirava aliviado — uma mão pousou sobre o seu

ombro quando estava prestes a abrir a porta do carro —, cantar vitória antes do

tempo da azar — recebeu um soco no rosto —, e azar para o delegado quer

dizer para a cidade — desviou da nova investida que estraçalhou o vidro do

automóvel.

— Quem é você? — sacou o revólver mirando no peito do líder —. E o que

faz aqui?

— Não interessa! — intimidador, a perversa criatura se viu no ar chutando

a mão do agente da polícia o fazendo perder a arma —. Acabou para você!

Golpeado na barriga cuspiu sangue, esbofeteado no rosto adquiria

hematomas, jogado sobre o pó da terra se viu vulnerável.

— Sabe qual é o mau de vocês policiais? Ficam muito dependentes da

arma e se esquecem de que a munição pode acabar e só vence quem sabe lutar

— riu sacando o próprio armamento —. Descanse em paz!

Ainda que praticamente entregue às atrocidades de um alguém infeliz,

Rubens fez o criminoso perder o revólver chutando seu pulso, o salto o colocou

em pé e a agilidade lhe permitiu que engravatasse o meliante.

— Já o mal de vocês, burros bandidos, é acreditar na lerdeza dos policiais

— colocou a mão no capuz —. Vamos descobrir quem é o covarde!

Um disparo.

O delegado sentiu a queimação no braço.

Seu opressor o cotovelou na boca do estômago conseguindo escapar,

recuperando o revólver. Seria melhor terminar aquela batalha. Rubens pulou

para o carro e sobre chuva de tiroteios avançou contra a estrada de terra.

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— Fechem as saídas para a rodovia — pelo sistema de rádio se comunicou

com sua equipe —, parem qualquer caminhão que tente avançar — sabia que

aquele era o veículo usado para o transporte dos prisioneiros —. Estamos em

meio ao tráfico humano.

Como previsto o caminhão avançava ferozmente, para o azar dos policiais

já estava na rodovia, a perseguição naquela madrugada violenta prometia ser

intensa.

Troca de tiros entre policiais e criminosos.

Viaturas ultrapassaram o veículo, tomaram distância.

Frearam.

Policiais treinados desceram, miravam na cabine, tinham como missão

salvar as vidas de bem, não importassem as consequências.

O caminhão parou.

Com as mãos na cabeça os recrutas desceram, entregues, rendidos.

— Estão presos! — a informação arrepiou os bandidos que preferiam a

morte do que a prisão, sabiam que de qualquer forma o líder daria um jeito de

puni-los pela falha no serviço. Sacaram seus revólveres, dispararam um no

outro. Obedeciam ao protocolo.

Sendo atendido no hospital o delegado Rubens apenas se preocupava em

criar um novo e infalível plano para destruir a tal facção, tivera a prova de que

eram mais espertos do que se imaginava, precisava ser ainda mais. Uma

mensagem de número desconhecido chegou em seu celular, porém a autoria era

bem conhecida.

“Se tentar alguma gracinha eu explodo essa cidade”.

<<>>

Como imaginado a quarta-feira amanheceu fria e chuvosa, aquela tarde

estava agradável para que assistissem a um bom filme enquanto se servissem

de chocolate quente, mas Isaque e Gustavo tinham um compromisso, haviam

marcado no Parque da Cidade o encontro com Ayshla.

— Então são vocês os famosos melhores amigos dessa cidade? — os

cumprimentou —. É um prazer conhecê-los.

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— Como assim, famosos? — o futuro pediatra não conhecia aquela

qualidade.

— Sabe como é cidade pequena, todos se conhecem, sabem da vida um do

outro, todos aqui admiram a amizade entre vocês — a coreana mantinha um

sorriso simpático no rosto, seu objetivo era conquistar a confiança dos garotos

—. A doação de medula óssea quando um estava à beira da morte e a doação de

sangue quando o outro precisou foram ações que provaram a boa amizade

entre vocês, algo muito comentado por aqui.

— Então se quisermos fama basta que sejamos caridosos?! — Isaque

revelou seu pensamento —. Dá próxima vez dou o meu coração! — ironizou.

— E aí a fama fica só para mim — Gustavo fingiu aprovar a ideia.

— São sempre assim? — a recruta interrompeu o devaneio que poderia se

estender —. Viajam nas loucuras?

— Que espécie de amigos seríamos nós se não viajássemos? — o mais

novo questionou.

— E é claro que eu não o deixaria passar vergonha sozinho — o mais

velho completou.

— Realmente, acho que já temos as estrelas do comercial! — Ayshla tirou

um cartão da bolsa entregando-o aos jovens adolescentes —. Esse é o convite

para os testes, estejam no endereço descrito e hora marcada, prometo que farei

o possível para que consigam o sucesso.

— Seremos pagos? — o futuro engenheiro a indagou.

— Não só vocês — a coreana se levantou, tinha pressa para outro

compromisso —. Eu também...

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Capítulo 58

Aquela noite fria de quarta-feira era convidativa para um passeio em

algum lugar mais aconchegante e foi o que Rui decidiu para as próximas horas.

Não hesitou em convidar Daniela, era o principal motivo que o fez resolver sair

de casa e aproveitar a companhia das pessoas. Ansioso por aquela noite que

prometia ser especial chegou com boa antecedência no restaurante luxuoso,

iluminado por lâmpadas exóticas que remetiam à épocas antigas; as mesas

enfileiradas possuíam uma agradável distância entre elas além de serem bem

enfeitadas com toalhas de cetim e vasos de esplêndidas flores; os garçons eram

todos bem aprumados e exibiam um constante sorriso simpático; o fundo

musical que soava pacificamente aos ouvidos tornava o ambiente ainda mais

característico dos tempos passados, ao mesmo passo que romântico.

Famílias jantavam contentes, casais aproveitavam os minutos que tinham

um ao lado do outro e amigos se entregavam ao momento de lazer;

conversavam em um tom de voz elegante, divertiam-se com discrição, era o

ambiente perfeito para que alma encontrasse paz após um dia cheio de

emoções.

Rui encarava pela tela do celular o rosto charmoso pelas covinhas, estava

realmente apaixonado por aquela mulher de uma forma que havia prometido a

si próprio que jamais se apaixonaria, mas ele se esquecera de que no coração

ninguém manda e, mesmo machucado, ainda procura por sua outra metade.

— Demorei muito? — a mulher dos olhos azuis marcou sua presença,

trajava um comprido vestido azul, possuía os cabelos soltos com discretas

ondulações, calçava um salto surpreendentemente alto. Rui nunca observara

tanto uma mulher como fizera naquele dia —. Como estou?

— Linda — o homem de cabelos grisalhos tinha os olhos brilhantes com

aquela visão; levantando-se da cadeira estofada exibiu o seu figurino: camisa

social preta com listras cinzas e mangas dobradas na altura dos cotovelos, calça

jeans presa ao corpo pelo cinto dourado, sapatos com um tom de preto

reluzente. Toda aquela produção rendeu ao empresário, nos pensamentos da

escritora, um ar de sedução —. Chegou no horário exato — frisou a

pontualidade —. Que bom que está aqui — beijou Daniela em um gesto de

cumprimento sentindo o adocicado perfume de maracujá e exalando o seu

marcante Biografia.

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Como um nobre cavalheiro Rui puxou a cadeira para que sua dama se

sentasse, atitude admirada pela observadora escritora que percebia nos homens

certa falta de sensibilidade.

— Confesso que estive surpresa com o convite do elegante empresário,

dentre tantos contatos por que eu?

— Porque é a que mais me chamou a atenção — sentados um de frente

para o outro o homem fixava seu olhar no da convidada, perdendo-se na luz

que raiava dos tais olhos.

A mulher, por sua vez, perante aquela declaração, sentiu o coração falhar

uma batida, o formigamento em seu estômago provocou o exuberante sorriso

deixando aquela que a encarava ainda mais apaixonado, encantado,

embriagado por tamanha beleza, sedento pelo amor que apenas ela poderia lhe

dar.

— Como tem passado o dia? — mostrou interesse no que Daniela sentia.

— Não poderia terminá-lo de forma melhor — sua resposta declarava o

seu desejo —. Comecei minha nova história, conclui os dois primeiros capítulos,

o tal Parque da Cidade da Paz é mesmo uma fonte de inspiração.

— Pessoas com a sensibilidade que você possui conseguem enxergar

muito além do verde das árvores e o colorido das flores — afirmou feito um

poeta romântico —. O que você vê? – puxava assunto porque queria ouvi-la

falar, não sabia a razão, mas sua voz o enchia de prazeres.

— Vejo valores — recostou-se sobre a cadeira para dar início ao

pensamento filosófico —. Cada uma das pessoas que lá pude notar estavam

cercadas por valores, ou amizade, ou carinho pelos filhos, ou afeto pelos

animais que domesticam ou amor por alguma pessoa em especial. Cada olhar

transmite isso. O parque é além de um lugar onde a natureza mostra o seu

resplendor, ali é a morada das almas.

— Como consegue pensar dessa forma? — maravilhou-se a cada verbo

declarado, a cada letra pronunciada —. Confesso que não consigo enxergar o

espaço ao meu redor dessa maneira tão exuberante.

— O segredo é observar com os olhos do espírito — começou o

ensinamento —. Quando olhamos com os olhos da carne apenas enxergamos o

físico, a beleza do corpo, a exuberância dos rostos e a delicadeza dos sorrisos,

esquecemo-nos de que são como nós, de que cada pessoa possui algo dentro

dela. Quando passamos a olhar com a alma vemos sentimentos, percebemos

nos sorrisos a alegria espontânea ou o disfarce de alguma tristeza, encontramos

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nos olhares a sinceridade das palavras. Olhar com a alma é enxergar a nós

mesmos dentro de cada um, essa é a essência do homem.

A comida esteve mais saborosa, a bebida ainda mais agradável ao paladar

e a noite mais especial do que se poderia imaginar. Depois de tanto tempo Rui

conseguira se deslizar do mundo, esquecer-se da brutalidade do exterior;

conseguira se entregar às boas horas de paz, de conexão consigo mesmo,

encontrou o prazer da vida, reencontrou o sentido de viver.

Levando Daniela até o carro viu que o momento da despedida chegara.

— Só tenho o que agradecer por cada segundo que passamos juntos, não

faz ideia de como a sua amizade está sendo especial para mim — declarou

sincero.

— Posso dizer que me mudar para cá foi a melhor decisão que tomei na

minha vida — confirmou que os sentimentos eram recíprocos —. Também

gosto da sua companhia, tem um bom papo — elogiou extrovertida.

— Podemos sair mais vezes?

—Quando quiser.

Pronto para seguir o seu caminho Rui retrocedeu os passos.

— Daniela... — o que seu coração queria dizer não poderia ser relatado

por palavras, deveria ser transmitido por atitudes; uniu os lábios um beijo

suave, que foi se intensificando até alcançar o status de melhor beijo que cada

um recebera em suas vidas, o que aconteceu foi além da conexão entre os

corpos, foi o encontro das almas.

Parada no semáforo, ainda extasiada pelo inesperado beijo, a escritora

pegou o celular, precisava ver as horas. Descobriu inúmeras chamadas de um

número desconhecido, preocupada, retornou.

— Esqueceu do nosso acordo? — a voz masculina soou do outro lado,

possuía tom de ameaças.

— Não faço acordo com fracassados — respondeu triunfante —. Agora me

esqueça!

— Não pensarei duas vezes em me tornar o seu grande inimigo.

— Sabe o que eu faço com quem invade o meu caminho, não sabe? —

acelerou —. Atropelo!

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O sol raiava naquela manhã de quinta-feira embora o vento gelado não

deixasse que a temperatura subisse.

Irritado, Gilmar andava de um lado para o outro na sala dos professores,

sendo perturbado por alguma coisa passava as mãos sobre a cabeça, sem

encontrar solução para o que o importunava descontou sua raiva sobre a

enorme de mesa de reuniões fazendo os objetos que ali estavam saltarem

desordenadamente.

Gustavo assistiu a toda aquela cena e também se assustou com o

comportamento daquele que sempre via sorrindo, brincando, destilando

diversão entre os alunos que o viam como um grande e bom amigo. Querendo

evitar problemas o jovem adolescente apressou os passos, mas a voz grave do

professor de matemática os interrompeu.

— Gustavo! Aqui. Agora!

Relutante entre obedecer ou não o Romântico Anônimo ficou parado no

corredor vazio, de costas ao seu falante, que insistiu:

— Quero conversar com você. Se quiser continuar com as boas notas me

obedeça.

Submisso, o futuro pediatra adentrou a sala dos professores, antes que

pudesse questionar qualquer coisa viu a porta ser fechada e os olhos de Gilmar

o fitar estranhamente.

— Ouviu alguma coisa? — perguntou tranquilo.

— Nada — a voz soou trêmula.

— Ouviu alguma coisa? — perguntou ainda mais tranquilo, instaurando o

pavor.

— Apenas vi bater na mesa.

— Doeu dizer a verdade? — puxou uma cadeira —. Sente-se.

— Estou bem assim — desconfiado, não ficaria tão vulnerável àquele

homem que da noite para o dia já não parecia mais a mesma pessoa.

— Sente-se! — a frieza da voz faria qualquer um se arrepiar e acatar a

ordem —. O que falam sobre mim?

— Nada demais.

— É a última vez que repito alguma fala — ameaçou —. O que falam

sobre mim?

— Que está diferente.

— E o que você acha?

— Que é outra pessoa.

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O professor gargalhou alto, tão alto que quem passasse pelo corredor

ouviria mesmo a porta estando fechada. Colocando a mão pesada sobre o

ombro do aluno declarou suas últimas palavras:

— Não sou outra pessoa, sou a verdadeira pessoa! — um enigma.

<<>>

Ayshla estava focada em salvar sua vida não decepcionando aquele ou

aquela que a tinha nas palmas das mãos. No esconderijo da organização

criminosa avaliava um dos cativeiros vasculhando possíveis maneiras de fuga e

se certificando de que as correntes presas às paredes não estavam desgastadas.

— Parece que conseguiu obedecer ao mandato — um dos recrutas a

surpreendeu —. Sente-se bem por saber que a sua vida estará a salvo enquanto

terceiros pagam por isso? — a pressão psicológica era uma das armas naquele

lugar.

— Cada um de nós é responsável pelo próprio destino — vestiu o capuz

—, não tenho nada a ver com isso.

— Como consegue? — agarrou-a pelo braço —. O líder não é de dar

segundas chances a ninguém, ainda mais a garotinhas inúteis como você. Por

acaso o agrada de uma forma especial? — maliciou.

Esbofeteando o rosto do perverso a coreana ameaçou:

— Nunca mais insinue nada sobre mim — puxou-o pelo pescoço —, sou

pior que vocês todos juntos — lançou-o contra a parede.

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Capítulo 59

O vento frio que soprava durante a tarde era compensado pelo calor do

sol que brilhava intensamente. No Parque da Cidade as pessoas vestiam roupas

mais pesadas, mesmo assim não se intimidavam por aproveitar os momentos

de lazer ao lado de companhias queridas.

— O que faremos primeiro? — Gustavo era o mais animado da turma —.

Hoje não vamos ficar só no bate-papo, quero todos se divertindo! — tirou o

agasalho, sabia que a temperatura subiria.

— Vão mesmo aos brinquedos de criançinhas? — Júlia logo se opôs à ideia

—. Pagarão o maior mico de suas vidas.

— Pagarão não — Isaque puxou a namorada pela mão —. Pagaremos!

— Além de tudo nem somos tão velhos assim — Gabriela tentou

convencer —. Mesmo que fôssemos, o segredo para mantermos a juventude é

não deixarmos que a nossa criança interior morra.

— Filosófa Gabriela — o Romântico Anônimo aplaudiu debochado —.

Agora chega de perder tempo, escorregador!

Júlia achava aquilo uma grande infantilidade, mal sabia ela que estavam

dispostos a receber olhos de julgamento por sua causa; todos queriam salvá-la

da depressão que aos poucos a tomava.

— Divirtam-se! — sentou-se em um dos bancos —. Não estou tão disposta.

— Ah! Para com isso, vai mesmo deixar de ser feliz por preconceitos

bobos? — o futuro pediatra reclamou.

— Se me ama vai com a gente — o garoto dos olhos verdes chantageou.

— Se me ama vai me entender — ela rebateu.

Paciente, sem colocar pressão, sem parecer insistente, a Adolescente

Apaixonada se sentou ao lado da amiga e declarou amáveis palavras:

— Todos nós a consideramos bastante, faz parte do grupo e um grupo de

verdade possui como essência o zelo pelos seus integrantes. Gostamos muito de

você e entendemos que não queira se divertir, a gente sabe que tem algo a

consumindo por dentro, mas queremos ajudá-la, queremos provar que você não

precisa passar pelas dificuldades sozinha, apenas precisamos que aceite o nosso

apoio.

Abrindo um discreto sorriso Júlia fez sua escolha:

— Vamos passar vergonha então.

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Pareciam, de fato, crianças que vão a um parque de diversões.

Gargalhavam, gritavam animados, impulsionavam aos pais que morriam de

vontade de fazer o mesmo se desvestirem da vergonha, do receio. A alegria

entre eles contagiava a quem os visse.

— Faz tanto tempo que não subia em uma balança! — Júlia possuía um

semblante diferente, era irradiante, exuberante.

— Deus me livre de envelhecer como a maioria — ao lado da namorada o

futuro engenheiro se entregava ao prazer da diversão —, serei um idoso jovem!

— Seus filhos o verão como um irmão...

— Nossos filhos! — surpreendeu a garota —. Vamos nos casar, não

vamos?

— Claro que vamos — respondeu convicta —. Eu amo você!

Do outro lado Gustavo e Gabriela faziam o mesmo que os amigos. Era

uma experiência inédita para a garota que até então não havia provado daquilo

tendo a visão restaurada.

— Se lembra de quando estivemos aqui? — o jovem adolescente

questionou nostálgico —. Estava tão insegura, parecia tão vulnerável. Desde

aquele dia eu sentia a vontade de protegê-la.

— Como poderia me esquecer? Foi um dos melhores dias da minha vida

— declarou amorosamente, cada detalhe do que vivera ao lado do agora

namorado era muito importante para o seu coração —. Tenho muita sorte em

ter encontrado alguém como você, meu dever é sempre agradecer por isso.

— O privilégio também é meu — sorriu tímido, acanhado pelo que

declararia: — Encontrei o amor da minha vida, a garota dos meus sonhos.

Precocidade adolescente? Apenas o futuro diria.

Entregues ao prazer daquela tarde que dava sinais de estar chegando ao

fim pelo ar que esfriava mais e mais, o grupo de amigo se reuniu em uma

espécie de palco que existia naquele lugar, cercado por flores características do

agradável parque. Felizes, soltaram a voz, arranhavam as notas, cantavam com

o coração.

No puedo vivir sín ti

No hay manera

No puedo estar sín ti

No hay manera

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Caíram na risada com o fim da música, sentiam-se relaxados, seguros,

protegidos um pelo outro. Mal sabiam que a tempestade estava para chegar.

Tranquila consigo mesma a garota dos olhos verdes, repousada sobre o ombro

do apaixonado namorado, declarou toda a sua gratidão.

— Não sabia que se preocupavam tanto assim, na verdade nunca imaginei

que as pessoas pudessem se importar umas com as outras. É muito importante

para mim saber que posso contar com essa amizade, não fazem ideia.

— Essa é a essência do homem — fã dos conhecimentos antropológicos

Gabriela conhecia bem a tal ciência, suas declarações eram fundamentadas no

que aprendia —, cuidar um do outro está na sua origem. Infelizmente nos

perdemos dessa filosofia, mas podemos reencontrá-la.

— De onde tira essas coisas? — Gustavo se impressionava com a garota ao

seu lado a cada fala.

— Da observação — respondeu simples —. Da vida.

— Preciso falar mais uma coisa — Júlia anunciou.

— Somos todos ouvidos, donzela — Isaque sempre arrumava um jeito de

debochar amigavelmente.

— Sei que já fiz isso, mas preciso pedir desculpas novamente por tudo

aquilo que aconteceu no passado, perdi grandes oportunidades de ser muito

feliz e me arrependo grandemente.

— Sempre estamos vulneráveis aos erros — Gustavo tomou a palavra, de

certa forma liderava o grupo, viam nele alguém de certas decisões —, e sempre

a desculpamos por tudo.

E assim os bons amigos cumpriam o seu papel de estar um ao lado do

outro sem importar as condições. Cumpriam o papel de um ser o apoio do

outro quando este mais precisasse. Cumpriam a essência da amizade que está

no amor, na lealdade, no companheirismo.

<<>>

A noite caíra. Prometia ser uma noite especial, uma noite muito

importante, uma noite que marcaria o início de uma nova fase.

Com o insistente sorriso estampado no rosto Rui preparava a mesa do

jantar colocando velas aromatizadas em seu centro; a toalha que a cobria

possuía um tom prateado com detalhes claros em sua borda; a intenção do

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empresário era impressionar sua convidada. Querendo ser ainda mais receptivo

tratou de preparar a refeição, macarronada com queijo, sua especialidade e um

dos pratos mais fáceis de se preparar.

— Vejo que está bem inspirado — Júlia elogiou tanto capricho —. Teria

toda essa bela criatividade uma pessoa em especial por razão?

— Pode ter certeza que sim —ajeitou as cadeiras —. Obrigado por estar

sendo tão compreensiva, você tem todo o direito de se opor a isso, mas está me

surpreendendo.

— Nunca me contraria ao que pudesse lhe fazer feliz — sorriu cordial —.

Além do mais não precisavam me dar satisfação alguma, mas como insistem

tanto...

— Será melhor assim. Quero que se conheçam o quanto antes!

Logo a campainha tocou.

Na porta a mulher que atraía um homem apaixonado e que por ele

também era atraída. Um beijo discreto no rosto, a diversão na jovem

adolescente.

— Então essa é a simpática Júlia? — a escritora mostrou seu jeito

agradável de tratar as pessoas envolvendo a garota em um abraço.

— E você a talentosa Daniela — retribuiu a simpatia —. Antes de mais

nada devo agradecê-la por conseguir fazer o meu pai sair de casa e se distrair

um pouco, é um milagre! — divertiu a todos.

— Na verdade é uma honra — a mulher declarou afetuosamente —. Seu

pai é um homem incrível.

— Vamos comer? — o empresário sugeriu antes que também tivesse que

destilar elogios, ainda não se sentia a vontade –. Não quero me gabar, mas o

cheiro me disse que o sabor está ótimo!

— Acostume-se, ele é muito convencido!

O jantar tomou uma forma agradável, trouxe paz àquela casa, tirou os

seus moradores das tantas intensas emoções e lhes garantiu tranquilidade.

— Bom, agora temos algo sério a conversar — após a sobremesa, Rui

anunciou —. Algo que pode mudar nossas vidas.

— Seu pai e eu nos tornamos grandes amigos, fomos nos aproximando

cada vez mais — Daniela continuou —. E agora sabemos que nossos

sentimentos vão além de amizade.

— Somos adultos, não vivemos mais em meio a dúvidas, o que queremos

dizer é...

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— Que se amam — Júlia adiantou as coisas —. Quero que saibam que o

que eu puder fazer para ajudá-los isso farei. O amor nunca deve ser reprimido,

ele é a cura para muitas enfermidades que apenas nossas almas sentem —

naquela noite ela pôde sentir um pouco o que é estar em família, seu grande

desejo era que tudo funcionasse.

<<>>

Após mais uma noite no cinema Gustavo acompanhou a namorada até

sua casa, já na vontade de repetir os últimos momentos.

— Gustavo... — interrompeu os passos do garoto.

— Sim — voltou a atenção a ela.

— Descobri quem é a minha mãe — o assunto era delicado, seu semblante

denunciava isso.

— Quer conversar sobre? — ofereceu sua ajuda.

— Só quero que saiba que eu desisti dessa loucura — sua voz possuía um

tom entristecido —, não vou atrás dela, não quero revolver o passado.

— Entendo — abraçou-a afetuosamente, era o que mais precisava —, e

tudo vai ficar bem — mostrou seu apoio.

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Capítulo 60

Alguns dias mais tarde...

Era o início de junho, mas o inverno já anunciava sua proximidade. A

Cidade da Paz, além da característica tranquilidade, era também conhecida pelo

rigor das estações, o tempo obedecia ao tempo. As pessoas já não saíam mais

tão a vontade, o estilo do frio as acompanhava em seus compromissos, pela

noite a coberta as aquecia enquanto os programas de TV as distraía.

O relógio marcava dez horas da manhã naquela segunda-feira nublada e,

como diariamente, Guto estava aos cuidados da fisioterapia, o que com o seu

esforço vinha alcançando ótimos resultados.

Sempre acompanhado pelos pais o jovem executava as ordenanças do

tratamento, embora que ainda não completamente, seus membros superiores já

estavam funcionando e com essa boa conquista o desejo pela vida crescia em

seu peito.

— Estamos tão orgulhosos — Laura abraçou o filho como uma mãe

aliviada —. Você conseguiu!

— Nós conseguimos! — ele não reconheceria o mérito de tudo aquilo

como sendo apenas seu, tinha no coração que todo o apoio dos pais era o que

mais o motivava.

— Está valendo a pena insistir em viver? — Eliseu fez sua pergunta.

— Quando me vi naquelas condições, sem ao menos poder mexer um

dedo, achei que minha vida tivesse acabado, pensei que nunca mais seria o

mesmo, julguei a morte como melhor solução para esse problema, mas me vi

cercado por duas pessoas especiais que mostraram o quão importante sou e que

me apoiaram de uma forma que não conseguiria imaginar — fez sua declaração

—. Hoje quero viver tudo aquilo que não vivi.

— Aceitei prometer que faria a sua vontade porque acredito que podemos

poupar o sofrimento, não queria ver o meu filho infeliz pelo resto dos seus dias

— o professor de português justificou seu ato —. Contudo eu sabia que as

coisas se resolveriam, tinha certeza de que o milagre iria nos alcançar e aqui

estamos nós, celebrando essa conquista!

— Só tenho o que agradecer — Guto abriu um sorriso alegre —. Agradecer

por não terem desistido de mim e por me garantirem a oportunidade de

aproveitar os reais prazeres dessa vida!

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Logo após a aula, enquanto os velhos e bons amigos iam ao lugar marcado

por Ayshla, Júlia e Gabriela ficaram no apartamento da garota dos olhos verdes,

ansiosas por notícias, torcendo para que tudo desse certo.

— Imagina os dois na televisão — a Adolescente Apaixonada já sonhava

com o sucesso da dupla.

— Os diretores terão muito trabalho — referiu-se ao sarcasmo que

imperava nos dois —. Mas vão passar verdade para quem assistir, nunca vi

amigos tão próximos como eles.

— É bom saber que ainda existem pessoas que valorizam os nobres

sentimentos — Gabriela desabafou o que seu coração sentia ao observar um

mundo tão desestruturado —. Hoje em dia banalizam o que realmente importa

e fazem de riquezas as coisas supérfluas. Amizade é um dos primeiros

relacionamentos que vivemos na nossa vida e precisava ser levado um pouco

mais a sério.

— Provei disso nesses últimos dias — Júlia concordou com cada palavra

—. Se não fosse a amizade que conquistei talvez não teria conseguido passar

por tudo, talvez o fim da história fosse trágico.

— O importante é que o arrependimento veio no tempo certo e com ele a

oportunidade de uma vida melhor.

<<>>

Era uma rua deserta, um tanto escondida por árvores e arbustos, larga em

sua extensão não tinha saída e o número do endereço estava marcado em um

prédio de fachada simples que, assim como as demais construções daquele

lugar, deixava claro a falta de capricho, em nada se parecia com um estúdio de

gravações de comercial.

— Tem certeza de que é aqui? — o medo de infância começava a se

manifestar em Isaque —. Rua esburacada, quase sem asfalto, casas que mais

parecem cativeiros e um silêncio que faz lembrar o cemitério — fez sua

avaliação do ambiente realmente estranho —, quem faz gravações aqui?!

— O endereço é esse — Gustavo apontou o papel, não estava com medo,

nem achava estranho, tamanha era a ilusão da proposta —. Acho que você tem

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assistido a muitos filmes de terror — ironizou as desconfianças do amigo —,

onde fica a campainha?

— Espera! — segurou o braço do Romântico Anônimo e se aproximou de

seu ouvido —. Não acha estranho duas pessoas como nós, sem nenhuma

experiência em atuar e sem algum interesse nessa área, serem chamadas para

algo do tipo? — os tais argumentos deveriam ter existido antes, mas a cegueira

da proposta não os deixou brotar, agora, com a visão da realidade, tudo parecia

clarear, mas poderia ser muito tarde —. Acho melhor irmos embora — foi

sincero em sua sugestão —, podemos estar brincando com o azar e estou

falando sério — pontuou —, não o chamei de lorde nenhuma vez.

Quando o assunto era realmente sério nenhum dos dois ironizava nas

formas de tratamento, Gustavo conhecia aquela estratégia e começou a se

convencer dos argumentos. Analisando o lugar refletiu sobre a tentação do que

estaria para acontecer, das reviravoltas que a sua vida poderia dar, da mudança

que os dias futuros poderiam reservar. Mas conhecia Isaque e sabia que suas

desconfianças sempre tinham certa razão, o melhor seria desistir de tamanha

ambição.

— Vamos embora — decidiu desconsolado.

— Tenho certeza de que teremos muito sucesso na nossa vida — tentou

animar.

— Por que demoraram tanto para nos chamar? — Ayshla abriu a porta

quando os dois amigos já davam as costas —. Nunca julguem o livro pela capa

— deu uma piscadela divertida –. Se eu não tivesse gostado tanto de vocês

teriam perdido uma oportunidade raríssima — fez a astuta declaração —.

Entrem — abriu passagem —, temos muito o que conversar!

Eles se entreolharam e decidiram acreditar naquelas palavras.

O ambiente era bem organizado e estiloso. Quadros nas paredes exibiam

obras de grandes artistas contemporâneos, os objetos caros que enfeitavam os

cômodos do que mais parecia uma casa faziam a ideia da fachada daquele lugar

cair por terra.

— Impressionados? — a coreana percebeu o espanto dos garotos,

querendo terminar com quaisquer suspeitas tratou de exibir simpatia —. Esse

foi apenas um teste pelo qual muitos são reprovados, esse é o mal dos seres

humanos, acham que as aparências são sinônimos das evidências — abriu a

porta de um cômodo qualquer revelando as aparelhagens de filme —, pensar

assim leva muitos à própria ruína.

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Agora nada colocava medo, tudo fazia a animação crescer, apenas uma

coisa incomodava.

— E onde está o pessoal que filma? — o garoto dos olhos verdes

questionou.

—Entrem! — indicou o lugar —. Aí estão eles.

— Sejam bem-vindos — declararam em uníssono com o sorriso nos rostos.

— Nossa recruta não poderia ter escolhido pessoas melhores — o que

aparentava ser o diretor se aproximou —. Vocês são mesmo os perfis perfeitos

para as personagens da história, faremos sucesso!

— Não criem tanta expectativa — o futuro pediatra logo procurou se

defender de possíveis frustrações —. Nunca atuamos, nem em teatros de escola,

não sabemos nada.

— O principal já têm, que é beleza — Ayshla elogiou —, o resto se

aprende.

— Esse negócio é mesmo injusto — o “diretor” recolheu alguns papéis —.

Pessoas extremamente talentosas, mas que não possuem o físico que queremos

muitas vezes, são passadas para trás por pessoas incrivelmente despreparadas,

mas exuberantemente lindas — entregou os “roteiros” —. É aquela história –

sorriu misterioso —, não vendemos qualidade, vendemos a imagem das

pessoas, é isso o que atrai comércio — fez sua crítica como se realmente lutasse

pela causa, tudo aparência, tudo para evitar descobertas.

O pensamento, no entanto, era desumano, mas ninguém ousou contender.

—Entrem no estúdio — a coreana abriu a porta de uma cabine —, vamos

testar a tonalidade das vozes e passar as primeiras técnicas de cinegrafia.

Fiquem à vontade.

Iludidos pela bela facilidade em adquirir um tentador sucesso os jovens

adolescentes obedeceram as instruções. Enquanto liam em voz alta o falso

roteiro não perceberam que gás era injetado na cabine, sentiram alguma

tontura, lutava contra aquilo, precisavam mostrar o interesse que tinham nas

vagas, julgavam o mau estar como parte do nervosismo.

Mais gás injetado.

A tontura apenas aumentava.

Mais gás injetado.

E as luzes se apagaram.

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O estiloso “estúdio” parecia ter se convertido em um casebre mal feito, o

clima agradável agora fora substituído por um calor incômodo, o ambiente

antes bem iluminado parecia ter suas lâmpadas substituídas por lamparinas

sem qualidade alguma, e a liberdade agora estava forjada por correntes nos

braços e nas pernas.

— Onde estamos? — Isaque sentiu fraqueza; percebendo que estava preso

se desesperou, como se fosse conseguir arrebentar as correntes da parede se

debatia, tudo em vão —. O que está acontecendo?

— Que brincadeira é essa? — Gustavo despertou quando percebeu a real

situação, o esforço que demonstrava para se soltar já fazia o suor correr pela

testa.

— Sejam bem-vindos, garotos — o líder apareceu, aquele era o seu

ambiente, o seu domínio, quem estivesse ali teria a vida depositada em suas

mãos —. A história está apenas começando.

— Quem é você?! — o futuro engenheiro esbravejou, sua voz percorreu

pelos túneis da construção subterrânea.

— Antes de tudo quero mais respeito — chutou a barriga do prisioneiro

sem cautela alguma.

— Não encosta nele! — foi a vez de Gustavo mostrar sua fúria através da

voz.

— Você é idiota? — o desumano ser puxou o Romântico Anônimo pelos

cabelos —. Aqui eu dou as ordens, aqui eu mando, aqui eu sou o líder e se

quiserem continuar vivos será a mim que deverão obediência — empurrou o

garoto contra o chão —. O futuro de vocês agora pertence a mim!

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Capítulo 61

Jogados ao chão. Amarrados à parede por correntes que pressionavam

seus pulsos. Vulneráveis a qualquer ataque de um alguém desconhecido,

vítimas de um crime que não fazia sentido. Aquelas eram as condições nas

quais os amigos de infância se encontravam, sentiam-se injustiçados pela vida

uma vez que tudo o que procuravam fazer era o bem, mas agora aquele parecia

ser o pagamento.

O cativeiro era um dos quartos da construção subterrânea, razoavelmente

amplo não tinha janelas, vazio causava o eco dos mínimos ruídos, as paredes

rebocadas possuíam correntes presas às elas indicando que outros prisioneiros

poderiam chegar em qualquer momento, a pouca iluminação chegava a causar

dor de cabeça.

— Por certo estão estranhando tudo isso — sentado em uma cadeira

perante os seus cativos o líder encapuzado fazia questão de soar sua voz

desconfigurada pela máscara que também usava, a capa de coro escondia seu

corpo impossibilitando saber se era um homem ou uma mulher —. Do outro

lado da Cidade da Paz é tudo tão mais tranquilo, calmo, seguro. As pessoas são

felizes, os amigos se amam, os casais se adoram e as famílias se completam;

chega a parecer aqueles paraísos utópicos narrados em contos infantis — fez

uma pausa, estalou os dedos das mãos e se colocou em pé —. Mas existe outra

versão, o outro lado da história, o que ninguém conta, que todos escondem, que

procuram fingir não conhecer. Aqui é o bairro afastado, aqui é onde essa cidade

realmente acontece; aqui executamos as tarefas mais sórdidas que possam

imaginar; aqui damos o devido tratamento a seres humanos insignificantes

como vocês — salpicou a entonação das palavras com ódio, raiva e ira —,

pessoas que acreditam que a vida é toda essa beleza, pessoas que como

verdadeiras imbecis procuram amor até nos animais, pessoas burras que não

enxergam a real perversão que existe em cada olhar — aproximou-se dos

adolescentes —, pessoas que pensam ter os melhores amigos, mas basta uma

dificuldade para que se vejam traídas. Aqui nós mostramos a realidade do

mundo — deu uma risada contida, perversa, maliciosa —, uma realidade podre

e nojenta!

Aquelas palavras revelaram um alguém decepcionado com o mundo, um

alguém que por certo sofreu algo no passado e que agora descontava as

próprias aflições em qualquer pessoa.

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Isaque, sentindo um medo que jamais sentira em toda a vida, não sabia o

que fazer, como agir, os pensamentos pareciam não fluir em sua cabeça, sua

mente parecia bloqueada com toda aquela perturbação. Gustavo, por sua vez,

tentava ao máximo encontrar soluções para aquilo, queria acreditar que tudo

não passava de um pesadelo, mas sabia que era real, uma realidade que nunca

imaginou viver.

— Ayshla, junte-se a nós — o líder viu a coreana na porta do cômodo,

escoltada por dois fortes e sérios homens —. Dê as boas vindas aos nossos

visitantes.

Com o semblante enrijecido a garota obedeceu ao mandato, encarou

aqueles que enganara diretamente nos olhos, com prepotência, sem qualquer

demonstração de pena ou arrependimento.

— Devem estar pensando como que uma garota tão meiga, delicada,

simpática e atraente pôde ser tão fria — notou os olhares de espanto na dupla

prisioneira —, fale para eles qual a sua filosofia de vida, conte-lhes o que você

descobriu com os meus ensinamentos.

— A vida é injusta e todos devem passar por essa injustiça — declarou

como se aquilo fosse um mandamento sagrado —. Não me arrependo de nada,

ou seria a vida de vocês ou a minha, é claro que eu salvaria a mim.

— Estão vendo? — a figura superior daquela organização criminosa

possuía uma visão corrompida quanto aos valores humanos —. Isso se chama

egoísmo, a melhor qualidade da raça humana.

— Cumpri com o meu dever, já estou livre? — a recruta se reverenciou ao

soberano.

— Mas é claro, pode ir com os meus homens e jamais pense em preparar

armadilhas para mim.

Traídos, enganados, feitos de pobres crianças. Os jovens adolescentes

sentiam raiva ao mesmo tempo que receio, queriam brigar pela liberdade, mas

logo eram colocados perante o perigo de tudo aquilo; não acreditavam naqueles

argumentos, mas se convenciam de que quando quer o homem pode ser o pior

ser vivo do mundo.

— Aproveitem bem as próximas horas, um de vocês continuará vivo, mas

o outro... — deu as costas se divertindo com o terror que ali instaurava.

Sem mais conter o tamanho da aflição o futuro engenheiro deixou as

lágrimas caírem, o desespero que o sufocava era pior do que quando descobriu

a leucemia, dessa vez não estava ao lado de pessoas que visavam sobretudo o

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seu bem estar, a sua segurança, estava nas mãos de pessoas corrompidas, que

cheiravam a maldade e que não hesitariam nas ações mais cruéis.

O Romântico Anônimo, por outro lado, sempre acreditou na lei do retorno

e sempre praticou o bem, era admirado por onde passava, seu jeito pacífico era

um grande exemplo, não acreditava que aquele seria o seu fim, não acreditava

que os seus planos para a vida futura seriam todos rasgados, reuniu forças de

onde não tinha para não cair no desespero e tentou compartilhar aquilo com o

melhor amigo.

— Vamos sair dessa, tenho certeza — arrastou-se pelo chão cimentado

ficando ao lado de Isaque.

— A gente vai morrer — ergueu os olhos avermelhados e o rosto

molhado.

— Sempre fomos pessoas boas, acha mesmo que será esse o nosso salário?

— Não sei em que acreditar, não consigo pensar, não consigo enxergar

solução — com o braço livre se agarrou naquele que tinha por irmão, buscou

nele a proteção de tudo aquilo —. Independente do que aconteça saiba que é a

melhor pessoa que tenho na visa — deixou o choro ganhar força.

Com aquela declaração Gustavo não pôde mais segurar as lágrimas, no

fundo não tinha esperança alguma, aquele lugar era sombrio, os homens que ali

passavam possuíam um olhar maligno, para quê cultivar esperanças sobre a

solução? Abraçou o velho amigo como se fosse a última vez, como se nunca

mais o veria; afinal de contas aquela foi a promessa do líder, apenas um

continuaria.

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Já era noite.

Ayshla seria levada pelos homens à rodoviária, era esse o combinado:

cumpriria com o que prometera e poderia partir para onde quisesse. No

entanto, a coreana foi levadas para uma lugar ainda mais escondido que o

bairro afastado, uma espécie de campina envolta por mato, estrada de terra

marcava caminhos naquela região escura e deserta.

— Desça — o que motorista ordenou.

— O que está acontecendo? — a garota se angustiou —. Ele prometeu!

— O líder não costuma cumprir promessas — o homem ao seu lado riu

debochado —. Vai descer ou teremos que usar a força?

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Tudo se clareou. Aquele alguém covarde que se escondia atrás de

máscaras e capuzes já intencionava apagar a coreana, conseguiu enganá-la

perfeitamente sem causar qualquer desconfiança. Descendo do veículo Ayshla

tentou se salvar:

— Eu prometo que fujo para muito longe, nunca mais ouvirão falar de

mim — olhava seus opressores diretamente nos olhos, queria convencê-los,

precisava ser persuasiva —. Desapareço para sempre!

Olhando-a maliciosamente um dos homens a agarrou contra si e fez sua

nojenta proposta:

— Prometo que sua morte será divertida — sorriu pervertido.

Mas Ayshla não era qualquer garota.

Sentindo a raiva consumi-la por conta da traição golpeou o meliante em

suas partes sensíveis, não poupou forças no chute traseiro e lhe garantiu uma

for de arrancar lágrimas. Não satisfeita prendeu-se em seu pescoço, virou-o

para trás causando o barulho de quebra, largou o criminoso morto, esticado no

chão.

Mas ainda tinha o outro homem, que mirava a arma contra seu peito, mas

não conseguia atirar, a mão tremia, as pernas estremeciam causando o dançar

das calças.

Mantendo o olhar irado a coreana correu em direção do bandido, saltou

com vontade a ainda no ar chutou o revólver para longe. Antes que o covarde

pudesse fugir lhe passou a rasteira, subiu em cima do adversário, tirou da

camisa do oprimido o canivete afiado e ameaçou rasgar sua garganta.

— Eu sei quem é o seu pai, conheço a sua história! — o recruta resolveu

entregar o jogo, precisava salvar a própria vida —. Se prometer que me deixará

fugir conto tudo.

— Não queira me enganar — soando uma voz enraivecida forçou a lâmina

fatal contra a veia do criminoso —, ou lhe faço engasgar com o próprio sangue.

Preparada para uma possível trapaça Ayshla manteve o rival na mira da

arma que roubou, queria descobrir o que tinha para ser revelado.

— Você não faz parte do tráfico humano, foi roubada pelo líder ainda

bebê, ele fez com que acreditasse que seus pais nem existiam mais, mas tudo

não passa de mentiras — a voz tremia , medo de perder a vida e medo por estar

quebrando um juramento que fizera ao líder —. Seu pai está no cativeiro, todos

na cidade o conhecem, é um homem bom, que corre risco de perder a vida.

— Se estiver mentindo — rasgou a camiseta do meliante e cortou sua pele

com o faminto canivete, desenhando o caminho pelo sangue que escorria —, eu

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faço isso em lugar muito mais crítico — parou próximo ao umbigo —. Agora vá

e nem pense em retornar!

Agora sim o arrependimento caiu. Talvez o mundo não fosse aquilo que

acreditava.

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Ligações não eram atendidas, mensagens não eram respondidas, nenhum

sinal de vida. Preocupados com o que pudesse estar acontecendo os pais dos

jovens seqüestrados passearam por muitas ruas na Cidade da Paz à procura de

pistas, mas ninguém os tinha visto, ninguém sabia o que poderia estar

acontecendo.

— Já receberam alguma ligação pedindo dinheiro? — o delegado Rubens

fez sua pergunta.

A resposta foi negativa.

— Colocarei meus homens nas ruas, vamos descobrir o que pode estar

acontecendo!

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— Que bonitinhos! Os melhores amigos um do lado do outro, querendo

proteção — o líder retornou ao cativeiro —. A Cidade da Paz precisa ver

isso,precisa ver o quanto a dupla mais admirada por essa gentinha está feliz —

fotografou —. É por isso que estão aqui, através de vocês machuco o resto do

bando.

— Você é baixo — Gustavo atacou verbalmente —. Não temos nada

contigo, é um covarde!

— Eu exijo respeito! — com as costas da mão coberta pela luva de coro

agrediu o rosto do jovem adolescente —. A cidade os viu crescer, todos gostam

de vocês e fariam o impossível para salvá-los. Está na hora de mudarmos o

nome da Cidade da Paz para Reino das Trevas — estalou os dedos —. A

propósito, trouxe companhia — arrastaram um homem encapuzado para

dentro, prenderam-no em uma das correntes e descobriram o seu rosto

revelando os hematomas —. Tenham uma boa noite — tirou o capuz e a

máscara —, preciso preparar a aula de amanhã — tanto o líder quanto o novo

prisioneiro possuíam o mesmo rosto, o rosto do professor Gilmar. Mas quem

era o verdadeiro?

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Capítulo 62

Luzes não tão fortes, ambiente climatizado evitando o desconforto do frio,

estantes altas e repletas de livros, escrivaninha ao centro sobre um artístico

tapete aveludado, melodia suave ao fundo, notebook ligado iluminando o rosto

feminino enquanto a mente trabalhava. Daniela escrevia mais um capítulo do

seu romance que prometia ser um sucesso, a atual fase pela qual passava abria

sua criatividade, inspirava as palavras de aventura, drama, sentimento e amor.

A campainha tocou.

O relógio marcava a meia-noite, uma visita naquele horário seria tanto

inesperada quanto estranha. Vestindo o confortável sobretudo, a escritora

calçou as pantufas, pegou as chaves e foi atender. Receosa, abriu a porta do

apartamento, tentou fechá-la bruscamente, mas foi impulsionada ao chão pelo

empurrão que recebera.

— Como pode um prédio tão luxuoso ser tão vulnerável a invasões? — o

homem zombou, fechou a porta atrás de si, encarou sua vítima com desdém —.

Sentiu a minha falta?

— O que faz aqui?! — levantou-se irritada, a inesperada visita era ainda

mais desagradável —. Não falei para que ficasse longe de mim?

— Não queira agir como os seus personagens ridículos, sabemos o quão

incapaz é, o quão inofensiva pode ser — jogou-se no espaçoso sofá que se

encontrava na sala, colocou os pés sobre o encosto, parecia estar na própria casa

—. Quero conversar, comunicar as boas novas.

— Não temos nada para conversar — pegou o celular —. Se não quiser

sair daqui algemado é melhor que vá embora — discou.

— Qual é mesmo o nome do seu namoradinho? — sentou-se, esforçava

por lembrar o tal nome, possuía sarcasmo no modo de falar —. Rui, não é?! Se

quiser que ele permaneça vivo vai escolher me ouvir — indicou para que ela se

sentasse —. Sou o líder, você sabe, e tudo conquisto.

Não existiam soluções, o mais sensato a se fazer era dar ouvidos a um

alguém tão perigoso, que possuía grandes poderes nas mãos.

— O que tem a falar?

— Sabe o que significa isso? — estendeu a mão esquerda deixando à

mostra a aliança —. Significa que eu casei. Sabe o que mais isso significa? Que

você pertence a mim e não deveria ser infiel bem debaixo do meu nariz! — seu

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tom de voz era contaminado pelo nervoso que sentia —. Exijo que termine esse

romance nojento!

— Apenas existe uma coisa errada nisso tudo — Daniela sorriu debochada

—. Não nos casamos, não lhe devo consideração alguma. Você é um louco, acha

que temos ligações e prova isso usando um anel que não quer dizer

absolutamente nada — levantou-se, caminhou até a porta e a abriu —. O que

aconteceu no passado foi um erro, conheci a pior pessoa que existe no mundo e

me arrependo. Fique longe das pessoas que gosto, principalmente de Rui, ou eu

conto para a polícia tudo o que sei!

— Não seria capaz — o homem caminhou até a escritora retomando o

argumento de sempre; encarando-a friamente prosseguiu: — Não colocaria a

própria cabeça em risco.

— Por causa de quem amo não pensaria duas vezes.

— Então vamos mudar o acordo — aproximou-se do ouvido de Daniela, a

voz enrijecida, ameaçadora —, conte o que sabe e quem morre é o seu

namorado — segurou a mulher pelo braço, pressionava-a contra si, exibia no

olhar toda a revolta e crueldade —. Nossa conversa ainda não acabou,

ficaremos juntos custe o que custar — empurrou-a contra a parede —. A

propósito tenho dois franguinhos no meu galinheiro e garanto que eles

possuem um alto valor — fez seu comentário sujo —. Quando souber quem são

eles se rastejará aos meus pés, suplicará a minha misericórdia sobre cada vida

inútil daqueles que a cercam.

Não era uma ameaça ou uma simples hipótese.

Era uma promessa.

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“Marcelo e Gilmar, além de irmãos, eram grandes parceiros na vida,

aproveitavam-se da condição de gêmeos para que, nas muitas confusões, nunca fossem

realmente descobertos. Se um era a carne, o outro era a unha; se um sofresse alguma dor

o outro dela compartilhava; confiança os unia e amizade os regia.

Toda aquela união os envolveu pela infância, eram vistos pelos olhos que os

rodeavam como exemplos de companheirismo, os pais sentiam orgulho dos bons filhos

que tinham, os amigos agradeciam por contarem com duas nobres pessoas; o futuro

prometia ser ainda melhor.

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Durante a adolescência dividiam segredos, anseios e conselhos. Nos namoricos

contavam com a ajuda um do outro; no colégio se auxiliavam nas provas, eram

verdadeiros irmãos, grandes amigos de sangue.

Próximo da maioridade, Marcelo se viu perdidamente apaixonado por Kátia, a

garota que mais chamava a atenção. Os dois acabaram envolvidos, pareciam se amar

realmente, o adolescente imaginava construir uma família coma garota de traços

orientais, prometia amá-la por toda a vida.

Um triste dia, porém, foi alertado por um de seus amigos que se alertasse um

pouco mais sobre a namorada, descobriu que ela não era tão fiel quanto parecia, não o

amava como dizia. Revoltado com aquilo entrou em casa precisando desabafar, abriu a

porta do quarto do irmão e ao notar o que acontecia ali sofreu um colapso, um susto,

sentiu-se um grande imbecil; se confiou em alguém agora se arrependia.

Gilmar sempre amou o irmão com todas as forças e sempre que podia declarar tal

sentimento o fazia. Nunca seria capaz de feri-lo, jamais intencionou destruir a sua vida,

antes só se sentiria feliz se ele assim também estivesse.

O apoiou grandemente no relacionamento com Kátia, esteve sempre aberto aos

desabafos do irmão e sempre o aconselhou com sabedoria. Não tinha olhos sobre a garota,

seu coração pertencia à outra pessoa, mas a coreana o desejava ardentemente.

Cansada de jogar o seu charme para cima do rapaz e apenas receber desprezo,

Kátia foi um pouco mais ousada na noite em que teve a oportunidade; desafiou-o a lhe

provar que era um homem, jogou baixo e conseguiu o que queria, teve seu desejo

atendido, um sórdido desejo.

Ao encarar o olhar decepcionado do irmão Gilmar se deu conta do que estava

fazendo; se sentia repulsa por aquela garota que o fez cometer o maior erro de sua vida

agora sentia nojo; tentou se explicar, tentou mostrar a própria justificativa; confessou

que foi um traidor, um fraco em ceder às investidas, e, ressentido, suplicou pelo perdão

de Marcelo.

O jovem adolescente, por sua vez, tinha os ouvidos fechados, grande era aquela

decepção, muito afligido estava o seu peito; não suportava ouvir a voz daquele que por

muitos anos nunca conseguiu viver sem, sua presença naquele momento o enojava.

Pediu aos pais que o ajudassem a morar no exterior, seu desejo fora atendido; pensou

que assim aquele pesadelo terminaria. Na verdade seu corpo esteve longe do Brasil, mas

seu pensamento sempre esteve naquela ignóbil noite”.

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O professor de matemática contou aos seus dois melhores alunos toda

aquela história, sentia-se responsável pelos caminhos que o irmão escolhera,

revelou que o seu maior desejo era voltar no passado e corrigir aquele erro que

o afastou da única pessoa que poderia confiar.

— Causei a sua dor, a sua descrença nas pessoas, a sua corrupção —

lamentou —. Transformei o meu irmão em um monstro que nem eu sabia o

quão terrível poderia ser; fui um moleque tentando provar ser um homem.

— O que aconteceu foi uma fatalidade, um erro inconsequente, não dá a

ele o direito de querer tirar a vida de qualquer um e instaurar o pavor em

outros — Gustavo opinou —. Isso se chama egoísmo.

— E o que nós temos a ver com isso? — Isaque questionou —. Nem

nascidos éramos, nem os conhecíamos, por que estamos aqui?

— A cidade toda os conhece, todos os admiram grandemente, vocês são

aquilo que ele e eu éramos — Gilmar esclareceu —. Atacar vocês é como atacar

os outros, ele quer se vingar de todos. A notícia se espalhou na época, o

tacharam de muitas coisas, foi zombado ao extremo, só essa pode ser a

explicação.

— O que importa é que não vamos pagar por esse egoísmo, por esse jeito

errôneo de pensar e agir — Gustavo disse convicto de que o escape surgiria —.

Vamos nos salvar!

<<>>

Ventava. Chuviscava. Fazia muito frio. Aquela manha de terça-feira

anunciava a proximidade do inverno e deixava à mostra o estilo da estação.

Ajeitou o carro, estacionou com precisão, juntou as pastas, guardou as

chaves no bolso, tentou abrir a porta, mas sentiu que algo não deixava; olhou

pelo vidro e se espantou com a visão. Obrigado, abriu a porta do passageiro, já

articulava planos sombrios.

— Então quis me matar — Ayshla sorria tranquila.

— Quem é você? — se fez de desinformado —. E desde quando sou um

assassino? Não passo de um simples matemático que tanta ganhar a vida dando

aulas.

— Guarde esse discurso para os seus inocentes alunos, não para mim.

Devia tomar cuidado em quem confia seus assuntos pessoais — tirou do bolso

um documento —, Gilmar Faria, é esse o seu nome?

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— Finalmente o encontrei — tentou recuperar o que perdera, mas a garota

foi mais esperta —. Onde encontrou? — seu sorriso amarelo tentava mostrar

uma inocência que não existia.

— Por incrível que pareça estava junto de um dos bandidos que tentaram

me matar, mas que acabaram envenenados pelo próprio veneno. Não adianta

mentir, eu sei quem é você, líder...

Irado, Marcelo agarrou o pescoço de Ayshla, enforcava-a sem receios, sem

qualquer piedade, seu objetivo era claro.

— O que aqueles incompetentes não fizeram eu faço — ver a garota se

avermelhar radicalmente parecia agradá-lo, na verdade aquele era o seu desejo

de muito tempo, a coreana representava dor em sua vida.

Preparada para tudo, Ayshla tirou do bolso o aparelho de choque, não

hesitou em descarregar a eletricidade no pescoço do opressor; vendo-se livre

puxou os cabelos do meliante e chocou sua testa contra o volante.

— Começa agora uma guerra entre mim e você — ameaçou

profeticamente —. Se prepare para pagar por todos os seus crimes!

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Romântico Anônimo

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Capítulo 63

Convivência não é algo que acontece da noite para o dia, ela se origina a

partir da sequência de dias, semanas e meses. É o que torna colegas em amigos

e, mais tarde, em melhores amigos; é o que determina a paixão íntima entre

casais; é o que nos faz reconhecer nosso próprio “eu” naquele com quem

convivemos; é o que nos ensina cada detalhe do nosso constante companheiro.

Convivência não se resume em passar dias e mais dias ao lado de alguém,

convivência é compreender esse mesmo alguém em qualquer situação; a ligação

da convivência não é tão simples quanto se acredita, é complexa e complicada.

Por causa dela, ao nos encontrarmos sem a rotineira companhia, sentimo-

nos como se algo estivesse errado, como se tivéssemos nos esquecido de calçar

os sapatos ou vestir a camisa. Pode avaliar, imagine-se longe daquela pessoa

com a qual você sempre acorda junto, a saudade não será efeito apenas do

amor, é a convivência clamando por aquela companhia.

Gabriela se sentia desamparada e incapaz. Desde que chegara à Cidade da

Paz foi Gustavo o seu melhor amigo, a sua fiel convivência. Acostumou-se com

sua presença, já fazia parte da sua vida, parecia fazer parte do próprio “eu”.

Todas as manhãs era recebida pelo garoto; em todas as aulas sabia que ele

estava logo atrás de si; em todos os momentos poderia contar com o namorado.

Mas agora era diferente. Agora a distância era longa. Agora a Adolescente

Apaixonada não conseguia ao menos suspeitar de onde o Romântico Anônimo

poderia estar. Encontravam-se separados, longe um do outro, sem a companhia

um do outro. Olhar para a carteira atrás de si e não encontrar o jovem

sorridente causava um nó em sua garganta, a luta contra o choro.

O primeiro que correu atrás dela e mostrou estar realmente apaixonado

não somente pelo seu exterior como também pela alma que carregava, fazia

parte da sua vida, era como o ar que ela necessitava para viver; dele vinha o

sustento para o seu coração. Júlia não conseguia acreditar que alguém tão puro

e bondoso quanto Isaque estivesse passando por uma situação tão indesejável,

não poder fazer nada a irritava ainda mais. Fora ele a primeira pessoa que a

compreendeu e com extremo carinho tentou ajudá-la a passar por cada segundo

de dor. Ele era o sentido da sua vida e sem aquela presença inestimável não

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havia razões para prosseguir na caminhada. Encarar a carteira ao lado e

encontrá-la vazia era conflitante, causava os piores sentimentos.

O colégio não era o mesmo sem a famosa dupla, a cidade não era mesma

sem a lição de amizade que os admirados garotos transpassavam por onde

pisassem. As pessoas se revoltavam com aquilo e não aceitariam pacificamente

que o pior acontecesse, mesmo que a única solução fosse quebrar a maior

mensagem que o município declarava ao mundo.

De uma coisa todos estavam certos: Isaque e Gustavo não estavam

sozinhos nessa guerra.

<<>>

Medo é um sentimento que atrai tantos outros. Com o medo vem a

ansiedade, a falta de crença, os pensamentos pessimistas, a ideia de que tudo e

todos representam motivos para desconfianças. Por causa do medo nos

refugiamos dentro de nós mesmos, evitamos colocar o rosto ao mundo, fazemos

de tudo para que ninguém nos note; ainda que continuemos nossas vidas

normalmente acabamos nos fechando àqueles que nos rodeiam, não podemos e

nem conseguimos confiar em ninguém.

Daniela sentia medo. Medo do que pudesse acontecer consigo e, mais

ainda, medo do que poderia acontecer com aqueles que estivessem ao seu

redor. Arrependia-se ao ponto de sentir dor na alma por, no passado, ter

confiado em quem não merecia, ter depositado sentimentos nobres em quem

não os valorizava; fato era que o arrependimento não impedia os reflexos do

passado sobre o presente.

Fazia compras, atenta a quem pudesse estar observando-a, cuidando para

que não fosse pega de surpresa. Precisava fazer compras, precisava abastecer

sua casa, não tinha a opção de pular para a próxima tarefa, menos arriscada.

Perturbada, desconfiada, tinha um semblante assustado, a noite que se passara

ainda garantia o pavor em seu peito, um pavor que se alastrava pelo corpo, um

pavor cruel.

— Aconteceu alguma coisa? — o soar da grave voz atrás de si arrepiou o

seu corpo, não esperava por aquilo, detestava sustos.

— Rui... — agarrou-se ao pescoço do namorado como uma criança que se

agarra ao pai.

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— Você está bem? — havia observado a namorada, já suspeitava de que as

coisas estivessem em desordem.

Desabafar ou não? Confiar ou não?

Embora fosse uma mulher talentosa, uma escritora reconhecida com

tantos seguidores, alguém que demonstrava ter completo domínio sobre as

próprias emoções, Daniela na verdade era frágil, não conseguia se entregar

tanto às pessoas ao ponto de nelas depositar confiança, resultado da decepção.

Escrevia pela liberdade que tinha em construir um mundo ideal, onde a

harmonia ditava as regras, onde as personagens da história pudessem viver

seus relacionamentos certos de que seriam felizes para sempre; escrevia para se

refugiar de um mundo tão bruto.

Mas precisava tentar, nem que fosse um pouco.

— Não, não estou bem — respondeu.

— Pode contar comigo para o que precisar — naquele corredor do

estabelecimento o empresário acolheu a escritora em seus braços, transmitindo

proteção, cuidado, confiança —. Sabe que é muito importante para mim e se

estamos em uma relação é para que vivamos cada parágrafo da nossa história

juntos, sejam eles bons ou ruins.

— Sei disso e agradeço muito — apertou o homem, procurava nele um

refúgio para as tantas opressões —. Tem uma pessoa me importunando, um

alguém que muito gostaria de esquecer, excluir da minha vida, mas que insiste

em nela permanecer — encarou os olhos castanhos do maior —. Essa pessoa é

terrível, fez-me confiar nela e acabou com minhas expectativas, tornou os meus

sonhos em um conturbado pesadelo. Estou sendo ameaçada, amedrontada, não

sei o que fazer.

— Vamos procurar ajuda — disse aquilo como se fosse fácil.

— Não, não podemos fazer isso! — demonstrou receio —. Você pode

perder a sua vida, sabem que estamos juntos.

— Confie em mim — repousou a mão sobre o rosto abatido —. Nada vai

separar a gente, o melhor que temos a fazer é entregar essa infeliz pra a polícia.

Boa ou má era a opção mais sensata.

<<>>

— Espero que tenha coisas objetivas a falar — o delegado se recostou na

poltrona —, vidas precisam ser salvas.

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— O líder da organização criminosa se chama Marcelo. Marcelo Faria.

Relacionamo-nos no passado, um triste acontecimento, sofri muito. Agora ele

voltou a me importunar, quer a todo custo voltar com o impossível, já fez

inúmeras ameaças — Daniela deu o seu depoimento.

—Se já sabia que ele é o líder por que não denunciou antes? Ocultar crimes

lhe assegura ser uma cúmplice neles.

— Ela foi ameaçada de morte caso contasse — Rui tomou a palavra —. O

senhor sabe como são esses vermes, pegam no ponto mais fraco de suas

vítimas.

— É... Eu sei... Mais algo coisa?

— Pelo que me falou mantém duas pessoas em cativeiro — ajustou a bolsa

no ombro –. Não sei quais são suas intenções, mas tenho certeza de que são as

piores.

Atento e observador o delegado agradeceu aquela conversa, agora sabia

onde estavam os jovens sequestrados, mas existia um problema.

“Se tentar alguma gracinha eu explodo essa cidade!”

Como agir? A resposta chegava.

— Como se chama? — arqueou a sobrancelha.

— Ayshla — manteve a postura ereta.

— Por que acha que pode ser uma aliada no combate ao líder?

— Porque era sua recruta, sei como age, sei quem é e quais crimes pratica.

— Se era uma recruta também é uma criminosa — inclinou-se sobre a

mesa, mãos no queixo, olhos desafiadores.

— Ou você trabalha para ele ou ele corta a sua cabeça — imitou a postura

do delegado.

— Por que confiaríamos? Como podemos saber que não passa de trapaça?

— Porque eu sei como entrar lá sem que ele saiba — sorriu triunfante —.

Vocês sabem?

Largou a caneta sobre a mesa, jogou as costas no encosto.

— Não me decepcione — tragou o cigarro, soltou a baforada para o lado,

aquilo o acalmava —. Ou quem corta a sua cabeça sou eu.

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— Boa tarde, meus queridos — o líder adentrou as profundezas de seu

esconderijo —. Irmãozinho, confesso que o seu trabalho tem sido impecável,

pena que estou naufragando-o.

— Seu problema é apenas comigo — o professor de matemática encarava

aquele com quem um dia vivera coisas incríveis —. Porque está mexendo com

os inocentes? Esses dois nada têm a ver com o que aconteceu entre nós.

— Concordo, eles não têm culpa mesmo, mas a cidade tem — sentou-se na

cadeira ao centro —. Todos aqui riram de mim, humilharam-me, inventaram

piadas às minhas costas — os ressentimentos eram muitos —. Agora retribuirei

o mal que me fizeram. Esse é o problema de cidade pequena do povo

linguarudo, todos se conhecem, fingem se amar e obrigam de você a melhor

conduta possível — estalou os dedos e o pescoço, seus gestos apenas

transmitiam crueldade —. Esses dois ignorantes conquistaram os medíocres

agindo como eles queriam, exibem essa amizade nojenta e ilusória como se

fosse a melhor coisa do mundo, todos os admiram como eu fui admirado, mas

no primeiro vacilo os crucificarão a os farão de chacota, como a mim foi feito.

Apago-os, poupo-os de serem cobrados mais tarde e ainda deixo esses cidadãos

insignificantes irados com a minha vingança — encarou os adolescentes

abatidos —. Garanto que vão me agradecer — autorizou a entrada de alguns

homens —. Comam tudo — traziam pratos —, não sabem quando terão a

próxima refeição.

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Capítulo 64

Agora a volta para casa se tornava cansativa, não tinham mais a

companhia daqueles que muito amavam, daqueles que faziam a diferença em

suas vidas, daqueles que conseguiam transformar um dia tão chuvoso em um

dia especialmente iluminado para elas.

Júlia e Gabriela caminhavam juntas após o monótono período de aula,

estavam em silêncio, não conseguiam sustentar uma conversa perante tantas

adversidades, não encontravam palavras que pudessem expressar o que

sentiam. A melhor opção era acompanhar uma à outra, apoiar uma à outra

naquelas horas de aflição.

Chovia forte. Poças d’água se formavam no meio da rua e uma correnteza

corria pelas guias das calçadas. Ventava frio, os dedos tremiam e a ponta dos

narizes se avermelhavam; o frio era ainda pior sem companhia daqueles que

não a aqueciam apenas fisicamente, mas que transmitiam calor às almas

necessitadas.

Pisaram na faixa.

Esqueceram-se de olhar para os lados como aprenderam desde pequenas.

Um acidente.

Júlia fora a vítima.

Nada fazia sentido. Tudo parecia tão bem, a vida parecia perfeita, contudo

de uma hora para outra as coisas se fecharam, o que antes irradiava alegria

agora mergulhava em sombras de tristeza, o que antes indicava um a um futuro

esplêndido agora passava por cima de qualquer sonho. Não existiam

explicações para tantas adversidades em tão pouco tempo.

Por mais que procurasse dentro de si por algum conforto Gabriela não

encontrava; por mais que tentasse compreender os fatos sentia-se perdida em

um mundo tão confuso. Se por um lado sentia-se sozinha pela ausência do

namorado que, segundo suas próprias palavras, era o melhor do mundo, por

outro sentia-se sem apoio já que seus amigos, Isaque e Júlia, também foram

pegos pelo imprevisível destino.

A garota dos olhos azuis estava no hospital aguardando por boas notícias,

acompanhou o inocente motorista que não poupou esforços para ajudar, mal

sabia ele que as dificuldades já eram grandes e opressoras. Sentada na recepção

apoiava a cabeça no banco à sua frente, fazia preces em sua mente, tentava

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encontrar forças para acreditar que a tempestade passaria e que logo depois

dela o sol raiaria.

— Como ela está? — uma mão pousou sobre o ombro da Adolescente

Apaixonada, um toque tranquilo.

— Ainda desacordada — ergueu os olhos abatidos, inchados,

avermelhados pelas tantas angústias de uma má fase.

— Vai ficar tudo bem — Rui sabia que as coisas estavam fáceis, sabia que

os problemas para aqueles jovens estavam um tanto intensos, mas também

sabia que aquilo apenas os fortaleceria. Tendo liberdade para tal acolheu a

garota em um abraço de tio para sobrinha, afinal de contas aqueles bons amigos

eram todos de uma única família.

A Adolescente Apaixonada aproveitou o apoio para descansar suas

lágrimas, a dor na alma parecia insuportável, refletia no corpo.

— Não fique assim — alguém se sentou ao seu lado acariciando suas

costas, passando conforto —. Você não está sozinha nessa.

Sem reconhecer a voz feminina Gabriela levou os olhos para a direção do

som, encarou a mulher vestida elegantemente, de longos cabelos claros, sorriso

encantador e olhos azuis como a profundeza do mar, aquela era Daniela

Almeida, a mulher que constava o nome nos documentos que a jovem

adolescente conseguira no orfanato, a mulher que era exibida nas buscas

virtuais, a mulher que anos atrás deixou a filha aos cuidados de outra pessoa.

Aquela era mãe de Gabriela.

As surpresas pareciam não ter fim.

<<>>

O dia inteiro foi de chuvas que intercalavam a intensidade periodicamente

e a noite não prometia ser diferente.

No bairro afastado da Cidade da Paz imperava o silêncio, apenas o

barulho das gotas que pingavam dos telhados e se juntavam às poças logo

abaixo era ouvido, o vento por vezes forte também marcava presença.

A garota sentia o peito pular descompassado, as mãos frias suavam de

uma forma diferente, reflexo do pavor, da mesma adrenalina que era lançada à

sua corrente sanguínea e tornava os sentidos mais aguçados e a espera pelo

ataque mais previsível. Vestia roupas pretas como os demais, luvas que

escondiam as unhas bem feitas e máscara que mesclava os traços femininos, os

cabelos cortados não a denunciariam.

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Trêmula, caminhava pelos esconderijos da construção subterrânea que aos

olhos inocentes se resumia em um casebre mal construído onde vivia um velho

miserável. Se encontrasse alguém pelo caminho cumprimentava com a

comunicação secreta dentro da facção que a poupava do esforço de engrossar a

voz, tal cumprimento baseava-se apenas às sinais com a mão. Certa do que

precisava fazer se colocou perante os prisioneiros, fechou a porta

vagarosamente, sacudiu os garotos e o mais velho acordando-os, o plano tinha

início.

— Quem é você? — Isaque questionou, cansado daquele lugar, cansado de

sentir medo, cansado de tentar imaginar qual seria o seu futuro.

— Alguém que vai tirá-los daqui — descobriu o rosto relevando a

identidade, era Ayshla.

— Não tente nos enganar mais uma vez — Gustavo reclamou

desacreditado —, fomos idiotas em cair no seu papinho, mas não vamos lhe dar

o mesmo prazer de novo.

— Antes de julgar apenas ouça! — bronqueou —. Como já falei ou

entregava a vida de vocês ou a minha, eu não queria morrer — declarou fria,

aquele era seu jeito prático de ver as coisas —. Não os conhecia, não faço ideia

de quais podem ser os seus sonhos, foi fácil para eu entregá-los, não existia

qualquer consideração entre nós — encarava os olhos atentos sobre si —. Tem

muita gente lá fora sofrendo com a ausência de vocês, não posso permitir que

isso persista sabendo que tenho capacidade para mudar toda essa situação —

suas palavras além de convincentes eram verdadeiras —. Além do mais fui

enganada, apenas me usaram, tentaram tirar a minha vida e agora quero

vingança — declarou o principal motivo por estar naquele lugar correndo

grandes riscos —. Prometo que posso fazê-los de vítimas da história em grandes

heróis dessa cidade e dessa vez não estou inventando o inexistente.

— Qual é a garantia? — o professor de matemática precisava entender os

passos a seguir.

— O delegado está comigo — mostrou o distintivo oficial, aquela era a

prova para que acreditassem em suas palavras.

A resposta seguiu-se de instantes de silêncio. Gilmar enxergou na coreana

alguém do passado, alguém que transformou a sua vida completamente,

alguém que determinou como seria futuro que agora já era presente. Não havia

dúvidas, aquela era a filha que dele fora tirada sem que pudesse reagir, aquele

era o instrumento que o seu irmão usou para torturá-lo.

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— Como vamos sair daqui? — o rapaz dos olhos verdes perguntou

descrente mostrando as correntes que o afligiam —. É impossível.

—Não sou qualquer uma — tirou das calças as chaves certeiras —.

Esqueceram-se de que fui em quem os prendeu aqui? — libertou um a um —.

Existiam chances para que algum dia eu estivesse no lugar de vocês, precisava

ma salvar — sorriu esperta —, fiz cópias! Agora confiam em mim?

— Ninguém aqui quer morrer — o Romântico Anônimo demonstrou

preocupação.

— Ninguém aqui vai morrer — a porta foi derrubada —, sem antes me

ouvir — Marcelo ali se fez presente, trazendo consigo o terror que apenas o seu

olhar era capaz de instaurar.

<<>>

Pela noite, quando colocamos a cabeça no travesseiro, fechamos os olhos e

tentamos nos esquecer do mundo que nos rodeia é quando a mente decide

trabalhar, os pensamentos surgem com força, as reflexões sobre tudo o que

aconteceu ao longo do dia se fazem presente, por muitas vezes a insônia e a

preocupação se tornam nossas grandes companhias enquanto o relógio

continua o seu curso.

A Adolescente Apaixonada não conseguia dormir, por mais que

procurasse pelo sono não o encontrava de forma alguma, isso porque as tantas

indagações a afligiam. Não conseguia acreditar que por um acaso se encontrou

com a mãe biológica e muito menos que ela estivesse tão perto de uma das

pessoas mais importantes em sua vida, não conseguia imaginar como seriam os

próximos encontros com a mulher que lhe deu a vida. Não tinha motivos para

odiá-la, afinal cresceu dentro de uma família que a acolhera com tanto amor,

sempre soube o que era ter pais e se não fosse pelo acaso talvez nunca

descobriria a verdade, no entanto não poderia confiar em alguém como Daniela

e, pior, não conseguiria esconder tal pensamento.

— Gustavo... — conversou com o celular que exibia a foto do bom rapaz

—, que falta você me faz — seria ele o seu diário, aquele que a ouviria até o fim

e que só se ela quisesse palpitaria alguma coisa, caso contrário declararia as

tradicionais palavras “estou com você” e as provaria em um abraço protetor.

Mas a realidade era outra, Gabriela deveria passar por aquilo sem o apoio

de ninguém, era o que pensava.

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Na calada da noite os camburões “invadiram” o bairro afastado, faróis

apagados, sirenes desligadas, velocidade mínina. Aproveitavam a chuva pesada

para que ninguém os notasse. O delegado e sua equipe cercaram o falso

casebre, naquela madrugada muita coisa aconteceria, as emoções seriam

vividas por ambas as partes, restava saber qual delas viveriam as boas.

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Capítulo 65

Olhares assustados. Semblantes apavorados. Mentes aflitas. Corações

perturbados.

O líder, porém, sorria perverso, encarava com desdém aqueles que por sua

causa tinham medo de perder a vida, a oportunidade em deixar um legado no

mundo, a esperança de encantarem ao universo com os seus sonhos, de fazerem

da vida algo melhor.

— Não quero que as coisas terminem tão sem emoção — Marcelo exibiu o

revólver que trazia no bolso, fechou a porta e se sentou na cadeira do centro

daquele quarto um tanto escuro, quente e angustiante —. Uma história só faz

sucesso por causa dos vilões, são ele que tocam o terror e fazem dos derradeiros

capítulos uma grande obra de arte — esticou os braços para cima estalando o

pescoço; pigarreou, tomou fôlego —. Colocarei o ponto final na história de

vocês, mas garanto que serão lembrados pela brutalidade — transmitiu seus

sórdidos objetivos.

“Suava.

Gritava.

Mordia o pano entre os dentes e rasgava o lençol da cama.

Fazia força.

A dor era intensa.

O choro ardido.

A criança coberta de sangue.

O parto fora um sucesso.

A coreana sorria feliz, tinha nos braços uma menina linda, que teria por nome

Ayshla, já fazia planos para o futuro. Ainda que tivesse que cuidar pela sozinha (Gilmar

se afastara radicalmente, ficaria sabendo da filha que tinha poucos meses mais tarde)

faria isso da melhor maneira possível, não deixaria a garota cometer o mesmo erro, a

ensinaria sobre os verdadeiros valores da vida.

Mas não era isso o que o destino reservava.

— Precisamos levá-la — a enfermeira quebrou o encanto entre mãe e filha —,

exames de protocolo.

— Eu sei — respondeu simpática, nada mais importava em sua vida, apenas

aquela criança possuía algum significado.

E assim foi feito.

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Mas aquela enfermeira possuía ambições, era movida a esse sentimento tão

contraditório que a uns leva ao pedestal e a outros à ruína. Ela tinha aliança com

alguém que não desejava o bem da coreana, com alguém frustrado com a vida e que

apenas queria vingança; com alguém que lhe prometera privilégios desde que executasse

uma ‘simples’ tarefa. Entrou no quarto da mãe adormecida, procurou sua veia, injetou

ali o conteúdo mortífero.

— O que está fazendo? — a ginecologista responsável flagrou a funcionária no

ato —. Não receitei nenhum medicamento por vias intravenosas.

A novata não sabia o que falar, cegada pelas possibilidades de ascensão deixou de

se importar com as consequências de sua escolha, mas agora, com a visão restaurada, se

encontrou em uma encruzilhada.

A paciente despertou procurando ar, estava desesperada, espumava pela boca, foi

abraçada pela morte. A enfermeira saiu dali algemada não apenas pela polícia como

também pela consciência, como fora capaz de algo tão desprezível?

Marcelo, o autor daquele cruel plano, era visionário, pensava em todas as

possibilidades, guardava cartas na manga. Dentro da maternidade tinha os seus

contatos, conseguiu ajeitar tudo, teve a criança em seu domínio. Começava sua

vingança que apenas terminaria anos mais tarde”.

— E, então, eu os declaro como pai e filha — o líder da vil organização

criminosa anunciou com desprezo —. Felizes com o final da história?

A coreana tentava controlar o choro, fazia força, mas as lágrimas pouco se

importavam com o esforço e corriam velozes, não tinham fim.

Por toda uma vida ela acreditara não ser ninguém, não ter ninguém, ter

surgido pelo acaso, estar no mundo por estar, ser a prova do que é o egoísmo,

do que é o desprezo humano. Durante todos aqueles vinte anos pensou que

fora rejeitada, vendida àquele homem que tanto a importunou, como se fosse

uma miserável mercadoria, como se não passasse de fonte de lucro em um

mundo onde as pessoas parecem apenas correr atrás das riquezas mundanas e

se esquecem dos reais valores que a vida possui.

Gilmar, por sua vez, não suportava a ideia de ter sido privado de amar

alguém que era sangue do seu sangue, carne da sua carne, espírito do seu

espírito. Alguém que, por certo, precisou do seu carinho, porém não o

encontrou; que desejou os seus conselhos, no entanto não os teve; que esperou

pelo seu amor, mas nunca o pôde sentir. Diante aquela revelação se culpava por

ter ignorado aquela que o distanciou do próprio irmão, se soubesse antes que

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ela esperava por um filho seu teria evitado muitas coisas, talvez aprendesse a

amar aquela mulher em nome de uma inocente.

— Já que ninguém tem nada a declarar acho que já estamos resolvidos —

puxou a garota para mais perto de si —. Olhe para esses dois paspalhos —

indicou os adolescentes —, indefesos, desprotegidos, inocentes em toda essa

situação, acha justo que eles paguem por algo que em nada lhes diz respeito?

— Não.

— A decisão sobre o que acontecerá na vida deles é sua — estendeu o

revólver —. Atire no seu pai, naquele que nunca esteve presente, no grande

culpado por tudo isso e eu os deixarei viver. Caso não aceite a proposta não

terei outra opção — aquele fora o seu plano anos, colocar a vida do pai nas

mãos da própria filha.

Os olhares se cruzaram. Gilmar reconhecia que era responsável por aquilo

e que ele deveria ser punido, não se opôs ao discurso, antes o aceitou. Ayshla,

no entanto, não culpava o pai por aquilo e também não perderia a

oportunidade de viver o que sempre quis.

Desprevenido, Marcelo recebeu um chute no estômago, cambaleou para

trás, cuspindo sangue.

— O único que deve morrer aqui é você — a coreana o encarava repleta de

ódio —. Egoísta desgraçado!

Irritado por ser derrubado por uma “insignificante garota”, o líder se

colocou em pé, guardou a arma na cintura, partiu para a luta. Ora se defendia

dos golpes outrora era quem os dava, o embate era entre profissionais. A garota

era focada, ao mesmo tempo em que se defendia, atacava, encurralou seu

opressor sem muita dificuldade, o tinha em seu domínio.

Mas o jogo virou.

Marcelo conseguiu agarrar Ayshla, imobilizando-a no pescoço,

pressionando seu abdômen com o cano do revólver; não pouparia a vida

daquela garota.

Gustavo viu a oportunidade para ajudar, tinha em mente atacar o

medonho rival, mas o líder foi mais esperto, defendeu-se do inexperiente garoto

lhe atingindo com uma coronhada na cabeça. Tonteou, caiu no chão, foi

socorrido por Isaque.

Mas o criminoso se esquecera de Gilmar, que aproveitando sua distração

libertou a coreana de suas mãos e agora fazia força contra ele, tentava controlá-

lo, privá-lo de se morrer, de atirar, de fazer qualquer coisa.

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— Corram! — jogou-se no chão, mantendo o irmão preso entre suas

pernas e braços.

O meliante tentava, fazia força, mas não conseguia se libertar de seu

cativeiro, que o segurava contra o chão como se a sua vida dependesse daquilo,

precisava poupar os inocentes.

Um disparo qualquer. Dado a lugar nenhum.

Os jovens adolescentes não tiveram escolha, abriram a porta apressados,

deram uma última olhada para trás.

— Vou ficar bem! — o professor esbravejou; eles correram.

O Romântico Anônimo não conseguia enxergar nada, sua visão era

cercada por um breu descomunal, já sabia o que acontecera, mas não conseguia

assumir. Enquanto Ayshla abria caminho pelos corredores apertados pronta

para qualquer surpresa, o futuro engenheiro ajudava seu amigo a caminhar.

Tiros foram ouvidos.

A polícia invadiu o lugar.

— Já chega! — Marcelo não poupou forças nos dentes ao morder o irmão,

arrancando-lhe sangue, tirando-lhe as forças —. Deveria ter feito isso há muito

tempo — levantando-se, distribuiu pontapés no homem deitado à sua frente,

acertava-o no rosto e no corpo, fazia-a sangrar pela boca e nariz, causava

hematomas por onde golpeava —. Você acabou com a minha vida — disparou

contra o gêmeo, não uma, mas diversas vezes, parecia se satisfazer a cada cruel

disparo.

— Vão em segurança — o delegado se encontrou com os fugitivos —.

Limpamos o caminho, esperam por vocês lá fora.

O pesadelo parecia chegar ao fim.

Preparados para qualquer emboscada o delegado e sua equipe eram

rápidos, deixavam as armas em suas dianteiras certos de que o inimigo atacaria.

Estouravam as fechaduras das portas, abriam os cativos, nada encontravam

além de instrumentos de tortura.

Continuavam a missão. Com suas lanternas clareavam o caminho,

precisavam pôr as mãos no principal alvo. Entraram onde antes os prisioneiros

estavam, depararam-se com o homem ensanguentado no chão, ainda possuía

vida e, além dele, uma abertura que dava acesso à escadas que levavam ao lado

de fora, mesmo lugar por onde Ayshla entrara.

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— Droga! — o delegado praguejou —. Corram! Avisem para fechar as

saídas da cidade, vou tentar salvar esse aqui — ordenou.

Finalmente ar fresco. Liberdade de volta.

Um carro preto deu a arrancada.

Furioso.

Passou por entre os jovens.

O motorista disparou.

Chuva de tiros.

Policiais tentavam se defender atrás dos carros, levavam os braços às

cabeças.

Ayshla tentou empurrar os garotos ao chão.

Isaque e Gustavo caíram baleados, como sem vida.

O carro cantou pneu no chão de terra, exalou o cheiro de borracha

queimada, fugiu deixando os rastros do crime.

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Capítulo 66

Algumas pessoas são unidas pela vida ao ponto de reconhecerem gestos,

olhares e palavras. Estão unidas ao ponto de sofrerem a mesma dor e a mesma

alegria. Nada as pode separar, nem mesmo a distância, porque o que as une é

mais forte até que o “todo-poderoso” tempo.

Estudaram juntos desde o início, cresceram e juntos aprenderam a se

conhecer, entraram na adolescência e não se intimidavam em, um com o outro,

compartilhar os segredos dessa fase tão conturbada. Tinham um ao outro para

enfrentar os desafios, confiavam um no outro os próprios anseios. Eram unidos

não pelo acaso, mas pela vida.

Agora, como na maioria das situações, dividiam o mesmo quarto do

hospital, estavam um ao lado do outro em macas distintas, haviam passado

pelos piores momentos de suas vidas... juntos.

Tomavam soro, os corpos enfraquecidos descansavam, os ferimentos eram

cuidados pelos curativos. Dormiam após momentos de terror, momentos nos

quais as mentes não puderam relaxar, não puderam acreditar no melhor,

apenas acreditavam em um triste fim.

Os olhos se abriram, ao mesmo tempo.

Isaque sorriu com os olhos atentos de seus pais sobre si, desejosos por um

abraço do único filho que tinham, do garoto que sempre fora motivo para

orgulhos. Os pais do Romântico Anônimo, mais emotivos, choravam de alegria,

de alivio por agora terem certeza de que o pior passara; mas Gustavo não pôde

contemplar os semblantes animados, antes se viu mergulhado em uma

escuridão; perante os seus olhos apenas sombras.

— Como vocês estão? — Ana questionou, precisava ouvir a voz daqueles

que muito amava.

— Agora felizes — o futuro engenheiro respondeu tranquilo, voz serena,

rosto calmo.

— Sentimos tanto a falta de vocês — Juliana declarou seus muitos

sentimentos —. Não fazem ideia do quão importantes são para nós e de como

tornam a vida mais suportável exibindo por onde passam isso que os une —

passeou a mão pela testa do filho, tocava-o como se estivessem separados há

tantos anos.

— É incrível como passam pelas coisas juntos — Marcos, o diretor do

hospital, agora trabalharia sossegado.

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— Sempre se ajudando — Eduardo se orgulhava por aquilo, a fidelidade,

em sua concepção, era o que fazia os homens seres nobres.

— Agora, mais que tudo, vou precisar não só dele, como de todos vocês —

Gustavo declarou —. Acho que os desafios não terminaram — sorriu singelo

encarando o vazio —. Estou cego — afirmou pacífico —, não consigo ver nada

— uma lágrima discreta escapou dos olhos castanhos. O jovem adolescente

sempre procurou forças para dividir com aqueles que possuíam grande valor

em sua vida; quando o melhor amigo passou pela leucemia ele o fez acreditar

que seria apenas uma fase; quando a namorada tentava se privar da vida por

causa das limitações ele a encorajava; agora sua missão era se ajudar,

compartilhar forças consigo mesmo. Não se revoltaria, não se sentiria um

injustiçado, não se refugiaria do mundo inteiro; antes se manteria em seu ideal:

todas as coisas que acontecem possuem um grande propósito.

A revelação pegou a todos de surpresa, não sabiam o que falar, o que

fazer, pensavam que tudo voltaria ao normal, achavam que a vida prosseguiria

em seu curso, mas não era isso o que a ela reservava, agora distribuía testes.

Sonhos poderiam acabar, desejos deixariam de existir, o futuro brilhante e

glorioso que se era imaginado não passaria de ilusão. Para Isaque, se ele

estivesse naquela situação, aqueles seriam os pensamentos que dominariam sua

alma, não teria esperanças de melhora, mas, vendo a paz que do amigo de

infância radiava, teve a certeza de que reviravoltas aconteceriam. Virou-se para

o lado, encarou Gustavo que parecia observar o teto, declarou o seu apoio, seu

mais sincero apoio:

— Pode contar comigo para tudo! — a promessa de anos atrás se manteria

eterna.

— Eu sei — como sempre soube —. A gente vai sair dessa — fé, sua maior

riqueza.

<<>>

Andava pelos corredores do hospital sem saber aonde ir, desolada,

desconsolada; não teve tempo de nem ao menos se despedir, de nem agradecer

por tê-lo conhecido e declarar que, diferente do que muitos fariam, não o

culpava por aquela fatalidade. Agora, mais do que sempre, sentia-se solitária,

desamparada em um mundo confuso, cruel, encontrava-se sem respostas acerca

da razão de viver.

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Avistou a porta aberta, dentro do quarto aqueles que ali estavam por

causa da sua astúcia, do seu egoísmo; ali entrou acanhada, cabisbaixa, precisava

concertar o erro.

— Quem é? — Gustavo sentia-se angustiado a cada som que ouvia por

não saber a origem.

— Ayshla — o tom de voz de Isaque esbanjava indignação —. Depois de

tudo o que aconteceu ainda tem a capacidade de aparecer.

— O que queria que eu fizesse? — a coreana procurou se defender —.

Qual o ser humano que não teme a morte? Qual o ser humano que não seria

capaz de salvar a própria vida? O que fariam no meu lugar?

— Com certeza pouparia os inocentes — o de olhos verdes encarava

friamente aquela que tinha por ameaça —. O que quer aqui? Já não está

satisfeita por tudo? Por que não vai aproveitar o seu injusto final feliz com o seu

papai querido? — irado por todos os acontecimentos pouco se importava com o

que a garota poderia ter sofrido, não queria ouvi-la, não confiava nela.

— Se ele estivesse vivo... — sentou-se na poltrona em frente às macas

deixando o choro se manifestar —. Não tive pai e nem mãe, foram tirados de

mim por causa de sentimentos egoístas e agora, com a oportunidade de

conhecer aquele que me deu a vida, a tragédia aconteceu.

— Quer dizer que o professor Gilmar está morto? — aquele era o seu mais

querido professor, Gustavo sentiria muito tal perda.

— Ele não resistiu — a voz embriagada continuou a soar —. Os médicos

tentaram incansavelmente, mas ele partiu sem que pudéssemos trocar ao menos

uma palavra — inclinou a cabeça sobre os joelhos — ou um abraço...

O coração de Isaque se condoeu por aquilo. Vagarosamente se levantou da

cama, caminhou até Ayshla levando consigo o suporto do soro injetado em sua

veia, sentou-se ao lado da garota abraçando-a, cumprindo com o lema que

sempre procurou seguir: ajudar a quem pudesse.

— Se isso for conquistá-la saiba que ele foi um grande homem, nosso

melhor professor, amigo dos alunos, companheiro de quem o rodeasse —

descreveu quem era o professor de matemática —. Tenho certeza de que se as

coisas tivessem tomado um rumo diferente você viveria com um dos melhores

pais desse mundo ao seu lado, a bondade reinava em seu coração.

A coreana sorriu em meio às lágrimas, embora não fosse viver o que

almejava se sentia feliz por ao menos saber que jamais fora rejeitada.

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— E se quiser poderá contar com o nosso apoio — Gustavo anunciou

complacente —. Sei que é uma boa pessoa, caso contrário não teria voltado atrás

e nos ajudado, se quiser pode fazer do nosso grupo.

— Serpa bem vinda — o outro concordou.

Amparo. Pela primeira vez naqueles vinte anos de vida, Ayshla provou do

privilégio de ser amparada, de poder confiar em alguém; sentiu-se diferente

perante o sentimento que nascia em seu peito, o sentimento de amizade.

— Perdoem-me por tudo — enxugou as lágrimas insistentes enquanto

sorria exuberante —. Eu deveria ter agido de uma forma diferente, passado por

cima dos meus medos e colocado aquele verme no seu devido lugar. Prometo

que não me esquecerei dessa atitude que estão tento para comigo e que os

ajudarei no que precisarem — aquilo era um juramento, e juramento para a

coreana era um compromisso que teria validade até a morte.

<<>>

Juntas andavam pelo hospital para a visita noturna, ansiosas por reverem

aqueles que amavam de uma forma intensa, especial e inexplicável. Sentiam

saudades das vozes, dos sorrisos e dos abraços, sentiam saudade dos amados

namorados.

Júlia não conseguiu se conter. Logo que recebeu alta pela manhã — o

acidente não provocara graves sequelas — foi ao encontro do amado, envolveu

Isaque em um abraço apertado enquanto permitia o manifesto das tantas

emoções, finalmente o sentia em suas mãos, o apalpava, era real o que antes não

passava de sonho.

Ainda que sem jeito, tímida, Gabriela abraçou o namorado suave e

tranquilamente. Não conseguia acreditar que o pesadelo chegara ao fim.

Gustavo procurava na garota forças para declarar a surpresa indesejável,, a

abraçava como o grande e, quem sabe, único amor de sua vida.

Felicidade entre os amantes.

Alegria entre os amigos.

Tudo se equilibrava novamente.

— Preciso contar uma coisa — o Romântico Anônimo olhava para um

lugar vago, causando estranheza naquelas que o observavam —. Não quero que

se preocupem em demasia, estou realmente bem, tenho motivos de sobra para

somente agradecer, estou vivo e sinto a presença das pessoas que amo ao meu

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lado — mantinha o sorriso —. Levei uma pancada e perdi a visão — revelou de

uma só vez.

Não existiam palavras.

Não havia atitudes.

Foram pegas de surpresa perante uma notícia trafica dada de forma

delicada.

Os quatro amigos se reuniram em um abraço, dali para frente seria um

pelo outro, um com o outro, não importassem as condições.

Amavam-se e estavam juntos outra vez, o resto pouco importava.

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Capítulo 67

Era uma tarde agradável de segunda-feira, embora o inverno estivesse

mais próximo do que nunca não fazia tanto frio, o sol aquecia os corpos na

terra.

As flores que ainda resistiam ao outono exalavam seu perfume, o caminho

de pedregulhos era forrado por folhas mortas das exuberantes árvores, folhas

que, apesar da condição, possuíam uma beleza peculiar. Aproveitando a trégua

do frio, pássaros voavam de um galho ao outro, cantarolando o que apenas eles

entendiam, mas que garantia paz aos que ouvissem.

Os bancos ao redor eram ocupados por adolescentes que se amavam,

jovens que se desejavam e velhos que agradeciam pela companhia de longos e,

quem sabe, difíceis anos. Amigos se reuniam para desabafar os próprios

sentimentos, julgavam-se como estando em família, a família do coração.

Caminhavam de mãos dadas, em silêncio, sentindo a presença um do

outro, o toque um do outro, o calor um do outro. A conexão entre eles era

simplesmente perfeita, não precisava de fios, muito menos de torres que

transmitissem o sinal, bastasse as almas se aproximarem para que o mundo se

tornasse belo.

Sentaram-se em um dos bancos vagos, um do lado do outro, próximos um

do outro. Encostaram as cabeças, manteram as mãos unidas, permaneceram no

envolvente silêncio.

Mas, além de precisarem da companhia, necessitavam do som da voz,

desejavam conversar, ouvir as ricas palavras que um ofertaria ao outro; eram

como um só e, portanto, precisavam declarar seus pensamentos, aliviar suas

tensões.

— Encontrei-me com minha mãe — Gabriela anunciou, dando início ao

diálogo —. Foi por um acaso.

— Falou com ela?

— Não tive coragem — fez uma longa pausa —. Não sei se quero

continuar com isso.

— Precisa ouvir seu coração — aconselhou —. O que ele quer?

— Está confuso... Em uma hora fica convicto em desvendar todo o

passado, em outrora prefere que nada fosse verdade. Ao mesmo tempo em que

quero, não quero mais; não sei o que fazer.

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— Viver, só isso — sorriu singelo —. O tempo se encarregará de escrever

os próximos parágrafos. Além disso, não acredito no acaso, as coisas acontecem

por alguma razão. As respostas podem não ser tão breves, cedo ou tarde virão.

Aquilo era verdade, nada na vida acontece sem algum motivo, nada

acontece por acontecer, às vezes tudo se explica na mesma hora, em outras

vezes precisamos viver uma vida inteira para entendermos os porquês.

— E como você está? — a Adolescente Apaixonada sabia bem como é

angustiante viver imerso em escuridão, preocupava-se com aquele que tornou

seus próprios dias um grande alívio.

— Tentando entender — respondeu pensativo. Os médicos haviam

informado que a cegueira passaria, mas na verdade parecia interminável —.

Para ser sincero estou enxergando o mundo de uma maneira ainda melhor —

encarava o vazio, observava o além —. Estou enxergando o quanto as pessoas

se importam, o quão dispostas estão em ajudar; tenho me sentido um alguém

de grandes sortes.

— É a lei do retorno — olhava o namorado com ternura, atentava-se a

cada detalhe no rosto que aos poucos perdia os traços infantis, como o amava, a

intensidade daquilo parecia machucá-la —. Suas ações sempre foram

exemplares, sempre se dispôs a apoiar cada uma das pessoas ao seu redor em

suas adversidades, sempre transmitiu esse brilho que encanta a muitos e

ilumina a todos — era machucada por pensar na possibilidade de perder aquele

alguém especial.

— É o que acha? — o emotivo adolescente não conteve o choro, nos

últimos dias uma simples declaração mexia em seu peito, era capaz de balançar

sua mente.

— É o que todos enxergam — não gostava de ver o Romântico Anônimo

entristecido, abraçou-o forte na intenção de poupá-lo daquele sofrimento, na

tentativa utópica de transportá-lo para o outro lado do desafio —. E nunca se

esqueça de que o amo.

— Eu também te amo — sorriu apaixonado —, muito...

Permaneceram juntos e em silêncio por mais alguns minutos,

compartilhando do prazer de estarem com quem muito representava em suas

vidas.

<<>>

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“Após anos de companheirismo, de compreensão, de parceria e de amor agora se

preparavam para o final de todas as coisas. Estavam satisfeitos, amaram a quem

puderam amar, viveram o que e com quem puderam viver, sentiram o mundo e toda sua

beleza da melhor forma possível. Não se intimidavam perante o inevitável.

Estavam um do lado do outro na mesma cama do hospital, alimentados por soro,

cuidados por medicamentos. Estavam um do lado outro como sempre estiveram desde

que se conheceram; não importaram as brigas, os pensamentos divergentes, um sempre

compreendia o outro, cedia um para o outro, nunca foram dormir sem um sincero,

romântico e amável beijo de boa noite. Aquela foi a fórmula para tantos anos de um

casamento que nunca se desgastou, que jamais ficou insípido; de um casamento regado a

veracidade, lealdade e, por que não, amizade.

As mãos enrrugadas ainda se tocavam como se fossem a primeira vez. O frio que

percorrera suas espinhas na primeira troca de olhar nunca deixou de acontecer. A

ansiedade pela presença tão importante sempre fora notável. Aquele casal era um

exemplo vivo do que é amar.

— Feliz? — a fraca voz do frágil senhor soou serena, tranquila, como sempre

soara aos ouvidos da amada.

— Mais impossível — a senhora mal conseguia abrir os olhos, o peso da idade era

massacrante, o tempo fora capaz de levar sua vigorosa juventude, contudo incapaz de

alterar os seus sentimentos pelo homem da sua vida.

— Eu queria mais ao seu lado... Sinto que ainda não foi suficiente.

A mão trêmula da sábia mulher tocou o rosto envelhecido do seu esposo, passeou

por ali, um sorriso brotou em seus lábios e com ele a declaração:

— Você foi a melhor coisa que me aconteceu, satisfez-me com o seu amor até bem

mais do que imaginei — precisou pausar para retomar o fôlego que a cada minuto se

distanciava de seus pulmões —. Você me completou e fez de mim a mais feliz desse

mundo.

O velho homem sorriu agradecido; sentindo um peso descomunal sobre a mão

levou-a ao suave rosto da senhora que o encarava, ao tocá-lo foi levado de volta ao

passado, sentiu aquele mesmo sentimento adolescente, o sentimento que nunca

murchou.

— Se ainda tivesse tempo faria melhor do que fui capaz, porque a única coisa que

me importou nessa vida foi ver o seu sorriso — desde um simples sorvete até o

planejamento de inesquecíveis viagens, todas as atitudes dele por ela eram cercadas por

desejo, paixão... romance —. Você é a mulher mais bonita desse mundo e sem você ele

não teria sentido algum.

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Enfraquecidos pelos anos aproximaram os rostos, uniram os lábios e sentiram a

mesma ardência que sentiram no primeiro beijo, a constante ardência que nunca os

deixou.

As luzes se apagaram.

Juntos e ritmados os corações pulsaram pela última vez.

Foram eternizados pelo amor”.

A garota mantinha a cabeça sobre o ombro do namorado enquanto o

rapaz a envolvia ternamente. As cortinas se fecharam. Os emocionados

aplausos soaram.

Estavam no teatro. Acabaram de assistir a uma peça de causar reflexão,

uma peça que deixava claro a complexidade do amor. Amor não se resume em

juntar as escovas de dente e ir morar junto, amor apenas acontece quanto outros

sentimentos e ações também existem.

Emotiva pelas tocantes cenas Júlia se agarrou ao adolescente ao seu lado,

queria viver aquilo come ele, queria ter o privilégio de escrever uma história tão

perfeita quanto. Isaque era cercado pelo mesmo desejo, enxergava na namorada

a única pessoa que poderia torná-lo realmente feliz, a pessoa que poderia amar

incondicionalmente para todo o sempre. Fato é que estavam muito novos para

acreditarem em eternidade, para estarem certos daquilo que queriam, mas o

coração nunca se engana, ele avisa, nós que não sabemos ouvi-lo.

A cortina se abriu novamente. Um homem vestido social e elegantemente

segurava o microfone, tinha um recado a dar, uma explicação a fazer.

— “Eu te amo”. Frase simples, apenas três curtas palavras, mas de

significado imenso. Alguns são capazes de dizê-la incansavelmente, outros

apenas a usam com alguém específico. Declaro que os dois modos estão certos

quando se há certeza do que se diz e sinceridade no que se sente — encarava os

atentos ouvintes —. Amar é respeitar, é confiar, é compreender. Amar é cuidar,

é zelar e acompanhar. Amar é não ser egoísta, antes é colocar o outro como

maior. Amar é ser recíproco ao que fora dito antes. Amar não é um simples

verbo a ser anunciado aos quatro ventos, amar é ser discreto e demonstrar os

tantos sentimentos a quem o merece, sem esperar plateia para aplausos. Como

autor da obra eu pergunto: estão dispostos em amar?

Os jovens adolescentes se entreolharam, guiados pelas próprias almas que

se uniam mais e mais a cada encontro e disseram em uníssono:

— Eu amo você.

Sorriram. Beijaram-se. Eram amantes um do outro.

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Solitária em um dos bancos do Parque da Cidade da Paz, Daniela escrevia

seu romance, estava tão entregue a própria história que era capaz de se

emocionar com aquilo que saía do coração e preenchia as páginas do editor de

textos. Era feliz daquela maneira, expondo seus sentimentos da forma como

conseguia, através da arte de escrever.

Ao longe Rui a observava apaixonado, em tão pouco tempo aprendera a

amar de uma forma especial, única e diferente; de um jeito que nem mesmo a

Helena havia amado.

— Posso roubá-la por alguns minutos dos personagens que a adoram? —

colocou as mãos sobre os olhos da namorada fazendo seu pedido.

— Sempre terei atenção para lhe dar — exibiu o encantador sorriso que

fazia daquele homem um alguém ainda mais apaixonado —. Como me

encontrou aqui?

— Onde mais estaria minha adorável escritora em uma tarde tão

agradável?

Ela sorriu envergonhada; percebeu ali que o empresário aprendera a lhe

conhecer muito bem, e uma forma que nenhum outro homem fora capaz.

— Queria falar comigo?

— Muito — sentou-se ao lado da escritora unindo, suavemente, as mãos

que se completavam —. Já somos adultos, crescidos e sabemos como tomar

nossas decisões. Não vejo porque demorarmos tanto para o que, obviamente,

vai acontecer — tirou do bolso a conhecida caixinha que trazia a previsível,

porém conturbada, pergunta: — Aceita ser a minha esposa?

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Capítulo 68

Casamento acontece quando duas pessoas que se amam já não suportam

mais a distância e decidem se unir, viver juntas, certas de que precisarão

enfrentar muitos desafios que a convivência atrai, mas que com a sinceridade

dos sentimentos apenas une aquele casal. Pelo menos era assim, é uma pena a

sociedade ter marginalizado, coisificado, algo puro e romanticamente sagrado.

No entanto algumas pessoas mantêm a pureza de certos costumes e levam

seu significado ao pé da letra. Rui era assim, embora a primeira experiência não

tivesse sido tão boa, estava disposto em aproveitar a segunda oportunidade que

a vida lhe dava, a oportunidade de ser feliz vivendo o mais nobre tesouro que o

ser humano pode obter, um tesouro imaterial, um tesouro sentimental, o

tesouro do amor.

Embora nunca tivesse se casado, a escritora viveu um conturbado

relacionamento com alguém incerto, duvidoso, que mais tarde provou ser m

alguém de valores corrompidos. Tal relacionamento apenas causou

arrependimentos, uma dor que vencera o tempo e se mantinha em seu coração.

Ela não conhecia o sabor do verbo amar, nunca o sentiu, jamais o viveu; aquela

era a oportunidade para mergulhar no que preparava aos próprios

personagens, naquilo que descrevia em um mundo apenas seu. Se já se

emocionava com a ficção poderia esperar muitas emoções da realidade.

Mas casamento também envolve sinceridade e confiança; esse é o segredo

para um matrimônio que terá sim seus momentos difíceis – não apenas o

glamour da festa –, mas que na base dos dois grandes valores se tornam fáceis e

vencidos. Se quisesse viver aquilo com o homem que, tão logo, conquistou o

seu coração, precisava ser sincera, verdadeira, confiar nele os próprios segredos.

Eram adultos, se fossem mesmo amantes um do outro ao ponto de se unirem

pela vida e pela morte saberiam passar por qualquer problema que se

apresentasse, por qualquer desafio designado pela vida.

— Antes de responder preciso contar a minha história, nada é por acaso,

nem mesmo a minha vinda para essa cidade que só tem me garantido alegrias

— seu semblante era sério, mostrava que o desabafo a seguir não se tratava de

um simples acontecimento.

— Pode falar — mostrou compreensão com o sorriso simpático —. Se fiz

essa proposta é porque quero amá-la ainda mais, e amar também é ser

companheiro, amigo.

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Desviou o olhar para as tantas árvores ao redor, árvores que passavam

alguma mensagem: de simples sementinhas a grandes monumentos da natureza, de

simples atitudes a incalculáveis conquistas.

“Achou que o amava e que era amada da mesma forma; pensou que era o amor da

sua vida e que com ele viveria a eternidade que se pregava nos contos que lia; porém

terminou frustrada. Entregou-se àquele rapaz com total confiança, depositou nele a

realização de todos os seus sonhos, não hesitou em deixar que a paixão os unisse e o

amor fosse consumado.

Mas tudo não passou de interesse. Interesse carnal, interesse de um homem

iludido pelas circunstâncias, que pouco se importava com os sentimentos alheios, que

apenas queria satisfazer seus próprios desejos em tentativas de se esquecer da realidade

dos fatos.

Ele deixou claro que não a amava como dizia, deixou claro que apenas a usou e que

agora partiria. As passagens para Europa já estavam compradas, era uma questão de

dias para que nunca mais se vissem.

Daniela, porém, sentiu a mudança em seu corpo, algo saíra da normalidade e

causava preocupação. Fez o teste. A realização precipitada de um sonho... de uma forma

indesejada.

Marcelo pouco se importou com a notícia, ser ou não ser pai para ele apenas

representava diferença nas obrigações; não assumiria aquela criança que possuía o seu

sangue, antes, brutalmente cruel, sugeriu o aborto e ameaçou ceifar mãe e filha caso o

assunto o perturbasse por mais tempo.

Desamparada pelos pais, vista como devassa por tantos conservadores que a

rodeavam, humilhada por aquele que amou. A garota inocente que morava em

Paraisópolis, cidade do interior, precisou se esconder nas ruas, ganhar a vida com aquilo

que lhe ofertassem. Por sorte foi acolhida por uma humilde mulher, mas de rico coração.

Os meses se passaram.

Entre dor do parto e dor da alma a criança nasceu.

Desenhou o sorriso no rosto da mãe que há tanto tempo não se sorria; por poucos

segundos fora capaz de tirá-la da trágica realidade que vivia.

Mas os problemas voltaram ainda maiores: uma criança, uma inocente criança

não poderia pagar pelos erros, pela ilusão; aquela linda e indefesa criança não poderia

crescer naquelas condições, fadada ao preconceito, às condições desumanas, tinha o

direito a uma vida digna.

Não teve outra escolha.

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Com aperto no peito, nó na garganta, a jovem mãe entregou seu bem mais valioso

nas mãos do destino, confiando que ele seria justo, cuidaria da sua filha, e

misericordioso, marcaria um reencontro”.

— Eu precisava fazer a minha parte, precisava mudar a minha vida na

esperança de que a veria novamente. Lutei contra o mundo para chegar onde

estou, mas ainda vivo com a angústia — as lágrimas caíam delicadas, vinham

do coração entristecido —. Anos depois voltei aquele orfanato e encontrei a

mesma senhora que me atendeu amavelmente e abraçou minha filha como se

fosse sua, ela se lembrou de mim, compreensiva me contou o que acontecera.

Aqui estou eu, na esperança de ao menos ser amiga daquela que fui obrigada a

deixar.

— Dava um livro — o empresário se espantou com aquela história, nunca

imaginou que a ouviria de uma mulher tão equilibrada, elegante, que não

demonstrava aflições.

— O livro da minha vida — enxugou as lágrimas cessando o choro.

Encarou os olhos castanhos atentos sobre si, precisava de respostas —. Ainda

quer se casar comigo?

As mãos se tocaram, os dedos se entrelaçaram, os olhos apaixonados

brilhavam enquanto os sorrisos bobos eram exibidos.

— Amar é ser companheiro, é ser amigo — repetiu afetuosamente –.

Estarei ao seu lado em cada segundo que precisar.

— Então aceito me casar com você...

Um beijo romântico, no Parque da Cidade da Paz, naquela tarde

ensolarada, marcou o novo capítulo que se iniciava na história do belo casal que

saía do imaginário para se aventurar no mundo real.

<<>>

Era uma tarde ensolarada de terça-feira.

No parque tão visitado as pessoas sentiam a paz inundar seus corações.

Em cima da cadeira de todas com os membros superiores em pleno

funcionamento, Guto adentrou o lugar sorridente, tinha além da esperança de

dias melhores a companhia do pai.

Estavam ali para prosseguirem no tratamento, o qual não era realizado no

consultório de fisioterapia em sua integridade, motivava a interação entre o

jovem rapaz e sua família ocasionando na inevitável aproximação.

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— Preparado? — o professor de português estendeu a mão.

— Não muito — respondeu inseguro por conta dos olhares ao redor —.

Não acho que seja uma boa ideia.

Agachando-se perante o filho, Eliseu procurou as palavras certas a

declarar naquele momento de dúvidas.

— Algumas coisas uns podem fazer pelos outros como, por exemplo,

posso lhe dar um copo d’água e você pode fazer a mesma coisa por mim.

Outras coisas, porém, dependem apenas de nós para que aconteçam como, por

exemplo, ser feliz. Eu não posso trazer a felicidade e entregá-la em suas mãos,

não posso realizar os seus sonhos e depositá-los nos seus braços; certas

conquistas dependem apenas de nós ao ponto de não termos a opção de darmos

ouvidos ao que os outros possam achar, nossa única escolha é nos importarmos

apenas com o nosso desejo.

Guto reconheceu que era verdade. Ainda que as pessoas o olhassem com

olhos de pena, apenas ele seria capaz de transformar o que vivia, apenas ele

poderia mudar a realidade da própria vida, ninguém possuía tal poder.

— Vamos lá — estendeu a mão —. Vamos tentar.

— É assim que se fala — o pai arrependido pelo passado se fez de suporte

ao filho, ajudou-o a que se levantar e firmar as pernas que tremulavam sobre o

chão —. Pode andar?

Tranquilo, sem afobação, grudado à mão que o guiava, o jovem rapaz deu

seus primeiros passos, um após o outro, um grudado com o outro. Estava se

saindo bem, provava o desejo que tinha em sair daquela situação, sorria feliz,

sentiu que era capaz.

Aos poucos Eliseu se distanciava de Guto, ele precisava tentar sozinho,

precisava de fato andar com as próprias pernas, o que não foi problema algum.

Mas o desequilíbrio chegou, o amparo do pai também e a aproximação

entre os dois apenas se intensificava.

Solitária, Ayshla observava aquela cena, encantou-se por aquilo, pelo

desejo que pai e filho transmitiam em, juntos, saírem daquela condição, algo

que nunca viveria. Observando um pouco mais se viu prestando atenção em

cada detalhe do esforçado rapaz, no corpo alto, no sorriso exuberante e nos

desgrenhados fios loiros; de forma estranha sentiu o peito acelerar, não podia

acreditar no que acontecia.

— Oi — aproximou-se de Guto enquanto Eliseu se ausentava por alguns

instantes; pôde encarar de perto os olhos verdes como esmeralda.

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— Oi — respondeu tímido por conversar com uma garota, mas não pôde

evitar de se encantar com os traços da coreana que exibia lisos cabelos pretos,

olhos acinzentados e um sorriso característico.

— Parabéns por ser tão focado em uma difícil conquista — puxou assunto

—. Tenho certeza de que é um desafio e tanto.

— Quando queremos somos capazes do que achamos impossível —

declarou seu motivador pensamento —. Precisa de alguma coisa? — queria ser

simpático.

— Na verdade não — percebeu a aproximação do professor —. Esse é o

meu número — entregou um papal dobrado —. Se estiver a fim de conhecer

pessoas novas me ligue — sorriu amistosa, queria iniciar uma nova vida, viver

aquilo de que fora privada. Deu as costas, deixando para trás um alguém

confuso pelo que sentia.

<<>>

A família estava reunida em um clima de paz, jantavam todos juntos como

sempre deveria ser, mas que pelas divergências da vida nem sempre foi.

Estavam contentes por aquilo, era uma conquista valiosa, um privilégio de

poucos.

Porém alguém sentia uma aflição e precisava desabafá-la, revelá-la, expô-

la. Precisava do apoio da família, mas sentia medo de qual seria a reação

perante o que sucederia.

— Não acho certo esconder, sempre fomos abertos uns com os outros,

nunca fomos de segredinhos – estava séria, nervosa, ansiosa —. Fui atrás do

meu passado, descobri quem pode ser a mulher que me deu a vida e a encontrei

— certou ou não Gabriela precisava se livrar daquilo que lhe tirava o sono.

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Capítulo 69

A revelação poderia demonstrar muitas coisas, desde uma simples

curiosidade sobre a própria história até uma incômoda insatisfação pela

realidade, já que ela não era tão real assim. Os segundos que se seguiram foram

silenciosos, assimilavam as palavras, pensavam no que dizer, não imaginavam

que fosse possível aquilo acontecer, logo nunca se preparam para tal.

— Ela contou por que não ficou com você? — Laura indagou.

— Não conversamos, nosso contato foi breve — a garota respondeu —.

Consegui algumas cópias dos registros do orfanato em que estive, não foi um

abandono de fato, afinal todos os dados foram arquivados. Pesquisei sobre o

nome de Daniela Almeida, descobri muitas, mas essa é a que faz mais sentido e,

coincidência ou não, está mais perto do que nunca.

— Reconheceu você — a mulher se controlava para não demonstrar todo o

seu desconforto, todo o sentimento de insuficiência que pairava sobre si.

— Não — Gabriela reconhecia cada gesto da mãe, cada aspecto em seu

rosto, decifrou seus pensamentos —. Sempre queremos entender a nós mesmos

e desde que descobri minha verdadeira história não tive sossego, eu precisava

conhecê-la, compreendê-la – olhava fixamente para os pais, passava sinceridade

—. Não fui atrás do passado por julgá-los como dispensáveis da minha vida por

agora saber a realidade, vocês sempre serão os meus pais independente de laço

sanguíneo, sempre o que nos uniu foi o sentimento de família e para sempre

assim ficaremos. Fui atrás do passado porque preciso saber todos os motivos,

mesmo que sejam doloridos.

Eliseu, sempre mais racional, compreendeu o discurso, viu nele a sede de

uma jovem adolescente pelas descobertas da vida, aquela era uma das

particularidades da querida filha, a curiosidade pelo novo, a vontade de

desvendar o desconhecido.

— Nós entendemos perfeitamente e a apoiamos — tal declaração dada

pelo professor aumentou o desconforto na esposa —. Desde pequena sempre se

dispôs a descobrir, a entender, deveríamos imaginar que com a sua vida não

seria diferente, é algo intimamente ligado a você, é seu direito acompanhar cada

vírgula do próprio livro.

Laura reconheceu que era verdade, se conhecesse tão bem a filha como

dizia iria compreendê-la, seria flexível, não se deixaria levar pelas dúvidas do

ciúmes e nem pelas incertezas da insegurança.

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— Apenas temos medo do que pode acontecer, do que pode ser revelado

— a enfermeira se justificou —. Quando vivemos acreditando em apenas um

lado da moeda nos acostumamos com o que nos é apresentado e, assim,

estamos protegidos, mas quando o outro lado aparece tudo balança, passamos

por turbulências e a mudança da realidade, a descoberta dos fatos podem nos

trazer aflições, sentimentos de tristeza, medo. Não queremos que passe por

essas coisas, você é muito especial, a melhor filha que alguém poderia ter, não

merece passar por provações desnecessárias.

— E é por esse motivo que a apoiaremos em cada decisão — o pai

completou —. Se a sua vontade é conhecer a mão biológica e entender todos os

porquês que rondam sua mente, conte a nossa ajuda, confie em nós para os seus

desabafos, faremos o possível para que essa fase turbulenta seja o mais

tranquilo.

Se antes achava que causaria decepção naqueles que a amaram e a

protegeram com tanto amor, carinho e compreensão, agora a garota dos olhos

azuis tinha a certeza de que poderia confiar à sua família todos os problemas

que seguissem.

— Sempre confie e para sempre confiarei — respondeu sorridente,

aliviada por estar livre das tantas preocupações.

Atento a cada palavra Guto se sentiu culpado de certa forma, desde que

saíra da clínica e passara a ter um contato maior com os pais e a irmã seus

pensamentos amadureceram, suas atitudes tinham como premissa a reflexão,

reflexão que o faria declarar o que sentia:

— Só me resta pedir desculpa por tudo, essas coisas são reflexos daquela

pessoa irada, rancorosa, que odiava a própria vida.

Gabriela não o culpava, jamais o culparia, antes o entendia. Aproximando-

se do irmão o abraçou afetuosamente e dispensou a mensagem do coração:

— Não se sinta responsável por nada, mais cedo ou mais tarde eu

descobriria toda a verdade, você não ficaria escondido de mim por muito

tempo. E, falando sério, descobrir que tenho um irmão foi uma das melhores

coisas que já aconteceram na minha vida!

E assim continuaram o jantar; compreensivos, apoiadores, amantes uns

dos outros.

<<>>

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Fim de semestre. As últimas obrigações chegavam e dentre elas a

apresentação de danças no Colégio Inova.

Antes animado, entusiasmado com tal evento, agora Gustavo não se sentia

tão disposto assim, dentre os motivos a inesperada e indesejável cegueira que

ainda permanecias sobre os seus olhos. Para o Romântico Anônimo não existia

alternativa, precisava desistir de algo que um dia fora seu grande sonho, mas

que nas atuais circunstâncias não passava de loucura.

Naquele final de semana ensolarado, após muita insistência, Gustavo saiu

de casa junto dos amigos e da namorada. Foram ao rotineiro Parque da Cidade

da Paz, queriam conversar, aproveitar o tempo juntos. Já estavam de férias,

apenas alunos de recuperação eram obrigados a continuar os dias letivos, sendo

assim o restante estava livre para ensaiar, logo depois das apresentações todos

estariam dispensados.

— Saudades da escola? — deitado sobre a grama, encarando o azul do

céu, Isaque jogou a pergunta.

— Pode acreditar que sim — foi Gabriela quem respondeu.

— Imagine quando as férias forem definitivas e aí nossas vidas iniciarem

de fato — Júlia prosseguiu no pensamento.

— Ainda assim estaremos juntos e vamos nos ajudar — o futuro

engenheiro declarou aquilo que era o desejo de cada um naquele grupo —. E

você, lorde Gustavo, o que aconteceu? — se incomodou com o silêncio daquele

que conhecia tão bem.

— Nada demais, apenas cansaço — finalmente quebrara o silêncio e

dissera alguma coisa.

— A gente sabe que algo o aflige — Gabriela se sentou encarando o

semblante confuso do namorado —. Pode desabafar...

— Vamos ouvi-lo — Júlia sabia o quão valioso era ter com quem

compartilhar as dores e, por isso, mostrou-se disponível.

— Não vou mais dançar.

O Romântico Anônimo sempre participou de quaisquer atividades do

colégio, era um aluno ativo que dava o seu melhor e surpreendia aos

professores que viam nele um alguém de sucesso. Tal declaração pegou aqueles

que o rodeavam de surpresa, nunca imaginaram que o bom rapaz, aquele que

sempre incentivou as pessoas a seguirem seus próprios objetivos independente

das condições, quisesse desistir de tudo.

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— Talvez nem seja mais um pediatra — o sorriso desconsolado não pôde

evitar as sofridas e angustiadas lágrimas contidas há um bom tempo, mas que

se intensificaram —. Preciso mudar os meus sonhos.

— Mas é um dos nossos desejos — a Adolescente Apaixonada declarou —.

Víamos ensaiando tão bem...

— Agora é diferente...

— Por não estar enxergando? Quem foi que me convenceu a vencer a

própria limitação? Quem foi que me fez acreditar que as coisas eram sim

possíveis? Com pode achar que não é capaz?

— Não quero passar vergonha e nem fazer que passem vergonha.

— Desde quando é vergonhoso lutar por viver? — a garota dos olhos

verdes questionou —. E se acha que nós vamos nos envergonhas pela sua

condição está errado, vamos sempre ajudá-lo!

Colocando a mão sobre o ombro do amigo, Isaque relembrou o passado:

—Quando eu mais precisei você me ajudou. Não me deixou arriscar a

própria vida nos campeonatos e nem me deixou morrer doando o que precisei.

Se acha que agora vou deixar que desista dos próprios objetivos se engana, você

vai dançar e continuar a viver como sempre nos ensinou nem que eu tenha que

arrastá-lo ao palco! — era uma promessa.

Era verdade. Um pensador não obteria sucesso, reconhecimento e nem

seria tido por sábio se não seguisse os próprios dizeres, antes o chamariam de

farsa. O futuro pediatra se sentiu encorajado a fazer o que tinha por

necessidade: viver.

— Vocês venceram — agora o semblante alegre era sincero –. Eu vou.

— Esse é você!

<<>>

Guto nunca se apaixonara, na verdade nunca teve a oportunidade de viver

tal experiência, mas agora sentia algo diferente pela garota que conhecera no

parque, algo desconhecido que não sabia explicar. Fato é que, impulsionado por

aquilo, ligou para a coreana e marcou de conversarem em casa. Quando a

campainha tocou ele se apressou na cadeira de rodas e aconchegou Ayshla no

jardim da residência.

— Por que me deu seu número? — não conhecia a arte de encantar as

pessoas, jogas um “charminho”, muito menos como iniciar uma conversa, além

de surpreender o jovem rapaz divertiu a que seria sua nova amiga.

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— Para que me ligasse — respondeu extrovertida –. Não tenho amigos

nessa cidade e quando o conheci fui com o seu jeito, quem sabe possamos criar

uma amizade?

— Acho uma boa ideia — encarou os olhos que brilhavam e chamavam

sua atenção —. Também não tenho amigos, eles se resumem na minha família,

mas deve ser interessante conhecer outras pessoas com outros costumes —

embora passara anos privado do mundo era inteligente e conhecia o que ditava

a sociedade.

— O que aconteceu? — referiu-se a situação em que ele estava.

— Um acidente — escondeu a outra parte da história —. Mas aos poucos

estou recuperando o que perdi, esse acidente foi na verdade um milagre.

— Um milagre? — não entendeu —. Como pode ter sido um milagre?

— Através dele me aproximei das pessoas mais importantes que tenho ao

meu lado, por isso vejo como um milagre, algo que me transformou para

melhor.

— Você tem sorte – afirmou observando as flores ao redor, cada uma com

sua beleza, com sua particular característica —. Infelizmente não tive uma

família e nem conheci pessoas de bom coração, para mim parecia que no

mundo apenas existia pessoas amargas que pensam somente em si mesmas.

— Algumas pessoas são egoístas, mas nem todo o mundo compartilha da

mesma atitude, a gente só precisa saber em quem vamos confiar — aconselhou

amistoso.

Mas o que se encaminhava para uma agradável tarde entre amigos

poderia chegar ao fim precocemente.

O portão se abriu.

Perante a coreana aqueles que ela enganara.

Agora era hora de saber se o perdão fora mesmo sincero.

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Capítulo 70

A reconciliação não fora uma farsa, os dois amigos entenderam as razões

que levaram a coreana tomar a triste atitude já que queria, sobretudo, salvar a

própria vida. O importante, para eles, era que agora o arrependimento falava

mais alto e a garota desejava viver as melhores coisas.

Júlia, porém, não veria Ayshla sem declarar nada, sem dizer o que estava

enforcando sua garganta, sem mostrar a raiva que sentia por ter sido enganada

por um motivo tão vil.

— O que faz aqui?

Temerosa, ela se levantou, por dentro torcia para que o seu receio não se

concretizasse, para que o futuro que ela imaginava não viesse se transformar

em um simples sonho.

A garota dos olhos verdes era espera, sempre teve pensamentos ligeiros,

ligava os pontos tão logo entendesse as circunstâncias, não demorou em

descobrir a aproximação que acontecia entra aquela que tinha por ameaça e o

irmão de Gabriela.

— Vocês não podem aceitar uma criminosa dentro dessa casa! Foi ela

quem apareceu com a historinha do comercial, foi ela quem começou toda a

tragédia pela qual passamos!

Guto encarou a coreana com firmeza, esperou que declarasse alguma

coisa, que procurasse de defender, mas o silêncio de Ayshla revelava a verdade,

seu semblante contido confirmava a afirmação.

— Então é verdade... — o jovem rapaz sentia uma angústia, julgou estar

sendo enganado.

— Não sejam tão radicais — Gustavo cumpria o que dizia, se havia

perdoado aquela que poderia odiar, precisava, então, esclarecer as dúvidas —.

Ela também foi uma vítima disso tudo, precisou cumprir ordens para

sobreviver, qualquer um de nós seria capaz de qualquer coisa para salvarmos

nossas vidas, não acham?

— Nem de qualquer coisa — Gabriela se manifestou, incrédula por estar

face a face com alguém que transmitia perigo.

— Nenhum de nós entregaríamos nenhum inocente à morte — Júlia

manteve sua postura, não aceitaria o que para ela era um absurdo, uma afronta.

— A história dela é difícil — Isaque também devia ajudar, fora uma

promessa —. Foi tirada dos pais ainda pequena, cresceu pensando que o

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mundo e seus moradores respiram crueldade, acreditou que para se defender

dos cativeiros precisava ser a opressora. Mas se arrependeu, suplicou o nosso

perdão e assim nos reconciliamos, não podemos ser tão rígidos com as outras

pessoas.

— Mas eu não quero uma criminosa como amiga — o encanto de Guto se

quebrou, para ele a frágil Ayshla se transformava em uma pessoa digna de

desprezo —. É melhor que se afaste.

— Guto... — a coreana tentou se defender, precisava lutar pelo que queria,

precisava mostrar que não era que parecia ser.

— Adeus — deu as costas, não queria assunto.

Abatida, cabisbaixa, a garota deixou aquele jardim na esperança de

conseguir usufruir do amor das pessoas.

<<>>

Final do mês. Véspera de férias.

Aquela quarta-feira nervosa mexia com os ânimos dos jovens alunos do

Colégio Inova que teriam uma importante atividade a enfrentar, era o dia da

Apresentação de Danças aberta ao público, muitos olhos estariam sobre eles.

Os quatro grandes amigos seriam os últimos a se apresentarem, foram os

que mais se destacaram durante os ensaios e como mérito ganharam o principal

momento do evento, a finalização.

Assentos lotados. Pais, amigos e familiares ansiosos pelo momento,

orgulhosos pela coragem daqueles que conheciam e muito gostavam.

Professores entusiasmados, contentes pelos queridos alunos que viram crescer

naquele lugar, passar por cima das próprias limitações e alcançarem altos

patamares; alunos que tinham por filhos, alunos que amavam.

As músicas começaram.

Os talentos exibidos encantavam aos expectadores, emocionavam e

arrancavam palmas de parabenização.

Conforme o relógio corria Gabriela sentia a ardência da ansiedade, as

mãos geladas eram trêmulas, a voz arrastada exibia seu desconforto com toda

aquela pressão.

— Não importa o que aconteça, vamos passar por tudo juntos — Júlia

passou segurança.

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— Se eu cair quero que se joguem e finjam que faz parte da coreografia —

Gustavo já criava soluções para os problemas que supostamente surgiriam.

— A gente fala que foi um terremoto — Isaque, como sempre, bastante

criativo.

— É a nossa vez — a garota dos olhos azuis encerrou o bate-papo —. Seja

o que Deus quiser — sua vontade era sair correndo, mas seu foco era em passar

por cima dos medos.

As primeiras notas soaram.

Júlia e Isaque, Gabriela e Gustavo, um guiava o outro, um era o apoio do

outro.

A plateia foi ao delírio.

“When your legs don't work like they used to before

And I can't sweep you off of your feet

Will your mouth still remember the taste of my love

Will your eyes still smile from your cheeks”

[Quando suas pernas não funcionarem como antes

E eu não puder mais te carregar no colo

A sua boca ainda se lembrará do gosto de meu amor?

Os seus olhos ainda sorrirão em suas bochechas?]

O futuro engenheiro encarava sua dama diretamente nos olhos, sorria

singelo, acolhedor, fazia da música que tocava uma mensagem que chegava

direto do coração. Próximos um do outro se sentiam completos, envolvidos

pelas delicada melodia se deixavam levar pelo ritmo que dava vida aos corpos.

“Darlin' I will be lovin' you

Till we're seventy

Baby my heart could still fall as hard

At twenty three”

[Querida, eu te amarei

Até que tenhamos 70 anos

Amor, meu coração ainda se apaixonará tão fácil

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Quanto quando tínhamos 23]

O Romântico Anônimo transmitia pelos brilhantes olhos castanhos, ainda

que apagados pela vida, o amor que sentia pela Adolescente Apaixonada.

Entregou-se aos seus cuidados, deixou ser guiado pela garota que morava em

seus pensamentos, por aquela que verdadeiramente amava. Para ele não soava

uma simples música, as caixas de som instaladas no amplo palco soavam uma

verdadeira promessa.

“I'm thinkin' bout how

People fall in love in mysterious ways

Maybe just the touch of a hand

Me, I fall in love with you every single day

I just wanna tell you I am”

[Estou pensando em como

As pessoas se apaixonam de maneiras misteriosas

Talvez apenas o toque de uma mão

Eu, me apaixono por você a cada dia

Eu só quero te dizer que eu estou]

Isaque sabia como aquilo era verdade, vivera a experiência, provara do

mistério. Júlia se encantava a cada dia com aquele que até em seus sonhos a

acompanhava, com aquele que em segredo a amou por muito tempo. As mãos

que se uniam sentiam o conforto que o simples toque garantia não apenas ao

corpo, mas à alma. Aquilo era capaz de tirá-los da frente de uma multidão e

levá-los a um imaginário e tranquilo lugar, onde eles tinham liberdade para se

entregar àquilo que existia entre seus corações e os deixavam próximos mesmo

que distantes.

“So honey now

Take me into your lovin' arms

Kiss me under the light of a thousand stars

Place your head on my beating heart

I'm thinking out loud

Maybe we found love right where we are”

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[Então, querida, agora

Me abrace com seus braços de amor

Beije-me sob a luz de mil estrelas

Apoie sua cabeça sobre meu coração palpitante

Estou pensando alto

Talvez tenhamos achado o amor bem aqui, onde estamos]

Gustavo envolvia a amada garota pela cintura e com a mão livre prendia

as mãos que se completavam. Dançavam tranquilos, serenos, próximos um do

outro como se fosse apenas um corpo. Declaravam através dos suaves passos a

nobreza do sentimento que os cercava. Gabriela sentia o perfume amadeirado

que do namorado exalava além de sorrir apaixonada com o som do coração

acelerado, acelerado de amor.

“When my hair's all but gone and my memory fades

And the crowds don't remember my name

When my hands don't play the strings the same way (mm)

I know you will still love me the same”

[Quando meu cabelo parar de crescer, minha memória falhar

E as plateias não lembrarem mais do meu nome

E minhas mãos não tocarem as cordas do mesmo jeito

Eu sei que você me amará assim mesmo]

O garoto dos olhos verdes vestia um terno preto, com pequenos detalhes

dourados nos botões, a camisa roxa contrastava com o suave vermelho da

gravata, era um nobre cavalheiro que dançava, um cavalheiro que enfeitiçava

Júlia. A garota dos olhos verdes vestia um vestido nem tão largo, nem tão justo,

perfeitamente perfeito; a textura lisa causava a impressão do rosa brilhante

mesclado pelo cinturão marfim, detalhe da vestimenta; os cabelos soltos e

encaracolados dançavam livremente enquanto a discreta maquiagem, digna de

uma dama, encantava o namorado apaixonado. Entregando-se à letra

prometiam, um ao outro, que o amor se eternizaria.

“Cause honey your soul

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Could never grow old

It's evergreen

Baby your smile's forever in my mind and memory”

[Pois querida, sua alma

Jamais envelhecerá

Ela é eterna

Amor, seu sorriso estará sempre em minha mente e memória]

Gabriela vestia um justo vestido branco que exibia detalhes prateados e

não deixavam de lado sua infantil delicadeza; o penteado que remetia a uma

flor chamava a atenção, não mais que o olhar alegre que encarava o parceiro de

dança com amor, com desejo e paixão. Gustavo também vestia um terno preto,

feito sob medida, que não deixava a sofisticação de lado; a camisa branca

destacava a gravata dourada que possuía mínimos detalhes prateados,

combinando com o vestido da dançarina; o topete discreto o deixava ainda mais

atraente para aquela que daria a vida por sua causa. Os olhos do Romântico

Anônimo nada viam, mas sua mente projetava o característico sorriso da

Adolescente Apaixonada, o sorriso que o cativava em lutar por aquele amor, tal

pensamento também causava seu sorriso exuberante e desenhava nas

bochechas rosadas as covinhas infantis.

“I'm thinkin' bout how

People fall in love in mysterious ways

Maybe it's all part of a plan

I'll just keep on making the same mistakes

Hoping that you'll understand”

[Estou pensando em como

As pessoas se apaixonam de maneiras misteriosas

Talvez seja parte de um plano

Eu continuarei a cometer os mesmos erros

Esperando que você entenda]

Os passos mais ousados que não deixavam de lado o contexto romântico

espantava a plateia que se admirava pela sincronia entre os pares, resultado de

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muito ensaio. Quem compreendia a letra de tão sentimental música conseguia

notar que os casais conversavam entre si, trocavam juras de amor pelos olhares

ou pelos sorrisos e resplandeciam o amor existente entre eles. Tanto sentimento

levava à reflexão: como explicar o mistério do amor? A única conclusão aceita dizia

que o amor não se explica, se sente.

Mas as luzes se acenderam e a voz precisou soar.

“That baby now (ooh)

Take me into your loving arms

Kiss me under the light of a thousand stars

Place your head on my beating heart

I'm thinking out loud

Maybe we found love right where we are”

[Que, querida, agora

Me abrace com seus braços de amor

Beije-me sob a luz de mil estrelas

Apoie sua cabeça sobre meu coração palpitante

Estou pensando alto

Talvez tenhamos achado o amor bem aqui, onde estamos]

Sim, as luzes se acenderam. O garoto dos olhos castanhos sentiu o

incômodo do clarão que se transformou na alegria do milagre, a visão lhe foi

restaurada, agora contemplava o rosto mais lindo que já vira. Impulsionado

pela emoção soltou a voz, além de dançarino se fez de cantor, ergueu a

namorada do chão, caminhou com ela nos braços pelo palco, cantava em plenos

pulmões e suplicava pelo indispensável amor daquela que conquistara não

apenas seu coração, mas sua alma.

“Baby now

Take me into your loving arms

Kiss me under the light of a thousand stars (oh darlin')

Place your head on my beating heart

I'm thinking out loud”

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[Querida, agora

Me abrace com seus braços de amor

Beije-me sob a luz de mil estrelas (oh, amor)

Apoie sua cabeça sobre meu coração palpitante

Estou pensando alto]

Júlia foi lançada ao ar e sustentada pelos firmes braços daquele pelo qual

possuía enorme confiança, era parte da dança, um passo importante, um passo

ovacionado e aplaudido pela surpreendida plateia. A garota sorria afetuosa, era

guiada por Isaque que, apaixonado, aproximou-a de si para os passos finais,

passos tranquilos e melódicos.

“Maybe we found love right where we are”

[Talvez tenhamos achado o amor bem aqui, onde estamos]

Gabriela não mais conteve a delicada lágrima, lágrima de felicidade,

felicidade por ser amada.

“Maybe we found love right where we are”

[Talvez tenhamos achado o amor bem aqui, onde estamos]

Júlia encaixou a cabeça na curva do pescoço de Isaque, era ali que

encontrava carinho, conforto, segurança e, o que mais desejava, amor.

“And we found love right where we are”

[E nós achamos o amor bem aqui, onde estamos]

Beijaram-se apaixonados recebendo os aplausos emotivos dos

espectadores que se punham em pé.

Encontraram o amor.

Não escondiam isso de ninguém.

Mesmo que quisessem esconder, quem pode camuflar uma chama? A

chama ardia em seus corações e aquecia suas almas, almas gêmeas...

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Capítulo 71

Mês de julho, marcado pelo rigoroso inverno que fazia questão de provar

sua presença na Cidade da Paz.

O salão não estava tão cheio, os ali presentes eram as pessoas mais íntimas

dos anfitriões, todas muito bem vestidas, elegantemente protegidas do vento

frio que soprava lá fora.

Rui sentia um nervosismo adolescente, uma ansiedade que fazia seu

coração acelerar e suas mãos umedecerem. Olhava para as portas que se

abririam a qualquer momento como uma criança, seu semblante irradiava

felicidade, seus olhos transmitiam o quão feliz estava por aquele dia acontecer,

era a realização do sonho de uma vida inteira, um sonho que por alguns

instantes pareceu um pesadelo, mas que logo voltou a ser o desejo daquela

alma.

Júlia sentia-se feliz pelo pai, tinha certeza de que aquela escolha era certa,

possuía convicção de que agora sim aquele homem viveria uma bela história ao

lado de alguém que verdadeiramente o amava, de alguém que possuía um

nobre coração.

A marcha nupcial levantou os convidados sentados e os encheu de

expectativas.

As portas se abriram e por entre elas uma mulher coberta pelo

característico vestido branco, que segurava um exuberante buquê e declarava

todo o bem estar das emoções colocando um esplêndido sorriso no rosto. Os

olhos marejados reluziam contentamento, o tom azul estava ainda mais claro,

surpreendentemente mais claro. Começou a caminhar pelo longo tapete

vermelho, forrado por pétalas de diversas rosas; concentrava-se ao homem que

a cativara em acreditar no amor apenas com o olhar, seus passos eram suaves

de encontro àquele que amava.

O nobre cavalheiro, vestido pelo terno preto que ajudava a camisa

vermelha se destacar, estendeu a mão trêmula, sorridente, encantado por Tana

beleza. Quase sem conter as lágrimas de êxtase por aquele momento tão

almejado, a admirada dama cedeu sua mão, sentiu o toque que a confortava,

que a completava. Amantes um do outro se puseram diante o juiz.

Após os dizeres legais e as perguntas recorrentes, o novo casal trocou as

alianças, homem e mulher se encararam ternamente. Rui, com o coração repleto

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de paixão, beijou aquela que desejava ter para sempre ao seu lado, debaixo dos

muitos aplausos emotivos e sentimentais.

Sensível com toda a cena Gabriela não conseguiu segurar as lágrimas,

aquele também era um sonho seu, casar-se e ter uma família era um dos seus

objetivos de vida, mas não com qualquer pessoa, seu “príncipe encantado” já

fora definido e estava bem ao seu lado.

Tocado pelas lágrimas da namorada Gustavo a envolveu em seus braços,

sentia o coração arder, também era o seu anseio construir uma vida ao lado

daquela que desde o primeiro encontro despertara uma explosão em seu peito.

— Um dia seremos nós — declarou afetuoso, cheio de carinho, repleto de

paz e certeza.

Erguendo os olhos azuis para encarar o rosto do Romântico Anônimo a

jovem adolescente fez nascer um acordo:

— Promete?

Beijando a testa da Adolescente Apaixonada e exibindo o sorriso que

bembém a enfeitiçava deu sua resposta:

— É claro que sim!

Isaque, por sua vez, observava a garota dos olhos verdes com atenção,

imaginando como poderia ser o futuro, criando em sua mente aquele mesmo

dia, tendo por única diferença a mudança dos personagens. Em outros tempos

talvez não pensasse em casamento, mas agora não conseguia camuflar o

inevitável.

Ao lado do casal principal, Júlia também encarava o namorado, exibia o

sorriso bobo, típico de jovens apaixonados. Há algum tempo não cria no amor,

pensava que o conhecia, mas percebeu o quão ignorante era acerca desse

tesouro tão complexo; sua mente se clareou com a chegada do encantador

adolescente que a encarava com ternura, anunciando pela linguagem do amor

que eles também viveriam aquele momento.

<<>>

Dolôres Almeida era uma senhora de baixa estatura, possuía os cabelos

calvos e o rosto sereno, era a mão da noiva e que também marcava sua presença

naquela noite tão especial. Sempre gostou de ficar em um cantinho reservado,

observando as pessoas ou, em outras palavras, cuidando da vida alheia.

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Em um belo momento seus olhos encontraram uma garota que se

destacou sob sua concepção, parecia conhecê-la, tinha quase certeza de que a

conhecia, de fato a conhecia. Espreitou os olhos, forçou as vistas; precisava de

convicção sobre o que concluiria; não havia outra explicação, fazia parte da sua

família.

<<>>

Enquanto eram servidos pelos mais variados tipos de massas, Gabriela se

atentava aos passos de Daniela, estava ali apenas em consideração

à amiga, mas não era a sua vontade. Percebendo que a noiva se aproximava de

sua mesa a garota saiu apressada; ainda era seguida pelos olhos curiosos da

senhora Dolôres.

Prestativo e cuidadoso, Gustavo foi atrás da namorada, encontrou-a em

um dos bancos do jardim daquele espaço de festas, estava cabisbaixa, pensativa,

encarava o chão como se dele fosse surgir algum conforto.

Estava frio. Ela juntava os braços, mas era insuficiente para se aquecer.

Sempre afetuoso, o Romântico Anônimo tirou o paletó e o colocou sobre a

jovem adolescente que, ao sentir o perfume amadeirado, saiu dos devaneios,

agora encarava o namorado como se ele tivesse as palavras que queria ouvir.

Sentando-se ao seu lado o garoto a indagou:

— Não queria cumprimentá-la?

— Pode parecer drama, mas não consigo — desabafou —. Embora faltem

provas, mas todas as evidências apontam para ela — seu olhar era confuso —.

Por quê? Por que ela?

— Só o tempo pode responder — respondeu simpático, compreensivo

com aquela angústia, entendido sobre as dúvidas —. Mas não pode fugir das

pessoas, não pode correr delas; de uma maneira ou de outra o destino nos

coloca perante aquele que menos queremos e aí não vamos conseguir nos

esconder.

— Sei disso, sei que é uma covardia, mas pensar que ela pode ter me

rejeitado também me dá esse mesmo sentimento, algo que jamais desejei

experimentar.

— Não é covardia, é medo de sofrer. E não sabemos da real história, não

sabemos se ela a rejeitou, não ouvimos os seus motivos — entrelaçou os dedos,

fixou os olhos, suas palavras eram cercadas de sabedoria e segurança,

precisavam confortar um alguém muito especial —. Não quero defendê-la, mas

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temos que enfrentar os nossos problemas com maturidade, precisamos entendê-

los antes de fazermos nossas escolhas. É assim que a vida funciona, a cada

instante aplica testes e não aceita desistências ou fugas como repostas, ainda

que erradas, ela exige as soluções.

Gabriela deu razão àquele pensamento, reconheceu-o como sensato e,

além disso, vindo de alguém que poderia confiar cega e absurdamente.

Agarrou-se ao pescoço daquele que lhe transmitia conforto e perguntou dentro

de seu coração como seria possível viver sem ele, simplesmente não era.

Gustavo, por outro lado, sentiu-se importante na vida da garota dos olhos

azuis e adotava como missão de vida ajudá-la nos mínimos detalhes, apoiá-la

nos menores desafios, estar para sempre ao seu lado, ser mais que um

namorado ou amigo, ser alguém que a pegaria no colo, se preciso fosse, na

estrada da vida.

<<>>

— Precisamos conversar — Dolôres levou a filha ao banheiro sua voz era

firme, seu rosto era sério.

— Não vai querer discutir, certo? — a escritora já se preparava para o pior

—. Hoje é um dia muito importante.

— Essa mãe que você conhecia não existe mais, vivi uma vida infeliz e

quero usar o tempo que me resta para viver o melhor — defendeu-se

mostrando sinceridade —. Conhece essa garota? — exibiu a foto no celular.

— Amiga de Júlia — respondeu como se esperasse por explicações.

— Quais são as chances de a sua filha estar nessa cidade?

— Todas possíveis, é por isso que estou aqui — começou a entender o que

aquela conversa revelaria —. Mas não queira me dizer que é ela, não tem

sentido.

— Tem mais do que sentido — vasculhou a galeria —. Olhe essa foto,

estava no álbum que perdemos — retratava Daniela ainda adolescente —.

Agora observe mais uma vez a garota — as semelhanças eram nítidas,

indiscutíveis e inquestionáveis —. Suspeito que ela saiba a verdade.

— Isso também é impossível — sua mente parecia entrar em colapso, as

informações que chegavam eram intensas e impensáveis.

— Qual convidado recusa receber os cumprimentos do anfitrião? — era

esperta, como sempre fora —. Enquanto você se aproximava da mesa dessa

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jovem ela saiu apresada, semblante apreensivo, de igual modo foi seguida por

um rapaz e passaram alguns minutos conversando. Ela é sua filha — afirmou.

No fundo as coisas faziam sentido, as fotos mostravam semelhanças que

não aconteciam por acaso, eram características que passavam de pais a filhos. A

escritora não conseguia pensar em mais nada, não acreditava que esteve tão

próxima da filha sem de nada suspeitar. Foi atrás da garota, que já se aprontava

para partir, tocou-a no braço, seu maior desejo naquele momento era descobrir

a realidade.

— Gabriela – chamou-a pelo nome, olhos espantados, surpresos e

temerosos —. Podemos conversar?

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Capítulo 72

A garota dos olhos azuis não sabia o que responder, por alguns instantes

sua mente se perdeu em um labirinto sem saída, em um caminho sem fim.

Estava cara a cara com a mulher que poderia ser a sua mãe, com a mulher da

qual fugira toda a noite, mas que, como Gustavo avisara, o destino tratou em

cruzar seus caminhos.

— Sim.

— Pode ser em um local mais reservado?

Encarou os pais que também pareciam aéreos perante a situação, mas foi o

semblante do namorado que a encorajou para enfrentar de uma vez os medos

criados.

— Sei que essa pergunta pode parecer estranha, mal nos conhecemos — a

escritora exibia um sorriso, sua intenção era passar simpatia, demonstrar

segurança —, mas eu preciso cessar uma dúvida. Você é adotada? — não sabia

como perguntar, foi direta, arriscando-se em prejudicar a própria história.

— Sim — respondeu sem rodeios e sem elaborar algo que fizesse um

diálogo acontecer.

Mas Daniela precisou se esforçar.

— Eu tive uma filha — a voz tremulava, pode dentro uma angústia, receio

talvez, arrependimento com certeza, não imaginava o quão linda a filha era —.

Por ironia da vida, divergências do destino, acabei a deixando e...

— Ela sou eu — Gabriela possuía um olhar prepotente, encarava a mulher

a sua frente sem qualquer timidez —. Era isso o que queria saber?

Espontaneamente a lágrima saltou, as mãos foram levadas à boca, o

sorriso bobo escondia a falta de palavras, um turbilhão de emoções. Depois de

tanto tempo agora contemplava aquela que muito procurou, mas também tinha

dúvidas.

— Já sabia?

— Descobri — rosto sério, nem um pouco emocionado, porém o coração

estava repleto de sombras, era pesado, os sentimentos que o rondavam eram,

além de intensos, desconhecidos; eram sentimentos de ódio.

— Passei tanto tempo... — começaria a dar justificativas, daria início ao

discurso de defesa, declararia as palavras que pudessem explicar suas atitudes

e, quem sabe, tornar a compreensão possível, mas foi interrompida, duramente

interrompida.

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— Poupe argumentos fingidos e insuficientes — não queria ouvir

declarações de arrependimento, não queria escutar falas como “não sabe como

sofri”. Não queria ser iludida —. Não se culpe por nada e nem queira se

arrepender por coisa alguma, fui acolhida por pessoas especiais, pessoas que

sempre me protegeram, que sabe o que significa família.

— Mas eu preciso me explicar... — sentiu a rejeição, precisava mudar

aquilo, tinha a necessidade de revelar os seus motivos, precisava de uma

chance.

— Mas eu não quero ouvir — nada mudaria sua decisão —. Não a culpo

por nada, não a tenho por pior ser humano do mundo, mas também não quero

contato, não quero aproximação, não preciso de uma mãe — deu às costas —.

Tenho a que deveria ter.

Deixou o banheiro derramando lágrimas. Um choro diferente, não de

tristeza, mas de raiva, sentimento que ela nunca cultivara em seu peito, mas que

naquele dia nascera com raízes de amargura. Não sabia explicar, apenas sentia

uma ira descomunal; rancor por aquela mulher.

Daniela, por sua vez, chorava abatida; o dia mais feliz de sua vida agora se

transformava em um dos mais turbulentos. Por algum momento acreditou que

as coisas seriam fáceis, que ganharia a amizade daquela garota; tudo o que

conquistara era a dor da rejeição.

— É ela — jogou-se nos braços da mãe.

— Sinto muito — a senhora tudo ouvira —. Mas prometo mudar essa

situação, sei que tenho minha parcela de culpa e vou corrigir as coisas, nem que

seja a última coisa que faça.

Fácil não seria.

<<>>

Era uma manhã ensolarada, porém gelada de quarta-feira. Os cidadãos da

Cidade da Paz andavam pelas ruas bem agasalhados, usavam luvas, toucas e

cachecóis; atentavam-se à fina camada de neve que forrava o chão.

Animados e um tanto quanto ansiosos, os dois admirados amigos foram

ao polo da cobiçada Universidade da Cidade da Paz, uma das melhores

instituições de ensino do país, vencedora de prêmios invejados, equipada com

materiais de alta tecnologia e professores sempre atualizados. Ali eles fizeram a

inscrição para a prova do vestibular, único meio para alcançar o sonho de ser

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um de seus alunos. Com os protocolos em mãos deixaram o lugar esperançosos

quanto ao futuro.

— Será que a gente consegue? — Isaque perguntou aquecendo as mãos.

— Tenho certeza que sim — Gustavo era otimista, acreditava em seus

sonhos, até nos mais difíceis.

— Mas e se as coisas não acontecerem da forma como queremos? — o

garoto dos olhos verdes costumava analisar os dois lados da moeda, preparava-

se para diferentes desfechos.

— Apenas temos que crer que o melhor espera por nós — o Romântico

Anônimo aconselhou, aquela era uma de suas filosofias de vida.

Tendo apenas o frio por companhia Ayshla estava sentada em um dos

bancos da vazia praça. Pensativa, queria entender a própria história, queria

ligar os pontos, ver sentido em cada vírgula de cada capítulo. Espantosamente

chegou a acreditar que com a derrota e fuga do líder sua vida mudaria, chegou

a criar um futuro quando conheceu Guto e por ele fora convidado a uma visita.

Mas suas ações ainda refletiam em seus desejos, era vista como ameaça e não

culpava quem tivesse tal julgamento. Cogitava deixar aquela cidade, conseguir

um emprego em outro lugar e recomeçar do zero onde ninguém a conhecesse.

— Ayshla? — ouviu uma voz conhecida.

— Vocês? — ergueu os olhos —. O que fazem aqui?

— Apenas de passagem — Isaque respondeu.

— Aconteceu alguma coisa? — Gustavo percebeu o semblante caído.

Sentia confiança naqueles que covardemente enganara, arrependia-se por

isso, mas era somente com eles que poderia contar.

— Achei que a vida mudaria e que meus sonhos se tornariam realidade —

observou a neve derretida pelo suave calor do sol —. Mas acabei me iludindo

— sorriu abalada pelos próprios questionamentos —. Sou um monstro, fiz o

mal para dois inocentes, quase instaurei a pior dor na vida de pessoas que nem

sabiam da minha existência. Foi por egoísmo — reconheceu envergonhada —.

Apenas pensei em mim, em salvar a minha vida, pouco me importei com

aqueles que atingi — o desabafo era longo, ao mesmo tempo em que necessário

e reconfortante —. Conheci aquele rapaz — o sorriso entristecido tomou a

forma apaixonada —. Cheguei a imaginar a vida daqui um tempo, mas não sou

digna, preciso me acostumar...

As inesperadas palavras de profundo arrependimento tocaram os corações

de seus ouvintes, sabiam o quão prazeroso era viver uma vida tranquila na qual

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seus sonhos eram concretizados, imaginavam o quão doloroso poderia ser viver

privado daquilo, privado da essência humana.

— Os erros acontecem para que sejamos aperfeiçoados e saibamos viver

com eles — o futuro engenheiro se sentou ao lado da coreana, sendo imitado

pelo companheiro —. Todos os seus sonhos podem sim sair do imaginário, você

apenas precisa mostrar para o mundo que não é a Ayshla que alguns

conheceram, mas sim a Ayshla que quer fazer a diferença na vida daqueles com

os quais se importa e viver coisas incríveis.

— A gente sabe qual o tipo de sentimento que compactua por Guto,

também sabemos o quão difícil será mudar a visão de Júlia sobre você — o

futuro pediatra tomou a palavra —. Temos certeza de que é uma boa pessoa e

vamos ajudá-la a mostrar isso — prometeu —. Vamos ajudá-la a viver aquilo

que o mundo tem de melhor: o amor de uns para com os outros.

<<>>

Gabriela conhecera a verdade sobre Ayshla, Gustavo lhe esclarecera

quaisquer dúvidas e, se ele confiava na coreana ao ponto de perdoá-la, ela

também poderia confiar. Há alguns dias notara o silencio do irmão e não tinha

dúvida que aquele comportamento era pelo distanciamento.

— Podemos conversar? — juntou-se a Guto no jardim de casa buscando o

calor do sol.

— Claro — respondeu sorridente saindo de seus devaneios —. Como você

está? — referia-se ao que acontecera no último final de semana, assunto que a

Adolescente Apaixonada insistia em evitar.

— Melhor — foi sua única resposta embora seu coração ainda muito se

angustiasse —. Mas e você? Por que anda tão pensativo? Não estás feliz pela

ótima recuperação?

— Muito, sinto-me agraciado em saber que as coisas estão em constante

melhora — fazia referência a todos os últimos acontecimentos, desde a volta

para casa até a relação amistosa que vinha tendo com a família —. Meu

problema é outro — não tinha com quem conversar, precisava confiar à irmã os

seus desabafos.

— É o amor — a garota dos olhos azuis franziu a testa ao encarar o céu

iluminado —. Eu sei que você e Ayshla tiveram um contato repentino, mas o

suficiente para despertar algo aqui dentro — apontou para o coração —. Estou

certa?

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— Sim — reconheceu envergonhado e surpreendido —. Mas eu não

deveria pensar em alguém que fora capaz de coisas tão atrozes, não posso

confiar em uma pessoa assim.

— Guto, cada um tem uma história, cada um percorreu um caminho e

durante o percurso precisou enfrentar alguns desafios e fazer algumas escolhas,

que nem sempre são as certas. Algumas pessoas se arrependem de seus erros,

outras não, mas aquelas que decidem voltar atrás nos mostram o quão nobres

são e o quão admiráveis podem ser — encarou os olhos verdes do mais velho —

. Ayshla não é uma má pessoa, apenas foi desafiada e optou pela solução

errada. Se você sente algo por ela, algo que não consegue explicar, não a deixa

escapar, dê uma chance para que se mostre de verdade, permita-se a viver algo

maravilhoso.

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Capítulo 73

O relógio nunca para, o tempo nunca deu, fato, um tempo, a cronologia

segue o seu percurso, rápida, apressada e velozmente.

As férias de julho chegaram ao fim e no primeiro dia de agosto começava

o segundo semestre, o ciclo decisivo na vida de muitos jovens, o momento de

batalha por notas aceitáveis e decisões sobre qual caminho percorrer, qual

carreira seguir. Um momento de dúvidas, medos e incertezas.

— Antes de retornarem à rotina vamos refletir um pouco — a psicóloga

que cuidava de Guto, doutora Isabel, também trabalhava em escolas, abrindo os

horizontes dos tantos adolescentes —. Em primeiro lugar quero que visualizem

a mudança, notem que daqui há poucos meses cada um seguirá o seu rumo,

cada um abrirá os braços para as consequências da própria escolha. Pensem por

alguns instantes nessa nova realidade, sofram ela.

Olhavam-se entre si, deram conta que os próximos passos seriam

independentes, a maturidade exige isso, exige que o indivíduo saia de sua zona

de conforto e explore novos territórios vencendo os próprios medos.

— Eu sei, é assustador — Isabel sorriu compreensiva —. Porém faz parte

da constante metamorfose a qual somos submetidos desde o nascimento.

Quando nascemos passamos a respirar por nossa conta, quando crescemos

passamos a nos alimentar com as próprias mãos e agora, adultos, passamos a

andar com nossas próprias pernas — seu modo de falar era tranquilo e seu

sereno olhar transmitia confiança —. São evoluções inevitáveis, acompanhadas

de tombos imprevisíveis que servem para nos instruir acerca dos mistérios da

vida.

— Mas podemos contar com a ajuda um do outro, não podemos? —

Gustavo declarou seu pensamento encarando a namorada, algo entre eles não

estava indo bem.

— Esse é o segredo — a psicóloga comemorou que um de seus ouvintes

chegara onde ela queria —. Em todas essas evoluções sempre contamos com o

apoio de alguém, somos sempre motivados a conquistar novos desafios. Nas

primeiras palavras somos encorajados por nossos pais, assim como nos

primeiros passos, sempre contamos com a ajuda de alguém — tomou um gole

d’água, prosseguiu em seu discurso: — Além da família de sangue temos a

chamada família do coração, formada pelos nossos verdadeiros amigos,

naqueles que realmente podemos confiar. Ainda que cada um faça uma escolha

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e elas não conversem entre si vocês precisam acreditar que não estarão sozinhos

no desafio da vida, do crescimento; precisam contar um com o outro e

manterem esse privilégio.

— Mas não é fácil crescer — Gabriela comentou como se desabafasse — e

nem todos enxergam isso.

— Nenhuma evolução é fácil, temos que respeitar o tempo de cada um —

encarava aluno por aluno —. Mas não se enganem com o egoísmo pensando

que são capazes de qualquer coisa. O ser humano, desde sua criação, precisou

de alguém para ajudá-lo — levantou-se da cadeira —. Para esse semestre o

desafio é fortalecer o laço da amizade, proporcionem a si mesmos momentos

inesquecíveis, momentos que os tornarão mais próximos daqueles que tanto

gostam e sempre os terão na hora da angústia!

O visionário discurso foi encerrado pelos aplausos dos jovens alunos que

ainda temiam ao futuro, mas que agora estavam encorajados a lutarem juntos

em prol de suas ideias.

Há alguns dias a Adolescente Apaixonada vinha se afastando de todos

que a rodeavam, preferia a solidão do que o agito das multidões, em parte a

culpa era da descoberta que fizera, mas existiam motivos maiores. O Romântico

Anônimo se preocupava muito com aquilo, por alguns momentos julgava como

sendo sua culpa, mesmo sabendo que nada fizera. Em mais uma tentativa de

conquistar o desabafo da namorada a segurou na sala de aula quando todos já

estavam no intervalo.

— Precisamos conversar — seu olhar era repleto de angústia.

— Mas eu não quero — a garota dos olhos azuis foi rude, esse era o seu

comportamento ultimamente.

— O que foi que eu fiz? — Gustavo alterou a voz, seus sentimentos de

culpa o deixavam agressivo, desnorteado —. Há dias tento entender o que está

acontecendo, procuro de todas as formas mostrar que pode confiar em mim,

que pode acreditar no meu silêncio, mas pareço um idiota correndo atrás de

alguém que pouco se importa.

— Eu me importo... — tentou se defender.

— Não parece — encarava-a seriamente como se a culpasse pela sua

preocupação —. Amo você e já provei isso de muitas formas — as palavras

saltavam do coração —, mas não vou tentar descobrir o seu segredo para

sempre. Se o problema sou eu, se o seu interesse por mim já não existe mais,

apenas quero que seja sincera como sempre fui.

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Aquilo parecia se encaminhar para o término banal de algo tão intenso,

construído de forma tão nobre. Mas Gabriela não queria isso.

— Podemos conversar em outro lugar?

— Acho que sim — respondeu ressentido.

— Também te amo — abraçou-o como vontade, derramando lágrimas,

como se aquilo fosse uma despedida —. Nunca duvide e nem se esqueça disso.

Conhecê-lo foi a melhor coisa que me aconteceu e sem você não posso

continuar.

Levando os braços soltos ao emotivo abraço o Romântico Anônimo não

pôde segurar a emoção e o desabafo:

— Preocupo-me com aqueles que amo, entenda isso...

<<>>

Depois da conversa com a irmã e influenciado pelos argumentos de Isaque

e Gustavo, Guto ficou pensativo quanto à garota que despertara algo diferente

em seu peito, algo que jamais sentira, mas que compreendia. Sua decisão foi

pensada por dias, analisada por horas e tomada em segundos. Agora

aguardava no jardim de casa que a coreana aceitasse o seu pedido.

— Queria conversar? — Ayshla apareceu no portão gradeado.

Prestativo, o rapaz se esforçou na cadeira de rodas e abriu o portão

convidando amistosamente sua visita a entrar. Rodeados pelo perfume das

tantas rosas e orquídeas poderiam conversar, entender a história de cada um e

descobrir o que verdadeiramente sentiam.

— Por que trabalhava com um criminoso? — Guto questionou.

A pergunta já era esperada e a resposta muito aguardada.

— Porque não tive escolha — a garota dos longos cabelos escuros

demonstrava sinceridade enquanto encarava seu ouvinte —. Cresci pensando

que aquilo era o mundo, fui educada para ser tão cruel quanto aqueles que me

educaram, acreditei que para vencer devemos passar por cima dos outros.

— Se quer mesmo ser minha amiga precisa me esclarecer uma dúvida,

como posso ter certeza de que mudou? — sua preocupação era em ser

enganado e que tragédias acontecessem por sua causa —. Preciso acreditar que

posso confiar em você.

Aquela explicação não era tão fácil de dar, precisava ser minimamente

pensada, detalhadamente precisa, envolvia confiança.

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— Essa não é a essência humana, sentia que algo estava errado, sentia que

o meu caminho terminava em um precipício no qual mais cedo ou mais tarde

eu teria que me jogar. Mas acabei conhecendo aqueles garotos e vi neles o que

existe de melhor no mundo, amor. Nasceu em mim o desejo por viver como eles

vivem, usufruir daquilo que eles usufruem, eu precisava mudar se quisesse

conhecer a verdadeira face do mundo — abriu um discreto sorriso —. Hoje sei

que nos corações onde existe a essência as pessoas estão sempre dispostas em

ajudar, em apoiar, em fraternizar e amar; são desses valores que quero me

enriquecer.

Cada palavra era verdade.

Algumas pessoas são iludidas pela crueldade que domina certas mentes e

chegam a se convencer de que o melhor caminho é o cercado por escuridão,

mas basta que os iluminados resplandeçam sua luz para que seus olhos sejam

abertos e o sentido da vida mostre sua autenticidade.

— Gostei de conhecê-la — o jovem rapaz sorriu infantilmente —. No

fundo eu sabia que não era uma pessoa má, tinha certeza de que existiam

explicações que me convencessem, nós ser amigos!

— Ou mais que isso — a coreana estava disposta a tentar novas emoções.

— Mais que isso? — Guto não tinha tanta certeza.

— Posso ser sincera?

— Claro.

— Acabei encantada pelo seu esforço em alcançar um objetivo, essa foi

minha primeira impressão, porém mais do que isso eu me encantei pelo seu

jeito tão único, nas poucas conversas que tivemos percebi que meu coração

acelerava ao te ouvir, isso só quer dizer uma coisa.

— Amor... — completou envergonhado —. Também serei sincero, desde

que a vi senti que algo a mais chamava minha atenção e não era a sua beleza —

sentiu o rosto queimar, estava mesmo corado —. Nunca vivi algo assim, tenho

medo e...

Um beijo o calou.

Um beijo discreto, motivador dos sorrisos apaixonados.

Testa com testa, olhos fechados.

— A gente pode tentar — Ayshla sorriu extasiada por aquele momento

especial.

— Sim... A gente pode tentar...

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<<>>

Agora casada, amando e sendo amada, Daniela tinha inspiração de sobra

para se atentar à tela do computador e continuar seu romance que prometia

cativar corações. Encontrava também na escrita certo refúgio para poupar a

própria mente dos pensamentos sobre a filha que a açoitavam. Estava tão

entregue ao trabalho que mal via as horas se passarem, chegava a sorrir com as

cenas que imaginava, parecia viver aquilo que escrevia. Mas o toque de

mensagem do celular a interrompeu. Contato desconhecido.

“Eu sei quem é o fruto do nosso amor...”

Aquilo não poderia acontecer.

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Capítulo 74

Era uma noite fria, contudo agradável.

O restaurante luxuoso estava cheio de pessoas alegres por compartilhar

um momento de suas vidas com aqueles que tanto gostavam; a tranquila trilha

sonora tornava o ambiente aquecido por clareira ainda mais aconchegante

naquela noite de inverno rigoroso.

De mãos dadas, elegantemente vestidos, o jovem casal foi recebido por um

simpático garçom que indicou a mesa reservada, anotou os pedidos e deixou os

dois adolescentes livres para qualquer conversa.

Tirando a touca e as luvas Gabriela encarava o namorado com atenção,

aguardava por alguma pergunta, sabia qual era o motivo que os levara ali.

Compreensivo e sem querer pressionar a garota dos olhos azuis, Gustavo abriu

um sorriso e declarou suas doces palavras:

— Como sempre, linda...

A Adolescente Apaixonada vestiu um semblante bobo ou mesmo tempo

em que tímido, o soar daquela voz feriu o seu coração, a suavidade das

palavras tocou em sua alma, mas ela se preparava para o fim de tudo aquilo.

— Não vou mentir, uma das razões para esse jantar é porque quero

descobrir a verdade, mas principalmente porque gosto da sua companhia — o

Romântico Anônimo tocou os dedos sobre a mesa mantendo a conexão entre os

olhares —. Pode confiar em mim, sempre.

O problema era sério e delicado, contar a verdade implicava em

problemas ainda maiores não para Gabriela, mas para as pessoas que ela

amava, aquelas que sempre estiveram ao seu lado em todos os momentos,

aquelas que não mereciam receber tristeza como pagamento.

— Sempre confiei, você sabe — por fim declarou —. Se estivesse

acontecendo alguma coisa eu falaria, mas não tem com o que se preocupar —

lutava contra si mesma para evitar o choro —, estou bem, é só uma má fase que

vai passar...

— Aprendi a conhecê-la conforme fomos nos aproximando e sei que nada

está bem — o jovem adolescente era convicto em sua forma de falar, seu maior

objetivo era ajudar a namorada a compartilhar os próprios medos —. Não sinto

qualquer coisa quando nos vemos ou conversamos, meus sentimentos quando

nos tocamos são os mais intensos possíveis ao ponto de me fazer jurar a mim

mesmo que cuidarei da garota mais especial desse mundo — sua declaração era

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também um desabafo, a dor de Gabriela era também a sua —. Mas eu preciso

da sua ajuda e compreensão, preciso que confie em mim. Daria a vida por você

se preciso fosse.

Dar a vida, talvez aquele fosse o problema.

Perante tais afirmações a jovem adolescente não pôde mais conter as

discretas lágrimas, suas angústia e aflição eram tamanhas que pareciam sufocá-

la, o desafio era o pior da sua vida.

— Pegue isso — tirou da bolsa um cartão e o entregou ao namorado —.

Tudo será explicado, mas leia somente quando chegar em casa. Faça isso por

mim.

Não havia alternativa, se quisesse realmente entender os fatos teria que

seguir as petições da garota.

No decorrer daquele jantar conversaram apaixonados, conseguiam se

esquecer da brutalidade do mundo e puderam sorrir revivendo o passado e

planejando o futuro. Tudo parecia perfeito, a vida parecia existir somente para

eles, nada mais fazia sentido, nada mais importava. Tal desligamento era feito

pelo amor que lhes garantia a sensação de plenitude sempre que estavam

juntos.

Porém a noite chegou ao fim, eles precisavam seguir suas vidas.

Na porta do restaurante Gabriela penetrou seus olhos azuis nos castanhos

que a fitavam surpresos e declarou seu maior sentimento:

— Independente do que aconteça saiba que você foi a melhor pessoa que

passou pela minha vida; é um garoto especial, diferente de todos os outros;

sortudos são aqueles que o têm como amigo — sorriu entre lágrimas —. Eu amo

você mais do que a mim mesma — e o beijou apaixonada, sedenta por aquele

momento, como se fosse a última vez.

E de fato era.

Ainda que contra a sua vontade, mantendo aquele que tanto amava

envolto pela paixão que os unia, a Adolescente Apaixonada tirou do bolso uma

seringa, injetou-a no pescoço do Romântico Anônimo, tão bem treinada acertou

a região precisa.

Gustavo sentiu a picada seguida pela ardência. À sua volta o mundo

girava, o rosto da namorada aos poucos desaparecia, suas pernas falhavam, a

escuridão o tragou.

Gabriela o acolheu em seus braços. Amargurada o repousou sobre o chão,

beijou-o pela última vez e correu.

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Correu para salvar aqueles que amava.

Correu para entregar sua própria vida em defesa daqueles com os quais

muito se importava.

Correu sem olhar para trás.

Correu na esperança de ouvir a voz que conquistara seu coração.

Correu sem saber se voltaria a amar e ser amada.

Correu.

<<>>

— Gustavo! — balançava-o assustado —. Gustavo! Acorde! — insistiu —.

Gustavo!

Atordoado, fraco, sentindo-se cansado como se fizesse muito esforço, o

futuro pediatra abriu os olhos, não conseguia entender o que estava

acontecendo, mas logo reconheceu o melhor amigo.

— Isaque?

— Graças a Deus! — Ana levou as mãos à cabeça.

— Vamos, seus pais devem estar preocupados — Marcos ajudava o filho a

levantar o garoto.

— Como me acharam? — perguntou sonolento.

— Estávamos jantando e quando íamos embora o encontramos — o futuro

engenheiro explicou —. Sente alguma coisa?

— Acho que não...

— Isaque — tremia de frio embora estivesse coberto por tantos edredons,

tomar aquela friagem teria suas consequências.

— Pode falar — já de saída do quarto voltou atrás.

— Viram Gabriela? — mantinha os olhos fechados, sentia o corpo doer.

— Ela estava com você?

— Ela que fez isso — revelou a dura e impensável verdade —. Dentro do

meu paletó tem um cartão, leia-o.

— A gente pode deixar isso para amanhã.

— Por favor...

Querido Gustavo, ou como é conhecido, lorde Gustavo.

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Somos capazes de loucuras em nome do amor, não somos? Sei que concorda

comigo e também sei que mudaria o mundo por amar alguém. Temos algo em comum,

compartilho desse mesmo pensamento.

Precisei partir, precisei ir embora para nunca mais voltar, precisei fazer essa

escolha em nome dos meus pais, dos nossos amigos e, principalmente, em seu nome.

Precisei obedecer a um mandato por amar pessoas especiais que tornaram a minha vida

prazerosa e fizeram de mim a mais feliz desse mundo.

Não quero tristezas, escrevi esse texto com o coração alegre por saber que estou me

entregando para poupar aqueles que me amam. Não vá atrás, não se preocupe comigo,

será em vão. Continue sua caminhada, sei que será o pediatra mais querido pelas

crianças.

Eu te amo.

Adolescente Apaixonada.

As letras tremidas foram facilmente lidas, mas afligiram o coração como se

fossem uma espada que penetrada no corpo do guerreiro é torcida para

aumentar a dor e depois arrancada com crueldade para o deixar sangrando até

a morte.

— Isso quer dizer que... — a voz fraca lutava contra o cansaço.

—Nada — cobriu o amigo engolindo o nó que se formava —, ela está bem

— sabia que era mentira, precisava poupar aquele que tinha por irmão do

sofrimento —. Amanhã será um novo dia e nós conversaremos — fechou a

porta do quarto, pôde chorar livremente.

— O que aconteceu? — Juliana logo se aproximou daquele que tinha por

membro da família.

Isaque apenas estendeu a carta, a carta da dor e do sofrimento.

<<>>

“— Arrogante! — interrompeu os passos da garota que andava apressada pela

calçada.

— É comigo? — se dirigiu humildemente à senhora, estavam em frente uma

sorveteria.

— Com quem mais seria? — tirou os óculos escuros —. Sabia que é repudiante

negar o perdão de uma mãe?

— Não quando ela te deu as costas — respondeu arisca, preparou-se para seguir

seu caminho, mas a velha se prendeu em seu braço.

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– Faz ideia dos problemas que tive por sua causa? — Dolôres encarava a neta com

frieza, com raiva —. Precisei afastar Daniela do meu convívio, as pessoas não podiam

suspeitar que eu tinha uma devassa por filha e ela não queria acatar a minha sugestão

para nos livrarmos de um estorvo — seu sorriso era gélido, o reflexo do sol em seus

olhos lhe garantiam um tom acinzentado —. Por fim as pessoas descobriram e, o pior,

descobriram que eu a havia expulso de casa, faltaram apenas me crucificar, não viram

que eu zelava pela integridade do meu nome e até hoje me fazem de bruxa — apertou o

braço da garota que a ouvia surpresa, atormentada por tais dizeres —. Você me deve

uma recompensa.

— Não devo nada — tentou se soltar, mas em vão —. Não tenho culpa de a sua

filha ter passado por cima dos seus princípios, nada tenho a ver com isso!

— Você precisa me recompensar — colou a garota contra seu corpo —. Em poucos

dias receberá os avisos, ou os cumpra ou os seus amigos e, principalmente, o palerma do

seu namoradinho me recompensarão com suas vidas! — empurrou-a furiosa —. Eu juro

que a faço culpada pela morte dos inocentes! — colocou os óculos novamente, apoiou-se

em sua bengala e vestiu a ‘máscara’ de senhora indefesa e inofensiva, deixando Gabriela

amedrontada com tamanha ameaça”.

No meio da madrugada o celular tocou. Proferindo palavras obscenas por

ter sito tirada de seu sono o atendeu.

— Já temos a garota em nossas mãos – a voz masculina soou triunfante.

— Ótimo — sorriu satisfeita —. Avise que a vovó deseja uma boa noite! —

desligou o aparelho, colocou-o sobre o criado-mudo, virou-se para o canto

inspirada a ter bons sonhos. Seu plano funcionava.

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Capítulo 75

Desde que nascemos somos bombardeados a todo o momento por

surpresas. Algumas são queridas, almejadas e sonhadas, quando acontecem nos

proporcionam um alivio e nos motiva a continuar na estrada. Contudo existem

as indesejáveis e desagradáveis surpresas, que nos colocam no meio de um

labirinto sem qualquer instrução, sem qualquer ajuda, ali nos lança à própria

sorte. Desnorteados, não sabemos qual caminho escolher, qual saída é a certa,

qual porta nos levará para o lugar errado, sentimo-nos em uma intensa

escuridão que nos traga cruelmente.

Ao acordar pela manhã com a cabeça ainda dolorida, corpo moído e

sentindo os efeitos da forte gripe que chegava, Gustavo lamentou pela

realidade que o aguardava, só não conseguia entendê-la. Querendo despertar

tomou um demorado banho quente, aéreo se alimentou, abatido voltou para

cama. Para ele o mundo chegava ao fim de uma forma inesperada.

Poderia ser o que julgassem por dramático, talvez o acusassem de estar

fazendo uma tempestade desnecessária, mas o que importava era que apenas

ele sabia a dor que sentia, não era uma melancolia comum, era uma tristeza

abrasadora, que queima. Ele amava Gabriela e apesar da pouca idade tinha

certeza de que aquele sentimento venceria os limites do tempo. O futuro

arquitetado era luminoso e esplêndido: eles seriam felizes para o resto da vida,

era nisso que acreditava.

Mas as surpresas. As malditas surpresas que a vida aplica aos pobres

mortais sedentos por um pouco de paz. De uma hora para outra todo um futuro

planejado se transformava em pó, um sonho utópico, algo que jamais sairia do

imaginário. De uma maneira impensada o Romântico Anônimo precisava

desacreditar em tudo que semeou, aquele era o desfecho, restava aceitar.

No entanto as surpresas malquistas nos privam de viver; passam-nos a

ideia de que não adianta o que façamos e o quanto tentamos vencer, sempre

haverá algo errado, sempre seremos privados de alguma forma e, então, para

quê continuar? Por que se manter em pé com motivos de sobre para não o

fazer? Qual o sentido de acreditar em dias melhores se os atuais estão cercados

de por sombras? Passamos a desistir dos nossos ideais, desistir da vida e, por

fim, desacreditamos em nós mesmos.

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Aquilo era viver? Aquilo significava batalhar por seus sonhos? Aquela era

a recompensa por se esforçar tanto em esbanjar o bem por onda passar? Aquilo

não era outra coisa se não injustiça.

Os pensamentos do futuro pediatra eram esses, cercados de desesperança

e falta de motivação. Os últimos acontecimentos foram terríveis, mas o atual era

muito pior e contribuía para o argumento que nascia: vivemos à toa.

Por mais que tentasse Gustavo não conseguia encontrar explicações, talvez

elas nem existissem, talvez as coisas simplesmente acontecessem, por acaso,

pouco se importando com as feridas que podem causar.

Uma batida na porta. Pela entonação do som sabia quem era, mas não

sabia se estava disposto em receber visitas. Sentou-se na cabeceira da cama,

enxugou os olhos avermelhados e resolveu atender.

— Entre.

Entrou acanhado, não sabia o que encontraria naquele quarto, não fazia

ideia de quais palavras declarar, mas era seu dever estar ali apoiando alguém

que muito gostava. Mais do que devia, ele queria estar ao lado de alguém que

sempre esteve do seu.

— Como vai? — o tom de voz era baixo, tinha noção da dor, respeitava

isso.

— Mal — respondeu com a voz anasalada, cabisbaixo, sem qualquer

animação.

Raras foram as vezes que Isaque vira o melhor amigo desanimado, mas

naquele dia a triste surpresa foi ainda maior; Gustavo não estava apenas

desanimado, mostrava-se desacreditado na melhora de tudo, seu semblante

depressivo causava as condolências em quem o visse.

— Por certo imaginava que eu viria, mas se não quiser conversar vou

entender, sei que não está fácil, na verdade nenhum de nós consegue acreditar

nisso, nenhum de nós sabe o que fazer.

Realmente, o Romântico Anônimo queria mergulhar no próprio silêncio e

se esconder na “acolhedora” solidão; queria se embriagar com a própria aflição,

seus pensamentos eram preocupantes.

Mas ainda existia sobriedade, ainda restava uma gota de desejo por fazer

do mundo um lugar melhor e nele deixar o seu legado, para tanto precisaria de

ajuda, precisaria de alguém em quem se apoiar.

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— Por que tudo isso? — embora a diferença de idade entre eles fosse de

poucos dias, o futuro pediatra via no grande amigo um irmão mais velho,

alguém que teria as respostas que procurava, com o olhar entristecido suplicava

por alívio.

— Eu não sei — foi sincero, verdadeiro, não sabia o motivo das coisas e

não adiantaria inventar filosofias que amenizassem o sofrimento, elas seriam

vãs e teriam um curto efeito —. Mas eu sei de uma coisa — sentou-se ao lado do

desesperançoso adolescente —, vamos passar por isso juntos, como sempre

passamos.

Talvez não fosse a resposta que queria ouvir, mas era o que precisava.

Lançou-se ao abraço daquele que verdadeiramente tinha por irmão e deixou as

lágrimas angustiadas correrem violentamente, percorrerem seu rosto como se o

queimasse.

Acreditavam que a Adolescente Apaixonada estivesse morta e essa dor

parecia não ter fim.

<<>>

Uma mãe que perde o seu filho se sente como mutilada, é algo que dela

fora tirado, algo que a ela estava unido não por laços sanguíneos, mas pelos

laços de amor construídos ao longo dos dias, meses e anos. Talvez seja a pior

dor que uma mãe possa sentir.

Laura se culpava. Percebera que nos últimos dias Gabriela se distanciava,

mas não se importou como deveria, julgou como sendo apenas uma fase por

conta das descobertas, que logo passaria. Só que com todas as circunstâncias

teve a mente clareada, não era uma simples fase, era uma angústia tremenda.

Também acreditava que a filha já não estivesse com vida, essa era a

conclusão da carta e era nisso que se firmavam. Não tinham esperanças para

suspeitar do contrário, já se convenciam e choravam a perda de alguém

querido.

Mas a enfermeira tinha uma culpada em mente, alguém que pudesse ter

relação com aquilo. Embora seu julgamento precipitado por conta das tantas

emoções não a permitissem raciocinar direito, Laura foi atrás da suspeita,

disposta em lhe fazer confessar.

— Por que fez isso? — enfrentou Daniela.

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— Não tenho nada a ver com essa história! — tentava se defender, mas

não conseguia, no fundo entendia o desespero daquela mulher, mas não seria

julgada como assassina, alguém cruel, era injusto.

— Desde que apareceu na vida de Gabriela tem a deixado pensativa e

angustiada — afirmava como se tal argumento provasse a culpa da escritora —.

Por que voltou? — intimou uma resposta —. Qual era a sua intenção?

— Alcançar remissão — Dolôres apareceu por trás de Laura —. Entre —

abriu passagem para o apartamento de Rui —, vamos conversar como adultos

equilibrados, os vizinhos não precisam saber sobre a sua irresponsabilidade.

— Mãe?! — Daniela não concordou com a provocação.

— Apenas estou fazendo o mesmo que ela — encostou a bengala na

parede enquanto limpava as lentes do óculos de grau —, defendendo a minha

filha.

— Entre — amistosamente, a escritora tocou em Laura acolhendo-a no

apartamento —, não a culpo por estar pensando dessa maneira, faço ideia da

dor que está sentindo e estou disposta bem ajudá-la no que precisar.

— Já que ficarei sobrando vou passear um pouco mais — a senhora pegou

a bengala —. Meus pêsames — gostava de provocar dor.

Toda aquela triste história teve sua narração causando a compaixão de

Laura, que percebera o quão injusta e egoísta foram suas palavras.

— Não vim para essa cidade por querer uma vida de mãe e filha com

Gabriela, eu sabia que ela já tinha uma família, estava acolhida nos braços de

pessoas que fizeram o que eu não fiz, pessoas que a amavam — sua voz era

tranquila e seu rosto simpático —. Apenas queria uma possível amizade, nada

além.

— Parece que seu desejo não será realizado, tiraram a nossa menina de

nós — a enfermeira deixou o choro se manifestar, precisava desabafar,

precisava chorar com alguém.

Abraçando aquela que conseguira conquistar, Daniela declarou seu

pensamento:

— Talvez esteja chorando a morte de alguém que não morrerá tão cedo.

— O que quer dizer? — desacreditou —. Está mais que claro.

— Prometo que vou investigar, não acredito que as coisas aconteceriam

dessa forma surreal, apenas quero que alimente esperanças. Tenho certeza de

que voltará a ter sua amada filha em seus braços!

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Usava um chapéu florido, óculos estilosos e fones de ouvido. Seu sorriso

simpático passava a ideia de boa vovó, uma senhora do bem; a bengala lhe fazia

parecer indefesa, debilitada pelos anos de vida, pelo tempo que se passou; mas

em sua mente só Deus sabia o que era planejado.

Parecia esperar o transporte público, afinal de contas estava no ponto de

ônibus, mas quando um luxuoso carro de um preto brilhante parou em sua

frente ela foi tratada pelo motorista como uma importante dama. Sentou no

confortável estofado. Desceu o vidro automático. Ainda sorridente declarou

àqueles que ainda esperavam o ônibus:

— Quem pode, pode... — adorava provocar.

A curta viagem durou no máximo meia hora. Venerada, foi recebida pelos

porteiros do sofisticado edifício, na verdade um disfarce para o seu império.

— Tenho horror a pobre — praguejou para os seus guarda-costas dentro

do elevador —. Fiquei até com medo de o pneu estourar, bando de invejosos do

olho gordo — sua prepotência era sempre nítida.

Subiu ao último andar. A passos vagarosos adentrou o amplo

apartamento, ficou de frente para Gabriela que, encapuzada, estava amarrada

em uma cadeira. Tirou o capuz, permitiu ao clarão do lugar incomodar as vistas

desacostumadas.

— Cadê o Marcelo? — eram parceiros —. Confesso que fez um ótimo

trabalho!

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Capítulo 76

Já havia passado por aquilo antes, já fazia ideia do que viveria, a única

diferença é que dessa vez não conseguia imaginar o desfecho. Da primeira vez

sabiam que estava viva, tinham certeza de que a encontrariam em qualquer

lugar, mas agora a astúcia dos perversos foi além das possibilidades, na carta

deixava claro que daria a própria vida, não faria sentido correrem atrás dela.

Encarava a ardilosa senhora com ar de descrença, não tinha razão para

que a odiasse, era puro egoísmo e crueldade.

— Foi esperta — com dificuldade Dolôres se sentou na poltrona estofada

em frente a sua prisioneira, fitava-a com ar de superioridade, transmitia

ressentimento através do rígido olhar —. Obedecer ao protocolo e tirou os

inocentes da minha mira — teve uma crise de tosse, resultado dos anos que

passou como fumante, logo restabeleceu o fôlego voltando aos poucos ao

natural da pele —. Merece uma recompensa antes de passar pelo inevitável,

garanto que será surpreendida.

— Por que toda essa cena? — Gabriela já estava cansada das tantas coisas

ruins que aconteciam nos últimos tempos, não compreendia o porquê delas,

não era uma má pessoa para que as conspirações do universo fossem tão

intolerantes —. Qual a ligação que existe entre nós? Nunca nos relacionamos e

nem fui atrás de vocês, vivi a minha vida tranquilamente mesmo tendo

descoberto a verdade. Não os importunei.

— Falando assim me faz parecer uma bruxa — zombou provocante, tinha

consciência da injustiça de suas atitudes, mas era controlada pela arrogância e

prepotência, precisava culpar alguém pelas desagradáveis surpresas que a

cometeram durante a vida, precisava fazer alguém pagar pelos seus próprios

erros —. Talvez não entenda ou não queira entender, a verdade é que sua

existência me causou prejuízos morais, ninguém se importou com a minha

posição, com o que falariam da minha conduta, antes agiram como bem

quiseram, mas agora é a minha vez — segurava a bengala com força, os óculos

na ponta do nariz —. Doa a quem doer, aconteça o que acontecer, vão pagar!

<<>>

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Talvez a culpa fosse sua. Se não tivesse procurado a filha nada daquilo

aconteceria, não causaria turbulências na vida de pessoas que nada tinham a

ver com o seu passado, o seu atribulado passado.

Fato era que as coisas seguiram aquele rumo, entraram naquele caminho

sem volta, a única coisa possível era acreditar que a filha, se é que poderia

chamá-la assim, estaria viva, pronta para ser salva e ela faria o inacreditável

para poupar a dor dos inocentes.

Contudo, antes de qualquer ato heróico, precisava ser sincera com sua

nova família, precisava revelar o que escondia e declarar seu plano que

colocaria sua vida em risco; precisava ser verdadeiro ao ponto de confiar

naqueles que acreditavam em si. A vida não era como em seus livros, onde o

mundo segue o curso que ela determinava e as personagens viviam felizes

como ela escolhia; a vida é uma caixinha de surpresas com desfechos não tão

amistosos assim. A cruel realidade precisava ser encarada.

— Reuni vocês aqui por que posso ajudar no conflito que está afligindo a

todos — sentada no sofá da sala do apartamento Daniela observava Rui e Júlia

com atenção, percebia curiosidade em seus olhares, enxergava apreensão em

seus pensamentos —. Tenho uma filha — revelou de uma vez.

Até esse ponto o marido já conhecia a história, não era nenhuma

novidade, mas a jovem adolescente não conteve o espanto, por alguns instantes

se arrependeu por ter confiado tão cegamente em alguém que não conhecia,

mas notando que o pai já sabia da verdade foi compreensiva, a escritora fora

sincera antes de se casar.

— O problema, eu acho, é que vocês a conhecem muito bem. Convivem

com ela ao ponto de sentirem a sua falta de uma forma descontrolada —

respirou fundo, não sabia como reagiriam, sentir o carinho do esposo sobre suas

mãos aflitas lhe concedeu forças para continuar: — Ela é a Gabriela — aquilo

era novidade.

<<>>

Não demorou muito para a figura masculina aparecer no apartamento

disfarçado de lar de família, mas que na verdade era a corja dos perversos.

Usava um boné moderno, óculos escuros e estilosos, uma jaqueta de couro

luxuosa e vestia um acolhedor sorriso simpático; o genro dos sonhos de

qualquer mão coruja. Mas tirando tudo aquilo espantou Gabriela com a visão

que lembrou-se de toda a história: era ele o irmão gêmeo do professor Gilmar.

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— Sogrinha querida — beijou a velha cheio de deboche —. Já contou para

a sua neta a grande novidade?

— Faça você as honras — a mulher de cabeça branca sorria friamente.

Pela primeira vez Marcos encarou a garota dos abalados olhos azuis, foi

levado de volta ao passado, quando conhecera sua mãe, quando por ela criara

um desejo obsessivo, mas que durou pouco, foi apenas para satisfazer as suas

banais vontades, não semeava sentimento algum pela mulher que desgraçou a

vida.

— Sou o seu pai — seu semblante irônico e cruel manifestava-se no rosto

deslavado —. Mas não faço o tipo que se preocupa, não sou aquele que discursa

palavras de proteção ao ponto de entregar minha preciosa vida se necessário —

aproximou-se da adolescente a passos vagarosos, perdendo-se na mesma cor

dos olhos de Daniela, eram iguais se não idênticos — Faço o tipo vingativo —

sussurrou no ouvido de Gabriela: — Vingança é o meu maior desejo.

— Deve conhecê-lo, ficou famoso na Cidade da Paz após quase aniquilar

os modelos da amizade — a perversa senhora revirou os olhos com desprezo —

. Ele foi precipitado, existia uma forma muito melhor para se vingar daquela

cidade insignificante, mas agora que estamos juntos faremos história, nem que

morramos!

<<>>

Simplesmente surreal.

Daniela e Gabriela como mãe e filha, separadas pelo destino, tiradas uma

da outra pela perversão e crueldade de pessoas que se importavam apenas com

elas mesmas.

Júlia não sabia o que dizer, nunca passou pela sua mente que a amiga era

adotada, nunca lhe contaram uma história tão inimaginável.

— A culpa desse problema todo é minha — confessou como se fosse

mesmo verdade —. Voltei para cá e aquele homem indesejável me descobriu

aqui. Fez ameaças e ao seqüestrar os seus amigos mostrou o quão terrível e

capaz é de absurdas atrocidades. Tentou me prender a ele, mas não imaginava

que seus golpes seriam tão baixos, juro que se soubesse quais eram suas

intenções eu aceitaria qualquer proposta.

— Não diga isso — Rui se opôs ao argumento da esposa —. Primeiro que

a culpa está nas mãos do causador de tudo isso e segundo que se você

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atendesse às suas regalias hoje não estaríamos juntos vivendo a melhor fase de

nossas vidas.

— Faz ideia de quem esteja por trás de tudo isso? — a garota dos olhos

verdes queria informações, talvez pudesse ajudar.

— Só pode ser ele — afirmou —. Recebi uma mensagem de contato

desconhecido, mas ela foi clara em me intimidar contando que sabe quem é a

minha filha.

— Então ela pode estar viva?

— Com qual propósito ele a mataria sem antes atacar a mim?

<<>>

— Temos interesses em comum e então nos aliamos — com as pernas

cruzadas, mãos sobre o joelho dobrado e sobrancelha arqueada, Marcelo

contava como se uniu a alguém que poderia odiá-lo.

— O primeiro deles era o dinheiro, conseguimos muito no tráfico humano

— Dolôres não demonstrava qualquer arrependimento por aquela conduta

imoral —. Mas o segundo é muito melhor.

— Na Cidade da Paz fui humilhado quando descobriram aquela maldirá

traição.

— Em Paraisópolis fui ridicularizada e vista como uma devassa quando

descobriam a gravidez de minha filha e a minha decisão frente a isso — bufou

cansada —. As pessoas são ridículas. Se você tem uma filha solteira que

engravida é vista com maus olhos e se você a expulsa de casa a crucificam até a

morte...

— O ser humano nunca está satisfeito.

— E isso cansa.

— Fui eu quem engravidou a filha dessa vovó amável — trocou sorrisos

com a megera —, ela teria todos os motivos necessários para me repudiar, mas

sua intenção era se vingar da filha.

— Teria companheiro melhor para isso? — levantou-se debilitadamente,

recebendo a ajuda do aliado —. Mas voltando ao foco do plano vá se

preparando para o desfecho de tudo isso.

— Pagará com a sua vida... — encarou Dolôres, como se estivessem

apaixonados.

— ...o mal que nos fizeram — beijou Marcelo.

Entre eles uma paixão cercada por interesses.

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Paixão atroz.

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Ao lado de Rui, a talentosa escritora se dirigiu à delegacia disposta em

colaborar nas investigações mesmo que isso implicasse na sua participação,

mesmo que ficasse vulnerável ao perigo.

— Daniela?! — um fá a privou de entrar no departamento policial —.

Preciso de um autógrafo — estendeu o livro com afobação.

— Pode ser daqui a pouco? — sugeriu tentando se esquivar, mas a

insistência do cidadão não a deixava passar.

— Ela já disse que depois! — Rui empurrou o homem, que irritado

provocou a briga com o empresário.

Despercebida, amedrontada pela discussão, Daniela foi pega por

meliantes, jogada dentro do carro e levada como vítima.

<<>>

O lugar era escuro. Na verdade o saco colocado em sua cabeça não

deixava os olhos contemplarem a luz. O silêncio ao redor era agonizante, as

mãos e os pés amarrados provocavam o medo, a sensação de perigo estremecia

todo o corpo que, debatendo-se, tentava se livrar.

— Calminha, quietinha — a voz grave soou —, ninguém quer machucá-la

— descobriu o rosto permitindo a visão —. Lembra de mim?

Perante os seus olhos a única pessoa que odiava, o homem que provocou

ruínas em sua vida, o que a fez pensar na sinceridade de possíveis sentimentos,

mas que terminou frustrada sobre a verdade.

— O que quer de mim?! — exigiu a resposta, gritando a plenos pulmões.

— Primeiramente, que seja educada — apontou para o lado —. Sua filha

quer lhe dar a bênção — o tom de voz era cercado por zombaria.

— Seu problema é somente comigo! — a escritora faria o possível para

libertar a garota —. Tenha atitude de homem pelo menos uma vez na sua vida

medíocre!

— Garanto que foi muito bem educada, pena que não exerce — a voz

feminina soou atrás de Daniela —. Não vai cumprimentar a mamãe?

Simplesmente inacreditável.

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Capítulo 77

Temos nossa confiança conquistada pelo belo discurso de pessoas que não

deveríamos ouvir, mas que pela astúcia das palavras certeiras nos cegam e nos

fazem acreditar. Porém, como disse um grande pensador de tempos remotos,

há três coisas que não podem se esconder por muito tempo: o sol, a lua e a

verdade. Esta última, ainda que leve anos, sempre aparece e derruba um

mundo que pensávamos existir, tira-nos de uma ilusão mortífera.

Quando revelou a gravidez para sua mãe, Daniela foi duramente

reprimida, ouvira coisas que não merecia, coisas que uma matriarca jamais

falaria para aquela que gerou. Sofreu rejeição e desprezo. De quem mais

esperava compreensão e um abraço acolhedor recebeu afastamento e abandono.

Foi renegada pela própria mãe que de maneira cruel a expulsou de casa,

lançou-a contra o mundo, deixou-a perdida sobre a própria sorte.

Mas os anos se passaram.

Dolores demonstrou arrependimento pelas atitudes passadas ao ir atrás

da escritora e encontrá-la; suplicou o seu perdão e que lhe desse abrigo já que

acabara perdendo os bens que possuía, não tinha família, resumia-se naquela

que um dia humilhou. Contudo, Daniela sempre cultivou o amor, sempre

exerceu o perdão, não guardava no peito se quer uma gora de rancor, abrigou

aquela que um dia a ignorou.

Porém aquela mulher era cercada por ódio, culpava a filha por cada

derrocada que sofrera nos últimos tempos, tudo que mais queria era um acerto

de contas, precisava se vingar. Coisas da vida ou coincidência do destino,

Dolôres conheceu Marcelo e descobriu nele o mesmo sentimento por Daniela,

uniu-se a ele, tornou-se integrante de uma das piores organizações criminosas,

provou grande fidelidade e em pouco tempo foi de recruta a líder. Tudo isso

por baixo dos panos, mantendo a aparência de boa alma, enganando a qualquer

um com palavras de conforto que soavam da voz trêmula e enfraquecida. Pela

segunda vez traíra alguém que gerara.

A verdade por trás dos fatos apareceu, a realidade se manifestou sem

impostar as consequências e a talentosa escritora não conseguia entender o

absurdo daqueles fatos, parecia coisa do imaginário.

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— Como foi capaz? Seus olhos estavam marejados, seu coração

entristecido —. Conseguiu me iludir como os perversos fazem com os puros.

Acreditei que quisesse mesmo o meu perdão, achei que fôssemos mesmo

unidas por algo maior...

— Amor não existe, o que existe é sobrevivência — com gestos lentos a

velha se sentou na querida poltrona estofada, sorria contente —. Fiquei pobre,

todos os meus amigos e parentes, por sua causa, deram-me às costas, restava-

me somente a sarjeta — precisou encher o pulmão —. Não sabe o quão

humilhante foi suplicar a sua ajuda, fingir arrependimento, pedir perdão...

— Foram as consequências do seu próprio caminho — a mulher dos olhos

azuis declarou seu argumento —. Abandonar uma filha é muito pior do que

aceitar a que engravidou, o que não é nenhum crime, mas que pela arrogância

das pessoas ignorantes como você é definido como infâmia!

— Vamos mesmo falar de abandono? — lixava as unhas como se nada

mais a preocupasse, como se nenhuma opinião a atingisse, de fato não se

importava com nenhuma dor —. Você é experiente nisso, diga para nós, como é

entregar um recém-nascido ao mundo? Como é fazer um inocente pagar pelos

próprios erros? Como consegue viver com essa culpa?

— Cala a boca! — exigiu entre os dentes.

— Respeite ela! — Marcelo não poupou forças ao agredir o rosto de

Daniela deixando ali o vermelho ardente —. Foi motivo de desgosto, desgraçou

a vida da própria mãe, o mínimo que pode fazer é se humilhar!

— Hipócrita! — não se intimidou ao cuspir na face de um homem que lhe

causava repulsa, de uma homem pelo qual sentia nojo, que um dia amou, mas

que agora odiava intensamente.

Aquilo era demais, Marcelo não aceitaria tamanha afronta, descarregaria

suas próprias frustrações na violência que dispensaria naquela que muito

iludiu.

— Marcelo, acalme-se — a voz de Dolôres o interrompeu antes que

pudesse dar início à sua covardia —. Não suje suas mãos e nem se importe com

as ofensas, seremos recompensados quando recebermos o dinheiro pelos seus

corpos, seremos recompensados quando estivermos usufruindo de todo o luxo

enquanto teremos a certeza da realidade nojenta que as envolverá bem longe de

nós — fez uma pausa misteriosa para então concluir: — A vida se encarregará

da nossa vingança.

Em silêncio, Gabriela a tudo ouvia.

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A garota dos belos olhos que remetiam ao imenso céu causava falta,

deixava saudades, sua ausência feria os corações daqueles que estavam

acostumados com a convivência, com a sua prazerosa companhia e com o seu

sorriso que cativava a todos. Seus pais e irmão por mais que tentassem confiar

no final feliz daquela história, não podiam deixar de temer o indesejável

desfecho; nem sequer receberam uma ligação pedindo o resgate, com o

conhecimento que tinham não julgavam o crime como seqüestro, aquilo não

passava de crueldade.

“Passeavam tranquilos por entre as árvores. Sorridentes tiravam fotos à beira do

riacho. Felizes faziam poses perante as pedras ornamentais e eternizavam os momentos.

Formavam uma família alegre, faziam de cada momento o mais especial, viviam seus

sentimentos com intensidade, com companheirismo e compreensão.

Ela era ainda muito pequena, tinha por volta dos cinco anos de idade, mas seu

brilho parecia de alguém experiente, alguém sábio pela vida que viveu, alguém que

entendia cada sentimento humano apenas por vivê-los.

Embora a mensagem que passavam era de que as coisas se encaminhavam

perfeitamente bem, na verdade Laura e Eliseu enfrentavam uma crise no casamento,

causada pela divergência de opiniões e pela falta de compreensão. Enquanto a enfermeira

tentava convencer o marido a tirar Guto da clínica ou pelo menos permitir que o filho

mantivesse uma relação com a irmã, o professor de português insistia em se julgar o

certo, em defender sua decisão como a mais apropriada. Tal convergência causava a

tensão.

Mas Gabriela sempre fora espera e perceptiva, notava o distanciamento entre os

pais e a falta de diálogo que existia. Resolveu mudar aquela situação na agradável tarde

que passavam em contato com a natureza.

— Vocês me amam? — perguntou na curiosidade infantil.

Pai e mãe se entreolharam espantados, não sabiam de imediato o que responder e

nem imaginavam qual seria a intenção da pergunta.

— É claro que sim — a mulher provocou as gargalhadas da doce menina através

do ataque de cócegas —. Amamos como o nosso maior presente!

— Sua mãe tem razão, minha querida — o pai ‘babão’ ajeitou os fios loiros

bagunçados e tocou as bochechas rechonchudas —. Nunca se esqueça disso.

— E vocês? Amam-se? — ainda que não tivesse a visão da carne a pequena e

admirada garota enxergava com o nobre coração, desde cedo já muito sábia.

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Laura e Eliseu tornaram a se encarar. Naquele momento foram levados de volta ao

passado, quando se conheceram e sentiram o estômago formigar com o primeiro toque

das mãos em um gesto cordial de cumprimento. Os meses se passaram e as aulas na

faculdade, embora de turmas diferentes, mais interessantes. A amizade entre eles passou

a tomar proporções maiores e se transformou em amor, um amor cheio de planos,

segredos, repleto de tantos outros ricos sentimentos. Foram unidos pela intensidade

daquilo que sentiam, prometeram que se amariam pela eternidade e que nem a morte os

separaria.

— Sim, minha filha — o professor de português mantinha o olhar apaixonado

sobre a esposa, o mesmo olhar que vestiu no primeiro encontro anos atrás —. Amo sua

mãe como se a minha vida dependesse dela.

O romantismo do marido sempre provocou o seu acanhamento e o rosto

avermelhado. Exibindo o tímido sorriso perfeito, a enfermeira declarou aquilo que o seu

coração clamava no peito:

— Amo tanto que não posso me imaginar sem ele, também é a razão dos meus dias

nesse mundo — os olhos brilharam como da primeira vez que encararam aquele homem.

— Então por que não conversam mais? — provou sua esperteza e seu senso de

percepção —. Pessoas que se amam sempre trocam palavras.

Seus olhos se abriram. A filha tinha razão. A partir daquele dia retomariam as

forças para manterem aceso aquele amor avassalador”.

Ao contaram aquela história inspiradora a Guto, marido e mulher se

emocionaram e a saudade no peito cresceu ainda mais.

— Sua irmã tem o dom da sabedoria — Eliseu confessou.

— A falta das suas palavras muito nos entristece — Laura admitiu

procurando dentro de si a fé que faltava.

Pessoas que fazem a diferença também causavam dor na distância.

<<>>

A janela do apartamento mostrava que já era noite e nem uma sombra de

salvação pairava sobre o lugar. Gabriela, por mais que quisesse, não acreditava

em reviravoltas, já se acostumava com a ideia de que seria separada das pessoas

que amava e que precisaria ser forte para enfrentar o desconhecido. Daniela,

por sua vez, cultivava em seus pensamentos a fé que lhe assegurava um final

feliz, acreditava na filosofia de que o se supera ao mal, era seu dever confiar

nisso.

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Romântico Anônimo

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— Perdoe-me — quebrando o silêncio entre elas a escritora declarou o seu

pedido.

Tendo seus tantos e turbulentos pensamentos interrompidos, a jovem

adolescente virou-se para a mulher, seu semblante transmitia compreensão,

conseguiu entender os motivos de Daniela, não a faria se sentir ainda mais

culpada.

— Não tem com o que se desculpar — sorriu entristecida, o brilho de seu

sorriso já não existia.

Era um bom começo, poderia ser que ouvisse tantos ataques, mas aquelas

suaves e delicadas palavras mudaram a previsão da escritora e lhe garantiram

forças para a declaração a seguir:

— Quando passei a procurá-la não intencionava requerer o seu sentimento

de filha, não queria ser vista como sua mãe, seria egoísmo da minha parte tentar

tirá-la daqueles que fizeram por mim o meu dever — começou a se explicar, era

sincera em cada vírgula —. Queria ser sua amiga, talvez nem dissesse a

verdade, talvez não precisasse disso para conquistar a sua amizade, apenas

sonhava com essa relação.

Gabriela vertia um rosto tranquilo, descansado, ouvia a tudo com atenção

e mantendo o coração aberto, receptivo.

— Não a abandonei por ignorância, você não merecia viver em meio ao

preconceito de muita gente e a miséria que me cercava. Era uma inocente, tinha

direito a uma vida melhor — não pôde conter a lágrima que escorria com a

lembrança do dia em que deixara o bebê nas mãos de outra pessoa —. Sua

beleza era fascinante, seu rostinho angelical conquistaria o amor de qualquer

um, eu tinha certeza de que as pessoas certas entrariam em sua vida. Quando

soube qual foi a família que a acolheu meu coração se acalmou por saber que

viveu ao lado de boas almas, tenho certeza de que pôde viver o melhor.

Diante aquele discurso repleto de sentimento a Adolescente Apaixonada

não escondeu a emoção, deixou que ela se manifestasse através das lágrimas e

da fala inspirada pelo seu coração:

— Reconheço que não teve culpa e que sua atitude se deu pensando no

meu bem estar. Também reconheço que juntas poderíamos ter sido felizes,

daríamos um jeito, mas esqueça o que já foi, o tempo não volta — sorriu

abertamente, provando sua sincera decisão: — Adoraria ser sua amiga!

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Capítulo 78

Amor...

Qual a força do amor? É possível medir sua intensidade? Alguém pode

calcular o seu tamanho? Quem pode explicá-lo?

A definição no dicionário é plausível, quer dizer afeição acentuada entre duas

pessoas, mas ainda assim não é suficiente para que possamos entendê-lo. Talvez

tenhamos que levar uma vida inteira para que sejamos esclarecidos, talvez a

resposta apareça somente quando os nossos olhos estiverem se entregando à

eterna escuridão.

Mas e amar? O que seria amar?

Esse pequeno verbo é dono de um esplêndido significado e não se resume

em beijos ou abraços, amar é muito mais complexo. O verbo amar existe no

respeito, está na compreensão, está no companheirismo, está no saber falar e

ouvir, está na lealdade e fidelidade, está na sinceridade e reciprocidade. Amar

não é simplesmente dizer eu te amo, é provar isso mesmo sem dizer.

Nem todos sabem amar. Nem todos vivem a essência do amar, pensam

que amam, mas não o fazem. O tempo passa e percebem que o coração está

desgastado, que os relacionamentos já não são a mesma coisa, isso porque amar

não é só beijos e abraços.

Contudo existem aqueles que verdadeiramente sabem amar, que

conhecem e vivem essa essência, ainda que não digam conseguem expor a todo

o mundo o quão amantes são. Vivem relações duradouras – seja entre casal ou

não –, passam por relacionamentos que jamais perdem o gosto do começo, isso

porque souberam amar e dedicaram tamanha sabedoria àqueles que amavam.

Consegue compreender o que é o amor? É um sentimento complexo que

suporta muitas coisas, no entanto ele apenas funciona quando é alimentado. O

amor precisa ser amado. Aquele que ama precisa receber de volta tudo o que

doou. Amor não é um tesouro individual, ele não está presente no egoísmo, ele

se manifesta na união daqueles que estão dispostos a amar.

O amor conecta as almas, envolve os corpos e eterniza os amantes; nem a

morte vence o amor. Aquele que ama pode partir, mas o seu amor permanece

para sempre.

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Sentia saudade, mas não era aquela saudade causada pela distância,

aquela que terá um final no simples reencontro, era uma saudade maior, mais

dolorosa, era causada pela certeza de que nunca mais se verá aquele que tanto

se deseja ao lado.

Tentava dormir, mas não conseguia. Tentava relaxar, mas aquele rosto

cujo cada detalhe conhecia insistia em permanecer perante sua mente. Colocou

os fones de ouvido. Ligou o aleatório.

Um quarteto de cordas tocava suave e gradativamente intensificava o

som. Gustavo pensou em passar pata a próxima música, contudo não teve força,

permaneceu naquela melodia melancólica enquanto a falta de Gabriela

mergulhava sua alma em uma profunda tristeza.

“You taught me the courage of stars before you left

How light carries on endlessly, even after death

With shortness of breath, you explained the infinite

How rare and beautiful it is to even exist”

[Você me ensinou a coragem das estrelas antes de partir

Como a luz continua interminavelmente, mesmo após a morte

Com dificuldade em respirar, você explicou o infinito

Quão raro e belo é até mesmo existir]

As lágrimas rolaram frias e gélidas naquela madrugada de inverno

rigoroso. As mãos cobertas por luvas tentavam se aquecer, mas em vão. A

saudade doía, corroia aquele coração.

O maior desejo do Romântico Anônimo era reencontrar o amor de sua

vida nem que fosse a última vez. Seu anseio era por abraçá-la como se fosse

uma despedida. Queria somente uma oportunidade para encarar os brilhantes

olhos azuis que sempre o enfeitiçaram e que agora faziam uma dolorosa falta.

Talvez nunca mais fosse ouvir a tranquila voz, nunca mais acariciaria o

delicado rosto, nunca mais sentiria o adocicado perfume das rosas e nem teria a

companhia que confortava seus sentimentos, mas uma coisa era certa, jamais se

esqueceria do seu grande amor, nunca deixaria de vivê-lo, ainda que as coisas

mudassem e a vida continuasse, ele a amaria mais que a si mesmo. Era uma

promessa feita perante a solidão.

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O amor também tem o poder de transformar. Transforma modos de agir,

maneiras de falar e formas de pensar; troca palavras duras por doces e suaves

versejares; descobre olhos cobertos por ilusões e lhes revela um mundo cheio de

cor, um mundo a ser vivido. O amor, em sua essência, consegue mudar vidas,

ampliar horizontes e escrever uma nova história a partir de inúmeros erros. Ele

consegue ajuntar os cacos de um coração dilacerado.

Rui era prova disso. Por anos deixou de viver o amor em nome de um

cruel arrependimento pelo passado, deixou de acreditar na nobreza de tal

sentimento por ter entregue o coração nas mãos erradas, mas quando conheceu

Daniela sua mente foi clareada, encontrou nela o que levou toda a vida

procurando.

Mas agora a realidade era outra, estavam separados pelo ódio de alguém

perverso, o bem sucedido empresário já não contava com os bons conselhos da

esposa, não tinha mais com quem compartilhar o amor, parecia que a história se

repetia.

Sem sono, levantou-se da cama vestido pelo roupão. Encheu a taça de

vinho e pela janela do quarto observava a neve que caía durante a madrugada

pela Cidade da Paz. Sentia a falta da escritora, a mulher que lhe deu a

oportunidade de conhecer o verdadeiro amor.

“I couldn't help but ask

For you to say it all again

I tried to write it down

But I could never find a pen

I'd give anything to hear

You say it one more time

That the universe was made

Just to be seen by my eyes”

[Eu não pude deixar de perguntar

Para que você dissesse tudo de novo

Tentei escrevê-lo

Mas eu nunca puderia encontrar uma caneta

Eu daria qualquer coisa para ouvir

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Você dizer mais uma vez

Que o universo foi feito

Só para ser visto pelos meus olhos]

Sem ela nada mais fazia sentido, sem ela não precisava acreditar na vida,

sem ela se entregaria ao homem que não acredita no lado bom da vida, sem ela

não confiaria no amor.

<<>>

Ao contrário do amor o ódio tem o poder de destruir. Destrói casais,

destrói amizades, destrói famílias. O ódio se odeia por não conseguir a nobreza

do amor. Todos desejam o amor, todos veneram ao amor, todos querem ter o

amor, mas ninguém louva ao ódio, ninguém o persegue como se fosse um

valioso tesouro, antes fogem dele e o tratam como miserável. Portanto o ódio se

sente incapaz, passa a cultivar inveja e a única forma que encontra para

aniquilar suas frustrações é destruindo o amor.

Quem ama, ainda que esteja machucado pela falta de reciprocidade,

apenas se afasta, mas ainda deseja o melhor para aquele que muito amou, ao

contrário, quem odeia, cultiva o sentimento por vingança, planeja crueldades,

as mais perversas. É fácil de explicar essa atitude: enquanto o amor é veraz e

sofredor, o ódio se faz de amor planejando a destruição. Aí está a diferença

entre amor e ódio.

Daniela sentia-se cercada pelo ódio, o que mais a machucava era saber que

tal sentimento era recebido da própria mãe. Mas ainda acreditava no poder do

amor, acreditava que se semeasse em seu coração a esperança de reencontrar o

seu grande amor, ser envolta por seus braços e acolhida por seus beijos de afeto,

fortaleceria o amor que sempre a acompanhou, fá-lo-ia maior que qualquer

amargura, sua história teria um final feliz.

“I couldn't help but ask

For you to say it all again

I tried to write it down

But I could never find a pen

I'd give anything to hear

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Romântico Anônimo

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You say it one more time

That the universe was made

Just to be seen by my eyes”

[Eu não pude deixar de perguntar

Para que você dissesse tudo de novo

Tentei escrevê-lo

Mas eu nunca puderia encontrar uma caneta

Eu daria qualquer coisa para ouvir

Você dizer mais uma vez

Que o universo foi feito

Só para ser visto pelos meus olhos]

Ainda que sentisse sua falta precisava acreditar que voltaria para a sua

proteção, seria abrasada por aquele amor que demorou anos para encontrar e

segundos para consolidar.

<<>>

Não possuía expectativa alguma em encontrar um grande amor e vivê-lo

intensamente para o resto da vida com muitas garotas sonhavam, era uma

simples cega, de acordo suas próprias palavras, vivia limitada à ajuda das

outras pessoas, ninguém a amaria.

Conheceu Gustavo e encontrou nele o melhor amigo que alguém poderia

ter, encontrou nele uma pessoa incrível que, assim como ela, procurava

enxergar as coisas com os olhos da alma, sentir os momentos com a

sensibilidade do coração. Encontrou nele alguém que a aceitaria do jeito que ela

era.

Fora os seus olhos. Mostrou-lhe o mundo e sua beleza. Assegurou-lhe as

melhores experiências possíveis. Desde os primeiros encontros já demonstrava

ser o seu grande amor. A admirada relação começou com uma simples

amizade, que foi ganhando proporção, foi se enriquecendo a partir de

sentimentos complexos e, por fim, transformou-se em amor, amor de duas

pessoas apaixonadas.

Sentia carinho, acolhimento, segurança e proteção estando ao lado do

nobre Romântico Anônimo. Sentia a sua falta e não sabia se conseguiria sustê-

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la. Queria ouvir aquela voz melodiosa, encarar o sorriso cativante, tocar a pele

que lhe transmitia calor à alma, mas seu maior desejo era por fazer o que ainda

não havia feito: gritar para o mundo o quanto o amava.

Era ele a razão da sua vida, era ele quem fazia os dias valerem a pena, fora

ele quem a ensinara o quão prazeroso pode ser o verbo viver. Gabriela percebeu

que o namorada era parte de si e aquela distância dificultava a missão de

manter-se viva, era como se um funcionasse pelo outro, um era o sustento do

outro. Apesar da pouca idade e da maior vulnerabilidade as decisões

precipitadas, a Adolescente Apaixonada tinha convicção de que Gustavo era,

sim, o seu maior amor.

Amarrada naquela cadeira sendo abraçada pelo inverno que também

assolava aquela cidade, a garota dos olhos azuis procurava forças para acreditar

no final feliz encarando, mentalmente, o rosto que sempre lhe transmitiu

coragem: o rosto de Gustavo.

“With shortness of breath, I'll explain the infinite

How rare and beautiful it truly is that we exist”

[Com dificuldade em respirar, eu vou explicar o infinito

Quão raro e belo é realmente existirmos]

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Capítulo 79

A manhã de terça-feira clareou, mas a vida continuava escura, sem

sentido, encoberta por uma noite sem fim, pintada sem formas figuradas, as

coisas pareciam abstratas.

Juliana aprendera a gostar de Gabriela e se arrependia a cada dia pela

forma como se aproximou da garota; havia encontrado nela uma amiga de

verdade, alguém que não sabia guardar rancor e esbanjava sabedoria. Sentia a

sua faltam assim como os demais daquele grupo tão unido, tão amistoso, tão

exemplar.

Mas também sentia a falta de Daniela. Em tão pouco tempo de

convivência descobrira nela um alguém especial, alguém que sabia amar as

pessoas e viver cada momento de alma, mergulhar em cada sorriso, abrigar-se

em cada olhar. Viu nela a pessoa que mudou a vida de seu pai, que lhe

devolvera a confiança no amor e o desejo por viver cada dia intensamente.

Sentia saudade e se condoia pela dor que aquele cruel distanciamento

causava ao seu pai. Queria entender tudo aquilo, queria se refugiar de todas

aquelas dúvidas, mas era impossível, as sombras da realidade a perseguiam.

Decidida a não ir para o Colégio Inova adentrou o quarto do pai, queria

conversar ou simplesmente mostrar que estava disposta em ceder o seu ombro,

mas a cama estava vazia, talvez o empresário encontrasse refúgio no trabalho.

Caminhando pelo quarto não pôde deixar de sorrir ao ver a fotografia que

exibia Rui junto a escritora, estavam felizes, mal imaginavam que as coisas

pudessem mudar tão de repente. Ao lado do porta-retrato um envelope, na

verdade era uma carta que o pai não tivera coragem de ler. Curiosa, não hesitou

em descobrir as palavras de alguém que possuía o dom da escrita.

A descoberta, além de surpreendente, era esperançosa.

<<>>

Descobrira que as chances de Gabriela estar viva eram grandes. Recebeu

uma dose de ânimo, estava disposto em assumir o papel de super-herói e correr

atrás daquela que morava em seu peito.

Naquela manhã fria de inverno reuniu os amigos no Parque da Cidade.

Gustavo precisava correr atrás daquilo que se anunciava como verdade.

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— Precisamos da sua ajuda, é a única que pode saber de alguma coisa —

encarava Ayshla como se suplicasse por piedade.

A coreana são sabia ao certo o que fazer, não tinha certeza de qual decisão

tomar: fazer parte daquele loucura ou não se preocupar com algo que não lhe

dizia respeito.

— Eu sei que pode parecer perigoso, confesso que estou com muito medo

dessa aventura, mas é alguém que muito significa para nós que está correndo

risco de perder a vida — Isaque fez sua apelação em prol do amigo —. Não seja

egoísta, sabemos que tipo de coração carrega, apenas nos ajude.

— Não acho uma boa ideia — a garota afirmou temerosa —. Estou

vivendo coisas incríveis, finalmente descobri o que é amar e não quero ser

privada disso outra vez — seus olhos apaixonados brilhavam intensamente,

descobriam o quão feliz Ayshla se sentia pela transformação.

— Sabe que só está vivendo essas coisas por causa deles, não sabe? — Júlia

foi direta em seu acerto de contas —. O que custa ajudar?

— A minha vida? — respondeu como se fosse o óbvio —. O líder não é

qualquer criminoso, ele está a frente de uma das mais perigosas facções!

— Entendo sua situação, tem medo de ser privada do amor e só de pensar

nessa possibilidade sente um aperto no coração — os olhos do Romântico

Anônimo marejavam aflitos —. É exatamente isso o que sinto, um pavor

sufocante em saber que posso perder o meu maior tesouro — declarou o quão

valioso era aquele amor —. Apenas nos diga onde podemos achá-lo, só isso...

— É perigoso para vocês também — compadecida perante tal desabafo a

coreana mostrou que se preocupava com eles, sabia o grau de perigo que

correriam, tinha ideia de que o desfecho daquilo poderia ser trágico.

— Não se preocupe com a gente — o futuro engenheiro aconselhou.

— Apenas queremos nossa amiga de volta — a garota dos olhos verdes

completou.

Rendida àquele nobre sentimento que cultivavam por alguém tão sortudo,

Ayshla revelou tudo o que sabia, deu o endereço do outro esconderijo do líder,

mas não deixou de alertá-los sobre os riscos que se apresentariam, não estavam

lidando com qualquer bandido.

<<>>

Em silêncio se concentrava na tela do computador em seu amplo

escritório. Deixou avisado com sua secretária que não queria ser incomodado

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por ninguém, seu maior desejo era em ficar sozinho trabalhando

incansavelmente, aquilo o tiraria por um pouco de tempo da realidade que

enfrentava.

Mas alguém bateu na porta.

Ignorando, Rui manteve seu foco.

O certo alguém insistiu.

O empresário bufou irritado.

O não identificado alguém não desistiria tão cedo.

Irado por tamanho incômodo, Rui se levantou e violentamente abriu a

porta.

— Temos um plano —Júlia e companhia “invadiu” o escritório do

supermercado.

— Filha, estou trabalhando! — o homem reclamou incrédulo.

— Quer salvar sua esposa ou não? — arqueou a sobrancelha.

Aquele era seu maior anseio.

— Fiquem despreocupados, farei o impossível para trazê-las de volta.

— Como assim? Farei? — Júlia colocou a mão na cintura, não aceitaria ser

apenas coadjuvante de tudo que arquitetou, nem seus amigos —. Nós faremos o

impossível!

— Não posso permitir que coloquem suas vidas em vulnerabilidade às

mãos de pessoas ardilosas — Rui tentou convencer os jovens impulsivos com

sua experiente sabedoria —. A melhor forma de vocês ajudarem é ficando aqui.

— Não faça isso comigo — Gustavo se manifestou visivelmente abalado,

angustiado e temeroso —. Preciso abraçar a minha namorada, preciso vê-la!

— Não posso...

— Tudo vai dar certo, eu sei — demonstrou possuir uma imensa fé.

— Nós sabemos — Isaque apoiou a mão no ombro do amigo, juntando-se

àquele tentativa de convencer o mais velho.

— Prometemos que não vamos nos meter — Júlia compromissou

seriamente —. Apenas queremos estar lá para acolhermos aquela que amamos.

— Está certo — rendeu-se —. Seja o que Deus quiser.

<<>>

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Seu olhar transmitia mistério e revelava que seus pensamentos eram

atrozes. Fitavam a talentosa escritora como se a culpassem por algo, como se ela

devesse alguma coisa.

— Não precisávamos chegar a esse ponto — por fim declarou o que queria

—, corri atrás, tentei lhe dar a oportunidade para que estivesse livre de tudo

isso — sentado, mantinha as pernas cruzadas e as mãos rentes ao joelho

dobrado —. Poderíamos estar bem longe, vivendo o nosso amor.

— Impossível viver o que não existe — Daniela retrucou.

— Não foi isso o que ouvi anos atrás — sorriu contido, uma risada

depravada —. Fui chamado de “o homem da minha vida”, recebi bilhetes que

acariciavam o meu ego e me retratavam como um anjo, o mais lindo dos anjos

— fez uma pausa analisando sua ouvinte —. O que mudou? Como pôde

cultivar ódio por alguém que jurou amar?

— Entreguei-me de corpo e alma às suas declarações, acreditei no seu

amor, cultivei em meu coração a certeza de um futuro repleto de paixão — não

pôde camuflar a sentida lágrima que percorreu seu rosto —. Realmente o amei,

mas meus olhos foram abertos e hoje me arrependo por ter confiado naquelas

palavras de ilusão.

— Vai me dizer que não lhe garanti o melhor presente? — caminhando até

a filha acariciou seu rosto, não com inocência, mas com a maldade que reinava

em seu peito —. Arrepende-se por ela?

— Você é sujo! — a escritora declarou entre os dentes, repleta de

repugnância —. Até mesmo o meu maior sonho foi capaz de corromper!

— Abandonou a filha porque quis — aproximou-se de Daniela levando a

boca ao seu ouvido —, não lhe obriguei a nada.

—Imagina quão terrível seria olhar para essa garota e saber que ela foi

fruto de um enorme engano? — Dolôres, com as limitações da idade, descia o

andar daquele luxuoso apartamento —. Garanto que foi melhor assim.

— Como consegue ser tão cruel? — a escritora indagou —. Será que não

tem nenhum pingo de sentimento por aquela que gerou?

— Bom dia, meu amor — como se ignorasse a pergunta beijou o

namorado interesseiro —. Dormiu bem?

— Ao seu lado a vida é mais bela — Marcelo revelou seu sórdido

romantismo.

— Vivemos mesmo um amor bandido — perto da filha, a perversa

senhora puxou-a pelos cabelos, lançando-a contra o chão sem pudor algum —.

Isso responde a sua pergunta. A propósito, o despacho de vocês acontece em

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poucas horas — dirigiu-se à cozinha —. Logo o helicóptero aterrissa sobre a

cobertura e o Oriente será seu novo lar — sentia-se satisfeita por aquilo.

<<>>

Adentraram a cidade indicada sentindo o nervosismo aumentar e a

adrenalina percorrer os corpos tensionados. Foram bem recebidos pela

delegacia daquele lugar, querendo discrição nada comunicaram ao delegado da

Cidade da Paz.

— No que posso ajudá-los? — perante eles estava a famosa delegada

Débora, chamada de última hora para cobrir as férias do delegado oficial

daquele lugar, alguém que seria grande aliada no combate a um crime tão

ardiloso.

Atenta a cada detalhe e mostrando compreensão quanto ao sofrimento

que sentiam, a delegada prometeu ajudá-los e assegurou fazer aquilo que

estivesse ao seu alcance para contribuir em um final feliz, porém permitiu

apenas que Gustavo a acompanhasse, na condição de se manter em segurança

num dos veículos camuflados.

— Tem certeza de que vai fazer isso? — Isaque se preparava para a

despedida —. Podemos ficar todos aqui, juntos, focados em atrair boas

energias.

— Entendo a preocupação, mas procure também entender o meu lado,

sabe que não amo mais ou menos, amo com intensidade e sofro em imaginar o

que as pessoas que amo podem estar passando — abraçou com força o melhor

amigo, aquele que em todos os momentos esteve ao seu lado —. Obrigado por

tudo, sabe que também mora no meu coração.

Mais emotivo o garoto dos olhos verdes derramou as lágrimas sobre o

ombro do maior, mais sentimental revelou o que todos conheciam:

— Também te amo, lorde Gustavo — sorriu disfarçando a angústia —.

Volta com a nossa rainha.

— Reinaremos todos juntos — separou-se temeroso —, eu prometo — mas

não tinha certeza.

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Capítulo 80

As pernas balançavam em demasia, as mãos se apertavam aflitas e os

dentes pressionavam os lábios com nervosismo; os olhos angustiados olhavam

de um lado para o outro, não encontravam foco, vagueavam naquele mar de

apreensão.

— Fique tranquilo, minha equipe é muito bem treinada para qualquer

operação — a delegada tentou confortar o jovem adolescente enquanto que, na

verdade, também temia o pior —. Gosta dela, não é?

— Amo! — ele não gostava simplesmente, seu sentimento era muito mais

valioso do que “gostar”.

— Entendo a sua angústia — Débora mantinha o olhar firme sobre as ruas

da agitada cidade —. Meu primeiro grande amor, Flávio, foi tirado de mim da

forma mais cruel que eu poderia imaginar — sentiu uma pontada de saudade

—, e embora eu esteja em uma nova fase ainda sinto sua falta, foi o meu

primeiro namorado e será o meu eterno amor... Se eu pudesse voltaria no

tempo, não o deixaria partir naquela noite, faria qualquer coisa para tê-lo ao

meu lado — com uma mão ao volante usou a outra para acariciar as cabelos do

jovem adolescente, que a muitos conquistava, prometeu: — Não vou deixar que

o seu maior bem seja tirado de você.

Tocado por aquelas palavras Gustavo agradeceu, mais ainda assim não

acreditava que as coisas fossem se resolver tão facilmente.

O prédio era realmente grande e luxuoso, abrigava ali os mais ricos

moradores de Paraisópolis, mas também servia de esconderijo a criminosos

inescrupulosos.

Os carros usados pela delegada e sua equipe não estavam caracterizados

como sendo da polícia, evitariam assim chamar a atenção. O plano era que os

policiais à paisana cercassem o lugar como se fossem meros moradores, a parte

mais complicada estava nas mãos da loira, sua missão era entrar em contato

com os meliantes sem causar furdúncio.

— Fique aqui — orientou ao Romântico Anônimo —. Confie no nosso

trabalho!

Por sorte os vigias de Marcelo não estavam nos arredores, preparavam-se

para fugir do novo país em que o líder construiria seu sórdido império,

tamanha distração facilitava o caminho de Débora.

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— Oriente a todos os moradores que se mantenham em seus apartamentos

e não saiam por nada — mostrou o distintivo ao porteiro assustado —. Tem um

traficante de pessoas no prédio, gente desse tipo não costuma pensar antes de

matar.

A missão começava.

<<>>

O celular tocou, a ligação trazia uma notícia aguardada pelo perverso

meliante e indesejada pelas vítimas que temiam a terrível reviravolta em suas

vidas.

— Dolôres, querida, apronte as malas — sorria maliciosamente —,

finalmente sairemos desse país infernal!

Com Daniela ainda jogada ao chão, Marcelo caminhou até a escritora e

violentamente a levantou, precisava levar suas prisioneiras à cobertura, o

helicóptero chegaria a qualquer momento.

Mas com a queda as amarras se arrebentaram, a mulher tinha as mãos

livres e, surpreendentemente, empurrou a cabeça do criminoso contra o seu

joelho, ferindo sua boca, causando o sangramento.

Desnorteado pela dor e pelo ataque inesperado, o homem deu alguns

passos desequilibrados, mas não seria tão fácil derrubá-lo, logo agarrou a

escritora pelas costas, não a deixaria impune.

Contudo Daniela não era tão frágil quanto parecia, ferozmente lançou seu

opressor contra o chão passando-o por cima de seu corpo. Vermelha pela

adrenalina que acelerava seu coração furiosamente ela prendia o pescoço de

Marcelo entre as pernas, fazia-o perder o ar, não se arrependeria pelo que viria

a acontecer.

Porém o líder era covarde e jogava sujo, mordeu aquela que se mostrava

mais forte, não poupou força para perfurar a perna esguichando o sangue. A

escritora gritou apavorada, teve que soltá-lo, sentiu a ardência na região, o

sangue que escorria a assustava, sentia medo.

— Chega de palhaçada — em pé perante sua cativa o perverso homem

tirou do bolso da calça seu revólver e o mirou na adolescente que, em estado de

choque, assistia à terrível cena —. O plano nunca foi mandar as duas para uma

vida depravada e nojenta, o plano sempre foi mandar apenas você, Daniela,

apenas você com essa fama de devassa — destravou o gatilho —. Fui muito

gentil em aceitar manter erra pirralha com vida, o plano era exterminá-la diante

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os seus olhos, causar a sua dor e a dor daqueles moleques paspalhos! — sorriu

horripilantemente para Gabriela, revelava suas banais intenções —. Vá para o

inferno!

Disparou.

Mas o disparo não foi certeiro, atingiu qualquer direção graças à bravura

de Daniela em passar a rasteira naquele ser depravado e subir novamente em

cima dele, fazer força para tirar a arma de suas mãos enquanto novos disparos

eram feitos a lugar nenhum.

Com as malas todas prontas Dolôres abriu a gaveta da cômoda em seu

quarto, tirou dali o revólver, já arquitetava o que fazer, fugiria do Brasil de

qualquer maneira, com ou sem Daniela, mas a voz que ouvira colocou seu

plano por água abaixo.

— Droga! — praguejou irritada —. Avisei para não dispensar aquelas

miseráveis — referia-se aos recrutas —. Muito sangue vai ter que rolar!

<<>>

Débora estava atrás da porta e ao ouvir os disparos não tardou mais em

invadir o apartamento. Com pontapés arrombou a porta, colocado a arma em

sua dianteira esbravejou:

— É a polícias! Renda-se!

Seria ingênuo da sua parte acreditar que o bandido que lutava para sair do

domínio de Daniela se renderia tão passivamente. Aproveitando a situação

correu ao encontro de Gabriela, desamarrava suas mãos enquanto Marcelo

clamava pela ajuda de Dolôres.

— Você precisa fugir — a delegada encarava os olhos azuis que não

demonstravam nenhuma reação, estavam paralisados pelo medo, cegados pela

angústia — Gabriela, ouça-me, seu namorado, Gustavo, está esperando por

você lá fora!

A Adolescente Apaixonada finalmente saíra do transe ao ouvir o nome

daquele que muito significava em sua vida.

— O que está acontecendo? — começou a chorar apavorada —. Como saio

daqui?!

Olhando para trás e recebendo o olhar de aprovação de Daniela que ainda

aguentava manter o criminoso preso ao chão, Débora tomou sua decisão.

— Vamos, rápido, vou mostrar o caminho!

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A escritora não resistiu mais, agora que a filha já não corria risco poderia

se render, suas forças se acabaram, esgotaram-se.

— Desgraçada! — Marcelo chutou sua prisioneira covardemente,

causando sua agonia —. Olha o que fez! — mirava o revólver contra aquela que

um dia iludiu, estava decidido em terminar tudo aquilo, mas ouviu o

helicóptero sobrevoar o prédio de luxo, finalmente poderia fugir.

Colocando a mulher nos ombros saiu do apartamento, subiu as escadas no

final do corredor, seu plano precisava ser executado, com ou sem Dolôres.

Guiando a adolescente até o elevador Débora a instruiu que confiasse em

sua equipe, estavam ali para ajudá-la, o pesadelo chegava ao fim. Certa em

salvar a vida de Daniela, a delegada correu de volta ao local do crime, não

encontrando ninguém atentou-se ao barulho do helicóptero, concluiu os fatos

rapidamente. Esperta, encontrou as escadas e por elas subiu.

<<>>

Marcelo praguejava a dificuldade que o veículo a usar em sua fuga

enfrentava para pousar, embora a distância não fosse tão grande ainda não era

suficiente para que conseguisse nele entrar, toda aquela angústia misturada aos

gritos de Daniela irritavam o sórdido criminoso.

— Dá para calar a boca?! — agrediu o rosto da mulher que pela perna

mordida não conseguia andar, perdia muito sangue —. Tudo isso é culpa sua!

Teve a oportunidade de mudar essa situação, mas preferiu bancar a heroína

rebelde!

— Por que está fazendo isso? — a talentosa escritora derramava lágrimas,

não queria ter a própria vida destruída, não queria ser privada das conquistas

que levou anos para conseguir. Não queria ser separada da filha outra vez.

— Não é óbvio? — esbravejava sem tirar os olhos do helicóptero —.

Aquela cidade me humilhou, eu precisava me vingar, mas tudo deu errado! —

começou a achar estranha aquela situação —. O que está acontecendo? — virou-

se para trás encontrando Débora, que o tinha na mira certeira —. O que

significa isso? — voltou os olhos para os pilotos, sua mente clareou.

— Bandidos são espertos, eu reconheço, mas nunca devem subestimar a

inteligência da polícia — a delegada sorria vitoriosa —. Conseguimos imaginar

o seu plano, não existia outra forma de sair daqui, afinal, qual criminoso teria

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um esconderijo no último andar de um prédio se não intencionasse esse tipo de

fuga? Além disso, como levaria à força alguém ao aeroporto? — seus olhos

irradiavam triunfo.

Mas o perverso homem ainda tinha a cartada final. Pressionou o revólver

contra a cabeça de Daniela, não deixaria a história sem registrar sua marca.

Acionou o gatilho.

Mas não funcionou.

Acionou outra vez.

Se deu conta de que descarregara suas munições no embate dentro do

apartamento.

— Acabou, fim — Débora suspirou aliviada —. Renda-se de uma vez!

Iludido por pensar que sempre encontraria algum escape, Marcelo olhou

ao redor, tinha esperanças de que o seu helicóptero apareceria, precisava ter

uma solução.

— Não perca seu tempo esperando que a salvação chegue do céu, nenhum

helicóptero chegará, mesmo que algum tente sobrevoar a cidade minha equipe

fará guerra! Poupe a sua vida e renda-se de uma vez!

Aquela voz o irritava, o estressava, o deixava furioso. Empurrando

Daniela para o lado avançou contra a delegada, mas Débora não toleraria um

bandido teimoso, disparou contra sua perna, provou quem ditava as regras por

ali.

Marcelo agonizou, mas não se humilharia ao ponto de ser pego.

Mancando, jogou-se da cobertura antes que o pudessem segurar, provou a

própria morte. Foi engolido pela perversão.

<<>>

Finalmente estava livre daquele pesadelo, finalmente encontrou Gustavo

no carro em frente ao prédio. Correu ao seu encontro, desejava abraçá-lo mais

do que nunca.

Dois disparos seguidos.

Gabriela interrompeu os passos. Ficou parada. As pernas perdiam as

forças e as vistas embaraçavam.

Perdeu o equilíbrio.

Antes que caísse sobre o chão foi acolhida nos braços do namorado.

Encarou os assustados olhos castanhos, tentava declarar alguma coisa,

mas a voz não saía.

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As costas sangravam.

Levou a mão ao rosto do jovem adolescente. Sorriu. A testa suava. A

respiração ficava difícil.

Os olhos se fecharam.

A mão caiu sobre o asfalto arranhando a pele.

A cabeça tombou para o lado, no peito de Gustavo.

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Capítulo 81

Sorriu satisfeita, um sorriso repugnante, um sorriso sem qualquer tipo de

humanidade; um sorriso motivado pela perversão e pelo desejo por praticar

uma pseudo justiça, algo sem propósito, que existia por conta do egoísmo que a

embriagava.

Apesar da idade tinha um mira boa, acertou p alvo com precisão e se

orgulhou por aquilo. Com as mãos trêmulas pela adrenalina que tomava seu

corpo passou o batom vermelho, deu uma última olhada no espelho e saiu do

quarto a passos lentos, levava diante de si o revólver carregado, pronto para

disparar, pronto para causar tragédias ainda maiores.

<<>>

Daniela não conseguia assimilar o que terminou presenciando. Nunca

sonhou em ver alguém se matar de uma forma tão banal, nem mesmo em suas

histórias fora capaz de prever aquele fim a um dos personagens corrompidos

pela maldade.

Débora, por sua vez, não via espanto algum naquele fato, já estava

acostumada, aliás, já presenciara coisas piores, mas que não foram capazes de

tirar o seu sono. Obedecendo ao protocolo fez sua pergunta:

— Tinha mais alguém com ele?

A escritora não sabia o que declarar, era a sua própria mãe, a mulher que

lhe concedera a vida e que, bem ou mal, a criou. Não tinha forças para o dizer,

mas também não poderia colocar a vida de outras pessoas em risco, sabia que a

mulher não desistiria dos sórdidos planos.

— Sim... — não conseguiu esconder a espontânea lágrima que brotou de

seus olhos e marcou seu rastro pelo rosto abatido —. Minha mãe... —

reconhecer que alguém que era sangue do seu sangue não passava de uma

assassina cruel açoitava o coração de Daniela, aquele atribulado coração.

A delegada conseguiu enxergar a tristeza resultante da decepção, uma

amarga decepção que atribularia a muitas almas que sempre buscam o melhor

das pessoas.

— Não vamos machucá-la — prometeu sinceramente —. Apenas a

deteremos, não podemos deixar que outras pessoas corram riscos.

— Entendo — limpou o rosto —, e concordo.

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Romântico Anônimo

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Atenta ao menos som que seus ouvidos fossem capazes de captar, Dolôres

dava passo após passo no corredor que acessava à escada quando ouviu alguém

entrar no apartamento. Suava frio, sentia as penas bambearem cruelmente, o

coração palpitava no peito e a respiração ficava ofegante. Já se rendia à morte,

mas antes terminaria o que começara.

Como parte do plano Daniela acompanhava os passos da delegada, sentia

uma vontade descontrolada de chorar, sentia pavor por aqueles instantes de

puro suspense. Olhava ao redor do lugar bagunçado, mancava por conta da

perna ferida, buscava salvar a própria vida.

— Mãe? — a voz soava receosa, seca, trêmula —. Vamos conversar, só

isso!

— Não queremos mais problemas — Débora transmitia uma energia

maior —. Seu parceiro era uma vez, facilite as coisas!

A perversa senhora sentia um misto de medo e raiva. Do topo da escada

conseguia ver a filha, escondida pela parede que atrapalhava a visão de quem

estivesse na ampla sala mirava o revólver contra aquela que gerou, mas o

disparo precisava ser certeiro, a chance era única, precisava atingir o algo,

porém a distância não garantia segurança de que as coisas dariam certo.

Aproveitou a distração da escritora e da delegada, que buscavam atrás dos

móveis por alguma pista, pisou de fato no primeiro degrau, destravou o

gatilho, com um olho fechado e outro aberto julgou necessário avançar um

pouco mais.

Disparou.

Mas foi um disparo desproposital.

Ao tentar descer um pouco mais pisou em falso, pelo susto disparou antes

de cair, rolou os vinte degraus abaixo, teve o corpo esticado sobre o chão, a

cabeça cheia de cortes sangrava, a queda fora fatal.

A dor de Daniela fora intensa.

Mas aquele foi o destino que sua mãe escolhera.

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Romântico Anônimo

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A equipe envolvida naquela importante operação estava muito bem

preparada, logo a ambulância cheia de profissionais capacitados prestavam

socorro à vítima da violência de pessoas frustradas sobre a própria vida.

Gustavo, como já era de se esperar, não deixaria que a garota partisse

sozinha, sem alguém que a conhecesse, sem alguém que lhe garantisse um

pouco de segurança nos momentos difíceis, isso porque ele acreditava com

todas as forças que ela sobreviveria.

Sentado ao lado da maca dentro da ambulância que corria contra o tempo,

ultrapassava a quem fosse e desobedecia a qualquer sinalização, o futuro

pediatra acariciava os fios loiros manchados pelo sangue, mas que ainda assim

não perderam o encanto que transmitiam ao adolescente apaixonado. Tocava o

delicado rosto que não dava sinal de vida algum; tocava-o como se há muitos

anos não o fizesse, sentia cada milímetro da face angelical, fazia orações para

que pudesse contemplar o seu brilho outra vez. Envolvia as suaves mãos dentro

das suas, alisava os curtos e delicados dedos, levava-os até o peito, beijava-os

com romantismo enquanto as lágrimas corriam.

Todo o amor que era semeado agora parecia doer, parecia machucar,

parecia pressionar a alma, apertar o cotação e sufocar a gargantas. O Romântico

Anônimo não conseguia aceitar aquela apavorante situação, não entendia o

porque de todos os acontecimentos, apenas semeava certezas, certeza de que

encararia os brilhantes olhos azuis outra vez, certeza de que escutaria a

melodiosa voz pelo resto da vida; cultivava a fé dentro do próprio ser, precisar

crer.

Os dois enfermeiros ali presentes se emocionavam com aquela cena,

espantavam-se pela intensidade do amor que existia entre os dois jovens tão

novos, tão inexperientes, mas que pareciam ricos pela sabedoria dos

sentimentos espirituais, aqueles que guiam, sustentam, alimentam e acalentam

nossas almas. Ainda que pela linguagem do olhar prometiam um ao outro fazer

o impossível para salvar aquela vida, firmavam o compromisso de ajudarem na

escrita de um capítulo maravilhoso dentro daquela história inspiradora. Não

deixariam o amor morrer, não deixariam aquela sinceridade em extinção se

perder para a crueldade de pessoas que nunca conheceram o verdadeiro amor.

Estavam dispostos em ocupar o posto de anjos da guarda.

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O que parecia impossível acontecia.

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Romântico Anônimo

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Feito um bobo adolescente apaixonado, Rui sorria ao encarar a mulher que

lhe mostrou o privilégio de amar, a mulher que lhe garantira a oportunidade de

viver uma realidade que sempre sonhou, mas que nunca pôde acreditar. Seu

coração transbordava de alegria, sua alma pulsava contente.

Com lágrimas nos olhos Daniela também sorria, seu semblante irradiava

felicidade, a felicidade que o amor daquele homem lhe proporcionava, o

homem que lhe revelou quão bom era amar e ser amada, o homem que também

servia como fonte de inspiração na hora de desenvolver os tantos textos

românticos e sentimentais.

Romperam a distância que existia entre eles dentro daquela delegacia,

abraçaram-se como imãs que se atraem, fixaram os olhares que se conectavam e

confortavam as almas sedentas uma pela outra, uniram os lábios que se de

desejavam, sentiam o aconchegante calor um do outro, a vida voltava ao

normal.

Débora não agüentou a emoção e libertou as lágrimas sentimentais, sentia-

se realizada por fazer parte de um final feliz, seu maior pagamento estava

naquela visão romântica e repleta de paixão, uma paixão avassaladora ao

mesmo tempo em que tranquila.

— Obrigada — a escritora agradeceu sincera, reconheceu que a ajuda fora

irrecusável.

— Agradeça ao seu marido e a esses jovens corajosos — a delegada

compartilhou a mérito com os demais —. Chegaram aqui destemidos

prometendo que só voltariam para casa com aquilo que vieram buscar.

— Não sabem como essa atitude é importante para mim — a escritora se

emocionou ainda mais —. Prova que consegui conquistar um espaço em seus

corações e que nunca estarei sozinha.

— Esse é o lema do nosso grupo, um sempre pode contar com o outro

para tudo, sempre daremos um jeito de ajudar — Isaque respondeu tentando

mesclar a aflição que sentia por conta de Gabriela.

— Nossos finais sempre serão felizes — Júlia apertou a mão do namorado.

— Fiquem despreocupados, meus jovens — Débora tomou a palavra —. O

amor que existe em cada um de vocês sempre garantirá grandes conquistas —

percebeu a angústia do futuro engenheiro —. A amiga de vocês vai sair dessa,

tenho certeza! — sentindo que sua missão terminara declarou as últimas

palavras: — Conhecê-los me fez ter certeza de que ainda posso acreditar no ser

humano, continuem sempre assim, vivendo a essência do que é ser humano!

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União.

O ser humano ao ser criado não pôde permanecer sozinho, não foi bom

para ele continuar com a companhia da solidão, ele precisava de alguém ao seu

lado, alguém que dividisse cada momento, que ajudasse em cada conquista,

que servisse de apoio quando mais necessitasse. E assim foi ao longo da

história, o homem sempre se ajuntou em grupos e sempre buscou neles o

seguro abrigo.

Fato é que quando temos alguém para nos ajudar a vida fica mais

prazerosa, se transforma em mais fácil. Quando nos sentimos amparados

ganhamos mais do que a companhia de alguém, somos agraciados pela

esperança daqueles que nos rodeiam.

Eram unidos independente de qualquer situação.

As famílias de Gustavo, Isaque e Júlia se uniram a de Gabriela no hospital

da cidade vizinha, cada um compartilhava a dor daquele momento e focava em

alimentar esperança, fé, crença no milagre.

— Quem é o Romântico Anônimo? — pálido e ofegante um dos tantos

enfermeiros surpreendeu a todos que aguardavam por notícias na sala

reservada.

Mais do que depressa a autor de tal pseudônimo se manifestou, a

esperança crescia em seu peito.

— A garota chama por você — sinal de que acordara —, queira me

acompanhar.

Realmente, não era comum permitir a entrada de pessoas na UTI, mas os

médicos já previam o final de tudo aquilo, resolveram atender a qualquer

pedido da paciente.

Frente a frente aquela que tornava os seus dias melhores, o futuro pediatra

abriu um sorriso abalado, a situação como via o amor de sua vida era

angustiante.

— Nunca falei que eu era o Romântico Anônimo — acariciou o rosto que

suava gélido —, como soube?

— Quem mais poderia ser? — os olhos azuis não brilhavam como de

costume, a voz era mais baixa que o normal, a vida parecia ir embora —. Desde

o primeiro bilhete já sabia quem era.

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— Eu te amo — apenas conseguiu declarar aquelas palavras, com as

covinhas à mostra e as lágrimas manifestas —. Senti a sua falta...

— Também senti a sua — levando a mão ao rosto do namorado fechou os

olhos com força, sentiu o peito arder e as costas como se alguém as rasgasse, a

dor era grande se não insuportável —. Promete que não vai se esquecer de

mim?

Naquele momento Gustavo teve a mente clareada, entendera porque

permitiram sua entrada, compreendera porque a namorada acordara, era uma

despedida.

— Prometo... — chorava feito um menino indefeso, consumido por medo.

— Nunca se esqueça — a dor tirou o som da voz, apenas os lábios se

mexiam: — que eu te amei...

Os olhos se fecharam cansados.

Antes que a mão caísse o Romântico Anônimo a acolheu transtornado.

Os aparelhos revelavam que o coração já não vivia mais.

Uma vida chegava ao fim.

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Capítulo 82

A vida é mesmo um ciclo sem fim. Nascemos, crescemos e morremos; algo

comum a todo ser humano, algo inevitável sobre qualquer ser vivente. O

relógio não para e o trem da vida não muda sua trajetória, para alguns ele tarda

em chegar ao destino, mas para outros parece ter pressa.

Sempre foi assim e sempre será. Vivemos para morrer, é fato.

Muito se foge da morte, muito se tenta evitá-la, escondê-la, fazer dela algo

utópico, mas nunca adianta, sempre nos deparamos com ela, cedo ou tarde,

sempre a enfrentamos. Resta-nos apenas uma solução, fazer do curto período

entre nascer e morrer o melhor possível, aproveitarmos ao máximo que

pudermos, amarmos a quem conseguirmos, fazermos o bem a quem quer que

seja, exibir um sorriso mesmo quando temos milhares de motivos para o

semblante carrancudo, para vivermos energicamente positivos precisamos

atrair a positividade.

Contudo, ao longo desse período, acontecem decepções, desilusões,

perdemos a confiança em quem mais tínhamos, passamos a guardar rancor de

quem mais amávamos. Faz parte do ser humano, esses desafios sempre

aparecerão e o objetivo de cada um deles, por mais contraditório que pareça, é

nos transformar em pessoas melhores, abrir os nossos olhos para que vejamos

que existem outras pessoas, outras oportunidades, que também possuem

valores a nos agregar. Por vezes nos cegamos com o nosso próprio egoísmo,

depositamos todas as nossas expectativas em algo que não nos atenderá,

enquanto o que realmente precisávamos estava sempre ali, bem do nosso lado.

Isso é viver para morrer: é saber remar o barco nessa maré turbulenta; é

não se deixar enganar pelos erros que cometemos durante o percurso, por vezes

nos sentimos perdidos por termos entrado em alguma rua errada, mas não quer

dizer que assim ficaremos para sempre, logo aparecerá alguém que nos dará as

coordenadas acertadas, fará a diferença em nossas vidas e nos colocará

novamente na rota correta.

Viver é errar para mais tarde acertar; é cair para aprender a levantar. E

assim, dia após dia, o período entre o nascer e o morrer vai se encurtando, vai

ficando pequeno e quando chegarmos ao nosso destino olharemos para a

estrada percorrida e, sem dúvida alguma, teremos a certeza de que tudo valeu a

pena, de que fizemos o melhor que podíamos e até aquilo que não

alcançávamos, de que deixamos o nosso legado no mundo e o que ficará com

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aqueles que nos amavam será a doce saudade, saciada pelas boas lembranças

daquilo que fomos.

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Gabriela sempre foi a alegria daquela família, representava o símbolo da

esperança, garantia paz e tranquilidade aos pais que por vezes se sentiam

sufocados pela pressão da vida. A garota sempre foi motivo de orgulho,

exemplo de superação, definição da vontade de viver o melhor com todas as

limitações impostas pela vida. irradiava uma luz impossível de esconder,

iluminava os corações que dela se aproximavam, acendia a faísca da crença em

dias melhores.

Mas agora deixava saudade.

Ainda na sala reservada seus pais já se conformavam com o pior, ninguém

permitiria a entrada de Gustavo se não tivessem certeza de que aquele seria o

último desejo atendido. Como a água escorre por nossos dedos e não nos deixa

agarrá-la, Laura e Eliseu sentiam que perderam aquela batalha, sentiam cada

momento vivido escorrer pelos dedos, viam os planos para o futuro fugirem

covardemente, nada mais aconteceria.

O peito doía.

O coração ardia com as chamas da separação.

Ainda que adotiva era sua filha, alguém que amou como se tivesse sido

gerado dentro de si, não importavam as consequências, o que realmente

importava era aquele laço afetivo construído ao longo do tempo, um laço

resistente a qualquer divergência e surpresa, mas incapaz perante a morte.

Aquela mãe angustiada derramava suas lágrimas pesadas, não conseguia

acreditar embora já soubesse da verdade.

A mente era pesada.

A mente se perdia em um labirinto confuso.

Cuidou daquela garota como o seu bem mais valioso, amou-a sobre

qualquer coisa, sentia a necessidade de sempre protegê-la, de garantir a ela o

que lhe recusaram: o amor da família. Aquele pai abatido não encontrava

palavras para consolar a esposa, ele também precisava delas, dentro de si

clamava por alguma explicação, procurava encontrar esperança para acreditar

no feliz desfecho, mas era impossível, simplesmente não conseguia, seu coração

apertado desacreditava na força do bem.

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Mas o casal não estava sozinho.

Compartilhando daquela mesma dor Juliana cedeu seu abraço à mãe da

namorada de Gustavo, mostrou que não seria incômodo dividir aquele

sofrimento, colocou-se no lugar da enfermeira, tinha total certeza do quanto

sofreria se estivesse naquela situação.

Gentil, Eduardo pousou a mão sobre o ombro do professor de Português,

que não hesitou em buscar consolo no abraço do amigo, tudo o que mais

precisava naquele momento era de pessoas assim, dispostas a ajudar, dispostas

a chorar com os que choram.

Marcos, o pai de Isaque, prometeu ir atrás de informações, possuía

grandes amigos ali dentro, não teria dificuldade alguma em receber as

aguardadas notícias. Prestativa, Ana se aproximou daqueles que choravam e

mostrou o seu apoio:

— Imagino o quão difícil está esse momento, mas nunca se sintam

sozinhos, poderão contar comigo e com todos nós para o que precisarem.

Abatidos com toda aquela cena Isaque e Júlia se sentaram juntos no sofá,

com as mãos unidas buscavam alimentar as esperanças que ainda lhes

restavam, tentavam acreditar com todas as forças que o amor venceria aquela

barreira, por mais impossível que parecesse.

Mas alguém se isolava.

Sentindo-se culpada, responsável por toda aquela tragédia e

envergonhada por aquele sentimento, Daniela se isolou em um canto enquanto

derramava as lágrimas silenciadas. Suas intenções eram boas, seu desejo era em

apenas conquistar a amizade daquele que foi obrigado a se separar, queria

apenas conhecê-la e viver um pouco daquilo que foi privada. Mas tudo

conspirou contra as suas vontades e tudo a fazia ter certeza de que era sua

culpa.

Rui trouxe a cabeça da esposa sobre o seu ombro enquanto a acariciava

suavemente, queria que ela soubesse que estavam juntos para qualquer coisa,

estavam casados para passar por qualquer circunstância sendo o apoio um do

outro; era por isso que se amavam, para ser o companheiro, o ajudador, um do

outro.

— É tudo culpa minha — por fim declarou —. Se eu não tivesse surgido

essa família não estaria sofrendo, não estaria passando por essa dor — seu

arrependimento era grande —. Fui egoísta ao ponto de colocar a vida daqueles

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que não mereciam de cabeça para baixo... Eles amaram a minha filha, deram a

ela o que era minha obrigação, como fui capaz de lhes garantir um pagamento

tão injusto?

— Pare de se culpar e de dizer bobagens — o empresário limpou as

lágrimas da mulher que muito amava —. Se não tivesse surgido hoje não

estaríamos casados, talvez nunca fôssemos nos encontrar, arrepende-se por

isso?

Os olhos azuis encararam os castanhos, estavam avermelhados, marejados

pela angústia, confirmavam as palavras que viriam a seguir:

— Se a consequência da minha felicidade é a tristeza dos inocentes eu me

arrependo... Nunca foi minha intenção causar tudo isso, só queria ser um pouco

mais feliz, apenas queria alcançar tranquilidade.

Rui fora compreensivo, entendera o que a esposa declarou, enxergou nela

o nobre coração que pulsava, a sábia alma que ali morava.

— Nem sabemos o que de fato aconteceu, preocupe-se em suplicar por

algum milagre.

— Não há sobre o que duvidar — rebateu desesperançosa —. Tudo está

muito claro — fechou os olhos encostando a cabeça sobre o esposo, aquele que

muito amava, a única pessoa em quem confiava —. E a culpa é minha...

Uma mão delicada pousou sobre a escritora e uma voz abatida ao mesmo

tempo em que suave soou ao seu ouvido:

— Não quero que se sinta assim.

Abrindo os olhos inchados Daniela se espantou com a visão:

— Laura?

— Ninguém aqui a culpa por nada — forçou um sorriso por entre o choro

—. Antes somos gratos por ter gerado alguém tão especial — abriu os braços

acolhedores —. Vamos nos unir — a voz embargou por conta das lágrimas que

se intensificavam —. Só assim a dor será amenizada.

Compartilhando do mesmo sofrimento as duas mães se abraçaram, seria

uma pela outra dali por diante.

<<>>

O peito ardia em chamas cruéis; as lágrimas queimavam o rosto

ruborizado. A alma parecia gritar, o choro era intenso, a descrença em tudo

aquilo se fazia presente, o inimaginável acontecia: Gustavo e Gabriela agora

estavam separados, para sempre.

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O Romântico Anônimo encarava o rosto sem vida como se a qualquer

momento ele pudesse reviver. Alisava as bochechas ainda quentes como se o

seu toque devolvesse a vida a alguém muito amado. Passeou o indicador pelos

lábios que acolhiam os seus. Tentava se conformar, tentava aceitar que aquele

era o fim, tentava compreender que aquele amor viveria apenas em sua mente,

mas era impossível, não conseguia, se pudesse entregaria a própria vida, não

estava disposto em continuar os seus dias sem aquela que amou desde o

primeiro dia de aula, sem aquela que desde os primeiros instantes desejou ter

por namorada, por sua eterna namorada. Para ele não fazia sentido viver se

aquele amor já estava morto.

Antes de partir e deixar que os médicos realizassem o protocolo, Gustavo

uniu as mãos que perdiam o calor, entrelaçou os dedos que sempre se

completavam e selou os lábios que muito bem se conheciam. Era um beijo de

despedida.

“[...]

— De que adianta fazer isso e escrever bilhetinhos se não consigo fazer o que é

realmente necessário? — o futuro pediatra precisava de respostas —. Eu já sei como isso

vai terminar, alguém corajoso vai aparecer, conquistar a garota que eu amo e tê-la para

sempre — as lágrimas saltaram, lágrimas de vergonha por se sentir tão incapaz —. Eu

vou perder o amor da minha vida por ser tão medroso! — cedo demais para dizer aquilo?

Não, ele tinha certeza do que queria e sentia.

— Você está enganado — Isaque apoiou a mão no ombro do amigo e continuou

sua conclusão: — Acha mesmo que ela não percebe todo o seu carinho? Acha mesmo que

tudo está passando batido? Aos poucos você está construindo um elo tão forte que talvez

nem a morte seja capaz de romper. Quando esse amor for descoberto o mundo terá que

confessar: é verdadeiro!”

Os aparelhos voltaram a exibir a vida.

Os olhos se abriram enquanto a boca era envolvida pelo amor.

O beijo antes dado como despedida agora era de boas vindas.

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Capítulo 83

Poucos dias mais tarde...

O céu estava nublado; as montanhas da Cidade da Paz eram cobertas por

nevoeiros enquanto uma garoa fina caía sobre os seus moradores. Ventava frio,

as pessoas encapuzadas procuravam forças onde não tinham para seguir suas

rotinas. O inverno estava em seu auge.

Com luvas nas mãos e casaco aconchegante a talentosa escritora suspirou

fundo, encontrou coragem e adentrou o cemitério. Seus passos tranquilos não

tinham pressa em chegar ao destino, caminhavam suaves, buscavam sentir cada

movimento. O coração da mulher pulsava sereno, não estava ansioso, sabia que

estava ali para a última despedida. Suas mãos seguravam um exuberante

ornamento de rosas, presente que chamava a atenção.

Poucos eram os visitantes que passeavam pelo símbolo da saudade

naquela manhã fria de agosto, poucas eram as sepulturas que recebiam algum

tipo de companhia.

Finalmente Daniela estava diante a urna de sua mãe, colocada ali há

alguns dias. Sentindo um aperto desconhecido passeou os dedos pela sepultura,

libertou as delicadas lágrimas motivadas pela tristeza e até mesmo pela

saudade. Apesar de todas as coisas que aconteceram era a sua mãe, a mulher

que ela amou embora o que recebera em troca não fora aquilo que esperava.

Não teve coragem de participar do enterro, mas agora estava ali para se

despedir.

Tirou do bolso do casaco uma foto antiga, estava retratado um momento

de alegria entre mãe e filha, um momento que não ousou se repetir tantas vezes.

Colocou no porta-retratos que levara consigo e repousou o objeto ao lado das

rosas. Aquela era uma singela homenagem a alguém que permaneceria em seu

coração, alguém que ela não conseguiria odiar, nem se quisesse. Recostou a

cabeça sobre a estrutura fria de mármore, lamentava como o fim fora trágico.

— Sentirá saudades? — uma mão inconfundível pousou sobre o seu

ombro e a inesquecível voz soou calma aos seus ouvidos.

— Sim — respondeu simples encontrando os olhos pelos quais se

apaixonara.

— Venha aqui — Rui abriu os braços acolhendo neles aquela que lhe

devolvera o prazer em viver uma história de amor —. Entendo o que está

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sentindo, algumas pessoas simplesmente não conseguimos odiar porque o

amor que depositamos nelas é maior e mais intenso do que qualquer rancor.

— Eu precisava me despedir, com tudo o que aconteceu seria incapaz de

simplesmente esquecê-la e desprezá-la. Sentirei a sua falta, mais do que já

sentia.

— Sempre que precisar de um apoio ou desabafo conte comigo — alisou o

delicado rosto —, estarei aqui para ouvi-la.

— Eu sei... — beijou o homem que amava —. Eu sei...

<<>>

Talvez a atitude tenha sido errada e representasse grandes ameaças até

mesmo a sua própria vida, mas o resultado não poderia ser melhor. Desde que

fugira da clínica, sofrera o acidente e ficara em um paradoxo sobre qual

caminho escolher, Guto apresentou grandes melhoras. Não era mais aquele

rapaz desequilibrado, alimentado por sentimentos obscuros, era alguém que

exibia um olhar de paz e declarava palavras de amor.

A família toda estava reunida no consultório da doutora Isabel, seria uma

reunião bastante importante, a conversa entre todos colocaria, de fato, os pingos

nos “is”.

— É bom vê-los sempre tão sorridentes e felizes — a especialista os

recebeu afetuosamente, ainda que em oculto semeava grandes sentimentos por

aquela família, sentimentos que não costumavam se manifestar com a maioria

dos pacientes, embora cada um tivesse sua importância —. É melhor ainda ver

que o nosso jovem rapaz passou por cima do próprio conceito.

— Estamos sempre em transformação — o rapaz afirmou convicto do que

dizia, provara de tão especial metamorfose.

— Isso é verdade, desde que o homem existiu sempre foi movido por

evoluções e revoluções — confirmou sorridente, seu jeito característico de ser —

. Mas o que quero saber é como vocês estão, o que sentem nesse novo momento

pelo qual passam.

Entreolhavam-se, indecisos sobre quem tomaria a palavra, até que

Gabriela tivera a iniciativa:

— Estamos agradavelmente surpreendidos — ainda debilitada

pronunciava as palavras pouco a pouco, precisava de esforço para manter o

fôlego —. Jamais pensei que as coisas pudessem ser tão diferentes daquilo que

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acreditava, mas nunca imaginaria que o desfecho delas seria repleto por

milagres.

— Fomos pegos despreparados e ficamos assustados com tudo, achamos

que não conseguiríamos passar pelos desafios que se apresentaram tão de

repente, pensei que nossa família sofreria rupturas — Laura fez uma rápida

reflexão sobre todos os acontecimentos, percebeu o quão angustiante foram os

segundos que passaram, mas agora conseguia respirar aliviada, as coisas se

encaixaram em seus devidos lugares —. Contudo, hoje eu sei que cada

problema serviu apenas para nos unir ainda mais.

“Seguindo a pena” Eliseu começou o seu discurso emocionado:

— Poucas pessoas têm a oportunidade de corrigir os erros, quando se dão

conta do quão ignorantes foram parece ser tarde demais, o tempo já foi e o

relógio já aponta seu ultimato — encarava cada membro daquela família, da

sua família, com carinho e atenção, conseguia enxergar em cada um o seu amor,

finalmente compreendia cada olhar —. Preciso agradecer eternamente por ter

tido a chance de acertar, de fazer tudo diferente, de mudar a previsão do futuro

reconhecendo que errei no passado — colocou a mão sobre o joelho do filho,

repleto de satisfação —. Hoje posso dizer que sou um pai de verdade, o pai que

sempre quis ser.

Visivelmente emocionada com tudo o que ouvia Isabel decidiu ouvir, mais

uma vez, o paciente com o qual convivera por tanto tempo.

— E você, Guto? O que tem a falar depois de tantas aventuras?

O rapaz de olhos verdes ficou pensativo por alguns instantes, buscava o

discurso certeiro, o discurso que comprovaria sua mudança surpreendente.

— Minha mente se clareou e me libertou de uma prisão que não parecia

terminar. Passei esses anos de internação pensando que não era amado,

acreditando que era rejeitado e procurei por culpados, embora todos fossem

inocentes — seus olhos transmitiam sinceridade, seus gestos tranquilos exibiam

a paz que sentia —. Precisei ficar perto da morte para perceber que estava

enganando a mim mesmo, precisei ficar dependente daqueles que me amavam

para perceber que tudo o que fizeram foi pensando em minha melhora, precisei

passar por momentos difíceis para ver que minha cura não dependia somente

deles, mas de mim principalmente — sorriu orgulhoso por reconhecer sua

importância —. Aprendi a receber o amor daqueles que me rodeavam e ainda

ganhei os sentimentos de um garota que, assim como eu, só precisava enxergar

o mundo de outra forma. Estou muito feliz por conseguirmos vencer todas as

barreiras.

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Tendo a certeza de que o seu trabalho fora cumprido, a terapeuta sorriu

para a família e declarou aquilo que desejava:

— Sei o quanto foi difícil, acompanhei a gravidade dos problemas, mas

estou muito gratificada aos esforços de cada um. Infelizmente as pessoas em

geral são extremamente apressadas, não param para se ouvir e nem para ouvir

o próximo, querem tudo instantaneamente sem precisar de trabalho algum, mas

grandes fortalezas não são construídas sem muito suor assim como

inspiradoras histórias não são criadas a partir de uma mente que não sabe como

aproveitar cada palavra e vírgula escritas. O caminho foi árduo, mas

conseguimos chegar ao nosso objetivo! A missão agora é manter a conquista e

correr atrás das tantas outras.

Abraçaram-se. Um era grato pelo outro existir, um reconhecia o esforço do

outro em fazer as coisas funcionarem, um sabia o quão importante era ter o

outro ao lado.

<<>>

A campainha tocou.

Imaginando que fosse o namorado, Gabriela correu atender, seu sorriso

exuberante comprovava as expectativas, mas a surpresa era outra.

— Podemos conversar? — Daniela pediu gentilmente.

A garota dos olhos azuis por algum momento não soube o que declarar,

apenas encarou a mulher a sua frente com semblante de espanto.

— Claro — finalmente respondeu, abrindo passagem.

— Prometo que será rápido — a escritora começou a se justificar —. Não a

visitei no hospital porque achei melhor que as pessoas que sempre estiveram ao

seu lado tivessem uma privacidade maior, mas não poderia deixar de visitá-la e

ver como está.

— Consegui sobreviver — forçou um simpático sorriso tentando esconder

o desconforto daquela situação, mas era vão o seu esforço, a mulher conseguia

notar o nervosismo.

— A principal razão por estar aqui é porque preciso pedir desculpas por

cada problema causado, tudo isso poderia ter sido evitado, bastasse que eu me

mantivesse onde estava.

— Não pode pensar dessa maneira, não faz ideia de como é importante na

vida de Júlia e de Rui, devolveu a eles a esperança em viver entre família —

mostrou que não guardava rancores e nem a culpava por nada —. Também sei

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Romântico Anônimo

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como está feliz vivendo essa nova fase, pude perceber que sua vida apresentou

momentos embaraçosos, horas de grande angústias, se não tivesse seguido o

seu coração talvez não viveria o que tirou sua alma da melancolia.

Simplesmente perfeita. Daniela não encontrou na filha uma garota

comum, uma pessoa qualquer, encontrou nela um alguém sóbrio, de palavras

construtivas, de coração nobre e alma rica das coisas sentimentais, aquelas que

realmente valem a pena.

— Também preciso pedir perdão por outro motivo...

— Não quero que faça isso, não a culpo de forma alguma e nem semeio

qualquer tipo de rancor — interrompeu-a pacificamente —. Era jovem, foi

iludida, perdeu o amor e o abrigo da mãe, perdeu a esperança em dias

melhores, no seu lugar eu teria feito o mesmo, não deixaria um filho meu

crescer em uma realidade depravada, teria medo que poderia acontecer — seu

semblante era amistoso, compreensivo, passava afeto —. Você não me

abandonou, se tivesse feito isso não estaria atrás de mim porque quem

abandona apaga qualquer tipo de sentimento, apenas garantiu a mim uma vida

diferente — uniu as mãos, fez crescer a emoção que entre elas se manifestava —

. Além de tudo isso vi o quanto se importou comigo, faria qualquer coisa para

me salvar, já é suficiente para saber que me ama.

— Amigas?

Abraçando a mãe de sangue Gabriela não pôde mais conter as lágrimas.

Sentiu naquele abraço um afeto verdadeiro; pôde se sentir segura, protegida e

amada. Ainda que separadas pela vida foram unidas de volta pelo destino;

ainda que não mantiveram uma relação um tanto quanto intensa, poderiam

contar uma com a outra para o que precisassem.

— Amigas de hoje para a eternidade!

A vida não é como um filme que podemos pausar para tratarmos de

assuntos relevantes e depois continuarmos, a vida é um emaranhado de

surpresas que não podem ser deixadas para depois. A vida não espera nos

recuperarmos de perdas recentes para então aplicar novos testes, elas nos

desafia a todo instante. A vida não nos dá tempo para perdoarmos e tentarmos

viver dias melhores, nós é que precisamos aprender a desfrutar do melhor de

cada momento.

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Capítulo 84

Já era setembro. Aos poucos o inverno dava lugar à primavera, já não era

tão rigoroso, a cor voltava às folhas das árvores, os pássaros retornavam com

suas cantorias, as flores traziam de volta o perfume que apaixonava a muitos

casais, que serviam de presente àqueles que se amavam e inspiração para

aqueles que navegavam pelos mares do romance.

O jardim botânico voltava a acolher um bom número de pessoas, amigos

que se importavam uns com os outros retornavam a rotina de se encontrarem

ali para os costumeiros desabafos, casais que muito se amavam faziam questão

de passar os minutos de folga um ao lado do outro combinando planos para o

futuro e dividindo as conquistas do presente.

O amor saía das casas para se exibir nas ruas.

Ayshla e Guto. Dois jovens que nunca se viram e nem imaginaram que um

dia poderiam se conhecer, mas que foram unidos pela vida. Possuíam algo em

comum: a descrença no mais nobre sentimento que não existe apenas nos

humanos, mas se faz presente em cada ser vivo desse mundo. A descrença nada

mais era do que a ilusão, o engano. Enquanto um era cegado pela própria

mente a outra foi levada a acreditar em uma visão distorcida do que era a

realidade. Mas o importante é que agora estavam presenteados, tiveram seus

pensamentos transformados, estavam aptos e viver dias incríveis, dias

inesquecíveis.

Ainda na cadeira de todas o jovem rapaz encarava sua namorada,

procurava as palavras certas para quebrar o silêncio entre eles, o silêncio que

permitia ao som do vento por entre as árvores tocar seus ouvidos.

— Um dos lugares que mais nos garante paz — por fim declarou.

— Nunca me senti tão bem — a coreana suspirou tranquila, sentindo o ar

perfumado daquele extenso jardim —. As coisas mudaram tão depressa, foi

uma reviravolta que eu nunca arquitetei. Só posso dizer que fui presenteada

por uma paz incrível e por uma preciosidade rara — sorriu para aquele que a

encarava ternamente.

— Sabe quando pensei que um dia fosse encontrar alguém para construir

uma vida? — perguntou reflexo, voltando ao passado de onde veio —. Nunca.

Sempre acreditei que aquela seria a minha vida, que aquele era o meu objetivo

nesse mundo, viver fadado à solidão. Penso que muita gente cultiva o mesmo

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pensamento, muitas pessoas passam pela mesma situação, mas se eu pudesse

diria a cada uma delas para que acreditassem no futuro, acreditassem que ele

nos trará coisas melhores, nenhuma dor dura para sempre.

— Uau! — orgulhou-se pelas sábias e tocantes palavras de Guto, palavras

que também a confortaram —. Por que não escreve algo contando a sua

história? Conseguiria motivar a muitos.

— Quem daria atenção a um cadeirante que também foi um

desequilibrado?

— Um cadeirante que a partir do próprio esforço voltará a andar e um

“desequilibrado” que passou por cima dos próprios desafios e hoje é uma

pessoa como qualquer outra. Quem não se inspiraria em alguém tão especial?

— Você é suspeita... — sorriu debochado.

— Só porque te amo? — ao se dar conta do que falou sentiu o rosto

queimar, Ayshla não era tão sentimental ao ponto de declarar “amores” por

onde passasse, não conseguia dizer tão facilmente as três palavras mágicas e

mais poderosas: eu te amo.

— Ouvi direito? — o jovem rapaz não deixaria aquela declaração ser vã,

encantou-se pela timidez da namorada, sentiu-se ainda mais apaixonado por

ela, ainda mais decidido acerca do próprio futuro —. Quer dizer que me ama?

As mãos apertavam-se uma na outra, os pés pressionavam o chão

repetidas vezes, a garota não sabia o que dizer, estava sem palavras, o sorriso

do namorado a deixava perdida.

— Eu também amo você — Guto acolheu as mãos aflitas, acalmando-as —.

Nunca se esqueça disso. E prometo que teremos uma família, vou começar a ter

uma vida normal para logo nos casarmos, esse é o meu sonho!

— Casar? — foi pega de surpresa, quando poderia imaginar que alguém a

sugeria casamento? Talvez fosse um sonho adolescente, um sonho que jamais se

mostrara consistente, antes provava sua utopia perante tantas circunstâncias.

— Não gostaria de se casar comigo? — preocupou-se com a indagação.

— Mas é claro! — abraçou aquele que amava, abraçou como se fosse o seu

bem mais valioso, tudo o que tinha, de fato era —. É tudo o que mais quero,

meu sonho de anos!

— Ficarei honrado em realizá-lo — sentindo-se amado, Guto foi

alimentado por coragem, precisava se testar, precisava se esforçar e tinha

certeza de que poderia contar com a ajuda de uma das pessoas mais incríveis

que se fazia presente ao seu lado —. Se importaria em realizar o meu?

— Mas é claro que não — a coreana logo se prontificou —. Qual é?

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— Acho que os exercícios têm tido algum efeito, pode me ajudar a andar?

— Vamos lá — colocou-se em pé ao lado do namorado —. Apoie-se em

minhas mãos, o resto é ser feliz — instruiu divertida.

E assim aconteceu.

Temeroso em não conseguir o equilíbrio necessário e passar vergonha pela

possível queda, Guto foi vagaroso, com as pernas trêmulas tentava firmá-las

sobre o chão, em posição ereta focava sustentar o corpo sobre elas.

— Está pronto?

Respirou fundo, precisava enfrentar os próprios medos.

— Sim...

Cuidadosa, Ayshla se afastou a passos lentos deixando o rapaz livre,

independente, vulnerável à própria escolha. Incerto, Guto não sabia se

conseguiria, não tinha certeza, talvez fosse uma louca teimosia acreditar que era

capaz.

— Você é o único responsável pelas próprias conquistas — percebendo a

tensão, a garota decidiu encorajá-lo —. Precisa acreditar em pouco mais em si

mesmo.

Fechou os olhos como se desejasse entrar em outro mundo, um mundo

onde não existissem desafios, um mundo no qual os erros não acontecem, um

mundo que não existia. A realidade era outra, dura, mas possível de vencer.

Rastejou o pé direito pelo chão, seguido do esquerdo.

Viu que conseguia.

Deu um passo mais amplo, obteve sucesso.

Abriu os olhos, sorriu feito uma criança contente.

Seus passos foram mais ousados, o equilíbrio se fazia presente, a alegria

aumentava.

O rapaz alto, loiro e de olhos verdes que sempre vestiu um olhar obscuro,

agora irradiava o brilho do olhar, encantava a quem o visse, contagiava a quem

estivesse ao seu lado com sua alegria.

— Consegui! — declarou descrente, emocionado, feliz —. Eu consegui!

— Você conseguiu — ainda mais contente, Ayshla o abraçou,

compartilhou daquele momento tão mágico.

— Obrigado — beijou-a apaixonado, um beijo que fora capaz de levá-los

por alguns instantes ao mundo utópico onde os desafios não existiam e os erros

não se faziam presente, um mundo de amor, do amor que os unia —. Obrigado

por existir!

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<<>>

O dia, que talvez fora o mais aguardado do ano, finalmente chegara

trazendo consigo a ansiedade, o nervosismo e a apreensão para muitos dos

jovens que fariam a prova para entrar na requisitada Universidade da Cidade

da Paz, o único meio de conseguir se ingressar ali era passando pelo assustador

vestibular. A concorrência era forte, a instituição abria portas para estudantes

de qualquer lugar do país fazendo as vagas serem em demasia cobiçadas.

Como sempre, durante todos aqueles anos, Isaque e Gustavo adentraram

o admirado lugar, a visão tecnológica era simplesmente incrível, parecia uma

construção de outro mundo. As salas de aula eram bem equipadas com

materiais de última tecnologia, as bibliotecas bem arrumadas exalavam a

sedução pelos estudos, as áreas de lazer para os exaustivos dias de amplo

conhecimento eram irrecusáveis a qualquer um. A beleza da escola apenas fez

crescer no coração dos dois grandes amigos a vontade por estudar naquele

lugar, mesmo sabendo que, pela primeira vez, estariam em turmas diferentes.

— Esse lugar... — Isaque não sabia como definir aquilo que seus olhos

contemplavam —. Eu moraria aqui!

— Faria o mesmo — Gustavo estava encantado de igual modo —. Será que

conseguimos? — bateu a falta de crença.

— Estudamos para isso — o mais velho transmitia confiança —. Nossas

vagas já estão garantidas.

E lá foram eles, para a sala reservada.

Coincidências ou não fariam a prova no mesmo lugar, o Romântico

Anônimo na carteira da frente, seguido pelo seu fiel conselheiro.

As provas foram distribuídas.

— Boa sorte — sussurraram, ao mesmo tempo.

Grandes desafios requerem esforços ainda maiores.

As seis horas de prova foram muito bem aproveitadas por cada candidato,

afinal de contas passaram horas de seus dias se preparando para aquele

momento, sonhavam intensamente com aquela conquista, não deixariam a

única oportunidade passar em vão, dariam o melhor que conseguissem.

A cabeça latejava e os olhos lacrimejavam.

Um tanto desnorteados deixaram a sala de prova, foram os últimos a sair,

mas frustrados.

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— Simplesmente horrível — aquele que se dizia futuro pediatra reclamou

descrente.

— Prova para quem já é formado — aquele que se intitulava futuro

engenheiro também desacreditava no querido sucesso.

— Acho que será apenas mais um sonho...

— Eu queria dizer que está errado, mas também acredito nisso...

Nem sempre as coisas saem como planejamos.

Os dias se passaram. Dias de grande ansiedade e curiosidade.

Finalmente a divulgação dos resultados, os tão aguardados resultados.

A universidade estava cheia, alguns choravam frustrados, outros

comemoravam a conquista, fato era que Isaque e Gustavo sentiam-se tensos,

queriam descobrir a verdade ao mesmo tempo que não queriam, seguravam o

choro que os acompanhava, choro de medo.

Estavam perante as listas dos classificados.

Na de Engenharia Química o nome do mais velho não estava inserido, ou

seja, não havia sido aprovado.

— Podemos ir embora — o mais novo sugeriu.

— Vamos até o fim — um nó se formava em sua garganta.

Começaram a ler os nomes dos aprovados em Medicina, nunca aparecia o

do Romântico Anônimo. Desciam, nenhum sinal. Os olhos já tentavam expulsar

as lágrimas, a angústia da decepção crescia.

Mas no meio daquela centena de nomes eis que a surpresa se fez presente.

O nome do adolescente apaixonado, Gustavo Queiroz, aparecia como

aprovado e logo depois Isaque Ferreira também estava inscrito.

— Medicina? — as lágrimas antes de medo, agora eram de emoção, a feliz

emoção.

— Vai me aturar por mais alguns anos? — ainda mais emocionado

abraçou aquele que tinha por irmão.

— Seremos os melhores!

— Como sempre fomos!

Sabiam que o professor Gilmar se orgulharia por eles, embora não

dissessem para poupar a opressora saudade. O importante é que, juntos,

conquistaram mais um sonho.

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Capítulo 85

Algum tempo depois...

A cidade era maravilhosa, bela, esplêndida, ao ponto de faltarem adjetivos

que a pudessem qualificar.

Era iluminada, tão linda quanto a sossegada Cidade da Paz, transmitia

amor, seus moradores exalavam a simpatia, a tranquilidade, a união.

Do alto da Torre Eiffel era possível vislumbrar toda essa graciosidade,

riqueza para os olhos, admiração para a alma. A comentada Paris juntava

pessoas que muito se amavam.

“Smile,

Though your heart is aching

Smile,

Even though it's breaking

When there are clouds in the sky

You'll get by”

[Sorria,

Embora seu coração esteja doendo

Sorria,

Mesmo que ele esteja partido

Se há nuvens no céu

Você vai dar um jeito]

Tudo começou tão inesperadamente, de uma maneira tão especial, de uma

forma tão inspiradora que prometia ser do mesmo tanto interessante, intenso,

inigualável.

Sorrisos tímidos foram trocados, olhares acanhados por vezes se

encontravam, enigmas de amor foram dispensados através das palavras

românticas, a amizade tão sincera e verdadeira aos poucos deu lugar ao que de

fato os unia: o amor.

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“If you smile

With your fear and sorrow

Smile and maybe tomorrow

You'll find that life is still worthwhile

If you just”

[Se você sorrir

Com seu medo e tristeza

Sorria, e talvez amanhã

Você descobrirá que a vida ainda vale a pena

Se você apenas...]

Mas agora a vergonha dera lugar à cumplicidade, o acanhamento abriu

caminho para a paixão, amavam-se sem medo do amanhã, estavam

preocupados com o hoje, com o agora. Ocupavam-se por viver o presente, viver

aquilo que os mantinha unidos mesmo separados, aquilo que os mantinha

vivos na memória — e no coração — um do outro.

“Light up your face with gladness

Hide every trace of sadness

Although a tear maybe ever so near

That's the time you must keep on trying

Smile,

What's the use of crying

You'll find that life is still worthwhile

If you just”

[Ilumine seu rosto com alegria

Esconda todo rastro de tristeza

Embora uma lágrima possa estar tão próxima

Este é o momento que você tem que continuar tentando

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Sorria,

Pra que serve o choro?

Você descobrirá que a vida ainda vale a pena

Se você apenas]

Com a cabeça repousada sobre o peito do eterno namorado, Gabriela

sentia o passear de seus dedos entre seus fios claros, embriagava-se por aquele

momento de grande magia, aguardava ansiosa pela virada do ano, quando os

fogos coloririam o céu e o amor tornaria aquele evento único e inesquecível.

O Romântico Anônimo, por sua vez, não se cansava de respirar o perfume

adocicado das rosas, a fragrância que o seduziu, o cheiro que jamais esqueceria.

Sentia-se importante na vida daquela garota, conseguia ver isso e prometia para

si mesmo que a protegeria para sempre, que lutaria com todas as forças a fim de

manter a chama daquele amor acesa.

Embora adolescentes eram sábios e entendiam a essência humana.

— Esse foi o melhor ano da minha vida — observando o céu estrelado a

Adolescente Apaixonada falou ao vento o que queria seria coração —. Conheci

um alguém incrível, em alguém que para sempre amarei — exibiu as covinhas

coradas.

— Esse alguém tem muita sorte por ser tão querido por em alguém ainda

mais especial e insubstituível — não resistiu tocar o suave rosto, encontrava

naquele simples gesto o acolhimento para a própria alma —. Nunca imaginei

que fosse viver algo assim, tão indescritível, motivador, algo que me faz

acreditar em um mundo incrível e desejar vivê-lo a cada segundo — colocou a

atenção nos olhos azuis que decidiram encará-lo —. Sei que já falei muitas vezes

e nunca me cansarei de declarar que eu te amo, tanto que daria a minha vida

por esse amor.

— Eu sei, já provou o quanto é único e ímpar — sentou-se ao lado do

namorado, encarando os olhos castanhos, passeando o indicador pelo rosto que

deixava os traços infantis de lado, assim como fez em uma tarde especial,

quando seus olhos não contemplavam a luz —. Fui presenteada com a maior

riqueza que alguém poderia ter, fui privilegiada em receber o carinho, a

compreensão e o romantismo de um verdadeiro anjo — sorriu vendo o mesmo

gesto no semblante que nunca saía de seus pensamentos, que nunca a deixava e

nem deixaria —. Eu também te amo, até mais do que a mim.

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Beijaram-se como grandes amantes, sentiam naquela atitude o doce gosto

do amor, o suave sabor da paixão que começava a aflorar e o vestido da paz que

cobria seus corações, que os enchia de esperanças e os aquecia de uma forma

que nada no mundo poderia imitar.

<<>>

“Smile,

Though your heart is aching

Smile,

Even though it's breakin'

When there are clouds in the sky

You'll get by”

[Sorria

Embora seu coração esteja doendo

Sorria,

Mesmo que ele esteja partido

Se há nuvens no céu

Você vai dar um jeito]

Controvérsias sempre fizeram parte da história do mundo e do universo,

sempre se fizeram presentes na vida de cada um de nós e sempre

surpreenderam a muitos.

Talvez nunca imaginaram que um dia se veriam como se vêem hoje, talvez

nunca imaginaram que se amavam daquela forma, quando, na verdade, o

sentimento se intensificava e esperava o momento certo para se manifestar.

Tão diferentes, poucas eram as semelhanças, em poucas coisas

conseguiam se identificar, mas existe um ditado, não é? Os opostos se atraem.

Atraem-se de tal forma que nada os pode separar, quanto mais se tenta mais se

junta, mais se une.

Enfrentaram desafios, passaram por processos difíceis, mas agora tinham

a certeza de que eram o porto seguro um do outro.

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“If you smile

Through your fear and sorrow

Smile and maybe tomorrow

You'll find that life is still worthwhile

If you just smile”

[Se você sorrir

Com seu medo e tristeza

Sorria, e talvez amanhã

Você descobrirá que a vida ainda vale a pena

Se você apenas sorrir]

Um ao lado do outro, como sempre seria, recostavam-se sobre a grade da

famosa torre enquanto se maravilhavam com a rica paisagem que Paris garantia

aos seus olhos. A companhia que tinham um do outro os fazia sentir segurança

sobre os dias que viriam.

— Obrigado — a garota dos olhos verdes fez um agradecimento sem

especificar ao que, apenas o fez.

— Obrigado? — Isaque, sempre irônico, encarou a namorada com seu

melhor olhar sedutor —. Não precisa agradecer por ter a garantia da minha

beleza.

— Você é mesmo lindo — o elogio acanhado seria inesquecível para

aquele que o recebera —, mas não é disso que estou falando — os brilhantes

olhos encaravam o ouvinte apaixonado —. Obrigado pelo simples fato de existir

e transformar a minha vida, transformar até mesmo o meu futuro. Se antes eu

apenas enxergava sombras hoje vejo luzes, irradiadas por você.

— Uau! — o agora futuro pediatra se encantou por tais palavras —. Não

sou tão romântico assim, prefiro transmitir por atitudes aquilo que deveria

dizer através das palavras, mas quero que saiba que tê-la ao meu lado é muito

importante, seu amor parece me dar forças em muitos sentidos — ajoelhou-se

como um nobre cavalheiro —, e para sempre será a minha princesa.

Levantando o garoto aos seus pés, Júlia declarou com sinceridade:

— Eu te amo.

Isaque a beijou com nobreza, envolveu-a com o seu amor, a fez se sentir

amada, sentimento que custou receber, mas que agora teria por todo o sempre.

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O relógio marcou a meia-noite.

O estrelado céu de Paris agora marcava o começo de um novo amor, o

início de uma nova era.

Os quatro amigos agora confraternizavam juntos o começo de um novo

ciclo, tinham a certeza de que poderiam contar um com o outro para o que

precisassem, passariam pelos futuros desafios como sempre foi: lutariam

unidos, venceriam unidos.

— Feliz ano novo! — declaram em uníssono, gargalhando, abraçando-se.

Estavam entre amigos, estavam em família, estavam com as pessoas que mais

amavam.

Os casais se beijaram para as boas vindas do ano novo, como todo

romântico faria.

Os dois amigos se olharam satisfeitos, finalmente o que sonhavam desde a

infância começava a se concretizar. Abraçaram-se fortemente como sempre

fizeram, como sempre fariam.

— Lorde Gustavo, obrigado por tudo! — curvou-se perante o melhor

amigo.

— Conselheiro Isaque, eu não seria o que sou sem você — tornou a

abraçar aquele que sentia ser seu irmão, que sentia ser alguém sangue do seu

sangue —. Pode contar comigo para tudo!

— Você também, essa é a nossa promessa, para sempre!

“That's the time

You must keep on trying

Smile,

What's the use of crying

You'll find that life is still worthwhile

If you just smile”

Fim