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UNIVERSIDADE FEDERAL FLUMINENSE INSTITUTO DE LETRAS PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM LETRAS Escrita de melancolia e solidão: O conto de Lygia Fagundes Telles Dissertação apresentada por Fabiana Cristina de Camargo e Silva à banca examinadora do Mestrado, como requisito parcial para a obtenção do grau de Mestre em Literatura Brasileira. Subárea: Literatura Brasileira e Vida Cultural. Orientadora: Profºa. Dra. Ângela Maria Dias Niterói 2006

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UNIVERSIDADE FEDERAL FLUMINENSE INSTITUTO DE LETRAS PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM LETRAS

Escrita de melancolia e solidão:

O conto

de Lygia Fagundes Telles

Dissertação apresentada por Fabiana Cristina

de Camargo e Silva à banca examinadora do

Mestrado, como requisito parcial para a

obtenção do grau de Mestre em Literatura

Brasileira. Subárea: Literatura Brasileira e Vida

Cultural.

Orientadora: Profºa. Dra. Ângela Maria Dias

Niterói 2006

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FABIANA CRISTINA DE CAMARGO E SILVA

ESCRITA DE MELANCOLIA E SOLIDÃO: O CONTO DE LYGIA FAGUNDES TELLES

Dissertação apresentada por Fabiana Cristina

de Camargo e Silva à banca examinadora do

Mestrado, como requisito parcial para a

obtenção do grau de Mestre em Literatura

Brasileira. Subárea: Literatura Brasileira e Vida

Cultural.

BANCA EXAMINADORA

_________________________________________________________________________

Profa. Dra. Ângela Dias

Universidade Federal Fluminense

_________________________________________________________________________

Profa. Mathildes Demétrio

Universidade Federal Fluminense

_________________________________________________________________________

Prof. Sérgio Antônio Câmara PUC-RIO

Niterói 2006

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Ao meu pai, com quem compartilhei vinte anos de boa música e literatura.

À minha querida mãe, grande artista e incentivadora, com quem continuo esta prazerosa

viagem pela apreciação estética.

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AGRADECIMENTOS À minha orientadora, professora Ângela Maria Dias, pela docilidade, paciência e dedicação, mas, sobretudo, pela amizade durante todos estes anos. À banca examinadora, pela gentileza e dedicação na leitura de meu trabalho, desde a ocasião da banca de qualificação. À minha amiga e professora Sônia Monnerat, companheira desde a graduação, pela confiança, generosidade, e pelo exemplo de vida pessoal e acadêmica. À professora Mariângela Rios, pelo seu jeito generoso, simples e prático de ensinar e de ver a vida. À minha irmã e às amigas em comum, Jacque, Marcelle, Sigrid, Claudinha, Helô e Naná, pelo incentivo de sempre. A José Luis Sánchez, pelo amor, pelo carinho e por ter sempre acreditado em mim.

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RESUMO Esta dissertação trata da solidão do sujeito na ficção curta de Lygia Fagundes Telles. Mostraremos como o despertar para a solidão do sujeito contribuiu para dar corpo a uma tendência literária que duraria por toda a modernidade. Nesta perspectiva, atravessamos a obra de Jean-Jacques Rousseau, precursor da escrita da interioridade, evidenciando o caráter positivo da solidão no universo deste autor. A dissertação aponta também a ambigüidade suscitada por tal sentimento na obra de Lygia, uma vez que, tendo em vista a obsessão de sua obra pelo tema da corrosão do indivíduo pelo tempo, o recurso à memória contada tanto pode evidenciar a negatividade quanto sugerir certa renovação do sujeito. Palavras-chave: Solidão; Rousseau; Lygia Fagundes Telles; reminiscência; negatividade; ambigüidade.

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ABSTRACT

This dissertation deals with the idea of loneliness in Lygia Fagundes Telles’ shor t stories,

aiming to demonstrate how the awakening to individual loneliness contributed to the

construction of a literary trend, which would survive throughout Modernism.

In this perspective, we visit the work of Jean-Jacques Rousseau, to bring to fore some

possible positive aspects of loneliness as observed by the precursor of interior writing in

French literature and thought.

Also, we considered the ambiguity that such a felling may have in Lygia’s oeuvre, as it

shows an almost obsession by Time’s corroding character.

Through memory, Lygia emphasizes both the negative and the possible renovation of the

self.

Key-words: loneliness; Rousseau, Lygia Fagundes Telles, reminiscense; negativity;

ambiguity.

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SUMÁRIO

1. Introdução 6 2. Jean-Jacques Rousseau e a escrita da interioridade 13 3. Escrita de solidão e melancolia: o conto de Lygia Fagundes Telles 25 4. Análise dos contos 31 5. Considerações finais 70 6. Referências Bibliográficas 74

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Solidão é lava que cobre tudo Amargura em minha boca

Sorri seus dentes de chumbo. Solidão, palavra cavada no coração

Resignado e mudo no compasso da desilusão.

Desilusão, desilusão, Danço eu, dança você na dança da solidão.

(Paulinho da Viola)

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1 - Introdução

O objeto desta dissertação é o estudo da solidão do sujeito no conto de Lygia

Fagundes Telles. Nossa opção por esta autora sustenta-se por sua grande contribuição para

a ficção brasileira do século XX. A autora, que admitiu sua estréia literária com Praia Viva,

em 1944, insere-se cronologicamente na geração dita de 45, ou do pós-guerra, o que explica

o recorrente sentimento de angústia existencial do universo de suas personagens.

Não obstante esta categorização formal, publicados dez livros de contos, quatro

romances, um de memórias e sete antologias (sendo a última de 2004), Lygia segue

brindando-nos com uma prosa que alcança um grau extremo de problematização da

subjetividade moderna. Se, por um lado, a ficção breve de Lygia Fagundes Telles revisita a

tradição, no que há de romântico em sua prosa, podemos dizer que ela transita entre esta e a

contemporaneidade, não só na leitura que faz da matéria do mundo e em sua reescritura,

mas no questionamento da própria maneira de dizer esta matéria, isto é, na fluidez das

fronteiras entre os gêneros que utiliza (evidenciada principalmente no que há de mais

recente em sua prosa curta), e entre vida e obra.

Como bem lembrou Ítalo Moriconi, em sua seleção de Os cem melhores contos

brasileiros do século, a partir dos anos 60 o conto passou por uma verdadeira explosão em

nosso país, uma autêntica revolução de qualidade. “A velocidade narrativa, a capacidade de

nocautear o leitor com seu impacto dramático concentrado, (...) fizeram do gênero o espaço

literário mais adequado à tradução dos sentimentos profundos e das contradições que

agitaram nossa alma basicamente urbana no decorrer das últimas quatro décadas.”

(MORICONI, 2000, p. 12). Lygia é, sem dúvida, uma das maiores representantes desta

“revolução”. A revolução operada na obra de Lygia evidencia-se, principalmente, pela

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competência da autora em ilustrar a irreparável dissonância entre este homem em busca de

um sentido e um mundo estéril e esvaziado de sentido. É nesta “batalha” que se dá a

fertilidade da escrita de Lygia. Porque o conto, como assinalara Cortázar, “se move neste

plano do homem onde a vida e a expressão escrita dessa vida travam uma batalha fraternal”

(...); e o resultado desta batalha é próprio conto, uma síntese viva ao mesmo tempo que uma

vida sintetizada, algo assim como um tremor de água dentro de um cristal, uma fugacidade

numa permanência”.(CORTÁZAR, 1993, p. 150)

Nossa leitura dos contos tentará demonstrar que a palavra de Lygia Fagundes Telles

permanece, e que, muito embora a autora revisite a tradição, no aproveitamento dos temas,

se projetará numa nova experiência da subjetividade, na qual todo fundamento é ilusório, e

os tempos e espaços são intercambiáveis, como se o sujeito flutuasse numa zona indistinta

da vida. Um universo ficcional fundamentalmente marcado pela impossib ilidade de um

horizonte seguro para os personagens, uma ausência completa de télos.

Para tanto, nos propusemos a analisar a solidão sob duas óticas: por um lado, a

solidão como elemento de contribuição para o despertar de uma nova tendência literária – a

escrita da introspecção – que, em princípios do século XVIII, com Jean-Jacques Rousseau,

tem seu primeiro momento na história literária. Neste processo da obra do filósofo, o eu

fragmentado tenta reunificar-se pela experiência da memória. E por outro, a solidão na

literatura moderna do século XX que não se resolve com a “pura renovação” (que a

memória causa no homem romântico), uma vez que o sujeito, desiludido com a debilidade

de sua vida e de seu espírito, não encontra esperança na vida e nem persegue a unificação

do ser – meta que ainda parecia dada ao sujeito romântico.

Mostraremos em nosso estudo como o sonho, o devaneio podem continuar

associados às vivências de solidão, porém não são capazes de produzir reconforto e

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soluções, que nem mesmo se oferecem pelo contato com o mundo. A solidão desses tempos

é marcada pela negatividade, uma solidão que pode fazer vislumbrar a morte, encarada

nesta acepção com muito pessimismo, em contraposição à morte para o romântico,

despojamento do corpo entendido como liberdade total da alma.

Para melhor esclarecer esta busca do ser através da linguagem, em escritas

associadas a recuperações pela memória, desde o período pré-romântico, atravessaremos

momentos da obra de Rousseau, culminando nossa análise mais cuidadosa em sua última

obra, Os devaneios do caminhante solitário. Nas palavras do próprio Rousseau:

Faço a mesma empresa que Montaigne, mas com um fim completamente

contrário ao seu: pois ele não escrevia senão para os outros, e eu escrevo meus

devaneios senão para mim. Se nos meus dias de velhice, nas proximidades da

partida, eu permanecer, como espero (...), sua leitura me lembrará a doçura que

experimento ao escrevê-los, e, fazendo renascer assim para mim o tempo

passado, duplicará, por assim dizer, minha existência. (STAROBINSKY, 1990,

P. 284.)

Em contrapartida, na seleção de elementos que melhor exemplifiquem a visão mais

pessimista da solidão, ou a dificuldade desta busca do ser pela linguagem, chegaremos ao

conto de Lygia Fagundes Telles, com especial ênfase para os contos “A ceia”, “A chave” e

“As pérolas”, “O moço do saxofone”, “Que se chama solidão”, “Pomba Enamorada ou uma

história de amor”, que consideramos serem os principais a desenvolver o tema da solidão

do sujeito como experiência de desilusão e desaparecimento, ou como pura errância, em

que o único sentido possível está no contínuo deslocamento e não no encontro. Uma

espécie de “ir-e-voltar de mãos vazias”, e sempre mais uma vez. Não apenas pelo fato da

obra da autora metaforizar a solitária condição humana, mas também pelo entrelaçamento

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entre memórias autobiográficas e realidade, isto é, entre devaneios e experiência, que

observamos o legado do filósofo Jean-Jacques Rousseau na obra de Lygia.

Silviano Santiago diz que a ficção de Lygia Fagundes Telles é como um “mata-

borrão” que filtra as experiências do cotidiano e as transforma em escrita. Segundo ele,

na criação literária de Lygia, a escrita da memória e o texto da literatura confluem

aflitivamente para o lugar entre , aberto pelo contar dire ito e o contar mentiroso,

para a brecha ficcional, abrigo e esconderijo do narrador... Ela é uma espécie

nobre de papel mata-borrão que se encharca, primeiro, com a escrita dos

acontecimentos miúdos da realidade cotidiana, para, em seguida, representá-los

de uma perspectiva muito pessoal. (...) O narrador, ao subscrever e endossar as

garatujas do mata-borrão, reinventa-as e as transforma através da invenção de

personagens e coadjuvantes em que ama desdobrar-se.” (SANTIAGO, 1998,

p.280)

O desenvolvimento de nosso trabalho demonstrará como a exposição da

subjetividade, impondo-se através do relato autobiográfico, inicialmente com o artifício da

narração através de cartas e diários simulados, foi-se tornando “critério de validação do

romance”. Neste sentido, a relação estabelecida entre autor e receptor estreitou-se de tal

maneira que a ficção produzida pelo eu deixou de ser entendida como invenção, passando a

ser considerada manifestação da realidade.

Neste estudo, veremos que Rousseau foi o primeiro a experimentar a glória do

“pacto autobiográfico”, estudado por Lejeune. Ensinando os leitores a ler, nos prefácios de

seu primeiro e grande romance, Nova Heloísa, o genebrino solitário discutiu a leitura e a

maneira de ler seu romance, inaugurando, assim, um novo canal de comunicação entre dois

seres solitários, o escritor e o leitor. A partir da experiência da memória contada, enfatizou

sua honestidade, e criou um autor ideal, que falava do fundo do coração.

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Esta busca desesperada pela verdade do ser, pelo conhecimento de si mesmo e pelo

reconhecimento dos outros perpassou toda a obra de Rousseau. Somente através do apelo à

linguagem ele pôde, então, transpor a distância que não conseguiu atravessar por meio da

ação. Apesar mesmo da incompreensão sofrida em seu relato das Confissões, quando tentou

a “transparência” como ideal, para Rousseau, “recolher-se em si mesmo é com certeza

aproximar-se de uma maior clareza racional e de uma evidência imediatamente sensível,

por oposição ao contra-senso que reina na sociedade”. (STAROBINSKY, 1991, p.52)

Por outro lado, veremos como na obra de Lygia Fagundes Telles o contra-senso

interior não é necessariamente menor que o exterior. Em toda parte, a opacidade e a

dissonância podem se fazer sentir. No universo ficcional da autora, tal ideal de

transparência não adquire o mesmo grau de eficiência.

Segundo a análise do rousseauísta Starobinski, o despojamento do mundo, esse

recuo para o âmbito da natureza, para o imaginário e para a intimidade do eu solitário traz

em si a capacidade de se tornar invulnerável. E é em Os devaneios... que esta tal

invulnerabilidade, aqui entendida como liberdade, objetivo maior do escritor romântico,

assume sua mais fiel representatividade. Esse sentir-se bem com a solidão, a felicidade de

estar em companhia da natureza, como refúgio da intemporalidade, típica do escritor

romântico, inaugura um traço em Rousseau que perduraria em autores da modernidade.

É neste sentido que estabelecemos a confrontação do tema da solidão em Rousseau,

como artifício de busca da verdade do ser como algo construtivo, e no conto de Lygia

Fagundes Telles, levando-se em consideração as inegáveis marcas românticas que

atravessam sua prosa. Na obra da autora, o status solitário não é capaz de salvaguardar o

indivíduo, mas, sim, de metamorfoseá-lo na direção da decadência.

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Destacaremos em nosso estudo como o “não estar no mundo” em Rousseau, o

deixar-se levar pelo devaneio, apresenta, de maneira bem clara, a referência à solidão como

saída do caos, como algo de positivo, capaz de construir um meio de atingir a paz tão

sonhada. A solidão aqui, debruçada na nostalgia da memória, se não chega a dissipar a

desilusão, ao menos aponta para o caminho da virtude, da verdade, do bem mais precioso

que o indivíduo pode construir: a capacidade de desfrutar de sua própria existência, sem

precisar de mais nada para se preencher.

Paradoxalmente, com a análise dos contos de Lygia Fagundes Telles, mostraremos

que a mesma solidão que contribui para o desvelamento da subjetividade é aquela aponta

para o caos, para a degradação, para a decadência do ser. Na obra de Lygia, o sujeito parece

ser arrastado para uma série de desencontros que irão empurrá-lo para o inevitável abismo

da morte.

Neste sentido, demonstraremos que, para a maioria das personagens de Lygia no

corpus analisado, a lembrança, o saber, a maturidade e a consciência das coisas da vida são

experiências negativas, pois conduzem ao inevitável abandono do ser, impotente diante da

inexorabilidade do tempo. Constataremos que este sujeito, “diante do sentimento

unidirecional da passagem do tempo, como erosão, deperecimento, desgaste, jamais acolhe

a riqueza da experiência” (DIAS, 2001, 15).

Tendo em vista a contínua obsessão pelo tema da corrosão do indivíduo pelo tempo,

almejamos comprovar que é inegável que o ato da recordação, o apelo à memória, não

resolve a solidão do sujeito moderno, já que “mais prejudicial do que cigarro é a memória”

(TELLES, 1999, 141).

Nessa perspectiva, ao contrapor Os Devaneios... de Rousseau à obra ficcional de

Lygia, verificaremos algumas alternativas de tratamento da solidão na escrita da

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instrospecção: da busca de um sentido unificante e justificador da existência à mais “irônica

melancolia do tempo” (DIAS, 2001, 15).

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2 – Jean-Jacques Rousseau e a escrita da interioridade

O despertar para a subjetividade, evidenciado a partir do desgaste do paradigma do

mito como portador do imaginário público fez-se notar num primeiro momento no século

XVI, com a difusão da linguagem escrita, dando lugar à “moderna figura do autor1”, e ao

conseqüente estabelecimento do conceito de ficção. Esta crescente popularidade da

enunciação personalizada gerou a necessidade de se criar meios de legitimação do discurso

pelo seu conteúdo de verdade. Porém, é no alvorecer do século XVIII, com a literatura

revolucionária de Rousseau, que a questão da “verdade ficcional” terá seu primeiro marco

expressivo.

Segundo Ângela Maria Dias, em “Memória em ficção”, ensaio publicado pela

Revista Tempo Brasileiro,

a grande façanha da identidade consiste na definitiva arquitetura do conceito de

ficção, que ultima em pleno século XVIII. Neste momento, a cultura e a arte,

porque divorciadas da antiga representividade pública, esclesiástica e cortesã,

constituem esferas separadas da reproduçã o da vida social e passam a servir de

suporte ao ‘processo de autocompreensão das pessoas privadas’. (DIAS, 1995,

97)

Observa-se, a partir daí, uma transformação na relação entre escritor e leitor, e entre

leitor e o texto. A exposição da subjetividade, impondo-se através do relato autobiográfico,

com o artifício da narração através de cartas e diários simulados, vai-se tornando “critério

de validação do romance”, uma vez que vai criando meios de estabelecer empatias e

identificações entre autor e receptor, estreitando de tal maneira esta relação que a ficção 1 A expressão é usada por L. Costa Lima em Sociedade e discurso ficcional.

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produzida pelo eu deixou de ser entendida como invenção, passando a ser considerada

manifestação da realidade.

Rousseau foi um dos primeiros a experimentar a glória do “pacto autobiográfico”,

estudado por Lejeune. Ensinando os leitores a ler, o genebrino solitário, através de suas

cartas, tentava tocar suas vidas interiores, abrindo as portas para o romantismo. Esta

estratégia requeria uma ruptura com a literatura convencional: em vez de se esconder na

narrativa e manipular personagens- fantoches, Rousseau lançava-se em suas obras e

esperava que o leitor fizesse o mesmo. E, deste, modo, não podemos deixar de citar os

personagens do primeiro e grande romance de Rousseau, Nova Heloísa, que se atiram à

leitura com a mesma entrega que o autor dedicou à leitura dos romances que sua mãe lhe

deixara. Como se trata de um romance epistolar, a trama desenvolve-se através da troca de

cartas. A vida não pode ser dissociada da leitura nem o amor, da escrita de cartas amorosas.

Na verdade, os amantes ensinam um ao outro a ler, da mesma maneira como ensinam-se

mutuamente o amor.

Nos prefácios desta obra, ele discute a leitura e a maneira de ler seu romance. Uma

espécie de defesa pessoal da acusação de estar publicando um romance, tendo em vista que,

para a época, os romances eram vistos ainda como perigo moral, especialmente quando

abordavam o amor e seus leitores eram as jovens senhoras. No entanto, ali estava ele,

exibindo seu nome num obra que falava de um tutor que seduz sua aluna e, mais tarde,

reúne-se a seu marido, num verdadeiro menage à trois.

Segundo E. Cassirer,

Antes de Rousseau, a sensibilidade lírica original parecia quase completamente

esgotada na França; até mesmo o nome e a peculiaridade do gênero lírico

pareciam esquecidos pela estética francesa. (...), e se o verso adquire uma

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mobilidade e uma leveza jamais obtidas, esta leveza advém justamente do fato de

ele não estar mais sobrecarregado com um conteúdo verdadeiramente poético. Ele

se tornou um mero invólucro que se submete à idéia; serve como roupagem a

uma verdade filosófica ou moral; é um recurso cômodo para se atingir um

objetivo didático (...) surge, assim uma época na literatura francesa denominada

la poésie sans poésie. (CASSIRER, 1997, p. 82)

Esse problema existente na língua e na literatura francesas é quebrado somente por

Rousseau.

Escrito no momento em que rompia com Diderot e o grupo de filósofos, quando

gozava do reconhecimento por sua virtuosa moral sobre as artes e as ciências, Rousseau

alegou que Nova Heloísa não seria um romance, e sim uma coleção de cartas que ele estaria

apresentando na condição de editor, que reproduzia a comunicação de duas almas. Tratava -

se da escrita de gente estrangeira, muito humilde, que não interessaria, portanto, ao público

sofisticado da elite sócio-cultural. O leitor ideal deveria se despojar das convenções da

literatura bem como dos preconceitos da sociedade, o que evidentemente já representava

uma provocação política, pois deixava clara a sua insinuação de que a literatura era um

instrumento de que se havia utilizado o Antigo Regime. Para ele, a própria filosofia tornara-

se um modismo, sinônimo da sofisticação parisiense, então, buscou inventar uma nova

fórmula de fazer literatura, na qual pudesse defender a causa da virtude, apelando não para

o cidadão mas para o homem.

Rousseau tornou-se, portanto, o descobridor e o reanimador do mundo lírico. Foi a

reaparição desta força lírica que tanto impressionou e comoveu os contemporâneos de Nova

Heloísa. Eles não consideraram este romance uma obra da imaginação; sentiram-se

transportados do círculo da literatura para o centro de uma nova existência. O genebrino

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solitário despertou antes de todos para esta Vita Nuova a partir da relação imediata com a

natureza, e foi o primeiro a despertá-la nos outros.

A retórica de Rousseau abria portanto um novo canal de comunicação entre dois

seres solitários, o escritor e o leitor, e reformulava seus papéis. O autor seria o estrangeiro,

profeta da virtude, e o leitor seria qualquer um que pudesse entender a linguagem do

coração. Há aqui um paradoxo evidenciado: se por um lado ele revolucionava o estatuto da

ficção, por outro, deixava clara a exigência de ser lido como o profeta da verdade absoluta,

retomando, assim, a maneira de ler que parece ter prevalecido nos séculos XVI e XVII: ler

para absorver a palavra de Deus. Este tipo de leitura parecia exigir do leitor um ato de fé,

uma fé incondicional no autor, que relacionou toda a sua obra consigo mesmo, com seu eu,

iniciando uma nova concepção de autor, que atingiria seu auge em Confissões. O

desvelamento de suas falhas morais, a partir da experiência da memória contada, enfatizava

sua honestidade, e criava um autor ideal, que falava do fundo do coração, uma espécie de

semideus. A partir daí, abria-se o caminho para a época da sensibilidade, e para o

Romantismo alemão e francês.

Esta busca desesperada pela verdade do ser, pelo conhecimento de si mesmo e pelo

reconhecimento dos outros perpassou toda a obra de Rousseau e some nte através do apelo à

linguagem pôde tomar corpo o seu projeto de dissolver os obstáculos do mundo exterior; a

linguagem será portanto a “potência mágica” que poderá transpor a distância que não

consegue atravessar por meio da ação. Se uma das principais características da

modernidade é justamente a dessacralização da arte e do artista, é interessante notar o

caráter “democrático” das Confissões de Rousseau.

Como assinalou Costa Lima, em Sociedade e discurso ficcional, nesta obra “todos

os homens são igua is”. Não devemos lê- la tomando-o como um sujeito autoritário, mas

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como alguém que queria apenas ser compreendido. Porém, o próprio Rousseau, muito cedo

em seu relato das Confissões, perceberá que não basta ser “transparente” para ser bem

compreendido, e esta tentativa será realmente frustrada, restando a ele apenas o imaginário,

o devaneio, o recolhimento em sua intimidade, o entreter-se consigo mesmo, que consistirá

na consciência de sua própria solidão.

Segundo a análise do rousseauísta Starobinski, esse recuo para o imaginário e para a

intimidade do eu solitário traz em si “algo de ambíguo”.

De um lado, para Rousseau, é um retorno à independência total, à suficiência

perfeita do sentimento imediato. Mas, objetivamente, para nós, há aí um rodeio

com a finalidade de captar os olhares por meios que a presença física, por si só,

não possuía. Fazendo apelo à linguagem, a alma única de Jean-Jacques recorre à

mediação universal para melhor se manifestar em sua singularidade e em sua

hostilidade com o resto do mundo (...) tornar-se atraente sem se desprender de si

mesmo (...) Obter a atenção, a simpatia, a paixão dos outros, mas sem fazer nada

que não se abandonar à sedução de seus caros devaneios. Assim, ele será um

sedutor seduzido. (STAROBINSKY, 1991, p. 181)

A perseguição que enfrentará por parte da sociedade é para Rousseau o próprio

aprisionamento, mas percebe-se aqui um jogo duplo: ao expor o seu eu aos olhos dos

outros, fica claro o seu desejo de incitar um determinado tratamento, mas provoca essa

resposta como se não houvesse feito nada para tal comportamento, fingirá por vezes

surpreender-se. Para tal exposição do eu se utilizará de recursos de estilística (como a

presença repetitiva do adjetivo só), que darão o tom de súplica, enfatizarão seu

desapontamento com o mundo e tentarão explicar seu afastamento. Quisera ser apenas ele

mesmo, a sua vida interior. Sua solidão é seu refúgio, mas também é o modo de eximir-se

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dos meios pelos quais é preciso passar para ir ao encontro dos outros. Ele espera fazer-se

amar sem fazer outra coisa senão ser ele mesmo.

Na verdade, Rousseau não quer assumir os riscos e as dificuldades que se interpõem

na comunicação direta com o próximo, perde assim a “verdade” de seu contato com o

outro, encerrado que está no abrigo inviolável de sua própria consciência. Por não ter

encarnado os “fantasmas” da ação mediadora, por não ter tido a vontade de se engajar

diretamente no universo do embate com o outro, define-se como escritor, como primeiro

romântico, pois não teve que transpor o caminho tortuoso que leva aos corações, não se

preocupou em estabelecer laços reais com ninguém, perdendo pois, a capacidade de viver a

"pureza de um sentimento" imediato.

Starobinski afirma que graças a esse despojamento, contudo, Rousseau escapa a

todo domínio, e torna-se invulnerável.

No momento em que o despojamento é consumado, no momento em que ‘de pior

nada mais é possível’, Rousseau recebe a revelação de uma liberdade que nada

pode destruir. A consciência permanece intacta, e provida de uma liberdade que

nada pode destruir. A perda de tudo transforma -se em posse absoluta, pois o

extremismo da adversidade põe em evidência esta parte do ser que jamais lhe será

tirada. (STAROBINSKY, 1991.)

Nesse sentido, pode-se dizer que sua própria alma é a única coisa que os homens

não podem dele levar.

Mas é em Os devaneios do caminhante solitário que esta tal liberdade, objetivo

maior do escritor romântico, assume sua mais fiel representatividade. Nesta obra, publicada

em 1782 como continuação de Confissões, só que orientada para uma nova ótica, ele

inovará tanto na forma como no conteúdo, desde a primeira frase: “Eis-me, portanto,

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sozinho na terra...”(ROUSSEAU, 1986, p. 23), que constitui o cerne deste texto. Nesta

obra, dividida em dez Devaneios, a solidão, aqui entendida como liberdade do ser, está

expressa na busca de si mesmo, e especialmente da felicidade, a necessidade de amar e ser

amado, mas tudo resumido na tranqüilidade de se saber bastar-se a si mesmo. Este eu não é,

portanto, totalmente solitário, já que conta com a presença de Deus e seguirá neste eterno

caminhar para dentro de si que culminará com o retorno ao seio da mãe que nem mesmo

conheceu, evidenciado no décimo e último devaneio.

Segundo Jean Starobinski (1991), nesta obra o eu é sempre protagonista, e é para ele

que escreve, pois a palavra aqui não está mais voltada para o exterior e sim para a

indagação de seu próprio destino. No entanto, diante da incansável busca de si mesmo,

nesta necessidade de isolamento, ele se deparará com os outros, e com o não-eu, seu

alterego, que só pode se concretizar no Absoluto, no qual o eu encontra sua plenitude,

dirigido apenas pela força de sua intuição.

Ciente de que sua fala é incompleta, mal- interpretada pelos ouvintes, Rousseau

escreve suas Confissões, que serão lidas por Jacques Derrida, que a partir delas explicita

uma teoria do suplemento, revendo as relações da escrita como complemento da fala. Esta

realidade interior desconhecida da sociedade é então partilhada pela escrita que

suplementará os signos enganadores da fala. Ele precisa de signos porque as coisas elas

próprias não se bastam. Do mesmo modo, alguns objetos se interpõem entre os personagens

funcionando como suplementos ou substitutos de sua presença. Se ao escritor parece restar,

ainda nesta fase, a esperança, através da escrita como artifício de suplemento, já nos

Devaneios, logo na primeira caminhada, datada de 1776, esta remota esperança nas

gerações posteriores, se dissipa por completo, como podemos evidenciar na passagem a

seguir:

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Poucos dias se passaram e novas reflexões me confirmaram como estava

errado em contar com a volta do público, mesmo numa outra época, visto que ele

é conduzido, no que me diz respeito, por guias que se renovam continuamente

nas corporações de que me têm aversão. Os indivíduos morrem, mas os corpos

coletivos não morrem. (ROUSSEAU, 1986, p. 25)

A partir de então ele resigna-se e passa a não mais temer, a nem mesmo esperar a

reação dos homens, e, assim, sente-se impassível a ponto de equiparar-se a Deus. Pretende

ocupar-se apenas consigo mesmo. Então, fixará pela escrita as felicidades que extraiu da

vida em solidão junto à natureza, para que, no futuro, próximo à velhice, ela faça com que

ele reviva o sentimento agradável de escrevê-las. Fazendo renascer o tempo passado,

ampliando portanto o tempo de sua existência, ressurgiria, pois, o outro (que já foi um dia)

em si mesmo.

O hábito de projetar-se para dentro de si mesmo atenuou aos poucos a sensação das

lembranças amargas, constituindo portanto um excelente recurso para a evasão da dor.

Esse recurso do qual me lembrei demasiadamente tarde, se tornou tão fecundo

que em breve bastou para me compensar de tudo. O hábito de entrar em mim

mesmo me fez perder enfim o sentimento e quase a lembrança de meus males;

aprendi assim, por minha própria experiência, que a fonte da verdadeira

felicidade está em nós e que não depende dos homens tornar verdadeiramente

infeliz aquele que sabe ser feliz. (ROUSSEAU, 1986, p. 31)

Esse sentir-se bem com a solidão, essa felicidade de estar em companhia da

natureza, como refúgio da intemporalidade, típica do escritor romântico, inaugura em

Rousseau um traço que perduraria em autores da modernidade.

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Nessa perspectiva é que estabelecemos a diferenciação do tema da solidão em

Rousseau, como recurso na busca da essência do ser, como algo positivo, e no conto de

Lygia Fagundes Telles, uma solidão que se reverte por completo em negatividade.

O desafio solitário de Rousseau demonstra de maneira bem clara a referência à

solidão como escapismo. Na sua observação da vida, Rousseau concluiu que as paixões, a

escassez dos momentos prazerosos e a agitação dos objetos que estão ao redor do homem

não lhe permitem reconhecer este “sentimento da existência”, estado de verdadeira

felicidade, no qual não necessitamos de nada exterior a nós mesmos, e nem mesmo o tempo

é capaz de interferir, neste momento, afirma ele, “bastamo-nos a nós mesmos como Deus”.

Como podemos ver na passagem destacada a seguir:

O sentimento da existência, despojado de qualquer outro apego é por si mesmo

um sentimento precioso de contentamento e de paz, que sozinho bastaria para

tornar esta existência cara e doce a quem soubesse afastar de si todas as

impressões sensuais e terrenas que vêm continuamente nos afastar dela e

perturbar, na terra, sua suavidade. (ROUSSEAU, 1986, p. 77.)

Esta subjetividade que se pretende independente, que foi expurgada da sociedade

como uma doença contagiosa, encontra nesta solidão, na aversão pela vida ativa, as

compensações que o destino dos homens não lhe poderia trazer. Somente através da

experiência solitária, da descida ao inferno da própria intimidade, livre de todas as paixões

terrenas que a vida social proporciona, o sujeito é capaz de ver-se e de lançar-se nesta busca

pela virtude. Na impossibilidade de ser Deus, recusa tudo o que é prejudicial a esse espírito.

Fugir da sociedade é uma saída para a virtude, pois é preferível fugir a odiar a humanidade.

A partir desta reflexão, relatada na sétima caminhada de Os devaneios, Rousseau

reconhece-se portanto como um inadaptado, incapaz de viver entre os homens:

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Então, para não os odiar, foi necessário fugir-lhes; então, refugiando-me na mãe

comum, procurei em seus braços subtrair-me aos ataques de seus filhos, tornei-

me solitário, ou como dizem misântropo, porque a mais selvagem solidão me

parece preferível à companhia dos maus, que somente se alimentam de traições e

ódio. (ROUSSEAU, 1986, p. 96.)

A predileção pela botânica para objeto de estudo e deleite parece estar associada ao

movimento cíclico da origem, uma vez que faz com que Rousseau retome o tempo da

transparência, a sua infância, que nada mais é que o tempo da felicidade e da comunicação

verdadeira e livre, e na renovação da memória é possível ser feliz de novo.

Para Rousseau, a sinceridade deveria ser o axioma, a premissa universal. Ele queria

dar ao coração a mesma importância que Descartes deu ao cogito. Como assinalou Costa

Lima,

A Rousseau ainda não ocorre que a vontade de ser sincero pode ser motivada por

algo a ela anterior; que a vontade de destruir todas as máscaras pode alimentar

outra máscara. Em suma, que não há um ponto estável, primário, irredutível que

possamos conquistar e converter em palavras. (...) Não há dúvida que em

Rousseau encontramos o indivíduo que somos. A impossibilidade de Jean-

Jacques tornar-se a transparência que desejou ser é o destino comum do indivíduo

moderno. (LIMA, 1986, 295)

Se partimos para o conto de Lygia Fagundes Telles, especialmente para os que

consideramos mais representativos da solidão, “A ceia”, “A chave”, “As pérolas”, “O moço

do Saxofone”, “Que se chama solidão” e “Pomba Enamorada ou uma história de amor”,

vemos que a mesma solidão que é capaz de desvelar a subjetividade é aquela que aponta

para o caos, para a decadência do ser. Na obra de Lygia, o sujeito é quase que arrastado

numa série de desencontros que irão empurrá- lo para o inevitável abismo da morte.

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Segundo Ângela Maria Dias, em ensaio sobre a irônica melancolia do tempo na

obra de Lygia,

a obsessiva insistência no tema da fugacidade corrosiva e predatória do tempo,

bem como na implausividade dos caminhos da vida, de um lado, tornam a

rememoração uma espécie de saída obrigatória para desobstrução da perplexidade

e do espanto, de outro, esterilizam-na como possibilidade de renovação. Assim,

não existe a possibilidade de enriquecimento existencial ou da sabedoria trazidos

pela memória da experiência, já que, ao contrário de ser encarada como a

aventura solidária entre o homem e a sua circunstância, ela será exercida pela

ironia do narrador enquanto recuperação distanciada de um enredo como busca

degradada. (DIAS, 1990, p. 22)

De fato, no universo ficcional de Lygia, o sentimento da passagem do tempo é algo

degradante. Nessa perspectiva, a narrativa reminiscente funcionará como o revide do

sujeito ante o inevitável apagamento de sua existência. Como “pão a se dissolver na água”

(TELLES, 1982, p. 49), à subjetividade só resta este refúgio: o sentimento interior, e a

liberdade de escrever.

Se o êxito do relato autobiográfico está justamente na diafaneidade do narrado, no

grau de autenticidade do discurso, que linguagem seria tão fiel a ponto de transmitir o sabor

incomparável da experiência pessoal? Rousseau resolveu isso assim: “Terei sempre o estilo

que me vier”, isto é, sua fórmula deixava implícita uma vontade de ceder à iniciativa da

linguagem, sua obra se faria como fosse possível, e nisso residiu sua verdade: a linguagem

era a própria emoção expressa, em vez de meio ou ferramenta, para revelação de uma

realidade oculta; ela era o próprio segredo revelado. Ainda que a memória de evocação seja

falível, a cadeia dos sentimentos poderá reconstruir os fatos materiais esquecidos. O que

importa, de fato, não é a verdade histórica, mas a emoção de uma consciência deixando o

passado emergir e representar-se nela. Saímos do domínio da verdade e passamos então à

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ordem da autenticidade. Segundo esta “lei da autenticidade”, a palavra não precisa

reproduzir uma realidade prévia, mas produzir uma verdade. Notar-se-á, pois, uma nova

concepção de linguagem, que permaneceria até o surrealismo.

De modo análogo, este reviver (ou refazer-se) pela memória afetiva se faz notar na

obra de Lygia, principalmente pelo fluxo da consciência. Presente, passado, reminiscências,

falas e ações podem aí misturar-se numa sintaxe descontínua, como num jorro de

pensamento, em livre expressão, que nos remetem irremediavelmente à escrita de Clarice

Lispector, amiga e contemporânea da autora.

Na ficção moderna de Lygia, vemos que essa mesma busca de Rousseau (pela

verdade do ser) é conduzida tão magistralmente que é capaz de revestir o signo lingüístico

de uma densidade que nos faz duvidar dos limites da representação. O mundo criado

simbolicamente passa a competir, portanto, com o real, e faz com que o protagonista se

enrede nas teias da linguagem, “esse terceiro elemento que se interpõe entre o sujeito e o

mundo, e que, ao mesmo tempo em que o afasta da experiência concreta da vida, é sua

única possibilidade de relação com o outro” (RÉGIS, 1998, p. 85). Assim, podemos dizer

que a autora logra o projeto máximo da literatura: a transgressão dos limites da palavra.

Em entrevista à revista Psicologia, a autora diz-nos:

Eu nunca sei o que é deste ou do outro mundo. Nós o tempo todo fazemos ficção

em cima da realidade e realidade em cima da ficção. O real e o fictício estão tão

misturados. É como a pele que aderiu à noz. Você tira a noz da casca e aquela

pele está tão aderida à semente que você não consegue separar mais. Assim eu

vejo a ficção e a realidade. Há ficções em que há verdades tão acreditadas, tão

aceitas, tão impregnadas de verdade que viram verdades. (...) você não consegue

mais descolar a pele do que é verdade e do que é fantasia.

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3 - Escrita de solidão e melancolia: o conto de Lygia Fagundes Telles

Um ensaio de José Paulo Paes sobre a autora considera o “desencontro” a tônica de

toda a obra de Lygia. Concordamos com o autor, mas ousaríamos dizer mais. A principal

causa da solidão trágica dos personagens lygianos parece estar na incomunicabilidade. O

desencontro supõe não só uma frustração, mas um adiamento. Se há desencontro, é porque

houve uma falta (ou falha) de comunicação prévia, nem que seja no plano espiritual, ou

premonitório, e isso não ocorre apenas quando as personagens se perdem umas das outras,

mas principalmente no defrontamento. Até para adiar um encontro é preciso haver

comunicação; e na ficção curta de LFT não há. Na brevidade do conto não há espaço para

esse adiamento da comunicação (e para a esperança nele intrínseca). Na verdade, na

maioria dos contos de Lygia, a comunicação é imperfeita, quando não impossível. O que

vemos é sempre uma voz embargada, gemidos surdos na lona de um caminhão, frases

interrompidas, reticências, sussurros, balbucios, ou um instrumento musical que vem

emprestar voz àqueles que não conseguem dizer nada. Resta, portanto, um “falar para si”.

Há nos contos de Lygia Fagundes Telles uma espécie de fadiga do dizer a verdade,

uma certeza da inutilidade de explicação do mundo. Essa explicação só pode se dar,

portanto, na consciência do próprio personagem; na intensidade do seu solipsismo. Daí a

utilização do stream of consciousness, técnica que registra pela linguagem o fluxo contínuo

da consciência, “empurrando” a narrativa para fora do tempo linear. Assim, em muitos

contos vemos que não há diálogos, só pensamento. É como se o adensamento do sujeito nas

situações de solidão tirasse-lhe toda a capacidade de dicção, como veremos nas análises do

capítulo a seguir.

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Essa falta de contato com o mundo ao redor é a marca da solidão trágica de Lygia

Fagundes Telles. Não deixa de haver alguma ressonância beckettiana nesse jogo de troca de

palavras que já não comunicam, apenas conformam um mundo que perdeu por completo a

sua substância. Em Beckett, e noutros autores do teatro do absurdo, muitas vezes, os

personagens falam por falar, somente para se conservar vivos, existindo, como em Molloy:

“Fiquei enfim a refletir, isto é, a escutar com mais intensidade.” (Beckett, 1988). A

linguagem é, portanto, o fio tênue que mantêm os personagens presos ao mundo.

Neste sentido, o silêncio experimentado por Rousseau ao término de Confissões

parece ressoar na narrativa de Lygia. Depois desta obra, a ele restou o silêncio. Não mais o

silêncio de cumplicidade, através do qual as almas sensíveis se comunicavam em Nova

Heloísa, mas o silêncio de seus leitores, o silêncio-obstáculo; o silêncio que viria a

encarcerá- lo para sempre em sua irremediável solidão.

Se na obra de Rousseau a linguagem assume esse caráter revelador, de alcance

ontológico, enquanto constituinte do ser, na ficção curta de Lygia Fagundes Telles a

linguagem acaba sendo uma barreira à comunicação. Nos poucos diálogos, vemos que as

palavras são ilusórias, elas estão quase sempre na contramão dos desejos das personagens.

Na busca de si mesmos, a fala dos personagens em nada contribui; ao contrário, torna-se

verdadeiro obstáculo, é capaz de apartá-los do mundo, condenando-os ao monólogo

interior, quiçá ao silêncio. À diferença do escapismo romântico de Rousseau, ao nosso ver,

na obra de Lygia, a linguagem é uma perfeita sala de espelhos.

O espelho – speculu – tem uma latência simbólica que pode nos ajudar a avançar

bastante na análise da obra de Lygia. É o objeto que o homem põe diante de si para ver

refletida nesta superfície sua própria imagem, ou seja, é conhecimento, exame,

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consideração, especulação meticulosa da ação do tempo no orgânico, enfim, é

autoconhecimento.

Todos os objetos e seres no universo ficcional de Lygia são formas de

autoconhecimento, como se houvesse uma consciência sempre em extrema vigília, mas que

não garante qualquer redenção. O espelho polido pela contínua ação do tempo apenas

constata, revela.

É preciso observar que, se o misticismo e a religiosidade operassem numa ordem

espiritual sem abalos, se não se tratasse de uma metafísica em ruínas, o espelho, numa ótica

neoplatônica, poderia refletir na alma a beleza do mundo, e, assim seria capaz de

transformá- lo positivamente. Não é o caso.

Não por acaso, na maioria dos contos de Lygia, assim como na obra de Rousseau, as

histórias são narradas quase sempre em primeira pessoa. A autora se deixa invadir pelas

personagens, empresta sua voz a elas, e muitas vezes sem a mediação de um narrador.

Os personagens de Lygia conviverão quase o tempo todo com essa

incomunicabilidade, ou com sua voz interior. É como se falassem para abafar o ruído do

mundo, para restringir-se ao próprio eco. Tudo o que é dito tem um quê de exaustão, de

esgotamento anunciado de antemão. Os monólogos, na obra de Lygia, não seguem uma

ordem lógica, e podem carregar uma tonelada de fatos, um atrás do outro, mesmo que não

tenham nenhuma relação entre si. É assim que lemos em “Apenas um Saxofone”:

“[...] Sou mulher, logo só posso dizer palavrão em língua estrangeira, se possível,

fazendo parte de um poema. Então as pessoas em redor poderão ver como sou

autêntica e ao mesmo tempo erudita. Uma puta erudita, tão erudita que se

quisesse poderia dizer as piores bandalheiras em grego antigo. E a lesma ficaria

irreconhecível, como convém a uma lesma numa corola de quarenta e quatro

anos. Quarenta e quatro anos e cinco meses, meu Jesus. Foi rápido, não? Rápido.

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Mais seis anos e terei meio século, tenho pensado muito nisso e sinto o próprio

frio secular que vem do assoalho e se infiltra no tapete. Meu tapete é persa, todos

os meus tapetes são persas...” (TELLES, 2004, p. 129)

A lógica desta personagem é capaz de misturar na mesma fala teorias sobre a

mulher e o palavrão, o medo da velhice e referências ao móveis da sala, é uma lógica

interna, própria.

(...) u ma lógica que não presta contas à causalidade. O que as

personagens dizem não corresponde a uma forma convencional de ver o mundo,

mas a uma forma pela qual elas se relacionam com a realidade, dela extraindo

elementos segundo a importância que eles têm para si; e depois, organizando-os

de acordo com o estado psicológico de cada momento. (MONTEIRO, 1980, p.

105).

Mesmo quando há diálogos ou ações bem objetivas, algo na narrativa de Lygia

provoca no leitor a sensação de que todas as falas e ações dos personagens não passam do

simulacro de um constante monólogo interior, já que, diante da impermeabilidade ao outro,

a experiência, uma vez vivida, logo se interioriza. Não há conciliação ou adaptação

possível. Todo contato gera um irremediável distanciamento – é nesse distanciamento que o

pensamento se torna cada vez mais sutil, mas essa agudeza do pensamento não é capaz de

criar um universo harmônico.

Vale notar aqui a distância do papel da linguagem entre Rousseau e Lygia. Nele, a

linguagem ao menos idealmente aproxima autor e leitor, num pacto autobiográfico. Nela, o

leitor é chamado a compartilhar da deriva interior dos personagens, mas isso não garante

qualquer ganho de autenticidade, transparência e verdade.

A dissonância é latente na obra de Lygia Fagundes Telles, de modo que o efeito de

realidade precisa ser suficientemente intenso para provocar a sensação de deslocamento, de

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insegurança ou permanente tensão. A linguagem na obra de Lygia não tem outra

possibilidade senão voltar-se contra si mesma, apontando o seu próprio fracasso diante

daquilo que permite ser nomeado, daquilo que só indiretamente pode ser referido. E,

encerrando-se no indizível ou inominável, remete-nos mais uma vez aos monólogos de

Samuel Beckett, provocando no leitor uma sensação de náusea e desamparo. Ele se

descobre tão solitário quanto o personagem, sem consciência plena da trama, sem a

clarividência do narrador onisciente. Não é outro o efeito desconcertante dos contos de

Lygia Fagundes Telles.

Na solidão, o sujeito ganha uma consciência mais aguda do “estar-no-mundo”. O

sofrimento implica sempre num impulso de auto-descoberta, num desejo de auto-

conhecimento. O sujeito desperta de uma experimentação mecânica do mundo para uma

experiência vivida (Erlebnis). Trata-se do Leitmotiv dos relatos autobiográficos, dos

romances de formação. É o que podemos notar noutra passagem do conto supracitado:

(...) eu era jovem e não pensava nisso como não pensava em respirar. Alguém por

acaso fica atento ao ato de respirar? Fica, sim, mas quando a respiração se

esculhamba. Então dá aquela tristeza, puxa, eu respirava tão bem... (TELLES,

2004, p. 134)

Segundo a pesquisadora Nelly Novaes Coelho,

(...) as personagens de Lygia Fagundes Telles já nascem condenadas à solidão;

esta não surge condicionada por uma falha no relacionamento entre os homens,

mas é parte constitutiva do ser humano. É, portanto, ontológica e não

sociológica”. (COELHO, 1971, p.148)

Esta auto-descoberta emerge da condição antropocêntrica do homem moderno, que

o fará desprezar todo conhecimento transcendente para encerrar-se em si mesmo. Para este

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homem que chamamos moderno, indagar-se e indagar o mundo em que vive será tão

fundamental quanto respirar. A descoberta do tempo compreenderá, concomitantemente,

um avanço e uma tragédia: se, por um lado, é a descoberta de sua individualidade, de sua

autonomia, por outro, é a trágica conscientização de sua finitude, de um Eu menor que o

mundo, de que basta estar vivo para começar a morrer. Estar no tempo é estar sujeito ao

próprio desaparecimento, à sua própria destruição. Não pagar tributos a uma transcendência

significa construir seu próprio mundo, viver na imanência, no “aqui e agora”, isto é,

nenhum adiamento é possível. Daí o desejo desarvorado de apreensão do instante, de

comunicação, de felicidade.

No entanto, esse autoconhecimento passa necessariamente pelo conhecimento do

mundo, e não há como fazê- lo senão pela palavra, pelo Logos, pelo discurso. “Logo”

significa ‘palavra’, ‘tratado’, ‘estudo’, ‘ciência’; ‘faculdade de raciocinar’, ‘razão’,

‘inteligência’, ‘entendimento’. E, ao mesmo tempo, significa ‘lugar’, ‘morada’. Assim, a

escrita da interioridade pode ser vista como a grande saída, o verdadeiro lugar (morada) do

homem moderno, uma forma de agarrar-se ao mundo, ainda que seja pela pala vra escrita.

O corpus analisado no capítulo a seguir é particularmente ilustrativo deste “falar

para si”, desta conscientização da solidão do indivíduo de hoje. Solidão moderna, como

assinalou Silviano Santiago em Poesia Completa (CDA, 2001), e não mais romântica.

Nossa intenção nas análises do capítulo a seguir é também demonstrar o que

consideramos “avançado” no tratamento da solidão no conto de Lygia, isto é, o quão a

autora aponta para a pós-modernidade, na medida em que na sua efabulação labiríntica não

há saídas nem utopias entrevistas nas situações de solidão em que estão submetidas as

personagens.

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4 – Análise dos contos:

4.1 - “A ceia”

No primeiro conto em questão, “A ceia”, a inexorabilidade do tempo irá maltratar e

aos poucos empurrar a personagem Alice à inevitável solidão, imposta pelo desgaste da

relação amorosa e pela metamorfose física do envelhecimento. Desde os primeiros

instantes, a narrativa desprende um sabor de saudosismo, de despedida, e denuncia o fim da

ilusão da protagonista.

A protagonista Alice encontra-se com Eduardo num bar pela última vez. É o

prenúncio da solidão, pois trata-se de uma despedida. Seu amado vai casar-se com uma

mulher muito mais jovem. A diferença de idade entre as duas dá a Alice de maneira brutal a

dimensão de seu desgaste e faz com que ela utilize todos os meios possíveis para minimizar

as marcas de sua idade neste encontro, diante da desesperadora fraqueza que o fantasma da

solidão incita no sujeito. Mal chegam ao bar, ela já providencia uma forma de mascarar a

idade:

Sentaram-se numa mesa próxima ao muro e que parecia a menos favorecida pela

iluminação. Ela tirou o estojo da bolsa e retocou rapidamente os lábios. Em

seguida, com gesto tranqüilo mas firme, estendeu a mão até o abajur e apagou-o.

– As estrelas ficam maiores no escuro. (TELLES, 1999, p. 111.)

Nesta passagem, ainda que de modo sutil, notamos uma certa ambivalência. Se, por

um lado, é a constatação da cruel ação corrosiva do tempo, da pequenez e finitude do ser

humano diante da vida e do firmamento; por outro, “as estrelas brilham mais no escuro”.

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Quer dizer, ainda que estes seres abandonados à sua própria sorte no mundo defrontem-se

com a escuridão, aqui entendida como a própria solidão do sujeito rejeitado, ainda assim é

capaz de acenar para alguma clarividência. Esta mesma solidão que dilacera o ser traz em si

algo de positivo, uma vez que pode convergir num autoconhecimento, na redescoberta de si

mesmo.

Mesmo assim, tudo na construção do ambiente parece contribuir para resvalar a

decadência: a fotofobia da personagem, a desviar-se da luz do abajur e da chama do

isqueiro - reveladora do avanço da idade -, uma folha seca que cai da árvore sobre a mesa

onde se estabeleceu o casal; por entre as pedras, um tufo de samambaia crescendo no mato

rasteiro; a nostalgia de uma música velha, na voz fanhosa de uma cantora que não se ouvia

desde a infância; a mancha na toalha da mesa do bar, e, ainda, um peixe de pedra

funcionando como fonte extinta com a boca escancarada, onde a água há muito secara,

como marcas indeléveis da representação da decadência e da solidão em que fatalmente

mergulhará a personagem da ficção.

Se seguimos com o exame das marcas estilísticas presentes no conto, verificamos

que, apesar da decadência do local, a atmosfera criada é altamente mística.

A certa altura do encontro, Alice comenta arrependida que, no último encontro deles

– quando provavelmente recebera a notícia do rompimento –, fizera uma grande cena na

qual quebrara um copo na mão: “aquela coisa assim dramática do vinho ir escorrendo

misturado com o sangue...”(p.113). Este comentário vem compor a atmosfera mística da

narrativa na medida em que nos remete inevitavelmente à imagem da transubstanciação do

vinho no Sangue de Cristo, isto é, ao milagre operado por Jesus Cristo em sua Última Ceia,

na qual converteu o pão e o vinho no seu Corpo e no seu Sangue.

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Mais adiante, nova referência mística estabelecida pela própria protagonista na

analogia que faz entre sua situação e a Última Ceia de Jesus, e a traição que este sofrera: “–

Quem diria, hem? Nossa última ceia. Não falta nem o pão e o vinho. Depois, você me

beijará na face esquerda.” (IDEM, p. 118).

Além disso, se observamos o espaço onde se desenvolve a narrativa, vemos que as

mesas do restaurante “modesto e pouco freqüentado” (p.111) estão dispostas num “jardim

decadente” (p.118). Quando pensamos em jardim, imaginamos uma área limitada, de

vegetação planejada e muito verde. Ao mesmo tempo, a imagem do jardim está imediata e

indissociavelmente ligada à idéia do paraíso, o Éden perdido – morada do primeiro homem

e nostalgia de toda a sua descendência. No Cântico dos Cânticos da Bíblia, assim como na

tradição muçulmana e na interpretação de Freud, o jardim é sempre o espaço privilegiado

do amor, seja ele natureza ou corpo de mulher.

Na obra de Lygia, a insistência no tema do jardim e na cor verde é tão marcante que

é considerada estilisticamente um dos caracterizadores do seu texto. Para a pesquisadora

Vera Tietzmann Silva, o jardim na obra de Lygia Fagundes Telles representa

(...) o lugar de regresso: a um tempo passado, a um estado de paz, à inocência

perdida. É ao mesmo tempo o Éden e o ventre materno, a selva e o aprisco, é o

lugar de revelação. (SILVA, 1985, P.126).

O verde, esta cor altamente simbólica e ambígüa, transita profusamente na obra de

Lygia, por cenários, personagens e objetos. Este verde, que em muitos outros contos pode

ser a juventude, a esperança, o frescor, a crença, e também a metamorfose, no conto em

questão, não se revela vivo, intenso, esperançoso, mas embaçado, sombrio, sem vida.

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Neste verde, folhas mortas ou secas caem sobre a mesa. “Nem água, nem flores,

nem gente.” (ibid, p. 119). Aqui, o jardim não só se apresenta como um espaço descuidado,

mas também transmite a dimensão do abandono de Alice:

Deram alguns passos contornando as mesas vazias. No meio do jardim decadente,

a fonte extinta. O peixe de pedra tinha a boca aberta, mas há muito a água secara,

deixando escancarado o rastro negro da sua passagem. Por entre as pedras, tufos

de sama mbaia enredados no mato rasteiro. (ibid, p. 118)

Aqui é necessário fazer um breve paralelo com outro magnífico conto da autora,

“Anão de Jardim”. Afinal, também é no jardim que habita a figura do anão, imagem do

obscuro, do grotesco, elo ou ponte com o outro mundo.

Neste conto, a presença de um anão filosofante e sarcástico no jardim rompe toda a

conotação bucólica deste espaço e simboliza a passagem para o subterrâneo, a transição do

jardim à gruta, onde o riso é somente da ordem da bufonaria, e todo o resto se revela

sombra e dissimulação. Que este anão habite o jardim, pensando poeticamente o espaço,

não é um mero acaso, pois, ainda que o jardim em alguns momentos represente, como

comentamos, a paz e a inocência, ele é, sobretudo, “o lugar de revelação”, como bem

assinalou a pesquisadora Vera Tiezmann. Tanto em “Anão de Jardim” quanto em “A ceia”,

o jardim será o palco das grandes descobertas.

Neste conto de fora do corpus analisado, que visitamos para ajudar a pensar a

questão do jardim, o anão é sobretudo aquele que tudo sabe, que vê através das máscaras.

Pela intelecção do anão de jardim nos é desvelada a farsa, a hipocrisia de uma família. Já

em “A ceia”, a consciência da transformação do amor em solidão no espaço do jardim

conduzirá à descoberta de uma nova realidade, sem o amado, porém possível, sob um céu

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estrelado, onde as estrelas parecem maiores, o que nos faz vislumbrar um sinal de

esperança na vida.

Estes seres miniaturizados, como pequenos demônios do imaginário medieval,

“enroscam-se nas pernas das personagens” e tanto podem habitar espaços recônditos,

transitando por pequenas frestas, aparecendo e desaparecendo a cada instante, quanto

estabelecer-se num espaço privilegiado como o jardim, de onde tudo presenciam como

espectadores de um verdadeiro drama, ainda que inanimados.

O anão na obra de Lygia Fagundes Telles é, portanto, a mais completa visibilidade,

o minúsculo observador de toda a cena. Por vezes também o narrador onisciente – sempre

com uma nota amarga e sarcástica. O anão representa, assim, uma espécie de nível de

consciência mais profundo, que, de modo paradoxal, só pode ver mais com mais clareza

porque a matéria de seu ser é a loucura e a eterna solidão. Na desmedida, na falta de

proporção, na dissonância da natureza, vislumbra-se a interioridade sem abrigo ou disfarce.

Não é outro o sentido do grotesco no conto de Lygia. E seus símbolos se acham

aleatoriamente espalhados nos espaços que ela descreve como sinais, pequenas setas que

apontam para a teatralidade da vida dos personagens, para a encenação, em última

instância, circense, mas sem o riso inocente.

A ruína do cenário – denunciada pelo onisciente narrador e na própria fala de

Eduardo que destacamos a seguir – assemelha-se muito à própria devastação da

protagonista:

– Secou a fonte, secaram as flores, imagino como devia ter flores neste jardim e

como essa casa devia estar sempre cheia de gente, uma família imensa, crianças,

velhos, cachorros. Desapareceram todos. Ficou a casa... (ibid, p. 119)

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Lygia simboliza em Alice a velha casa abandonada, a céu aberto, desprotegida,

cheia de espaços vazios, sintomas de ausências. Ela se transforma neste lugar feio, para

encontros rápidos, sem importância, nesta “não-casa”; esta concha que foi deixada, no

sentido bachelariano do termo.

Segundo Gastón Bachelard (1989), a casa é nosso “primeiro canto no mundo”,

nosso primeiro universo, espaço que acolhe, primeiro berço em que é colocado o homem

depois de ser “jogado no mundo”. Para o filósofo, encontrar a “concha inicial” em toda

moradia é a grande tarefa do fenomenólogo. A metodologia fenomenológica do pensador

ensina e sugere a valorização da imagem poética das coisas, a serviço do bem-estar do

homem no mundo.

Em A Poética do Espaço, Bachelard desenvolve a idéia do abrigo, do refúgio e da

proteção acendendo todas as luzes fugidias do devaneio. Nesta obra, ele trabalha os

“espaços vividos” e os “espaços amados”, tais como: a casa, a cabana, a gaveta, o cofre, o

armário, o ninho, a concha, a miniatura e a imensidão interior.

Na imagem da casa, o autor reconhece a maior força de integração para o

pensamento, para a lembrança e para o sonho. Nesta integração, o princípio de ligação se dá

pelo devaneio. No devaneio, que é sonho, fantasia, imaginação, felicidade, bem-estar,

alegria, lembramo-nos destes aposentos e aprendemos a morar em nós mesmos.

Graças à casa, grande parte de nossas lembranças são guardadas. A casa é um

refúgio e também um arquivo. Dentro da casa há ainda o porão, o sótão, outros cantos da

casa. Eles também podem representar partes desse refúgio e dessa memória. Diz o autor:

Todo canto de uma casa, todo o ângulo de um quarto, todo o espaço reduzido

onde gostamos de encolher-nos, de recolher-nos em nós mesmos, é, para a

imaginação, uma solidão, ou seja, o germe de um quarto, o germe de uma casa.

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Dentro da casa tudo se diferencia, se multiplica. No mundo fora da casa, opera-

se uma diminuição do ser, uma espécie de embaralhamento dos caminhos. O

sonhador da casa sabe disso, e sente pela diminuição do ser exterior um aumento

da intensidade dos valores de intimidade. Bachelard comenta nesta obra que o

próprio Baudelaire, reconhecido citadino, já havia sentido numa tela de Lavieille

os “extratos da ventura de inverno” (BACHELARD, 2000, p. 57).

Nesta tela, onde aparece uma “choupana na orla de um bosque no inverno, a estação

triste”, o inverno parece ter sido evocado, como um reforço da felicidade de habitar. No

plano da imaginação, o inverno relembrado aumenta o valor de habitação da casa.

Baudelaire diz que o sonhador pede um inverno rude: “Pede (o sonhador) anualmente ao

céu tanta neve, granizo e geada quanto seja possível. É preciso que haja um inverno

canadense, um inverno russo. Seu ninho será mais quente, mais doce, mais amado...”

É interessante notar como tudo se ativa quando se acumulam as contradições. Esta

“ventura de inverno” baudelaireana será sintetizada pela máxima de Henri Bosco: “Quando

o abrigo é seguro, a tempestade é boa.”

Transformada nesta “não-casa”, sem teto nem paredes, neste descampado

decadente, Alice vai se desmantelando, despersonificando, à medida que metaforiza o

universo, o mundo exterior, em oposição à idéia de casa habitada e protegida. Nesta

dialética, Alice (universalizada) perde para a solidão e vai se tornando um não-eu. Sua

solidão é como a neve de Lavieille, aniquila o mundo exterior com extrema facilidade.

Neste processo de despersonalização, Alice vai aos poucos entrando em desespero,

porque nenhuma das armas que utiliza no encontro é capaz de reverter sua inevitável

condição de abandono:

– Você gosta do meu perfume, Eduardo? É novo.

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...

– Cortei o cabelo. Remoça, não?

– Não sei se remoça, Alice, só sei que te vai bem. (ibid, p. 112, 113)

Tampouco a atitude desesperada da mulher ao agarrá- lo, beijá- lo, afundando a cara

em seu peito, contruibuirá. Nenhum artifício mudará a direção deste homem. Na fala dele –

e no uso de uma expressão provavelmente extraída do repertório da nova mulher – vemos

que a solidão de Alice é irreversível: “(...) O que passou, passou. Disco na prateleira” 2.

(ib id, p. 115)

E, para o leitor, ao final do conto, mais uma evidência do envelhecimento de Alice

(a esta altura com a “máscara repisada”) se dá quando o garçom volta a se aproximar justo

no desenlace da cena: “– Também discuto às vezes com a minha velha, mas depois fico

chateado à beça. Mãe tem sempre razão – murmurou ajudando-a a levantar-se. (ibid, p.

122.)

2 Grifo nosso.

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4.2 - “A chave”

“A chave” vai contar a história de Tomás, um homem que troca sua mulher de

meia- idade por uma adolescente e vai trilhando sua trajetória rumo à solidão e à

decadência, à medida que a adolescente inocente transforma-se numa belíssima mulher da

sociedade, fútil e vazia, preocupada apenas em tratar de seu corpo para exibi- lo como

trunfo a qualquer platéia que lhe aparecesse.

...Uma exibicionista. Se soubesse a data da morte, doaria depressa o esqueleto à

Faculdade de Medicina, para continuar... (ibid, p. 70)

Jovem e cheia de energia, Magô passa a andar na contramão da vida de Tomás, que,

incapaz de acompanhar o seu ritmo, decide assumir sua idade, deixando-se ficar no

repouso, ciente de que mais dia menos dia, será contemplado com a infidelidade da mulher:

Descalça, seminua e radiosa com se estivesse debaixo do sol. Tanta energia meu

Deus. Havia nela energia em excesso, ai! A exuberância dos animais jovens,

cabelos demais, dentes demais, gestos demais, tudo em excesso. Eram agressivos

até quando respiravam. Podia quebrar uma perna. Mas não quebrava, naquela

idade os ossos deviam ser de aço. Bocejou. (ibid, p. 70)

Num primeiro momento do conto, o marido perde o interesse pela esposa ao

perceber o seu gradual desaparecimento:

Unhas e mãos de velha, incrível como as mãos envelheceram antes. Depois foram

os cabelos. Podia ter reagido. Não reagiu. Parecia mesmo satisfeita em se

entregar, pronto, agora vou ficar velha. E ficou. Gostava de jogar paciência, as

mãos muito brancas deslizando pelo baralho. A vitrola ligada, discos próprios dos

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programas da saudade. “Mas Francisca, que horror, esse samba é antiquíssimo,

você tem que ouvir coisas novas!” Ela sacudia a cabeça, “Não quero, deixa eu

com as minhas músicas, essas outras me atordoam demais!” Tardes de Lindóia.

Os jardins, os copinhos, “Esta fonte é excelente para reumatismo...” (ibid, p. 70,

71)

O espaço da narrativa é justamente o da recuperação da memória, e o enredo avança

à medida que Tomás vai ficando cada vez mais consciente do grande equívoco cometido. A

lembrança permanente da ex-mulher e das afinidades que possuíam vão contribuindo para o

afastamento de Tomás e Magô. No espaço da ação ele é apenas levado, e o abismo entre os

dois é a tal ponto acentuado que ele só pode ser ele mesmo na lembrança:

Abriu a boca para bocejar, as mãos em concha diante da boca, aquecendo-as com

o bafo. Dormiria uma noite inteira e a outra noite inteira e a outra ainda... Noites

e noites dormindo até morrer de dormir. Na vitrola, a musiquinha sem neurose. E

Francisca ao lado, entretida na sua paciência, ah, como amava aquele doce som

das cartas que murmurejavam sobre a mesa enquanto ela também murmurava

coisas que não exigiam resposta. (ibid , p. 74)

Pelo sonho, ou devaneio, regressará ao seu passado, devolvendo à primeira esposa a

chave da liberdade que ela teria lhe concedido dez anos antes. É o lugar da narrativa

fantástica. A solidão de Tomás tentará a todo custo dissolver-se no sonho, no delírio:

Ah, se eu pudesse voltar sem nenhuma palavra, sem nenhuma explicação. Ela

também não diria nada: era como se ele tivesse ido comprar cigarros. “Tudo bem,

Francisquinha?”- perguntaria ao vê-la franzir de leve as sobrancelhas. Ela se

inclinaria para o baralho: “Está me faltando uma carta...” (ibid , p.75)

No entanto, não se reconhece mais, encontra sua própria voz “pastosa”, irreal. Não

se encaixa nem no sonho nem na realidade, vive deslocado, fora de foco. Suas lembranças

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não dão conta da angústia de habitar esse não- lugar, e, assim, só é capaz de se encontrar na

solidão da memória.

Aqui observa-se mais uma vez certa ambigüidade na experiência da solidão, como

se houvesse uma face positiva na situação de solidão, uma melancólica aceitação deste

status, que, só na experiência da memória solitária pode trazer encontrar certo reconforto e

recobrar sua verdade interior.

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4.3 - As pérolas

No conto “As pérolas”, o outro personagem Tomás herdara da mãe “os olhos de ver

à distância”, capazes de adivinhar o futuro. Reconhecendo-se em avançado estágio de sua

doença, sabe que está prestes a morrer, mas, para não aborrecer a mulher, dissimula esta

sensação fazendo uso de um “sorriso postiço”, motivado pelo amor à esposa. Ele sabe, ou

pelo menos pressente, na linha tênue entre o devaneio e a vidência, aqui entendida como

suposta realidade, que, nesta noite, numa reunião social, sua mulher vai rever o cunhado

Roberto e que, desse encontro, nascerá uma paixão. O que nos faz indagar se tal capacidade

de antecipar as situações representa alento, poder, ou algo que agudiza a melancolia do

personagem.

Atormentado pela certeza do próprio fim, sente-se só e abandonado e desperta em si

os piores sentimentos de ciúmes e despeito. Para ele, restara apenas o dom da previsão,

herança materna, e se, por um lado, através dela, sabe o que vai se passar, podendo até

mesmo com isso mudar o rumo dos acontecimentos, por outro, aproxima-se cada vez mais

de sua morte, como podemos ver na belíssima imagem dos botões de gerânio:

Apertou os olhos que foram se reduzindo, concentrados no vaso de gerânios no

peitoril da janela. “Eles sabem que nem chegarei a ver este botão desabrochar”.

Estendeu a mão ávida em direção à planta, colheu furtivamente alguns botões.

Esmigalhou-os entre os dedos. (ibid, p.144.)

A iminência da morte transforma Tomás num ser ambivalente; frágil e poderoso ao

mesmo tempo. Frágil pela vitória da doença sobre a carne, e pela imaginação que a

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memória delirante provoca no ser; poderoso devido a seu dom de previsão, que lhe

conferirá a capacidade de mudar o rumo dos acontecimentos.

Diferentemente da narrativa de Rousseau, neste conto, a consciência da solidão que

a memória ou o delírio podem suscitar, é, para Tomás, algo que o orienta à dissimulação, à

opacidade, a fim de evitar a compaixão de sua mulher e não sucumbir.

A recomposição da cena do jantar pela memória é provocada pela escolha de

Lavínia por um vestido preto, reacendendo em Tomás a lembrança da última vez em que

estivera diante do “inimigo”, e esta imagem é tão nítida que era como se tivesse sido na

véspera, aquela noite há quase dez anos. Já quase derrotado pela doença, a memória do

passado é o fator que acelerará a sua ruína:

Dois dias antes do casamento. Lavínia estava assim mesmo, toda vestida de preto.

Como única jóia, trazia seu colar de pérolas, precisamente aquele que estava ali,

na caixa de cristal. Roberto fora o primeiro a chegar. Estava eufórico: “Que

elegância, Lavínia! Como lhe vai bem o preto, nunca te vi tão linda. Se eu fosse

você, faria o vestido de noiva preto. E estas pérolas? Presente do noivo?” Sim,

parecia satisfeitíssimo, mas no fundo do seu sorriso, sob a frivolidade dos

galanteios, lá no fundo, só ele, Tomás, adivinhava qualquer coisa de sombrio.

Não, não era ciúme nem propriamente mágoa, mas qualquer coisa assim como

sabor sarcástico de uma advertência, “Fique com ela, fique com ela por enquanto.

Depois veremos.” Depois era agora (...) A varanda, floreios de Chopin se

diluindo no silêncio, vago perfume de folhagem, vago luar, tudo vago. Nítido, só

os dois, tão nítidos. (ibid, p. 146.)

A lembrança daquele famigerado encontro, agravada pela exaustão da doença,

transportam Tomás para a tênue fronteira entre a memória e o delírio, entre a imaginação e

a realidade, de modo que não se vê escapatória para sua dor. E nesta convulsão da

memória, resta a ele apenas a solidão, quiçá a morte. Por isso, na tentativa desesperada de

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alterar o curso dos acontecimentos que pôde prever revendo o passado, esconde o colar de

pérolas, peça-chave para a perfeita cena romântica que anteciparia a sua própria destruição :

Tudo ia acontecer como ele previra, tudo ia se desenrolar com a naturalidade do

inevitável, mas alguma coisa ele conseguira modificar, alguma coisa ele subtraíra

da cena e agora estava ali na sua mão: um acessório, um mesquinho acessório

mas indispensável para completar o quadro. Tinha a varanda, tinha Chopin, tinha

o luar, mas faltavam as pérolas. (ibid, p. 149)

Neste sentido, para a maioria das personagens de Lygia, a lembrança, o saber, a

maturidade e a consciência das coisas da vida são experiências negativas, na medida em

que conduzem ao inevitável abandono do ser, impotente diante da inexorabilidade do

tempo, que “diante do sentimento unidirecional da passagem do tempo, como erosão,

deperecimento, desgaste, jamais acolhe a riqueza da experiência”. 3

Muito embora nossa leitura e grande parte da fortuna crítica de Lygia esteja

fortemente orientada para ressaltar uma visão mais pessimista da solidão do sujeito, não

podemos encerrar a leitura da solidão na pura negatividade, uma vez que, a cada cena

melancólica, como assinalamos nas análises anteriores, certa ambigüidade depreende-se de

modo sub-reptício.

3 DIAS, Op.Cit.

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4.4 - O moço do saxofone

A abertura de “O moço do saxofone” já nos apresenta o cenário da perfeita

decadência: uma pensão “fregue-mosca” (p. 295), de uma “polaca que quando moça fazia a

vida” (p. 295), por onde passam ou habitam artistas de quinta categoria, anões e motoristas

de caminhão. Tudo contribui para resvalar a solidão: os infelizes dos pensionistas; os

volantes, “uma corja que entrava e saía palitando os dentes” (p. 295); a comida de péssima

qualidade; os anões se enroscando nas pernas das pessoas e a música do saxofone.

No início do conto, de sua mesa, o narrador – caminhoneiro de passagem por

aquelas bandas –, assume a condição de mero espectador deste circo da degradação humana

até que é fortemente atingido pela música do saxofone.

Mas aquele saxofone era mesmo de entortar qualquer um. Tocava bem, não

discuto. O que me punha doente era o jeito, um jeito assim triste como o diabo,

acho que nunca mais vou ouvir ninguém tocar saxofone como aquele cara tocava.

(TELLES, 2004, p. 295)

O gemido abafado do saxofone o devolve à angustiante experiência de uma noite na

estrada em que deu carona a uma moça prestes a parir. Ela abafara os gritos na lona de seu

caminhão para não incomodá- lo, mas ele teria preferido que botasse a boca no mundo.

Tive vontade de rir também, mas justo nesse intante o saxofone começou a tocar

de um jeito abafado, sem fôlego como uma boca querendo gritar, mas com uma

mão tapando, os sons espremidos saindo por entre os dedos.

(...) – Parece gente pedindo socorro –, eu disse, enchendo meu copo de cerveja. –

Será que ele não tem uma música mais alegre?” (ibid, p. 296)

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O som é tão perturbador que o motorista tenta, a princípio, rejeitá-lo, distraindo-se

com o blablabá de seu interlocutor, James, o engolidor de giletes, na vã tentativa de

preservar do desasossego daquele ambiente sua identidade de caminhoneiro-solitário (self-

sufficient).

– Mas por quê? – perguntei, bebendo mais depressa para acabar logo e me

mandar dali. A verdade é que não tinha nada com isso, nunca fui de me meter na

vida de ninguém, mas era melhor ouvir o tro-lo-ló do James do que o saxofone.

(ibid, 297)

Porém, no decorrer do diálogo aparentemente trivial, James vai informando o

caminhoneiro do motivo da tristeza do moço do saxofone e o narrador nem sequer

pressente o quanto está sendo convidado a participar desse jogo.

– A mulher engana ele até com o periquito – respondeu James, passando o miolo

de pão no fundo do prato para aproveitar o molho. – O pobre fica o dia inteiro

trancado, ensaiando. Não desce nem para comer. Enquanto isso, a cabra se deita

com tudo quanto é cristão que aparece. (ibid, p. 296)

A descrença no ser humano, essa grande consciência da solidão que move (ou

petrifica) as personagens do conto, é evidenciada pelo registro lingüístico adotado no conto,

que se reflete diretamente na linguaguem das personagens. Se as personagens em Lygia

falam como pensam, é natural que a linguagem seja a mais simples possível. A oralidade,

uma das marcas da escrita da autora, permite também o uso de palavrões, sempre que

exigidos pela realidade do personagem.

No conto em questão, o vocabulário de baixo calão do narrador e de seu interlocutor

imediato, James, dá a medida do nível social, do estilo de vida, e do verdadeiro abandono

em que estão inseridas essas personagens. Alguns trechos são mais ilustrativos4:

4 Os grifos nestes trechos ilustrativos são nossos.

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Tinha os pensionistas e tinha os volantes, uma corja que entrava e saída palitando

os dentes”. (ibid p. 295)

Teve uma vez uma dona que mandei andar só porque no nosso primeiro

encontro, depois de comer um sanduíche, enfiou um palitão entre os dentes e

ficou de boca arreganhada, de tal jeito que eu podia ver até o que o palito ia

cavucando.” (ibid, p. 295)

A comida, uma bela porcaria e como se não bastasse ter que engolir aquelas

lavagens, tinha ainda os malditos anões...” (ibid, p. 295)

– Mas já vi que não dou sorte com mulher, torcem logo o nariz quando ficam

sabendo que engulo gilete, acho que ficam com medo de se cortar...”

– É uma música desgraçada de triste. (ibid, p. 296)

– Chifre dói.” (ibid, p. 297)

– Mulher é o diabo... (ibid, p. 300)

– Enquanto isso, a cabra se deita com tudo quanto é cristão que aparece. (ibid, p.

296)

Disposto a sair daquela atmosfera de abandono, o motorista sai em procura de um

banheiro e, na escada, acaba esbarrando em um anão:

Quando subi a escada de caracol, dei com um anão que vinha descendo. Um

anão, pensei. Assim que saí do reservado dei com ele no corredor, mas agora

estava com uma roupa diferente. Mudou de roupa, pensei meio espantado, porque

tinha sido rápido demais. E já descia a escada quando ele passou de novo na

minha frente, mas já com outra roupa. Fiquei meio tonto. Mas que raio de anão é

esse que muda de roupa de dois em dois minutos? Entendi depois, não era um só,

mas uma trempe deles, milhares de anões louros e de cabelo repartidinho do lado.

(ibid, 297)

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Esses anões de circo, testemunhas mudas da solidão humana naquele pardieiro,

surgem de repente, e de todas as partes, enroscando-se nas pernas das pessoas. Por um lado,

eles representam miniaturas de homens; isto é, são a metáfora da pequenez humana. Neste

sentido, e numa visão benjaminiana de alegoria, em que todo o mundo se transforma em

coisa, pode-se afirmar que a pensão da velha polaca é o relicário dos melancólicos, a

coleção de miseráveis criaturas da velha polaca.

Como já disse Susan Sontag, em Sob o signo de Saturno (1986),

miniaturizar significa tornar inútil. Pois o que foi reduzido de forma tão grotesca,

de certa forma, é libertado de qualquer sentido – a pequenez é sua característica

mais notável. É, ao mesmo tempo, um todo (ou seja, completo) e um fragmento

(tão pequenino, na escala errada). Torna-se objeto de contemplação

desinteressada ou de devaneio. (SONTAG, 1986, p. 98)

A autora lembra ainda, citando Walter Benjamin, que “o único prazer que o

melancólico se permite, um prazer intenso, é a alegoria”.

Por outro lado, a presença do anão no texto abre uma brecha para o fantástico –

traço muito freqüente na obra de Lygia –, pelo caráter de grotesco e de sobrenatural que

esta figura traz em si. Eles surgem “do nada” e desaparecem do mesmo modo. O ambiente

é tão degradante que há lugar para tudo. Sendo assim, em relação aos homens-miniatura,

fica a suspeita de alucinação do narrador, que demonstrará seu mal-estar com a presença

deles desde o princípio: “Comida ruim, anão e saxofone. Anão me enche” (TELLES, 2004,

p.298).

Não se pode esquecer que, para Kayser, o grotesco é o mundo distanciado. O que

provoca estremecimento na obra de Lygia Fagundes Telles é a irrupção do absurdo em

meio a cenas completamente banais; a angústia parece fazer parte da ordem cotidiana do

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mundo, o que somente provoca no leitor uma maior sensação de insegurança. Em O moço

do saxofone ninguém parece se incomodar com a música que ecoa pela pensão, ainda que

todos conheçam a sua dolorosa origem. Isto é, não é apenas na presença do elemento

fantástico, mas também no grau de absorção das situações angustiantes no curso natural da

vida que reside com toda latência o grotesco em Lygia Fagundes Telles.

A dinâmica que motiva o choro do saxofone finalmente se descortina e é

confirmada na passagem a seguir, pelas palavras de James:

– Quando ela entra no quarto com um tipo, ele começa a tocar, mas assim que ela

aparece, ele pára. Já reparou? Basta ela se enfurnar e ele já começa. (ibid, p. 300)

A partir daí, o narrador – que, apesar de não ser um exemplo de caráter, talvez

tivesse preferido passar como mero observador – acaba aceitando a provocação da moça e

entra no seu misterioso jogo de sedução.

Na primeira porta, aquela à direita da escada, bati de leve e fui entrando. Não sei

quanto tempo fiquei ali parado no meio do quarto: ali estava um moço segurando

um saxofone. Estava sentado numa cadeira, em mangas de camisa, me olhando

sem dizer uma palavra. Não parecia espantado nem nada, só me olhava. (ibid, p.

301.)

A apatia desse marido traído, típica dos melancólicos, como a imagem da mulher de

asas porém imóvel da gravura A melancolia I (1514), de Albrecht Dürer, é incompreensível

aos olhos do caminhoneiro:

– E você aceita tudo isso assim quieto? Não reage? Por que não lhe dá uma boa

sova, não lhe chuta com mala e tudo no meio da rua? Se fosse comigo, pomba, eu

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já tinha rachado ela no meio! Me desculpe estar me metendo, mas quer dizer que

você não faz nada?

– Eu toco saxofone.

Fiquei olhando primeiro para a cara dele, que parecia feita de gesso de tão branca.

Depois olhei para o saxofone. Ele corria os dedos compridos pelos botões, de

baixo pra cima, de cima pra baixo, bem devagar, esperando que eu saísse para

começar a tocar. Limpou com um lenço o bocal do instrumento, antes de começar

com os malditos uivos. (ibid., p. 301, 302.)

A declaração impactante (“Eu toco saxofone”) pode assinalar um ato de força, de

resistência estóica diante da situação dolorosa. Mais uma vez, portanto, anuncia-se a

possibilidade de uma interpretação da capacidade de superação das adversidades por parte

dos personagens. No entanto, nada disso dissolve a pungente condição de solidão e

melancolia do universo fictício da autora. Tais sinais de superação permanecem como

tentativas de reversão do estado de coisas, que não necessariamente vão além de um efeito

narcótico.

A cena do diálogo entre o moço do saxofone e o caminhoneiro só não é mais tão

perturbadora do que o lamento que começa a sair do saxofone. Nosso narrador não suporta

o vazio em que é atirado; fica uns instantes petrificado e, em seguida, perde a potência

diante do absurdo da situação, isto é, miniaturiza-se, diminuído em sua virilidade, até que,

num ímpeto, foge desabalado.

Em Saturno nos Trópicos (2003), Moacyr Scliar comenta que, na Antigüidade

clássica, estudos sobre a melancolia associavam-na inicialmente a um desequilíbrio

produzido pela combustão da bile negra no organismo.

Essa combustão seria resultante de um “calor anormal” no corpo – o calor da

raiva, por exemplo, uma paixão que consome o espírito e acaba por esfriar e secar

o corpo. Metaforicamente falando, melancolia é isso; frieza e secura, enquanto a

alegria é quente e úmida. (SCLIAR, 2003, p. 72)

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A frieza, traduzida pela falta de atitude e lividez do moço do saxofone, é, portanto,

sintomática da melancolia.

Novamente valendo-nos de Scliar, “o melancólico é magro, pálido, taciturno, lento,

silencioso, desconfiado, invejoso, ciumento e solitário – a solidão, aliás, é causa e

conseqüência da melancolia, assim como a inatividade. “Be not solitary, be not idle” – não

seja solitário, não seja inativo, recomendava Robert Burton.”

De acordo com Fábio Lucas, na maioria dos contos de Lygia Fagundes Telles, as

figuras masculinas são geralmente dependentes das femininas. Para ele, as personagens

masculinas não apresentam contornos tão bem definidos como as femininas:

[...] antes aparecem como signos designativos de função social ou de papel, como

símbolos de poder, de riqueza ou de status. Não dispõem da vibração e das

nuances das personagens femininas.

E, de fato, em “O moço do Saxofone” é pertinente a observação de Fábio Lucas.

Apesar de se tratar da história do saxofonista, há no conto personagens femininas que se

pretendem secundárias e, no entanto, submetem os homens à sua preponderância. Assim,

temos, em ordem decrescente de importância: a dona da pensão, senhoria daqueles pobres-

coitados e dona do espaço onde se desenvolve a ação dos personagens; a grávida, que ao

pegar carona no caminhão de nosso narrador, em certa medida, reumaniza um mau-caráter

que vive do transporte de contrabandos; e, finalmente, a esposa adúltera do músico, em

torno da qual o conto gravita. Por ela, movimentam-se todos os homens, seduzidos,

rendidos. Então nos perguntamos, sem ela, o que seria desse marido? Sem dúvida não

haveria música, nem tampouco solidão; matéria da qual se alimenta a narrativa.

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A nosso ver, o saxofone representa a “droga” do marido para evitar a solidão.

Paradoxalmente, todo vício é sempre uma experiência solitária. Único refúgio de sua

covardia, o escudo de frio metal é usado para protegê - lo da “proliferação de forças – que

em vez de produtivas vêm a ser traumáticas –, anestesiando a vibratilidade do corpo ao

mundo e, portanto, seu afetos”5. Numa analogia à observação de Walter Benjamin, a

respeito dos objetos e materiais presentes na Melancolia I, podemos dizer que, duro e frio

como a pedra na gravura de Dürer, o saxofone constitui o principal símbolo da solidão e da

melancolia no conto.

5 Questão desenvolvida no artigo “Toxicômanos de identidade: subjetividade em tempos de globalização”, de Suely Rolnik.

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4.5 – Que se chama solidão

No conto “Que se chama solidão”, a memória da narradora perscruta os canaviais de

sua infância e vai reconstruindo passo a passo toda a melancolia do ambiente. Todas as

personagens vêm, em maior ou menor medida, compor a solidão dessa infância. Elas são

descritas através dessa narradora memorialista, isto é, do olhar interior da menina; um

mundo à parte. De costas para o mundo real, a narrativa parte da interioridade de uma

personagem focal. Tanto é um olhar de dentro que quase não aparecem características

físicas da narradora. Nem mesmo seu nome. Nela importa mais a visão interior, pela qual

nos faz conhecer cada uma das personagens, do que “um pé machucado (corte, espinho)”.

Walter Benjamin, citando Lukács, reconhece que “o sujeito só pode ultrapassar o

dualismo da interioridade e da exterioridade quando percebe a unidade de toda sua vida...

na corrente vital do seu passado, resumida na reminiscência...”. É por meio deste olhar de

dentro e para trás, nesse “chão movediço” da memória que se tece a narrativa em questão.

Logo no início, somos apresentados à instabilidade quiçá profissional do pai, que

obriga a família a estar sempre arrumando as malas e partindo. Assim, muito cedo a menina

experimentará a solidão da despedida.

A tia um dia explicou, esse tipo de homem que não consegue parar muito tempo

no mesmo lugar e por isso estava sempre sendo removido de uma cidade a outra

como promotor. Ou delegado. Então minha mãe fazia os tais cálculos de futuro,

dava aquele suspiro e ia t ocar piano. E depois, arrumar as malas. (TELLES, 2004,

p. 179)

Sua primeira pajem, a irônica Maricota, uma moça que sua mãe recolhera de um

orfanato, vem a ser seus primeiros olhos no mundo:

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Quando não aparecia nada melhor a gente ia até o campo para colher flores que

Maricota enfeixava num ramo e, com cara de santa, oferecia à Madrinha,

chamava minha mãe de Madrinha. Às vezes, ela desenhava com carvão no muro

as partes dos meninos e mostrava, É isto que fica no meio das pernas, está vendo?

É isto! Mas logo passava um trapo no muro e fazia a ameaça, Se você contar você

me paga! (ibid, p.181)

Essa espécie de tutora às avessas acaba fugindo com um trapezista. Esta será a

primeira grande perda da menina; o primeiro luto.

Tia Laura, “a viúva eterna”, mora com a família da menina. Em sua própria

condição de viúva, é latente a idéia de perda, morte e abandono. A maturidade dessa mulher

parece servir apenas para intensificar sua sensação de solidão e conduzir ao desengano e à

resignação.

Sua tia vive falando que agora é tarde, porque a Inês é morta, quem é essa tal de

Inês? (ibid, p. 179)

Afora os personagens, a linguagem é a grande constituinte do inventário

melancólico desse “chão da infância”, a saber: a mãe fazendo contas na ponta do lápis,

cigarro de palha do pai, machucado tratado com tintura de iodo, tacho de goiabada, valsa da

mãe ao piano, pé machucado e amarrado com tira de pano, a presença de pajens, sessão de

histórias fantásticas à noite, circo, a referência a “Navio Negreiro”, de Castro Alves,

procissão de sábado, anjo com asinhas de crepom, papelote nos cabelos, pique-pega: “quem

chegar por último vira sapo”, “Nesta rua nesta rua tem um bosque...”, desenho a carvão no

muro, mudança em carro-de-boi, fordeco velho, colégio de freiras, fogão a lenha,

quermesse no fim de ano, peru embrulhado em papel manteiga etc.

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Apesar de ficar patente a intenção de criar uma atmosfera lírica, provocadora de um

ambiente sentimental, típica do molde romântico, a autora atualiza a forma, atirando o leitor

numa torrente de stream of consciousness, enquanto a menina-narradora vai se conhecendo

e aprendendo as dores do mundo.

A inclinação pela vertente fantástica, presente em alguns trechos do conto, faz

lembrar cenas do cinema expressionista, com seu universo enigmático, povoado de figuras

sobrenaturais. O exame da passagem a seguir mostra que a narrativa torna -se alucinatória,

fazendo surgir ou desaparecer seres. O espaço inicialmente iluminado pela luz do dia no

campo – onde as meninas colhem flores e brincam de pega –, após o jantar, passa a ser

banhado por uma débil luz de velas ou, na melhor das hipóteses, dos lampiões. A atmosfera

incerta de meia- luz, ao pé da escada, ao mesmo tempo em que faz referência à cultura

popular das narrativas orais compõe o cenário qua se irreal, de personagens extraídas do

expressionismo:

As histórias apavorantes das noites na escada. Eu fechava os olhos-ouvido nos

piores pedaços e o pior de todos era mesmo aquele, quando os ossos da alma

penada iam caindo diante do viajante que se abrigou no casarão abandonado.

Noite de tempestade, vinha o vento uivante e apagava a vela e a alma penada

ameaçando cair, Eu caio! Eu caio! – gemia a Maricota com a voz fanhosa das

caveiras. Pode cair! ordenava o valente viajante olhando para o teto. Então caía

um pé ou uma perna descarnada, ossos cadentes pulando e se buscando no chão

até formar o esqueleto.” (ibid, p. 181)

A narração só volta à “realidade” com um gesto abrupto de intolerância da pajem,

ou com a repreensão de algum adulto:

Em redor, a cachorrada latindo, Quer parar com isso? gritava a Maricota

sacudindo e jogando longe o cachorro mais exaltado. Nessas horas sempre

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aparecia um dos grandes na janela (tia Laura, tio Garibaldi?) para impor o

respeito. (ibid, p. 181)

E, aqui, um detalhe nos chama a atenção: mesmo de volta ao espaço do “narrar

verdadeiro”, quem aparece na janela para repreendê- las? Tia Laura, acompanhada do

espectro de seu finado marido, evidenciado na interrogação “tio Garibaldi?”.

Tais marcas de intertextualidade com o cinema expressionista presentes no conto

reiteram o que Ítalo Calvino apontara entre as principais qualidades da arte literária nesta

virada de milênio: a “multiplicidade”. A multiplicidade, segundo o crítico, se constitui

numa tendência da literatura contemporânea de se compor como “rede de conexões entre os

fatos, entre as pessoas, entre as coisas do mundo” (CALVINO, 1994, p.121).

Inegavelmente, grande parte da produção literária atual tem seu projeto estético

calcado na multiplicidade, aspecto que norteia as ações e os pensamentos no mundo da

globalização. A produção literária contemporânea vem a ser, portanto, uma trama de tecido

permeável, que absorve realidades plurais e mutantes, cuja heterogeneidade não cabe mais

nos limites de uma narrativa ordenada e hierarquizada.

Na predileção pelos elementos fantásticos, evidenciada no conto “Que se chama

solidão”, já se nota a presença do grotesco que perpassará toda a ficção curta de Lygia.

O que se entende hoje pelo vocábulo “grotesco”, que vem do italiano la grottesca e

grottesco, derivados de grotta (gruta), ficou durante muito tempo limitado ao conceito do

cômico, do burlesco, do mau gosto, ou ainda, a uma aproximação com o aberrante,

fabuloso, caricatural.

Estes termos italianos foram cunhados para designar determinado tipo de

ornamentação encontrada em escavações feitas em Roma, nos fins do século XV. O que se

descobriu foi uma espécie de ornamentação antiga, até então desconhecida, e por isso

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mesmo sem designação específica. Nela, podia-se notar o jogo livre, insólito e fantástico de

formas que se confundiam, que se mesclavam e estavam em constante processo de

transformação, tudo estava em movimento e metamorfose.

No longo prefácio de Cromwell, que é a defesa do drama romântico, Victor Hugo

ressalta a importância do surgimento do Cristianismo para o despertar da nova sensibilidade

dos homens para sua condição de duplos, isto é, de seres repartidos em alma e corpo e

destinados a uma vida também dupla – uma passageira e terrena, outra eterna e celestial.

Esta percepção de duplicidade era impossível na Antiguidade, pois os antigos não

atingiam a espiritualidade do universo, mantendo-se sempre presos ao visível e palpável da

natureza. Assim, “a musa puramente épica dos Antigos havia somente estudado a natureza

sob uma única face, repelindo sem piedade da arte quase tudo o que, no mundo submetido à

sua imitação, não se referia a um certo tipo de belo” (HUGO, 2002, p. 26).

Apenas na modernidade, com a difusão do Cristianismo e seu jogo de duplos, a

poesia foi conduzida à verdade. “A musa moderna – afirma Hugo – verá mais coisas com

um olhar mais elevado e mais amplo. Sentirá que tudo na criação não é humanamente belo,

que o feio existe ao lado do belo, o disforme perto do gracioso, o grotesco no reverso do

sublime, o mal com o bem, a sombra com a luz” (HUGO, 2002, p. 26).

Segundo o autor, o gênio moderno é resultado justamente da coexistência do

grotesco com o sublime, e desta junção surge uma infinidade complexa de formas e

possibilidades de criação artística, o que se opõe sensivelmente “à uniforme simplicidade

do gênio antigo” (HUGO, 2002, p. 28). De uma forma geral, o drama romântico – com o

seu componente grotesco coexistindo com o sublime – deveria caracterizar-se, enquanto

procedimento artístico, pela mistura de gêneros, só assim podendo realizar uma pintura

total da realidade como busca de uma poesia completa. É a busca desta poesia completa –

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fruto da nova sensibilidade moderna e capaz de pintar a realidade como um todo complexo

– que motivou Victor Hugo a propor a destruição das teorias, das poéticas e dos sistemas.

O que se observa no conto de Lygia é uma espécie de rebaixamento do sublime

romântico. Se, para o romântico, o sublime é marcado por uma elevação do personagem, no

conto de Lygia a efabulação não parece convergir para nenhum tipo de resgate.

Assim como no universo kafkiano, no conto de Lygia o absurdo surge a priori. Não

há um preparo para o grotesco. Ele é descrito de um modo muito prosaico, frustrando no

leitor a expectativa de uma reação à altura por parte dos personagens.

Consideramos, portanto, que o grotesco em Lygia se aproxima bastante do universo

dos personagens kafkianos, fadados que estão a cumprir um pathos que jamais terá

desvelada a sua trama e, muito menos, o seu sentido moral.

No clássico “A Metamorfose”, de Kafka, observamos que as transformações

escapam da nossa percepção cotidiana e entram numa lógica do absurdo. Nada consegue

justificar a situação do protagonista Gregor Samsa. O enredo simplesmente começa assim.

A nenhum objetivo parece servir a sua condição de inseto asqueroso. Não se sabe sequer

por que a transformação se operou. Quer dizer, a narrativa não alcança nenhuma

justificação heróica ou trágica, mas resvala para um ponto qualquer, nota dissonante de

toda a realidade descrita, que, mesmo absurda, não é capaz de causar espanto nos

personagens.

Segundo Wolfgang Kayser,

Se pensarmos no cuidado com que Keller ou Hoffmann preparavam e

apresentavam os encontros com o abissal, os instantes de estranhamento do

mundo, torna-se ainda mais surpreendente a aplanação havida em Kafka. Nele,

não se dão “encontros”, irrupções repentinas, quaisquer estranhamentos

propriamente ditos, porquanto o mundo é estranho desde o começo. Não

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perdemos o solo debaixo de nossos pés, porque nunca estivemos nele firmemente

postados; só que não o notamos de pronto. Para resumir o que ficou dito até aqui,

as narrativas de Kafka são grotescos latentes. (KAYSER, 2003, p. 126)

Em “Quem se chama solidão”, o grotesco se evidencia não só pela utilização dos

elementos do fantástico, mas, principalmente, pelo estabelecimento desta zona de

instabilidade, entre real e irreal, por esta falta de fundamento seguro em que se vê a

protagonista ao dar-se conta de sua condição solitária, e pelo grau de aceitação desta

arbitrariedade do mundo.

Como acontece na literatura kafkiana, a narrativa de Lygia vai desenredando aos

poucos os movimentos da consciência enquanto esta se mistura aos elementos do

esquecimento. Ambos autores imprimem um extremo poder ao onírico, de modo que “a

efetiva realidade é sempre irrealística” (op. cit, p. 125).

Segundo a ensaísta Sônia Régis, isto ocorre porque

ela escolheu trabalhar com um material difícil e escorregadio, pronto a escapar do

registro da memória para o esquecimento eterno: as névoas dos sonhos, as

sombras das fantasias, as fantasmáticas associações dos delírios, a aspereza dos

raciocínios, as bruscas mudanças dos sentimentos, o tumulto dos interesses

humanos, os estados alterados de consciência. (RÉGIS, 1998, p. 89)

No conto em questão, o enfrentamento da morte de Leocádia (a segunda pajem que

a mãe de menina recolhe depois da fuga de Maricota com o artista de circo) e, mais

especificamente, de seu espectro, é o ápice do entendimento da menina de sua condição de

ser solitário no mundo.

Nesta história de saudades e descobertas, é na ausência, isto é, na presença da

morte, da perda, que a narradora parece atingir o “grau de compreensão” do sentido da

vida, ao qual se referia Walter Benjamin. Segundo o filósofo, “nos enventos mortos do

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passado eufemisticamente conhecidos como experiência” é possível encontrar o sentido da

vida. “Somente é possível entender o passado porque ele está morto” (BENJAMIN, 1996,

p. 214).

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4.6 - Pomba Enamorada ou uma história de amor

Extremamente representativo do tema da solidão na obra de Lygia, o conto “Pomba

Enamorada ou uma história de amor” conta a história de uma paixão malograda. Narrando

a trajetória de uma mulher desprezada pelo amado, a autora mescla paixão (ou obsessão)

com ironia, autodestruição, ingenuidade, submissão, e a conseqüência de tudo isso, e por

que não dizer a própria causa, é a inevitável e mais perfeita solidão da protagonista.

Tudo começa no baile em que é coroada princesa do Baile da Primavera, “já que o

namorado da rainha tinha comprado todos os votos”, onde conhece Antenor, um sujeito

rude, que não “esquentava o rabo em nenhum emprego”, mas que lhe encanta desde o

primeiro momento, apesar, ou, quem sabe, por causa, de seu jeito grosseiro. Apesar da

fugacidade do encontro, de duração de uma valsa aproximadamente, a Valsa de Miosótis,

este momento marca para sempre a personagem. Não bastasse o melancólico ritmo desta

modalidade de dança, o título da valsa já nos insere numa atmosfera de despedida: o

miosótis, a inocente florzinha azul cultivada como ornamental é vulgarmente conhecida

como não-te-esqueças, não-te-esqueças-de-mim. A partir da inesquecível valsa, movida

pelo desejo, a protagonista começa uma busca desarvorada pelo seu amado. A etimologia

da palavra “desejo” demonstra que esta busca só pode levar a um vazio profundo, pois,

“desiderare” significava, na era clássica, desistir de ver os astros, uma expressão usada para

falar de ausência de esperança. Na evolução da palavra “desejar” ficou para o português o

sentido de “almejar, ter vontade de, querer”, como algo positivo.

No entanto, na opinião de Marilena Chauí, em relação ao desejo amoroso :

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Desejo é relação entre seres humanos carentes. Por isso amamos até a loucura e

odiamos até a morte: nosso ser está em jogo em cada e em todos os afetos. Desejo

é paixão, diziam os clássicos... No entanto, a marca funda e indelével do desejo é

o jamais oferecer-nos a garantia de haver sido realizado. (CHAUÍ, 1984, p.159)

A partir desta visão, vemos que, mais do que uma grande paixão, a solidão é o

grande Leitmotiv da trajetória de Pomba Enamorada. Quanto mais carente e solitária, mais

propícia às armadilhas do próprio desejo estará uma pessoa. Logo nas primeiras linhas do

conto, temos uma idéia do perfil de nossa protagonista:

(...) e assim que o coração deu aquele tranco e o olho ficou cheio d’água pensou:

acho que vou amar ele para sempre.

Ao ser tirada teve uma tontura, enxugou as mãos molhadas de suor no corpete do

vestido (fingindo que alisava alguma prega) e de pernas bambas abriu-lhe os

braços e o sorriso. (TELLES, 2004, p. 19.)

E assim somos apresentados a essa moça ingênua e solitária do interior paulista

(coroada num baile do São Paulo Chique), pobre (ajudante de cabeleireira); leitora de

romances água-com-açúcar; noveleira; e crente, que iremos conhecer melhor no decorrer da

história.

A alegria do Baile da Primavera acaba quando Antenor parte com uma “escurinha

de frente única”, e a personagem acaba tendo de se desdobrar para encontrar o paradeiro de

seu amado. Descobre-o trabalhando numa oficina e, ao visitá-lo, é maltratada por ele. A

partir daí, configura-se o que a Psicanálise chamaria de “par funcional”, isto é, dois opostos

que se “completam” numa relação; neste caso, um sádico e uma masoquista. Isto fica claro

porque ela parece não se incomodar com a má recepção por parte do sujeito. Seguirá seu

desejo obsessivo telefonando diversas vezes para o trabalho dele “somente para ouvir sua

voz”, pedirá auxílio de um amigo homossexual para deixar recados, acenderá uma vela a

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Deus e outra ao diabo – já que apela a Santo Antônio e a macumbas –, na ânsia desenfreada

de conquistar seu amor. Como Antenor não se comove, ela começa a escrever cartas de

amor sob o pseudônimo de Pomba Enamorada, e, mesmo assim, Antenor não se abala, bem

ao contrário, pede-lhe que o tire da cabeça.

Assim, a narrativa apresenta uma bifurcação – dois caminhos em direções opostas –

que supõe uma escolha transcendente. As situações de encontro são todas conflituosas,

dramáticas, o que transpõe a ação da personagem para o espaço da experiência psicológica.

A probabilidade de ser amada é uma ilusão. O ato executado não é possível, isto é, seu

desejo nunca será realizado, restando apenas a experiência do fracasso. Apesar das

inegáveis marcas românticas que compõem a personagem e a trama, a sucessão de

encontros malfadados e “portas-na-cara” e alguns aspectos grotescos e contraditórios em

sua aparência e gestual, como o sorriso da “princesa” do baile do clube ser “meio de lado”

para esconder uma falha no canino esquerdo; as doses de vermute que toma pelos “foras”

que leva e, ainda, a presença de Rôni, um homossexual estereotipado que atua como um

afetado conselheiro sentimental fazem com que a narrativa adquira um caráter tragicômico.

O golpe derradeiro sofrido pela protagonista vem com a notícia de que seu amado

está de casamento marcado. Quando ocorreu o casamento, em vez de chorar, Pomba

Enamorada

foi ao crediário Mappin, comprou um licoreiro, escreveu um cartão desejando-lhe

todas as felicidades do mundo (…) e quando chegou em casa bebeu soda

(cáustica)”. Após deixar o hospital, cinco quilos mais magra, escreveu-lhe um

bilhete “contando que quase tinha morrido mas se arrependia do gesto

tresloucado que lhe causara uma queimadura no queixo e outra na p erna, que ia se

casar com Gilvan que tinha sido muito bom no tempo em que esteve internada e

que a perdoasse por tudo o que aconteceu. (TELLES, 2004, p. 24)

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O bilhete, recebido numa festa de São João, é desprezado solenemente e picotado

em muitos pedaços por Antenor na frente das pessoas.

Pomba Enamorada casa-se mas nunca esquece Antenor. Quando engravida, manda

para ele uma foto tirada no Cristo Redentor. Anos depois, no “noivado da sua caçula Maria

Aparecida, só por brincadeira, pediu que uma cigana muito famosa de seu bairro deitasse as

cartas e lesse seu futuro”. A cigana diz que um homem cujo nome iniciava com A., de

cabelos grisalhos, costeleta, motorista de ônibus chegará à rodoviária e mudará sua vida por

completo. Apesar de dizer que tudo era aquilo passado, “que já estava ficando velha demais

para pensar nessas bobagens”, Pomba Enamorada, já avó – calcula-se, portanto, passados

uns vinte anos pelo menos –, sabendo que Antenor é motorista de ônibus, no dia marcado,

veste sua roupa de festa, deixa a neta com a comadre e dirige-se à rodoviária, não sem antes

dar uma olhadinha no horóscopo do dia, que “não podia ser melhor”.

Recorrentes referências à “salvação” da protagonista perpassam todo o conto, isto é,

evocações das mais diversas escapatórias transcendentes para a concretização do seu sonho

impossível, tais como: Igreja dos Enforcados, Santo Antônio de gesso, galhinho de arruda

debaixo do travesseiro, o disco Ave-Maria dos Namorados comprado na liquidação,

conhecimentos sobre Astrologia, especia lmente sobre o signo de Capricórnio, as simpatias

feitas e as sugeridas pelas conhecidas, pratinho de doces oferecido para São Cosme e

Damião num jardim florido, foto no Corcovado, festa de São João, a linha de ônibus onde

trabalhava Antenor (Piracicaba – São Pedro), espécie de “linha direta” para o Céu,

casamento dele no “religioso”, o nome da filha (Maria Aparecida), e, finalmente, a visita à

cigana, que culminará no tão esperado “domingo” (dia santo, por excelência), dia em que

sua vida “mudaria para sempre”, todos esses elementos sugerem uma fé no poder de Deus

ou de um deus qualquer, já que, na vida, no devir, e, principalmente, no ser humano, não há

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mais esperança. Por mais que a importância da fé e o romantismo sejam latentes no conto, é

igualmente inegável o tratamento irônico que a autora dá a esses temas. Desde o título, em

“Pomba Enamorada ou uma história de amor”, percebe-se o viés irônico. Uma história de

amor não pressupõe abandono, desprezo e rechaço, mas encontro, alegria, reciprocidade e

acolhimento; os heróis enfrentam obstáculos, mas, cedo ou tarde, alcançam o tão esperado

happy end.

“Pomba Enamorada” é, na verdade, a história de um desamor, e nela, Lygia nos

leva, do início ao fim, ao riso. Não há diálogos nem parágrafos no conto. A narrativa

poderia ser encarada como uma espécie de desabafo, uma confissão, ou um suspiro de

mulher apaixonada. Num só fôlego, alternando com maestria entre o discurso indireto e o

indireto livre, e recorrendo a uma pontuação habilidosa, a autora atinge sua estratégia

narrativa quando vem à tona a segunda história, isto é, uma espécie de “revanche”, ou parte

II, da principal, que Ricardo Piglia consideraria como uma história à parte, paralela e

invisível, presente em todo conto moderno. Trata-se de “un relato secreto, narrado de un

modo ellíptico y fragmentario”. Segundo o crítico, cada uma das histórias é contada de um

modo diferente. Trabalhar com duas histórias quer dizer trabalhar com duas lógicas

diferentes, isto é, dois sistemas diferentes de acaso. Os mesmos acontecimentos entram

simultaneamente em duas lógicas narrativas antagônicas.

La historia secreta se cuenta de un modo cada vez más elusivo. El cuento clásico

a la Poe contaba una historia anunciando que había otra; el cuento moderno

cuenta dos historias como se fueran una sola. (PIGLIA, R., s/data)

Em Pomba Enamorada, a “segunda história” passa a ser contada a partir do

momento em que a princesinha do São Paulo Chique, estereótipo da doce e submissa figura

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feminina, vítima da solidão de ser rejeitada pelo ser amado, entregue a sua pouca sorte de

moça de interior massificada pela mídia, no ápice da rejeição (casamento de seu amado

com outra), toma uma atitude “tresloucada”: a tentativa de suicídio. Num primeiro olhar,

uma saída bem romântica, pela morte, que liberta. No entanto, a tragédia não se concretiza,

e o mito do amor-romântico se desfaz, porque a autora escapa pelo veio da comicidade. A

autora “ressuscita” a moça e a metamorfose que se opera é a do retorno. Ela tem, portanto,

a sua segunda chance, e, como é sabido, a ressurreição geralmente ocorre trazendo uma

“melhora” para o indivíduo. O casamento com Gilvan, o “bonzinho” por quem nutre um

sentimento fraterno, sem nenhuma sombra de volúpia, será uma espécie de “via

alternativa”, uma união “de fachada”, um paliativo para sua dolorosa solidão de mulher

rejeitada, mas também uma espécie de “desforra”:

Gilvan, você foi a minha salvação, ela soluçou na noite de núpcias enquanto

fechava os olhos para se lembrar melhor daquela noite em que apertou o braço de

Antenor debaixo do guarda-chuva. Quando engravidou, mandou-lhe um postal

com a vista do Cristo Redentor (ele morava agora em Piracicaba com a mulher e

as gêmeas) comunicando-lhe o quanto estava feliz, numa casa modesta mas

limpa, com sua televisão a cores, seu canário e seu cachorrinho chamado

Perereca. (TELLES, 2004, 24)

Outra evidência da metamorfose comportamental da personagem nesta fase, ou

“segunda história”, é a idéia de superação da velhice. A velhice na obra de Lygia é um tema

muito utilizado, porém normalmente associado à deterioração, à inexorabilidade do tempo,

à ruína, fraqueza, desmoronamento. No conto “A chave”, escreve Lygia: “(...) envelhecer é

ficar fora de foco: os traços vão ficando imprecisos e o contorno do rosto acaba por se

decompor como um pedaço de pão a se dissolver na água.”

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Surpreendemente, neste momento do conto a velhice não impedirá que a

personagem vista a roupa das suas bodas de prata e parta em busca de seu sonho. Se

levamos em consideração a conotação sexual/ sensual implícita no final de Pomba

Enamorada, a atitude da personagem representa uma transgressão às convenções sociais,

ou, no mínimo, a quebra dessas expectativas: como conceber o fato de uma senhora casada,

mãe de dois filhos, já avó, deixar de tomar conta da neta e partir para um suposto encontro

amoroso (libidinoso) com outro homem que não o seu marido? Tendo em vista o caráter

histórico-cultural da construção das situações amorosas, como pensar o amor e,

principalmente, o sexo, na velhice?

Se não chega a resolver a solidão, a metamorfose sofrida pela personagem ao menos

é capaz de libertá- la de suas fantasias de amor-romântico clicherizado e burguês,

evidenciando a crítica social no texto da autora, nesta inversão (ou subversão) do perfil de

Pomba Enamorada.

Conforme observou a pesquisadora Vera Tiezmann Silva, na obra obra ficcional de

Lygia evidencia-se um “mitoestilo” constituído pela insistência num determinado grupo de

temas recorrentes e em certos artifícios de estilo e de efabulação, como a preferência por

algumas cores (em especial, o verde); a presença de certos animais entre os personagens

(cachorros, gatos, pássaros, ratos, formigas, sapos etc.), muitas vezes usados nas metáforas

e comparações; imagens características (jardim, fonte, estátua; gaiola, armadilha, ratoeira),

e, dentre estes elementos, a metamorfose parece ser um tema predominante. Ela pode

ocorrer tanto no plano antropomórfico, quanto no zoomórfico e em reificações. No conto

em questão, a metamorfose sofrida pela protagonista não apenas a retira de sua condição

clicherizada e patética, mas também, em certa medida, reveste- lhe de certa dignidade e

sarcasmo.

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Segundo Barthes, o mito não serve para esconder a realidade, sua função não é fazer

desaparecê- la, mas deformá- la. E é justamente no momento em que a solidão da

personagem atinge seu ápice (casamento de seu amado com outra), que os processos de

deformidade e transformação (metamorfose) começam a se manifestar. A tentativa de

suicídio poderia ser considerada a primeira manifestação de metamorfose da protagonista

no conto – a mais radical de todas para o ser humano –, no entanto, como não é bem-

sucedida, fica como uma espécie de “ensaio” metamórfico- libertário da personagem

principal.

O destaque para a questão das cores nesta segunda parte da história também

contribui para a transformação da atmosfera solitária da narrativa: Antenor chegará “num

ônibus vermelho e amarelo”; um veículo de cores primárias, quentes, que, unidas, formam

o laranja, isto é, sugerem calor e alegria para este posssível encontro, mudando a

“tonalidade” da atmosfera do enredo.

Como bem observou Silviano Santiago, no artigo “A bolha e a folha. Estrutura e

inventário”:

Nos contos de Lygia, a solidão acaba por solidificar-se sob a forma do ponto final

que encerra um conto e abre a possibilidade do seguinte, emprestando ao

conjunto da sua ficção uma coerência de propósitos pouco comuns nas coletâneas

de contos da literatura brasileira contemporânea. No universo ficcional de Lygia,

não existem causas ou razões ocultas para a solidão (ou melhor, para o

envelhecimento, ou o ciúme, ou...). Todas as sensações, emoções e paixões estão

a nu e a descoberto para todos e qualquer. Estão a flor da pele, isto é,

exaustivamente descritas pelo narrador. Existe principalmente e apenas o

interminável inventário dos caminhos inventados pela sensualidade (...).”

(SANTIAGO, op. c it.)

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Ainda que os elementos que se apresentam na “segunda história” transmitam uma

idéia ou ilusão de felicidade iminente, não há, porém, nenhuma garantia de saída da

solidão, muito menos de happy end, mas a reafirmação da continuação do desejo

exasperado de estabelecer laços afetivos a todo custo. A intringa sentimental passa a

funcionar, portanto, como uma espécie de “tábua de salvação contra a fatalidade da solidão

humana”. A idéia do falar por falar, a linguagem operando como um fio tênue que mantém

os personagens vivos. Assim como dissemos em outro momento, uma espécie de falar por

falar beckettiano.

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5 - Considerações finais:

Este trabalho pretendeu revelar no corpus selecionado a preponderância do tema da

solidão e da melancolia do sujeito na obra de Lygia Fagundes Telles.

Inicialmente, com o intuito de estudar a solidão como recurso para o despertar de

uma nova tendência literária, privilegiamos o genebrino solitário Jean-Jacques Rousseau,

precussor do Romantismo, não só para evidenciar o ponto de partida desta escrita da

interioridade, mas também para sinalizar o desdobramento deste tema na modernidade e o

tratamento da linguagem nos dois autores.

Procuramos então apontar como a escrita de Rousseau está marcada pela crença

numa subjetividade demiúrgica, na plenitude do eu, e num ideal de transparência da

subjetividade pela linguagem. Em contrapartida, no conto de Lygia Fagundes Telles, este

sujeito cindido – conhecedor de sua finitude e da insuficiência da linguagem –, salvo em

algumas poucas situações, não parece encontrar redenção nem mesmo alternativas de

salvação da solidão.

A saída pelo sonho, pelo devaneio, e pela reminiscência é, portanto, um passeio que

abre para uma possibilidade de renovação do sujeito, entrevista nos dois autores, enquanto

refúgio, escapismo e reduplicamento da existência, no primeiro; e postulação da

imortalidade e autoconhecimento, na segunda.

A memória, por sua vez, também está intimamente ligada ao sentimento de finitude,

da inexorabilidade do tempo. Não deixa de ser uma reação ao efêmero, uma tentativa de

apreensão, de dar concreção ao vivido. No entanto, pode ser tão cruel quanto o espelho, que

tanto pode est ilhaçar como criar identidades. Assim, no tocante à escrita memorial,

tentamos apontar as marcas de ambigüidade presentes nos contos da autora, ainda que a

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própria autora nos leve a crer em sua própria fala que “mais prejudicial do que cigarro é a

memória”. (A noite escura mais eu, p. 141).

É próprio do discurso metaficcional que leiamos e entendamos os fatos como

despiste. Não podemos tomá- lo como verdade absoluta. Assim, nesta ambigüidade da obra

da autora, neste lugar entre, como chamou Silviano Santiago, é que observamos a grandeza

do conto de Lygia. Nesta brecha ficcional apontada pelo crítico, vemos que tanto a mistura

do fantástico ao relato autobiográfico, evidenciado, por exemplo, no conto “Que chama

solidão”, quanto o apelo ao tragicômico em “Pomba Enamorada ou uma história de amor” e

em “A chave”, são marcas de uma literatura híbrida, rica, transgressora de uma ideologia

dominante.

Nestes contos, uma espécie de aviltamento do sublime romântico se opera, como se

se quisesse demonstrar a impossibilidade de elevação dos personagens. Neles a dualidade

sublime/grotesco, presente até mesmo no romantismo satânico, não tem mais lugar. No

conto de Lygia não há mais espaço para o triunfalismo do sublime, uma vez que os

personagens se vêem interditados, enredados que estão num alto grau de consciência de sua

condição solitária no mundo.

Daí a importância do papel da linguagem em nosso recorte. Se, para Rousseau, a

linguagem escrita é a “potência mágica” que irá transpor as dificuldades da comunicação e

derrubar as máscaras, e o voltar-se para si, o caminho da autenticidade; no conto de Lygia,

o conflito entre ser e parecer é uma tensão permanente, marcada por uma verdade que não

pode ser dita. Tudo é dissimulado, abafado; a incomunicabilidade é uma constante, como

vimos em todos os contos analisados. Nem a boca do peixe de pedra, fonte extinta, boca

generosa, em declarada analogia ao verso de Rilke, é capaz de trazer alguma resposta às

angústias dos personagens de “A Ceia”. O que explica o poder da metáfora e dos símbolos

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na obra da autora, onde o não-dito e o gestual são sempre mais importantes que qualquer

ação.

Quando dissemos no capítulo anterior que a linguagem no conto de Lygia aprisiona

os personagens numa sala de espelhos – mais, num labirinto de espelhos –, apontamos para

o quanto estão enredadas com a realidade (leia-se, sobretudo, finitude) num nível extremo

de consciência. É pela lucidez que não conseguem agir; sentem-se paralisados pelo excesso

de pensamento, seres hamletianos que são. Exatamente por isso seus contos se acham num

ponto avançado, crítico, da modernidade, quando não há mais equilíbrio entre ação e

pensamento. Para agir, é preciso não pensar em excesso, como é o caso da jovem dos

“ossos de aço”, de “A chave”, ou é necessário ter um dom premonitório, como em “As

pérolas”. Qual será então o recurso típico do melancólico, daquele que escapa do mundo

prático da ação? A memória. Tal como cigarro, falso alento, parceira da solidão e da

melancolia, a memória muitas vezes será seu principal alimento.

A linguagem da memória tece uma grande teia nos pensamentos até que o indivíduo

se vê enclausurado na tal sala de espelhos. Cada lâmina desta sala pode vir a manifestar

uma realidade: por vezes, a de sujeitos paralisados, flagrados em sua inadaptabilidade ao

meio; noutras, uma espécie de revide do sujeito ao inapreensível, como se pela memória ou

pelo sonho fosse possível recuperar-se o elo perdido com a verdade interior, o que só

reforça a ressonância da literatura romântica na obra da autora.

No entanto, o que observamos, numa análise mais cuidadosa é que, muitas vezes, o

mundo do devaneio e da memória em que mergulham os personagens, enquanto tentativa

de renovação, é o mesmo das narrativas fantásticas, o que deixa mais uma vez, em aberto a

questão da autentidade do discurso. Os mesmos elementos que compõem uma literatura de

atmosfera, ao estilo de Edgar Alan Poe ou Hoffmmann, povoada de jardins, perfumes,

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ossos, luzes débeis e outros detalhes fantasmagóricos, estão presentes na experiência

memorial da ficção curta desta autora.

Tudo é possível na escrita mítica de Lygia Fagundes Telles. Há nela uma

recorrência ou circularidade de signos que cumprem uma órbita. O universo de Lygia é

compacto, coerente e ordenado, isto, claro, do ponto de vista temático. Tendo em vista este

aspecto em sua obra, afastamos de imediato a impressão de caos ou falta de lógica interna.

O caos se instaura, portanto, como um princípio filosófico, como inerente ao mundo desde

sempre, próprio da condição humana, ainda que esta cultive seus desvios de atenção

(memória, religiosidade, misticismo etc.). É o caso da personagem Alice, de “A ceia”, que

se esquiva da luz do isqueiro que traz à tona a crueza de sua realidade e também o de

Tomás, de “A chave”, que vive fugindo dos espelhos que sua vaidosa Magô espalhara pela

casa, ou até do anão-narrador, que desvela a trama grotesca e sem sentido da vida de uma

família. Ao fim e ao cabo, todos fazem parte de um grupo compacto, em tudo semelhante,

girando em torno da mesma solidão.

Única certeza do sujeito esfacelado, a solidão projeta-se ameaçadora sobre todo o

corpus analisado, e pode ser vista na obra de Lygia como a grande morte e/ ou metamorfose

final e implacável deste sujeito.

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