escola não, obrigado!!!

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UNIVERSIDADE DE BRASÍLIA INSTITUTO DE CIÊNCIAS SOCIAIS DEPARTAMENTO DE SOCIOLOGIA André de Holanda Padilha Vieira “ESCOLA? NÃO, OBRIGADO”: Um retratro da homeschooling no Brasil . Brasília 2012

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  • UNIVERSIDADE DE BRASLIA

    INSTITUTO DE CINCIAS SOCIAIS

    DEPARTAMENTO DE SOCIOLOGIA

    Andr de Holanda Padilha Vieira

    ESCOLA? NO, OBRIGADO: Um retratro da homeschooling no Brasil .

    Braslia

    2012

  • Andr de Holanda Padilha Vieira

    ESCOLA? NO, OBRIGADO: Um retrato da homeschooling no Brasil

    Monografia de graduao submetida ao curso de Cincias Sociais, habilitao Sociologia da Universidade de Braslia, para a obteno do grau de bacharel em Sociologia. Orientador: Lus Augusto Sarmento Cavalcanti de Gusmo

    Braslia

    2012

  • A minha me, a Tiago e a Analice, pelo amor, pelas conversas e pelo apoio de todas as horas. A Jorge Ponciano, pelas sbias palavras e conselhos.

    A tia ngela, Adonai e Ana Augusta, que me acolheram carinhosa e generosamente. Aos pais-educadores, pelos raros exemplos e coragem.

  • AGRADECIMENTOS

    Ao professor doutor Lus Augusto Sarmento Cavalcanti de Gusmo, da Universidade de Braslia, pelas proveitosas conversas e sensatas recomendaes. Aos professores doutores Richard Medlin, da Stetson University, John Boli, da Emory University, e Francisco Ramirez, da Stanford University, pela generosidade em compartilhar seus instrutivos trabalhos. A todos os pais, filhos e demais pessoas participantes da pesquisa e queles que colaboraram com sugestes, crticas e com a divulgao do estudo. A Associao Nacional de Educao Domiciliar e ao pastor Carlos Cardoso pelos fundamentais apoio e disponibilidade. A Tiago de Holanda, pelo apoio e imprescindveis sugestes e revises.

  • RESUMO

    Este trabalho, de carter exploratrio, tem por objetivos discutir o surgimento do fenmeno contemporneo que se convencionou chamar de homeschooling (em portugus, educao em casa) e compreender a condio socioeconmica, as motivaes e o tipo de educao empreendida pelos pais brasileiros adeptos da modalidade. Os dados apresentados so provenientes da realizao de entrevistas semi-estruturadas e presenciais com oito pais e da aplicao de questionrio auto-administrado a uma amostra de 62 pais. Os resultados do trabalho indicam padres sociais especficos ao caso brasileiro e outros encontrados tambm em diferentes contextos. As evidncias permitem estimar o perfil geral dos pais-educadores brasileiros e revelam a fragilidade emprica de parte significativa das crticas modalidade. Palavras-chave: Educao domiciliar; Estudo em casa; Educao no formal; Pesquisa demogrfica; Liberdade de pensamento; Direito educao.

  • ABSTRACT This study, an exploratory one, aims to discuss the emergence of the contemporary phenomenon of so-called homeschooling (in Portuguese, educao em casa) and understand the socioeconomic status, the motivations and the type of education undertaken by Brazilian parents adherent of this educational approach. The presented data flowed from conducting semi-structured interviews with eight parents and applying self-administered questionnaire to a sample of 62 parents. The results indicates social pattern specific to the Brazilian case and others also found in different contexts. The evidences allow us to estimate the general profile of Brazilian parents-educators and reveal the empirical fragility of a significant portion of the critiques to the home education. Key-words: Home education; Home study; Nonformal education; Demographic research; Freedom of thought; Right to education.

  • SUMRIO 1 INTRODUO.................................................................................................................................7

    2 CAPTULO - HOMESCHOOLING NO MUNDO...........................................................................9

    2.1 Experincias e motivaes pelo mundo.............................................................................9

    2.2 Caracterizao do fenmeno.............................................................................................11

    2.3 Dados da educao em casa no mundo............................................................................12

    2.4 Caso norte-americano.......................................................................................................15

    2.4.1 Situao atual da home education...........................................................................18

    2.5 Crticas..............................................................................................................................22

    3 CAPTULO - A EDUCAO DOMICILIAR NO BRASIL.........................................................24

    3.1 Situao atual....................................................................................................................25

    3.2 Legislao.........................................................................................................................29

    3.3 O projeto de lei n 3.179/2012..........................................................................................32

    3.4 A ANED............................................................................................................................33

    3.5 Casos.................................................................................................................................36

    3.5.1 Caso da famlia Nunes.............................................................................................36

    3.5.2 Caso da famlia Bueno.............................................................................................39

    3.5.3 Caso da famlia Costa..............................................................................................43

    3.5.4 Caso da famlia Dias...............................................................................................46

    3.5.5 Caso da famlia Vaz................................................................................................49

    4 CONSIDERAES FINAIS..........................................................................................................52

    REFERNCIAS BIBLIOGRFICAS...............................................................................................56

    APNDICES......................................................................................................................................68

  • 7

    1 INTRODUO Lugar de criana na escola. A frase banal que hoje lugar-comum expressa uma ideia

    cujas origens devem ser buscadas num passado j distante. A escolarizao obrigatria, instituio

    que no ltimo sculo se tornou imperativo social e ideolgico da cultura mundial (RAMIREZ;

    BOLI, 1987), foi concebida nos governos despticos da Prssia e da ustria setecentistas com um

    propsito claro: construir um estado-nao unificado. Nos dois sculos seguintes, leis de frequncia

    escolar compulsria foram aprovadas por quase todos os governos no mundo com a progressiva

    assimilao de necessidades locais. Os sistemas estatais de escolarizao em massa sofreram, nesse

    tempo, mutaes na sua organizao e em seus pretextos, contudo, premissas e mitos comuns

    continuam a lhe conceder um fim geral: desenvolver a nao.

    Nos anos sessenta e setenta, o consenso sofreu duros golpes. Filsofos da contracultura e

    educadores como Paul Goodman, Ivan Illich e John Holt, todos radicados nos Estados Unidos,

    questionavam a capacidade da escola moderna de inspirar nos alunos valores sociais apropriados

    ou mesmo de ensinar-lhes com eficcia. A contestao da clebre socializao escolar passou,

    ento, nos anos seguintes, a atrair crticos de origens ideolgicas distintas, como o casal adventista

    Raymond e Dorothy Moore e o popular lder evanglico James Dobson. Nascia o vigoroso

    movimento pela home education, que conta atualmente com mais de dois milhes de estudantes

    somente nos Estados Unidos (RAY, 2011).

    Neste trabalho, estudaremos a populao brasileira que adota essa modalidade de educao,

    mais comumente chamada de homeschooling (em portugus, educao domiciliar). Estima-se que

    mais de 700 famlias a pratiquem no pas, com adeptos espalhados por todas as regies do Brasil. O

    fenmeno recente nos pases sul-americanos e aqui a situao no diferente. Os primeiros casos

    tornados pblicos pela imprensa datam de meados dos anos 1990, a maioria deles incentivada por

    lderes protestantes americanos emigrados ou em passagem pelo pas. Desde ento, pelo menos dez

    famlias foram acusadas por abandono intelectual e duas foram condenadas pela Justia. Apenas

    uma conseguiu autorizao formal do governo para educar no lar. Dezenas de casas foram visitadas

    por conselheiros tutelares e centenas de pais aguardam a regularizao da situao legal da prtica.

    Na ltima dcada, o assunto tem sido debatido por estudiosos da educao, convidados

    frequentemente por veculos de imprensa, mas a literatura acadmica brasileira que o examina ainda

    modesta: compe-se quase por inteiro de revises de literatura, estudos de casos, discusses

    jurdicas e arguies filosficas. A pesquisa que realizamos, de carter exploratrio, vem tentar

    contribuir em alguma medida para preencher esta lacuna. Inspiramo-nos em trabalhos feitos por

    estudiosos como Brian D. Ray, Lawrence Rudner e Deani Van Pelt para verificar a condio

  • 8

    socioeconmica, o tipo de educao que oferecem, as motivaes e a integrao dos pais que

    educam em casa.

    Investigamos ainda o modo como a prtica ganhou fora no pas, a semelhana que ela

    apresenta em relao educao nas casas comum no Brasil oitocentista e a sua atual situao

    jurdica. Escolhemos comparar, para facilitar a compreenso da magnitude do fenmeno no pas, o

    caso brasileiro com o caso americano, o de maior populao praticante e o de maior literatura

    cientfica sobre o tema.

    As tcnicas aplicadas no trabalho de campo foram entrevistas semiestruturadas,

    questionrios autoadministrados e contatos informais em grupos na internet e em redes sociais. No

    total, oito pais foram entrevistados e 62 inquiridos. A amostra, desconfortavelmente reduzida por

    causa, principalmente, do receio de muitos pais quanto a implicaes legais da sua exposio,

    revelou importantes tendncias e padres j encontrados em outros contextos. A finalidade que se

    alcanou com a realizao das entrevistas, presenciais e por telefone, foi a profundidade da

    investigao relativa aos motivos, crenas e opinies dos pais-educadores.

    As concluses do trabalho apontam, em primeiro lugar, naturalmente, para a necessidade de

    mais pesquisa, em especial pedaggica e psicolgica, com os estudantes domiciliares. Em segundo

    lugar, como veremos, revelam que os pais brasileiros praticantes da homeschooling apresentam um

    perfil socioeconmico e ideolgico bastante prximo dos adeptos de outros pases, especificamente

    dos norte-americanos. Os dados coletados evidenciaram que acusaes relativas s motivaes dos

    pais-educadores, como as de que eles seriam individualistas, intolerantes ou isolacionistas, so

    fortemente precipitadas e ideolgicas, no sentido mesmo que Karl Marx emprestava ao termo. E o

    caso de Jnatas de Davi Nunes, dois dos estudantes homeschooled entrevistados durante a pesquisa,

    logicamente suficiente para refutar as generalizaes de que as crianas educadas fora de escolas

    so apartadas do mundo e da vida (COLLUCI, 2012) e no so educados para a sociedade

    (JORNAL...).

    Embora no se tenha avaliado a eficcia da modalidade em termos acadmicos, as

    evidncias parecem sugerir que a educao em casa pode, em certas circunstncias, ser mais apta do

    que os sistemas de escolarizao em massa por definio, despersonalizados para atender

    diversidade de gostos, interesses e habilidades nicas dos agentes por ela educados. O estudo da

    educao domiciliar sugere ainda oportunidade singular para revermos as premissas e os princpios

    em que se radica o ensino compulsrio.

  • 9

    2 CAPTULO - HOMESCHOOLING NO MUNDO 2.1 Experincias e motivaes pelo mundo

    A russa Alisa Chupova, de sete anos, acorda s nove horas da manh. Depois do caf da

    manh, o momento de escrever, enquanto sua me, Ekaterina, a observa de perto. Em seguida,

    leitura e exerccios. Os dias de Alisa tambm so dedicados a visitas frequentes a museus e parques

    de Moscou, onde as palavras que escreve e l ganham um sentido palpvel. Quando estava lendo o

    Jornal da Floresta, do popular escritor infanto-juvenil Vitaly Bianki, ela dedicou uma tarde para

    observar, no Zoolgico, junto com o irmo mais novo e a me, como era a aparncia das codornas,

    perdizes e gavies que povoavam os contos.

    Os dias de Alisa so compartilhados, de modo peculiar, por um seleto grupo de crianas e

    adolescentes russas em idade escolar no pas: assim como a jovem de sete anos, nenhuma delas vai

    escola. A me de Alisa alega que a educao que oferece filha em casa possibilita planejar o dia

    de estudos do melhor modo possvel para a famlia: por exemplo, faz mais sentido ir nadar pela

    manh, quando h poucas pessoas na piscina. Depois disso, a gente pode ir para casa e estudar um

    pouco (AGRANOVICH, 2012, traduo nossa). Os estudos de Alisa, segundo a me, que no v

    motivos para pressa, desenvolvem-se no seu ritmo. Ekaterina no acha fcil educar em casa, pelo

    contrrio, alega que muito mais difcil do que mandar os filhos para a escola. As dificuldades

    sentidas pela me parecem, no entanto, no intimidar outros pais russos, que tem adotado de forma

    expressiva a educao no escolar: a populao praticante passou de cerca de onze mil, em 2008,

    para cem mil neste ano (AGRANOVICH, 2012).

    Em Bangalore, capital do estado indiano de Karnataka, Joshua, de 14 anos, tambm

    educado em casa. H quatro anos, seu pai, Sunil Ruthnaswamy decidiu tir-lo da escola: o filho

    reclamava por no ter tempo para se dedicar a sua paixo, os esportes. Agora, eu tenho tempo para

    fazer o que gosto. Eu estudo trs horas por dia, o que eu acho igual a um dia estudando na escola.

    Eu divido essas trs horas entre o crquete e o remo, e estou muito feliz assim (ULLAS, 2012,

    traduo nossa), fala um contente Joshua. Amit Mathur, desenvolvedor de software, tambm ,

    como Sunil, mais um pai indiano insatisfeito com o sistema escolar do pas. A desconfiana que tem

    em relao ao ensino convencional se relaciona com a sua maior preocupao: Amit no quer ver o

    filho crescendo, como diz, sem pensar. Ele e a esposa educam os filhos com a ajuda de outros

    pais: Ns nos reunimos. Cada pai bom em uma matria. Por exemplo, eu adoro matemtica.

    Ento, quando uma criana precisa de ajuda com ela, eu dou um apoio (ULLAS, 2012, traduo

    nossa). A educao em casa ainda tem nmeros modestos na ndia estima-se que entre quinhentas

  • 10

    a mil crianas sejam educadas desse modo mas uma modalidade em ascenso entre as famlias

    no pas (INDIA..., 2011).

    Sergio e Cristina, residentes em Madrid, so to cticos quanto Amit em relao aos mritos

    da educao escolar. No acreditamos na educao compartimentada em matrias, nem tampouco

    na avaliao por etapas (ZAMORA, 2012, traduo nossa), diz Sergio. Seus dois filhos, um com

    seis anos, os outros dois, gmeos, com quatro, so educados em casa de uma forma ainda mais

    incomum: Se vemos uma lagartixa, podemos acabar falando de dinossauros e meteoritos com um

    livro em mos, mas no seguimos um programa definido, nem um nico texto de apoio

    (ZAMORA, 2012, traduo nossa). A famlia segue um sistema de formao cujo objetivo

    estimular a curiosidade e o autodidatismo dos filhos. Na Espanha, em que a prtica de educar em

    casa ainda considerada ilegal, h cerca de cinco mil pais-educadores.

    Mariana Castro e Rodrigo Quiones moram com os dois filhos, de 9 e 14 anos, nos

    arredores de Quito. Quando a escola em que os garotos estudavam se mudou para longe da

    residncia do casal, foi o momento em que decidiram assumir o papel de pais-professores.

    Percebemos que a educao no pas tem problemas srios e que a sociedade perdeu valores

    familiares que a gente quer reforar com os nossos filhos (ERAZO, 2010, traduo nossa), explica

    Rodrigo. Hoje, os dias de estudo das crianas comeam s 8h30, com os livros disponibilizados

    pelo Ministrio da Educao, e d uma pausa ao meio-dia. tarde, elas se envolvem em atividades

    como semear plantas, praticar esportes e ter aulas de msica. Rodrigo e Mariana foram um dos

    primeiros pais equatorianos a praticarem a educao em casa depois que o Acuerdo Ministerial de

    2009 regulamentou a modalidade no pas. Segundo o pai, tem sido um perodo em que ns temos

    nos aproximado mais de nossos filhos, assim como eles de ns (ERAZO, 2010, traduo nossa).

    Copeland, de 11 anos, filho de Sonya Barbee, me solteira, funcionria pblica e, a partir

    deste ano, me-educadora. O motivo para tirar o filho da escola pblica localizada em uma rea, nas

    suas palavras, realmente pesada (WHEELER, 2012, traduo nossa) de Washington D.C., no foi

    a convenincia ou o cuidado com valores familiares. O garoto, lembra a me, estava perdendo o

    amor pelo aprendizado (WHEELER, 2012, traduo nossa). Agora, com a ajuda de uma

    cooperativa e da av de seu filho que cuida dele dois dias por semana , ela espera recuperar o

    interesse de Copeland. O caso da famlia Barbee ilustrativo de uma tendncia recente de

    diversificao da populao que educa em casa nos Estados Unidos. No pas em que mais de duas

    milhes de crianas so homeschooled, os afro-americanos, como Sonya, representam o segmento

    de maior expanso: segundo os clculos do The National Home Education Research Institute

    (NHERI), eles j so cerca de 220 mil.

  • 11

    Os nove pais apresentados acima, embora distantes espacialmente, aproximam-se no plano

    das ideias e das prticas porque discordam da educao escolar convencional e porque escolheram

    afastar dela os seus filhos. A deciso carrega um significado secular: representa um questionamento

    dirigido diretamente instituio da escolaridade obrigatria, nascida tumultuosamente entre os

    sculos XVI e XIX (GATTO, 2001; ROTHBARD, 1977), e elevada categoria de imperativo social

    e ideolgico universal no ltimo sculo (RAMIREZ; BOLI, 1987, p. 8). Os que o fazem adotam

    tipos diversos do que se convencionou chamar homeschooling (em portugus, educao em casa ou

    educao domiciliar), um nome contemporneo para a tradicional educao no lar, revigorada, entre

    os anos 1960 e 1980, na obra de figuras como Ivan Illich, John Holt e Raymond Moore.

    Hoje, a homeschooling alcanou relevncia mundial, com praticantes em mais de sessenta

    pases e crescimento vertiginoso nos ltimos trinta anos. As motivaes alegadas so to variadas

    quanto as origens dos pais e os modos de aplicao. Mais abaixo, veremos dados relativos ao

    tamanho e ao status legal da modalidade em alguns pases, bem como esboaremos uma breve

    histria do ressurgimento da ideia no ltimo sculo. Antes, algumas palavras sobre a definio da

    educao domiciliar utilizada neste trabalho.

    2.2 Caracterizao do fenmeno

    A acepo de educao domiciliar que ser referenciada neste trabalho fruto do esforo de

    descrever o mais realisticamente possvel as prticas reais e as representaes dos agentes. Assim, o

    que chamaremos livremente ora de homeschooling/home education, ora de educao no escolar, de

    educao domiciliar/domstica, ou de educao em casa/no lar, ser a prtica de pais ou

    responsveis legais educarem, direta ou indiretamente (com delegao a terceiros ou no), os filhos

    ou tutelados em idade escolar fora de escolas regulares, e por mais tempo dentro do lar do que fora

    dele. Enfatizamos que a modalidade em questo, neste estudo, se refere apenas ao nvel da educao

    bsica (ensino infantil, fundamental e mdio), no abrangendo, portanto, a educao superior.

    Simpatiza-se, aqui, com a ideia defendida certa feita por Brian D. Ray de que se uma famlia diz

    que pratica a homeschooling, devemos cont-la como homeschooler (OPLINGER; WILLIARD,

    2004). Acolhemos a definio utilizada por Patricia Lines (2003), que descreve dois tipos bsicos

    de educao domiciliar: a independente (os pais determinam currculos e avaliaes) e o estudo

    domiciliar com matrcula em instituies educativas (e.g. em escolas, onde o estudante domiciliar

    apenas responde a testes). Deixamos de lado, no entanto, outras definies, por acreditarmos que

    so adequadas apenas situao norte-americana (PRINCIOTTA et. al., 2004; RAY, 2010).

    Desse modo, a educao em casa no ser necessariamente sinnimo de ensino, de aulas,

  • 12

    nem de programas ou currculos estabelecidos previamente ao processo educacional. Tampouco

    ser preciso ter professores. Antes, ser suficiente existirem orientadores, guias, facilitadores ou

    pessoas que desempenhem tarefa anloga de acompanhar e sugerir roteiros de estudo na maior

    parte do tempo, enfatizamos, no lar da famlia. Desse modo, a noo abarcar as seguintes

    abordagens (ou mtodos, filosofias) de educao em casa, como so definidas pelos prprios

    agentes, e as possveis e imprevisveis combinaes entre elas1:

    Aprendizagem distncia como uma umbrella (Cover school)

    Educao domiciliar alternativa e holstica

    Instruo atrasada (Delayed instruction)

    Aprendizagem distncia para aprimoramento de crianas superdotadas

    Educao de Thomas Jefferson Mtodo de Charlotte Mason (Living books)

    Desescolarizao2 Escolas cyber/Escolas virtuais Mtodo de educao domiciliar de cadernos (Notebook home schooling method)

    Educao baseada em computador (Computer-based instruction)

    Escola-em-casa3 Mtodo de Enki

    Educao clssica Estudos de unidade Mtodo de Montessori

    Educao domiciliar ecltica Frmula Moore Mtodo de Waldorf

    2.3 Dados da educao em casa no mundo

    Em pelo menos 63 pases, segundo dados da Home School Legal Defense Association,

    organizao sediada no estado americano de Virgnia, a homeschooling no proibida

    expressamente por lei. Em muitos deles, a legislao vaga em alguns, contraditria sendo

    interpretada diversamente por juristas, polticos e famlias4. A ausncia ou a precariedade de

    registros confiveis faz com seja difcil calcular a populao mundial de praticantes da modalidade.

    Apenas nos Estados Unidos, estima-se que 2,04 milhes de crianas sejam educadas em casa, a

    maior populao de homeschooled de que se tem informao.

    O fenmeno cresce a cada ano. No estado australiano de Nova Gales do Sul, o mais

    populoso do pas, estima-se que a expanso do nmero de estudantes domiciliares, entre 2003 e

    1 Fala-se tambm em trs tipos bsicos de educao em casa: aprendizagem estruturada, desescolarizao (unschooling) e

    aprendizagem ecltica (TYPES...). 2 Tambm chamado de: unschooling, aprendizagem auto-dirigida, aprendizagem dirigida pelo prazer (delight directed learning),

    mtodo de educao domiciliar descontrada (relaxed home school method), pesquisa independente. 3 Tambm chamado de: e-escola pblica, mtodo de escola tradicional, educao baseada em livros didticos (textbook-based

    method). 4 Veremos mais adiante que o caso brasileiro deste tipo.

  • 13

    2009, tenha sido de cerca de 60%, passando de 1,4 mil para 2,3 mil registrados no Board of Studies

    local (HOMESCHOOLING...). Na Rssia, os clculos preveem uma curva ainda mais aguda: em

    quatro anos, de 2008 a 2012, o nmero de crianas educadas em casa teria passado de 11 mil para

    cerca de 100 mil um aumento de 900% (AGRANOVICH, 2012). Nos Estados Unidos, a

    relevncia da homeschooling j torna a populao praticante alvo de campanhas presidenciais

    (DIAZ, 2012; O'HERIR, 2012): as estimativas de crescimento da populao educada em casa so

    de 7% (ou mais) por ano entre 2007 e 2010 (RAY, 2011), implicando num aumento da proporo de

    crianas em idade escolar homeschooled de 2,9% para 3,8% entre os referidos anos (RAY, 2011).

    Tabela Maiores populaes estimadas de crianas educadas em casa no mundo, por pas (mil). Estados Unidos 2.040

    frica do Sul 150

    Rssia 70-100

    Reino Unido 20-100

    Canad 80-95

    Austrlia 30-50

    Frana 12-23b Nmero de famlias. b Soma das quantidades de homeschoolers privados e de registrados em ensino distncia (HSLDA). Fontes: ALLEN, 2009; BUNDAY; HOMESCHOOLING...; RAY, 2001; Stio institucional da HSLDA.

    H um notvel predomnio das populaes homeschoolers dos pases anglo-saxes entre as

    maiores do mundo, aparecendo Estados Unidos, frica do Sul, Reino Unido, Canad, Austrlia e

    Nova Zelndia na lista das dez maiores (ver tabela acima). Defendemos a hiptese de que a forte

    tradio jusnaturalista na histria britnica (vide John Locke, William Blackstone e outros) tenha

    favorecido instituies protetoras e instncias jurdicas favorveis aos parental rights. Percebe-se

    tambm a ocorrncia da educao em casa preponderantemente nos pases mais bem situados na

    escala de desenvolvimento humano e econmico, com poucos registros de famlias praticantes nas

    Amricas Central e do Sul e no continente africano.

    Nos pases em que a educao domiciliar proibida, h casos de pais multados, presos e que

    perderam a custdia dos filhos. Na Alemanha, em que h cerca de 400 famlias homeschoolers a

    maioria, crist dezenas de relatos de condenaes e prises ocorridas nos ltimos dez anos5

    mobilizaram pais e organizaes locais e internacionais de proteo dos direitos parentais, como a

    Schulunterricht zu Hause (em portugus, Instruo Escolar em Casa), International Human Rights

    5 Ver os casos das famlias: Dudek, Krautter, Landahl, Gorber (HURD, 2008), Romeike (2008), Plett (COLEN, 2006), Busekros

    (FIFTEEN..., 2007), trs famlias no estado de Westphalia (COLEN, 2005), sete pais presos em Klosterzimmern (RON, 2004), Schaum (UNRUH, 2011), Schulz e Schmidts (HURD, 2010).

  • 14

    Group (IHRG), Home School Legal Defense Association (HSLDA)6 e Home School Foundation

    (HSF). A oposio do governo alemo prtica da educao em casa foi a origem do primeiro caso

    no mundo de asilo poltico concedido a uma famlia homeschooler: o casal Uwe e Hannelore

    Romeike conseguiu, em 2010, deciso favorvel da Justia americana e moram, desde ento, no

    estado do Tennessee (ROBERTSON, 2010).

    Contudo, embora sair do pas seja uma deciso cada vez mais comum entre as famlias

    alemes praticantes7, muitas permanecem. Jrgen e Rosemary Dudek, residentes em Archfield,

    resolveram enfrentar um processo judicial que se arrasta por mais de cinco anos. O casal j foi

    condenado a 90 dias de priso, em 2008 que no cumpriu, pois apelou da deciso , e recorre

    segunda multa (de $120 euros) por educar os sete filhos em casa. A famlia, que continua recebendo

    ameaas do governo, ser objeto do documentrio Building Education by Trusting God, ainda em

    elaborao, do diretor Andreas Holzhauer. Jrgen Dudek lanou neste ano o blog Der Blaue Brief

    (em portugus, A Carta Azul), por meio do qual quer formar um contrapeso ignorncia,

    arrogncia e aos preconceitos profundamente enraizados contra os quais alternativas educacionais,

    como o ensino domstico, esto lutando na Alemanha (PERSECUTED..., 2012).

    Tambm h registros de famlias processadas pelo governo na Sucia, Botswana e Brasil

    (veremos mais adiante). O caso talvez mais conhecido no mundo seja o do garoto sueco Domenic

    Johansson, tomado de sua famlia em 26 de junho de 2009, quando tinha sete anos. O garoto vive,

    desde ento, com famlia adotiva, e o governo s permite visita dos pais uma vez a cada cinco

    semanas e contatos por telefone de quinze minutos a cada duas semanas. Em junho deste ano, um

    tribunal distrital decidiu pela primeira vez a favor do direito de educar em casa dos Johansson, que

    recebem assistncia da HSLDA e da Alliance Defense Fund.

    Dezenas de famlias homeschoolers suecas refugiaram-se em outros pases, especialmente

    nas vizinhas Ilhas Aland, pertencentes Finlndia, desde que o governo aprovou, em 2010, a Nova

    Lei da Educao, que proibiu a modalidade no pas (NEWMAN, 2010). No comeo deste ano, a

    famlia de Jonas Himmelstrand, presidente da Swedish Association for Home Education (ROHUS),

    foi uma das que saram da Sucia. As autoridades polticas tem subestimado profundamente as

    convices dos homeschoolers suecos. A maioria deles no aceita a nova lei. Eles iro responder

    com desobedincia civil ou exlio poltico, afirma Himmelstrand (NEWMAN, 2012, traduo

    nossa).

    Em setembro de 2010, quatro famlias botsuanesas pertencentes Igreja Adventista do

    6 A HSLDA uma das organizadoras da Global Home Education Conference 2012, a primeira do gnero, a ser realizada em

    novembro deste ano, em Berlim. 7 Ver os casos das famlias Landahl (HURD, 2008), Krautter (id.), Plett (BUTTS, 2008; COLEN, 2006), Romeike (KAPRALOS,

    2010).

  • 15

    Stimo Dia, da cidade de Mahalapye, foram presas por desobedecer ordem da justia para

    matricular os filhos em escola. Elas tambm foram multadas e tiveram os materiais didticos

    apreendidos pela polcia em suas casas. Winston Modimoothata, que educa domiciliarmente os

    quatro filhos, se defende: No h nenhuma maneira de eu matricular meus filhos na escola, em

    nenhuma circunstncia. Eu devo obedecer a Deus. As escolas daqui so corruptas e ensinam s

    crianas coisas que vo contra a nossa f e os nossos valores (ONTEBETSE, 2010, traduo

    nossa). Sua esposa, Margaret, desafia: Ns pedimos que mandassem vir investigadores para

    comparar a educao que damos aos nossos filhos com a oferecida nas escolas pblicas, mas eles

    no nos deram a oportunidade (HOMESCHOOLERS..., 2010, traduo nossa). As quatro famlias

    esto sendo assessoradas pela Pestalozzi Trust, organizao sul-africana de defesa legal da educao

    domiciliar.

    2.4 Caso norte-americano

    A populao americana de estudantes domiciliares estimada em 2,04 milhes (RAY, 2011),

    a maior do mundo, superando sozinha a soma das outras nove maiores do globo. Entre 1999 e 2010,

    ela mais do que dobrou, passando a representar 3,8% da populao em idade escolar do pas (contra

    1,7% de onze anos atrs ver tabela abaixo). Nas duas ltimas dcadas, calcula-se que o

    crescimento se deu a taxas de 7-15% ao ano (RAY, 2003, 2004; LINES, 2003). Recentemente, a

    prtica que no incio era dominada por famlias crists da regio do sul rural americano tem

    conquistado novos grupos de adeptos, como as populaes de grandes centros urbanos e os afro-

    americanos (WHEELER, 2012). Annimos, celebridades, grandes empresrios, poetas, msicos,

    polticos, presidentes: a educao em casa tem um significado na histria americana incomum em

    outras paisagens culturais.

    Tabela EVOLUO NO N ESTIMADO DE HOMESCHOOLERS NOS ESTADOS UNIDOS (mil)

    Ano Nmero total % da populao em idade escolar

    2010 2.040 3,8

    2007 1.500 2,9

    2003 1.100 2,2

    1999 850 1,7

    1995-96 700-750 1-2

    1990-91 250-350 Menos de 1 Fontes: BIELICK, 2008; LINES, 1991; RAY, 2011.

  • 16

    A fora da homeschool nos Estados Unidos encontra razes profundas no prestgio que a

    prtica gozava entre foungind fathers do pas: George Washington, Abraham Lincoln, Thomas

    Jefferson e Benjamin Franklin foram todos educados em casa. Em meados do sculo XIX, no

    entato, o movimento pela Common School liderado por Horace Mann, Henry Barnard, James Carter

    e Calvin Stowe toma os principais centros de deciso da educao americana. Leis de frequncia

    escolar obrigatria foram aprovadas por todo o pas relegando o hbito antigo de educar no lar

    margem do ambiente escolstico em que a Amrica se envolvia (FARENGA, 2002).

    Nos anos 1960 e 1970, no entanto, o cenrio das ideias comea a se transformar e tanto a

    esquerda quanto a direita poltica fazem movimentos similares e contrrios s instituies

    dominantes. Como afirma Soard, a esquerda considerou que o governo fazia propaganda direitista.

    A direita, que a propaganda era socialista secular. Em Compulsory Miseducation (1964), Paul

    Goodman, representante da primeira linha, ataca o ento crescente sentimento popular pela

    escolaridade obrigatria, que considerava superstio de massa. Eram os anos das grandes

    reformas da educao pblica americana (GATTO, 2001).

    Anos mais tarde, toda uma gerao de crticos ao direito educao, muitos deles

    influenciados por Goodman, balana o establishment acadmico do pas. Everett Reimer (School is

    Dead, 1970), Ivan Illich (Deeschooling Society, 1971), Harold Bennett (No More Public Schools,

    1972) e William F. Rickenbacker (The 12-years sentence, 1973) formavam a linha de frente de um

    apurado questionamento realidade social escolarizada exposta por Illich. Contudo, o grande

    nome desse boom intelectual, e aquele que deu o passo lgico para a defesa da homeschool, seria o

    educador nova-iorquino John Holt.

    O autor de Instead of Education: Ways to Help People Do Things Better (1976), o primeiro

    livro em que defende explicitamente a educao domiciliar, foi o principal divulgador da inusitada

    proposta de acabar com a educao: nas suas palavras, o insuportvel e anti-humano negcio de

    moldar pessoas (HOLT, 1976, p. 4). Holt, que criara o primeiro boletim especializado em educao

    em casa no mundo, o Growing Without Schooling (1977), foi conduzido popularidade em duas

    participaes no popular The Phil Donahue Show (em 1979 e 1981). A sociedade americana

    conhecia, finalmente, o educador que sonhava com uma sociedade de fazedores (em ingls do-

    ers)8.

    No incio dos anos 1980, o movimento americano pela home education pendeu para aquela

    que havia sido uma das suas primeiras origens: o argumento do direito divino de os pais educarem

    8 Do-er: ... Ele decide o que ir falar, ouvir, ler, escrever, ou sobre o que ir pensar ou sonhar. Ele est no centro de suas prprias

    aes. Ele planeja, dirige, controla e as julga. Ele as faz para seus prprios propsitos que podem, certo, incluir um fim comum a outros. Suas aes no so ordenadas ou controladas de foram. Elas pertencem a ele e so parte dele (HOLT, 1976, p. 3, traduo nossa).

  • 17

    os filhos. Pesquisadores e lderes protestantes como Raymond e Dorothy Moore, Rousas

    Rushdoony e James Dobson seriam os principais responsveis pela nova colorao ideolgica da

    populao homeschooler do pas. Em 1982, em duas participaes ao programa Focus on the

    Family, apresentado por James Dobson, Raymond Moore alerta o mundo de um perigo at ento

    desconhecido: Ns descobrimos que cerca de 70% de todos os problemas de comportamento,

    hoje, so apresentados por jovens que foram para a escola muito cedo (HOMESCHOOL

    NETCAST NETWORK).

    A afirmao era o resultado de mais de dez anos de pesquisas e leituras de mais de sete mil

    estudos focados em desenvolvimento infantil por equipes de trabalho espalhadas por Stanford,

    Michigan e na Faculdade de Medicina da Universidade do Colorado. A publicao do best-seller

    Better Late Than Early (1975) e de School Can Wait (1979), em que o Raymond Moore apresentava

    ao pblico suas concluses, seria um dos marcos do movimento recente pela homeschooling. Para

    muitos, as entrevistas que o autor concedeu a Dobson representariam o lanamento do movimento

    da homeschooling nos Estados Unidos (DALY, 2009; COURT REPORT STAFF, 2007).

    A importncia de Raymond Moore, que em 1981 publicaria mais um dos clssicos da

    educao em casa, o Home Grown Kids, para a divulgao da educao domiciliar pode ser medida

    pelos testemunhos de alguns dos fundadores da Home School Legal Defense Association (HSLDA),

    principal organizao em defesa da modalidade no mundo, criada em 19839. J. Michael Smith,

    presidente e cofundador, lembra que comeou a educar em casa o filho Andrew, ento com cinco

    anos, pouco tempo depois de ouvir a primeira entrevista de Moore ao Focus on the Family. Michael

    C. Ferris, diretor jurdico e tambm cofundador da associao, igualmente incisivo: Raymond

    Moore me apresentou a homeschooling cara-a-cara, em abril de 1982. Sem a sua influncia, minha

    famlia no teria comeado a educar em casa, nem a HSLDA existiria (COURT REPORT STAFF,

    2007, traduo nossa)10.

    Ainda em 1983, mudanas na regulamentao fiscal das escolas crists americanas

    causariam o fechamento de centenas delas pelo pas. Criou-se, ento, a circunstncia para que a

    comunidade crist que ouvira de Moore os malefcios do ensino regular (e pblico) fizesse com que

    a modalidade da educao no lar crescesse espantosamente nas duas dcadas seguintes (MILLER).

    Desde ento, o movimento tem ganhado aliados como Patrick Farenga, Mary Pride, Grace

    Llewellyn, John Taylor Gatto, Linda Dobson e Matt Hern e milhares de organizaes depais

    espalhadas pelo mundo.

    9 Mesmo ano em que Raymond Moore fundaria a Home Education Magazine. 10 Rousas Rushdoony e Moore tambm foram convidados como especialistas e testemunhas em dezenas de julgamentos sobre o

    direito de educar em casa o segundo esteve presente em pases como frica do Sul, Alemanha Ocidental, Gr-Bretanha, Japo, Austrlia e Nova Zelndia.

  • 18

    2.4.1 Situao atual da home education

    No final dos anos 1970, durante a dcada seguinte, e mesmo no incio dos anos 1990, as leis

    estaduais de escolaridade obrigatria foram seguidamente contestadas pela crescente populao de

    homeschoolers americanos. Casos como os de Perchemlides vs. Frizzle (1978) e Michigan vs.

    DeJonge (1993) espalharam-se pelo pas, com tribunais decidindo a favor dos direitos parentais e da

    liberdade de educar. Em alguns deles, os pais tiveram que pagar multas, perderam a guarda dos

    filhos e foram presos (e.g. famlia Shippy; LYMAN, 2000, p. 34). Nas duas ltimas dcadas, o

    nmero de famlias em litgio com a Justia diminuiu substancialmente11, mas a defesa de uma

    legislao mais atuante (e at nacional) quanto educao em casa feita frequentemente na

    imprensa e na Academia.12

    Nos Estados Unidos, como acontece com toda poltica educacional, os requisitos para

    educar em casa (e os subsequentes registros e bancos de dados) variam muito de estado para estado

    (VENDER, 2004). A ausncia de registros oficiais permite apenas estimativas do tamanho do

    fenmeno e o tornam heterogneo, difcil de classificar e de monitoramento caro (BELFIELD,

    2004, p. 18). Sabemos, contudo, que as mais de duas milhes de crianas educadas domiciliarmente

    esto distribudas de modo desigual pelo pas: mais de um quarto (28%) delas est nos trs estados

    mais populosos: Califrnia (262,6 mil), Texas (189,2 mil) e Nova Iorque (124,9 mil).

    Neste ltimo, que tem uma das legislaes estaduais mais rgidas, os pais ou responsveis

    legais que queiram adotar a modalidade devem informar o superintendente do distrito escolar em

    que residem. A legislao estadual determina a elaborao prvia de um plano de ensino (em ingls,

    Individualized Home Instruction Plan, IHIP), e determina as matrias e temas obrigatrios para

    cada ciclo escolar. A criana novaiorquina precisar, ainda, ser matriculada em uma degree-granting

    institution e frequent-la por doze horas semestrais ou o equivalente por ano. No Texas, por outro

    lado, onde a homeschooling no est submetida legislao educacional do estado, so apenas trs

    os requisitos para adot-la: (1) que a instruo seja de boa f (bona fides); (2) o currculo esteja

    em formato visual; e (3) que inclua as matrias de leitura, soletrao, gramtica, matemtica e boa

    cidadania (good citizenship). O segundo maior estado americano est entre os dez que no exigem

    notificao dos pais.

    11 Em 1990-91, segundo Christopher Klicka, da HSLDA, cerca de dois mil homeschoolers com problemas procuraram a organizao

    para assessoramento. De acordo com a The Home School Court Report (afiliada da HSLDA), h 27 processos pendentes na justia do pas (JONES, 2012).

    12 De modo mais comum, o tema volta ao centro do debate aps casos de abuso, negligncia ou morte de estudantes domiciliares (FINEMAN, 2009). Uma lista de casos pode ser encontrada em: (CHILDREN...). Recomenda-se a leitura do artigo de Michael P. Donnelly, Diretor de Relaes Internacionais da HSLDA, a respeito de um deles (DONNELLY, 2012).

  • 19

    A literatura sobre a home education nos Estados Unidos j nos permite traar um perfil da

    seleta populao (RUDNER, 1999) de famlias praticantes: so majoritariamente brancas, de

    classe mdia, protestantes, com pais casados, mes de tempo integral ou quase, e pais-provedores,

    bem mais escolarizadas do que as mdias nacionais e com vrios filhos. Elas normalmente no

    gastam muito com os materiais educacionais e tendem a no subscrever pr-pacotes de programas

    curriculares de servio integral (RUDNER, 1999; STEVENS, 2001; BELFIELD, 2004; RAY,

    2010). Apesar dos padres sociais observados, contudo, famlias de todas as origens sociais e

    raciais esto assumindo a educao de seus filhos (RAY, 2004, apud VENDER, 2004, traduo

    nossa). A populao afro-americana, j dissemos, tem aderido com taxas superiores s gerais.

    Os pais-educadores so multidimensionais (NEMER, 2002, apud VENDER, 2004,

    traduo nossa), mas podem ser agrupados, com relativa segurana, de trs modos ideais: aqueles

    que tm motivaes ideolgicas, motivaes pedaggicas e motivaes ambientais.

    (VANGALEN, 1987 apud VENDER, 2004; NEMER, 2002, traduo nossa). Os primeiros

    desejam passar criana um viso ideolgica particular do mundo (NEMER, 2002, traduo

    nossa). Os pedaggicos querem preparar educacionalmente a criana de um modo especfico,

    separadamente e parte do desejo de incutir vises particulares (NEMER 2002, traduo nossa).

    Os ltimos protegem os filhos de influncias sociais negativas encontradas nas escolas pblicas e

    particulares como drogas, violncia, presso de grupo, panelinhas e mesquinhez.

    Outra maneira de categorizar a populao de homeschoolers a diviso, formulada por

    Stevens (2001), entre crentes (believers, basicamente os cristos protestantes) e os inclusivos

    (inclusives, de tradies e estilos de vida diferentes), classificao que se relaciona diretamente,

    como o prprio autor salientou, com as origens culturais do movimento pela educao em casa nos

    Estados Unidos.

    A maioria das famlias decide adotar a modalidade por mais de uma razo (RAY, 2011). De

    acordo com estudos do National Center for Education Statistics (BIELICK, 2007, traduo nossa;

    PRINCIOTTA et. al., 2004), as principais razes para tirar os filhos da escola foram13:

    13 No Canad, estudos recentes revelaram motivaes semelhantes por parte dos praticantes (ARAI, 2000; VAN PELT et al., 2009).

  • 20

    Motivao 2003 (%) 2007 (%)

    Preocupao com o ambiente das escolas regulares (inclui segurana, drogas ou presso de grupo)

    31 21

    Oferecer instruo religiosa ou moral 30 36

    Insatisfao com a instruo nas escolas regulares 16 17

    Necessidades especiais dos filhos 14 6

    Outras razes (e.g. tempo, distncia, finanas, ensino individualizado etc.) 9 21 Fontes: BIELICK, 2007; PRINCIOTTA et. al., 2004. De acordo com Ray (2011), entre as razes mais comuns esto customizar ou individualizar

    o currculo e o ambiente de aprendizado para cada criana; melhor o ensino acadmico; e utilizar

    abordagens pedaggicas diferentes daquelas tpicas das escolas institucionais. Outras pesquisas e

    famlias citam motivaes adicionais: evitar instruo que contraria os valores ou crenas da famlia

    (e.g. humanismo secular, evolucionismo); evitar interveno inapropriada do governo14 (NEMER,

    2002, apud. VENDER 2004, traduo nossa); incentivar a criatividade e a curiosidade inatas da

    criana; prover ateno individual; ou prover um ambiente positivo de aprendizagem (VENDER,

    2004). Belfield (2004 apud VENDER, 2004, traduo nossa) indica que a educao domiciliar

    mais comum em reas no metropolitanas com poucas escolas privadas.

    Nos Estados Unidos, h pelo menos 11 organizaes nacionais de apoio homeschooling e

    mais de 1,8 mil espalhadas por todos os estados do pas (HSLDA). Calcula-se que os pais-

    educadores americanos poupem cerca de US$ 16 bilhes aos prprios bolsos em impostos e aos

    gastos dos sistemas pblicos de ensino (BURKE, 2009). Com uma literatura pujante, h mais de

    oito mil ttulos com homeschool venda na Amazon.com e incontveis sites sobre o assunto:

    institucionais, comunitrios, blogs de pais e defensores da modalidade. So igualmente abundantes

    companhias de currculos, programas de estudos, de viagens, passeios, acampamentos, sites com a

    proposta de learn by doing (e.g. homeschoolmath.com, homeschoolsnowboarding.com) etc.

    (VENDER, 2004). J foram lanados pelo menos dois filmes dedicados ao assunto (Inventing a

    Girl: An Experience in Homeschooling, de 2000, e Schooled, de 2007) e dois esto em andamento

    (Class Dismissed e Schooling Yourself).

    A Academia americana foi o seleiro das primeiras (e tambm de algumas das mais recentes)

    pesquisas sobre a educao em casa, que comearam nos anos 1980, com estudos de caso como os

    de Beverly Ann Sollenberger Schemmer (1985), Peter Levi Reynolds (1985) e Jennie Finlayson

    14 Nas palavras do cientista poltico Rob Reich: [] muitos home-schoolers [] continuariam educando em casa mesmo que

    tivessem uma escola pblica excepcional bem ao lado da sua residncia. Eles simplesmente discordam da autoridade estatal, que estendem no apenas ao ambiente escolar, mas tambm para hospitais do governo ou regulamentos de outro tipo (TOWNSEND, 2012, traduo nossa).

  • 21

    Rakestraw (1987). Segundo o pesquisador Brian D. Ray, os resultados das pesquisas foram

    favorveis prtica:

    Rakestraw, Reynolds, Schemmer e Wartes estudaram aspectos das atividades sociais e das caractersticas emocionais das crianas educadas em casa. Eles descobriram que essas crianas esto ativamente envolvidas em muitas atividades fora de casa com iguais, crianas de idades diferentes e adultos. Os dados apresentados por suas pesquisas sugerem que as crianas educadas em casa no esto sendo isoladas socialmente, nem so emocionalmente desajustadas. (RAY, 1989, apud KLICKA, 2007, traduo nossa). Alm de estudos de caso e surveys com pais e crianas educadas em casas (CHATHAM-

    CARPERTER, 1994; GUSTAFON, 1988; JOHNSON, 1991; MONTGOMERY, 1989; RAY, 1990;

    WARTES, 1988, apud MEDLIN, 2000) foram realizadas, tambm na virada para os anos 1990,

    verificaes do comportamento social e da socializao dos estudantes domiciliares (WARTES,

    1987), pesquisas em que eles eram comparados diretamente com alunos de escolas convencionais

    (DELAHOOKE, 1986; KITCHEN 1991; LEE, 1994; SHYERS 1992; SMEDLEY, 1992; STOUGH,

    1992, apud MEDLIN, 2000) e outras em que eles no eram comparados (KELLEY, 1991;

    MEDLIN, 1993, 1994; TAYLOR, 1986; TILLMAN, 1995 apud MEDLIN 2000).

    O estudioso Richard G. Medlin (2000), que revisou a literatura, percebeu que alguns dos

    primeiros estudos utilizaram tcnicas pouco confiveis e que apresentaram as falhas habituais de

    um campo ainda muito novo (MEDLIN, 2000, p. 15, traduo nossa). Isso, no entanto, no

    impediu que concluses preliminares fossem tiradas pelo pesquisador:

    As crianas educadas em casa esto tomando parte de rotinas dirias de suas comunidades. Elas certamente no esto isoladas, na verdade, esto associadas com e sentem-se prximos a todo tipo de pessoa. Os pais delas podem tirar muito do crdito por isso. Pois, com o desenvolvimento social de longo prazo dos filhos em mente, eles ativamente os encorajam a tirar proveito das oportunidades sociais externas famlia. As crianas educadas em casa esto adquirindo as regras de comportamento e os sistemas de crenas e atitudes de que necessitam. Elas tm boa auto-estima e esto propensas a demonstrar menos problemas de comportamento do que outras crianas. Essas crianas podem ser mais maduras socialmente e tambm tem melhores habilidades de liderana do que outras crianas. Igualmente, parecem estar agindo efetivamente como membros da sociedade adulta. (MEDLIN, 2000, p. 17, traduo nossa) As pesquisas que tiveram como objeto as consequncias de longo prazo da educao domiciliar

    sobre os estudantes tambm foram favorveis a esse modelo (GALLOWAY, 1998; GALLOWAY &

    SUTTON, 1997; KNOWLES & MUCHMORE, 1995; RAY, 1997; WEBB, 1990, apud MEDLIN 2000).

    Algumas das mais recentes e completas delas (RAY, 2003; VAN PELT et. al., 2009) indicam que os

    adultos que foram educados em casa so mais participativos em atividades comunitrias, eleies e

    sentem-se mais ntimos da poltica do que os seus pares escolarizados. Alm disso, so mais frequentes

    e formam-se mais em instituies de ensino superior, tem renda mais elevada e so menos dependentes

    do governo. Esses resultados so condizentes com um bom nmero de pesquisas realizadas para

    mensurar o desempenho acadmico dos estudantes domiciliares (RAY, 2009; RUDNER, 1999).

  • 22

    2.5 Crticas

    A crtica mais comum educao em casa a que formula nos termos seguintes: Em

    casa, a criana no tem como trabalhar o aprendizado social (ERAZO, 2010, traduo nossa), a

    mera relao em famlia dificilmente estimular o completo desenvolvimento da personalidade da

    criana (WEI, 2005, traduo nossa) ou s a escola proporciona conhecer pessoas de idades

    diferentes, culturas diferentes, com deficincias e de outros pases (LVAREZ, 2008, traduo

    nossa). A questo que foi levantada por trs profissionais ligados educao -- em trs continentes

    diferentes -- popularmente chamada de a questo da socializao (MEDLIN, 2000, traduo

    nossa), tambm conhecida como the S problem, em ingls. Esse o tipo mais disseminado, na

    Academia e fora dela, de crtica modalidade. Dela derivam argumentos adicionais.

    A crena de que uma socializao adequada s pode ser oferecida em instituies de ensino

    estatais ou reguladas pelo governo tem relao direta com mais dois tipos de objeo: (1) a

    educao em casa um mal social ou no serve aos interesses sociais (GOLDSTEIN, 2012 ,

    traduo nossa)15; e (2) a modalidade um mal em potencial. A primeira foi defendida de modo

    bastante ilustrativo por Riegel (2001), que aposta nas incoerncias de Ivan Illich e John Holt para

    atacar a home schooling. A autora lamenta que a modalidade no contribua para a luta contra-

    hegemnica (RIEGEL, 2001, p. 112, traduo nossa) anticapitalista e prejudicaria a construo do

    ensino pblico progressista e democrtico (RIEGEL, 2001, p. 109, traduo nossa). Alm disso,

    aponta mais dois demritos: a educao em casa adequada e possvel apenas para uma pequena

    minoria de crianas e tende parentocracia (os resultados educacionais das crianas so

    influenciados mais pelo status e capital cultural dos pais do que pelas habilidades e trabalho delas

    prprias).

    A segunda crtica foi feita recentemente por West (2009) e Fineman (2009). O primeiro autor

    formula de maneira clara a premissa do seu argumento: os danos que o 'direito de educar em casa'

    pode infligir sobre as crianas assim educadas (WEST, 2009, p. 8, traduo nossa). De acordo com

    ele, existem sete: abuso fsico; sade pblica (ausncia de imunizao); ausncia de cuidado

    igualitrio e cidado (em casa, o filho amado pelos pais porque ele filho); fundamentalismo

    poltico; servilidade tica; risco de atraso educacional; e econmico. West, que diz no ser

    contrrio educao em casa, mas, sim, a sua desregulamentao, defende a atuao do Estado-

    regulador para assegurar ensino consistente com as aptides dos estudantes (WEST, 2009, p. 19,

    traduo nossa) e proteger os direitos das crianas cidadania responsvel, autnoma e ativa

    (REICH, 2002, apud WEST, 2009). Recriminalizar a prtica no uma opo vivel, em qualquer 15 Patrick Farenga (2012) respondeu a Dana Goldestein em seu blog, PatFarenga.com.

  • 23

    caso (WEST, 2009, p. 11, traduo nossa), conclui o autor.

    Martha Fineman (2009) tambm contesta possibilidades e a sua argumentao pode ser

    resumida da forma seguinte:

    1. A famlia pode no ser um contexto fcil para se afirmar a individualidade da criana; 2. Os pais podem no ser capazes de preparar a criana para o futuro em um mundo complexo,

    tcnico e rapidamente em transformao; 3. Algumas decises paternas podem causar danos para as crianas (idem); 4. Os pais podem passar para os filhos sistemas de crenas opressivos e hierrquicos; 5. Os interesses dos pais podem no ser os mesmos dos filhos; 6. Os pais podem negligenciar, doutrinar, oprimir, abusar, violentar e at matar os filhos.

    A concluso da autora, defensora de um paradigma que leve os interesses das crianas a

    srio (FINEMAN, 2009, p. 14, traduo nossa), se d a favor da educao pblica compulsria e

    universal. Nela, a lio que Fineman considera bsica e universal seria ensinada e vivida por cada

    criana americana: devemos lutar juntos para nos definir como uma coletividade e como

    indivduos (FINEMAN, 2009, p. 15, traduo nossa). A ausncia de escolha entre mtodos e

    abordagens educacionais, espera confiante, faria com que os pais homeschoolers concordassem em

    se preocupar com as oportunidades de todas as crianas, e no apenas com as de seus filhos.

    Por fim, poucos dos crticos questionam a possibilidade de sucesso intelectual ou acadmico

    dos estudantes domiciliares um tipo de objeo bastante em voga no incio dos anos 1990 ,

    embora ainda se encontrem estudiosos que refutam a ideia de que a educao em casa est

    envergonhando as escolas pblicas com uma extraordinria safra de estudantes brilhantes

    (OPLINGER; WILLIARD, 2004, p. 1, traduo nossa). Relacionado a esse gnero de contestao

    est o argumento que pe em questo representatividade das amostras utilizadas por pesquisas

    favorveis modalidade (REICH, 2011; WEST, 2009).

  • 24

    3 CAPTULO - A EDUCAO DOMICILIAR NO BRASIL PROFESSORA. Uma senhora, filha de uma das primeiras famlias da corte, perfeitamente habilitada a leccionar inglez, francez, portuguez, arithmetica, geographia, historia, princpios de piano e trabalhos de agulha, offerece seus prstimos aos Srs. Pais de famlia, podendo dar de si as melhores referenciais; informa-se na travessa de S. Francisco de Paula n. 22 A. (Jornal do Comrcio, 15/01/1889, p. 7 apud VASCONCELOS, 2005) A segunda metade do sculo XIX foi um perodo de profundas transformaes no ambiente

    dos costumes e das ideias, mas um fenmeno mantinha-se, em essncia, no apenas pouco alterado

    estava em seu auge. Falamos da educao domstica, da educao na Casa (VASCONCELOS,

    2005) e dirigida pelas famlias, prtica que fora trazida na bagagem cultural dos colonizadores

    portugueses, franceses, holandeses e espanhois. A historiografia desse tipo de educao permanece

    restrita, certamente, s elites (inicialmente, Cortes e nobreza; mais tarde, alta burguesia), contudo,

    no final do sculo XIX, a modalidade era aspirao e, provavelmente, realidade para parcela

    significativa da classe mdia urbana do pas. Em 1887, 87% da populao em idade escolar

    brasileira estavam fora das cerca de seis mil escolas existentes no pas. Eram mais de 1,5 milho de

    crianas e jovens recebendo outro tipo de educao, ou, simplesmente, sem nenhuma instruo

    (VACONCELOS, 2005, p. 51), a grande maioria fora do crculo econmico e poltico das elites.

    O breve texto que serve de epgrafe deste captulo parece apresentar apenas uma senhora a

    oferecer aulas particulares, bem semelhantes s que temos atualmente. No entanto, foi publicado

    h mais de cem anos. Na edio de 15 de janeiro de 1889, o Jornal do Commercio um dos dirios

    com maior tiragem da poca na Provncia do Rio de Janeiro, fundado em 1827 divulgava 52

    anncios relativos educao domstica, um tero dos anncios sobre educao naquele dia, sendo

    31 de professores particulares (os mestres que davam lies por casas) e 21 de preceptores

    (mestres que moravam na residncia da famlia contratante). O jornal foi utilizado como uma das

    principais fontes da historiadora Maria Celi Chaves de Vasconcelos em estudo realizado sobre a

    educao domiciliar do Brasil oitocentista. Nos exemplares selecionados por ela, vemos as

    transformaes sofridas na linguagem dos anncios, reflexos das mudanas de mentalidade: o

    mestre ou mestra que procurava emprego comeou ostentando ser estrangeiro e estar em estado

    de ensinar; depois, alardeou bons costumes e um bom partido; para, finalmente, apresentar as

    habilitaes necessrias e a devida carta da instruo pblica (VASCONCELOS, 2005).

    Havia trs modelos bsicos e ideais de educao domiciliar no Brasil Imprio (e no

    comeo da Repblica): o primeiro era composto pelos professores particulares (pouco distintos

    dos que temos hoje), mestres que no residiam nas casas de famlia onde davam aulas; um segundo

    modelo era o dos preceptores (por vezes, chamados de aios/aias ou amos/amas), que moravam na

  • 25

    residncia familiar, mais frequentemente, na de famlias mais ricas e em fazendas interioranas; um

    ltimo modelo era o das aulas-domsticas, ministradas por membros da famlia ou por clrigos,

    como o padre-capelo, que no cobravam pelas lies.

    Os mestres das casas, segundo Vasconcelos (2005), desempenhavam um papel importante

    no Brasil do sculo XIX, de populao diminuta e espaada. Compunham-se de homens, mulheres

    (dominantes a partir da dcada de 1870), estrangeiros (especialmente requeridos para aulas de

    lnguas) e brasileiros, contratados, na maioria das vezes, de forma verbal pelos pais dos futuros

    alunos, com quem combinavam o contedo, os mtodos, os dias e horrios (no caso dos professores

    particulares). Para julgar os mritos dos candidatos, os pais consideravam o histrico profissional (a

    que patres serviram), o tempo de servio, a idade, o leque de matrias ensinadas e, obviamente, o

    preo cobrado por cada lio. As aulas domsticas frequentemente seguiam o cronograma dos

    colgios e algumas de suas normas convencionais, como as de abertura das aulas e calendrio

    letivo (VASCONCELOS, 2005).

    Os professores e preceptores, provavelmente mais bem remunerados do que os professores

    de colgios, tambm concorreram entre si, especialmente a partir da dcada de 1870, quando era

    comum ler-se nos anncios preos razoveis e garantias de aproveitamento. No final do sculo

    XIX, no entanto, a estabilidade do trabalho nos colgios particulares e pblicos em expanso

    comeou a atrair os mestres das casas. Foi o incio do declnio da profisso que fora imprescindvel

    elite do pas e que trazia consigo o prestgio secular do ofcio virtuoso das Cortes

    (VASCONCELOS, 2005, p. 63).

    3.1 Situao atual da educao domiciliar

    Pouco mais de um sculo depois16, a educao domiciliar volta a ser objeto da ateno de

    grandes veculos de imprensa, desta vez, no em anncios comerciais banais, mas em reportagens

    de polmicas17. A re-noticiao do fato sintomtica do retorno da ideia ao pas nos ltimos

    vinte anos. Hoje, no entanto, a intromisso do Estado na educao particular no mais

    considerada grave transgresso da lei (VASCONCELOS, 2005, p. 21), como j o foi na primeira

    metade do sculo XIX, nem os pais que educam em casa costumam delegar a tarefa para terceiros

    (preceptores ou professores particulares). Antes, assumem-na quase que integralmente.

    Um trao comum, no entanto, aproxima (e distancia) a prtica da educao no lar do passado

    16 No sculo XX, a educao domiciliar permanece invisvel s estatsticas oficiais. O ensino domstico que aparece documentado

    nos Anurios Estatsticos dos anos 1930 e 1940 refere-se ao ensino profissional de artes domsticas. 17 Os casos das famlias Vilhena Coelho e Andrade Nunes, em que houve litgio com a Justia, foram os primeiros a aparecer nos

    grandes veculos de imprensa do pas.

  • 26

    e a de hoje: a influncia de costumes estrangeiros na aculturao da modalidade. Assim, se as

    famlias abastadas do sculo XIX buscavam imitar a nobreza e a realeza de Frana e Inglaterra, as

    atuais famlias de classe mdia que educam em casa inspiram-se, sobretudo, em casos norte-

    americanos. A maioria delas, estima-se, crist maneira do que acontece nos Estados Unidos e

    as que adotam a modalidade h mais tempo (desde meados da dcada de 1990), conheceram-na, em

    geral, por meio de lderes religiosos evanglicos originados daquele pas, em visita ao Brasil ou

    imigrados.

    Duas famlias ilustram bem esse padro: o pastor Rinaldo Belisrio e a esposa Edenir,

    pedagoga, residentes em So Paulo, comearam a praticar a educao domiciliar com os quatro

    filhos em 1994. O exemplo que seguiram foi o de David Bennet, pastor batista radicado no Brasil

    desde 1983, que educou em casa nove dos dez filhos. Hoje em dia, as crianas no aprendem a ter

    carter, honestidade e respeito na escola (PACELLI, 2001), dizia Bennet, que tambm reclamava

    da baixa qualidade do ensino regular. Desde 1997, a dona de casa Darclia Bueno, residente em

    Braslia, educa no lar oito filhos (de um total de dez), junto com o marido, o taxista Josu. A

    inspirao veio de missionrios protestantes da Nova Tribos do Brasil, de matriz americana, que

    educavam famlias indgenas na Amaznia. Na escola, o governo est doutrinando uma gerao

    inteira 'pra' irresponsabilidade e sexo livre, e desprezando a famlia, defende Darclia (ver relato

    mais abaixo).

    O trnsito de ideias entre as comunidades protestantes americana e brasileira revelou-se

    presente tambm nas experincias de muitas famlias que adotaram a educao domiciliar por

    influncia de lderes religiosos brasileiros (pastores) inspirados em lderes daquele pas. A famlia

    de Cleber Nunes, empresrio residente em Vargem Alegre/MG, considerada exemplar por um

    nmero significativo de adeptos e demonstra bem esse segundo padro de difuso do fenmeno. O

    caso do pai-educador que tirou da escola, em 2005, os dois filhos mais velhos, Jnatas e Davi, o

    mais noticiado pela imprensa e a controvrsia jurdica em que se tornou a inusitada deciso, e que j

    resultou em multas e condenaes, uma das mais longas do pas.

    Cleber, que diz ter sofrido censuras de todos os lados depois que passou a educar em casa,

    foi apoiado por Carlos Cardoso, pastor da igreja que o empresrio frequentou por dois anos e da

    qual participava quando decidiu desescolarizar os filhos (ver relato mais abaixo):

    Eu me lembro do Cleber voltando dos Estados, h uns seis, sete anos atrs, e a gente vindo aqui pra Timteo, e ele perguntou pra mim se eu j havia ouvido falar da homeschooling. E eu falei que j. E a ele perguntou o que que eu achava. Eu falei: O que que eu acho? U, se eu tivesse tido filhos, eu nunca teria mandado eles pra escola. 'T' procurando algum, Cleber, que tenha a coragem de fazer isso no Brasil. A, ele ganhou fora!. Desde ento, Carlos, que no tem filhos, defende a prtica em pregaes e orienta, junto

  • 27

    esposa, Acir, do lar, famlias de fiis que j a adotaram ou que pensam em faz-lo. O pastor recorda

    que conheceu a homeschooling em seminrios realizados nos 1980, no interior mineiro, pelo casal

    de missionrios americanos Patrick e Nedra Dugan. O trabalho desenvolvido por ele na igreja que

    segue a tradio crist primitiva de cultos domsticos tem convencido inclusive outros lderes.

    Muitos esto concordando, afirma. A relevncia das pregaes de Carlos Cardoso para a expanso

    da educao domiciliar no Brasil evidente. Ricardo Dias e Juliana Starling, cofundadores da

    Associao Nacional de Educao Domiciliar (ANED), participavam da igreja quando da criao

    da organizao, em 2010, iniciativa que foi bastante incentivada por Carlos. Ricardo, que

    consultor comercial e preside a associao, pastoreado pelo amigo h mais de vinte anos.

    A igreja de cultos domsticos, que est espalha por quase todos os estados brasileiros e conta

    com cerca 30 mil fiis, nos clculos de Carlos Cardoso, , provavelmente, a instituio que mais

    concentra famlias adeptas da educao em casa no pas. Segundo o pastor, as famlias praticantes

    da igreja seriam quase trezentas, assim distribudas: 100, no estado da Bahia; 170, em Minas Gerais;

    e, aproximadamente, 10 residentes na cidade de Cascavel, no Paran. O fenmeno que atesta a

    expressiva proporo de cristos entre os homeschoolers brasileiros (estimados entre 700 e 1.000

    famlias18) indcio da principal dinmica de difuso da prtica no pas, que teria frente lderes

    religiosos evanglicos (brasileiros ou no) radicados em grandes centros urbanos, mas com

    penetrao em mdias e pequenas cidades do interior.19

    Alm desse movimento de propagao, podemos identificar mais dois, independentes de

    organizaes religiosas, que esto em crescimento e com tendncia a ser tornarem mais fortes nos

    prximos anos: o primeiro capitaneado por blogs sobre o assunto, grupos de discusso na internet

    e grupos informais fora dela; e o ltimo, gerado pela ao da ANED e da Anplia20. possvel ainda

    delinear dois tipos mais gerais de expanso do fenmeno: uma, intencional, posta em ao por

    igrejas e associaes laicas; e outra, no planejada, com efeitos no premeditados pelos agentes, e

    que pode ser verificada a partir do alcance pblico de blogs, sites noticiosos, grupos de discusso,

    matrias e reportagens jornalsticas, marketing espontneo etc.

    A ausncia de dados oficiais sobre a quantidade de famlias que educam em casa no Brasil

    18 A ANED j tem o registro de mais de 400 famlias adeptas da educao domiciliar. Ricardo Dias, presidente da associao, aposta

    na existncia de milhares de praticantes (PROGRAMA...). O pai-educador Cleber Nunes calcula que h pelo menos 500 famlias homeschoolers, enquando o deputado federal Lincoln Portela (PR/MG), autor do projeto de lei n 3.179, que pretende regulamentar a prtica, est est convencido de que mais de mil famlias a adotam: 400, em Minas Gerais e 250 famlias em Santa Catarina. Segundo o parlamentar, as fontes dos dados so e-mails e telefonemas que recebe de famlias.

    19 Veja-se, alm da cidade de Cascavel, o caso das mineiras Timteo, Ipatinga e Coronel Fabriciano, situadas na regio do Vale do

    Rio Doce, em que h cerca de trinta famlias educando em casa, a maioria frequentadora da igreja em que Carlos trabalha e fortemente influenciada pelo exemplo de Cleber Nunes (HOLANDA, 2012).

    20 Aliana Nacional para Proteo Liberdade de Instruir e Aprender, movimento sem existncia jurdica criado por Cleber Nunes

    em 2010.

  • 28

    torna problemtica a mensurao exata da dimenso do fenmeno. H, certamente, mais de 400

    famlias praticantes, nmeros que, segundo depoimentos de membros da ANED, tem crescido a

    taxas significativas nos ltimos anos. A composio demogrfica dessa populao era, at ento,

    pouco conhecida da Academia e do pblico, lacuna que tentamos preencher em trabalho de campo.

    Para esse fim, foram aplicados questionrios autoadministrados a uma amostra de 62 pais-

    educadores brasileiros, que responderam a questes sobre condies socioeconmicas, motivaes,

    participao em organizaes de apoio e comunicao com outras famlias praticantes. Buscamos

    esclarecer, inspirados em Weber, os fins perseguidos subjetivamente pelas famlias tpico que ser

    explorado mais adiante, na subseo dos estudos de caso.

    Padres sociais, na acepo durkheimiana do termo, de que antes tnhamos apenas indcios e

    sugestes pouco elaboradas empiricamente foram verificados com razovel clareza. Sabemos,

    agora, que, assim como nos Estados Unidos (RAY, 2010), a maioria dos homeschoolers brasileiros

    que compuseram a amostra acima casada, crist, tem mais anos de estudo do que a mdia da

    populao brasileira, vive nos estados mais populosos do pas (So Paulo e Minas Gerais) e, de

    modo significativo, no costumam gastar muito com a educao em casa (ver resultados da

    pesquisa no apndice). Tendncias igualmente importantes referentes aos agentes da educao

    domiciliar, suas motivaes e abordagem da modalidade aplicada sero expostas mais adiante,

    quando apresentarmos os oito pais entrevistados durante a pesquisa. Outros dados sero abordados

    medida que descrevermos o fenmeno observado.

    O movimento em favor da educao domiciliar ainda incipiente no pas. No parece

    haver, alm da ANED, de nenhuma outra associao ou instituio formal dedicada defesa ou ao

    reconhecimento legal da modalidade pelo menos, no tivemos notcia de nenhuma. H, no

    entanto, blogs e grupos de discusso (em redes sociais e fora delas), nos quais os praticantes e

    interessados na educao em casa se comunicam. Quase metade dos pais inquiridos mantm contato

    com outros pais-educadores e apenas 32,3% deles no participam de organizaes de apoio,

    brasileiras ou internacionais. Os blogs em lngua portuguesa mais visitados pelos pais brasileiros

    so quase uma dezena21 e os grupos de discusso tem sido os espaos de maior dilogo. L,

    marcam-se encontros, discutem-se casos, polticas e trocam-se materiais, recursos pedaggicos e

    experincias. No Facebook, h grupos especficos por estados, criados neste ano pela ANED;

    tambm existem outros hospedados no Google, como o Educao em Casa BH e o Homeschooling

    Brasil.

    Em algumas cidades, j aconteceram reunies de pais: em 2011, nas cidades do Rio de

    21 So eles: Aprender Sem Escolas (de Portugal), Desescolarizar, Educao de Crianas, Educao Domiciliar, Educao e Liberdade,

    Educao em Casa, Escola em Casa, Por Uma Aprendizagem Natural.

  • 29

    Janeiro e de So Paulo; neste ano, em Taquara (RS), So Paulo e Belo Horizonte. A ANED, que est

    planejando a realizao de mais um encontro, em Santa Catarina, tem divulgado as reunies e

    participado da organizao ou divulgao de algumas delas. Nesses encontros, costume os pais

    levarem consigo tambm os seus filhos, para participarem das conversas e conhecerem outras

    crianas educadas em casa. Foi o que aconteceu, por exemplo, em 15 de janeiro, no Primeiro

    Encontro Gacho de Famlias que Ensinam em Casa, a que compareceram oito famlias gachas e

    duas catarinenses. Elas passaram o dia juntas, trocando experincias, dificuldades e ideias sobre a

    modalidade de ensino.

    A produo acadmica brasileira sobre a educao em casa ainda acanhada, compondo-se

    apenas de um trabalho de campo (estudo de caso de Fabio Schebella (2007)) e uma dezena de

    estudos jurdicos e arguies filosficas. Os crticos da modalidade afirmam que educar em casa

    humanizar um sujeito numa espcie de 'bolha' protetora calcada em preconceitos (VIANA, 2011,

    p. 7) e que a famlia no d conta das inmeras formas de vivncia de que todo o cidado participa

    e h de participar (CURY, 2006, p. 670). Houve sugestes tambm no sentido de que tanto a

    teoria como a prtica do homeschooling se baseiam em hipteses antipolticas e antidemocrticas

    (BARBOSA, 2011, p. 2). Nas participaes de estudiosos crticos educao domiciliar em

    matrias jornalsticas e programas de debate televisivos, so frequentes declaraes como estudar

    em casa no estimula a incluso (HOLANDA, 2012), isso o fim da democracia e da vida social

    (BRASIL...)22 e que na educao domiciliar as crianas so apartadas do mundo e da vida

    (COLUCCI, 2012).

    A literatura favorvel prtica no Brasil contesta os argumentos relativos socializao e

    eficcia acadmica da educao domiciliar com referncias, basicamente, produo cientfica

    americana e dos principais defensores da causa naquele pas (CELETI, 2011; WADA, 2011). O

    estudo de caso referido acima foi realizado, em Santa Catarina, com um aluno e trs ex-alunos

    domiciliares, e com a aplicao de questionrios e acompanhamento pedaggico. A concluso do

    autor foi de que os benefcios levantados pelos simpatizantes da educao domiciliar so

    corroborados pelas experincias prticas pesquisadas (SCHEBELLA, 2007, p. 57).

    3.2. Legislao

    A educao em casa, vimos, j foi prtica habitual, normal no pas. A Constituio Poltica

    22 Recentemente, Rud Ricci arguiu ainda, em resposta a um pai que dizia haver pesquisas mostrando que a educao em casa no

    resultava em fracasso: Fui professor de mestrado e de doutorado da educao, eu conheo a literatura. No existe pesquisa que diga isso que voc est dizendo. No existe. definitivo isso (BRASIL...).

  • 30

    do Imprio do Brazil, de 1824, permitiu que a modalidade se desenvolvesse livremente durante

    quase setenta anos, constituindo uma significativa rede de educao domstica. Alis, nenhuma

    das constituies republicanas tampouco proibiu ou imps entraves prtica (MACHADO). Em

    duas delas, a de 1946 e a de 1967, a educao no lar foi expressamente mencionada como

    possibilidade (art. 166 e art. 168, respectivamente). A Lei de Diretrizes e Bases de 1961, em seu

    artigo 30, dizia:

    Art. 30. No poder exercer funo pblica, nem ocupar emprego em sociedade de economia mista ou empresa concessionria de servio pblico o pai de famlia ou responsvel por criana em idade escolar sem fazer prova de matrcula desta, em estabelecimento de ensino, ou de que lhe est sendo ministrada educao no lar. (BRASIL, 1961) Mesmo depois da promulgao da Constituio de 1988, a educao domiciliar continuaria

    permitida no Brasil por mais dois anos. A primeira lei brasileira a proibir a prtica foi o Estatuto da

    Criana e do Adolescente, de 1990, que, no artigo 55, obriga a matrcula na rede regular de ensino.

    A norma teria sido referenciada pela Lei de Diretrizes e Bases de 1996 (art. 6), que prev

    igualmente matrcula obrigatria no ensino fundamental. H interpretaes, no entanto, que

    consideram o efeito jurdico dessas leis ordinrias anuladas pela ratificao de tratados

    internacionais de direitos humanos da parte do governo brasileiro23 (MACHADO; MOREIRA,

    2008).

    Hoje, a educao domiciliar oficialmente proibida pela justia brasileira. Em 2002*, o

    Superior Tribunal de Justia (STJ) indeferiu (por seis votos a dois) o pedido de Carlos Alberto C. de

    Vilhena Coelho, procurador da Repblica, e Mrcia Marques O V. Coelho, bacharel em

    Administrao de Empresas, de educar seus filhos em casa. Foi a primeira vez em que a modalidade

    foi objeto de discusso em um tribunal superior brasileiro. O casal, ento residente em Anpolis

    (GO), defendia o direito de ensinar o contedo do ensino fundamental brasileiro para os seus filhos

    (ento, com 11, 7 e 9 anos), sem que eles precisassem frequentar escola (j estavam matriculados

    em uma), para onde iriam s para serem avaliados.

    A interpretao predominante no julgamento do Mandado de Segurana N 7.407, impetrado

    pelos pais, foi a do ministro-relator Peanha Martins. Ele alegou no haver regulamentao na

    legislao vigente para a educao domiciliar e acrescentou que os filhos no so dos pais... so

    pessoas com direitos e deveres, cujas personalidades se devem forjar... no convvio social formador

    da cidadania24. Em 2007, o professor universitrio Luiz Carlos Faria da Silva, 56, e a pedagoga

    Dayane Dalquana, 38, residentes em Maring (PR), conseguiram autorizao da Justia para educar

    em casa. Desde ento, a educao oferecida pelo casal aos filhos Lucas, de 14 anos, e Jlia, de 12, 23 Os tratados seriam a Declarao dos Direitos Humanos da ONU e a Conveno Americana dos Direitos Humanos (Pactos de San

    Jos da Costa Rica), de 1969. 24 Cf. Mandado de segurana n. 7.407 DF (2001/0022843-7).

  • 31

    acompanhada por meio de provas peridicas (atualmente, anuais) aplicadas por equipe indicada

    pelo Ncleo Regional de Educao e por meio da aplicao de avaliaes psicolgicas. O caso o

    nico do pas em que houve admisso formal da modalidade pela Justia brasileira25.

    Com a publicidade do fenmeno, surgiram propostas de regulamentao estatal da educao

    em casa. Na histria da Nova Repblica, foram oito, todas de autoria de deputados: seis projetos de

    lei federais, um distrital e uma proposta de emenda constituio (PEC). Desse total, quatro foram

    apresentados nos ltimos quatro anos e dois pares de projetos tramitaram anexados um ao outro.

    Apenas o mais recente projeto de lei e a PEC continuam em tramitao, o restante foi rejeitado. Os

    autores, pertencentes a sete partidos diferentes, sugeriram desde criar um Sistema de Educao

    Domiciliar Cooperativa at emitir licenas para educar em casa (BRASIL, 2008) e obrigar a

    matrcula dos estudantes domiciliares em escolas (BRASIL, 2002).

    Todos os projetos foram a favor de que o Ministrio da Educao regulamentasse a educao

    em casa, com maior ou menor grau de interveno: em um deles, os pais ficariam impedidos de

    explorar comercialmente a rede de ensino domiciliar (BRASIL, 1994), para outro, estariam

    proibidos de transferir a tarefa para terceiros (BRASIL, 2002). A imposio de currculos e

    programas escolares defendida explicitamente na maioria dos projetos, e quando no, aparece

    como concluso lgica (BRASIL, 2008a, 2009, 2012). Os motivos dos deputados variaram:

    contornar o alto valor das mensalidades de escolas privadas, evitar a violncia e o contato com

    drogas nas escolas, permitir uma educao individualizada e desenvolver o autodidatismo,

    assegurar aos pais o direito de escolher (BRASIL, 2008b, 2009).

    As razes apresentadas pelos relatores dos projetos para a sua rejeio foram igualmente

    divergentes. O primeiro, o projeto de lei 4.657, de 1994, foi recusado porque, segundo a relatoria,

    no havia impedimento constitucional educao domiciliar, pelo que a proposta perderia sentido.

    J os relatores dos projetos de 2001, 2002 e os de 2008 consideraram a modalidade contrria

    Constituio e legislao vigente. O relator dos dois primeiros, poca, o deputado Rogrio

    Tefilo (PPS/AL), defendeu que a escolarizao obrigatria o meio pelo qual a sociedade

    protege-se de uma formao deficiente para a cidadania (BRASIL, 2005, p. 4), alm de que os

    argumentos dos autores dos projetos teriam natureza claramente elitista (BRASIL, 2005, p. 5). O

    parecer foi aprovado por unanimidade.

    As propostas de 2008 tiveram dois relatores, que apresentaram quase a mesma justificativa:

    25 A autorizao foi resultado de petio expedida pela Promotoria de Justia do Ministrio Pblico do Paran e destinada Vara de

    Famlia, da Infncia e Juventude de Maring (PR). Em conversa por telefone, Luiz Carlos revelou que em casa aplica apenas parcialmente a lista de itens passada pelo Ncleo Regional de Educao. Alm do mais, as avaliaes psicolgicas, segundo ele, foram conversas com uma psicloga, que ocorreram quatro vezes em cerca de cinco anos. Ainda neste ano, o professor prev um conflito com a escola em que os filhos fazem as provas: Andr, eu no considero, sob hiptese nenhuma, que haja necessidade de ensinar mtodos contraceptivos a meninos de 12 anos!, explica parte de suas razes.

  • 32

    o convvio escolar tem um papel importante nas vidas das crianas e adolescentes, e o ensino

    domiciliar tem despertado polmica nos pases em que a prtica legal. O segundo relator, o ento

    deputado Waldir Maranho (PP/MA), acrescentou que no se encontra ainda suficientemente

    demonstrada a eficcia desse sistema (BRASIL, 2011) e alm disso, este tipo de experincia

    escolar pode tambm levar a desvios comportamentais e posturas segregacionistas nos alunos

    (BRASIL, 2011). O voto do deputado tambm foi acatado por toda a Comisso.

    3.3 O projeto de lei n 3.179, de 2012

    O deputado federal Lincoln Portela (PR/MG) o mais novo parlamentar a propor a

    regulamentao da educao domiciliar no pas. Esse o objetivo do seu projeto de lei, o de n

    3.179, que apresentou em 8 de fevereiro. O deputado, que est no quarto mandato, lder do Partido

    da Repblica, na Cmara, e do bloco parlamentar PR/PTdoB/PRP/PHS/PTC/PSL. Portela

    formado em Teologia, pastor batista h 38 anos, e presidente da Igreja Batista Solidria, sediada em

    Belo Horizonte. Radialista e apresentador de televiso, trabalha tambm na emissora estatal mineira

    Rede Minas, na qual apresenta o programa de entrevistas 30 Minutos. No Congresso Nacional, o

    parlamentar integra a Frente Parlamentar de Combate Obesidade e a Frente Parlamentar

    Evanglica. Em abril deste ano, ele foi o fundador da Frente Parlamentar para regulamentar a

    Educao Domiciliar (FPRED), a primeira criada no Congresso Nacional dedicada ao tema.

    Lincoln Portela alega ter conhecido a educao domiciliar na prtica, em sua prpria casa:

    Eu fui alfabetizado pela minha me e pela minha av. Mesmo quando eu fui matriculado em

    escola, minha me sempre me levava, em casa, para alm daquilo que a grade curricular

    convencional tem. O parlamentar, que hoje milita pela causa, comeou a pesquisar o assunto

    depois que apresentou o projeto de lei: Eu at apoiei as outras propostas, de forma quieta,

    ideologicamente. Quando soube que tinham sido arquivadas, apresentei o meu projeto. Foi quando

    comecei a pesquisar mais sobre o assunto. Seguiram-se, ento, os contatos com a ANED e com

    outros grupos de pais praticantes. Hoje, Portela parece convicto das vantagens da educao em casa:

    Ela possibilita uma educao individualizada, os alunos tornam-se autodidatas, passam a se

    interessar pelos estudos, pela pesquisa, no ficam bitoladas em determinadas matrias.

    O projeto de lei do deputado Portela adiciona um terceiro pargrafo ao Artigo 23 da Lei n

    9.394, de 1996 (a LDB). O contedo proposto para esse pargrafo foi: 3 facultado aos sistemas de ensino admitir a educao bsica domiciliar, sob a responsabilidade dos pais ou tutores responsveis pelos estudantes, observadas a articulao, superviso e avaliao peridica da aprendizagem pelos rgos prprios desses sistemas, nos termos das diretrizes gerais estabelecidas pela Unio e das respectivas normas locais. (BRASIL, 2012)

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    O objetivo o mesmo das propostas anteriores que abordaram o tema: permitir a educao

    domiciliar, com obedincia s diretrizes gerais da educao e s leis locais. Na Justificao do

    projeto, Portela recorre ao direito de opo das famlias com relao ao exerccio da

    responsabilidade educacional para com seus filhos e ao respeito liberdade. O direito infanto-

    juvenil educao, definido como o imperativo em dar acesso formao educacional para a vida

    e para a cidadania, parece ser a outra premissa do argumento do parlamentar. Portela admite que o

    projeto, que j possui um substitutivo, foi concebido muito simples. Ns o elaboramos para que

    ele fosse aperfeioado e que, com o tempo, as normas da educao domiciliar fossem

    desenvolvidas, explica.

    Ele tambm defende, como os autores das propostas j rejeitadas, que o governo fiscalize a

    prtica: A educao domiciliar deve seguir a grade curricular do MEC. Os alunos sero avaliados e

    os pais tero que se apresentar com condio intelectual e tempo para poderem ministrar seus

    filhos. O deputado gostaria de ver, no ensino domiciliar, uma educao cidad nacionalista que

    no existiria mais nas instituies formais: as escolas, infelizmente, no trabalham a bandeira, os

    smbolos nacionais, os direitos bsicos. Os pais tm como levarem seus filhos aos desfiles de 7 de

    setembro, de buscarem um sentimento de mais brasilidade, eles podem fazer isso at melhor do que

    as escolas.

    3.4 A ANED

    A Associao Nacional de Educao Domiciliar foi criada, em 2010, por quatro casais

    mineiros praticantes da educao domiciliar26. Antes da existncia da associao, Ricardo Dias, o

    seu atual presidente, j tinha conhecido, fortuitamente, dois desses casais: o pai da Juliana

    [Starling] tinha uma associao que trabalhava com seguros e conheci o Cristiano [Miranda] num

    servio de consultoria que prestei a um sindicato. O grupo cresceu espontaneamente a partir da,

    com descobertas na internet. A gente ficou sabendo de um pedagogo que tinha um blog, depois

    vimos um artigo de um procurador l de Braslia..., lembra Dias. O pedagogo Fbio Schebella,

    27, atual Diretor Pedaggico da ANED e criador, no incio de 2009, do blog Por uma aprendizagem

    natural, dedicado educao domiciliar. J o procurador (do Banco Central) Alexandre Magno,

    37, autor de Homeschooling: uma alternativa constitucional falncia da Educao no Brasil, de

    agosto de 2008, e Diretor Jurdico da associao.

    A criao da entidade foi uma sugesto do deputado federal Leonardo Quinto

    26 Os casais so: Juliana e Luiz Starling, Keller e Bagordakis Tinoco, Cristiano e Fernanda Miranda e Ricardo e Llian Dias.

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    (PMDB/MG), economista, integrante da Igreja Presbiteriana e colega de Lincoln Portela na Frente

    Parlamentar Evanglica. Segundo Dias, quando o grupo inicial de pais que criou a ANED procurou

    Quinto, eles queriam apoio para pressionar o Congresso Nacional durante a tramitao da Proposta

    de Emenda Constituio 444, de 2009: A gente ia procurar qualquer poltico, mas eu tenho um

    conhecido que assessor dele, e esse assessor, digamos, abriu a porta do gabinete pra que a gente

    pudesse conversar. O parlamentar, ento, deu a ideia da criao de uma pessoa jurdica. Dias

    esclarece que o grupo no o conhecia: Nenhum dos pais conhecia o deputado, no. S tnhamos

    ouvido falar dele. Na verdade, a gente foi l na cara de pau, mas ele apoiou a nossa causa mesmo

    assim (declarao concedida em entrevista).

    O primeiro objetivo da ANED lutar pela regulamentao legal da educ