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ERU 324 – METODOLOGIA DA PESQUISA MATERIAL DIDÁTICO I Prof. José Maria Alves da Silva DER – UFV 2013

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Page 1: ERU 324 – METODOLOGIA DA PESQUISA MATERIAL DIDÁTICO I

ERU 324 – METODOLOGIA DA PESQUISA

MATERIAL DIDÁTICO I

Prof. José Maria Alves da Silva

DER – UFV

2013

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FILOSOFIA, EDUCAÇÃO E CIÊNCIA

“De que serve acumular tantas riquezas se, para ter tempo de adquiri-las, é necessário negligenciar a arte e a ciência, que tornam nossa alma capaz de aproveitá-las: et propter vitam vivendi perdere causas” (e por causa da vida, perder as razões de viver).

Henri Poincaré

“Apesar de diferirmos muito uns dos outros nos vários pedacinhos que sabemos, em nossa infinita ignorância somos todos iguais”.

Karl Popper

1. Os sentidos da filosofia

O verbete filosofia na língua portuguesa provém da junção de duas palavras gregas:

philos, que pode ser traduzida como “afinidade”, “amizade” ou “amor” e sophia, que

significa “saber”, “conhecer”. Portanto, a philosophia, ou filosofia na sua forma

aportuguesada significa literalmente “amor pelo saber”. Por extensão o filósofo deve ser

entendido como o “amante da sabedoria”. Mas, como aquele que ama o saber é

sobretudo um curioso, podemos dizer que, numa única palavra, talvez a melhor tradução

de filosofia seja “curiosidade”.

A curiosidade é o desejo de obter respostas para perguntas, tipo: O que? Como?

Por quê? Podemos assim pensar a filosofia em termos de algumas grandes perguntas. A

primeira resulta começar do desejo original de saber o que é tudo o que existe: o que é

ser? Podemos dizer que essa é uma pergunta original porque o homem adquiriu

consciência de si próprio, quando se perguntou o que sou eu? Surge daí um ramo da

filosofia que é definido como “ontologia”. A ontologia envolve assim o pensamento

voltado para a compreensão do ser enquanto ser, da natureza que todos os seres têm em

comum e do que têm em particular.

Uma coisa é a essência ou natureza do ser, outra coisa é sua aparência, ou seja,

como ele se revela aos sentidos sensoriais humanos. A aparência das coisas pode ser

atraente ou repulsiva. Quando achamos que algo é fascinante, dizemos que é belo. Mas

o que é o belo? Porque algo é belo? Em torno dessas duas perguntas surge outro ramo

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da filosofia que é definido como “estética”. A estética é assim o pensamento voltado

para a compreensão da beleza, da elegância e da harmonia, e, por extensão, de tudo

aquilo que está por trás da criação artística.

A atividade de pensar para conhecer principia parte também de vários outros

tipos de perguntas nas quais a curiosidade se revela não apenas no desejo de saber o que

é? Mas também no de desvendar relações que existem entre diferentes seres, e obter

explicações para a origem e causas de fenômenos da natureza. Estas envolvem

perguntas tipo porque é? Como é? A partir das quais se desenvolve o pensamento

científico. O que é a ciência? Esta é uma questão ontológica, mas em torno de perguntas

tipo: Como se dá o conhecimento? Em que consiste o processo de aquisição de

conhecimento?, surge um outro ramo da filosofia, que é definido como epistemologia.

Por último resta ainda uma grande pergunta fundamental, que envolve saber o

que é o pensamento ou como se deve pensar corretamente. Essas inauguram o ramo da

filosofia definido como lógica.

Há ainda o ramo da ética, que pode ser visto como outra dimensão da estética,

não que se refere à beleza das formas ou dos sentidos das coisas, mas sim às relações

humanas, tendo em vista a virtude. Como nos demais filosóficos, a ética também se

desenvolve a partir de perguntas tipos como agir ou como proceder no contato com

outros homens? Qual a conduta a ser adotada em face disso ou daquilo que é praticado

pelos outros? E assim por diante. Podemos classificar assim a filosofia em quatro áreas:

a ontologia (filosofia do ser enquanto ser); a estética (filosofia da arte); ética (filosofia

moral); a epistemologia (filosofia da ciência), e a lógica (filosofia da razão).

No senso comum, entretanto, a filosofia se apresenta com diferentes

significados. As vezes ela é entendida como “meio para alcançar a paz de espírito num

mundo cada vez mais cheios de problemas”, tendo assim o sentido de “conhecimento

que visa melhorar a qualidade de vida de quem o detém”, ou filosofia, como educação

para a vida. De fato, este esse é o objetivo de várias correntes filosóficas, no campo da

ética, como o estoicismo, o epicurismo, o cristianismo, o budismo, etc. Outras vezes ela

é confundida com as ciências da natureza, como meio de obter conhecimento e

entendimento da realidade. Essa forma de ver a filosofia também remonta aos

pensadores gregos da antiguidade, como Thales de Mileto, Pitágoras, Demócrito que

buscavam isso e também de Aristóteles que foi o precursor das ciências físicas e

biológicas.

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Devido a grandes pensadores da Grécia antiga como Sócrates, Aristóteles e

Platão, a filosofia adquiriu também um sentido de grande fundamento para a educação,

a ciência e a política.

Hoje em dia, dada a importância, no imaginário popular, da ciência e da

tecnologia como meio de superação de obstáculos e enfrentamento das grandes

preocupações da humanidade, a filosofia parece mais uma disciplina aberta à prática de

pessoas excêntricas ou diletantes. Para quê estudar filosofia? O que pode trazer de útil

para o homem moderno o estudo da filosofia?

Para essas perguntas, a professora Marilene Chauí1, oferece as seguintes

respostas:

“Se abandonar a ingenuidade e os preconceitos do senso comum for útil; se não se deixar guiar pela submissão às idéias dominantes e aos poderes estabelecidos for útil; se buscar compreender a significação do mundo, da cultura e da história for útil; se conhecer o sentido das criações humanas nas artes, nas ciências e na política for útil; se dar a cada um de nós e à nossa sociedade os meios para serem conscientes de si e de suas ações numa prática que deseja a liberdade e a felicidade para todos for útil, então podemos dizer que a Filosofia é o mais útil de todos os saberes de que os seres humanos são capazes”. Chauí, op. cit. p. 18.

2. Educação e ciência

A ênfase na ciência e na tecnologia, presença marcante nos valores da sociedade

moderna, tem levado a uma idéia reducionista e até equivocada da palavra educação, a

qual frequentemente costuma ser empregada com o mesmo significado de ensino,

instrução, ou mesmo treinamento. Estas práticas visam fazer com que as pessoas

adquiram informações e habilidades, desde coisas tão triviais como dar um laço no

cadarço do sapato até as mais complexas, como calcular a derivada de uma função; tão

inúteis como saber as cores da bandeira da Costa Rica, ou tão importantes como os

conhecimentos necessários para o desempenho profissional especializado. Mas, a

educação é muito mais do que isso.

É comum ouvir referência à educação como fator de progresso e

desenvolvimento econômico, porque quanto maior “a educação”, mais elevada tende a

ser a produtividade do trabalho. Essa é a idéia básica de uma teoria do crescimento

1 Chauí, M. Convite à filosofia. São Paulo: Ática, 1994.

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econômico humano, na qual a educação é vista como investimento em formação de um

tipo de capital produtivo, o capital humano.

Essa visão da educação, muito comum na sociedade moderna, entretanto está

muito atrasada em relação à concepção que havia na Grécia antiga, nos tempos de

Sócrates, Platão e Aristóteles, para os quais educação e filosofia eram coisas

inseparáveis, como bem mostrado na passagem abaixo de Bertrand Russell2:

“Na tradição grega de Sócrates, Platão e Aristóteles, a ciência e filosofia eram estudadas em escolas ou sociedades onde havia estreita colaboração entre professores e alunos. A verdade importante que parece ter sido compreendida desde o início, pelo menos implicitamente, é que o ensino não é um processo de transmitir informação. Em parte, é claro, deve haver isso. Mas não é a única função do professor, nem a mais importante. Na verdade, isto é mais evidente hoje do que àquela época, quando os registros escritos eram mais raros e mais difíceis de obter do que agora. Atualmente, é razoável pensar que qualquer pessoa que saiba ler poderá recolher informações numa biblioteca. É cada vez menos necessário um professor para transmitir mera informação. E por isso, tanto maior é o mérito dos filósofos gregos, por terem compreendido como se deveria realizar uma genuína educação. O papel do professor é de orientador, de levar o aluno a ver por si mesmo”. Russell, op. cit. p. 89

Na visão grega antiga, a educação era concebida como a mola mestra do

desenvolvimento humano, a busca do conhecimento, seja no campo da ciência

propriamente dita, ou outras áreas como a política e as artes, não apenas para adquirir

informações ou adquirir conhecimentos de “como fazer” e desempenhar profissões, mas

sobretudo para viver bem. Nessa concepção, o objeto fundamental da educação é

preparar o homem para viver uma vida virtuosa, tendo em vista a aquisição do bem

supremo, que é a felicidade.

A definição do bem (o que é o bem?) é uma questão ética. Para Aristóteles, o

bem é uma virtude, uma excelência (areté) e a felicidade não é simplesmente um estado

de espírito subjetivo, mas sim uma atividade da alma de acordo com a virtude; é a vida

plenamente realizada em sua excelência máxima. Ainda, segundo o filósofo, o bem

mais perfeito é aquele que não precisa de nenhum outro, que não é meio para nada e um

fim em si mesmo. Assim é felicidade que não é buscada como fim de qualquer outra

coisa, e sim as outras coisas é que são buscadas como meios para ela.

2 Bertrand Russell. História do Pensamento Ocidental: A aventura das idéias dos pré-socráticos a Wittgenstein. Rio de Janeiro: Ediouro, 2001.

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Naturalmente que para viver bem o homem precisa adquirir meios materiais de

satisfação de suas necessidades orgânicas e sociais. Para isso ele precisa de habilidades

e conhecimentos para o mundo do trabalho. A aquisição de habilidades técnicas e

conhecimentos profissionais é, nesse sentido, muito importante, mas não é tudo, pois o

trabalho e as coisas que se pode obter por meio dele não constituem os fins da vida, mas

sim apenas parte dos meios necessários para uma vida feliz.

Por outro lado, a verdadeira educação é algo que transcende o mero

conhecimento necessário para enfrentar problemas e desafios individuais ou sociais,

pois antes de buscar soluções, o homem precisa saber primeiro onde estão os problemas

que precisam de solução. Ainda segundo Russell:

“ensinar todos a ler, escrever e calcular não resolve os problemas sociais. Tampouco é verdade que estas habilidades, sem dúvida admiráveis, sejam essenciais para o funcionamento adequado de uma sociedade industrial. A princípio, grande parte do trabalho rotineiro especializado pode ser realizado por analfabetos. Mas, a educação, indiretamente, contribui para solucionar certos problemas, na medida em que faz com que aqueles que têm de suportá-los busquem meios de melhorar a sua sorte. Ao mesmo tempo, é bastante claro que um simples curso de instrução não conduz necessariamente a tais resultados. Ao contrário, pode levar as pessoas a acreditarem que a ordem de coisas existente é a que deve ser. Esta espécie de doutrinação às vezes é muito eficaz. Contudo, os reformadores estão corretos quando afirmam que certos problemas não podem ser devidamente enfrentados, a menos que exista um entendimento bastante difundido do que está em jogo, e isto requer, em verdade, um certo grau de educação”. Russell, op. cit. p. 378.

De acordo com a filosofia de Sócrates e Platão, a educação não é algo que possa

ser inculcado de fora para dentro do ser humano, através da escola e da relação de

ensino-aprendizado, mas sim algo que deve necessariamente brotar dentro dele. Nesse

sentido, o professor não necessariamente educa o aluno quando lhe dá aulas, a menos

que consiga fazer com que o conhecimento brote dentro dele, agindo assim mais como

um orientador do que como um instrutor.

Essa concepção está bem ilustrada no Mênon, um dos diálogos de Platão, no

qual Sócrates induz um jovem escravo a deduzir propriedades de figuras geométricas.

Os personagens principais da narrativa são Sócrates e Mênon, um jovem aristocrata

ateniense céptico quanto ao poder do autoconhecimento. Em certo momento, Mênon

pergunta a Sócrates: como pode aprender qualquer coisa aquele que não sabe o que

procura? Aquele que não sabe o que procura não tem condições de reconhecer aquilo

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que busca. Mesmo que alcance algo não saberá reconhecer aquilo que alcançou, ao

passo que aquele que sabe não precisa sair procurando nada.

Isso, que ficou conhecido como “paradoxo de Menôn” é o que Sócrates vai

tentar desfazer, mostrando como que o ignorante pode alcançar o conhecimento

verdadeiro se for devidamente “conduzido”, daí porque no sentido original da palavra,

educação significa “condução”. No decorrer do diálogo, Sócrates vai mostrar a Mênon

como pode levar um escravo a provar um teorema. Sem fazer nada mais do que

interrogações sucessivas, Sócrates, o leva a descobrir a verdade, que está além de

simples aparências geométricas.

O paradoxo de Mênon resulta de uma concepção equivocada do conhecimento,

como se fosse um conjunto de partes desconexas. Sócrates vai mostrar que não é assim,

que o conhecimento deve ser visto como um todo interligado, de tal forma que podemos

ampliar o conjunto do nosso saber mediante reflexão a partir daquilo que já sabemos,

corrigindo falhas, preenchendo lacunas, completando o que está incompleto, e assim por

diante, num processo contínuo de “descobertas”. Nesse processo, o erro tem a sua

virtude por mostrar o “caminho do certo”, assim como a dúvida, pois aquele que duvida

das verdades aparentes é que avança, ao passo que os convictos tendem a ficar parados

onde estão. A aquisição de conhecimento não é assim mera acumulação na mente

acumular do que é transmitido, de fora para dentro, mas sim um processo de

pensamento.

Mas é interessante ver como essa idéia é maravilhosamente demonstrada por

Sócrates a Mênon, nas interrogações que faz a um de seus escravos. Inicialmente

Sócrates traça na areia a figura de um quadrado e pergunta a ele: Você sabe o que é

um quadrado? Embora ignorante em geometria, o escravo responde que sim. É uma

figura de quatro lados iguais, como esta? Pergunta Sócrates apontando para o desenho

na areia (Figura 1 a). O escravo responde afirmativamente. Em seguida Sócrates traça

duas linhas que cortam o quadrado ao meio e pergunta: Estas linhas também são

iguais? (Figura 1 b). O escravo diz que sim.

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Em seguida Sócrates mostra como se poderia calcular a área do quadrado. Supondo que

cada um dos lados medisse dois pés3, o cruzamento das duas linhas delimitaria quatro

quadrados inscritos no quadrado original, com lados medindo um pé cada um (Figura 1

c). Então, fica claro para o escravo que á área do quadrado maior mede quatro pés

quadrados (4p2).

A partir daí, Sócrates indaga como se poderia traçar um quadro com o dobro da

área do anterior (Figura 2 a). O escravo dá a entender que, para isso, bastaria dobrar

cada um dos lados da Figura 1 a.

Mas, quando Sócrates desenha o quadro com lados duplicados e traça duas

linhas que cortam os lados ao meio, o escravo logo percebe que estava errado, porque

nesse novo quadro cabem exatamente quatro quadrados de igual tamanho ao de área

3Antiga unidade de medida de comprimento, equivalente a 12 polegadas, ou seja, 33 cm.

4

2

2

2

2

Figura 1

(a) (b) (c)

1

1

1 1

1

1

1 1

4

4

Figura 2

(c) (a) (b)

8

?

2 2

2

2

2 2

2

2

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igual a quatro pés quadrados (Figura 1). Fica então evidente para ele que quando se

duplica os lados de um quadrado, a área do quadrado de lados duplicados não é o dobro

da área do quadrado original, mas sim quatro vezes o tamanho daquela.

Nessa altura, a pergunta que fica para ser respondida é como construir uma

figura de área igual a oito pés quadrados, ou seja, exatamente igual ao dobro do

quadrado original, com lados de dois pés? Sócrates faz outra tentativa desenhando uma

figura com lados iguais a três pés (Figura 3 a), e então mostra ao escravo que a área é

igual a nove pés quadrados, portanto maior que a área desejada. Conclusão, a área de

um quadrado com lados iguais a dois pés é igual a quatro pés quadrados, mas

aumentando-se cada lado em apenas um pé obtém-se outro quadrado com área de nove

pés quadrados. Assim, Sócrates mostra definitivamente ao jovem escravo algo que ele

pensava que sabia, mas não sabia.

Com isso, ele mostra que o “saber que não se sabe” é um saber importante, pois

quem chega nesse ponto pode ser conduzido para um maior conhecimento. Na filosofia

Socrática essa é a essência da educação. Educar é “conduzir” e o educando é aquele que

“é conduzido para a sabedoria”. Uma vez que, para Sócrates, a sabedoria é a virtude, a

educação é essencialmente “a condução para a virtude”.

Finalmente, Sócrates vai mostrar ao jovem escravo como se pode obter uma

figura eqüilátera de área igual a oito metros quadrados. Para isso, ele reconstrói o

quadrado de dezesseis pés quadrados, resultante da soma de quatro quadrados com

lados iguais a dois pés quadrados (Figura 3 b). Em seguida traça linhas ligando vértices

opostos de cada um desses quatro quadrados circunscritos (Figura 3 c). Essas linhas são

definidas como diagonais. As diagonais dividem um quadrado em dois triângulos

isósceles exatamente iguais. Portanto, a ligação dessas quatro diagonais resulta num

novo quadrado cuja área é exatamente igual a quatro triângulos de áreas exatamente

iguais à metade dos quatro quadrados originais, com áreas de quatro pés quadrados.

Fica assim demonstrado que a área desse quadrado é exatamente igual a oito pés

quadrados. E o problema geométrico da duplicação da área de um quadrado fica

resolvido4.

4 Vemos nesse diálogo de Platão um exemplo típico da nascente matemática da antiga Grécia. Trata-se de uma geometria completamente desprovida de aritmética. Os objetos dessa geometria são pontos, linhas e figuras de duas ou três dimensões, e esses elementos são combinados, comparados, transformados.

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Esse diálogo de Platão provê uma bela representação da relação entre a filosofia,

a educação e a ciência. Nele está mostrado como o sábio Sócrates consegue fazer com

que um jovem escravo tenha uma clara noção das limitações de seu conhecimento. Ele é

levado a ver que pensava que sabia algo que de fato não sabia. Não que ele não

soubesse coisa alguma. Ele sabia o bastante para conseguir avançar na direção da

verdade, bastando que fosse devidamente instigado a isso, como o fez Sócrates com

suas interrogações. Através do erro e do reconhecimento do erro é que ele foi capaz de

chegar ao acerto.

No Mênon, Platão apresenta uma concepção de educação segundo a qual “a

mente humana está mais para uma fogueira que precisa ser acendida do que um

reservatório de água a ser preenchido”. Mas o diálogo não termina aí. Mênon é

persuadido pelos argumentos de Sócrates e a conversa volta ao tema original que é

sobre a virtude e a forma como pode esta ser alcançada. Ambos acabam concordando

que nem os bons cidadãos nem os dirigentes da cidade são adequados transmissores de

virtude para a juventude. Nesse ponto, entra em cena outro personagem, um rico e

poderoso ateniense chamado Anito, que desaprova essa conclusão, e enraivecido, acusa

Sócrates de “falar mal dos outros”.

Esse foi um dos episódios, entre outros, que indispôs o filósofo com a

aristocracia ateniense, motivo pelo qual ele acabou, anos depois, sendo acusado de

“perversor da juventude”. No julgamento que condenou Sócrates à pena de morte, Anito

se encontrava entre os acusadores.

Figura 3

(b)

4 4

4 4

2

2

2 2

2

2

2 2

(c)

2 2

2 2

(a)

3

3 9

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Nesse diálogo, Platão não só mostra como Sócrates levou um simples escravo a

compreender várias coisas, inclusive o teorema de Pitágoras, mas também que os

homens em geral estão em posição semelhante ao do jovem escravo, contudo sem a

vantagem de contar com um Sócrates para lhe fazer as perguntas necessárias ao rumo

correto do pensamento, para alcançar o desconhecido a partir do que é conhecido.

Os grandes pensadores são como “escravos de Mênon”, sem um Sócrates para

lhes abrir caminhos. São eles próprios que têm de fazê-lo, e é por isso que são grandes

pensadores. Na falta de um “Sócrates” para lhes apresentar uma “diagonal” na hora

certa, eles “têm de encontrá-la sozinhos”. O pensador é assim, antes de tudo, um

perguntador. O que distingue os grandes cientistas não é a capacidade de dar respostas,

mas sim a de fazer as grandes perguntas e encontrar a chave que abre as portas no

caminho do conhecimento.

No Mênon, Platão também sugere admiravelmente a existência de duas grandes

ameaças aos pensadores e cientistas sérios. Uma delas provém da inveja, da indolência e

outros vícios da academia, típicos de pessoas que se fazem passar por cientistas quando,

na verdade, não passam re-aplicadores de pesquisas ou enganadores, que estão mais

para burocratas privilegiados do que homens de ciência, bem como de conservadores

reacionários adeptos do pensamento único, que insistem em argumentar que o

conhecimento avança mediantes acréscimos de algo parecido com o que já existe, e não

por saltos revolucionários.

A segunda ameaça vem dos “donos do poder” político e certos privilegiados do

establishment tradicionalmente beneficiários da ignorância. Estes são propensos a

perseguir os pensadores e cientistas independentes por motivos semelhantes aos que

faziam o Cardeal Richelieu aconselhar o rei Luís XIII a “não fornecer mais educação ao

povo além do necessário para deixá-lo conformado com a sua condição”.

3. Senso comum e prática científica

“Senso comum” é como podemos chamar a visão que o homem comum tem de si

mesmo, do seu mundo e do universo como um todo.

O senso comum envolve tanto o conjunto das crenças e superstições quanto os

conhecimentos ordinários e empíricos, porém úteis, que são informalmente transmitidos

de uma geração para outra, e que surgem da necessidade de resolver problemas ou

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superar obstáculos naturais que se interpõem entre os objetivos e aspirações dos

homens.

Desde seus primórdios, a humanidade tem buscado meios de aumentar a

capacidade de produzir alimentos, de obter cura para doenças, e enfrentar os mais

diversos tipos de ameaças à sua sobrevivência como espécie. Diferentemente das outras

espécies animais, que só podem contar com seus dotes e instintos naturais, o homem foi

evoluindo progressivamente mediante desenvolvimento de faculdades intelectuais que

lhe permitiram criar um sistema de comunicação capaz de transmitir informações no

tempo e no espaço.

Enquanto no mundo animal irracional, a transmissão de informações resume-se

apenas ao código genético, entre os homens racionais ela se processa de forma muito

mais ampla e disseminada através da comunicação por meios inventados pelo próprio

homem, como a linguagem. Assim, as descobertas de soluções para problemas e

superação de obstáculos, encontradas numa época ou lugar, vão sendo progressivamente

acumuladas, formando um acervo de “saberes”, costumes e práticas e outros elementos

do que antropologicamente se define como “cultura”.

No entanto, a formação de elementos culturais do senso comum não é planejada.

Ela vai acontecendo espontaneamente em função das necessidades e dos problemas

cruciais, como resultado de processos de tentativas e erros ou mesmo por puro acaso. A

formação do conhecimento de senso comum se processa assim de forma passiva, ou

seja, como uma tendência de manter os sujeitos que participam dela como espectadores

passivos da realidade, que agem reflexamente em função dos fatos que se apresentam.

No senso comum, não interessa saber por que uma coisa funciona ou serve para alguma

outra coisa útil, bastando que funcione ou sirva, razão pela qual se torna muito

vulnerável a todo tipo de misticismo e relações espúrias5.

O conhecimento de senso comum é utilitarista, no sentido de que ser motivado e

orientado apenas para o que é útil. O que dá certo ou até mesmo o que se pensa que dá

certo, embora por outros motivos desconhecidos, entra para o conjunto de convicções

5 Em certas regiões do meio rural brasileiro era costuma colocar uma caveira de cabeça de vaca na horta para prevenir a ocorrência de certas pragas. Essa era uma crença puramente mítica, que dava resultados. Mas, posteriormente descobriu-se uma relação de causa e efeito entre a presença da cabeça de vaca e a ausência das pragas. É que o oco do crânio servia como habitáculo atraente para a construção de ninho de um passarinho, a corruíra, que é predador natural de pragas que atacam as hortaliças. Era a presença da corruíra e não da cabeça de vaca a causa eficiente da eliminação das pragas.

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que passam de um indivíduo a outro espaço e no tempo, de forma sensacionalista.6 Por

sua vez, essa comunicação se caracteriza por uma natureza vaga, subjetiva e imprecisa

dos termos utilizados, os quais podem assumir diferentes significados, dependendo das

pessoas e grupos que os utilizam.

Vejamos agora os aspectos que distinguem a atitude científica em relação ao

senso comum. A primeira distinção tem a ver com o fato de que a atitude científica é

voltada para a busca de conhecimentos mediante processos de trabalhos (estudos e

pesquisas), envolvendo conceitos e outros conhecimentos criados para isso

(conhecimentos intermediários), que são transmissíveis por meios de expressão de alta

precisão e na forma de enunciados que explicam os “porquês” e os “comos”.

Em contraste com o senso comum, o conhecimento científico é o resultado de

investigações deliberadas, conduzida de forma objetiva e crítica. Não se trata mais de

uma relação contemplativa e adaptativa, ou seja, de uma relação passiva do homem com

a natureza, mas sim de uma relação pró-ativa, conforme expressão atribuída ao filósofo

Francis Bacon, no século XVI: “não basta entender a natureza, é preciso dominá-la”.

A atividade científica não é simplesmente vinculada às necessidades do homem,

na lida as dificuldades da vida, tentando resolver problemas e superar obstáculos. Em

parte é também isso, quando orientada para finalidades práticas, mas também é

motivada pela simples curiosidade ou por um desejo quase diletante de entender e obter

explicações para fenômenos, sem ter por trás qualquer tipo de crendice ou misticismo.

Em contraste com as certezas do senso comum, a atitude científica tem a dúvida

como princípio. Para o homem primitivo o raio podia ser visto como manifestação da

ira dos Deuses. Essa é uma explicação mítica, que pode condicionar a conduta humana,

mas não satisfaz a curiosidade de quem quer ter um conhecimento seguro e certo sobre

o que é que provoca aquela faísca luminosa que se vê nos céus em ocasiões de

tempestades? Por que os raios estão associados com as tempestades e nunca ocorrem

quando o céu está absolutamente isento de nuvens? A atitude científica é a de quem

busca respostas a essas e outras perguntas que surgem quando se coloca em dúvida as

crenças místicas.

6 Há também o caso exemplar de uma planta conhecida no meio rural como “Erva de Lagarto”. Segundo a crença popular, uma espécie de lagarto, conhecido como Teiú, muito comum nas matas brasileiras, quando é picado por cobra venenosa sabe como providenciar o antídoto, que obtém roendo a casca dessa planta. De fato, a ingestão de folhas maceradas da “Erva de Lagarto” parece ter um efeito neutralizante da ação de certas substâncias tóxicas presentes no veneno de animais peçonhentos ou efeitos anti-alérgicos das toxinas de picadas de abelhas. Mas a história do Lagarto provavelmente não passa de folclore que dá um tom sensacionalista na transmissão da informação de um para outro.

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Para que interessa saber o que é o raio, ou o que é que o provoca? Hoje sabemos

que se trata de uma descarga elétrica. Mas o que é a eletricidade? Desde a Antiguidade

sabia-se que uma barra de âmbar, depois de esfregada com um pano seco, passava a

atrair coisas leves como pequenos pedaços de papel. Hoje se sabe que isso é a

manifestação da presença de um campo eletromagnético, mas das tentativas de entender

o fenômeno, desde essas primeiras observações, surgiram várias investigações e

descobertas, passando pela Pilha de Volta, a Lei de Coulomb, os experimentos feitos no

laboratório de Faraday, e a dedução feita por James Clerck Maxwell das equações que o

descrevem. Até chegar às equações de Maxwell ninguém sabia para o que poderia servir

a eletricidade ou as ondas eletromagnéticas7. A história da eletricidade e do

eletromagnetismo constitui assim um exemplo memorável de “pesquisa fundamental”,

designação que se dá hoje à atividade científica realizada de forma absolutamente

desinteressada, isto é, sem ter por motivo declarado ou oculto de quaisquer finalidades

práticas.

Depois das pesquisas de Hertz, relacionadas com as freqüências e mecanismos

de transmissão à distância de sinais conduzidos por ondas eletromagnéticas, abriu-se um

campo fantástico de pesquisas aplicadas que visavam tirar partido prático do fenômeno,

as quais, por sua vez, levaram à pesquisa tecnológica, ou seja, a pesquisa orientada para

a invenção de máquinas e aparelhos, que têm sido desenvolvidos de forma incessante,

desde o telégrafo, o rádio, a lâmpada elétrica, passando pela televisão (primeiro em

branco e preto e depois a cores) e que ainda continua no desenvolvimento atual de

microcomputadores, cada vez mais potentes e interligados numa imensa rede mundial

de transmissão de dados e informações, a internet. Vejam para o que acabou servindo as

primeiras tentativas de explicação de um simples fenômeno, o eletromagnetismo,

movidas pela simples curiosidade.

4. Ideal científico e cientificismo

É comum ouvir dizer-se que a ciência surge e se desenvolve devido a um amor natural

do homem pelo saber (filosofia), e das insatisfações com as explicações míticas e

dogmáticas sobre os fenômenos da natureza. Certos filósofos do século XVIII, como

7 Conta-se que quando Maxwell apresentou pela primeira vez suas equações, num seminário para outros cientistas, alguém perguntou: Para que servem essas equações? Maxwell respondeu com outra pergunta: Para quê serve uma criança?

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Voltaire e Diderot, eram ferrenhos adversários da igreja e promotores do saber

científico. Eles propunham a enciclopédia em lugar da Bíblia, para retirar o homem da

escuridão da ignorância, daí porque entraram para a história como integrantes de um

movimento filosófico que ficou conhecido como iluminismo.8

Os filósofos iluministas foram os primeiros grandes responsáveis pela formação

de uma imagem extremamente virtuosa e otimista da ciência, a qual continua sendo

cultuada pelos cientistas e outros segmentos da sociedade que tendem a ser

beneficiados, de diversas maneiras, pelo avanço científico. Essa é a imagem que vamos

chamar aqui de ideal científico9.

Sempre que surge a oportunidade, o ideal científico é invocado pelos

divulgadores modernos da ciência. Para ilustrar, vamos transcrever a seguir algumas

passagens retiradas de uma obra de um dos mais conhecidos promotores do ideal

científico do século XX, Carl Sagan.10

Sobre o valor da ciência para o progresso civilizatório:

“A ciência é mais do que um corpo de conhecimento, é um modo de pensar (sem preconceitos e superstições) [...] Nós (com a inestimável ajuda dos cientistas) criamos uma civilização global em que os elementos mais cruciais o transporte, as comunicações, e todas as outras indústrias, a agricultura, a medicina, a educação, o entretenimento, a proteção ao meio ambiente e até a importante instituição democrática do voto dependem profundamente da ciência e da tecnologia [...] a ciência está longe de ser um instrumento perfeito de conhecimento. É apenas o melhor que temos.” Sagan, op. cit. p. 39 – 41. Parênteses nosso.

Sobre o sucesso da ciência e suas razões:

“O modo científico de pensar é ao mesmo tempo imaginativo e disciplinado. Isso é fundamental para o seu sucesso. Ela nos convida a acolher os fatos, mesmo quando eles não se ajustam às nossas pré-concepções. Aconselha-nos a guardar hipóteses alternativas em nossas mentes, para ver qual se adapta melhor à realidade. Impõem-nos um equilíbrio delicado entre uma abertura sem barreiras para idéias novas, por mais heréticas que sejam, e o exame cético mais rigoroso de tudo das novas idéias e do conhecimento estabelecido. Esse tipo de

8 Voltaire, por exemplo, era fã incondicional de Newton e hostil ao pensamento de filósofos religiosos como Leibniz. 9No entanto, a ciência tem uma outra face, que os pensadores de linhagem marxista chamam de “ideologia científica”, com significado bem menos honroso. Para Althusser, por exemplo, na sociedade capitalista a escola, em geral, e a universidade em particular, não passam de “aparelhos ideológicos do estado”, com a finalidade essencial de reproduzir a lógica desse sistema e as estratégias de exploração utilizadas pela classe dominante. Mas, não vamos ir mais longe nessa discussão dialética porque isso foge ao escopo de um curso que visa estimular o interesse do estudante pela pesquisa. 10 Sagan, C. O mundo assombrado pelos demônios. São Paulo: Companhia das Letras, 1996.

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pensamento é também uma ferramenta essencial para a democracia numa era de mudanças [...] Uma das razões para o seu sucesso é que a ciência tem um mecanismo interno de correção de erros embutido em seu próprio âmago (o pesquisador tem autocrítica, aprende com seus erros, e reconhece que todo conhecimento científico é sempre incerto, nenhuma ciência, exceto a matemática, é uma ciência exata) [...] Não existem questões proibidas na ciência [...] Não importa o quanto você seja inteligente, augusto ou amado. Tem de provar a sua tese em face de uma crítica determinada e especializada. A diversidade e o debate são valorizados. É estimulada a discussão de idéias substantivamente e em profundidade [...] os encontros científicos vivem cheios de disputas. Há colóquios universitários em que o conferencista mal discursou trinta segundos e já se ouvem perguntas e comentários devastadores da platéia. É instrutivo examinar os procedimentos aos quais um relatório escrito é submetido para possível publicação numa revista científica, sendo depois enviado pelo editor a juízes anônimos que têm como tarefa fazer as seguintes perguntas: o autor fez alguma besteira? Existe algo nesse trabalho que seja suficientemente interessante para que seja publicada? Quais são as deficiências desse artigo? [...] e tudo isso é anônimo: o autor não sabe quem são os críticos”. Sagan op. cit. p. 41 – 46. Parênteses e negritos nossos.

Sobre a ciência e a democracia:

“os valores da ciência e os da democracia são concordantes [...] ambas começaram em suas encarnações civilizadas no mesmo tempo e lugar, na Grécia dos séculos VI e VII a. C. A ciência confere poder a qualquer um que se der ao trabalho de aprendê-la (embora muitos tenham sido sistematicamente impedidos de adquirir esse conhecimento. Ela se nutre na verdade necessita do livre intercâmbio de idéias; seus valores são opostos ao sigilo. A ciência não mantém nenhum ponto de observação especial, nem posições privilegiadas. Tanto a ciência como a democracia encorajam opiniões não convencionais e debate vigoroso. Ambas requerem raciocínio adequado, argumentos coerentes, padrões rigorosos de evidência e honestidade. A ciência é um meio de desmascarar aqueles que apenas fingem conhecer. É um baluarte contra o misticismo, contra a superstição, contra a religião mal aplicada a assuntos que não lhe dizem respeito”. Sagan op. cit. p. 52.

Temos aí passagens que dão boa idéia sobre o que é o ideal científico. Mas, o ideal,

como o termo indica, não passa de uma idéia estilizada que pode ter muito pouco ou

quase nada a ver com o real. Será essa visão realista?

Segundo o ideal científico, a ciência tem a sagrada função de para combater

poderes opressores que se sustentam no misticismo e nos dogmas religiosos. Não há

dúvida que foi isso que aconteceu após a ruptura do modelo geocêntrico de Ptolomeu e

da física aristotélica, com as descobertas Kepler e Galileu e Newton, levadas a efeito

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mediante aplicação do método indutivo. A partir daí surgiu também uma nova filosofia

do conhecimento, estabelecida pelo filósofo alemão Immanuel Kant, na sua Critica da

Razão Pura, como método de busca do conhecimento certo e verdadeiro, mediante

experimentação, medição e comprovação. Esse é o fundamento de um movimento

filosófico que ficou posteriormente conhecido como positivismo, baseado numa idéia de

“ciência isenta de valores” (positiva), ou seja, da busca do entendimento do que é e

como é, alcançado de forma certa e comprovada, e não de como alguém gostaria que

fosse.

O sucesso das aplicações práticas e da resistência do modelo newtoniano, a todas

as provas aos quais fora submetido, levaram a uma fé quase cega na ciência positiva, de

forma semelhante a como antes acontecia com os dogmas. Assim começou o

cientificismo, calcado na crença de que o único conhecimento válido é o conhecimento

apoiado em experiências concretas e objetivas, e passível de comprovação mediante

testes e provas rigorosas11. Se, por um lado isso contribuiu para colocar a física numa

espécie de pedestal de “rainha das ciências naturais”, por outro lado colocou o pessoal

das ciências sociais e humanas numa posição duvidosa: será que o que fazem pode ser

chamado de ciência?

O fato é que os grandes feitos alcançados na física contribuíram para o

soerguimento de posições excessivamente apologistas e até ufanistas sobre os méritos e

as possibilidades da ciência. Essas posições têm criticamente sido chamadas de

“cientificismo”’.

Os adversários do cientificismo, fora do meio científico ou do grupo de seus

representantes típicos, costumam contestar as drásticas distinções utilizadas para

demarcar diferenças entre o “senso comum” e a prática científica. Segundo Alves

(1981)12 se, por um lado, a ciência veio para combater o mito, por outro lado também

ela acabou se tornando um mito:

“O cientista virou um mito. E todo mito é perigoso, porque ele induz o comportamento e inibe o pensamento. Este é um dos resultados engraçados (e trágicos) da ciência. Se existe uma classe especializada em pensar de maneira correta (os cientistas), os outros indivíduos são

11 Assim como a religião tem seus mártires, como Jesus Cristo, o cientificismo também teve o seu. Giordano Bruno, por ter idéias científicas contrárias aos interesses da igreja romana, assim como havia ocorrido com a teoria heliocêntrica de Copérnico e posteriormente com Galileu. Copérnico e Galileu, entretanto, conseguiram escapara da ira eclesiástica, o primeiro por conseguir prudentemente disfarçar as conclusões de sua obra científica e o segundo por retratar-se perante a inquisição. Giordano Bruno não fez nem uma coisa e nem outra. Foi julgado e condenado a morrer na fogueira, pelo crime de heresia, durante o mandato do papa Inocêncio IV, pelo que entrou para os anais da história como o “mártir da ciência”. 12 Alves, R. Filosofia da ciência. São Paulo: Editora Brasiliense, 1981.

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liberados da obrigação de pensar e podem simplesmente fazer o que os cientistas mandam. Quando o médico lhe passa uma receita você faz perguntas? Sabe como os medicamentos funcionam? Você pergunta ao médico se o medicamento funciona? Ele manda, a gente compra e toma. Não pensamos. Obedecemos. Não precisamos pensar, porque acreditamos que há indivíduos especializados e competentes em pensar, pagamos para que ele pense por nós. E depois dizem apor ai que vivemos em uma civilização científica. O que eu disse dos médicos serve para tudo. Os economistas tomam decisões e temos de nos submeter [...] Afinal para que serve a nossa cabeça? Ainda podemos pensar? Adianta pensar?”Alves, op. cit. p. 8.

Nessa perspectiva crítica, simplesmente não é correto estabelecer uma distinção

antinômica entre o “senso comum” e a ciência, pois a aprendizagem da ciência é um

processo de desenvolvimento progressivo do senso comum. Ademais, como afirma

Alves, op. cit, o “senso comum” é uma expressão que não foi inventada pelo homem

comum. Assim como a expressão “homem de cor”, para designar os negros, não foi

criada pelos negros, mas sim pelos brancos, a expressão “senso comum” é uma forma

arrogante criada por pessoas que se julgam acima do senso comum, para se

diferenciarem das pessoas que, segundo seu critério, são intelectualmente inferiores.

Antes da ciência e dos cientistas, o homem, por meio do senso comum, buscou e

conseguiu alcançar soluções para problemas e superação de obstáculos. Sem ir na

escola, os homens realizaram inúmeras investigações que levaram à descobertas

importantes, ainda que de forma totalmente empírica, ou seja, não guiada por nenhum

conhecimento científico prévio. Os povos da floresta assolados pelo problema da

malária, por exemplo, conseguiram encontrar um remédio, o quinino, extraído da casca

de uma árvore. Antes de chegar a essa descoberta quantas folhas, frutos, cascas e raízes

de plantas foram não devem ter sido testadas?

É provavelmente por razões parecidas com esta que T. Huxley, amigo de

Charles Darwin e divulgador da teoria darwiniana, definiu a ciência como “nada senão o

senso comum treinado e organizado”.13

Outras características do cientificismo é a crença exagerada de que o progresso

da ciência leva necessariamente ao progresso humano e que a vida com mais ciência é

uma vida melhor. Essa idéia está claramente subentendida na primeira passagem acima

de Sagan, mas não se pode dizer que a felicidade humana é maior numa sociedade

tecnologicamente avançada do que numa atrasada, ou que o homem dos tempos antigos

13 Citação extraída de Mayr, E. isto é biologia. São Paulo: Companhia das Letras, 1997

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era menos feliz que o cidadão moderno, simplesmente porque tais proposições não

podem ser provadas. Tudo o que podemos dizer é que os estilos de vida da sociedade

moderna são sumamente diferentes dos estilos de vida das sociedades primitivas, mas

filosoficamente não há como fazer apreciações qualitativas sobre o que é melhor ou o

que é preferível, e tampouco tirar conclusões científicas, pois estas são proposições que

nunca poderão ser provadas.14

Mas, o cientificismo também acabou sofrendo críticas originadas dentro do

próprio meio científico, e que, para desgosto de seus partidários, não são provenientes

dos feitos de personagens de menor importância, mas sim de grandes nomes da ciência,

como Albert Einstein, Niels Bohr e Werner Heisenberg, que abalaram a idéia de que só

a ciência pode ser o caminho do conhecimento certo e verdadeiro.

Os trabalhos de Einstein levaram a uma nova concepção sobre a forma de fazer

ciência e o alcance do conhecimento científico, a começar do fato de violarem um

princípio estabelecido pelo filósofo Francis Bacon, segundo o qual, as idéias pré-

concebidas deveriam ser eliminadas da mente do investigador. Contrariamente a esse

ponto de vista, para chegar aonde chegou, com suas teorias da relatividade especial e

geral, Einstein simplesmente ousou desafiar o que era então um dogma dos físicos: a fé

cega na validade do sistema newtoniano. Se Einstein não tivesse pré-concebido que o

sistema de Newton era falho não teria se aventurado a ir tão longe quanto foi. Ele não

seguiu o método indutivo, baseado na experiência, simplesmente deu asas à imaginação

e guiado mais por intuição e por suas convicções filosóficas, acabou estabelecendo uma

concepção revolucionária sobre tempo e espaço15.

Tanto a teoria da relatividade quanto a mecânica quântica, desenvolvida por

Niels Bohr, Erwin Schrodinger e Werner Heisenberg, sob bases estabelecidas por Max

Planck e Einstein, vieram mostrar que no mundo subatômico havia uma realidade física

14 Mesmo porque se a ciência e o avanço tecnológico, à jusante, trazem soluções para certos problemas eles também criam outros problemas que antes não existiam. Afinal, as bombas atômicas, as armas em geral e outros instrumentos de mortes e violência também resultaram disso. A invenção da motocicleta ajudou a resolver o problema de transporte de muita gente, mas também fez muitas famílias sofrerem a perda de entes queridos vitimados por acidentes envolvendo esse veículo extremamente perigoso. Se as mulheres do passado não podiam contar com tantos recursos de embelezamento e a enorme multiplicidade de bens de consumo, como se vê hoje nos “shopping centers”, elas tinham uma vida mais preenchida pela presença de filhos do que as mulheres modernas. 15 Segundo Walter Isaacson (Einstein, Sua vida, Seu universo. São Paulo: Companhia das Letras, 2007), Einstein, influenciado pela filosofia religiosa de Espinosa, não acreditava num Deus pessoal que recompensava e punia, intervindo na vida cotidiana dos homens, mas sim num Deus incorpóreo refletido na beleza, na racionalidade e na unidade do Cosmos, com suas leis permanentes, imutáveis e compreensíveis. As pessoas comuns acreditam em milagres como prova da existência de Deus. Para Einstein era a ausência de milagres que refletia a Divina Providência.

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extremamente “bizarra” para o “senso comum” dos físicos tradicionais. Rompendo com

os postulados newtonianos, a teoria da relatividade mostrava que o tempo depende da

velocidade com que os corpos se movem no espaço. Por sua vez, a física quântica veio

mostrar uma natureza “dual” da luz, que pode ser tanto partícula quanto onda; e

segundo o princípio da incerteza de Heisenberg, nunca se poderia saber com certeza a

posição e a velocidade de um elétron, ao mesmo tempo. Estas constatações

simplesmente decretaram o fim do determinismo científico.

O que tem sido chamado de “determinismo científico” é a crença que a realidade

e tudo que existe nela não passa de um complexo sistema de variáveis interligadas por

relações de causa e efeito, de modo que umas são sempre “determinadas” por outras. O

papel da ciência seria o de tentar descobrir essas relações, para não só fornecer a

explicação dos fenômenos como também permitir precisas previsões. A manifestação

mais enfática do determinismo científico é atribuída ao físico matemático francês, Pierre

Simon Laplace, no século XVIII, que levado pelo entusiasmo com os sucessos da

mecânica newtoniana, que ajudou a desenvolver, declarou que seria capaz de

“determinar a evolução do Universo se conhecesse a posição e as velocidades iniciais de

todas as partículas de matéria, dispensando a hipótese da existência de Deus”.16

Heisenberg simplesmente mostrou que não se poderia saber ao mesmo tempo a posição

e as velocidades iniciais de partículas subatômicas como o elétron.

Por último, cabe dizer que a imagem virtuosa da comunidade científica, tal como

pintada por Sagan, não é muito realista. Um exame das biografias de grandes cientistas,

como Isaac Newton e Lavoisier servem para mostrar bem que virtudes intelectuais e

morais não necessariamente andam juntas, mas nas universidades e institutos públicos

de pesquisa há muitos personagens que não apresentam nem uma das duas. São os que

se fazem passar por cientistas, quando, na verdade estão mais para atores, funcionários

de grandes empresas ou burocratas governamentais. Pensadores tão geniais quanto

imparciais e éticos, sem quaisquer outros compromissos, a não ser com a educação e a

ciência, são muito raros.

A neutralidade científica absoluta é impossível. A vontade do pesquisador, por

mais imparcial que procure ser, sempre se manifesta de uma forma ou de outra, como

16 Antes de Laplace, o filósofo Descartes, que exerceu enorme influência sobre Newton, concebia o universo como um enorme e complexo mecanismo, como um relógio, criado por Deus, mas que uma vez posto em movimento funcionaria para sempre sem assistência divina. Essa crença foi derrubada pela mecânica quântica, a qual veio mostrar que simplesmente não é possível conhecer a posição de todas as

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Francis Bacon já havia reconhecido há mais de quatro séculos, quando disse que: “a

compreensão humana não é um exame desinteressado, mas recebe infusões da vontade

e dos afetos; disso se originam ciências que podem ser chamadas ‘ciências conforme

nossa vontade’”.

Os pesquisadores estão sempre sob a tentação de usar sua imagem de

“portadores de verdades científicas”, para fins particulares. Muitos não resistem ao

assédio e sucumbem à cooptação dos grupos de interesses, colocando-se à serviço de

negócios privados, mesmo quando continuam “usando o avental branco dos laboratórios

universitários”. Passam a exercer funções mais parecidas com as de “garotos

propaganda”, “representantes de vendas” ou “lobbistas” do que de cientistas

propriamente ditos. No Brasil esse problema é particularmente importante, conforme

indicado nas passagens abaixo, retiradas de artigo de nossa autoria sobre o problema da

infiltração do interesse empresarial nas instituições brasileiras de C&T:

[...] grande parte dos que hoje clamam por maior autonomia para a CTNBio, um dos dispositivos da lei da biossegurança, não passam de tecnólogos ou tecnocratas disfarçados infiltrados nas universidades públicas, instituições estatais de pesquisa e no MCT [...] quando não estão simplesmente fazendo lobby tecnológico, estão praticando “ciência conforme a vontade das corporações”, mediante as mais disfarçadas formas de recompensas pecuniárias. Nos países desenvolvidos esse tipo de pesquisador geralmente está lotado nos departamentos de P&D das grandes indústrias de base tecnológica. No Brasil é diferente. Praticamente toda a atividade científica está concentrada nas universidades e instituições públicas de pesquisa, mas os pesquisadores gozam de ampla liberdade para prestar serviços a terceiros, mesmo quando são contratados sob regime de dedicação exclusiva. Por meio de convênios e contratos de colaboração técnica, as empresas podem contar com os recursos das instituições públicas a custos bem mais baixos do que teriam se tivessem de manter departamentos próprios de pesquisa, com a vantagem de poder usar o manto sagrado da ciência como instrumento de marketing”. Silva (2004).17

Variedade importante dessa espécie são economistas que ostentam diplomas de

PhD de prestigiadas universidades estrangeiras. Quando defendem ou propõem políticas

governamentais que invariavelmente são de interesse dos grupos que representam, como

grandes bancos, costumam recorrer a sofisticadas teorias e técnicas quantitativas18.

partículas do universo, num dado momento, não por que isso exigiria uma capacidade de processamento da informação quase infinita, mas sim por pura indeterminação. 17 Silva J. M. A. Quem é cientista? Jornal da Ciência, edição eletrônica, n.o 2630, 26/10/2004. 18

Alguns dos quais serviram para aumentar a fortuna de banqueiros e rentistas, às custas de grandes desastres econômicos que levaram multidões ao desemprego e à falência.

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Passam por portadores de verdades científicas quando, na verdade, o que fazem está

mais para a “pajelança” do que para a ciência19. A diferença é que enquanto os pajés

usam “poções”, “cachimbadas” e outros artifícios dos rituais míticos, esses economistas

costumam usar a “teoria das expectativas racionais” (sem dizer que não são testáveis),

“diagramas de phase” ou os “modelos de autoregressão vetorial” que costumam ser

citados nas atas de reuniões do comitê de Política Monetária (Copom) do Banco Central

brasileiro.

Mas, mesmo tirando fora a infiltração de tecnocratas e burocratas disfarçados, e

aqueles que são mais “atores” do que “autores” de estudos e pesquisas, o ambiente do

meio científico está longe de ser exemplo de convivência exemplar “entre os pares”.

Vaidade e competição são dois ingredientes que quando combinados em determinadas

proporções podem desencadear os mais diversos tipos de falhas de caráter humano.

Emulações e disputas são comuns no meio científico e nem sempre se manifestam de

forma leal, democrática ou transparente. Fraudes científicas, piratarias e tráficos de

influências são mais comuns do que se imagina.

A avaliação do trabalho científico feita pelos “pares” requer um mínimo de

desprendimento difícil de alcançar. Num pequeno livro intitulado On Liberty, o

economista e filósofo John Stuart Mill dizia que “não se deve silenciar uma opinião,

pois se ela estiver certa, somos brindados pelo avanço do conhecimento, se estiver

errada aprenderemos mais sobre a verdade em sua colisão com o erro”. Na história da

ciência há exemplos como o de Max Planck, ao decidir favoravelmente sobre a

publicação de um artigo que Einstein havia enviado à revista científica da qual era

editor. As conclusões científicas que Einstein apresentava não eram simpáticas a

Planck, mas ele seguiu o principio de Mill e publicou o artigo. A revista era a Annalen

der Physic e o artigo tratava do trabalho de Einstein sobre o efeito fotoelétrico, que

juntamente com um trabalho anterior de Planck fundou as bases da física quântica20.

Não fosse a grandeza de Planck, a ciência poderia ter levado muito mais tempo para

chegar onde está.

Em vez de democracia e transparência, muitas vezes o que se vê é o poder de

certas “oligarquias” encasteladas em sociedades e associações científicas que controlam

meios de comunicação importantes, como as “revistas indexadas” de maior prestígio, e

19 Sem falar da arrogância de alguns portadores de Phd provenientes de Chicago que na década de 1970 primavam pela absoluta falta de educação, com comportamento chulo e uso de termos escatológicos em aulas ou palestras, como esse autor que vos fala teve o dissabor de testemunhar por diversas vezes.

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assim conseguem sustentar privilégios, mediante estratagemas de autopromoção e

cultivo de redes de relacionamentos com empresas privadas e agências públicas de

fomento e financiamento à educação, ciência e tecnologia.

Onde as “oligarquias científicas” predominam, decisões sobre publicações de

artigos, concessão de verbas de pesquisa, recursos para viagens internacionais, à guisa

de participação em congressos científicos ou realização de cursos de aperfeiçoamento e

pós doutoramentos, em vez de critérios democráticos e transparentes, costuma imperar a

velha regra do “para os amigos tudo, para os outros a lei”.

A “sociologia do meio científico” também é um campo fértil para estudos e

pesquisas.

20 E pelo qual Einstein acabou sendo laureado com o prêmio Nobel de física, em 1921.