erotismo e misticismo na poesia de adélia prado

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Erotismo e misticismo na poesia de Adélia Prado Ênio José da Costa Brito O consenso atual em torno da ex-professora primária e de filosofia para o segundo grau, mãe e avó, nem de longe relembra os obstáculos enfrentados por Adélia Prado para entrar no mundo da literatura. É verdade que teve padrinhos de peso, como Carlos Drummond de Andrade e Affonso Romano de SantAnna, que ressaltaram a qualidade de seus versos. [1]  Estudos posteriores só fizeram confirmar sua importância, sobretudo os trabalhos acadêmicos e teses que se multiplicam a cada ano no Brasil. Nos últimos anos, sua obra começa a ser traduzida na América Latina (Argentina, Peru) e nos Estados Unidos. Na Alemanha e na França seus poemas se fazem presentes em antologias poéticas. A dissertação de Neusa Cursino dos Santos Steiner, intitulada Um poder infernal: a  poesia de Adélia Prado, defendida no Programa de Estudos Pós-Graduados em Ciências da Religião da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo [2] , vem se  juntar a tantos outros trabalhos sobre a poeta mineira. [3]  Adélia Prado tornou-se uma autêntica hermeneuta do cotidiano, convidando seus inúmeros leitores a realizarem circunvoluções ao redor de seus temas preferidos, como a feminilidade, a dor de existir, os segredos do espírito, a velhice e a submissão a Deus. Aproximações Um poder infernal: a poesia de Adélia Prado se constitui num trabalho de "longo" e "largo" fôlego. O "longo fôlego" garantiu à autora o contato com a obra da poeta de Divinópolis e o "largo fôlego" possibilitou não só a leitura criativa, atual e instigante da obra adeliana, como a visualização do locus vital no qual sua obra vem sendo gestada. Steiner revela-se uma pesquisadora madura, que concilia sensibilidade, perspicácia e rigor analítico. O diálogo sutil que trava com a obra da poeta mineira e com seus intérpretes, pontuando, ampliando ou tecendo contrapontos, confirma a observação feita. A título de exemplo basta sinalizar o diálogo com o critico Felipe Fortuna, que detecta no livro Terra de Santa Cruz [4]  sintomas de uma crise no ethos poético adeliano. Steiner pontua: “o que ocorre a meu ver é o anúncio da mudança que está preste a acontecer, mostrando os processos da vida em seus ciclos de alegrias, dores, reconhecimento e superação” [5] . A potencialidade analítica nos é desvelada pelas duas chaves epistemológicas, norteadoras, a meu ver, da pesquisa: a vida como mistério insolúvel e o binômio religiosidade-erotismo. Algumas passagens podem ilustrar a constatação feita. “A religiosidade e sexualidade que tanto chamam atenção como parte de seu estilo, estão inscritos nesta realidade que é viver , na qual ela busca as raízes carnais e as asas do espírito. O que Deus uniu o homem não seara, ela diria” [6] . O consenso atual em torno da ex-professora primária e de filosofia para o segundo grau, mãe e avó, nem de longe relembra os obstáculos enfrentados por Adélia

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Erotismo e misticismo na poesia de Adlia Pradonio Jos da Costa BritoO consenso atual em torno da ex-professora primria e de filosofia para o segundo grau, me e av, nem de longe relembra os obstculos enfrentados por Adlia Prado para entrar no mundo da literatura. verdade que teve padrinhos de peso, como Carlos Drummond de Andrade e Affonso Romano de SantAnna, que ressaltaram a qualidade de seus versos.[1]Estudos posteriores s fizeram confirmar sua importncia, sobretudo os trabalhos acadmicos e teses que se multiplicam a cada ano no Brasil. Nos ltimos anos, sua obra comea a ser traduzida na Amrica Latina (Argentina, Peru) e nos Estados Unidos. Na Alemanha e na Frana seus poemas se fazem presentes em antologias poticas.A dissertao de Neusa Cursino dos Santos Steiner, intituladaUm poder infernal: a poesia de Adlia Prado, defendida no Programa de Estudos Ps-Graduados em Cincias da Religio da Pontifcia Universidade Catlica de So Paulo[2], vem se juntar a tantos outros trabalhos sobre a poeta mineira.[3]Adlia Prado tornou-se uma autntica hermeneuta do cotidiano, convidando seus inmeros leitores a realizarem circunvolues ao redor de seus temas preferidos, como a feminilidade, a dor de existir, os segredos do esprito, a velhice e a submisso a Deus.AproximaesUm poder infernal: a poesia de Adlia Pradose constitui num trabalho de "longo" e "largo" flego. O "longo flego" garantiu autora o contato com a obra da poeta de Divinpolis e o "largo flego" possibilitou no s a leitura criativa, atual e instigante da obra adeliana, como a visualizao dolocusvital no qual sua obra vem sendo gestada.Steiner revela-se uma pesquisadora madura, que concilia sensibilidade, perspiccia e rigor analtico. O dilogo sutil que trava com a obra da poeta mineira e com seus intrpretes, pontuando, ampliando ou tecendo contrapontos, confirma a observao feita. A ttulo de exemplo basta sinalizar o dilogo com o critico Felipe Fortuna, que detecta no livroTerra de Santa Cruz[4]sintomas de uma crise noethospotico adeliano. Steiner pontua: o que ocorre a meu ver o anncio da mudana que est preste a acontecer, mostrando os processos da vida em seus ciclos de alegrias, dores, reconhecimento e superao[5].A potencialidade analtica nos desvelada pelas duas chaves epistemolgicas, norteadoras, a meu ver, da pesquisa: a vida como mistrio insolvel e o binmio religiosidade-erotismo. Algumas passagens podem ilustrar a constatao feita. A religiosidade e sexualidade que tanto chamam ateno como parte de seu estilo, esto inscritosnesta realidade que viver, na qual ela busca as razes carnais e as asas do esprito. O que Deus uniu o homem no seara, ela diria[6].O consenso atual em torno da ex-professora primria e de filosofia para o segundo grau, me e av, nem de longe relembra os obstculos enfrentados por Adlia Prado para entrar no mundo da literatura. verdade que teve padrinhos de peso, como Carlos Drummond de Andrade e Affonso Romano de SantAnna, que ressaltaram a qualidade de seus versos.[7]Como que para reforar a afirmao feita um pouco adiante, Neusa Steiner volta a lembrar: Existe umavida inteiraque em exploses, em espasmos, em revelaes, numa seqncia angustiada, mas esperanosa de reencontro consigo mesma, percebida nas pginas de seus livros[8].Steiner percebeu que a religiosidade, motivo de estranhamento para tantos crticos, era a linha que costurava, colava e recuperava os grandes temas dessa poeta que gosta de resvalar nos limites e abismos imagticos e afeita aos mistrios das almas. Ao optar por esta chave, deu ao religioso e ao simblico o mesmo peso explicativo que se d ao psicolgico, ao econmico e ao social, sem negar o estatuto dos mesmos.Familiarizada com a leitura dos poemas de Adlia Prado, alerta: preciso retomar as imagens dos poemas, as reflexes nas entrelinhas das construes de frases e palavras determinadas.[9]Ainda avisa para no se eliminar a tenso dialtica presente no universo potico da poeta mineira. Explicando como o cotidiano deve ser compreendido, afirma: este ponto [nova compreenso do cotidiano] no recusa a opresso e a limitao imposta ao potencial criativo e intelectual das mulheres no ambiente domstico, mas refuta o olhar que reconhece to somente o vazio, a passividade e inrcia[10].Steiner retoma, em sua hiptese, esta tenso: possvel encontrar na poesia de Adlia Prado elementos que configuram transgresso e resistncia s concepes negativas praticadas pela Igreja Catlica em relao s mulheres. A mesma religio que oprime ir oferecer significados e smbolos, que viabilizam uma poesia de afirmao pessoal e, atravs dela, a expresso da poeta no espao pblico[11].O resultado uma interpretao criativa da obra adeliana, pois liga erotismo e religio para curar feridas femininas[12]ou o feminino ferido. Na fuso entre erotismo e religiosidade que tudo se renova de fato.[13]Esta cura, diz Steiner, permite a recuperao do imaginrio catlico com relao s mulheres no ocidente cristo[14]e a recomposio dos princpios feminino e masculino, opostos que se tocam e se espelham[15].Ao percorrer o texto, percebe-se que a dissertao muito bem estruturada, tecida com coeso e coerncia, alm de trazer em seu bojo uma sadia preocupao didtica. A qualidade e a importncia dessa dissertao vo aparecendo aos poucos durante a leitura.Um olhar sobre os captulosO primeiro captulo, intituladoOs caminhos de Adlia[16], se assemelha ao primeiro sonho da anlise psicolgica que esconde e revela todo o resto, conforme dizem os psiclogos. Nele, os trs eixos da pesquisa so tocados: a religio, o feminino e o cotidiano. Nossa primeira aproximao centra-se no cotidiano, uma vez que os outros eixos tero espaos no comentrio dos outros captulos.A temtica do cotidiano, alm de atual, desafiadora no s para cientistas da religio, como para outros estudiosos, uma vez que implica num dilogo refinado com as cincias sociais e, em particular, com a sociologia. A impresso que fica da leitura do captulo, bom que se diga - impresso desfeita com os dados apresentados no quarto captulo-,[17] a de uma reduo da vida cotidiana a usos e costumes, ao rotineiro, ao repetitivo, a um vivido repetido ou, epistemologicamente falando, a uma categoria, um conceito.Corre-se o risco desse conceito se transformar em mero rtulo, perdendo sua fora analtica[18]. Seria conveniente antecipar algumas das informaes presentes s no quarto captulo, informaes colhidas no dilogo com a historiadora Maria Izilda Matos. Para Matos, o cotidiano no deve ser visto apenas como hbito e rotina, mas como um universo de tenses e movimento. Desta maneira , tambm, umespao de resistnciaao processo de dominao.[19]Outro ponto chama a ateno do leitor: ao refletir sobre a religio da poeta, Steiner acolheu uma afirmao de Jos Castello: o religioso essencial, o catlico acidental[20]. No atacado a afirmao est correta, mas no varejo desperta dvidas. O catlico na poesia de Adlia Prado est to entranhado que uma afirmao categrica, como a de Castello, no deixa de ser problemtica. A poeta no v o catlico como pura negatividade, v sim suas patologias, bem como seus aspectos sadios. Ao realizar uma primeira aproximao dos eixos articuladores da potica de Adlia Prado, o primeiro captulo abre uma fecunda interlocuo com alguns de seus crticos.O segundo captulo,Adlia Prado, Feminino e a Igreja Catlica[21], procura desvendar os mecanismos que permitiram a produo e a reproduo da explorao e dominao das mulheres na sociedade e na Igreja. Realiza uma breve arqueologia das matrizes teolgicas que pautaram e ainda pautam muitas das relaes entre a Igreja Catlica e as mulheres no que diz respeito aos padres comportamentais femininos e, em especial, ao desejo sexual.Pela complexidade do tema, implicaes e conhecimentos teolgicos que a anlise exige, a elaborao do captulo certamente exigiu de Steiner um rduo trabalho de pesquisa. As observaes que se seguem renem sugestes para um aperfeioamento, reformulaes e pontuaes necessrias para se ter, das questes discutidas e da apropriao subjetiva feita pela poeta, uma compreenso mais refinada. Apropriao que implica num deslocamento que reverte em seu favor interpretaes clssicas da teologia utilizadas com freqncia pela Igreja Catlica.Primeiramente, no se pode apostar tanto na interpenetrao entre sexualidade e cristianismo, como faz o captulo. No se est falando de interpenetrao com catolicismo e nem com a Igreja Catlica. At Agostinho (354-450), o Oriente cristo no tinha o conceito prprio de um pecado original afetando toda a humanidade, mas mantinha como inabalvel a crena de que a humanidade est numa situao de separao de Deus, de corrupo em relao sua vocao e de necessidade radical de salvao. Fora da graa de Deus em Cristo, a humanidade caminharia para sua perdio.[22]Agostinho chama essa situao de pecado, posio que receber a confirmao dos conclios de Cartago em 418 e de Orange em 529.Qualquer discusso sobre a criao tem de levar em conta os dois relatos de Gnesis, isto , Gnesis 1,26-28 e 2,21-23. Em Gnesis 1,26-28, o texto declara a presena do elemento feminino em Deus; no versculo 27, l-se : imagem de Deus os criou homem e mulher. Neste relato, o elemento feminino igual em poder e glria ao masculino. O texto de Gnesis 2,21-23, mais conhecido, relata a criao da mulher da costela de Ado. A interpretao deste texto ao longo da histria foi marcada por um sexismo teolgico.A discusso sobre o pecado original feita no captulo pede uma complementao para realar a prpria reflexo apresentada e ganhar mais densidade e peso. Faz-se necessrio um dilogo com a teologia, especialmente com a teologia renovada, que, ao estabelecer contra-pontos interpretao tradicional do pecado original, abre novas possibilidades para uma viso mais ampla desta questo teolgica to complexa e que tem sido objeto de inmeras polmicas.No se pode cristalizar tanto as imagens de Eva e Maria, a primeira como pecadora e a segunda como imagem da pureza. A figura de Maria se impe a partir do sculo XII na Igreja, a de Eva mais antiga. Durante muito tempo, a figura de Eva foi utilizada como a imagem simblica da Igreja, portanto no poderia ser totalmente negativa[23].No perodo medieval, apesar do monotesmo ortodoxo, tem-se a divinizao da figura de Maria - ela vista como a quarta pessoa da Santssima Trindade. So Bernardo e Santo Toms eram contrrios proclamao do dogma da Imaculada Conceio por temerem que Maria fosse igualada s deusas-mes[24]. Uma outra informao desse perodo pode nos aproximar um pouco mais da mentalidade reinante no mundo cristo medieval. Se se acompanha o modelo de santidade apresentado ao povo cristo no perodo medieval, podemos constatar uma evoluo. No incio da Idade Mdia, o modelo era o bispo, mais tarde as abadessas e, no sculo XIII, as mulheres msticas[25].Com estas pontuaes no se quer negar a forte tendncia misgina da Igreja, que ainda perdura, mas chamar ateno para o dinamismo presente na viso do feminino em um determinado perodo histrico, visto no captulo de modo muito esttico.No captulo terceiro,Um poder infernal e erotismo em Adlia Prado[26], os leitores so introduzidos no universo potico de Adlia. Um captulo inicitico ao seu "eu lrico". Poder-se-ia dizer da poeta de Divinpolis o que outra Adlia afirma do poeta em geral; poeta aquele que fazendo estalar os limites do real, tenta fazer aflorar a o princpio do prazer, tenta trazer ao plano da linguagem a imagem do desejo[27].Acompanhar a primorosa leitura feita por Steiner das obras da poeta mineira perceber a transformao agnica pela qual Adlia Prado passa. Transformao que pode ser vista sob uma dupla tica, uma mstica e a outra psicanaltica. Esta, como um processo de integrao, processo de cura, a integrao do feminino ferido na psique ocorre atravs da luz colocada na figura da me, luz no sentido de uma viso direta e focada, no sentido de desnudar e observar. O olhar sem disfarces permite a diferenciao entre os sujeitos, fortalece a identidade daquele que elabora o processo, e assimpermite a integrao.[28]Um pouco antes, relembrara que, nos livros de Adlia, existe uma vida inteira em exploses, em espasmos, em revelaes, numa seqncia angustiada, mas esperanosa dereencontro consigo mesma...[29]. O recordar na cura psicanaltica tem muita importncia,no tanto a mera busca da lembrana, mas o recordar no sentido etimolgico: colocar de novo no corao. E importante sublinhar que isso se faz pela palavra[30].A tica mstica se faz presente na busca de integrao do humano e do divino, na epifania do secular e do sagrado e no desvelar de um cristianismo que naturaliza o divino[31]. Anglica Soares, com preciso mgica, toca na nervura desse processo de integrao: Essas marcas do discurso adeliano, integradora entre o humano e o divino e entre o homem e a mulher, apontam para uma nova relao com o corpo e com o prazer, superadora de estratgias de sujeio patriarcal e de limitaes deformadas da moral sexual crist[32].Digno de nota o crescendo da presena da linguagem mstica na obra de Adlia Prado, presente desde a estria da autora, em 1976 comBagagem, muito mais acentuada emO Pelicanoe clarssima emA faca no peito(1988) eOrculo de Maio(1999)[33]. Steiner relembra que, emA faca no peito, o tema central mesmo o amor por Jonathan/Jesus, derramado em versos sensuais, erticos e devocionais, momentos em que a exaltao do corpo e a religiosidade atingem um xtase[34]. Evaldo Balbino sintetiza bem a matriz mstica da poeta mineira - a poesia mstica crist: Assim, seu discurso no s faz uma retomada de So Francisco de Assis e So Joo da Cruz, mas tambm dos textos msticos de Santa Teresa de Jesus, tratando-se, neste caso de uma tradio feminina[35].Sem sombra de dvida, a poesia mstica crist uma das matrizes, mas seria importante pensar, tambm, na dimenso popular da mstica crist. Na dissertao, um olhar para a cultura popular tendo presente sua natureza, suas caractersticas e funes, contribuiria para a compreenso desse hmus cultural to marcante na poeta mineira. A cultura popular, com suas ambigidades, deslocamentos, fragmentariedade e, principalmente, com seu catolicismo popular tradicional, traria luzes para algumas "dobras" da poesia de Adlia Prado.Marilene Felinto, num breve e incisivo artigo no qual apresenta aos leitores da Folha de So Paulo o romanceManuscritos de FelipaeOrculos de Maio, afirma: tambm nesses dois lanamentos da autora est uma das chaves de sua literatura: a reverncia a um Deus seu e ao prprio ato de escrever so uma s e nica coisa. Os poemas de 'Orculos de Maio' vo do 8 ao 80 na consulta a essa divindade-poesia[36],Na obra da poeta mineira, cultura popular e erudita esto em permanente interao. Assim, a incorporao do portugus oral do Brasil recorrente nos seus escritos. Steiner, abordando os recursos de que a poeta se utiliza para romper a distncia entre leitor e escrita, aponta o fluxo dos sentimentos", o processo de aproveitamento dos elementos prprios da oralidade. Outro recurso o uso de regionalismos (trem, gastura, uai, refrigrio), tambm marca bem tpica da poeta neste exerccio de aproximaes[37]. Para Balbino, o regionalismo de Adlia Prado a aproxima de Guimares Rosa. O que de fato, no plano da linguagem, aproxima Prado e Rosa, o uso de regionalismos pelos quais os autores imprimem marcas do espao-scio-geogrfico em suas personagens[38].No tenho conhecimento de estudos da obra adeliana que trabalhem a oralidade, mas eles certamente existem. Uma pesquisa nesse sentido exigiria uma anlise lingstica dos textos (sintaxe e discurso) com sustentao terica de especialistas da rea e uma amostra bsica de discurso oral recolhido por meio de uma pesquisa de campo. Com esse corpus em mos seria possvel uma rica e ampla pesquisa da oralidade[39].No quarto captulo,O cotidiano em Adlia Prado: uma religio de mulheres,[40]Steiner trabalha bem as imagens do cotidiano nos poemas como recuperao do espao privado para alm da identidade que a Igreja ali ofereceu s mulheres[41].A figura de Maria se faz presente muito fortemente como virgem, entendida como una em si mesma, senhora de seu desejo e vontade. Virgem poderosa. Maria a mulher do cotidiano, para a qual a rotina perfeita Deus, mas tambm a Virgem una em si mesma, o arqutipo restaurado do poder feminino na psique[42].Steiner mostra bem as mudanas ocorridas na religiosidade da autora. Esta mudana na religiosidade de Adlia, invocando Maria a Me da Divina Graa' para vencer seus medos e aflies, para continuar lutando perante os enigmas da vida e continuar encontrando sentido e significado em viver a caracterstica principal dos poemas deste livro [Orculos de maio] e de certa maneira, desta fase de sua vida.[43]Steiner ilustra bem essa idia apresentando dois poemas curtos, intituladosTeologaleMaria. EmTeologalAdlia afirma:Agora definitivo:uma rosa mais que uma rosa.No h como deserd-laDe seu destino arquetpico.Poetas que vo nascerpassaro noites em clarorendidos forma prima:a rosa mstica.A afirmao retorna na sua frmula mnima no poema denominadoMaria,A est a rosa,defendida de lgica e batismo,a inquebrantvel,a Virgem.[44]Adlia nunca negou sua filiao ao catolicismo, filiao adulta, marcada por tenses e conflitos que no a assustam, pois aprendeu nos seus estudos filosficos, em contato com o pensamento medieval, que a f crist no uma aceitao tranqila e repousante. A f traz no seu bojo o princpio interrogante da razo que possibilita ver at que ponto ela aceitvel como obsequium rationabile prestado a Deus[45].A religio em sua poesia viva, como viva sua f, no simples repetidora de dogmas, no um porto seguro. Seus versos so dilogos com as incertezas femininas mais profundas e arraigadas, uma conversa longe e interminvel com a divindade, com a Igreja, com a existncia encarnada da mulher numa fuso impensvel: o corpo de Eva e a alma de Maria.[46]Um poder infernalcapta com sutileza, nos versos da poeta mineira, no s a angstia das mulheres reprimidas pela cultura e pela religio, como sua capacidade de resistir. Nas palavras de Soares: Reconhecendo no eu feminino um '... bicho do corpo' (Sensorial", B., p.21), quer na poesia, quer na narrativa, Adlia Prado nos traz uma positivao do erotismo, atravs do mesmo caminho utilizado para a sua negao no mundo judaico-cristo: o caminho da religio, enfatizando o que as instituies crists sempre se empenharam em ocultar: a santidade da transgresso ertica. Termina esta constatao com uma pertinente observao: Seu discurso ertico se diferencia, sobretudo, na escrita de autoria feminina das ltimas dcadas, no Brasil, por resultar da reapropriao desestruturadora dos elementos religiosos atravs dos quais se veicula a represso, para com eles prprios criar imagens de desrepresso e conscientizao da mulher[47].Escrita com criatividade, a dissertao proporciona um grande prazer de leitura[48].Consideraes finaisNum comentrio de Steiner, encontro o mote para as consideraes finais. Diz ela: a poesia de Adlia Prado inscreve-se assim na vertente de uma literatura brasileira do cotidiano, que tem em Manuel Bandeira um de seus maiores expoentes. Brasil, Minas, Divinpolis, onde a vida se fez e se faz, onde a f cresceu e se transformou. Divina, Divinpolis, cidade divina, Roma mineira, mas habitada por uma loba[49].Adlia Prado, com sua obra, nos ajuda a mergulhar no nosso jeito de ser, ao convidar-nos a pensar tanto na horizontalidade da ambincia na qual gostamos de viver, como na verticalidade em que o eterno surge no efmero. Manuel Bandeira, emProfundamente, realizou com maestria esse mergulho.Profundamente(Manuel Bandeira)Quando ontem adormeciNa noite de So JooHavia alegria e rumorEstrondos de bombas luzes de BengalaVozes cantigas e risosAo p das fogueiras acesas.No meio da noite desperteiNo ouvi mais vozes nem risosApenas balesPassavam errantesSilenciosamenteApenas de vez em quandoO rudo de um bondeCortava o silncioComo um tnel.Onde estavam os que h poucoDanavamCantavamE riamAo p das fogueiras acesas?- Estavam todos dormindoEstavam todos deitadosDormindoProfundamente***Quando eu tinha seis anosNo pude ver o fim da festa de So JooPorque adormeciHoje no ouo mais as vozes daquele tempoMinha avMeu avTotnio RodriguesTomsiaRosaOnde esto todos eles?-Esto todos dormindoEsto todos deitadosDormindoProfundamente.[50]***AnexoDe Animais, santo e gente[*]Carlos Drummond de Andrade.(...)Esse So Francisco no pra de cativar a gente. H santos que ficam quietos na bem-aventurana, no descem do altar, s esperam devoo e respeito. O Francisco no. Acompanha a gente na cidade, (...) ensina cada um a fazer coisas belas e a amar, com sabedoria. Acho que ele est no momento ditando em Divinpolis os mais belos poemas e prosas a Adlia Prado. Adlia lrica, bblica, existencial, faz poesia como faz bom tempo: est lei, no dos homens, mas de Deus:Uma ocasio meu pintou a casatoda de alaranjado brilhante.Por muito tempo moramos numa casacomo ele mesmo diziaconstantemente amanhecendo.Nascida beira-da-linha, o trem de ferro para ela, atravessa noite, a madrugada, o dia, atravessou minha vida virou s sentimento. E diz entre outras coisas: "Eu gosto de trem de ferro e de liberdade, Eu peo a Deus alegria para beber vinho ou caf, eu peo a Deus pacincia pra por meu vestido novo e ficar na porta da livraria, oferecendo meu livro de versos, que para uns flor de trigo, pra outros nem comida.Em poltica, Adlia diz que j perdeu a inocncia para os partidos, Sou do partido do homem. E sai no meio do discurso. Quer comer bolo de noiva, puro acar, puro amor carnal, disfarado de coraes e sininhos: um branco, outro cor-de-rosa, um branco, outro cor-de-rosaAdlia vai s compras? A crucificao de Jesus est nos supermercados para quem queira ver. Quem no presta ateno est perdendo. Tem gente que compra imoral demais com um olho muito guloso, se sungando at a ponta dos ps, atochando o dedo nas coisas, pedindo abatimento, s de vcio, com a carteira estufada de dinheiro, enquanto uns amarelos, desses cujo nico passeio varejar armazns, ficam olhando e engolindo em seco, comprando meios quilinhos das coisas mais ordinrias.Adlia j viu a Poesia, ou Deus, flertando com ela, na banca de cereais e at na gravata no flamejante do Ministro. Adlia fogo: fogo de Deus em Divinpolis. Como que eu posso demonstrar Adlia se ela ainda est indita: aquilo de vender livro porta da livraria pura imaginao e s uns poucos do pas literrio sabem da existncia desta grande poeta-mulher beira da linha?Notas[1]Ver no Anexo parte da crnica de Carlos Drummond de Andrade na qual apresenta a poeta ao Brasil . Fonte:Poesia Sempre, ano 13, n. 20, maro de 2005, p. 71.[2]A Banca Examinadora composta por Dra. Maria Jos Fontelas Rosado Nunes (orientadora), Dra. Luzia Margareth Rago e Dr. nio Jos da Costa Brito. A defesa foi realizada no dia 17 de maio de 2005.[3]Adlia Prado no gosta de ser chamada poetisa, da utilizarmos a denominao de a poeta.[4]PRADO, Adlia.Terra de Santa Cruz. 2 edio. Rio de Janeiro: Guanabara, 1986 [1981].[5]STEINER, Neusa Cursino dos Santos.Um poder infernal:a poesia de Adlia Prado. Dissertao de Mestrado em Cincias da Religio, PUC/SP, 2005, pp.187, [p.112]. A dissertao de Neusa Steiner, sincronicamente, vem luz no ano que Adlia Prado completa 70 anos (13 de dezembro). Pode,com mrito , associar-se s inmeras homenagens poeta mineira.[6]Ibidem, p. 97. Grifo nosso.[7]Ver no Anexo parte da crnica de Carlos Drummond de Andrade na qual apresenta a poeta ao Brasil . Fonte:Poesia Sempre, ano 13, n. 20, maro de 2005, p. 71.[8]Ibidem, p.108.[9]Ibidem, p.138.[10]Ibidem, p.166.[11]Ibidem, p.14.[12]Ibidem, p.106.[13]Ibidem, p.123. Para uma anlise do universo ertico-religioso de Adlia Prado, ver Anglica SOARES. Extenses ertico-religiosas nas Fantasias de Cu de Adlia Prado.Poesia Sempre, ano 13, n. 20, maro 2005, p. 53-64.[14]Ibidem, p.123.[15]Ibidem, p.52.[16]Ibidem, p.17- 40.[17]Ibidem, 124-125;166.[18]Para uma instigante discusso sobre o cotidiano, ver Jos Martins de SOUZA.A sociabilidade do homem simples. So Paulo: Hucitec, 2000, p. 93-109 [108-109][19]MATOS, Maria Izilda Santos de.Cotidiano e cultura. So Paulo: EDUSC, 2002, p.21-31. Matos estabelece um amplo dilogo com os estudiosos do tema e traa parmetros tericos para a questo com preciso. Grifo nosso.[20]STEINER, Neusa Cursino dos Santos.Um poder infernal:a poesia de Adlia Prado, p.38.Ver CASTELLO, Jos. "Adlia Prado retoma o dilogo com Deus em dois livros".O Estado de So Paulo, 25 de maio de 1999.[21]Ibidem, p. 41-82.[22]SESBO,Bernard. "A racionalizao teolgica do pecado original".Concilium, n. 204, 2004, p.12. Este nmero da revistaConciliumfaz um releitura do Dogma do pecado original, tendo presente os avanos da reflexo teolgica.[23]Ver LE GOFF, Jacques. Le christianisme a liber les femmes.LHistoire, n.245, juillet-aut, 2000, p.34-40.[24]Ibidem, p.37.[25]Ibidem, p.38.[26]STEINER, Neusa Cursino dos Santos.Um poder infernal:a poesia de Adlia Prado, p. 83-123.[27]MENEZES, Adlia Bezerra de.Do poder da palavra. Ensaios de literatura e psicanlise. Rio de Janeiro: Livraria Duas Cidades, 1995, p.113.[28]STEINER, Neusa Cursino dos Santos.Um poder infernal:a poesia de Adlia Prado, p.109-110. Grifo nosso.[29]Ibidem, p.108. Grifo nosso.[30]MENEZES, Adlia Bezerra de.Do poder da palavra, p.35.[31]BALBINO, Evaldo. A potica do desdobramento: tradio literria masculina e ruptura na bagagem de Adlia Prado.Poesia Sempre, ano13, n 20, maro 2005, 26ss; 38ss.[32]SOARES, Anglica. Extenses ertico-religiosas nas Fantasias de Cu de Adlia Prado, p.64ss.[33]PRADO, Adlia.Poesia Reunida. 10 ed., So Paulo: Siciliano, 200. A obra inclui os livros:Bagagem; O corao disparado; Terra de Santa Cruz; O pelicano; A faca no peitoeOrculos de Maio.[34]STEINER, Neusa Cursino dos Santos.Um poder infernal:a poesia de Adlia Prado, p.96.Jonathan um nome hebraico que significa, ddiva de Jeov ou de Deus.[35]BALBINO, Evaldo. A potica do desdobramento: tradio literria masculina e ruptura na bagagem de Adlia Prado, p.25ss.[36]FELINTO, Marilene. Adlia Prado mostra versatilidade em prosa e verso.Folha de So Paulo (Ilustrada), 27 de maro de 1999 .[37]STEINER, Neusa Cursino dos Santos.Um poder infernal:a poesia de Adlia Prado, p.129.[38]BALBINO, Evaldo. A potica do desdobramento: tradio literria masculina e ruptura na bagagem de Adlia Prado, p.33 b. Para uma abordagem do regionalismo adeliano, ver Anglica SOARES.A paixo emancipatria. Vozes femininas da libertao do erotismo na poesia brasileira. Rio de Janeiro: Difel, 1999.[39]H estudos sobre a oralidade na obra de Guimares Rosa e Carlos Drummond de Andrade. Ver a pesquisa de Teresinha Souto WARD,O discurso oral em Grande Serto:Veredas. So Paulo: Livraria Duas Cidades; Braslia: INL/Fundao Nacional Pr-Memria, 1984. O livro de Ward compagina a pesquisa de campo com a anlise do prprio texto; o ensaio agrada pela coleta do material e pela anlise.[40]STEINER, Neusa Cursino dos Santos.Um poder infernal:a poesia de Adlia Prado, p.124-167.[41]Ibidem, p.15.[42]Ibidem, p.165.[43]Ibidem, p.163.[44]Ibidem, p.164.[45]Falando sobre seus estudos numa entrevista a Cristiane Costa, relembra: Tivemos excelentes professores - ns fomos a primeira turma de nossa faculdade em Divinpolis -, eram frades do convento, onde tinha o seminrio de teologia. Eram todos doutores formados na Europa que tinham estudado filosofia a vida inteira. Ns tivemos cada professor que voc no imagina, uma delcia. (COSTA, Cristiane. Orculos de um corao disparado.Poesia Sempre, ano13, n 20, maro 2005, p. l8ss.[46]Ibidem, p.175.[47]SOARES, Anglica. Extenses ertico-religiosas nas Fantasias de Cu de Adlia Prado, p 64ss.[48]Neusa Steiner, ao longo da elaborao de sua dissertao, contou com a orientao segura e cuidadosa da Professora Doutora Maria Jos Fontelas Rosado Nunes .[49]Ibidem, p.133.[50]BANDEIRA, Manoel.Poesia completa e prosa. Rio de Janeiro: Editora Nova Aguilar, 1993, p.217. Waldecy Tenrio tece um belo comentrio ao poema de Manoel Bandeira no artigo intitulado Pequeno ensaio sobre o amor insatisfeito .Religio & Cultura, Vol.III, n 6 jul/dez, 2004, p.170-176.[*]Esta crnica foi originalmente publicada no Jornal do Brasil em 9 de outubro de 1975.