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1 Era uma vez o Preconceito contra Criança preconceitocontracriançapreconceitocontracriançapreconceitocontracriança preconceitocontracriançapreconceitocontracriançapreconceitocontracriança preconceitocontracriançapreconceitocontracriançapreconceitocontracriança preconceitocontracriançapreconceitocontracriançapreconceitocontracriança 1

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Era uma vez

o Preconceito contra Criança

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1

2

“Tolerar a existência do outro, permitir que ele seja diferente ainda é muito pouco. Quando se tolera, apenas se concede e isso não é uma relação de igualdade e sim de superioridade de um sobre o outro. Deveríamos criar uma relação entre as pessoas onde fosse inexistente a intolerância”.

José Saramago

Dra. Maria Amélia Azevedo

Professora Livre Docente e Titular pelo Instituto de Psicologia da USP Site: www.recriaprojetos.com.br

e-mail : [email protected]

3

AGRADECIMENTOS

A Viviane Nogueira de Azevedo Guerra, irmã e companheira de vida e de

trabalho, a quem devo a competente revisão dos originais.

Maria Amélia Azevedo

4

SUMÁRIO

1.0 – INTRODUÇÃO: PRECONCEITO SEM VEZ ! ...................................................

5

2.0 – O QUE É PRECONCEITO CONTRA CRIANÇA?................................................

7

3.0 - VOCÊ SABE QUE O TERMO CRIANÇA PODE ESCONDER

PRECONCEITO?........................................................................................................

118

4.0 - IMAGENS DE crianças-CRIANÇA = IMAGENS DE PRECONCEITO? ..........

139

5.0 - COMO NÃO CAIR NAS ARMADILHAS DO PRECONCEITO CONTRA

CRIANÇA? ................................................................................................................

141

Apresentação da obra...................................................................................... 173

Apresentação da autora.................................................................................... 174

5

1.0 - INTRODUÇÃO: PRECONCEITO SEM VEZ !

Este trabalho foi escrito com a intenção de que possa ser lido, entendido e discutido, sobretudo,

por jovens.

...

Foi concebido:

em estilo minimalista1, usando o menor número possível de palavras para expressar idéias;

de forma interativa, a fim de que qualquer leitor(a) se sinta desafiado(a) a compartilhar seus

pensamentos com os da autora;

numa estrutura inspirada em hipertexto 2.

A maneira como se concebeu o trabalho vai permitir que você faça uma viagem sem preconceito

pelo universo do preconceito contra a criança, universo esse expresso em imagens e textos podendo, se o

desejar, enriquecer esse mundo com suas próprias reflexões, emoções e representações.

1 Minimalista = postura de trabalhar no limite mínimo possível (do Latim minimus Cf Ferreira, A. B. de H. [1975] – Novo

Dicionário da Língua Portuguesa. RJ. Nova Fronteira). 2 Hipertexto = forma não linear de comunicação: “informações escritas em blocos de texto veiculados por remissões e não

por encadeamento linear único, o que possibilita ao leitor [ou leitora] escolher, entre os vários caminhos possíveis, aqueles

que são de seu interesse” (Dimenstein, G. e Alves, R. [2003]– Fomos maus alunos. Campinas, Papirus, 6ª edição, p. 34).

6

Lembre-se sempre de que os capítulos podem ser lidos como caminhos literários relativamente

autônomos que contam, porém, versões da mesma história: a do preconceito contra criança!

Por isso, não se envergonhe de praticar um ou mais dos direitos imprescritíveis de leitor3:

- o direito de pular páginas

- o direito de reler

- o direito ao bovarismo (doença textualmente transmissível) 4

- o direito de ler uma frase aqui e outra ali

- o direito de calar!!!

Boa leitura!

3 Pennac , D – Como um romance. [1993] Rio de Janeiro, Rocco, p.141-167

4 Bovarismo = “satisfação imediata e exclusiva de nossas sensações: a imaginação infla, os nersos vibram, o coração se

embala, a adrenalina jorra, a identificação opera em todas as direções e o cérebro troca (momentaneamente) os balões do

cotidiano pelas lanternas do romanesco” (Pennac, ob cit., p. 157).

7

2.0 - O QUE É PRECONCEITO CONTRA CRIANÇA? 2.1 - O CONCEITO

Preconceito quer dizer idéia (julgamento ou opinião) pré-concebida, isto é, formada:

i – antecipadamente, de antemão...

(PRÉ);

ii – Sem maior reflexão, ponderação ou conhecimento dos fatos [em especial dos divergentes (PRÉ-

JUIZO)];

iii – arbitrariamente, isto é que não respeita lei, regra ou evidência, dependendo apenas do arbítrio

(vontade ou capricho pessoal de alguém) [PRÉ-FORMADA].

Conceituado desta forma, preconceito relaciona-se freqüentemente a dois outros termos (com

os quais forma uma zona de significação que pode ser bastante negativa, por envolver a desvalorização

de alguém):

ESTEREÓTIPO e DISCRIMINAÇÃO

ESTEREÓTIPO vem do estéreo + tipo enquanto forma compacta obtida pelo processo de

clichê5.

Significa uma representação padronizada de alguém ou de um grupo social. Como o estéreo é

uma forma, todos os elementos nela enquadrados são reduzidos a um mesmo padrão único,

5 FERREIRA, A.B. de H. ob cit.

8

eliminando-se as diferenças individuais. O estereótipo funciona como uma lente redutora das

diversidades e, portanto, massificadora. Por resultar de generalizações apressadas, parciais, viesadas

por sentimentos quase sempre hostis, o estereótipo costuma ser muito resistente a evidências empíricas

contraditórias, além de representar um estigma social para seu portador.

Quanto à discriminação, como o próprio termo significa, trata-se de uma conduta destinada a

tratar desigualmente aquelas pessoas consideradas diferentes.

O tratamento desigual dos diferentes visa sua exclusão social e é uma decorrência da atuação

conjunta de estereótipo e preconceito.

Graficamente, a tríade PRECONCEITO/ ESTEREÓTIPO/ DISCRIMINAÇÃO funcionaria

assim:

Figura 1 - O ciclo de revitimização psicossocial do PRECONCEITO.

ESTEREÓTIPO

ESTIGMA SOCIAL DO DIFERENTE

PRECONCEITO

DISCRIMINAÇÃO

9

O que se pretende mostrar é que a conduta discriminatória ancora-se em

pensamentos/atitudes/sentimentos preconceituosos os quais por sua vez são “legitimados” por

estereótipos que estigmatizam os diferentes. Trata-se de um processo perverso de transformação dos

diferentes em vítimas de tratamento desigual, processo esse que se (re)produz na medida em que a

discriminação tem a tendência de “confirmar” e, portanto, de fortalecer preconceito e estereótipo

estigmatizador, num verdadeiro ciclo de REVITIMIZAÇÃO PSICOSSOCIAL.

As tristes histórias relatadas a seguir, ilustram como isto ocorre com freqüência cada vez maior

nas escolas do mundo contemporâneo e, inclusive, Brasil.

HISTÓRIAS DE “BULLYING” ESCOLAR

Esse termo compreende hoje todas as atitudes agressivas e intencionais dirigidas a um indivíduo

ou grupo, a partir de uma relação desigual de poder.

“Aterrorizar, humilhar, colocar apelidos, discriminar, utilizar a violência física são exemplos de

atos que caracterizam uma situação de bullying”. Em português, não há uma palavra que corresponda

ao termo de origem inglesa (bully = tirano, brigão), capaz de abranger todos esses maus-tratos. As

primeiras investigações sobre a prática nas escolas foram realizadas na Noruega, no início da década de

70, pelo pesquisador Dan Olweus, da Universidade de Bergen. Seu trabalho deu origem, em 1983, a

10

uma campanha nacional com o apoio do governo norueguês. O sucesso dessa campanha

incentivou outros países, como Canadá, Portugal e Espanha, a desenvolverem suas próprias

iniciativas.”6

Tanto no Brasil, quanto no Exterior, os episódios de bullying vem se multiplicando, seja no

cenário escolar (sobretudo sala de aula), seja no cenário cibernético.

As notícias, a seguir, são ilustrativas de situações em que o bullying (sinônimo de ZOAR,

INTIMIDAR) traz intenso sofrimento psicológico às vítimas e até mesmo conseqüências mais graves.

6 Guidalli, B. Revista Pátio, ano IX, nº 34, maio/julho,2005, p.38

11

Garoto de 10 anos tem medo dos colegas

Mãe conta que menino é constantemente espancado pelos meninos de sua sala. O menino H.M.S. tem 10 anos e não quer ir mais à escola. Tem medo. “Ele sempre volta arranhado, cheio de hematomas”, conta a mãe, Cláudia. Segundo ela, o garoto apanha freqüentemente de colegas na Escola Municipal de Ensino Fundamental Theodomiro Dias, na Vila Sônia, [zona sul, cidade de São Paulo]. “Isso acontece na frente da professora”, diz a avó Janet. A família conta que as agressões começaram há três anos quando um grupo de colegas baixou as calças de H.M.S., que revidou com empurrões. “Depois, me seguraram e me espancaram na sala de aula”, lembra o menino, que tem problemas de fala. A mãe fez um boletim de ocorrência, mas nada foi esclarecido. Cláudia conta que, desde então, o menino já chegou várias vezes em casa com o rosto machucado, mas nunca admitia ter apanhado. Até que, há três semanas, contou à fonoaudióloga que havia levado um soco e não queria mais ir à escola. “Outras crianças me contaram que ele foi até jogado na lata do lixo”, diz Cláudia. Fonte: O ESP, 2/10/2000, p. A 9

Humilhação também vem pela internet A internet tornou-se uma grande aliada do bullying, através de blogs que são criados para azucrinar a vida de um colega, de fofocas em conversas por programas de mensagens instantâneas e até mesmo no Orkut, que acaba excluindo alguns estudantes, já que é preciso ser convidado para entrar na rede de relacionamentos e os “amigos” podem aprovar ou não a sua amizade... “O cyberbullying é o novo tipo de bullying nas escolas. Ferramentas disponíveis na internet auxiliam na propagação desse comportamento, uma vez que as vítimas recebem os maus tratos, seja através de ridicularizações, ameaças, chantagens, discriminações, etc., de forma anônima, o que é pior, uma vez que se desconhece o agressor”. “Dessa forma, o bullying é uma dinâmica expansiva que envolve um número cada vez maior de alunos”. Fonte: FSP, Folhateen, 20/06/2005, p.7

12

Estudante mata 3 colegas e

fere 6 na Patagônia

Carmen de Patagones – “Hoje será um

lindo dia.” Com estas palavras, o

adolescente Rafael Soldich, conhecido

como Júnior, cumprimentou ontem de

manhã os colegas da escola pública

Malvinas Argentinas, no centro da

cidade de Carmen de Patagones,

Patagônia.

Em seguida, Rafael e seus colegas

participaram do hasteamento da

bandeira e entraram na sala de aula.

Então, Rafael sacou uma pistola calibre

9 milimetros e começou a atirar. Três

adolescentes morreram imediatamente

com tiros no estômago. Depois de

esvaziar a arma, o jovem saiu da sala, e

no corredor do colégio, pôs um novo

pente de balas e voltou a disparar,

ferindo outros seis estudantes. Quando a

pistola ficou novamente sem balas, tirou

da cintura um facão estilo Rambo e

ameaçou prosseguir com a chacina

usando a arma branca. Segundos depois,

começou a chorar e se entregou à

polícia, que acabava de chegar à escola,

alertada pelos tiros. Os estudantes

haviam presenciado uma matança sem

precedentes nas escolas argentinas.

O rapaz que se vestia de preto

Rafael Soldich, o autor da matança de Patagones,

era considerado um rapaz tímido por seus colegas e

professores, que no fim da tarde de ontem

continuavam estarrecidos com o assassinato dos três

adolescentes. Seus colegas costumavam

ridicularizá-lo, chamando-o de “tragalibros” (cdf).

Nos últimos tempos, o jovem vestia-se com roupas

de cor preta. Segundo seus colegas, um dos

estudantes, definido como “o gozador da turma”,

apelidou-o de “dark”, o que teria irritado Rafael.

Os colegas e seus professores diziam que ele era um

rapaz introspectivo e nunca havia manifestado

nenhum tipo de atitude violenta. Seus pais contaram

que estavam no meio de um processo de divórcio, o

que o deprimia.

Fonte: O ESP, 29/09/2004, p. A19

A mídia argentina também lembrou o caso de Javier

Romero, um adolescente que no ano 2000

assassinou a tiros um colega da escola e feriu

gravemente outro.

Javier era alvo de gozações dos estudantes, que o

chamavam de Pantriste (pão triste), em referência a

um personagem de desenhos animados que tinha

uma permanente cara de fracassado. Ao disparar,

Javier gritou: “Agora vocês vão me respeitar”.

Fonte: O ESP, 29/92004, p. A 19

Filhos de migrantes japoneses enfrentam bullying no Japão 7

Os jovens, a partir de uma certa idade, se encontram numa fase de difícil adaptação. Muitos não

têm condições de acompanhar o sistema de educação japonês, principalmente após o ginásio

(correspondente ao nono ano do estudo básico) (Mizukami, 1998, p.29). Muitos interrompem o estudo

7 MORIYA, R.M. [2000] – Fenômeno Dekassegui. Um olhar sobre os adolescentes que ficaram. Londrina: Edições Cefil,

p.73-4.

13

para ir às fábricas, antes do final do colegial. As dificuldades com o idioma e os maus-tratos (ijime)

causados pelos colegas de escola (uma prática particular da cultura japonesa) são fortes fatores para

que as crianças ou os adolescentes não freqüentem mais os bancos escolares, vivam em “ócio total” e

acabem se marginalizando, formando grupos de delinqüentes (ibidem).

O fenômeno ijime tem sido registrado mesmo entre os estudantes japoneses fazendo com que as

vítimas se afastem da escola.

...

O campo semântico

ESTEREÓTIPO

PRECONCEITO

DISCRIMINAÇÃO

nem sempre inclui estigma social como vimos, ou seja, nem sempre é desvalorizador de

alguém.

Pode, ao contrário, representar uma supervalorização , uma idealização através da construção de

MITOS.

Ao contrário do ESTIGMA SOCIAL cuja função é a de marcar negativamente, o MITO tem

uma função laudatória, de exaltação positiva.

14

Nesta vertente teríamos a seguinte representação do campo semântico já referido:

Figura 2 – O ciclo de idealização.

ESTEREÓTIPO

MITO

PRÉ- CONCEITO

DISCRIMINAÇÃO

O ciclo de idealização constitui-se num processo de VALORIZAÇÃO estereotípica e

preconceituosa porque resultante de generalizações atrapalhadas e apressadas, mas cuja função, porém,

em vez de desvalorizar, super valoriza resultando em discriminação também, só que positiva em vez

de negativa (como na Figura 1).

A história a seguir ilustra o que se acabou de indicar:

15

A HISTÓRIA DA SANTA MÃE

A divinização da figura materna prende-se a uma longa tradição histórica que tem em Maria –

mãe de Jesus – seu modelo mais importante enquanto madona, senhora e mãe de todos nós, na religião

católica ocidental.

“É possível, dizer quanta importância teve para o Mundo, Maria, a Mãe de Jesus? Santa

Mônica, a Mãe de Santo Agostinho?” Estas entre as mais conhecidas, e as outras? Ficaram no olvido,

pois todos lembram Camões, Shakespeare, Dante, Cervantes, e tantos outros, mas quem lembra de

suas mães? Ninguém... Porém, foram essas mães – divinas mães – que fizeram de seus filhos os mais

dignos artistas na arte das letras.

A mãe é a seiva que alimenta a planta que brota para a vida, que purifica o seu crescimento e

procura, com o apoio moral, dar-lhe a célula mater de sua natureza para o caminho da verdade.”8

O culto a Maria fica evidente seja nas pinturas, seja em poemas e frases de escritores nacionais

e internacionais.

__________________________ 8 FERNANDES, J. [1953] Para você mamãe. São Paulo: J. Realti Editor, p.15, 284, 286, 287, 289, 291, 293.

Virgem Maria

Fonte:http://members.aol.com/translat77

/marian.htm

Nossa Senhora de Fátima

Fonte:http://www.av.it.pt/aveirocida

de/en/monumentos/azulejos/azule45.

htm

Nossa Senhora Aparecida

Fonte:http://upload.wikimedia.org/wiki

pedia/commons/thumb/8/8a/NS_Aparec

ida.png/180px-NS_Aparecida.png

Nossa Senhora da República Centro

Africana

Fonte:http://www.santaluzialimeira.

com.br/ns%20africa/ns%20centro% htm 20africano

Santa Margarida da Escócia

Fonte:http://200.168.231.201/portal/can

ais/santodia/santos/bycod/000313.jpg

ALGUNS REGISTROS LITERÁRIOS Pensamentos “Mães, sois vós que tendes nas mãos a salvação do mundo.”

Leon Tolstoi (1828-1910)

(Rússia)

“Perguntaram-me quem era a minha musa. Quem mais o sería senão minha Mãe?” Victor Hugo

(1802-1885) (França)

“Todas as mães não são menos que as lágrimas da Virgem Puríssima.”

Rainha Santa Izabel (1271-1336)

(Portugal)

“Somente a mãe conhece e escuta a expressão AMAR.” George Sand (1804-1876)

(França) “Quem mais sublime, quem guardo na memória, com os olhos de minha alma, senão a

lembrança de minha santa mãe?” Camões

(1524-1580) (Portugal)

“Feliz daquele que pode sempre ouvir a voz da sua progenitora.”

Ibsen (1828-1906)

(Noruega)

18

SER MÃE 9

Ser mãe é desdobrar fibra por fibra O coração; ser mãe é ter no alheio Lábio que suga o pedestal do seio

Onde a vida, onde o amor cantando vibra.

Ser mãe é ser um anjo que se libra Sobre um berço dormido; é ser anseio,

É ser temeridade, é ser receio, É ser força que os males equilibra.

Todo o bem que a mãe goza é o bem do filho

Espelho em que se mira afortunada, Luz que lhe põe nos olhos novo brilho.

Ser mãe é andar chorando num sorriso; Ser mãe é ter um mundo e não ter nada;

Ser mãe é padecer num paraíso.

Coelho Neto (1864-1934)

(Caxias, Maranhão)

...

O campo semântico do ESTEREÓTIPO/PRECONCEITO/DISCRIMINAÇÃO tem, pois, duas

vertentes:

- uma negativa,

- outra, positiva.

_____________________________

9 Fernandes, ob cit, p. 27.

19

No entanto, ambas servem a um mesmo propósito: o de mistificar 10

a diferença entre os seres

humanos, seja condenando-a e estigmatizando-a, seja louvando-a e a idealizando. Em ambos os casos

trata-se de tentativas perigosas de camuflar a realidade através de mentiras, belas ou feias.

...

2.2 - TIPOS DE PRECONCEITO

A partir de agora, vou falar em PRECONCEITO, embora este quase sempre esteja ancorado em

ESTEREÓTIPO e quase sempre resulte em DISCRIMINAÇÃO. Também vou privilegiar, daqui para

frente, o PRECONCEITO em sua versão PESSIMISTA (que ESTIGMATIZA) por ser esta

comparativamente mais perigosa que o PRECONCEITO na versão OTIMISTA (IDEALISTA).

Os tipos de preconceito são os mais variados possíveis e sua listagem está sempre crescendo:

__________________________

10 Mistificação: Processo de enganar, iludir, ludibriar (cf. FERREIRA, A.B. de H., p. 931).

20

Figura 3 – Árvore do Preconceito

http://uk.geocities.com/jorgebraz2000/pictures/arvore.jpg

21

2.2.1 - Preconceito de classe

Há várias formas de se delimitar as classes sociais11

. Em sociedades ocidentais , como a nossa,

as classes costumam ser hierarquizadas como o fez Darcy Ribeiro12

:

Figura 4 - Diagrama da estratificação social Latino-Americana

Teoricamente as classes são permeáveis à ascensão social mas na prática, a escalada – quando

possível – ainda equivale a um verdadeiro exercício de alpinismo e costuma ter um preço elevado.

___________________________ 11

Em sociedades orientais como a Índia, a sociedade é estruturada em castas rigidamente hierarquizadas. Assim os párias

que constituem a base da pirâmide social não podem relacionar-se com membros de outras castas. A transgressão a isso

pode resultar em severas punições sociais. 12

RIBEIRO, D. [1979] – O dilema da América Latina, Petrópolis, Vozes.

22

É o caso por exemplo dos chamados “novos ricos”: oriundos de camadas populares ao

enriquecerem procuram morar em bairros “nobres” das grandes metrópoles, freqüentar lugares “chics”,

aparecer nas colunas sociais, “colocar os filhos em seletas escolas particulares, fazer compras em lojas

baladas”, andar em carros de marca, trocando-os ano a ano, etc.

Através dessas estratégias, os “novos ricos” procuram desesperadamente o estilo elitista das

pessoas de classe A, escapando assim de qualificativos como “cafona”, “sem classe”, “arrivistas”,

“emergente” e aumentando a distância em relação à classe de onde vieram: a dos ninguéns, a dos

pobres excluídos.

Os Ninguéns 13 As pulgas sonham com comprar um cão, e os ninguéns com deixar a pobreza, que em

algum dia mágico a sorte chova de repente, que chova a boa sorte a cântaros;mas boa sorte não chove ontem, nem hoje, nem amanhã, nem nunca, nem uma chuvinha cai do céu da boa sorte, por mais que os ninguéns a chamem e mesmo que a mão esquerda coce, ou se levantem com o pé direito, ou comecem o ano mudando de vassoura.

Os ninguéns: os filhos de ninguém, os donos de nada. Os ninguéns: os nenhuns, correndo soltos, morrendo a vida, fodidos e mal pagos. Que não são, embora sejam. Que não falam idiomas, falam dialetos. Que não praticam religiões, praticam superstições. Que não fazem arte, fazem artesanato. Que não são seres humanos, são recursos humanos. Que não tem cultura, têm folclore. Que não têm cara, têm braços. Que não têm nome, têm número. Que não aparecem na história universal, aparecem nas páginas policiais da imprensa local. Os ninguéns que custam menos do que a bala que os mata.

___________________________ 13

GALEANO, G. [1997] – O livro dos abraços, Porto Alegre, L & P M.

23

Balada para não dormir

Eu não sou criança. Eu sou de menor. Criança tem pai, tem mãe, tem irmão.

Eu sou de menor.

De menor tem a vida. Criança tem livro com figura colorida.

De menor tem um código. Eu sou de menor.

Criança aparece em anúncio bonito

Pedindo brinquedo. De menor não tem disso.

De menor é no dedo puxando o gatilho. Criança tem disco do Carequinha

e do Balão Mágico. Eu sou de menor.

Eu escuto Afanázio. Criança tem idade,

Faz aniversário, apaga velinhas. Eu sou de menor. Eu já nasci grande,

sem mês sem ano, apago velhinhas.

Criança é bobinha. Eu sou de menor. Imponho respeito. Criança tem gênio. Eu tenho manias. Eu sou de menor. Criança tem clube. Eu sou de menor.

Eu tenho minha gang. Criança tem sítio

com pato, galinha, vaca,

24

bezerro, carneiro, cabrito. Eu sou de menor.

Eu tenho tudo isso, mas ganho no grito. Criança mergulha no azul da piscina.

Eu sou de menor. Eu nado, me afogo, na funda lagoa.

Eu sou de menor. Se toco na banda,

Ninguém me elogia, prestigia. Se engraxo sapato,

Ninguém diz: “Legal”. Eu sou de menor.

Criança depende do bolso do pai. Eu sou de menor.

Eu guardo automóvel com cara de anjo. divido a grana com os caras marmanjos.

Me viro me arranjo. Como pastel, tomo caldo de cana,

Descolo hambúrguer de gente bacana. Eu sou de menor.

Atravesso vitrô, eu furo parede, eu cavo buraco, eu salto muralha, eu miro no alvo, derrubo cigarro.

Endireito cano de curva espingarda, Sento na borda da escada rolante,

Levanto os dois braços na montanha - russa. Freqüento os cinemas Da avenida Ipiranga,

e tudo o que passa eu já sei de cor. Eu sou de menor. Nada tem graça.

Às Vezes me escalam para ser criança. É tarde demais.

Eu sou de menor.

25

Já morreu o sol da aurora da vida, saudades eu tenho. Eu sou de menor.

Sou vidraça quebrada. pela pedra do adulto.

Sou rosto molhado na água da chuva. Sou fliplerama, o barraco, a marquise,

sou dois olhos mordendo a luz da vitrina,

Escândalo sou sem a mó do moinho. Eu sou o trapo enxotado na loja.

O cara suspeito empurrando carrinho. Sou o discurso jamais realizado.

Sou a face clara da fortuna escondida. Sou o cão magrela do desperdício.

Sou o lado contrário do cabo da faca. Sou a garrafa vazia jogada no mar

Que volta coberta de restos da morte.

Eu sou a resposta que não espera perguntas.

Aqui estou nada mais sinto. Apenas digo: Cuidado!

Não sou criança. Meu nome é: de menor.

Fonte: Jornal da Tarde, São Paulo, 9 outubro, 1985

26

2.2.2 Preconceito de etnia ou cor – É o famoso racismo14

que pode também

assumir várias modalidades.

2.2.2.1 - RACISMO de cor – Quem não se lembra do episódio GRAFITE?

Rebu em campo – Racismo rouba a cena em jogo da Copa Libertadores. Na partida em que o

São Paulo ganhou do Quilmes por 3 a 1 pela Libertadores, na quarta-feira, o argentino Desábato

chama o atacante Grafite, entre outras ofensas, de negro de mierda. O são paulino dá queixa e

Desábato passa duas noites preso.

Fonte: O ESP, 17/04/2005, p.J 5

____________________________________ 14

O termo racismo deriva de [raça], um conceito bastante questionável, quando aplicado a grupos humanos pois existem

“mais diferenças sócio culturais entre um chinês, um malinês e um francês, do que as diferenças genéticas.” (Cf Bem

Jelloum, T. [2000] – O Racismo explicado à minha filha, SP, Via Lettera, Editora e livraria, pgs. 21-7). O racismo foi

formalizado por J.A. Gobineau em seu Essai sur l’inega lité des races humaines, de 1853; enquanto doutrina que afirmava

a superioridade de uma raça sobre outra, por herança genética (biológica portanto).Ernest Renan – um historiador – chegou

inclusive a definir os grupos humanos que pertenceriam à ‘raça inferior’: os negros da África, os aborígenes da Austrália e

os índios da América. Para ele, ‘o negro seria para o homem, o que o asno é para o cavalo’, ou seja, ‘um homem a quem

faltaria inteligência e beleza’. Hoje o termo raça só é cientifica e politicamente correto se aplicável a uma mesma raça ou

espécie: a grande RAÇA HUMANA donde se conclui, a impropriedade do próprio termo racismo, para designar

‘desconfiança e/ou desprezo em relação a pessoas com características físicas e culturais diferentes das nossas’ (Cf Jelloum,

B. ob cit).

27

“Ednaldo Batista Libânio, chamado de Grafite por causa da cor da pele, foi o pivô do mais

estridente episódio de racismo dos últimos tempos”15

O episódio foi a gota d’água que pingou num mar de experiências negativas acumuladas

por Grafite “A última ocorrência do gênero com ele aconteceu em 29 de março. O jogador

conta que estava em um carro com um amigo e seu assessor de imprensa quando foi

parado durante uma blitz policial próximo a uma emissora de TV, na qual participaria de

um programa. Obrigado a descer do veículo, viu-se ‘encostado no carro, ‘tomando geral

(revista policial),com as pernas abertas e as pessoas por perto gritando, tirando um sarro,

comentando o fato’. Na época, o jogador disse que aquilo era normal, que não fora a

primeira vez que passava pela situação nem seria a última. Foi uma averiguação de rotina,

os policiais foram educados” completou.16

Lamentavelmente, racismo no futebol é uma praga universal.

A literatura brasileira contém outras histórias de racismo. Confira!

...

_________________ 15

OESP, já citado 16

OESP, já citado

28

Galinha tonta já tinha este apelido quando, aos 7 anos pediu um prato de

comida num outro bairro. Ele morava no pedaço mais pobre da cidade. E sempre

fazia isso, a família dele não tinha o que comer. Naquela casa, a empregava sempre

guardava uma coisinha para o menino. Só que, naquela noite, a patroa entrou na

cozinha e viu o estranho comendo lá. Destampou o seu estoque de preconceitos e

gritou:

Por que esse negrinho tá comendo aqui dentro? Pode dar os restos pra ele, mas

ele tem de comer lá fora, junto com os cachorros...

(Não se trata de ficção, historinha. Tudo aconteceu mesmo em São Francisco. Se

duvidar, passe por lá e pergunte pelo Galinha Tonta...)17

...

______________________________ 17

KUBRUSLY, M. [2005] Me leva Brasil/A fantástica gente de todos os cantos do país. São Paulo: Globo Editora.

29

Negrinha18

Monteiro Lobato

“Objeto das judiações de D. Inácia, a desventurada Negrinha é bem uma irmã daquele pobre

menino da lenda do pastoreio.

As outras crianças brincavam... Mas, se a sua pele era diferente, e diferente a sua condição,

tinha ela, no entanto, uma alma como a das outras crianças – que a alma da criança é sempre a mesma,

em sua pureza e inocência.

Negrinha era uma pobre órfã de sete anos. Preta? Não; fusca, mulatinha escura de cabelos

ruços e olhos assustados.

Nascera na senzala, de mãe escrava, e seus primeiros anos vivera-os pelos cantos escuros da

cozinha, sobre velha esteira e trapos imundos. Sempre escondida, que a patroa não gostava de

crianças.

Excelente senhora, a patroa. Gorda, rica, dona do mundo, a mimada dos padres, com lugar

certo na igreja e camarote de luxo reservado no céu. Entaladas as banhas no trono - uma cadeira de

balanço na sala de jantar, ali bordava, recebia as amigas e o vigário, dando audiências, discutindo o

tempo. Uma virtuosa senhora, em suma uma dama de grandes virtudes apostólicas, esteio da

religião e da moral, dizia o padre.

____________________________

18 In: SALES, H. [1996] (org.) Os belos contos da eterna infância. Rio de Janeiro: Edições de Ouro.

30

Ótima, a dona Inácia. Mas não admitia choro de criança. Ai! Punha-lhe os nervos em carne

viva. Viúva sem filhos, não a calejara o choro da carne de sua carne, e por isso não suportava o

choro da carne alheia. Assim, mal vagia, longe, na cozinha, a triste criança, gritava logo nervosa:

— Quem é a peste que está chorando aí?

Quem havia de ser? A pia de lavar pratos? O pilão? O forno? A mãe da criminosa abafava a boquinha

da filha e afastava-se com ela para os fundos do quintal, torcendo-lhe em caminho beliscões de

desespero.

— Cale a boca, peste do diabo!

Que idéia faria de si essa criança que nunca ouvira uma palavra de carinho? Pestinha, diabo,

coruja, barata descascada, bruxa, pata-choca, pinto gorado, mosca-morta, sujeira, bisca, trapo,

cachorrinha, coisa-ruim, lixo — não tinha conta o número de apelidos com que a mimoseavam.

Tempo houve em que foi a bubônica. A epidemia andava na berra, como a grande novidade, e

Negrinha viu-se logo apelidada assim — por sinal que achou linda a palavra. Perceberam-no e

suprimiram-na da lista. Estava escrito que não teria um gostinho só na vida — nem esse de

personalizar a peste...

Certo dezembro vieram passar as férias com Santa Inácia duas sobrinhas suas, pequenotas, lindas

meninas louras, ricas, nascidas e criadas em ninho de plumas.

31

No enlevo da doce ilusão, Negrinha levantou-se e veio para a festa infantil, fascinada

pelaalegriadosanjos.Mas logo a dura lição da desigualdade humana lhe chicoteou a alma. Beliscão

no umbigo, e nos ouvidos, o som cruel de todos os dias: “Já para o seu lugar, pestinha!

Não se enxerga?

Chegaram as malas e logo:

- Meus briqnuedos! – reclamaram as duas meninas.

Uma criada abriu-as e tirou os brinquedos fora.

Era de êxtase o olhar de Negrinha. Nunca vira uma boneca e nem sequer sabia o nome desse

brinquedo. Mas compreendeu que era uma criança artificial.

— É feita?...

As meninas admiraram-se daquilo.

- Nunca viu boneca?

- Boneca? – repetiu Negrinha. – Chama-se Boneca?

Riram-se as fidalgas de tanta ingenuidade.

— Como é boba! — disseram. — E você como se chama?

- Negrinha.

As meninas novamente torceram-se de riso; mas vendo que o êxtase da bobinha perdurava,

disseram, apresentando-lhe a boneca:

32

—Pegue!

Negrinha, coisa humana, percebeu nesse dia da boneca que tinha uma alma. Divina eclosão!

Surpresa maravilhosa do mundo que trazia em si e que desabrochava, afinal, como fulgurante flor

de luz. Sentiu-se elevada à altura de ente humano. Cessara de ser coisa — e doravante ser-lhe-ia

impossível viver a vida de coisa. Se não era coisa!

Se sentia! Se vibrava!

Assim foi — e essa consciência a matou.

Terminadas as férias, partiram as meninas levando consigo a boneca, e a casa voltou ao ramerrão

habitual. Só não voltou a si Negrinha. Sentia-se outra, inteiramente transformada.

Aquele dezembro de férias, luminosa rajada de céu trevas adentro do seu doloroso inferno,

envenenara-a.

Brincara ao sol, no jardim. Brincara!... Acalentara, dias seguidos, a linda boneca loura, tão boa, tão

quieta, a dizer mamã, a cerrar os olhos para dormir. Vivera realizando sonhos da imaginação.

Desabrochara-se de alma.

Morreu na esteirinha rota, abandonada de todos, como um gato sem dono. Depois, vala comum. A

terra papou com indiferença aquela carnezinha de terceira — uma miséria, trinta quilos mal

pesados...

E de Negrinha ficaram no mundo apenas duas impressões. Uma cômica,

33

na memória das meninas ricas.

— “Lembras-te daquela bobinha da titia, que nunca vira boneca?”

Outra de saudade, no nó dos dedos de dona Inácia.

— “Como era boa para um cocre!...”

...

Negrinho do Pastoreio

Era o tempo da escravidão e um menino negrinho, pretinho que nem carvão, humilde e raquítico era escravo de um fazendeiro muito rico, mas por demais avarento. Se alguém necessitasse de um favor, não se podia contar com este homem. Não dava um níquel a

ninguém e seu coração era a morada de uma pedra, não nutria qualquer sentimento por ninguém, a não ser por seu filho, um menino tão malvado quanto seu pai, pois afinal, a

fruta nunca cai muito longe da árvore. Este dois eram extremamente perversos e maltratavam o menino-escravo desde do raiar do dia, sem lhe dar trégua. Este jovenzinho não tinha nome, porque ninguém se deu sequer o trabalho de pensar algum para ele, assim

respondia pelo apelido de "negrinho".

Seus afazeres não eram condizentes com seu porte físico, não parava o dia inteiro. O Sol nascia e lá já estava ele ocupado com seus afazeres e mesmo ao se por, ainda se encontrava o

negrinho trabalhando. Sua principal ocupação era pastorear. Depois de encerrar seu laborioso dia, juntava os trapos que lhe serviam de cama e recebia um mísero prato de

comida, que não eram suficientes para repor as energias perdidas pelo sacrificado trabalho.

Mesmo sendo tão útil, considerado mestre do laço e o melhor peão-cavaleiro de toda a região, o menino era inúmeras vezes castigado sem piedade.

Certa vez, o estanceiro atou uma carreira com um vizinho que gabava-se de possuir um cavalo mais veloz que seu baio. Foi marcada a data da corrida e o negrinho ficou

34

encarregado de treinar e montar o famoso baio, pois sabia seu patrão, não haver ninguém mais capaz que ele para tal tarefa.

Chegando o grande dia, todos os habitantes da cidade, vestindo suas roupas domingueiras, se alojaram na cancha da carreira. Palpites discutidos, apostas feitas, inicia-se a corrida.

Os dois cavalos saem emparelhados. Negrinho começa a suar frio. pois sabe o que lhe espera se não ganhar. Mas, aos poucos toma a dianteira e quase não há dúvida de que seria

vencedor. Mas, eis que o inesperado acontece, algo assusta o cavalo, que para, empina e quase derruba Negrinho. Foi tempo suficiente para que seu adversário o ultrapasse e

ganhasse a corrida.

E agora? O outro cavalo venceu. Negrinho tremia feito "vara verde" ao ver a expressão de ódio nos olhos de seu patrão. Mas o fazendeiro, sem saída, deve cobrir as apostas e põe a

mão no lugar que lhe mais caro: o bolso.

Ao retornarem à fazenda, o Negrinho tem pressa para chegar a estrebaria. - Aonde pensa que vai? pergunta-lhe o patrão.

- Guardar o cavalo sinhô! Balbuciou bem baixinho. - Nada feito! Você deverá passar trinta dias e trinta noites com ele no pasto e cuidará

também de mais 30 cavalos. Será seu castigo pelo meu prejuízo. Mas, ainda tem mais, passe aqui que vou lhe aplicar o devido corretivo.

O homem apanhou seu chicote e foi em direção ao menino: - Trinta quadras tinha a cancha da corrida, trinta chibatadas vais levar no lombo e depois

trata de pastorear a minha tropilha.

35

Lá vai o pequeno escravo, doído até a alma levando o baio e os outros cavalos à caminho do pastoreio. Passou dia, passou noite, choveu, ventou e o sol torrou-lhe as feridas do corpo e

do coração. Nem tinha mais lágrima para chorar e então resolveu rezar para a Nossa Senhora, pois como não lhe foi dado nome, dizia-se afilhado da Virgem. E, foi a "santa solução", pois Negrinho aquietou-se e então cansado de carregar sua cruz tão pesada,

adormeceu.

As estrelas subiram aos céus e a lua já tinha andado metade de seu caminho, quando algumas corujas curiosas resolveram chegar mais perto, pairando no ar para observar o

menino. O farfalhar de suas asas assustou o baio, que soltou-se e fugiu, sendo acompanhado pelos outros cavalos. Negrinho acordou assustado, mas não podia fazer mais

nada, pois ainda era noite e a cerração como um lençol branco cobria tudo. E, assim, o negrinho-escravo sentou-se e chorou...

O filho do fazendeiro, que andava pelas bandas, presenciou tudo e apressou-se em contar a novidade ao seu pai. O homem mandou dois escravos buscá-lo.

O menino até tentou explicar o acontecido para o seu senhor, mas de nada adiantou. Foi amarrado no tronco e novamente é açoitado pelo patrão, que depois ordenou que ele fosse

buscar os cavalos. Ai dele que não os encontrasse!

Assim, Negrinho teve que retornar ao local do pastoreio e para ficar mais fácil sua procura, acendeu um toco de vela. A cada pingo dela, deitado sobre o chão, uma luz brilhante nascia

em seu lugar, até que todo lugar ficou tão claro quanto o dia e lhe foi permitido, desta forma, achar a tropilha. Amarrou o baio

e gemendo de dor, jogou-se ao solo desfalecido.

36

Danado como ele só e, não satisfeito com já fizera ao escravo, o filho do fazendeiro, aproveitou a oportunidade de praticar mais uma maldade dispersando os cavalos. Feito isso, correu novamente até seu pai e contou-lhe que Negrinho havia encontrado os cavalos e os deixara fugir de propósito. A história se repete e dois escravos vão buscá-lo, só que desta vez

seu patrão está decidido em dar cabo dele. Amarrou-o pelos pulsos e surrou-o como nunca. O chicote subia e descia, dilacerando a carne e picoteando-a como guisado.

Negrinho não agüentou tanta dor e desmaiou. Achando que o havia matado, seu senhor não sabia que destino dar ao corpo. Enterrá-lo lhe daria muito trabalho e avistando um

enorme formigueiro jogou-o lá. As formigas acabariam com ele em pouco tempo, pensou.

No dia seguinte, o cruel fazendeiro, curioso para ver de que jeito estaria o corpo do menino, dirigiu-se até o formigueiro. Qual sua surpresa, quando o viu em pé, sorrindo e

rodeado pelos cavalos e o baio perdido. O Negrinho montou-o e partiu a galope, acompanhado pelos trinta cavalos.

O milagre tomou o rumo dos ventos e alcançou o povoado que alegrou-se com a notícia.

Desde aquele dia, muitos foram os relatos de quem viu o Negrinho passeando pelos pampas, montado em seu baio e sumindo em seguida por entre nuvens douradas. Ele anda sempre à procura das coisas perdidas e quem necessitar de seu ajutório, é só acender uma vela entre as

ramas de uma árvore e dizer:

Foi aqui que eu perdi Mas Negrinho vai me ajudar

Se ele não achar Ninguém mais conseguirá!

Fonte: http://www.rosanevolpatto.trd.br/lendanegrinhopastoreio.html

37

2.2.2.2 - RACISMO DE ETNIA

A expressão é igualmente inadequada embora se utilize o termo etnia19

em vez de

raça. A luta contra o terror vem evidenciando a existência do preconceito contra os árabes

no Ocidente. Seja na base americana de Guantanamo em Cuba, seja nas prisões do Iraque e

Afeganistão sob dominação dos USA - o tratamento dispensado aos prisioneiros árabes de

guerra evidencia que “eles passaram a ser vistos como seres desprovidos de humanidade,

aos quais já não se aplica o preceito de tratamento humanitário”20

.

2.2.3 - PRECONCEITO de ORIGEM

“Carcamano pé de chumbo...

Carcanhá de frigideira, quem te deu a confiança.

De casá com brasileira!!!

___________________________________ 19

ETNIA. Coletividade de indivíduos humanos com características somáticas semelhantes, que compartilham a mesma

cultura e a mesma língua, além de se identificarem como grupo distinto dos demais. O conceito difere daquele de “tribo”,

termo com o qual se costuma, popular e erroneamente, designar qualquer sociedade africana. Numa conceituação mais

abrangente, Jean Jacques Chalifoux (in Mam-Lam-Fouck, 1997) escreve: “Um grupo social torna-se uma etnia quando os

definidores de situação (migrantes, intelectuais, agentes etc.) assim o classificam e o impulsionam na cena pública sob essa

denominação”. Sua conseqüência é o ETNOCENTRISMO: visão de mundo na qual o indivíduo escalona e avalia outros

indivíduos ou grupos sociais tomando como parâmetro o grupo a que pertence. O etnocentrismo pode ser um dos

componentes do racismo”. Lopes, N. [2004] – Enciclopédia Brasileira da Diáspora Africana, São Paulo: Selo Negro, pp.

264-265. 20

Florack, A. e Scarabes, M. [2005] – Pensamentos perigosos. Viver/Mente e Cérebro, ano XIII nº 145, fevereiro, p. 72.

38

Essa trova era corrente no Brás da São Paulo dos primeiros anos do século XX. Motivo:

imigrantes italianos chegavam para substituir a mão de obra escrava e o preconceito –

pintando-lhes um falso retrato de “pobretão sujo” tentava barrar-lhes o acesso às sinhás-

moças, filhas de ex-fazendeiros empobrecidos e, conseqüentemente o sonho de ascensão

social. Outro preconceito de origem infelizmente difundido no Brasil é o anti-nordestino .

Pejorativamente designado de “cabeça chata”, pessoas do Nordeste brasileiro ainda

costumam ser ridicularizadas por sua ”cor de cuia”, resultante de muitas miscigenações

entre portugueses, africanos e indígenas, ao longo de nosso processo de colonização. O

senso de injustiça, decorrente dessa visão preconceituosa perpassa o texto a seguir, assinado

por Patativa do Assaré21

.

__________________________ 21

Patativa do Assaré (o pássaro repentista). As penas plúmbeas, as asas e cauda pretas da patativa, pássaro de canto

enternecedor que habita as caatingas e matas do Nordeste brasileiro, batizaram o poeta Antônio Gonçalves da Silva,

conhecido em todo o Brasil como Patativa do Assaré, referência ao município que nasceu. Analfabeto "sem saber as letra

onde mora ", como diz num de seus poemas, sua projeção em todo o Brasil se iniciou na década de 50, a partir da

regravação de "Triste Partida", toada de retirante gravada por Luiz Gonzaga.

39

Nordestino, sim, Nordestinado não (28/11/03)

Nunca diga nordestino Que Deus lhe deu um destino

Causador do padecer Nunca diga que é o pecado

Que lhe deixa fracassado Sem condições de viver

Não guarde no pensamento Que estamos no sofrimento É pagando o que devemos

A Providência Divina Não nos deu a triste sina De sofrer o que sofremos

Deus o autor da criação Nos dotou com a razão

Bem livres de preconceitos Mas os ingratos da terra

Com opressão e com guerra Negam os nossos direitos

Não é Deus quem nos castiga

Nem é a seca que obriga Sofrermos dura sentença

Não somos nordestinados Nós somos injustiçados

Tratados com indiferença

Sofremos em nossa vida Uma batalha renhida

Do irmão contra o irmão Nós somos injustiçados Nordestinos explorados Mas nordestinados não

40

Há muita gente que chora Vagando de estrada afora

Sem terra, sem lar, sem pão Crianças esfarrapadas

Famintas, escaveiradas Morrendo de inanição

Sofre o neto, o filho e o pai

Para onde o pobre vai Sempre encontra o mesmo mal

Esta miséria campeia Desde a cidade à aldeia

Do Sertão à capital

Aqueles pobres mendigos Vão à procura de abrigos

Cheios de necessidade Nesta miséria tamanha

Se acabam na terra estranha Sofrendo fome e saudade

Mas não é o Pai Celeste

Que faz sair do Nordeste Legiões de retirantes

Os grandes martírios seus Não é permissão de Deus É culpa dos governantes

Já sabemos muito bem

De onde nasce e de onde vem A raiz do grande mal

Vem da situação crítica Desigualdade política Econômica e social

41

Somente a fraternidade Nos traz a felicidade

Precisamos dar as mãos Para que vaidade e orgulho Guerra, questão e barulho

Dos irmãos contra os irmãos

Jesus Cristo, o Salvador Pregou a paz e o amor Na santa doutrina sua

O direito do banqueiro É o direito do trapeiro

Que apanha os trapos na rua

Uma vez que o conformismo Faz crescer o egoísmo E a injustiça aumentar

Em favor do bem comum É dever de cada um Pelos direitos lutar

Por isso vamos lutar

Nós vamos reivindicar O direito e a liberdade

Procurando em cada irmão Justiça, paz e união Amor e fraternidade

Somente o amor é capaz E dentro de um país faz Um só povo bem unido

Um povo que gozará Porque assim já não há Opressor nem oprimido

Fonte: http://www.geranegocio.com.br/html/geral/noticia.asp?area=5&id=227

42

Fora do Brasil não são poucos os casos em que o preconceito de origem se

manifesta. A crônica escrita por Gita Metha22

retrata bem o que ocorre ainda agora com

índios e indianos.

QUEM TEM MEDO DE SER ÍNDIO?23

“ - Por que razão ninguém quer ser índio? – pergunta-me o entrevistador, para

surpresa dos demais debatedores sentados em torno da mesa.

Estamos participando de um programa de rádio em Londres. É de manhã cedo. Olho

intrigada para a pessoa entrevistada antes de mim. Foi apresentado, creio, como sendo

dentista em Birmingham. Está vestido de caubói americano. Chapéu de vaqueiro, perneiras

de couro, cartucheira com revólveres Mesmo tratando-se de um programa de rádio, ele

acaba de demonstrar a rapidez com que saca as armas.

- Não é interessante todos quererem ser caubóis? – pergunta o entrevistador ao

dentista, enquanto continuo fitando os canos das duas pistolas. – Diga-me, então, por que

razão ninguém quer ser índio?

O dentista está enfiando os revólveres na cartucheira e não presta atenção na

pergunta. O entrevistador volta-se para mim:

______________________________ 22

No original, “Who’s afraid of being Indian?” A palavra inglesa “indian” pode significar tanto “indiano”, natural da Índia,

como “índio”. O jogo de palavras se repete adiante e não tem tradução direta. A opção da tradução, de utilizar a palavra

“índio” em todos os casos, deixa as nuances de sentido por conta do leitor. (N.T.) 23

METHA, G. [1998] Escadas e Serpentes. Um olhar sobre a Índia moderna, São Paulo: Companhia das Letras, p. 23-4.

43

- Bem, por que a senhora acha que ninguém quer ser índio?

- Suponho – respondo, enquanto olho desconfiada o dentista – que alguns de nós

não têm outra escolha.

Ouve-se uma explosão de risos nervosos dos demais debatedores. Perceberam meu

sári e a marca rubra em minha testa, que denotam outro tipo de índio, o indiano, um tipo

igualmente capaz de tomar a pergunta inocente com uma espécie de insulto racial...

Desde a infância, guardo lembranças vividas de discussões com outras crianças

sobre comparações de nacionalidades. Nossos adversários eram crianças ocidentais de pele

branca e cabelo louro, vestindo jeans e saias de crinolina – estávamos nos anos 50 – e que

olhavam com desprezo para nós, crianças sem graça, de tranças untadas de óleo e roupas

sóbrias que nos cobriam braços e pernas.

- Vocês só têm cobras e macacos! – gritavam elas. – Os indianos são pobres e

atrasados!

A provocação era intolerável. Respondíamos, também aos gritos:

- Mas nós construímos o Taj Mahal!

- Isso foi há séculos – continuavam. – E agora, o que vocês fazem?

- Bem... – dizíamos. – Bem...”.

44

2.2.4 - PRECONCEITO DE RELIGIÃO

O mais difundido é o preconceito contra o judeu, embora recentemente o preconceito contra o

islamita venha ganhando força. O preconceito contra o judeu tem uma longa trajetória histórica como

se mostra a seguir.

Quadro 1 – Crescimento de um Mito

ESTEREÓTIPO EVENTO NA HISTÓRIA JUDAICA EVENTO NA HISTÓRIA

UNIVERSAL

“Nômade” 1300 a.C. Os Judeus constituíam uma pequena tribo

peregrina, estabelecida na Judéia. Longa permanência no

Egito onde foram perseguidos mais tarde

1215 a. C. Moisés conduziu os judeus, em fuga dos

egípcios. Fundação do Reino de Israel. Fronteiras sob

constante ataque dos vizinhos

“Arrogante” 8º a 6º século a. C. Os Judeus estiveram muitas vezes

no exílio. Durante o exílio na Babilônia, começaram a

compilar a Bíblia e desenvolver religião. Começou a

idéia dos Judeus como o “povo escolhido de Deus”. A

religião judaica era extremamente avançada porque

acreditavam em um único Deus que era invisível. Sob a

influência dos profetas que apareceram, então, sua

religião tornou-se uma bela força civilizatória.

CRUCIFICAÇÃO DE CRISTO

70 d. C. Romanos destruíram o Templo em Jerusalém.

Os Judeus começaram a buscar asilo ao redor do mundo.

1º e 2º séculos d.C. Crescimento do

Cristianismo

“Cruel” Judeus misturaram-se aos Cristãos na Europa e Ásia.

45

Cristianismo tornou-se poderoso, fanático. Judeus

censurados pelo assassinato de Cristo.

“Covarde”

“Fanático”

“Religioso”

4º a 9º séculos. Perseguição religiosa aos Judeus.

Muitos tornavam-se cristãos. Muitos, forçados ao

batismo. Outros agarraram-se a sua religião, contra tudo

e todos.

Leis contra judeus, aprovadas na maioria dos países

europeus. Judeus proibidos de ingressar em profissões,

no seu próprio país.

Igreja promulgou leis proibindo

cristão de emprestar dinheiro a juro

mesmo que este fosse essencial à

continuidade dos negócios.

“Avarento” Idade Média. Judeus eram os únicos que podiam

tornar-se agiotas, uma das poucas ocupações abertas a

eles, embora fosse sempre um trabalho impopular.

“Cruel”

Shylok, o agiota de Shakespeare,

famoso por exigir uma “libra de

carne” e por não ser misericordioso.

Ressentido com a atitude cruel dos

cristãos em relação a ele.

Filme: O Mercador de Veneza

Ficha Técnica:

1. Título Original: The Merchant of

Venice; 2. Tradução brasileira: O

Mercador de Veneza; 3. Tempo de

Duração: 138 minutos; 4. Ano e

46

Lançamento: 2004; País:

EUA/Itália/Inglaterra/Luxemburgo;

6. Direção: Michael RadFord; 7.

Elenco: Al Pacino, Jeremy Irons; 8.

Estúdio: Sony Pictures

“Rico”

“Musical”

O desenvolvimento bancário deitou raízes nos simples

empréstimos de dinheiro. Grandes famílias de

banqueiros judeus prosperaram. Judeus ainda não tinham

permissão para ingressar em profissões ou universidades

da Europa. Muitos, portanto, aproveitaram, ao máximo,

seus dotes intelectuais e musicais, por exemplo

Mendelssohn.

“Ladino” Disraeli, um judeu cristianizado foi o primeiro judeu a se

tornar Primeiro Ministro na Inglaterra. Famoso por sua

habilidade política descrita por alguns como “astúcia”.

Em 1860, os judeus se viram livres de todas as restrições

na Inglaterra.

“Desleal ao Estado” Na Alemanha, Hitler acusava os judeus em vez de tentar

resolver os reais problemas do povo alemão. Campos de

concentração morte de seis milhões de judeus

Depressão econômica na Europa no

começo do século XX

Criação do Estado de Israel em 1948

Fonte: Rogers, J. [1993] – Connexions, Austrália, Penguin.

OBS – Deve-se enfatizer que os eventos listados não são causa dos estereótipos e sim fatores que podem ter ajudado a suportá-los.

47

Figura 5 – Perseguição aos Judeus

Perseguição aos judeus. Esquerda: judeus sendo queimados até a morte na Idade Média. Abaixo

morte em um campo de concentração alemão. Hitler foi mais além que qualquer outro na perseguição

aos judeus e 6 milhões deles morreram como resultado de suas idéias sobre a superioridade ariana.

Fonte: Rogers, J. [1973] – Connexions, Austrália, Penguin.

...

O cancioneiro brasileiro fala da “volta da aroeira no lombo de quem mandou dar”.

Seria o caso dos filhos de nazistas notórios que acabaram enfrentando preconceito quando a 2ª

Guerra Mundial terminou? Por exemplo, Gudrun Himmler. O nome Himmler24

só voltou a atrapalhar

quando ela procurou emprego em Munique [aos 22 anos].

___________________________ 24

Filha de Heinrich Himmler, chefe da famosa SS nazista.

48

Na confecção em que se apresentou para uma entrevista, o conselho da empresa teve que

deliberar. O resultado da votação foi contra a srta. Himmler, e por isso ela recebeu uma negativa do

departamento de pessoal.

Depois disso, quando estava prestes a acertar as condições de emprego com a chefe de uma loja

de roupas, esta perguntou subitamente:

_ Escuta, querida, você não tem nada a ver com aquele Himmler horroroso, não?

_ Sou filha dele – respondeu Gudrun, perdendo assim mais um emprego.

_ Se você adotar outro nome pode começar amanhã mesmo – disse-lhe um mestre da costura.

_ Não, obrigada.

_ Então se case, pelo menos pro forma – sugeriu ele.

_ Não, obrigada.

_ Neste caso, sinto muito. Preciso respeitar minhas clientes.

O sobrenome funcionava na Alemanha nazista como um símbolo de PODER e MEDO. Após

sua derrocada tornou-se uma herança maldita25

. Isso mostra que o preconceito é um “casaco de muitas

cores”.

_________________________________ 25

LEBERT, S. & N. [2004] – Tu Carregas meu Nome/A Herança dos Filhos de Nazistas Notórios. Tradução de Kristina

Michahelles - Rio de Janeiro: Record.

49

2.2.5 - PRECONCEITO DE SEXO

Assume várias formas.

2.2.5.1 - Preconceito de gênero

O famigerado machismo do homem sujeito e da mulher objeto, ou seja, da dominação

masculina sobre a mulher, significativamente ainda considerada 2º SEXO como muito bem assinalou

Simone de Beauvoir no século XX. As leis do Machão, reproduzidas a seguir, e a própria existência do

Grupo que as produziram atestam a ocorrência desse preconceito entre nós, cuja manifestação extrema

está nas mulheres assassinadas em família, configurando os hediondos crimes de Violência

Doméstica26

.

AS LEIS DO MACHÃO

Art. 1º - O Machão tem sempre razão

Art. 2º - Quando o Machão não tiver razão aplica-se o Art.1º

Art. 3º - Se o Machão tem ou não razão quem decide é o Machão

Ass. O Machão

________________________________ 26

Cf. Azevedo, M.A. [1985] – Mulheres espancadas/A violência denunciada. SP: Cortez.

50

OS DIREITOS QUE A VERDADEIRA MULHER TEM,

OS QUE ELA NÃO TEM, E

OS DIREITOS DO MACHÃO

A mulher tem o direito de chorar quanto quiser ao descobrir as infidelidades do marido.

A mulher tem direito, dentro de casa, a falar e fazer o que desejar desde que o marido

não esteja perto.

A mulher tem o direito de sonhar com um marido fiel e obediente, desde que não tenha a

pretensão de transformar o sonho em realidade.

A mulher tem todo direito de sair à noite, a qualquer hora, sempre que for para ajudar o

marido embriagado a descer do táxi.

A verdadeira mulher aceita com o coração alegre todas as ordens partidas se seu amo e

senhor.

Somente ao homem cabe o direito de receber o testemunho positivo da mulher em todas

as histórias de pescaria, caçadas, falhas do serviço, faltas de educação.

As únicas que têm o direito de berrar para mim são minhas vacas.

Não é desonra para um machão chorar um pouco, dar xilique e até desmaiar

frescamente, após espancar a mulher. Faz parte do mis-en-scéne e elas adoram estes

romantismos.

O prazer é todo meu.

A mulher tem também o direito de xingar, desafiar e até bater no marido quando ele

estiver dentro de um caixão, morto.

Fonte: Centifólio do Machão nº 2 – Movimento Machão de Minas, Belo Horizonte, s/d.

2.2.5.1.1 - Preconceito contra certas mulheres

É o caso do preconceito contra prostitutas. Muitos de nós certamente lembramos da música de

Chico Buarque cuja letra vai comentada a seguir27

.

___________________________ 27

Goldberg, M.A. A. [1982]- Educação sexual: uma proposta , um desafio. São Paulo: Ed. Aruanda,

p. 63-70.

51

Geni e o Zepelim

De tudo que é nego torto

Do mangue e do cais do porto

Ela já foi namorada

O seu corpo é dos errantes

Dos cegos, dos retirantes

É de quem não tem mais nada

Dá-se assim desde menina

Na garagem, na cantina

Atrás do tanque, no mato

É a rainha dos detentos

Das loucas, dos lazarentos

Dos moleques do internato

E também vai amiúde

Com os velhinhos sem saúde

E as viúvas sem porvir

Ela é um poço de bondade

E é por isso que a cidade

Vive sempre a repetir

Joga pedra na Geni

Joga bosta na Geni

Ela é feita pra apanhar

Ela é boa de cuspir

Ela dá pra qualquer um

Maldita Geni

52

Um dia surgiu, brilhante

Entre as nuvens, flutuante

Um enorme zepelim

Pairou sobre os edifícios

Abriu dois mil orifícios

Com dois mil canhões assim

A cidade apavorada

Se quedou paralisada

Pronta pra virar geléia

Mas do zepelim gigante

Desceu o seu comandante

Dizendo - Mudei de idéia

- Quando vi nesta cidade

- Tanto horror e iniqüidade

- Resolvi tudo explodir

- Mas posso evitar o drama

- Se aquela formosa dama

- Esta noite me servir

Essa dama era Geni

Mas não pode ser Geni

Ela é feita pra apanhar

Ela é boa de cuspir

Ela dá pra qualquer um

Maldita Geni

53

Mas de fato, logo ela

Tão coitada e tão singela

Cativara o forasteiro

O guerreiro tão vistoso

Tão temido e poderoso

Era dela, prisioneiro

Acontece que a donzela

- e isso era segredo dela

Também tinha seus caprichos

E a deitar com homem tão nobre

Tão cheirando a brilho e a cobre

Preferia amar com os bichos

Ao ouvir tal heresia

A cidade em romaria

Foi beijar a sua mão

O prefeito de joelhos

O bispo de olhos vermelhos

E o banqueiro com um milhão

Vai com ele, vai Geni

Vai com ele, vai Geni

Você pode nos salvar

Você vai nos redimir

Você dá pra qualquer um

Bendita Geni

Foram tantos os pedidos

Tão sinceros, tão sentidos

54

Que ela dominou seu asco

Nessa noite lancinante

Entregou-se a tal amante

Como quem dá-se ao carrasco

Ele fez tanta sujeira

Lambuzou-se a noite inteira

Até ficar saciado

E nem bem amanhecia

Partiu numa nuvem fria

Com seu zepelim prateado

Num suspiro aliviado

Ela se virou de lado

E tentou até sorrir

Mas logo raiou o dia

E a cidade em cantoria

Não deixou ela dormir

Joga pedra na Geni

Joga bosta na Geni

Ela é feita pra apanhar

Ela é boa de cuspir

Ela dá pra qualquer um

Maldita Geni

Todos nós já devemos ter cantarolado o estribilho da música de Chico Buarque: “JOGA

PEDRA NA GENI”. Quantos de nós, porém nos demos ao trabalho de perguntar: Ela merece? Por quê?

A resposta está no moralismo daqueles que são os “baluartes” de nossa sociedade:

55

o prefeito (poder político);

o bispo (poder religioso);

o banqueiro (poder econômico).

Moralismo hipócrita porque, quando convém, “o prefeito de joelhos /o bispo

de olhos vermelhos/e o banqueiro com um milhão” mudam de estribilho: “Bendita Geni”. Quando não

precisam mais dela, voltam, porém ao velho refrão: “Maldita Geni”. E maldita POR QUÊ? Porque

“você dá pra qualquer um”, ou seja, é uma mulher depravada, devassa, promíscua, de rua, da vida, à-

toa, etc., etc., etc. (Você sabe o resto!!!)

Como se isso não bastasse, parece que ela cultiva uma certa tendência homossexual: “É a rainha

dos detentos/Das loucas (...)/E também vai amiúde/Com os velhinhos sem saúde/E as viúvas sem

porvir”.

Mas ainda não é tudo, pois ela tem alguns caprichos “exóticos”: em certas circunstâncias

“preferia amar com os bichos”. Portanto, além de dar pra qualquer um – homens e mulheres - , Geni

comete mais esse pecado: é capaz de dar pros bichos. Libertinagem, homossexualismo, zoofilia, são os

“crimes” de que Geni é acusada pelas pessoas “honestas” da cidade, o que justificaria seu

comportamento de “joga pedra na Geni/joga bosta na Geni/Ela é feita pra apanhar/Ela é boa de cuspir”.

Esses “crimes” são considerados verdadeiras heresias, já que violam dogmas da moral vigente,

dos “bons costumes”. Para não dizer que Chico Buarque está fantasiando, leia a crônica de Paulo José

da Costa Jr., e constate que a “maldita Geni” realmente existiu, na França do século passado, tendo sido

retratada por Maupassant.

56

Passou-se durante a guerra franco-prussiana de 1870. O exército francês, aturdido e

derrotado. Após a derrota, a rendição e a ocupação das cidades. Com a ocupação, o êxodo.

Foi então que um pequeno grupo de patriotas franceses resolveu abandonar Ruão,

ocupada pelas forças inimigas,rumo ao Havre.

- Se os alemães lá chegarem, ganharemos a Inglaterra.

Obtida a autorização para a viagem, do general-comandante alemão, fretou-se uma

grande diligência, tirada por seis cavalos. Inscreveram-se para a longa viagem, ao todo, dez

passageiros. O senhor e a senhora Loiseau, grandes comerciantes de vinho. O senhor e a

senhora Carré-Lamadon, próspero negociante de algodão, proprietário de três tecelagens e

oficial da Legião de Honra. O conde e a condessa de Brèville, da mais nobre estirpe de

França. Duas freira, uma idosa, com a face bexiguenta, outra jovem e magra, como se fora

tísica. Um homem, de barbas ruivas, o senhor Cornudet, democrata convicto. E uma marafona

de olhos negros, sombreados por grandes cílios espessos que o tornavam mais negros,

rechonchuda, o que lhe valera o apelido de Bola de Sebo.

Tão logo foi ela reconhecida, correu um murmúrio entre as mulheres honestas da

diligência.

- Prostituta, vergonha pública.

As expressões injuriosas foram cochichadas tão alto, que a pobre rameira ergueu a

cabeça, envergonhada.

57

Depois de muitas horas de viagem, em meio às densas camadas de neve do inverno

rigoroso, a carruagem atingiu a cidade de Totes. Lá teriam que pernoitar, para alimentação e

repouso dos cavalos e dos viajantes.

Ao descerem da diligência, foram recebidos por um oficial alemão, jovem, alto, delgado

e loiro, de longos bigodes, empertigado e apertado em seu uniforme como uma rapariga em seu

espartilho.

Sentaram-se os viajantes famintos à mesa do albergue, para a ceia. Estavam por iniciá-

la, quando surgiu o proprietário da estalagem, um homenzarrão asmático.

- Senhorita Elisabeth Rousset?

Bola de Sebo estremeceu:

-Sou eu.

- O oficial prussiano deseja falar-lhe imediatamente.

Ela se recusou a ir. Ao depois,aconselhada a atender para não acarretar maiores

dificuldades aos companheiros de viagem, resolveu ir. Ao cabo de dez minutos, Bola de Sebo

retornou, resfolegante e vermelha:

- Canalha, canalha.

Quiseram saber o porquê daquilo tudo. Bola de Sebo nada disse.

- Isso é comigo.

Cearam fartamente e foram cedo para o leito.

58

Na manhã seguinte, aperceberam-se de que os cavalos prosseguiam nas cavalariças.

Foi o conde que interpelou o cocheiro.

- Não lhe tinham dado ordem de atrelar às 8 horas?

- Sim, mas deram-me outra depois.

- Qual?

- De não atrelar mais.

- Quem lhe deu essa ordem?

- O comandante prussiano.

Dirigiram-se os homens, em comitiva respeitosa e submissa, a falar com o comandante.

Este, com a insolência redobrada do militar vitorioso, indagado respeitosamente da razão da

recusa, sem encarar os interlocutores, respondeu.

- Porque não quero.

Os viajantes retiraram-se, sem ousar contestar cousa alguma. A noite chegou, para

aumentar as apreensões. Aproximava-se o momento do jantar, quando o estajadeiro retornou

ao grupo.

- O oficial alemão mandou perguntar à senhorita Rousset se ela ainda não mudou de

opinião.

Bola de Sebo, a princípio pálida, a seguir enrubecida pela cólera, explodiu:

- Diga a esse canalha, a esse alemão porco, que eu não consentirei nunca.

Foi aí que os demais se aperceberam de tudo.

Do convite, da recusa, do porquê de ali permanecerem na cidade.

59

No dia imediato, os viajantes se reuniram para discutir a situação. Uma das senhoras

concluiu que, “se o ofício daquela ordinária é fazer isto com todos os homens, não tem o

direito de recusar quem quer que seja”. Os outros dispunham-se já a entregar “aquela

miserável”, atada de pés e mãos, ao inimigo.Mas o conde, oriundo de três gerações de

embaixadores, resolveu interferir com diplomacia.

- Precisamos persuadi-la.

Começaram, a partir daí, a fase de abordagem e da doce persuasão e conquista. Foram

trazidos à colação os exemplos históricos de Judite e Holofernes, de Lucrécia com Sextus, de

Cleópatra para com os generais inimigos. Até a freira interferiu, para dizer que a Igeja

absolve, quando o sacrifício é praticado para glória de Deus, ou por bem ao próximo.

Tantas foram as súplicas, tantos os apelos, que Bola de Sebo resolveu finalmente ceder.

Os demais beberam à libertação reconquistada. Até as freiras molharam os lábios no

champanhe espumejante.

Durante toda a noite, o oficial alemão desafogou a sua luxúria represada. Quando o

sol, claro de inverno, que chegava a ofuscar a neve surgiu, a carruagem recebeu ordem de

seguir viagem. Aboletaram-se todos na carruagem. Só faltava Bola de Sebo, que acabou por

surgir. Um tanto confusa, envergonhada. Voltou-se para cumprimentar seus companheiros e

desejar-lhes bom dia. Eles lhe voltaram o rosto. Ignoravam-na por inteiro.

A gorda prostituta sentia-se ofendida e indignada. Ela, que se sacrificara por pessoas

que mal conhecia, recebia aquela paga. A pesada diligência reiniciou a viagem. As freiras

tomaram da cinta o rosário. Madame Loiseau sussurrou ao marido:

60

- Ainda bem que não estou ao lado dela.

Bola de Sebo, afogada no desprezo daqueles honestos crápulas, fez esforços terríveis

para não chorar.

Mas não conseguiu. Duas grossas lágrimas rolaram-lhe pelas faces rosadas e salientes.

O que fez as mulheres honestas da diligência sentenciarem, com um riso de triunfo.

- Ela chora a sua vergonha.

Fonte: Costa Jr., P.J. A. Maldita Geni, de Maupassanta a Chico. Folha de S. Paulo, 03.02.80.

No conto de Maupassant, como na música de Chico, ressalta a mesma INTOLERÂNCIA contra

tudo aquilo que é diferente, divergente, que discrepa dos padrões aceitos pela moral dominante.

Mas a música de Chico não apenas revela, como também denuncia a falsidade da atitude

intolerante e moralista.

E a denúncia está na contradição que Chico tão bem captou: Geni – uma espécie de boa

samaritana do sexo (“O seu corpo é dos errantes/dos cegos, dos retirantes/é de quem não tem mais

nada...”) – é uma pessoa de princípios éticos definidos, cuja consciência recusa “amor por interesse, o

sexo com os poderosos ainda que eles aparentem ser tão nobres, cheirando a brilho e a cobre...”

É a contradição da malandra decente, através da qual se resgata a imagem de Geni. Descobre-se

que ela “é um poço de bondade”, apesar de a cidade viver a repetir o “maldita Geni”28

.

_________________________ 28

Essa contradição pode ser entendida como a incongruência entre identidade social virtual - a caracterização atribuída ou

imputada a um indivíduo – e a identidade social real – as características e atributos que ele prova realmente possuir.

61

Na raiz dessa intolerância, dessa contradição, está o preconceito sexual que faz com que certos

comportamentos sexuais divergentes sejam considerados errados, já de antemão. O preconceito se

nutre da idéia de que só existe um modo certo de ser: aquele que é dominante, porque, afinal, “em terra

de papudos, quem não tem papo é defeituoso”. É contra essa ditadura que se levanta hoje a voz dos que

por ela são oprimidos e em seu nome discriminados.

Mais vivo do que nunca, o machismo se reflete também em outros idiomas.

LA GRAMATICA CASTELLANA ES MACHISTA...

Zorro: Heroe justiciero Zorra: Puta

Perro: Mejor amigo del hombre Perra: Puta

Aventurero: Osado, valiente, arriesgado. Aventurera: Puta

Ambicioso: Visionario, Enérgico, con metas Ambiciosa: Puta

Cualquier: Fulano, Mengano, Zultano Cualquiera: Puta

Regalado: Participio del verbo regalar Regalada: Puta

Callejero: De la calle, urbano. Callejera: Puta

Hombrezuelo: Hombrecillo, mínimo, pequeño Mujerzuela: Puta

Hombre público: Personaje prominente. Funcionario público. Mujer pública: Puta

Hombre de la vida: Hombre de gran experiencia. Mujer de la vida: Puta

Atorrante: Adj. que indica simpatía y viveza. Atorranta: Puta

62

Rápido: Inteligente, despierto. Rápida: Puta

Puto: Homosexual Puta: Puta

DIOS: Creador del universo y cuya divinidad se transmitió a su Hijo > > varón por línea paterna. DIOSA: Ser mitológico de culturas supersticiosas, obsoletas y > > olvidadas.

PATRIMONIO: Conjunto de bienes. MATRIMONIO: Conjunto de males.

HEROE: Ídolo. HEROINA: Droga.

ATREVIDO: Osado, valiente. ATREVIDA: Insolente, mal educada.

SOLTERO: Codiciado, inteligente, hábil. SOLTERA: Quedada, lenta, ya se le fue el tren.

SUEGRO: Padre político. SUEGRA: Bruja, metiche, etc. MACHISTA: Hombre macho.

FEMINISTA: Lesbiana. DON JUAN: Hombre en todo su sentido. DOÑA JUANA: La mujer de la limpieza

2.2.5.1.2 - Preconceito contra homossexuais, transsexuais... Com o homossexualismo, o discurso religioso e o discurso médico têm fornecido as bases

“morais” e “científicas” para sua estigmatização. John Boswell pesquisou a atitude da Igreja Católica

para com os homossexuais. Em um alentado tratado de 400 páginas, ele mostra que a intolerância

fortaleceu-se entre 1250 e 1300, fruto do absolutismo papal que, por sua vez constituiu uma estratégia

para fortificar seu império na terra. Boswell mostra que, tal como na Grécia Antiga, o mundo romano,

berço do cristianismo, era muito complacente com os homossexuais. Vários imperadores romanos

praticavam o homossexualismo. Muitos cristãos encaravarm com naturalidade o assunto, não tendo

63

faltado santas nessa condição. Esse parece ter sido o caso de Perpétua e Felicitas, martirizadas em 203.

Aos poucos, porém o homossexualismo foi caindo no “Index”. Em 553 todas as atividades

homossexuais foram proibidas e, por volta de 1300, ameaçadas de pena de morte.

Quando – por razões históricas – o poder da Ciência substituiu o poder da Igreja, enquanto fonte

de conhecimento, ondas de “moralismo científico” vieram sobrepor-se ao “moralismo religioso”.

Espero que você tenha concluído que as pessoas não SÃO homossexuais ou heterossexuais: elas

preferem esta ou aquela forma de realizar sua sexualidade, podendo, inclusive, modificá-la ao longo de

sua vida. Se ainda não estiver muito convencido, compare estas duas colocações e tire suas próprias

conclusões.

Não há qualquer razão efetiva para que se classifique a homossexualidade como um estado

patológico e a heterossexualidade como um estado normal.

Não existe homossexualidade ou heterossexualidade e, sim, a sexualidade com grandes nuances

e variações, com um leque de inúmeras opções29

.

Dentre os homossexuais a maior discriminação ainda continua ocorrendo em relação às

mulheres lésbicas. O crime notificado a seguir mostra a face hedionda do preconceito.

O crime aconteceu em 28 de fevereiro de 2006 em Novo Gama, Goiás. Tifani Luana Alves

Ferreira, 24, foi morta com oito facadas, degolada e teve os seios arrancados. Sua namorada, M.A.S.S.,

31, agredida e estuprada, sobreviveu.

________________________ 29

PENTEADO, D. Homossexualismo: do gueto para o debate público – Mesa Redonda publicada no Folhateen da Folha de

São Paulo, 10/01/1982.

64

Testemunhas disseram que dois homens invadiram a casa e lá permaneceram enquanto o casal

de garotas gritava por socorro. Eles fugiram antes que a polícia chegasse. Nada foi roubado.

A falta de motivos aparentes para o crime e a extirpação dos seios da vítima (como se os

agressores quisessem desfeminá-la) levou as ativistas Alexandra Martins e Dayse Hansa, do

Estruturação (grupo GLBT de Brasília), a cogitar se o crime teria sido motivado por lesbofobia

(aversão a lésbicas).

Fonte: Revista da Folha, 26 de março, 2006 – página 25.

2.2.6 - Preconceito contra os portadores de limitações físicas

Envolve várias modalidades, contra os portadores de limitações:

a) sensoriais (cegos, surdos, mudos, múltiplos deficientes...)

b) neurológicas (paralíticos cerebrais...)

c) metabólicas (por exemplo os doentes da Síndrome de Wolfram...)

d) de movimento (sem membros ou com eles paralisados)

e) relacionadas à aparência e funcionamento corporal (gordos, feios, monstros, canhotos...)

Até que ponto pode chegar o desrespeito preconceituoso para com essas pessoas que afinal, são

seres humanos como todos nós?

65

a) Preconceito contra os portadores de limitações sensoriais (cegos, surdos, mudos,

múltiplos deficientes...)

A vida de qualquer um desses portadores é extremamente dificil numa sociedade de videntes e

ouvintes que os ignora e até mesmo os ridiculariza. Alguns tristes relatos dão idéia do que significa ser

portador desse tipo de limitação quando ainda não se aprendeu a reconhecê-los como pessoas especiais,

no dizer de Vygotsky:

A cegueira, ao criar uma formação peculiar de personalidade, reanima novas fontes, muda as

direções normais do funcionamento e, de uma forma criativa e orgânica, refaz e forma o psiquismo da

pessoa. Portanto, a cegueira não é somente um defeito, uma debilidade, senão também em certo

sentido uma fonte de manifestação das capacidades, uma força (por estranho que seja, semelhante a

um paradoxo)30

.

__________________________ 30

VYGOTSKY, L.S. [1995] - Fundamentos de defectologia. Habana, Pueblo y Educacion, (Obras Completas, Tomo 5).

66

A bengala e a mulher invisível

Morávamos em um bairro de periferia e brincávamos na rua com outras crianças. Bonecas,

cantigas de roda, jogos, cabanas, pés de manga e de jabuticaba, teatro de rua, bailes shows e

brincadeiras surgem em minha memória como reminiscências de uma infância e adolescência

permeadas de interações lúdicas, cujos conflitos e traumas somente foram compreendidos e

ressignificados mais tarde.

Aprendi a ler e escrever fora da escola, graças a uma professora leiga que preparava

cadernos de caligrafia, reforçando com lápis preto margens e linhas do papel. E eu usava uma régua

para não extrapolar os limites demarcados. Na escola, cálculos e atividades orais, interpretação de

textos e memorização de conteúdos favoreciam meu desempenho. Em compensação, padecia com

tarefas que exigiam coordenação motora, visualização, confecção de material, cartografia e desenho.

Usava óculos de lentes grossas e, por essa razão, na escola e na vizinhança, chamavam-me

“quatro-olho”, o que me aborrecia e eu jamais revidava. Os tropeços eram contínuos, a luz do sol

perturbadora e a locomoção cada vez mais vacilante, sobretudo, à noite, quando se observava uma

sensível queda da visão. Não conseguia distinguir pessoas e objetos a uma certa distância, o que

costumava ser erroneamente interpretado, causando inseguranças e constrangimentos. Estes fatores

produziam uma ambigüidade entre o ver e o não-ver e, assim, oscilávamos entre ser e não ser cegos. A

nossa percepção visual era sutil, fugidia e nebulosa, um enigma a ser decifrado.31

____________________________ 31

SÁ, E. D. In: MASINI, E.F.S. [2002] Do Sentido, Pelos Sentidos, Para o Sentido/Sentidos das pessoas com deficiência

sensorial, São Paulo: Vetor.

67

Meu contato com o mundo através das mãos

Meu nome é Maria Francisca da Silva. Nasci em Ponte Nova, no estado de Minas Gerais, em

29 de dezembro de 1943. Minha mãe teve dezenove filhos homens, dos quais somente três

sobreviveram, os demais morreram ainda bebês, e eu fui a de número vinte e a única mulher.

Penso que fui uma criança muito feliz até os sete anos de idade, quando me surgiu um

problema na vista. Amanheci com o olho vermelho e com muita secreção. Mamãe ficou muito

preocupada, pois além disso, toda a noite o meu nariz sangrava muito. Apesar dos cuidados da minha

mãe, apesar das consultas médicas feitas em Viçosa e Belo Horizonte, nada pode ser feito. Minha mãe

adoeceu gravemente logo depois e meu pai teve que interromper o meu tratamento para poder tratar

dela. As despesas eram grandes e ele mal dava conta de suportá-las. Infelizmente, o estado de saúde de

mamãe se agravou e ela veio a falecer pouco tempo depois.

Foi uma fase dificílima para mim. Nós morávamos na roça, papai e meus irmãos saíam pela

manhã e eram obrigados a me deixar só, trancada dentro de casa. As horas se arrastavam e o silêncio

era assustador. O medo que sentia fazia com que eu tremesse e chorasse. Quando um deles chegava

para me servir o almoço eu respirava aliviada, para depois cair no mesmo sofrimento até que

voltassem. Meu pai se afligia por deixar-me só e muitas vezes mandava que um dos meus irmãos fosse

ver se eu estava bem.

Em fevereiro de 1955, com onze anos de idade, fui internada no Instituto São Rafael, em Belo

Horizonte, onde também minha vida não foi nada fácil. Menina recém-chegada da roça, acostumada a

viver sozinha, completamente ignorante das coisa da vida, passei a ser motivo de chacotas. Ao mesmo

68

tempo em que eu gostava das novidades e de algumas companheiras, sofria nas mãos daquelas que

não podiam me compreender. Passei a viver de castigo por faltas que cometia e também pelas que eu

não cometia. Vivia constantemente ameaçada de expulsão, o que graças a Deus não me aconteceu.

Em 1957, meu pai, que havia se casado novamente, veio me buscar para passar as férias com

ele, conforme sempre fazia. Foi lá que, certa manhã, notei que havia algo de errado com meu ouvido.

Minha irmãzinha chorava no quarto ao lado e no entanto parecia que seu choro estava distante. As

pessoas falavam comigo e eu mal escutava o que diziam e daí surgiram mal-entendidos e suspeitavam

que eu fingia não escutar.

Ao voltar para o Instituto, continuou o sofrimento. Ninguém acreditava que eu não estivesse

escutando bem e diziam que eu estava me fingindo de surda. Foi um período dificílimo. Eu era

considerada anormal, não sentia vontade de estudar, todos me xingavam, eu não recebia nenhum

carinho, nenhum amor! Pouquíssimas pessoas me consideraram um pouco. Em casa as coisas não

eram melhores. Assim foi-se o 1958, que levou consigo o meu pai. Em 1959, ouvia mal do ouvido

direito e nada do esquerdo. Na aula eu só tirava zero, pois não entendia nada do que a professora

dizia e também ela se recusava a acreditar na minha surdez. Sofri incríveis tormentos até que, na noite

do dia 16 de fevereiro de 1960, pedi que colocassem um remédio no meu ouvido direito, que doía e

fazia barulho e fui dormir. Ao acordar, percebi que alguma coisa muito estranha estava acontecendo.

Falei e não escutei a minha voz, percebi então, que havia ficado completamente surda. Chorei muito,

levaram-me ao médico, mas conforme me explicaram através da escrita braile, ele havia dito que não

tinha mais cura. Até hoje não compreendo por que duvidaram de mim!!! Por quê?

69

Iniciou-se aí um período longo e eterno de silêncio e solidão. Eu não havia nem ao menos

completado a minha alfabetização e, repentinamente, me via obrigada a me comunicar através da

escrita braile.

Meus primeiros anos de surdez foram dolorosos. Não gosto nem de lembrar daqueles dias tão

difíceis no Instituto de Cegos. Era aluna cega, falava, lia e escrevia em braile, cursando ainda o

primário. Ao ficar surda, não foi possível continuar os estudos. Os professores não eram

especializados em surdocegos. Não sabiam e não se interessavam em aprender o alfabeto manual para

surdos. As dificuldades aumentavam. Ninguém sabia lidar comigo, e fui ficando revoltada, intratável,

nervosa. A instituição queria que eu saísse da escola. Mas não tinha para onde ir32

.

b) Preconceito contra os portadores de distúrbios neurológicos

Também aqui, há uma gama enorme de distúrbios neurológicos conhecidos, embora nem todos

devidamente explicados.

A crônica a seguir trata de um deles: paralisia cerebral e de como sua ocorrência afeta a família

para sempre e também seu portador, numa sociedade onde a perfeição física é a “norma” e onde,

conseqüentemente existe um preconceito velado para com os que fogem da regra, por integrarem a

minoria dos “menos perfeitos”.

_______________________________ 32

SILVA, M.F. da – In: Masini, E.F.S. idem, ibidem

70

Meu pequeno búlgaro

Diogo Mainardi

Dignosticaram uma paralisia cerebral em meu filho de 7 meses. Vista de fora, uma notícia do

gênero pode parecer desesperadora. De dentro, é muito diferente. Foi como se me tivessem dito que

meu filho era búlgaro. Ou seja, nenhum, desespero, só estupor . Se eu descobrisse que meu filho era

búlgaro, minha primeira atitude seria consultar um almanaque em busca de informações sobre a

Bulgária: produto interno bruto, principais rios, riquezas minerais. Depois tentaria aprender seus

costumes e sua língua, a fim de poder me comunicar com ele. No caso da paralisia cerebral, fiz a

mesma coisa. Passei 14h por dia diante do computador, fuçando o assunto na internet. Memorizei

nomes. Armazenei dados. Conferi estatísticas. Pelo que entendi, a paralisia cerebral confunde os

sinais que o cérebro envia aos músculos. Isso faz com que a criança tenha dificuldades para coordenar

os movimentos. Meu filho tem uma leve paralisia cerebral de tipo espástico. Os músculos que deveriam

alongar-se, contraem-se. Algumas crianças ficam completamente paralisadas. Outras conseguem

recuperar a funcionalidade. É incurável. Mas há maneiras de ajudar a criança a conquistar certa

autonomia, por meio de cirurgias, remédios ou fisioterapia.

Um dia meu filho talvez reclame desta coluna, dizendo que tornei público seu problema. O fato

é que a paralisia cerebral é pública. No sentido de que é impossível escondê-la. Na maioria das vezes,

acarreta algum tipo de deficiência física, fazendo com que a criança seja marginalizada,

estigmatizada. Eu sempre pertenci a maiorias. Pela primeira vez, faço parte de uma minoria. É uma

mudança e tanto. Como membro da maioria, eu podia me vangloriar de meu suposto individualismo.

Fonte: Revista VEJA, ano 34, dez./2005

71

...

As limitações neurológicas podem resultar de problemas no parto, acidentes etc. No primeiro

caso, “são crianças que nascem duas vezes. Têm de aprender a mover-se num mundo que o pimeiro

nascimento tornou mais difícil.

... Nascem duas vezes e o percurso será mais atormentado...”33

.

É o que enfrentou Paolo, irremediavelmente portador de tetraparesia espástica distônica, em

conseqüência de erro na utilização do forceps por ocasião de seu nascimento.

Impossível esquecer ,“aquele rosto numa espécie de sorriso fixo, o crânio em forma de cone, a

imagem de uma divindade mesopotâmica...

Impossível desconhecer, anos mais tarde seu passo bebado oscilante, espástico...

Impossível negar-lhe a consciência do preconceito que o fez dizer a seu pai:

‘Se tem vergonha de mim, pode andar afastado. Não se preocupe comigo’34

.

...

Não é diferente a história de Jeffrey Galli, que em uma tarde de 04 de julho, nos USA,

mergulhou na piscina de sua casa, bateu a cabeça e quase de afogou . Seus pais pularam na água,

retiraram-no da piscina salvando a vida do filho. Mas Jeffrey havia sofrido um dano devastador na

medula espinhal, que o deixou paralisado do pescoço para baixo.

Segundo seu pai “a paralisia tetraplégica rouba as pernas, os braços, as mãos, os dedos – e o

futuro. A paralisia de Jeffrey roubou o nosso futuro. Nós nos olhamos nos olhos e dissemos: acabou o

__________________________ 33

PONTIGGIA, G. [2002] - Nascer duas vezes. São Paulo: Companhia das Letras. 34

PONTIGGIA, G., idem, ibidem.

72

basquete na entrada da garagem. Poderíamos ter continuado: acabou o esqui. Acabou o carro, com as

placas novas e a embreagem que consertamos juntos. Acabou... bem, acabou tudo o que alguma vez

sonháramos em fazer. Porque não há nenhum, sonho que inclua uma paralisia. Nenhum.

Mas vamos deixar os sonhos de lado. Os sonhos não são reais. Poucas pessoas conseguem

realizar seus sonhos. Não vamos falar sobre eles. O que estávamos perdendo não eram os sonhos. Era a

vida real.

A paralisia não se encaixava em nenhuma concepção de futuro. Não tinha lugar para ela em

cerimônias ou bailes de formatura. Nem nos jogos de golfe aos sábados. Nem no primeiro encontro

com a namorada. Não se trata de sonhos. São coisas de verdade. Mas não vamos pensar tão grande.

Vamos pensar em coisas menores. Não dá mais para botar o lixo do lado de fora ou para cuidar do

gramado. Não dá mais para ir comprar leite. Vamos pensar em coisas ainda menores. Não dá mais para

usar urinóis ou privadas? Não dá mais para comer comida sólida? Não dá mais para coçar o ouvido ou

assoar o nariz?

Mesmo agora, deitado em uma cama de hospital, [Jeffrey] conservava a lembrança desse

futuro. A lembrança do futuro duraria para sempre, mas o futuro em si estava perdido.

A morte destrói o futuro, mas é educada o suficiente para levar o passado junto. Se eu morrer,

não estarei por aqui para recordar minhas expectativas de ontem. A paralisia não é assim tão legal. Ela

arruína o futuro, mas deixa intacta a lembrança de todas as suas expectativas. Jeffrey teria tempo de

sobra para pensar exatamente no que perdera e exatamente como as coisas poderiam ter sido.35

_______________________________ 35

GALLI, R. [2001] - Salvando meu filho. Tadução de Maria Claudia Coelho. Rio de Janeiro: Sextante, p.48-9.

73

O TDA/H é outro exemplo de problema mais diretamente ligado ao funcionamento cerebral.

O TDA/H significa TRANSTORNO DO DÈFICIT de ATENÇÃO e/ou HIPERATIVIDADE. A

história a seguir ilustra o que pode ser a trajetória de vida de um portador desse distúrbio.

João é um adulto com TDA/H. Ele se deu muito bem na escola, mas o seu comportamento na

classe, nos primeiros anos, não era tão bom com as notas. Era freqüentemente dito pelas professoras

que parecia ter “formiga na calça”: não parava quieto, não conseguia sentar na carteira por muito

tempo, falava o tempo todo, interrompia outras crianças e não terminava seu trabalho escolar. No

colegial, João começou a ter notas mais baixas, 5-6, apesar de que seus professores falavam que ele

tinha muito potencial para se desempenhar melhor.

Depois de terminar as faculdades de Matemática e de Administração de Empresas, João

começou a trabalhar na área de vendas de uma firma internacional. Ele adorava fazer contato com

clientes novos e gostava de conversar com eles pessoalmente sobre os novos produtos. Ele se sentia

muito bem porque, com sua habilidade de comunicação, com sua simpatia, com seu conhecimento do

produto e com seu charme, João atraía muitos clientes novos.

Com o tempo, João tinha que ligar para seus clientes, verificar se estavam contentes com o

produto e se queriam comprar mais, incluindo novos produtos da mesma firma. Esta tarefa era mais

monótona e a recompensa não era tão imediata. Como conseqüência, João não desempenhou bem essa

função; ele não lembrava de ligar, não sabia quando e nem para quem tinha que ligar. Seu calendário

ficou desorganizado e ele perdeu a conta da ordem de vendas, follow-up e telefonemas.

74

João começou a receber revisões do seu supervisor que não eram boas: foram mencionados

problemas como “falta de organização”, “falta de de follow-up com clientes”, “área de trabalho

desorganizada”, apesar de João ter escutado que ele era simpático e que tinha fama de atrair novos

clientes, mais que qualquer outra pessoa da área de vendas. Mas ele acabava perdendo clientes todos

os meses, devido a sua falta de persistência em contatá-los depois da primeira compra.

Fácil entender quanto de hostilidade João deve ter enfrentado ao longo da vida por ser

portador de um déficit numa das funções executivas do cérebro: aquela que inibe comportamentos.

O termo “inibição de comportamento” pode ter três significados:

a) a habilidade de não responder impulsivamente, adiando uma resposta. Por exemplo, falar em

público na hora certa, não reagir impulsivamente, não interromper uma pessoa no meio da conversa e

esperar o farol mudar para a cor verde para seguir o caminho;

b) a habilidade de parar uma resposta que está em andamento (perseveração). Por exemplo,

parar de olhar a Internet quando tem que ir trabalhar, parar de jogar na Internet (ou no telefone celular)

quando alguém chama para uma refeição;

c) a habilidade de resistir a uma distração externa e continuar fazendo um trabalho, apesar de

haver eventos competindo para sua atenção. Por exemplo, não parar quando escuta um colega

conversando com outro no corredor, ou não parar de escrever um trabalho na Internet quando vê uma

outra atividade pop up no computador (como mensagens instantâneas dos amigos)36

.

_______________________________ 36

JOFFE, V. [2005] – Um Dia na Vida de um Adulto com TDA/H (Transtorno do Déficit de Atenção e/ou Hiperatividade),

1ª Edição, São Paulo: Lemos Editorial.

75

c) Preconceito contra os portadores de doenças metabólicas

Existem cerca de 500 doenças metabólicas hereditárias incuráveis até hoje, na infância e

adolescência. São provocadas por um erro inato do metabolismo, que resulta na falta de atividades de

enzimas ou proteínas responsáveis por reações químicas essenciais para a manutenção dos órgãos

vitais. Assim, o corpo produz de maneira diferente da que deveria, ou mesmo deixa de produzir,

substâncias necessárias, que se acumulam, tornam-se tóxicas e destroem o sistema nervoso. A maior

parte delas não tem tratamento.

As conseqüências costumam ser terríveis para seus portadores.

É o caso da adrenoleucodistrofia37

retratada no filme Óleo de Lorenzo38

que condena seus portadores a

não ver, não ouvir, não falar, não se mover, não se alimentar sozinho.Um outro exemplo é a Síndrome

de Wolfram, “uma desordem recessiva de um autossomo caracterizada pelo aparecimento de diabetes

mellitus e atrofia do nervo ótico em pessoas jovens. O acrônimo DIDMOAD é usado para descrever a

síndrome (diabetes insipidus, diabetes mellitus, atrofia do nervo ótico e surdez).

As principais conseqüências causadas pela Síndrome de Wolfram (DIDMOAD) estão abaixo

listadas:

Diabetes Mellitus

Atrofia do Nervo Ótico

___________________________ 37

A Adrenoleucodistrofia (ALD) é uma patologia ligada ao X caracterizada por desmielinização progressiva do sistema

nervoso central (SNC) (cérebro e medula espinhal) e insuficiência supra-renal periférica (doença de Addison). A forma

cerebral da ALD juvenil (45% dos casos) afeta jovens do sexo masculino previamente saudáveis entre os 5 e os 12 anos de

idade. As primeiras manifestações da doença consistem em déficits cognitivos moderados, seguidos por desmielinização

progressiva do SNC, com diminuição da acuidade visual, surdez neuro-sensorial, ataxia cerebelosa, hemiplegia, convulsões

e demência, conduzindo a um estado neurovegetativo ou à morte em alguns anos. 38 Filme Óleo de Lorenzo – “Título Original: Lorenzo’s Oil; 2. Tradução brasileira: O óleo de Lorenzo; 3. Tempo de Duração: 135

minutos; 4. Ano de Lançamento: 1992; 5. País: EUA; 6. Direção: George Miller; 7.Elenco: Susan Sarandon (Micaela Odone), Nick

Nolte (Augusto Odone), Peter Ustinov (Prof. Gus Nikolais), Kathleen Wihoite (Deirdre Murphy); 8. Estúdio: Universal Pictures.

76

Diabetes Insipidus

Surdez

Anormalidade do Trato Urinário

Problemas de Desordem Mental

Anormalidades no Sistema Nervoso Central

Desordens do Desenvolvimento Sexual

A estimativa de presença da Síndrome é abaixo de 1 caso em 100.000 na população americana.

Dados referentes à sua presença na América Latina não foram pesquisados.”

Fonte: htpp://www.rarediseases.org

...

Todos esses portadores tem drasticamente reduzida sua qualidade de existência na medida em

que acumulam várias limitações, podendo chegar a um estado meramente vegetativo.

O caso do menino de 4 anos internado em estado semi-vegetativo na cidade de Franca/Estado

de São Paulo gerou uma verdadeira luta judicial, com o pai ameaçando pedir eutanásia e a mãe

recusando-se a “desistir” de J. Como afirmou a mãe de uma criança com uma doença rara como a de J,

são inúmeros os obstáculos a enfrentar para cuidar desses casos começando, inclusive, dentro de

casa.“A própria família muitas vezes tem preconceito, não entende, acha que é um fardo , que não vale

a pena , não dão apoio”.

Fonte: O ESP – domingo, 11/09/2005.

77

d) Preconceito contra os portadores de limitações de movimento (sem membros ou

com eles paralisados)

Quando a prótese é um insulto

“No último sábado deste mês de 2006 tentei entrar em conhecida discoteca, sem passar pela

enorme fila de espera, argumentando com o segurança que não aguentaria ficar em pé, devido a prótese

na perna, ao que este respondeu, curto e grosso: “Balada não é pra aleijada”. A danceteria despediu o

segurança, por violar a Constituição Brasileira,39

mas isto não pode ser consolo para aquelas pessoas

que buscam a integração social, através das muitas alternativas de reabilitação, já existentes (cadeiras

de rodas, próteses, etc etc).

Infelizmente o preconceito contra os portadores de limitações de movimento parece tão

diversificado quanto as próprias limitações.40

É o que nos relata com tristeza e indignação Luciana

Scotti que sofreu um devastador AVC (acidente vascular cerebral) em 1994/São Paulo, ficando sem

fala e tetraplégica aos 22 anos, como conseqüência do uso do uso de anticoncepcionais.

“ Meu namoro com Lucas realmente trouxe à tona um monte de questionamentos e decisões,

mesmo que para nada tenham servido. Um fato, porém, trouxe a morte de meu futuro, sem que eu

pudesse imaginar. Durante meu namoro com Lucas, tomei, sem saber, a decisão mais insensata de toda

a minha vida: decidi ir a uma médica e começar a tomar pílulas anticoncepcionais. Lucas deixava bem

claro que destestava camisinhas, por isso apostei que o uso de um contraceptivo iria deixá-lo radiante.

Apostei nisso e digo que decidi por nós dois. Era eu quem tomava as pílulas, mas elas evitavam filhos

para os dois, garantiam a tranqüilidade dos dois. ________________________________ 39

A Constituição Brasileira de 1988 inclui entre seus objetivos (art. 3º) “promover o bem de todos, sem preconceitos de

origem, raça, sexo, cor, idade e qualquer outras formas de discriminação”. No caso das pessoas portadoras de deficiência, a

Declaração Universal de 1975 dispõe “As pessoas deficientes têm o direito ao respeito por sua dignidade humana. As

pessoas deficientes, qualquer que seja a origem, natureza e gravidade de suas deficiências, têm os mesmos direitos

fundamentais que seus concidadãos da mesma idade, o que implica, antes de tudo, o direito de desfrutar de uma vida

decente, tão normal e plena quanto possível.” (Cf SCHWARZ, A. e HABER, J. Guia São Paulo Adaptada 2001.

Informações da Cidade para Pessoas com Deficiência Física, São Paulo: O Nome da Rosa, p.308-9. 40

Formas de limitações de movimento “Paraplegia: perda total das funções motoras dos membros inferiores. Paraparesia:

perda parcial das funções motoras dos membros inferiores. Monoplegia: perda total das funções motoras de um só membro

(superior ou inferior). Monoparesia: perda parcial das funções motoras de um só membro. Tetraplegia: perda total das

funções motoras dos membros inferiores e superiores. Tetraparesia: perda parcial das funções motoras dos membros

inferiores e superiores. Triplegia: perda total das funções motoras em três membros. Tripesia: perda parcial das funções

motoras em três membros. Hemiplegia: perda total das funções motoras de um hemisfério do corpo (direito ou esquerdo).

Hemiparesia: perda parcial das funções de um hemisfério do corpo (direito ou esquerdo). Amputação: perda total de um

determinado segmento de um membro (superior ou inferior). Paralisia cerebral: lesão de uma ou mais área do sistema

nervoso central, tendo como conseqüência alterações psicomotoras, podendo ou não causar deficiência mental. Deficiência

múltipla: associação de duas ou mais deficiências (física, auditiva, visual ou mental). ( Cf SCHWARZ, A. e HABER, J, op

cit p. 347)

78

Hoje sei que o risco era todo meu: tomando ou não tomando a pílula. Menti, sofri preconceito,

frustrações... Estou desiludida. Acabei muda e tetraplégica, e isso não faz sentido...

Como o ser humano é frágil! Em apenas um segundo tudo pode mudar. E foram necessários

poucos segundos para me ver transformada. Uma vez ouvi um homem dizer que todo mundo é um

portador de deficiência potencial... É evidente! Se não fosse, eu não estaria aqui!

Tive duas paradas cardiorespiratórias. Fiquei mais de um mês em coma. Passei por três

pneumonias, fui submetida a uma traqueostomia e a uma transfusão de sangue. Usei guedel – um

aparelho que põe na boca e dói demais – sofri, duas cirurgias no cérebro e fiquei vários dias em UTIs.

Recebi a extrema-unção. Acho que um acidente vascular cerebral (AVC) é a pior coisa que pode

ocorrer a um ser humano. Não imagino coisa pior. Talvez ser enterrado vivo seja pior. Mas sobrevivi.

Sobrevivi porque lutei pela vida; não por esta vida, mas pelo que eu conhecia da vida, da maravilha que

sempre foi. Da vida dos versos do Gonzaguinha. A vida podia ser bem melhor...

Mas isso não impede que eu repita

que é bonita, é bonita e é bonita!

Os médicos sabiam como eu iria ficar, e é aí que reside minha maior revolta! Acho que foi

desumano. Pegaram uma pessoa que andava e colocaram-na sobre uma cadeira de rodas, amaldiçoaram

alguém que falava “pelos cotovelos” a ficar muda; transformaram uma loira em morena, uma mulher

bonita em uma feia; substituiram um corpo escultural por outro irreconhecível; reduziram 50 quilos a

somente 33; tornaram uma mulher cheia de sonhos, com uma carreira pela frente, em uma inútil que

não tem direito a nada, a não ser a uma aposentadoria; condenaram uma jovem que dirigia, dançava,

fazia amor, a ter uma vida restrita a sessões de fono e fisioterapia (que ela odeia); deixaram a alguém

que tinha um monte de amigos e admiradores apenas a família; impuseram a uma pessoa que tinha uma

saúde de ferro, viver cheia de remédios e vomitando... Será que isso não é brincar de Deus? Como é

que puderam optar por tudo isso sem a minha opinião?

... Aos poucos ia chegando a hora da metamorfose. Inconscientemente, eu ia dando adeus ao

meu corpo bem-feito, aos meus traços delicados, à minha pele de pêssego (hoje parece uma lixa), aos

meus longos cabelos loiros, às minhas pegadas, à minha voz (que nunca mais ninguém ouvirá), aos

79

meus movimentos, à dança (tão querida!), ao meu querido Uninho e a mais um milhão de coisas. Só

tenho fatos para recordar, a todo o instante. Por isto repito, reconto, relembro as coisas que tinha.”

Dentro desse cenário de limitações Luciana aprendeu a reagir à dor do preconceito.

“Freqüentemente sou confundida com uma louca, retardada mental, ou analfabeta. Já me

perguntaram o que é uma alface, quanto era dois mais dois, se eu sabia quem era meu pai, onde

estavam o teto e o chão, se uma bola verde era vermelha... E, como eu carrego uma cartolina com letras

para me comunciar, é comum alguém indagar:

- Como é? Está aprendendo as letras do alfabeto?

A Luciana de antigamente diria o que eu até chego a pensar:

- Não, seu burro! Isso é um método de comunicação!

Mas, lenta e pacientemente, acabo escrevendo: S-O-U A-L-F-A-B-E-T-I-Z-A-D-A E A-T-É

F-O-R-M-A-D-A.

... Eugênia é hoje, uma das poucas pessoas com quem posso contar. Entendo que ela deve

lamentar meu azar. Mais que isso, vejo que ela chega a se imaginar na minha situação. Suas visitas são

freqüentes, o que atualmente muito me comove, pois é difícil ter amigos fiéis depois de um AVC.

Ela me ensinou a lidar com o preconceito. Ela, porque é negra, e eu, porque ando de cadeira de

rodas. E pensar que eu andava por aí de “nariz empinado”... Aliás, me espantei ao ver que despertava

preconceito e pensei:

‘Como é que é essa história?! Agora as pessoas evitam minha presença?!’

Era exatamente isso, uma situação nova para mim. As pessoas têm realmente muitos preconceitos, por

cor, raça, deficiência... Tudo muito enrustido, mas têm.

80

... Nunca mais fui a danceterias. Para que? Para passar vontade e cair em depressão? Neste meu

novo início a vida adquiriu um preto-e-branco; hoje procuro colorí-la com outras cores...

Quando tive o AVC, senti que, a partir daquele momento, eu fazia parte de uma minoria na

sociedade: os deficientes físicos, e fui a uma reunião de uma entidade, onde havia vários tipos deles.

Jamais esquecerei... A presidente da mesa discutia vários pontos e, a certa altura, propôs:

- Pela impossibilidade de alguns erguerem o braço, quem concorda, diga sim. Todos

concordam?

- Sim!

Bom... eu senti a minoria da minoria. Fiquei sem expor idéias, sem votar, parecendo ‘missa de

corpo presente’.

E não falo de uma organziação específica, de um evento isolado; sempre senti isso. Talvez a

sociedade não esteja apta para aceitar os deficientes, e os deficientes, por sua vez, não estejam aptos

para aceitar uma tetraplégica e muda. O erro é o mesmo, pecam pela força da maioria...

Andar numa cadeira de rodas numa sociedade que não aceita você, ou não se prepara para

aceitá-lo, é triste, complicado e muitas vezes limita sua vida social. Ainda assim, hoje em dia, apesar de

também sofrer rejeição e discriminação das pessoas que se autodenominam “normais”, mesmo depois

de toda a exposição do meu caso , mantenho-me distante de organizações que procuram melhores

condições para os deficientes físicos.”41

________________________________ 41

SCOTTI, L. [1998] - Sem Asas ao Amanhecer... São Paulo: O Nome da Rosa. p. 15,16,45,47,128, 131,144,145

SCOTTI, L. [1999] – A doce sinfonia de seu silêncio. São Paulo: O Nome da Rosa. p. 33, 55, 56, 57, 58.

81

A todos esses desafios, Luciana sempre soube responder. Mesmo atingida pela “locked-in

syndrome”42

- uma das conseqüências mais devastadoras de um AVC - ela conseguiu, tal como

Bauby, escrever dois livros para mostrar que “comportar-se como tetraplégica é apenas continuar a

comportar-se como ser humano.”43

e) Preconceito contra os portadores de limitações relacionadas à aparência e

funcionamento corporal (gordos, feios, monstros, canhotos...)

Também são várias as formas de preconceito e seu alvo costumam ser todos aqueles que

discrepam do padrão de aparência e funcionamento corporal, valorizado em uma dada sociedade. O

padrão vigente na nossa sociedade ocidental é o de corpos esguios, flexíveis, bonitos, dextros... A esse

padrão arbitrário são então contrapostos desfavoravelmente os gordos, os feios, os monstros, os

canhotos...

________________________________ 42

A locked-in syndrome (L.I.S.) é uma raridade: o paciente fica entregue à vida vegetativa. Literalmente “trancado no

interior de si mesmo”, não pode mexer-se, comer, falar e nem mesmo respirar sem ajuda de aparelhos. Noírtier de Villefort,

personagem do O Conde de Monte Cristo. (Alexandre Dumas), é o primeiro caso de L.I.S. a aparecer na literatura. Passa a

vida prostrado numa cadeira com rodinhas e só se comunica por piscar de olhos: uma piscada, sim; duas, não. Da mesma

forma que Jean – Dominique Baudy – jornalista redator chefe da revista Elle. A partir de dezembro de 1995, um AVC

mergulhou-o em coma profundo. Ao acordar só movia o olho esquerdo. Com esse olho escreveu o livro O Escafandro e a

borboleta. São Paulo: Martins Fontes, 1997. 43

SCOTTI, L. – A doce sinfonia de seu silêncio. ob.cit. p. 33.

82

Figura 6 – Padrão de beleza física ocidental (Masculina/Feminina)

Fonte: OCA – Parque Ibirapuera

www.corpospintados.com.br

E.1- O preconceito contra a gordura

O preconceito contra os gordos manifesta-se em sociedades como a nossa, numa série de

situações que incluem a idéia de que manequins tipo 44 e seguintes para as mulheres seriam objeto de

desprezo...

83

E. 2 - O preconceito contra a feiura

Baseia-se na falsa idéia da existência de um padrão universal de beleza, válido “entre

ocidentais de hoje e da Idade Média, entre ianomâmis e habitantes da Polinésia, entre nigerianos

e japoneses. Nesse ramo do conhecimento, a estética, a matemática e a biologia são

freqüentemente chamadas para ajudar na discussão.

Os antigos gregos e os renascentistas acreditavam que o belo poderia ser definido por

equilíbrios geométricos. Bastava combinar de forma harmoniosa partes de tamanho apropriado.

Eles trabalhavam até com uma receita de beleza baseada no equilíbrio espacial, chamada de

proporção áurea. Por essa regra, bonito era ter nariz e orelhas com comprimento igual, e foi

assim que as pessoas foram retratadas pelos artistas da Renascença. Hoje, essas antigas teses

parecem simplistas, mas na verdade elas só foram substituídas por outras, que seguem em vigor,

agora dando lucros aos cirurgiões plásticos, em vez de artistas. Tudo isso faz parte do esforço

da humanidade para colocar ordem na grande confusão que é a realidade. Quem dera

pudéssemos entender a beleza usando fórmulas matemáticas.

A biologia parece ter mais fôlego na explicação dos ideais de beleza. Tudo começa com

Charles Darwin, pai da teoria da evolução, que no século XIX percebeu que os animais

selecionavam parceiros sexuais pela aparência. Entre os cervos, por exemplo, machos com

chifres simétricos são os preferidos. A aparência aí está relacionada à capacidade de gerar

filhotes sadios e com maiores chances de sucesso na luta pela vida. Para muitos especialsitas,

também entre os humanos a beleza seria interpretada como sinal de bons genes. Um exemplo?

84

Mulheres com cintura estreita são bonitas tanto para os índios peruanos do século XVI como

para as francesinhas do século XXI.

Hoje, vivemos a tirania de aparência física.

Algumas mudanças na economia e na sociedade ajudam a entender como chegamos até

aqui. Vivemos na era pós-industrial, quer dizer, não é mais a indústria o centro da economia.

Hoje, quem avança é o setor de serviços – comércio, os bancos, o turismo, o lazer. Num mundo

com menos operários de macacão e mais mocinhas atrás dos balcões, a aparência conta muito

mais.

Também o salto tecnológico nas comunicações cria um ambiente em que a imagem é

tudo. Basta olhar os telefones celulares à sua volta, a cada dia com mais truques pra transmitir

imagens. Antes você descrevia a pessoa amada para um amigo, agora vai mostrar foto dela no

celular. É bem diferente, concorda? Também vivemos uma individualização crescente, com as

pessoas cada vez mais isoladas e com menos trocas humanas. Passamos a ser julgados menos

pelo que somos e mais pelo que, à distância, parecemos ser.

O resultado disso é que o padrão dominante de beleza, inventado por uma meia dúzia e

divulgado por outra meia dúzia, contaminou todos os ambientes. Você liga a televisão e lá estão

as bonitonas e os saradões no papel de vencedores. Você é bombardeado por peças publicitárias

que associam comunhão familiar e beleza, dinheiro no bolso e beleza, ser amado e beleza,

felicidade e beleza. O pior é quando isso sai da TV e alcança a vida. Pesquisa publciada em

1994 pela revista americana American Economic Review mostrou que as pessoas consideradas

85

bonitas ganham salários em média 10% mais altos do que as feias. Você se pergunta então se os

belos traços físicos significam tratamento melhor no dia-a-dia e fica sabendo do teste da moeda

feito por psicólogos norte-americanos. Ao encontrarem 10 centavos intencionalmente deixados

numa cabine telefônica, 87% dos ocupantes devolveram a moeda quando apareceu uma mulher

bonita perguntando por ela. Só 60% fizeram o mesmo por uma mulher tida como feia.

Essa ditadura da beleza foi denunciada pela escriora americana Naomi Wolf em O mito

da beleza (RJ, Rocco, 1992).Esse mito é a face aparentemente otimista do preconceito contra a

feiúra mas igualmente mistificadora: “através dele a enorme maioria das mulheres obrigada, a

uma dupla jornada de trabalho mais lar enfrenta uma terceira: a necessidade de ser eternamente

jovem e bela para preservar justamente trabalho e lar”. Imagens de beleza são usadas contra as

mulheres, denuncia Wolf. Imagens que atualmente assumem a forma do que já denominou

“magreza perigosa”. Em 2002, o psicoterapeuta austríaco Guenther Rathner fez uma pesquisa

com 50 modelos. Metade delas mostrou sintomas de anorexia. Segundo Rathner, todas as

modelos apresentaram uma atitude problemática diante da imagem, do peso, da comida e do

aspecto físico, apesar de já serem bem magras.

“Enquanto o peso das pessoas aumenta, segundo as estatísticas, o ‘ideal’ propagado pelos

meios de comunicação é o da cada vez mais magra. Não se pode alcançar nem manter peso tão

reduzido sem pôr a saúde em perigo; as conseqüências graves dessa ‘mania da magreza’ são a

anorexia e a bulimia”44

, afirmou.

_______________________________ 44

BRAND, D. [2003] Anorexia: diário de uma adolescente/Análise e orientações do psicólogo Haroldo Lopes. São Paulo:

Elevação, p. 114, 115, 117.

86

Algumas características básicas da anorexia e da bulimia:

Anorexia nervosa ou restritiva: o indivíduo pára de comer. Por mais magro e doente,

não enxerga a real situação.

Anorexia bulimica: a auto-imagem permanece distorcida, mas a pessoa, quando se

alimenta, mesmo em pequenas quantidades, provoca vômito.

Nos bulimicos, em geral, o peso não varia, diferentemente dos anoréxicos, que chegam a

perder muitos quilos em curto espaço de tempo. Uma pessoa com bulimia costuma ter o pescoço

inchado e os pulsos marcados em conseqüência do gesto de enfiar a mão na garganta. Há casos em que

o bulimico chega a ingerir 2 mil calorias em uma mesma refeição e, em seguida, com sentimento de

culpa, corre ao banheiro para vomitar.

O mais grave em ambas as doenças é que cerca de 20% dos pacientes falecem, segundo

pesquisas do Ambulatório de Bulimia e Transtornos Alimentares (Ambulim), do Hospital das Clínicas

de São Paulo, e somente 30% se curam. O aumento de risco de suicídios é significativo durante o

processo.

O portador de transtornos alimentares deve estar atento, pois a doença, apesar de poder ser

controlada, não é erradicada. Tal como o alcoolismo, exige cuidados e atenção pelo resto da vida.

...

87

“As feias que me perdoem mas beleza é fundamental “Essa famosa frase de Vinicius de

Morais45

“reprova” a maioria das mulheres já que é muito menos freqüente a ocorrência de lindos

espécimes em qualquer população humana. Basta lembrar quão raras são musas tipo Sofia Loren,

conhecida por ser um “conjunto de lindas imperfeições”.

Todavia são muitas as mulheres que podem ter tido ‘memórias’, como as que se relata a seguir

“Naná adoeceu e Inhá mandou me chamar para ir lhe fazer companhia. Depois entrou Dr. Teles.

Ele tinha chegado naqueles dias e não me conhecia. Olhou Naná corada de febre na cama e disse: “Que

menina bonita! Como se chama?”. Inhá respondeu: “Maria Orminda”. Dr. Teles disse: “Esta menina

devia chamar-se Helena”. Inhá disse: “Olhe uma Helena aí perto”. Ele me olhou e virou a cara como

quem diz: “Esta não merece o nome”. Eu confesso que desapontei.

Eu sei que Naná é bonita e eu não sou: mas não sei porque Iaiá pensa que me inferna ficar

comparando a nós duas. Vovó hoje notou que ela fala é para me infernar e perguntou: “Henriqueta,

você acha mesmo a Naná essa beleza ou fala só para fazer inveja à outra?”. Iaiá respondeu: “Ora,

minha mãe, por quê? Então não se pode mais falar na beleza de uma menina como a Naná, que a

senhora fica com raiva?”. Vovó disse: “Não estou com raiva, não; mas você sabe que o Renato vive só

falando a esta tolinha que ela é feia e ela acredita. Eu vivo pelejando para lhe tirar isso da cabeça e você

________________________________

45 Marcus Vinitius da Cruz e Mello Moraes (19/10/1913- 09/07/1990) aos nove anos de idade parece que pressente o

poeta: vai, com a irmã Lygia ao cartório na Rua São José, centro do Rio, e altera seu nome para Vinicius de Moraes.

Nascido em 19-10-1913, na Rua Lopes Quintas, 114 — bairro da Gávea, na Cidade Maravilhosa, desde cedo demonstra seu

pendor para a poesia. Criado por sua mãe, Lydia Cruz de Moraes, que, dentre outras qualidades, era exímia pianista, e ao

lado do pai, Clodoaldo Pereira da Silva Moraes, poeta bissexto, Vinicius cresce morando em diversos bairros do Rio, infância e juventude depois contadas em seus versos, que refletiam o pensamento da geração de 1940 em diante.

88

não perde ocasião de falar na boniteza das outras perto dela”. E virando para mim: “É tudo mentira,

minha filha; você é bonita. Nenhuma tem graça, sua inteligência, sua bondade. Você é a primeira

menina de Diamantina. Fique certa disso”. Eu disse: “Vovó, não gosto de ouvir a senhora falar assim,

porque sei que a senhora pensa que eu tenho inveja. Pode ter certeza, vovó, que eu só tive inveja das

outras quando era pequena; assim mesmo quando elas iam de virgem. Deixe Iaiá falar: Não me

importo, Vovó.

Que tia enjoada, esta Iaiá!46

E. 3 - Preconceito teratológico

O problema da feiúra – numa sociedade que só valoriza a beleza – tem vários graus, mas

assume proporções trágicas nos casos de “MONSTROS”, tristemente famosos por serem portadores de

defeitos congênitos/genéticos, como os casos relatados a seguir:

_________________________________ 46

MORLEY, H. [1998] Minha Vida de Menina. São Paulo: Companhia das Letras, p.149-0.

89

Monstros e Prodígios: o circo humano

O menino tinha escamas

Dizem que cheirava a pescado e que só comia peixe. Nasceu em Nápoles, no início do século

17, e fez sucesso em excursões pela Europa, exibindo-se como uma aberração itinerante. Os médicos

hoje imaginam que ele teria um caso grave de ictiose, doença congênita que dá à pele uma aparência

escamosa. Uma doença terrível, sem dúvida, mas nada que devesse impedí-lo de viver uma vida plena

e produtiva. Calcula-se que cerca de 5% a 10% dos nascimentos resultam em algum tipo de defeito

congênito. A pesquisa médica ainda tem muito trabalho a fazer nessa área. Ainda assim, há espaço

para otimismo. O preconceito é renitente, mas as vítimas dessas doenças não são mais vistas como

híbridos animais nem precisam levar a vida como atração circense.

O caso mais conhecido é o de Joseph Merrick.

Nascido em Leicester, Inglaterra, em 1862. Ele tinha 2 anos quando sua mãe notou que a pele

do filho crescia de modo estranho, formando calombos na cabeça e no pescoço. Os defeitos tornaram-

se cada vez mais acentuados à medida que o menino crescia.O lado direito de sua cabeça cresceu de

forma desproporcional. Seu braço direito também era enorme, e o crescimento irregular inutilizou sua

mão. Joseph teve de deixar a casa cedo, por incompatibilidade com o padrasto. Tentou a vida como

vendedor de rua e operário, mas o abuso por parte dos colegas era demais. Acabou se empregando

com um promotor de espetáculos, que lhe deu o apelido pelo qual ficaria conhecido: Homem Elefante.

90

Merrick foi então “descoberto” pelo doutor Frederick Treves, que mais tarde seria o médico da

família real britânica. Treves exibiu seu paciente célebre nas sociedades científicas da época.

Merrick ainda voltaria ao circo, mas acabou sendo acolhido em caráter permanente por um hospital

de Londres. Morreu de asfixia, em 1890, ao deitar-se para dormir – o peso de sua cabeça esmagou a

traquéia. Sua história inspirou um filme de David Lynch, O Homem Elefante (1980).

Os médicos da época diagnosticaram a condição de Merrick como elefantíase, problema do

sistema linfático que causa inchaço no corpo. Mais tarde, o consenso científico foi o de que o Homem

Elefante sofria de um caso extremo de neurofibromatose, moléstia congênita que causa crescimento

anormal do sistema nervoso. No final dos anos 90, exames radiológicos do esqueleto de Merrick,

conservado até hoje no Hospital Real de Londres, revelaram que o crescimento ósseo era

incompatível com os casos conhecidos de neurofibromatose – o Homem Elefante não tinha, por

exemplo, a espinha curvada que é típica desses casos. O diagnóstico mais aceito hoje é de que Merrick

sofria de síndrome de Proteu, um distúrbio de crescimento raríssimo que só foi identificado em 1979.

Os gêmeos conjugados são chamados de siameses por conta da fama de Chang e Eng Bunker

Naturais do Sião (atual Tailândia), ligados na altura do esterno, hoje os dois provavelmente

poderiam ser separados cirurgicamente, mas quando nasceram, em 1811, a Medicina não tinha muito

o que lhes oferecer. Chang e Eng fizeram carreira nos Estados Unidos como atrações do célebre circo

Barnum and Bailey. Cansados da vida dos picadeiros no estado da Carolina do Norte, cortejaram e se

91

casaram com duas irmãs da comunidade local. Os dois morreram com 63 anos, deixando 21 filhos (11

de Eng e 10 de Chang).

Bem mais triste foi o destino de Julia Pastrana, a mulher barbada

Causou sensação ao ser exibida como uma espécie intermediária entre o ser humano e o

macaco. Consta que Pastrana era uma índia mexicana, nascida em 1834, mas os dados sobre sua

origem são duvidosos. Tinha pêlos abundantes e grossos não só no rosto, mas também nos braços.

Com pouco mais de 20 anos, ela excursionou pelos Estados Unidos, exibida como a “Maravilha

Híbrida”. Atravessou o Oceano Atlântico em 1857 para começar sua carreira européia, em um

espetáculo em Londres que incluía canto e dança. Seu empresário, Theodore Lent, levou-a em seguida

a uma longa excursão pela Europa continental. Apesar dos pêlos abundantes, Julia era descrita como

uma mulher delicada, talentosa e inteligente. Talvez seduzido por esses encantos, Lent, o empresário,

casou-se com ela. Ou talvez tenha sido uma estratégia para preservar seu ganha-pão: Julia sofria por

ter uma aparência como aquela e falava a amigos de sua vergonha por ser exposta como uma

aberração.

O casal estava em Moscou quando descobriu que Julia ficara grávida. Os médicos temiam que

o parto fosse dificil, pois a pélvis dela era muito estreita.Em 1866, deu à luz um menino igualmente

peludo, que viveu só 35 horas. Ela mesma morreria cinco dias depois. A história fica particularmente

bizarra a partir daqui. Lent vendeu Julia e o bebê para um anatomista russo que os embalsamou com

muito capricho.Mais tarde, alegando direitos de marido e pai sobre os dois corpos, Lent tomou-os de

92

volta. Voltou a excursionar pela Europa para exibir as múmias. Depois de sua morte, sua segunda

mulher – que também era barbada! – doou Julia e o bebê a um empresário alemão. A partir daí, as

múmias seguiriam um triste périplo, passando de um a outro museu de curiosidades. Em 1990, foram

redescobertas no porão de um instituto médico legal em Oslo, Noruega. O médico Jan

Bondeson examinou Julia e o filho. Em seu livro Galeria de Curiosidades Médicas, ele revela que a

índia mexicana não só tinha crescimento anormal de cabelos, mas também sofria de deformações

dentárias, e hiperplasia da gengiva. Bondeson acredita que essas características encontradas em Julia

Pastrana são parte de uma síndrome genética rara.

Fonte: Super Interessante, agosto/2003, p.56-61.

...

O preconceito contra essas pessoas revela-se a partir das próprias palavras que as designam

(“monstros”, “aberrações”, híbridos de homens/animais), das pseudo-explicações para sua ocorrência

(“castigo divino”...) e da própria denominação da ciência que os estuda (teratologia do grego teratos

+ logos = estudo de monstros).

A história cultural da deficiência física é marcada pelo preconceito, pelo medo da diferença que

se expressa ali onde menos esperamos – em nossa própria descendência. Também há um elemento de

fascínio perverso pela suposta “aberração”, que se revela na exibição de deficiências raras em

93

espetáculos de circo, ou, atualmente, em programas de televisão. A arte pré-histórica já traz registros de

seres humanos com malformações; na Austrália, foram encontrados desenhos e esculturas primitivas,

datando provavelmente de 5000 a 4000 A.C., retratando dicéfalos conjugados (isto é, gêmeos siameses

com duas cabeças num mesmo corpo). Na Antiguidade, a norma geral parece ter sido a condenação à

morte para recém- nascidos defeituosos. Um texto chinês do período Qu’in (200 A.C.) estabelecia

punições para infanticidas, mas ressalvava que matar crianças deformadas não constituia crime. Entre

as cidades da Grécia antiga, Esparta era particularmente rigorosa com os deficientes, que eram vistos

comos um ônus inútil para a pólis. Mas mesmo na luminosa Atenas, os filhos mal formados eram

abandonados à própria sorte, o que equivalia a condená-los àmorte por inanição. Considerava-se que o

“monstro” não deveria ser enterrado para não conspurcar a terra.

...

E.4 - Uma outra modalidade é o preconceito contra canhotos47

.

Entre 13% e 15% da população é constituída de canhotos, mas da Bíblia à indústria moderna

tudo parece conspirar contra eles. Até o vocabulário, que define sinistro, sinônimo de canhoto, como

pessoa de má índole.

______________________ 47

Jornal da USP, 9 a 15/11/1998, p.12-3.

94

Durante muito tempo os canhotos eram tratados como pessoas esquisitas e até inferiores, pois o

cidadão “melhor, o correto e o confiável” seria invariavelmente o destro. Até a popular oração declara

que Jesus Cristo “está sentado à mão direita de Deus Pai todo Poderoso”. A palavra sinistro tem na

língua portuguesa moderna o significado de uma pessoa que possa tramar coisas más contra seus

semelhantes, ou seja, um adjetivo maléfico, pejorativo. A expressão “ele nasceu no lado esquerdo da

cama” ainda é usada na Inglaterra como um insulto indireto, para não dizer “bastardo”. “As vozes

sinistras dos políticos” constitui mais um exemplo recente, encontrado na imprensa brasileira.

Um jornalista inglês conta que, em certa época, ele viajava de trem pela Sicília (Itália), comprou

alguns cartões postais e começou a escrever, mas de repente viu que um garoto ao seu lado o olhava

espantado. O menino logo voltou para sua mãe e gritou: “Tu és Diabo. O Diabo!” Era uma reação

sincera e natural, pois a criança criada no campo, jamais vira alguém, escrevendo com a mão esquerda.

O uso da mão “errada” ainda é muito controlado na Sicília, devido a uma velha superstição que a

associa com traços satânicos.

Cinco canhotos de ouro

O canhotismo constitui impedimento algum para que uma personalidade brilhante se manifeste,

como também, em muitas ocasiões, ajuda diretamente na formação de pessoas excepcionais.

Aqueles que ainda se empenham em “reeducar” o canhoto, deveriam folhear as páginas da

história e refletir sobre os muitos canhotos famosos que ela oferece. Valham como exemplo, os

seguintes personagens:

95

Leonardo da Vinci

A enorme curiosidade sobre esse gênio renascentista, que se notabilizou em diversos campos da

arte e do conhecimento, poderia explicar-se segundo recentes teorias, como resultado de um

desenvolvimento paralelo de ambos os hemisférios cerebrais, propiciado por ser um canhoto “não

reeducado”; poderia até ter sido ambidestro. Leonardo utilizava a mão esquerda tanto para pintar como

para escrever, mas na escrita o fazia da direita para a esquerda e com as letras invertidas, tornando

qualquer manuscrito seu legível somente diante de um espelho. Algo muito excepcional ocorria, sem

dúvida, em seu hemisfério cerebral direito. Esta característica sem precedentes lhe ocasionou

dificuldades, uma vez que a Igreja queria estar certa de que não se tratava de mensagens destinadas ao

Diabo.

Michelangelo

É muito provável que os canhotos pensem tridimensionalmente, o que lhes permite refletir

sobre qualquer idéia de forma mais ampla que um destro. Seria possível perceber essa característica

através da veracidade e da vivacidade de suas esculturas?

Albert Einstein

Os obstáculos sociais que se levantam frente aos canhotos podem chegar a ser particularmente

graves para os gênios. Ser canhoto talvez tenha permitido a Einstein abarcar mentalmente e construir a

complexa teoria da relatividade, mas isso também lhe trouxe problemas no momento de procurar seu

96

primeiro emprego. No escritório de patentes de Berna, Suíça, o dono não gostava de “sujeitos

esquisitos” e se não fosse pelo “tráfico de influências” não teria obtido a vaga desejada.

Pablo Picasso

Um canhoto genial é capaz de desintegrar o espaço, recompor a realidade ao contrário, como se

fosse um espelho mental. Assim demonstrou Picasso em numerosos quadros de sua etapa cubista,

pintando violinos e outros instrumentos musicais do lado direito e do lado esquerdo ao mesmo tempo, e

fazendo-os coincidir paulatinamente na tela, numa imagem vibrante.

Santo Agostinho

Uma das poucas mães da Antigüidade, que permitiu que sua criança se desenvolvesse com a

preferência por ela escolhida, foi Santa Mônica. O filho canhoto fez-se primeiro um extraordinário

professor de retórica e logo um escritor reconhecido “pai da Igreja”. O futuro Santo Agostinho foi o

precursor na separação da expressão verbal e da escrita. Para ele já não era imprescindível pronunciar o

texto em voz alta para compreender o seu conteúdo., como fora hábito e regra até então. É sabido,

através das Confissões, que durante a milagrosa cena do Jardim de Milão, foi a mão esquerda de Santo

Agostinho a abençoada por Deus.

....

97

2.2.7 - Preconceito contra os portadores de limitação de autonomia

“ANTE QUALQUER CONDUTA que rompe o consenso, o protocolo social ou que é

difícil de classificar ou entender, desde um ato criminoso a um comportamento passional

surge como fácil conclusão convertida em estigma, a loucura48.”

Neste grupo estão os muitos portadores dos assim chamados:

- “transtornos de personalidade”

- “transtornos mentais”

- “transtornos de desenvolvimento global”

A expressão TRANSTORNO - embora insatisfatória - sucedeu a outras mais estigmatizantes

ainda: loucura moral, loucura dos degenerados, debilidade mental, etc,

Seus portadores – conhecidos como loucos, alienados, birutas, giras-giras ... teem uma longa

história de estigmatização, que transparece na crônica a seguir

A SECRETÁRIA ELETRÔNICA DO HOSPÍCIO:

TRIIIMM.......... TRIIIMM......... TRIIIMM.........

TRIIIMM.......... TRIIIMM......... TRIIIMM......... _________________________________ 48

DESVIAT, M [1997] Nuestra forma de ser/Las claves de la personalidad, el caracter y el temperamento. Madrid –

Ediciones Temas de Hoy, p. 127 – 131.

98

RESPONDE O GRAVADOR DO HOSPÍCIO: "Obrigado por ter ligado para o Instituto de Saúde Mental, a companhia mais certa para seus momentos de maior loucura”. Se você é obsessivo-compulsivo , aperte repetidamente o número 1.

1. Se você é co-dependente, peça a alguém que aperte o número 2 por você.

2. Se você tem múltipla personalidade, aperte 3,4,5 e 6.

3. Se você é paranóico, nós sabemos que é você, o que faz, e o que quer, espere na linha, enquanto

rastreamos a chamada.

4. Se você sofre de alucinações, aperte o 7 neste telefone colorido gigante que você ( e só você) vê

a sua direita.

5. Se você é esquizofrênico, escute cuidadosamente, e uma pequena voz interior lhe indicará o

número a pressionar.

6. Se você é depressivo, não importa que número aperte. Nada vai lhe tirar de sua lamentável

situação.

7. Se você sofre de amnésia, aperte 8 e diga em voz alta seu nome, endereço, telefone, carteira de

identidade, CPF, data de nascimento, estado civil, o sobrenome de solteira de sua mãe e de

Josefina Bonaparte.

8. Se você sofre de indecisão, deixe sua mensagem depois de escutar o ton... ou antes do ton...

depois do ton... ou durante o ton. Em todo o caso espere pelo ton.

10.Se você sofre de perda de memória a curto prazo, aperte 9.

11.Se você sofre de perda de memória a curtíssimo prazo, aperte 9,9,9,9,9,9,9,9,9.

12. Se você tem baixa auto-estima, por favor desligue. Todos os nossos operadores estão ocupados atendendo pessoas mais importantes que você.

Fonte: http://listas.softwarelivre.org/pipermail/co5aijfsm/2004-October/000391.html

...

99

A EXPRESSÃO TRANSTORNO já denota uma visão negativa do funcionamento psíquico,

servindo de pano de fundo para o preconceito que em geral cerca seus portadores.

A literatura especializada tem várias maneiras de classificar os portadores de transtornos. Como

já se indicou três são as classificações mais difundidas. Na primeira, estão os portadores de “certos

níveis de inteligência”, determinados por testes de inteligência, hoje bastante criticados.49

Os

classificados nos assim chamados “níveis inferiores de inteligência” receberam, ao longo do século

XX, designações estigmatizantes como débeis mentais, cretinos, idiotas.

A força do preconceito – manifestou-se em discriminações absolutamente inaceitáveis, como

neste episódio verídico, ocorrido na década de 70 do século XX, dentro da rede municipal de ensino em

São Paulo:

“Conhecida psicóloga foi visitar uma sala de alfabetização. Ficou absolutamente chocada

quando a professora dirigiu-se à classe dizendo: ‘inicialmente levantem-se os débeis mentais’. Mais

chocada ficou quando toda uma triste fileira levantou-se: a fileira dos que, segundo a professora ‘já

estavam condenados’ à reprovação.”50

__________________________ 49

O uso incorreto dos testes de inteligência não é inerente a idéia de sus aplicação. Ele surge basicamente de duas falácias: a

reificação e o hereditarismo. Reificação [ significando] a suposição de que os resultados obtidos nos testes correspondem a

uma entidade independente, uma magnitude escalonada, situada na cabeça e denominada inteligência geral. A falácia

hereditarista consiste em duas falsas conclusões: 1. a identificação entre herdável e inevitável. 2. Confusão entre

hereditariedade no interior do mesmo grupo e hereditariedade entre grupos diferentes. [ A verdade é que] as conclusões

obtidas a respeito de um grupo não autorizam especulações a respeito de outro (por exemplo, tratando-se de brancos e

negros).(Cf. GOULD, S. J. – A Falsa Medida do Homem. São Paulo: Martins Fontes, 1991). 50

Relato oral da protagonista a autora deste trabalho.

100

Este episódio ilustra uma versão perversa do preconceito da discriminação através da profecia

auto-realizadora (efeito Pigmaleão).

...

Na segunda classificação, estão os portadores de transtornos de personalidade que podem ser

reunidos em três grupos.

Quadro 2 – Classificação e características dos transtornos a personalidade

A) Personalidades raras ou excêntricas

Tipo de Transtorno Características

Paranóide Padrão de comportamento desconfiado que faz

com que se interprete de forma supeita, as

intenções alheias.

Esquizóide Padrão de comportamento caracterizado por

restrição à expressão emocional e às relações

sociais.

Esquizotipico Padrão de comportamento caracterizado por

intenso mal estar nas relações pessoais além de

distorções cognitivas ou perceptivas e

excentricidades do comportamento.

101

B) Pessoas que parecem teatrais emotivas e volúveis

Tipo de Transtorno Características

Antisocial Padrão de comportamento caracterizado pelo

desprezo e violação dos direitos dos outros

“Borderline” ou limite Padrão de instabilidade nas relações interpessoais,

na auto-imagem e nos afetos, além de notável

impulsividade.

Histriônico Padrão de excessiva emotividade e contínua

demanda de atenção.

Narcisístico Padrão de comportamento que tende à

grandiosidade, à necessidade de admiração com

falta de empatia.

C) Pessoas que parecem ansiosas ou temerosas

Tipo de Transtorno Características

Evitador Padrão de comportamento caracterizado pela inibição

social, sentimentos de incompetência e hipersensibidade à

avaliação negativa.

Dependente Padrão de comportamento submisso e pegajoso,

relacionado com uma excessiva necessidade de ser

cuidado

Obsessivo-compulsivo Padrão de comportamento caracterizado por preocupação

com ordem, perfeccionismo e controle

Fonte: Desviat, M. [1997] – Nuestra forma de ser/Las claves de la personalidad, el caracter y el temperamento.

Madrid – Ediciones Temas de Hoy, p. 127 – 131.

102

Na terceira classificação estão os portadores de transtornos de desenvolvimento global, os quais

incluem as crianças autistas.

As crianças autistas são portadoras de um transtorno invasivo do desenvolvimento global, cuja

marca está nas dificuldades, em habilidades de interação social e comunicação, associadas à presença

de comportamento repetitivo e/ou restrito e interesses em atividades estereotipadas, que representam

um desvio acentuado em relação ao nível de desenvolvimento.

A manifestação desses quadros ocorre nos primeiros anos de vida. Há uma associação

freqüente a algum grau de retardo mental. Também podem estar associadas a outras condições

médicas gerais.

Os outros transtornos invasivos do desenvolvimento são o transtorno de Rett, o transtorno

desintegrativo da infância e o transtorno de Asperger.51

51

O transtorno de Rett acomete menos crianças que o autismo, e, até o momento, foi relatado apenas no sexo feminino. A sua

característica essencial é o desenvolvimento progressivo de múltiplos déficits específicos após um período de funcionamento normal

durante os primeiros meses de vida. Os indivíduos tem um período pré-natal e perinatal aparentemente normal, com desenvolvimento

psicomotor normal durante os cinco primeiros meses de vida, geralmente época do início das perdas das habilidades voluntárias

adquiridas com as mãos, com o desenvolvimento de movimentos estereotipados característicos, que se assemelham a lavar e torcer as

mãos. O interesse pelo ambiente diminui nos primeiros anos após o início do transtorno, mas pode melhorar com o passar do tempo.

Demais áreas comumente apresentam perdas crescentes e constantes. Aparecem problemas de coordenação na marcha e nos

movimentos do tronco. Ocorrem graves prejuízos de desenvolvimenmto de linguagem expressiva e receptiva, severo retardo

psicomotor, microcefalia. Está tipicamente associado com retardo mental severo ou profundo. Pode ocorrer transtorno convulsivo

nesses indivíduos.

O transtorno desintegrativo da infância é muito mais raro que o autismo e ocorre predominantemente no sexo masculino. Sua

característica essencial é uma regressão pronunciada em múltiplas áreas do funcionamento, após um período de pelo menos dois anos

(até antes dos 10) de desenvolvimento aparentemente normal. A criança perde habilidades já adquiridas em várias áreas do

desenvolvimento, acarretando anormalidades no funcionamento social, comunicativo e comportamental. Geralmente ocorre uma fase

inicial de irritabilidade, ansiedade e hiperatividade, seguida por um empobrecimento generalizado com perdas da linguagem expressiva

e receptiva, das habilidades sociais e do comportamente adaptativo. A criança perde progressivamente o controle intestinal ou vesical.

Em geral, o transtorno está associado com retardo mental severo. Podem ser notados vários sinais neurológicos inespecíficos, incluindo

transtorno convulsivo.

O transtorno de Asperger, cuja prevalência não se sabe ao certo (há relatos de um caso a cada 10 mil crianças da população em geral),

parece atingir mais o sexo masculino. A característica essencial deste transtorno é que, diferentemente do autismo e dos demais

transtornos invasivos, não ocorrrem atrasos significativos na linguagem (isto é, aos dois anos, palavras comunicativas são utilizadas, aos

três anos são utilizadas frases comunicativas), apesar de ocorrer prejuízo na interação social e nos padrões de comportamento repetitivo.

103

As crianças autistas são preservadas relativamente. A inteligência global é normal, na maior

parte dos casos. Também não ocorrem atrasos significativos nas habilidades de auto-ajuda apropriadas

para a idade, no comportamento adaptativo (que não de interação social) e na curiosidade acerca do

ambiente na infância.

Os excertos da autobiografia da americana Temple Grandin, uma autista de “alto desempenho”,

com Doutorado em Psicologia, evidenciam porque ela sempre foi considerada “aquela menina

estranha”.

“Alfred Costello começou a aparecer muito nas histórias que eu inventava. Alfred, uma pessoa

de verdade, era da minha turma na escola e implicava comigo o tempo todo. Zombava de meu modo

de falar, esticava o pé para eu tropeçar quando eu passava no corredor e me xingava de “idiota” ou

“maluca”. Era o encrenqueiro da escola, o palhaço da turma, o terror de todos os professores. Foi ele

que pôs uma cobra no livro de chamada, um rato na gaveta da mesa da professora e um verme na maçã

que tinha levado pra ela. Alfred era um sujeito maldoso na vida real”.52

Os autistas costumam ser considerados seres esquisitos, espécie de ETS, evadidos e perdidos

em outro planeta. Isso “explicaria” porque costumam gerar sentimentos de desconfiança, rejeição fruto

do preconceito contra uma criança-enigma. O conto de fadas “Joãozinho-porco-espinho-meu”, escrito

pelos irmãos Grimm, relata as “aventuras de Joãozinho metade menino, metade porco-espinho, o que o

afastou do convivio familiar, conduzindo-o ao isolamento.”

_______________________________ 52

GRANDIN, T e SCARIANO, M. M. [1999] – Uma menina estranha. Autobiografia de uma autista, São Paulo:

Companhia das Letras.

104

Segundo Brauner e Brauner53

trata-se de um conto “diferente” porque, ao que parece, baseia-

se muito provavelmente em um fato real, em acontecimentos insólitos que o narrador apresenta sob a

forma de conto de fadas. Talvez a origem seja o conhecimento de uma criança com autismo,

estranhamente voltada para si mesma e rejeitada pelos demais. Poderia tratar-se, assim, de uma

história verdadeira. Uma verdadeira história de preconceito contra o diferente.

Joãozinho-porco-espinho-meu (versão de Brauner e Brauner)53

“Era uma vez um camponês que possuía terra e dinheiro em abundância. Entretanto, mesmo

sendo rico, à sua felicidade faltava alguma coisa: ele e sua esposa não tinham filhos. Freqüentemente,

quando ia à cidade, ouvia deboches de outros camponeses que indagavam como ele não tinha filhos.

Assim, irritou-se um dia, chegando em casa, disse: “Quero ter um filho, mesmo que seja um porco-

espinho!”. Sua mulher deu à luz um menino que era um porco-espinho da cintura para cima e um

menino da cintura para baixo. Vendo-o, a mulher assustou-se e disse ao marido: “Não podemos dar-

lhe outro nome a não ser Joãozinho-porco-espinho-meu. Quando o menino foi batizado, o padre disse:

‘Com estes espinhos, ele não poderá permanecer em uma verdadeira cama!’. Então, amontoaram um

pouco de palha atrás de uma estufa e ali colocaram Joãozinho-porco-espinho-meu. Ele não podia nem

mesmo ser amamentado pela mãe, que seria ferida com seus espinhos.

____________________________ 53

BRAUNER, A. BRAUNER, F. [1991] - Il bambino mágico: storia degli autismi, dalle fiabe ai nostri giorni. Finzioni

letterarie e Ealtà clinica. Bologna: EDB.

105

Assim, o menino permaneceu atrás da estufa por oito anos. Seu pai não agüentava mais e

pensava que seria melhor que ele morresse. No entanto, ele não morria e continuava ali, deitado atrás

da estufa.Um dia de feira na cidade, o camponês disse à mulher que iria à feira e perguntou se

precisava de algo. Ela respondeu: “Um pouco de carne, pão, aquilo que precisamos para a casa”. Em

seguida, o camponês dirigiu-se à empregada, que pediu um par de pantufas e meias reforçadas. Por

fim, disse: ‘Joãozinho-porco-espinho-meu, o que você deseja?’. ‘Papaizinho, traga-me uma gaita de

foles!’, respondeu o filho.

Quando voltou, o camponês distribuiu os objetos: a carne e o pão para sua mulher, as pantufas

e as meias para a empregada e, por fim, foi até a estufa dar a gaita de foles a Joãozinho-porco-

espinho-meu. Quando obteve a gaita, o menino disse: “Papaizinho, vá até a estrebaria e mande selar o

meu galinho-quiquiriqui. Quero montá-lo, sair e não voltar nunca mais”.

Contente de poder livrar-se do filho, o pai mandou preparar o galo. Feito isso, Joãozinho-

porco-espinho-meu montou e partiu, levando consigo alguns porcos e alguns asnos que deveria

pastorear, lá embaixo, no bosque.

Chegando no bosque, ele fez com que o galo voasse para cima de uma grande árvore, levando-

o junto. Ali no alto ficou por muitos anos, tomando conta dos asnos e dos porcos. Os animais

aumentaram muito, e o rebanho ficou imenso. Seu pai não tinha notícias dele. Enquanto estava

sentado em cima da árvore, soprava a gaita de foles e produzia uma música muito bonita.

Um dia, passou por ali um rei que estava perdido e ouviu música. Surpreso, o rei mandou um

de seus servos verificar de onde vinha aquela música. O servo procurou, mas não via nada a não ser

106

um pequeno animal sentado em cima de uma árvore: parecia um porco-espinho, montado em um galo;

era o porco-espinho que tocava. Então o rei ordenou ao servo que fosse perguntar-lhe por que estava

sentado lá em cima e se sabia qual era a estrada que o conduziria de volta ao seu reino. Então,

Joãzinho-porco-espinho-meu desceu da árvore e disse que indicaria com prazer a estrada, se o rei lhe

prometesse e garantisse – por escrito - que daria a primeira coisa que encontrasse em seu caminho,

quando estivesse entrando novamente em sua corte.

O rei pensou: se se trata somente disso, posso fazer facilmente, porque Joãozinho-porco-

espinho-meu não compreenderá nada e posso escrever aquilo que eu quiser. Pegou uma pena, tinta e

escreveu alguma coisa depois que Joãozinho-porco-espinho-meu havia indicado a estrada. Desse

modo, o rei chegou em sua casa sem dificuldade. Sua filha, que o observava de longe, estava muito

feliz, foi ao seu encontro e o beijou. O rei pensou então em Joãozinho-porco-espinho-meu e contou à

filha aquilo que havia acontecido e como ele teve de prometer a um estranho animal a primeira coisa

que teria encontrado no seu caminho de volta para casa. Disse ainda que o animal estava montado em

um galo, como se fosse um cavalo, e que tocava muito bem. Por fim, confidenciou à filha que havia

escrito que Joãozinho-porco-espinho-meu não receberia nada em troca: ele não sabia mesmo ler! A

Princesa ficou muito contente e disse que era bem-feito e que com aquele animal ela não iria nunca.

Joãozinho-porco-espinho-meu continuava a pastorear os asnos e os porcos, sentado em cima

da árvore, sempre alegre, tocando a sua gaita. Um dia, passou por ali um outro rei, com os seus

servos. Ele também estava perdido e o bosque era tão grande que o rei não sabia mais como voltar

para casa. Este rei também ouviu de longe a bela música e disse a um de seus servos que gostaria de

saber de que se tratava e que fosse verificar mais de perto. O servo foi e viu Joãozinho-porco-espinho-

107

meu montado no galo, em cima da árvore. Perguntou-lhe, então, o que fazia lá em cima e ele

respondeu: “Pastoreio meus asnos e meus porcos, mas posso ajudá-lo em algo?”. O servo explicou

que estavam perdidos e que não conseguiam voltar o reino, perguntando-lhe se não poderia indicar

o caminho.

Joãozinho-porco-espinho-meu desceu da árvore com seu galo e disse ao velho rei que poderia

ajudá-lo a encontrar a estrada, somente se ele lhe desse a posse da primeira coisa que encontrasse

diante do seu castelo. O rei concordou e assinou uma carta de compromisso na qual garantia que

daria a Joãozinho-porco-espinho-meu o que este havia pedido. Dessa maneira, Joãozinho-porco-

espinho-meu colocou-se na frente do grupo e cavalgou o seu galinho-quiquiriqui, servindo de guia e

fazendo com que o rei pudesse voltar ao seu reino sem dificuldade.

Quando chegou no pátio do castelo, o rei sentiu uma grande alegria. Ele tinha uma única filha,

muito bonita, que correu ao seu encontro, abraçou e beijou o pai, feliz por tê-lo de volta. Depois, a

princesa perguntou ao pai onde havia estado, por todo aquele tempo, viajando pelo mundo. O rei

contou que, depois de perder-se, havia corrido risco de não mais poder voltar para casa. Entretanto,

atravessando um grande bosque, havia encontrado um tal meio porco-espinho e meio homem, que

cavalgava um galo e permanecia no alto de uma árvore, tocando uma bela música. Esse desconhecido

o havia auxiliado, fazendo com que se livrasse dos problemas e indicando-lhe a estrada, mas, em

troca, havia sido obrigado a prometer que lhe daria a primeira coisa que encontrasse ao voltar para

casa. Ocorre que havia encontrado justamente a filha e estava desolado. A princesa respondeu que

acompanharia, de bom grado, aquele tal, quando ele viesse, por amor ao seu velho pai.

108

Joãozinho-porco-espinho-meu, no entanto, cuidava de seu rebanho que crescia sempre mais.

Os animais tornaram-se tão numerosos que encheram o bosque. Então, Joãozinho-porco-espinho-meu

não quis permanecer por muito tempo no bosque e mandou dizer a seu pai que esvaziasse os

chiqueiros do vilarejo, porque deveria chegar uma grande quantidade de porcos e que haveria carne

em abundância para todos. Ao ouvir a notícia, o pai entristeceu-se, porque pensava que o filho já

tivesse morrido há muito tempo. Joãozinho-porco-espinho-meu montou o seu galinho-quiquiriqui e

levou os porcos até o vilarejo, deixando que matassem os animais. Foi uma grande matança, tanto que

o barulho poderia ser ouvido a duas horas do vilarejo. Depois disso, Joãozinho-porco-espinho-meu

disse: ‘Papaizinho, mande ainda uma vez mais selar o meu galinho-quiquiriqui, pois vou embora e não

voltarei mais, enquanto for vivo’. O pai mandou selar o galo e estava muito contente por saber que

Joãozinho-porco-espinho-meu não voltaria nunca mais.

Joãozinho-porco-espinho-meu cavalgou até o primeiro reino. O rei havia ordenado que, se

vissem chegar um tal montado em um galo e carregando uma gaita de foles, deveriam atirar, desferir-

lhe golpes e impedir que chegasse até o castelo. Portanto, quando Joãozinho-porco-espinho-meu

estava se aproximando, foi atacado com espadas. No entanto, ele fez com que o galo voasse e fosse

pousar na janela do rei, gritando que este deveria entregar-lhe aquilo que havia prometido, porque,

senão, ele mataria o rei e a sua filha. Nesse momento, o rei começou a convencer a filha a sair e

encontrar Joãozinho-porco-espinho-meu para salvar as suas vidas. A moça vestiu-se toda de branco, e

o pai deu-lhe uma carruagem com seis cavalos, acompanhantes, dinheiro e bens. Quando ela subiu na

carruagem, Joãozinho-porco-espinho-meu acomodou-se ao lado da princesa, com seu galinho e sua

gaita. Assim, cumprimentaram todos e partiram. O rei pensou que nunca mais os veria.

109

Entretanto, os acontecimentos foram bem outros. Depois que estavam na estrada, Joãozinho-

porco-espinho-meu tirou o belo vestido da moça e feriu-a com sua couraça de espinhos, até que esta

ficasse sangrando e disse-lhe: “Eis a recompensa por sua deslealdade, vá, não quero saber de você!”.

Dessa forma, ele a enxotou, mandando que fosse embora e voltasse para casa. Pelo resto de sua vida,

ela se envergonhou por aquilo que havia acontecido.

Joãozinho-porco-espinho-meu continuou sua cavalgada, carregando sua gaita, em direção ao

segundo reino, aquele do outro rei que havia encontrado o caminho graças à sua ajuda. Este rei havia

ordenado aos súditos que, diante da chegada de alguém que pudesse ser Joãozinho-porco-espinho-

meu, deveriam apresentar as armas gritando “Viva!” e conduzi-lo ao castelo. Quando a filha do rei o

viu, assustou-se, porque Joãozinho-porco-espinho-meu tinha um aspecto realmente estranho, mas

pensou que havia feito uma promessa ao pai. Assim, a princesa, deu as boas-vindas ao visitante e logo

eles se casaram. Houve festa e Joãozinho-porco-espinho-meu teve de sentar-se à mesa real com a

noiva ao seu lado. Depois que anoiteceu, quando chegou o momento de ir dormir, a princesa tinha

muito medo dos espinhos. O noivo disse-lhe que não havia motivo para ter medo e que ele não lhe

faria mal algum. Assim, disse também ao rei que providenciasse quatro homens, que estes deveriam

vigiar a porta do quarto nupcial e acender uma grande fogueira. Quando entrassem no quarto para ir

deitar, sairia de dentro de sua pele de porco-espinho, que seria deixada aos pés da cama. Então, os

homens deveriam pegar a pele e jogá-la no fogo. Desse modo, ele estaria livre do encantamento. Assim

ocorreu. Ao livrar-se da pele e deitar-se na cama, notaram que o seu corpo era como aquele de

qualquer outro homem, mas era preto como carvão, como se tivesse sido queimado. O rei chamou o

seu médico que o lavou com ungüentos suaves e cobriu-o de bálsamo. Joãozinho-porco-espinho-meu

110

tornou-se branco e era um jovem bonito. Quando a filha do rei o viu, ficou muito contente. No dia

seguinte, todos acordaram alegres, comeram, beberam e, então, o matrimônio foi verdadeiramente

festejado, e Joãozinho-porco-espinho-meu foi coroado rei pelo velho monarca.

Alguns anos depois, Joãozinho-porco-espinho-meu viajou com sua esposa para ir até o seu pai

e dizer que era seu filho. Seu pai respondeu que não tinha filhos: havia tido um, nascido com espinhos

como um porco-espinho e que havia saído pelo mundo. Então, ele se apresentou e revelou sua

identidade. O pai ficou muito feliz e foi com o filho para o seu reino.

Larga é a folha, curta é a vida. Diga a sua, que eu digo a minha.”

2.2.8 - PRECONCEITO DE GERAÇÃO

2.2.8.1 - Preconceito em relação ao velho

Velho, querido velho...

Sabe, velho querido, você é mais importante hoje do

que quando trabalhava com todas as suas forças, da manhã à noite,

todo o dia e todos os dias. Não é pra consolar você; não: você é sabedoria acumulada, é caminho

exprimentado; da família, você é a história viva... da sociedade a viva memória. Você é o ontem que hoje sou... é o hoje que amanhã serei.

Attilio Hartmann

111

Na África onde ainda vigora a cultura oral sabe-se que “cada ancião que morre é uma biblioteca

que se queima.54

No Japão os velhos são respeitados enquanto guardiães das tradições. Já nas

sociedades ocidentais contemporâneas, fortemente ancoradas na produtividade, os velhos costumam ser

vistos como descartáveis, por estarem fora da população economicamente ativa.55

Por isso, VELHO costuma estar associado a algo que não serve mais, ultrapassado, fora de

moda ou pior ainda decrépito, “lelé da cuca”...

Os textos a seguir dão uma idéia dos preconceitos contra a velhice.

“Eu ouvi o velho, o velho homem dizer, ‘tudo se altera, e um por um caimos fora.’ Eles tinham

mãos como garras, e seus joelhos eram torcidos como as velhas árvores moldadas pelas águas.

Eu ouvi o velho, o velho homem dizer, ‘tudo o que é belo é levado embora como as águas.’ ”

W.B. Yeats56

_________________________________ 54

AMADOU HAMPÂTÉ BÂ, [2003] Amkoullel, o menino fula. São Paulo: Palas Athenas/Casa das Áfricas. 55

O Brasil ingressou no grupo dos 10 países que, juntos, tem 62% da população mundial com mais de 60 anos de idade.

Hoje, 2% (17.6 milhões) dos idosos do mundo são brasileiros. China, Índia, Estados Unidos, Japão, Rússia, Alemanha,

Itália, França e agora o Brasil, nessa ordem compõem o grupo. (Fonte: OESP, 13/04/2006, p. A-18). 56

In: HOOPER, F.[1969] The language of prejudice, England, Penguin, p.27.

112

Crianças e Velhos

Dois dos maiores grupos de ‘outsiders’ que existem em uma sociedade são os velhos e os

jovens. Ambos são incompreendidos e também semelhantes porque vulneráveis de forma similar. Os

velhos são rejeitados por estarem fora de época ou pior ainda por serem inúteis e os jovens por serem

arrogantes, barulhentos, irracionais e irresponsáveis...

Se a nossa sociedade não fosse tão centrada na idade, poderíamos conviver melhor... Por

exemplo se um homem de 50 anos casa-se com uma jovem de 18 anos podemos ouvir comentários

sobre ele do tipo: ‘velho demais... dá para ser o pai’, o que é uma coisa curiosa e irrelevante se

pensarmos que o principal é saber se são felizes. Da mesma forma ouvimos dizer freqüentemente que

alguém é ‘muito jovem para compreender’ o que é o método utilizado pelos adultos para manter os

jovens no seu lugar.

Fonte: HOOPER, F. Idem, ibidem

113

2.2.8.2 – Preconceito em Relação a Criança

Antiguidades

Criança, no meu tempo de criança, não valia mesmo nada. A gente grande da casa

Usava e abusava...

Cora Coralina

Na História da Humanidade, o número de habitantes da Terra foi aumentando, aumentando...

Isso aconteceu porque os avanços da medicina e da organização social foram sendo capazes de

reduzir as altíssimas taxas de mortalidade infantil dos primeiros tempos. Essas taxas podem ser

consideradas indicadoras do preconceito anti-criança que sempre cercou a infância na tradição greco-

romana e judaico-cristã da civilização ocidental. Por isso mesmo, a despeito da grande quantidade de

crianças existentes na terra (e até por causa disso) sua história pode ser lida como “A LONGA

JORNADA DA DOMESTICAÇÃO AO PROTAGONISMO INFANTO JUVENIL”, como se mostra

na Figura a seguir:

114

Figura 6 - A Longa Jornada da Domesticação ao Protagonismo Infanto Juvenil

115

A linha do tempo construída mostra que a DOMESTICAÇÃO ANCESTRAL dos adultos sobre

as crianças fez com que estas fossem concebidas durante muito tempo como seres “menores”, não

merecedores de serem vistos e ouvidos (Pré-História da Infância), vistos mas não ouvidos (Emergência

do sentimento de infância), vistos mas não ouvidos ainda (Emergência da idéia de Infância).

Interessante notar quantos milhões de crianças enfrentaram esses “olhares” preconceituosos,

confirmando uma vez mais que quantidade não é documento. O preconceito anti-criança só começou a

abrandar-se57

com a Emergência do valor da infância no século XX do milênio passado, à medida que

a cultura adultocêntrica de dominação da criança pelo adulto, foi cedendo espaço a uma outra,

puerocêntrica de reconhecimento do valor e do poder da infância, segundo a qual crianças são para ser

vistas e ouvidas SIM e para ser sujeitos ativos da própria história social e pessoal. Olhando a história

de longa duração da infância compreendemos porque certos autores58

se perguntaram surpresos e

indignados “que história é esta”: uma história de tratamento-cruel59

com práticas de batismo gelado,

enfaixamento, abusos sexuais, infanticídio (doméstico, em rituais60

) aterrorização por (monstros,

_____________________________________ 57 Mudanças em relação à condição e lugar social da criança ocorreram devido a modificações na estrutura social, na organização

familiar, nos métodos de criação de filhos, na especialização das instituições, nas concepções de infância (Cf Áriès, P. [1978] – História

Social da Criança e da Família, RJ, Zahar. BADINTER, E. [1985] Um amor conquistado – O mito do amor materno. RJ: Nova Fronteira). 58 ARCHAD, D. [1993] Children rights and childhood, N.Y, Reutledge. 59 Idem, ibidem. 60 Resquícios dessas práticas são as notícias sobre: a) crianças bruxas. Crianças de origem africana são submetidas a torturas sistemáticas

nas comunidades de imigrantes da Inglaterra, a pretexto de exorcismo. Fonte: Mario Vargas Llosa (OESP, 12/06/2005, p. A-20). Imagens

de esqueletos de dois recém nascidos mortos há 27 mil anos (escavados em Krems, na Áustria). Sugerem que os corpos foram

submetidos a rituais, indicando que a participação de crianças nestas práticas é um costume mais que milenar. b) sobre venda de meninas

por pais que fazem de suas filhas moeda de troca. “Em terras distantes e isoladas da África como o Norte do Maláwi – onde os meninos

são mais valorizados do que as meninas, os homens mais velhos dão valor as esposas jovens, os pais cobiçam dotes e as mães não tem

poder para intervir – muitas meninas africanas são obrigadas a passar diretamente da infância para o cssamento, diante de uma simples

palavra de seus pais, as vezes anos antes de chegar a puberdade. As conseqüências destas uniões forçadas são estarrecedoras:

adolecescência e estudos interrompidos precocemente, gravidez precoce e partos de alto risco, mulheres adultas condenadas à

subserviência e, nos últimos anos, exposição ao HIV, o vírus causador da AIDS. Fonte: Sharon Lafraniere New York Times In: Folha

Mundo, 03/12/2005. c) indiozinhos famintos por não representarem prioridade em suas tribos “na etnia guarani – é comum que os pais se

alimentem antes dos filhos, deixando para as crianças o que restou da comida. Como geralmente são muitos filhos por casal, o alimento

costuma não ser suficiente para todos. Fonte: Nicola Pamplona. Tristes tribos dos indiozinhos famintos. (OESP, 27/02/2005, p.A-11).

116

judeus, diabo, etc) – uma história de tratamento abandônico61

(venda, asilamento especialmente em

casos de bastardia) – uma história de tratamento formal, distante – sem carinhos, sem mimos...62

A

história da infância – que se confunde com a própria História da Humanidade, na medida em que todos

nós fomos crianças um dia – é uma HISTÓRIA de DISCRIMINAÇÃO e SUBMISSÃO.

Como, uma espécie de contraponto, ao longo da história pessimista da infância (baseada no

preconceito anti-criança) foi sendo construída lentamente a história otimista dessa mesma infância

(baseada no preconceito pró-criança) e que ganha força, sobretudo na modernidade com a emergência

do MITO da INFÂNCIA.

Como, afirma Chombart de Lauwe, a infância é um mito moderno por excelência.

Enquanto tal é a representação da criança idealizada, da criança autêntica, modelo positivo por

excelência... Seu antinômico, o adulto – norma ou o futuro adulto, induz a valorização negativa inversa:

a oposição constante entre as características que expressam a vida, a espontaneidade, a liberdade, a

verdade, a comunicação direta com o outro e o universo e características que significam as normas

esclerozantes, os a priori, as imposições, os fechamentos, etc ...63

É a visão idealizada da criança64

________________________ 61

ARCHAD, idem, ibidem. 62

POLLOCK, L. [1983] Forgotten Children/parent – child relations from 1500 to 1900 Newcastle, Cambridge University

Press. 63

CHOMBART de Lauwe, Marie-José, [1991] Um outro mundo: a infância. São Paulo: Perspectiva: EDUSP. 64

O mito da infância deita raízes nas concepções medievais de CRIANÇA SANTA, INOCENTE, PURA, VIRGEM,

SUBMISSA, mas CORAJOSA, capaz inclusive de morrer por um ideal, como ocorreu na chamada CRUZADA das

CRIANÇAS (1212) organizada por Nicolas de Conia e Stephen de Cloyes. Mais remotamente guarda relação com

HERÓIS-CRIANÇA como HORUS, menino-filho de Isis e Osíris, deus da realeza egípcia por ter vingado a morte do pai,

assassinado por seu tio SET.

...

117

2.3 – Uma reflexão intermediária

O preconceito é um fenômeno que tem várias peculiaridades. Uma delas é a cumulatividade.

Assim, se ser judeu pode ser uma tragédia, ser judeu de faces negras pode ser uma tragédia ao

quadrado. É o caso dos falashas65

, judeus africanos que acreditam descender em linha direta da união

entre o rei Salomão e a rainha de Sabá (embora isso sempre tenha sido negado seja pelas tradições

cristãs no norte da África e judaico ortodoxa)

Uma outra peculiaridade do preconceito é a de que pode conduzir a formas extremas de

discriminação, como por exemplo, o Holocausto.

Uma terceira característica é a de que todo preconceito é aprendido. Ninguém nasce

preconceituoso: aprende-se a sê-lo!

______________________________ 65

Cf filme: Um Herói do Nosso Tempo (Va, Vis et Deviens) Direção, Radu Miha Leanu. Produção França – Israel, 2004

(140 minutos).

118

3.0 – VOCÊ SABE QUE O TERMO CRIANÇA PODE ESCONDER

PRECONCEITO?

Muitos de nós certamente já ouviram estas frases: “ crianças, hora de dormir!”

“Não seja CRIANÇA!”

A diferença entre elas é que no 1º caso, o termo CRIANÇA é usado como substantivo para

designar seres humanos concretos, crias da espécie, enquanto no 2º, é empregado como adjetivo

para sinalizar uma condição ou conduta própria de seres humanos “inferiores”. Dizemos, então, que

se trata do emprego IDEOLÓGICO66

do termo criança, ancorado numa concepção falsa, porque

preconceituosa.

Embora tenhamos tido, ao longo da História da Humanidade, milhões de criancinhas, sua

representação esconde um componente sutil de DESVALOR que pode ser detectado na idéia

mistificadora da criança-CRIANÇA.

__________________________ 66

A palavra ideologia foi criada no começo do século XIX para designar uma "teoria geral das idéias". Foi Karl Marx quem

começou a fazer uso político dela quando escreveu um livro junto com Friedrich Engels intitulado A ideologia alemã. A

ideologia pode dominar todos os nossos atos. Quando nos convencemos da verdade dessas idéias, passamos a agir

inconscientemente guiados por elas, ou seja, o corpo de idéias constituído atravessa nosso pensamento sem nos darmos

conta e passamos a desejar o que o outro determina.

Fonte: http://www.suigeneris.pro.br/filo_ideologia.htm

119

A. – A criança – CRIANÇA e as assimilações históricas

Na idéia mistificadora da criança-CRIANÇA, isto é, da criança enquanto um ser MENOR,

subalterno, no processo de relacionamento com ADULTOS, a palavra CRIANÇA, enquanto adjetivo

carregado de um sentido desvalorizador do ser criança, é o repositório de uma longa tradição histórica,

em que a criança foi sendo assimilada aos fracos da sociedade: - escravos, negros, criados, povo,

mulheres...

“Não só as crianças são crianças ou foram consideradas como crianças: os escravos na

Antigüidade, os negros colonizados, os criados, o povo e as mulheres têm sido chamados de crianças e

foram freqüentemente tratados como crianças.”67

Cinco assimilações históricas vão indicadas a seguir.

A.1 - O ESCRAVO ANTIGO É UMA CRIANÇA

Na Antigüidade greco-latina, um dos costumes mais arraigados era a de punir com castigos

corporais tanto as crianças quanto os escravos. Essa é uma prova contundente da assimilação entre os

dois: o mesmo tratamento lhes é dispensado.

Chama-se criança (∏AIS – paidos) ao escravo, seja qual for a idade deste. A criança na família,

é confiada a um escravo particular - o pedagogo – que a acompanha sempre de perto. “Dentre as

pessoas da casa, o conjunto dos escravos está muito próximo da criança e se ocupa dela.”

A assimilação criança-escravo é transparente em textos de Platão, Aristóteles, Sêneca.

_____________________________ 67

SNYDERS, G. [1984] Não é fácil amar os nosso filhos. Lisboa, Publicações Dom Quixote, p. 25, 26, 34, 36, 38, 41, 45,

46, 47, 49, 50, 51, 53, 54, 55, 56, 58, 60, 61, 62, 68, 69.

120

- PLATÃO – “As crianças não podem passar sem pessoas que as conduzam, assim como os

escravos não podem passar sem senhores” (Platão, Leis VII, 808 d).

- ARISTÓTELES – “Ninguém se prejudica a si próprio, nem comente injustiças para consigo

próprio” (Ética a Nicômaco, V. 10, 1134 b). Para o filósofo, fazer mal ao escravo ou ao filho, seria para

o senhor e para o pai, o mesmo que causar o próprio prejuízo: comportamento absurdo que nem sequer

é necessário proibir em lei. “Assim é afirmada uma comunidade de destino entre a criança pelo menos

até que tenha atingido uma certa idade’ e o escravo para toda a sua vida: ‘pertencem propriamente’ ao

senhor, ao pai, ‘fazem parte’, são ‘uma parte’ do senhor, do pai.”

- SÊNECA – “Os atrevimentos dos nossos escravos divertem-nos (porque o escravo está tão

longe, tão baixo, que nada do que diz e faz pode atingir o senhor). Também quando as crianças puxam

os cabelos dos pais ou ‘descobrem, na frente, aquilo que o pudor quer que se esconda’, o adulto não vai

se zangar por causa disso. Em relação ao senhor, crianças e escravo estão ‘demasiado abaixo dele’ ”

(De Constantia Sapiens, XI).

Criança e escravo não têm individualidade. Sua existência é relativa: não estão separados de um

outro que tem poder sobre eles. Não têm vida própria, autonomia.

Criança e escravo estão na mesma região de existência ou de inexistência. Daí terem sido

alijados de uma participação plena e completa na vida social e na cultura da época.

O escravo é um ser do qual se desconfia, como se percebe através do relato de suas revoltas.

As crianças e, especialmente os adolescentes, também não merecem confiança e devem ser contidas.

O protótipo dessa visão redutora e inferiorizada da criança está na representação de EROS, o

deus-criança. EROS ou Cupido, deus do Amor, foi imaginado como uma criança travessa, um ser

121

hermafrodita, alado, disparando dardos que produzem o amor (Eurípedes/Teócrito). Segundo Hesíodo,

Eros é o mais belo dos deuses, mas também um dos mais perigosos porque debilita deuses e homens,

subjugando-lhes a alma e a vontade. Eros, portanto, assim como a criança, é inconseqüente, leviano e

perigoso. Não merece, pois, confiança!

A.2 - OS NEGROS SÃO CRIANÇAS GRANDES

Essa assimilação tornou-se aparente no século XIX e princípios do século XX, na época do

desabrochar da colonização, em escala planetária.

A assimilação negro-criança fez-se em dois sentidos: um pessimista, negativo e outro,

idealizado, laudatório.

Ambos redutivos e inferiorizadores:

→ a vertente PESSIMISTA

- O retrato do negro nessa vertente tem evidentes semelhanças com a criança

quanto a:

- INTELIGÊNCIA - Criança e negro estão, por assim dizer, na INFÂNCIA DA RAZÃO. O

negro, como a criança, nunca atinge o nível de pensamento abstrato.

- SENSIBILIDADE – O negro e a criança são dotados de aguda sensibilidade. Vivem a vida

dos sentidos (sensações, sensibilidade, sensualidade). São “intuitivos”, irracionais,

caprichosos.

- CARÁTER – A criança e o negro vivem no presente. Orientam-se pelo princípio do prazer,

não sendo capazes de guiar sua vida em termos prospectivos. Enquanto a criança via de regra

122

recusa o trabalho escolar, o negro também não se entusiasma pelo trabalho que o colonizador

pretende impor-lhe. Criança e negro pensam mais em divertir-se do que em produzir. Mas,

assim como o negro, a criança pode ser má, pode deixar-se arrastar pela cólera, pela crueldade.

A maldade da criança – tão comum em escritores do século XIX – seria a mesma do primitivo.

→ a vertente LAUDATÓRIA

- É a idéia do BOM SELVAGEM, enquanto versão idílica do BOM MENINO, que está no

fulcro desta vertente. Trata-se de um tema caro à literatura do século XVIII.

- Segundo essa ótica, africanos são os filhos da natureza. Estão, portanto, mais próximos da

criança enquanto “ser mansamente natural, simples, instintivo.”

Tanto a criança quanto o negro nos fazem retornar à natureza ‘nova, simples, bela,

inocente, sem artifício’. Tanto um quanto o outro, vivem no mundo mais primitivo, mais

original, ainda não deformado pela civilização, Encarnam o ingênuo, inocente, espontâneo.

Mantendo as qualidades infantis, o africano manteria a alegria de criança e, tal como esta,

viveria em plena felicidade. É o mito da infância feliz, travestido de vida selvagens feliz...

- Esse “retrato deformado” foi pintado, sobretudo, por antropólogos - “Há povos primitivos que

são povos criança” (Taine, 1870).

- É preciso considerar a “disposição infantil do negro” (Abel Hovelacque, 1889).

- “A criança apresenta, num estado passageiro, as características mentais que se encontram, nas

civilizações primitivas, em estado fixo” (Taine, 1870).

- “A inteligência do negro adulto ficou, por causa de uma espécie de parada do

desenvolvimento, no ponto em que a observamos nos adolescentes da raça branca” (De

123

quatrefages, 1860). “Na espécie negra, o cérebro é menos desenvolvido do que na espécie

branca” (Larousse).

- Como conseqüência do “retrato deformado” :

→ o negro, como a criança, não é confiável , nem digno de atenção.

“As suas preocupações, assim como suas queixas são propriamente infantilidade... as

dificuldades, os desgostos, as queixas dos negros, não serão tomadas mais a sério do que as das

crianças”;

→ o negro, como a criança, deve ser colonizado. Uma das justificações “teóricas da colonização é

fazer do negro uma criança.

Fundamentar a dominação colonial, identificando-a com a mesma subordinação que parece

ser a mais natural, a mais incontestável: a dos filhos aos pais - o que permite, além disso,

apresentá-la como missão educativa ou mesmo civilizadora.”

A.3 - OS CRIADOS SÃO CRIANÇAS

Também os criados na família tradicional do século XVI são tratados como crianças e aparecem

como tais.

“Nós próprios para agirmos bem, nunca deveríamos por a mão nos nossos servidores enquanto a

cólera não nos passar.”

Essa assimilação tem sua “justificativa” na apresentação da relação senhor-criado como

semelhante à relação pai-filho.

124

“O século XVII acha muito natural passar, com continuidade, das relações pais-filhos para as

relações senhores-criados. Freqüentemente é o quarto mandamento do Decálogo que serve de

justificação teórica para essa passagem de uma coisa para outra; ele prescreve ao filho que louve ao pai

e mãe – e para tornar isso extensivo a todas as autoridades, tomar-se-á como grau intermédio, a relação

entre servidores e os senhores”. Durante o século XIX, não apenas os costumes, mas também a Lei,

assimilam os criados às crianças: por exemplo, um decreto de 1810 proibe os comerciantes que

comprarem seja o que for “aos filhos de família ou aos criados, sem consentimento expresso e por

escrito do pai ... e do senhor.” Existiu mesmo um estatuto sueco de 1813 que proibia aos estalajadeiros

venderem qualquer licor forte aos estudantes, aprendizes e criados. Quando os franceses conquistaram

o direito de voto, foram dele excluídos os menores, as mulheres e os criados até 1848. Mesmo depois

de 1848, não podiam, tal como os menores, ser conselheiros municipais nem jurados. A razão é que o

criado vive sob o teto e a proteção de um outro, abdicando pois da responsabilidade por sua própria

vida.

O tema do criado, enquanto eterna criança, será incansavelmente desenvolvido na literatura,

especialmente cristã. “Os criados encontram (no seu senhor) um pai eterno e carinhoso... deveis servir-

lhes de pai”. (Abbé Claude Fleury, 1680).

“ Numa casa cristã os criados são olhados quase como filhos e os senhores amados como pais”

(Bourdalone, 1716).

“Os senhores contraíram as obrigações dos pais e das mães para com seus criados”.

(Catéchisme du diocèse de Mácon, 4º commandement, 1716).

125

A justificativa da relação senhor-criado como extensão da relação pai-filho é ideológica na

medida em que o que visa é justificar a autoridade paterna e torná-la extensiva a outros dominados.

“Por um lado, justificar as relações hierárquicas, assimilando-as àquela que parece ser a mais

natural, mais indispensável; por outro lado, dar mais brilho e solidez ao papel paterno, alargando-o para

além da família estrita; deixaria de constituir um caso excepcional e isolado. É o grande sonho da

autoridade exercida com base numa dedicação recíproca e não na oposição de interesses nem na luta

(ainda não se diz luta de classes); e esse seria o modelo para toda a esperança; pode-se pensar que ele

desempenha um papel propício à exaltação de poder por afeição, dado que os criados começam muitas

vezes a sê-lo ainda jovens e vivem no meio de uma certa familiaridade com a família. A conseqüência

da assimilação criado-criança é tripla:

→ suspeição – “Os criados são crianças das quais se desconfia ao extremo; desconfia-se deles

como se desconfia das crianças e ainda mais porque são criados. Quanto a este assunto, é essencial

compreender que os dois tipos de desconfiança se reforçam um ao outro, se alimentam um ao outro.

Desconfia-se deles nas suas relações em geral, mas principalmente nas suas relações com as crianças e

da influência que sobre elas podem adquirir: o catecismo de Mácon fala de” “homicídio espiritual” a

propósito dos pais que confiam os filhos aos criados, sem se ter rodeado de garantias suficientes.” A

suspeição transparece nas leis extremamente severas para os roubos cometidos por criados: acredita-se

que as tentações são grandes e que eles não sabem resistir a elas, crianças que são”;

→ desdém – O criado é um ser demasiado fraco. É um desvalorizado, só que desta vez, bem

próximo da criança. É um inferior;

126

→ controle – Tal como as crianças, os criados devem ser constantemente fiscalizados e

vigiados. Devem ser DOMESTICADOS já que são seres fracos que não sabem conduzir-se por si

próprios. O abade Gaume afirmava que os senhores têm a obrigação de “vigiar o seu comportamento.”

(Abbé J.J. Gaume [1854]– Catéchisme de persévérance, 8º vol., t 4, Lição L, 1854). O criado é uma

criança destinada a permanecer criança. Os criados, como as crianças, devem ser mantidos em sua

condição de inferiorizados. Seu controle não está destinado a levar à autonomia.

“Há três coisas que não devem faltar aos criados: pão, porque a ele têm direito; trabalho, porque

essa é a sua condição; ralhos e castigos, porque esse é o nosso interesse.” (Abbé Armand de Gerard

[1680] Lês Entretiens de Philemon et de Théandre, 3ª entretien).

A relação pai-filho, assim como a relação senhor-criado, pode ser, portanto, uma relação de

exploração material e afetiva. Os filhos, como os criados, poderão ser mantidos em estado infantil, por

ser mais vantajoso ou mais cômodo para o pai-patrão.

A.4 - O POVO (ESPECIALMENTE OS OPERÁRIOS) SÃO CRIANÇAS

A assimilação povo-criança aparece em inúmeros autores.

“O povo, ou aqueles cujas ocupações mecânicas e contínuas retêm num estado habitual de

infância... ” (De Bonald, [1854] Theorie de l’education sociale).

“Diz-se que os operários se assemelham, em certos aspectos, às crianças.” (Levasseur [1904]

Histoire des classes ouvrières).

“O homem do povo ficou no estado de criança” (Niceforo[1905] Les classes pauvres).

127

“As pessoas do povo são, como as crianças, dependentes, pouco cultivadas, pouco próximas da

natureza e sujeitas à opressão.” (Taine [1858] Essais de Critique et d’Histoire).

“Muitos pobres (trata-se particularmente dos operários indigentes que pedem auxílio)

assemelham-se à criança.” (Villeneuve-Bargemont [1834] Economie politique chrétienne, C III).

“Operário das tecelagens tem muitas semelhanças com os alunos das escolas.” (Th Barrois

[1837] Revoltes Logiques, nº 3).

“O povo é uma criança sublime e egoísta.” (La Tour du Pin e Albert de Mun, cf Rollet [1947]

L’action sociale des catholiques em France).

O infantilismo ou a infantilidade do povo enquanto pertencente ao grupo dos FRACOS

(socialmente falando) envolve duas características principais:

→ ignorância: “Os operários são crianças, em primeiro lugar, por causa de sua ignorância e,

portanto, da sua quase impossibilidade de se erguerem até as idéias abstratas, complexas” ;

→ imprevidência: Vivem o aqui, agora.

Cedem ao prazer que os atrai, sem pensarem no arrependimento do dia seguinte.” (Levasseur

[1904] Histoire des classes ouvrières).

“O operário das tecelagens não possui qualquer espécie de previdência.” (Th Barrois [1837]

Revoltes Logiques, nº 3).

“Esta imprevidência pode também e, sobretudo, ser apresentada como infantil e será descrita

com termos que empregamos freqüentemente a propósito das crianças: há os que falam de “ligeireza”

(Villeneuve-Bargemont [1834] Économie politique chrétienne, outros de ‘desordens’ ( Bertrand [1873]

128

Journal de la Societé de Statistique). Os mais sábios evocam a ‘impulsividade’, ‘uma vida emocional

imediata’, devida a que ‘os centros de inibição (são) fracos, impotentes’, tanto no povo como na

criança.”

A resultante desse retrato pueril do povo, da identificação deste como pertencendo ao grupo dos

não ajuizados é dupla: de um lado, trata-se de culpabilizar a vítima, isto é, de culpar o povo pela sua

situação de miséria. “O mau comportamento ou a imprevidência (dos operários), que os mergulha na

miséria... Quanto mais mergulhados estão na miséria e no desgosto, mais procuram o esquecimento na

embriaguês.” (Villerme [1840] Tableau de l’ état physique et moral des ouvriérs);

- de outro lado, trata-se de considerar o povo, como conformando ‘as classes perigosas’ (Fregier

[1873] Des classes dangereuses dans la populations des grandes villes et des moyens de les rendre

meilleures) capazes de desordens e brutalidades decorrentes, (nessa visão), de sua própria

impulsividade e incontinência.

→ A conseqüência última desse duplo mecanismo está em negar qualquer base real às

reivindicações operárias e em desconsiderá-las, tal como se desconsidera as reivindicações infantis,

como sendo INFANTILIDADES.

Ao retrato pessimista do povo criança contrapôs-se um retrato laudatório:

“O povo possui a nobre infância da alma.” (George Sand [1840] Les compagnons du Tour de

France).

“ A criança é o próprio povo”, o povo “antes de ser deformado”, a “a criança é o povo inocente”

(Michelet [1846] Le peuple).

129

Operários e camponeses pertencem a uma categoria: os simples que comungam com a vida, que

falam a linguagem, da imediaticidade do instinto. Para esses autores, não apenas a criança é o intérprete

do povo como o povo, quando se encarna na criança, é lavado dos seus defeitos: rudeza, vulgaridade...

→ A conseqüência do retrato laudatório é uma tentativa de preservar a criança no povo e o povo

na criança. “A conjunção povo-criança retorna o sonho de suprimir a luta de classes; a inocência e a

pureza da criança, sendo de essência popular, revelam o povo a si próprio; e o com o povo assim

transfigurado, burgueses e proletários vão comungar na mesma emoção.”

Tanto o retrato pessimista quanto o retrato laudatório reforçam a assimilação povo-criança e

têm com resultante principal o reforço do paternalismo, enquanto fórmula para esvaziar a luta de

classes e reduzir o conflito adulto-criança.

“A melhor prova de que os operários são crianças está em que ... patrões propõem-se a servir-

lhes de pais. O paternalismo atravessou os seus melhores momentos entre 1865 a 1895. “Patrão quer

dizer pai”, declara Harmel e La Tour du Pin preconiza uma “paternidade social exercida pelo patrão e

sua família na fábrica” (cf Rollet [1947] L’action sociale dês catholiques em France). Sendo crianças,

os operários não podem tomar iniciativa própria. Só os homens desfrutam de “posição” e “influência”

podem fazê-lo. O povo-criança é demasiado inferiorizado para tomar qualquer iniciativa: é a classe

dirigente que cabe agir por ele, no duplo sentido de “por”: “em seu favor e em seu lugar.”

130

A.5 - A MULHER-CRIANÇA

“O escravo, o negro colonizado, o criado, o povo, constituíam categorias evidentemente

desvalorizadas logo que eram enunciadas... as assimilações com a criança, baseavam-se, acima de tudo,

nos aspectos negativos DESTA...

A mulher, pelo contrário, constituiu a categoria equívoca por excelência: ao mesmo tempo e

pelos mesmos, é amada, exaltada, até divinizada – e na realidade, mas também na imagem que dela se

faz, reduzida a uma perpétua menoridade.”

Essa ambigüidade transparece no discurso de inúmeros autores:

- “A mulher casada é um escravo que é necessário saber por num tronco.” (Balzac, Physiologie

du mariage. Catéchisme conjugal).

“As mulheres permanecem durante toda a vida crianças grandes” ... verdadeiras crianças ... uma

espécie intermediária entre o homem e a criança.”

(Schopenhauer, Sur les femmes, Pensées et fragments).

A mulher é ‘’intelectual e fisicamente um homem cujo desenvolvimento ficou suspenso.‘’

(Lombroso).

“Chamamos figuradamente crianças às pessoas incapazes de se ocuparem de coisas sérias. A

maior parte das mulheres não passa de crianças de mais idade.” (Condillac, Dictionnaire des

synonymes, artigo ‘Enfant’).

O retrato da mulher-criança inclui as seguintes características básicas:

131

1. emotividade – A fraqueza e puerilidade da mulher provêm do primado da sensibilidade sobre a

razão. “Tanto moral como fisicamente, uma sensibilidade diferente da do homem, mais viva.” (Dr.

Briquet [1859] Traité clinique et thérapeutique de l’hystérie).

2. sedutora – A mulher nasceu para ser sedutora, para agradar, para ser amada.

O seu destino social é esse.

→ A conseqüência disso é tripla:

i – A mulher é um ser ideal para lidar com crianças graças, justamente, à sua sensibilidade;

ii – A mulher é um ser ideal para introduzir em todas as camadas da sociedade um ideal de amor e

doçura;

iii – A mulher é um ser fraco.

“Sua fraqueza é simultaneamente o seu atrativo e a garantia de sua submissão ... É flagrante o

paralelo entre estas imagens da mulher-criança e uma certa imagem da criança, entre o amor por

esta mulher-criança e um certo amor pela criança: em ambos os casos, o homem sonha amar e

ser amado por um ser mais fraco, que dominaria, mas que seria, ao mesmo tempo, o ser

maravilhoso, capaz na e pela sua fraqueza de transfigurar as existências.”

A. 6 - UM OLHAR ÀS CINCO ASSIMILAÇÕES...

Enquanto houver, na sociedade, categorias depreciadas, a criança ser-lhes-á assimilada,

como que arrastada, aspirada por elas; os elementos desvalorizantes acumular-se-ão na imagem

que se faz dela, e os seus aspectos positivos, de valorização, terão dificuldade em se revelar e,

132

portanto, o amor que lhe for dado não escapará a um certo desdém. Será um amor

desvalorizado, um amor a um ser “menor de idade” e de “menor poder.”

B – O ADJETIVO CRIANÇA no Português

Realizando uma exploração semântica68

do termo criança em PORTUGUÊS, constatou-se o que

segue.

Quadro 3 - Exploração Semântica do termo criança

___________________________________ 68

A exploração semântica do Termo criança foi feita a partir do Dicionário Ferreira, A.B. de H. ob .cit.

“Seria incorreto pensar que a palavra é apenas um rótulo que designa um objeto, uma ação ou uma qualidade isolada... é

sabido que muitas palavras não possuem um mas vários significados... Para muitos investigadores qualquer palavra é

sempre multi-significativa e polissêmica” (LURIA, A.R. [1987] Pensamento e Linguagem. As últimas conferências de

Luria. Porto Alegre: Artes Médicas).

O TERMO CRIANÇA Exploração Semântica 1. Substantivo Significado bio-psico-social: cria da espécie

►creantia

►criatura

2. Adjetivo ►Significado ideologizado

3. Sentido antigo ►Educação, CRI-AÇÃO

4. Crianço ►Criança de pouca idade

5. Criançola ►Fora da idade de criança mas age como tal

6. Criancice ►1. Ação, dito, modos, procedimentos de criança

2. Leviandade, imprudência, irreflexão

7. Criançada ► a) Reunião de crianças

b) Criancice

133

VERTENTES

I – IN = FANS

Infância (lat. Infantia)

1. Período de crescimento no ser humano que vai do nascimento à puberdade, meninice,

puerícia. Crescimento extremamente rico em todos os domínios, segundo caracteres

anatômicos, fisiológicos e psiquícos. Divide-se em 3 estágios:

Primeira Infância (0 aos 3)

Segunda Infância (3 aos 7)

Terceira Infância (7 à puberdade)

Infantil (infantile) 1. Relativo a criança

2. Próprio para criança

3. Ingênuo, simples, tolo

Infantilidade 1. Qualidade de infantil

2. Ação ou modos próprios da criança

Puerilidade

Infantilizar Tornar infantil. Tornar-se infantil

Praticar atos próprios da infância

Infante 1. Na Infância

2. Filho de rei mas não herdeiro

134

II - Puericia (lat. pueritia)

1. Puericultura (pueri+cultura) Conjunto de técnicas para assegurar perfeito domínio

físico, mental e moral da criança, desde a gestação à

puberdade

2. Pueril (lat. Puerile) Adjetivo

a) Da ou relativo à idade da puerícia

b) Próprio da criança, meninil, infantil

c) Ingênuo, fútil, frívolo

3. Puerilidade Qualidade de pueril

Ato, dito ou modos de criança

Criancice, infantilidade

Futilidade, frivolidade, banalidade

Parvoice, parvulez

4. Puerilismo – (Psiq) Regressão da mentalidade adulta para a da criança,

fenômeno que se assinala por atitudes, linguagem,

ocupações infantis

5. Puerilizar-se Tornar-se pueril

III – Parvulo – (lat parvulu)

1- Parvulo

Adj: Pequenino

Sentido antigo: Parvo, idiota, tolo

2 – Parvulez (De parvulo + ez)

Puerilidade

Idade Infantil

Parvoice

3 – Parvoice

Ato, dito ou escrito de parvo (subst), parvalhice, parvaiçada, parvulez

Qualidade ou estado de parvo, parvidade, parvulez

Demência, loucura, doidice

135

4 – Parvo69

lat. Parvulu, dim. de parvus, pequeno

Pequeno, limitado, apoucado

Tolo70

, irracional, que diz ou pratica tolices sem inteligência ou sem juízo.

Tonto, simplório, ingênuo.

IV – Menor – (lat minore)

Diz-se de pessoa que ainda não atingiu maioridade

Do 2º grau, 2º plano

Pequeno, mínimo

Hierarquicamente inferior, subordinado, subalterno

(Subst.) Indivíduo menor

1. Menoridade (de menor + idade) (Subst.)

a) Estado ou condição de pessoa menor; com idade até 21 anos.

b) A parte ou quantidade menor de um todo. Minoria.

...

_______________________________ 69

Sinônimos de parvo

Amalucado, aparvalhado, apatetado, atolado, atolambrado, atoleimado, bobão, baboso, bajonjo, basbaque, bobo, bolomo,

calino, idiota, imbecil, lorpa, maluco, pacovio, palerma, parvo, paspalho, paspalhão, patego, pateta, patola, tonto, zote,

abestalhado, abobado, abobalhado, abobarado, apombocado, babaca, babaquara, boboca, bocó, débil, leso, mandu, paca,

assonsado, chapelão, pongó, sambanga, soronga, sorongo, saranga, sarango 70

Sinônimos de tolo

Babão, baboso, bajonjo, basbaque, belarmino, beldroegas, bobo, bolonio, calmo, idiota, imbecil, lorpa, maluco, pacovio,

palerma, pancracio, papalvo, papamoscas, parvo, pascacio, paspalhão, patau, patego, pateta, patinho, pato, patola, sebastião,

tonto, zote, aranha, arara, babaca, babaquara, boboca, bocó, débil, gaivota, girolas, leso, mandu, manema, manembro, paca,

pandora, soronga, sorongo, sarangá, sarango, badana, bado, bobó, coió, mama na água, mané, manecocó, mané do jaca,

mané-jaca, sarambé, sarambanga, pongó, leseira, patureba, pengó

136

Aprofundando a exploração semântica e recorrendo à etimologia dos termos de domínio

conexo (infância, puerícia, parvo, menor) constata-se a presença do preconceito, quando a criança é

identificada AO SER QUE NÃO FALA (IN-FANS), PUERIL, TOLO, MENOR...

Em suma ao ESTEREÓTIPO:

ser de menos valia, enquanto projeto de gente (adulta)/de mais valia.

C – O Adjetivo CRIANÇA em línguas estrangeiras

O mesmo preconceito anti criança – camuflado no uso adjetivo do termo em Português – está

presente também em outras línguas.

Quadro 4 – Exploração semântica do adjetivo CRIANÇA em línguas

estrangeiras

________________________ 71

Fonte: http://ipl.si.umich.edu/div/kidspace/hello/... .html, acessado em 11/08/2003.

Termo Língua

Estrangeira

Fonte Consultada Tradução para

Português

Nº de Falantes

da Língua

Estrangeira 71

Árabe Doniach, N.S.

The Oxford English –

Arabic Dictionary of

Current Usage, Oxford,

Oxford University

Press, 1972.

Criança, menino,

infantil.

202.000.000

Child

Inglês Webster’s New

International

Dictionary of the

English Language,

Second edition,

Unabridged, London,

1934.

Pessoa que se

comporta como

criança, pessoa

inexperiente,

inocente.

137

Enfant Francês Robert, Paul.

Dictionaire

Alphabétique &

Analogique de la

Langue Française,

Societé Du Nouveau

Littré, Secrétaire

géneral de la

rédaction : Alain Rey,

1972.

Pirralho, pentelho,

guri, criança, criança

traquina, barulhenta,

endiabrada, pestinha,

criança prodígio

Kind Alemão Tochtrop, Leonardo.

Dicionário Alemão –

Português, 5ª edição, 1ª

impressão, Editora

Globo, Porto Alegre,

s/d.

Feito criança, pueril,

infantil, ingênuo,

inocente

118.000.000

Niño Espanhol Almoyna, Julio

Martinez. Dicionário

Espanhol –Português,

Porto Editora, Portugal,

1965.

Que tem pouca

experiência, pessoa

de pouca reflexão,

enjeitado, exposto.

352.000.000

Yeladim Hebraico Baltasar, H.

Webster’s New World

Hebrew Dictionary –

Hebrew/English –

English/Hebrew,

Cleveland, Prentice

Hall, 1992.

Criança, menino

pequeno na idade da

Infância

122.000.000

Bambino Italiano Mea, Giuseppe.

Dicionário de Italiano –

Português, Porto,

Editora, Portugal, s/d

Pueril, infantil,

menino prodígio,

criança traquina,

criança mimada,

menino jesus, espírito

de criança

63.000.000

Kodomo Japonês Noda, Rioji

Dicionário Japonês –

Português, Tokyo,

Yuhikoku, vol. I, 1963

Infantil, pueril,

comportamento

pueril, procedimento

pueril, infantil,

puerícia

126.000.000

138

...

Analisando os dados levantados, conclui-se que:

1º - a linguagem do preconceito anti-criança envolve o uso ideológico do termo CRIANÇA;

2º - esse uso está presente em todos os continentes;

3º - pelo menos 2.174.000.000 de pessoas podem ter convivido com o preconceito anti-criança

ao longo de suas vidas.

4º - daí a dificuldade de combatê-lo.

Infans Latim Júnior, José Cretela.

Dicionário de Latim-

Português, Portugal,

1971.

Mudo, que não fala,

não eloqüente,

infantil

Chinês III Dictionnaire

Français – Chinois,

1969

Infantil 885.000.000

Russo Golovinsky, M.

A New Pronouncing

Dictionary of the

Russian & English

Languages,

Philadelphia, David

Mckay Company,

1943.

Infantilidade,

puerilidade, como

uma criança,

comportar-se e agir

como uma criança

294.000.000

Grego Isidro Pereira, S.J.

Dicionário Grego –

Português e Português-

Grego, 7ª edição,

Livraria do Apostolado

da Imprensa, s/d.

Cria, feto 12.000.000

139

4.0 – IMAGENS de crianças-CRIANÇA = IMAGENS de PRECONCEITO?

“Afinal, toda imagem é uma história de amor e ódio, quando lida do ângulo correto.”

Leopoldo Salas – Nicanor

Espejo de las artes

1731

As imagens, como as palavras, podem ser lidas.

Basta que o(a) leitor(a) saiba como compreender seu significado.72

___________________________ 72

Neste capítulo figura e texto formam um SINTAGMA (unidade de significado).

140

141

5.0 – COMO NÃO CAIR NAS ARMADILHAS DO PRECONCEITO CONTRA

CRIANÇA?

Fonte: QUINO. [1980] Mafalda a contestatária. Publicações Dom Quixote, Álbum Gigante, nº 1.

Agora que você já sabe o que é preconceito/estereótipo/discriminação, é tempo de afirmar que

tanto em sua versão pessimista (desvalorizadora) quanto na otimista (supervalorizadora), trata-se de um

TRIO PERIGOSO de pensamentos, atitudes, práticas.

PERIGOSO pelas danosas conseqüências, seja no plano individual (rejeição, exclusão), seja no

plano social (holocausto, guerras, terrorismos...). No caso das crianças, soma-se a isso o histórico

142

silêncio. “ A criança brasileira é silenciosa. Não deixa marcas no passado. Documentos oficiais pouco

se preocupam com ela.Na Colônia e no Império, a criança não aparece: passa como gato em brasa.73

Só mais recentemente reconhece-se o direito que a criança tem de ser vista, ouvida e agente da

própria história, independentemente das diferenças de classe social, etnia e cor, gênero, nacionalidade,

religião74

...

Diferenças que estão inscritas na dupla diversidade: dos genes da espécie e das culturas

humanas. Diversidade que não pode ser PRETEXTO para a VIOLÊNCIA do PRECONCEITO, do

ESTEREÓTIPO e da DISCRIMINAÇÃO. Violência que se desenvolve no seio de relações

assimétricas de poder, quando os mais “fortes” dominam os mais “fracos” e justificam essa dominação

com argumentos filhos da intolerância ao OUTRO quanto à sua classe social, à cor da pele, ao gênero,

à religião e a um grande número de características individuais e/ou sociais.

Enquanto VIOLÊNCIA, o preconceito pode camuflar-se em mitos da infância, que só fazem

disfarçar seu conteúdo domesticador, na medida em que a criança mitificada é vítima da mistificação

idealizadora: será amada ao preço de ser PURA, INGÊNUA, OBEDIENTE, BELA75

..., ou seja, ao

preço de abdicar da liberdade de ser ela própria para submeter-se ao script dos adultos (pais,

professores, religiosos...)

__________________________________ 73

Mary Del Priore (organizadora/co-autora) de História das Crianças no Brasil, em entrevista a equipe do Almanaque Brasil

em São Paulo, Positivo, outubro/2004. 74

O reconhecimento de que os direitos das crianças são direitos humanos, resultou de uma longa luta cujos antecedentes

remontam mais diretamente ao trabalho de Eglantine Jebb, (inglesa, 1876-1928), consolidando-se a nível internacional, com

a Declaração Universal dos Direitos da Criança (ONU,20 de novembro de 1959) e a nível nacional com o Estatuto da

Criança e do Adolescente – (ECA, Lei Federal 8069/13.07.1990), ambos fundamentados no reconhecimento da criança

como pessoa em condição peculiar de desenvolvimento e como sujeito de direitos e deveres. 75

“A criança traz nas suas células frágeis, delicadas, flexíveis, germens puros, virgens, impregnados de virtudes sadias e

fortes, que o tempo, o ambiente, os estudos, a experiência lentamente ampliam, modificam, alteram até chegarem ao período

viril. Á individualidade final.” In: Albertina Bertha [1920]– Estudos. Rio de Janeiro: Jacintho Ribeiro dos Santos, p. 39.

143

Quais são os que merecem?

São aqueles que obedecem!

Esse slogan repetido pela professora no monólogo Apareceu a Margarida76

capta muito bem a

regra de ouro da relação adulto-criança: os primeiros mandam e os segundos obedecem. Esta a regra,

por excelência , da dominação ancestral.

Enquanto VIOLÊNCIA, o preconceito referente à criança surge nas relações interpessoais entre

esta e os demais adultos e crianças. Enquanto VIOLÊNCIA interpessoal esse preconceito alimenta-se

da intolerância em relação à criança e às suas condições concretas de existência (infância pobre, de

faces negras, portadora de necessidades especiais, drogada, prostituída...)

Intolerância, portanto, face à diversidade, ilustrada a seguir.

__________________________________ 76

ATHAYDE, R. [1973] Apareceu a Margarida, Brasília, Editora Brasília.

144

Norman Rockwell (1894-1978) Americano

Quadro Golden Rule (1961) está na ONU – N.Y

Fonte:http://www.allposters.es/gallery.asp?aid=184214426&c=&searxh=Norm

an+Rockwell&lang=4&GCID=s15100X015

145

A pintura anterior traz o versículo de São Lucas ” fazei aos outros o que quereis que vos

façam...”

Infelizmente, graças à enorme disseminação do preconceito com suas nefastas conseqüências,

essa recomendação soa como algo inócuo, enquanto não se entender que para escapar das armadilhas

do preconceito contra a criança é preciso saber:

A – como ele se forma;

B – como reconhecê-lo, inclusive em cada um de nós;

C - o que fazer para evitá-lo.

A- Como se forma o preconceito contra criança.

Como todos os preconceitos, forma-se através da aprendizagem das representações sociais

negativas/positivas sobre pessoas DIFERENTES das demais, num determinado grupo social. É uma

aprendizagem social que ocorre nas relações interpessoais, sedimentada pela cultura que não tolera a

diversidade, interpretando-a como sinal de inferioridade (de classe social, de etnia, de gênero, de

religião, de aparência física, de capacidade física e mental...).

Pesquisas tem mostrado que muito cedo aprendemos a separar nós (nosso grupo) dos grupos

dos outros (vocês) e que essa separação é feita com base nas diferenças: quanto mais diferente for

alguém, tanto mais o gerador de preconceitos (no cérebro) trabalhará no sentido de enquadrá-lo num

determinado perfil-tipo desvalorizado ou super valorizado.

146

Esse perfil-tipo (estereótipo) atua como uma fôrma, no plano INCONSCIENTE77

(sobre o qual

não temos controle) mas que pode ser lembrado com reduzido esforço cognitivo.

Pesquisas relevantes tem identificado os principais mecanismos responsáveis pelo preconceito:

1. para justificar nosso preconceito, recorremos a uma amostra distorcida;

2. contemplamos o grupo a que pertencemos como diferenciado; os demais, como massa

homogênea;

3. o que contraria o estereótipo é visto como exceção;

4. buscamos informações que corroborem nosso juízo e desconsideramos aquelas que o

questionam;

5. uma mesma ação é interpretada de maneiras diferentes, dependendo de quem a pratica;

6. portadores e vítimas de preconceito comportam-se de modo a confirmar os estereótipos.” 77

Examinemos esses pontos um a um.

1. Em primeiro lugar, o fato de que os seres humanos são péssimos estatísticos. Um exemplo

simples. Num pequeno país, vivem dois grupos de pessoas. Um deles, de mil habitantes, compõe a

maioria da população, ao passo que o outro é constituído de apenas cem pessoas. Supondo que cem

_________________________________ 77

Dovidio e colegas da Univ. Colgate/USA- In: FLORACK, A. e SCARABES, M – Pensamentos Perigosos –

VIVER/Mente e Cérebro, ano XIII,nº 145, fevereiro/2005, p.74-5.

147

membros da maioria e dez da minoria sejam condenados por delitos, você decerto dirá que a

criminalidade é idêntica nos dois grupos – afinal, o número de criminosos perfaz 10% em ambos os

casos. No dia-a-dia, porém, não dispomos de cifras tão elucidativas. Em vez disso, percebemos esses

acontecimentos isoladamente, seja pelo jornal, seja pelo que ouvimos dizer – e aí falha nossa lógica:

como demonstram inúmeros estudos, mesmo em casos bastante simples, geralmente não somos capazes

de, a partir de dados isolados, inferir a freqüência real e atribuímos à minoria uma taxa de

criminalidade maior. Caso ela de fato infrinja a lei com maior assiduidade, esse dado costuma ser

superestimado. Psicólogos sociais denominam essa distorção perceptiva de correlação ilusória. Tanto

as minorias como os delitos atraem sobremaneira nossa atenção. Armazenamos melhor na memória

fatos assim, o que significa evocá-los com maior facilidade – terreno ideal para que o preconceito

viceje.

2. Esse efeito é ainda reforçado por nossa tendência acentuada a, em se tratando de outros

grupos, tirar conclusões gerais baseadas em observações isoladas. A crença é de que ‘nós somos

diferentes um do outro, mas eles são todos iguais’. É possível que isso se deva ao fato de conhecermos

melhor o grupo a que pertencemos e suas diferenças, enquanto o grupo estranho nos parece um bloco

monolítico.

3. Paradoxal é que não generalizemos num único caso: quando a experiência que temos vai de

encontro a nossos preconceitos.

4 . Vivências positivas são logo interpretadas como exceções – o negro que integra nosso

círculo de amizades é ‘negro de alma branca’, a mulher que estacionou o carro muito bem teve ‘sorte’ e

o professor dedicado é ‘excêntrico’.

148

5. Esse mecanismo funciona tanto melhor quanto mais os outros nos surpreendem. E, por fim,

essa dialética da exceção acaba por preservar todos os nossos preconceitos. O ser humano precisa de

tanto tempo para rever sua opinião preconcebida porque almeja sobretudo confirmá-la. Ele busca

informações que corroborem sua opinião e suprime as experiências que a refutam – ou então as avalia

de modo a preservar o estereótipo.

6. Preconceitos têm a tendência traiçoeira de se confirmar. Isso pode ocorrer sob a forma da

‘profecia que se cumpre a si mesma’, quando nossa postura influencia imperceptivelmente o próprio

comportamento – e o daquele com quem interagimos. Além disso, os estigmatizados contribuem

também para o juízo negativo que fazemos deles, e justamente porque temem ser reduzidos a um

estereótipo. Essa relação foi demonstrada por um grande número de experimentos conduzidos por

Claude Steele, psicólogo da Universidade Stanford.78

B- Como reconhecer o preconceito contra criança (inclusive em cada um de nós).

O reconhecimento vai depender da capacidade de identificar as falácias de raciocínio sobre as

quais se apóia qualquer preconceito.

Por falácia entende-se: qualidade ou caráter do que é falso (enganador, ardiloso, fraudulento).79

__________________________ 78

FLORACK, A. e SCARABES, M. Idem, ibidem, p.74-5. 79

FERREIRA, A.B. de H. ob.cit.

149

Quadro 5 - Principais Falácias de Julgamento Lógico

Tipos de Falácia Sub-tipos de raciocínios falaciosos

IRRELEVÂNCIA 1. Ad baculum (apelo à força)

2. Tu quoque (você também)

3. Ad verecundiam (apelo à falsa autoridade)

4. Ad ignorantiam (argumento oriundo de ignorância)

5. Ad misericordiam (apelo à piedade)

6. Ad hominem (ataque à pessoa)

7. Ad populum (apelo às emoções)

8. Ignoratio elenchi (conclusão irrelevante)

EVIDÊNCIA

INSUFICIENTE

1. Post hoc (falsa causa)

2. Argumento unilateral

3. Generalização apressada

4. Oposição

5. Pressupostos inaceitáveis

AMBIGÜIDADE 1. Equivocação

2. Anfibiologia

3. Divisão

4. Composição

5. Acento

6. Uso de múltiplas falácias

7. Uso de contextos intencionais

Fonte: Morrow, R. - Judgement: analysing fallaces and weaknesses in arguments. Los Angeles, Instructional

Objectives Exchange, 1974.

150

Essa identificação das falácias de raciocínio e, portanto, das argumentações falhas que suportam

preconceito/discriminação exige muita autodisciplina e constante vigilância sobre pensamentos,

sentimentos, atitudes e condutas.

Só quem exercita auto-crítica com tenacidade e luta por juízos objetivos será capaz de

concordar com Saramago, no texto que escolhemos como epígrafe deste trabalho.

C – O que fazer para evitar preconceito em relação à criança

Segundo os psicólogos sociais Baron e Byrne80

.

crianças não nascem preconceituosas: preconceito é aprendido

(inclusive e principalmente, o preconceito face à criança)

Logo para evitá-lo é preciso:

não permitir o surgimento de estereótipos

e

desconstruir estereótipos e preconceitos, caso eles se instalem

...

______________________________ 80

BARON e BYRNE – In: FLORACK, A. e SCARARBES, M. op cit. p.74-75.

151

Tanto num caso como em outro isso vai depender muito de como “se comporta nosso ambiente

social, pois apenas quando os meios de comunicação e a experiência cotidiana nos esfregam na cara

que nossas idéias preconcebidas não se aplicam, e nós mesmos enfim o percebemos, tornamo-nos

capazes de modificá-las”.81

Estudos veem revelando que “ quando ‘ESTRANHOS’ passam a fazer parte do grupo, nossos

preconceitos tendem a recuar.”82

Essa não é porém uma regra geral.

Vai depender de se o grupo inclui verdadeiramente os “diferentes”, ou seja, se trata estes como

um grupo de iguais ou de mais e menos iguais .

Por outras palavras, vai depender da organização e da cultura do grupo: mais ou menos

democrática.

C.1 - Portanto, vai depender muito do mundo que se mostra às crianças, através de

livros, revistas, peças de teatro, jogos, programas de TV...

Sempre é bom perguntar, então, QUE MUNDO É ESSE, o mundo da indústria cultural infantil:

um mundo onde perigam inadequações, com a mão adulta pesando na infantilização da puerícia ou na

sua adulteração?

___________________________ 81

FLORACK, A e SCARABES, M. Idem, ibidem 82

FLORACK, A e SCARABES, M. Idem, ibidem, p. 74-75.

152

a) Ou, muito ao contrário, um mundo onde a DIVERSIDADE é RIQUEZA e não POBREZA

CULTURAL, como é o caso da Série Infantil lançada pela Cortez em 2004 – discutindo de

racismo a consumismo83

. Ou um outro mundo de espetáculos como Teresinha e Gabriela – Uma

na Rua e a Outra na Janela84

- acertada adaptação de livro de Ruth Rocha85

em que se brinca

com as diferenças, evitando os estereótipos, na medida em que as protagonistas-meninas de tão

diferentes se atraem.

Ou um outro mundo, com sites que em vez de incentivar o preconceito (como tivemos

há algum tempo no ORKUT86

), estimulam o resgate das vozes da infância (como é o caso do

MIDIATIVA que iniciou uma série de reportagens no Brasil e é o responsável pelo

projeto de educomunicação sugestivamente intitulado Cala-Boca Já morreu)87

.

b) Ou ainda um outro mundo pautado pela Convenção da Diversidade Cultural88

, e, portanto,

pelo respeito às DIFERENÇAS QUE NOS TORNAM IGUAIS.

_______________________________ 83

COELHO, M.L. [2004] Pedro compra tudo. São Paulo: Cortez.

RAMOS, R. [2004] Na minha escola todo mundo é igual. São Paulo: Cortez. 84

Peça esteve em cartaz no Sesc Anchieta, São Paulo/2006. 85

ROCHA, R. Texto para o Teatro adaptado por Evill Rebouças. 86

Desativados pelo Ministério Público por veicularem preconceito contra judeus, negros, travestis, homossexuais , o que

constitui “ciberagressão criminalizável.” 87

Provavelmente o título inspirou-se no escrito homônimo de Fernando Lébeis, incluido na Antologia organizada por Fanny

Abramovich [1983], sob o título O mito da infância feliz. São Paulo: Summus, pp. 107-116. Dele são as ‘lembranças’ do

‘mundo mágico da infância’ no qual a VOZ ADULTA humilhava e imperava: CALA BOCA JÁ MORREU, QUEM

MANDA AQUI SOU EU. 88

Convenção sobre a Proteção, a Promoção da Diversidade e das Expressões Culturais. Aprovada em Paris a 20/10/2005

por 148 dos 154 países que votaram, com oposição dos Estados Unidos e Israel e quatro abstenções (Austrália, Nicarágua,

Honduras e Libéria). O Brasil foi um dos grandes articuladores do texto, cujo embrião foi forjado em São Paulo, no ano de

2004, no Fórum das Culturas no Anhembi. Entrará em vigor depois de ratificada por pelo menos 30 países. Seu artigo 20

(são 35) dá a ela o mesmo nível jurídico que o dos tratados bilaterais e as regras da Organização Mundial do Comércio

(OMC).

153

Um mundo no qual as crianças aprendam a desnaturalizar padrões sociais falsamente

apresentados como absolutos e universais. É o caso, por exemplo, da obesidade rejeitada na

civilização ocidental contemporânea, mas padrão de beleza em Tonga.89

Afinal o corpo humano – gordo ou magro – pode ter seu encanto, e merece sempre um novo

olhar como nos mostrou a exposição CORPOS PINTADOS montada com fotografias, esculturas e

performances produzidas por artistas de 15 países.90

Como afirmou Pontiggia, ‘a normalidade não existe... O que é normal.? Nada. Quem é normal?

Ninguém.’ Todavia não é possível negar a diversidade, mesmo que ela nos fira.

O fundamental não é negar as diferenças mas sim modificar a própria imagem da norma.

Quando Einsten [respondendo a uma pergunta do funcionário de passaportes sobre sua origem]

informa ‘raça humana’, não ignora as diferenças, omite-as num horizonte mais amplo, que as inclui e

supera.

Essa é a paisagem que se deve abrir: tanto para quem faz da diferença uma discriminação,

quanto para quem, para evitar uma discriminação, nega a diferença.”91

____________________________ 89

No reino de Tonga, ninguém precisa esconder dobrinhas da barriga, papadas do pescoço e pés inchados para sentir-se

elegante. O país é um paraíso para os gordos. Lá, a maioria da população tem excesso de peso. Mais: o povo gosta de exibir-

se assim. Na cultura onde obesidade é sinônimo de beleza, o passatempo nacional é assistir ao acasalamento de baleias, no

santuário ecológico da ilha de Haapai. O padrão tonganês de elegância foi estabelecido pelo rei Taufaahau Tupou IV, um

robusto senhor de 180 quilos, certa vez citado no livro Guiness, como o monarca mais gordo do planeta. Tonga é Terceiro

Mundo. Seu povo é pobre, mas vive alegre, de barriga cheia. (OESP, Caderno Internacional, domingo, 29/10/99, A -18). 90

São 221 fotografias de grande porte (2,5 m por 3m ) retratando corpos desnudos pintados por artistas de várias

nacionalidades, dentre eles cinco brasileiros como Arcângelo Ianelli, Ester Grinspum. Inéditos, os trabalhos foram

idealizados pelo fotógrafo Roberto Edwards e desenvolvidos na sua fundação, em Santiago do Chile. “Não há razão

religiosa ou de guerra. Apenas de ânimo”, diz Edwards, que sempre gostou de retratar corpos. “Me surpreendo todo dia com

eles”. 91

PONTIGGIA, G. [2002] Nascer duas vezes. Tradução de Roberta Barni. São Paulo: Companhia das Letras, pág. 37.

154

c) Ou um outro mundo enfim, no qual a própria ciência seja uma ciência da diferença e não

uma ciência do preconceito, do estereótipo e da discriminação. Uma ciência crítica de seus conceitos92

,

de seus métodos93

, e de suas conseqüências sócio-econômicas, políticas e ético-culturais94

.

Uma ciência que busca respostas capazes de explicar como seres humanos preconceituosos

podem chegar a cometer as maiores atrocidades contra seus semelhantes, inclusive crianças95

.

____________________________________ 92

Por exemplo o uso do conceito raça, acoplado muitas vezes indevidamente ao de cor “Raça é menos um fato biológico do

que um mito social e, como mito, causou severas perdas de vidas humanas e muito sofrimento em anos recentes.” (Primeira

Declaração sobre Raça da Unesco, 1950) In: SCHWARCZ, L. M. – A Pedagogia racial do MEC.(FSP, 16/06/2005 –

Caderno Opinião, A-3). 93

A onda de recentes estudos sobre a “ciência nazista vem revelando os métodos absolutamente antiéticos adotados por

cerca de 350 médicos, oficialmente envolvidos em experiências nos campos de concentração, experiências essas realizadas

nos anos 40 do século passado. Um exemplo: ‘trouxeram de volta do Laboratório dois gêmeos ciganos, que Mengele havia

costurado um ao outro. Ele tinha tentado criar irmãos siameses unindo os vasos sanguíneos e órgãos deles. Os gêmeos

gritaram de dor dia e noite até que a gangrena começou. Depois de 3 dias, morreram.’ [Eva Mozes-Kor, vítima de

experiências de Mengele]. A exposição de tantos atos desumanos como esse deixa a certeza de que, em pleno século XX, os

campos de concentração – além de ante salas da morte – funcionaram também como laboratórios do inferno, utilizando

prisioneiros humanos como cobaias de pesquisas macabras. [REZENDE, R. e outros. Doutores da Agonia. In: Super

Interessante, Abril, 2006, p.53-61]. Neles se praticou uma espécie de ‘nova religião’, o cientismo cujo credo envolve vários

mitos entre os quais o de que ‘tudo o que puder ser expresso de modo coerente, em termos quantitativos ou puder ser

repetido sob condições de laboratório é objeto de conhecimento científico e, por isso mesmo, válido e aceitável”.

[JAUBERT, A. et Lévy-Leblond, 1973 J.M (org.) (Auto) critique de la science. Paris, Editions du Seuil, p.55]. POR MAIS

HEDIONDO QUE SEJA!!! 94

Documentos recentemente liberados da proteção pela Lei dos Segredos Oficiais na Inglaterra, revelam que em 1910

Winston Churchill já havia proposto medidas para ‘melhorar a raça’. Segundo ele: o crescimento rápido e antinatural de

setores mentalmente débeis ou perturbados (degenerados mentais, incapazes)... constitui um risco para a Nação já que [esses

indivíduos] contaminarão e levarão ao declínio o resto da raça britânica’. Segundo Churchill, ‘a melhora da raça britânica é

meu principal objetivo político’. Seus planos incluíam a esterilização ou encerramento em campos de concentração de

pessoas com as características assinaldas, o que se posto em prática teria afetado a vida de mais de cem mil pessoas no

Reúno unido.

A falsa crença na inferioridade racial de alguns “degenerados” foi posteriormente defendida pelos nazistas como parte da

falaciosa crença na superioridade ariana, o que serviu de base a ações genocidas de extermínio de judeus

(HOLOCAUSTO). El Pais, Espanha. 21/06/1992. 95

É o caso, por exemplo, de Simone Cassiano da Silva, 27 anos, que – embora negue ... parece ter atirado na Lagoa da

Pampulha uma ‘droga de menina’ : sua filhinha recém nascida... ESP, 05/02/2006.

Ou aquela outra mãe, que nos anos de 1970, enterrou seu bebê vivo numa cova rasa, em São Paulo. De madrugada, alguém

ouviu o choro abafado da criança, chamou os bombeiros – cães latiam – e a criança foi salva. Havia respirado terra, mas

sobreviveu. No hospital, deram-lhe o nome de Geonato – nascido da terra. Com a notícia repetindo-se no rádio, centenas de

paulistanos apresentaram-se para adotá-lo. O Jornal da Tarde saiu com o título: “ O querido bebê que a mãe não quis”.

IVAN, Ângelo: Horror. Revista VEJA, 15/02/06, p.154.

155

Respostas que devem ser buscadas, sobretudo, entre seres humanos, mas que também podem

ser investigadas junto aos animais96

.

O Patinho Feio, famoso conto de Andersen97

por exemplo, não poderia ser lido como uma

história de discriminação dos belos contra os feios (diferentes), no mundo animal? E não poderia ter

sido inspirado por algum fato real?

Afinal, como já afirmou Carl Sagan98

, a ciência pode ser vista como uma vela no mundo

assombrado pelos demônios do preconceito, do estereótipo, da discriminação, da indiferença ... Por isso

mesmo, sempre será melhor “acendar uma vela que praguejar contra a escuridão”, porque “a doença

dos dias de hoje não é a lepra ou a tuberculose, mas sim o sentimento de ser indesejado, de não ter

afeto e do abandono por todos.”99

C. 2 – Vai depender muito também das práticas sociais em relação à infância

Tem muita razão quem afirmou

Mostre-me como são tratadas suas CRIANÇAS

e eu lhe direi

qual é o caráter

de seu povo.

_________________________________ 96

Entre as ovelhas, por exemplo, a mãe tem entre duas e quatro horas depois do nascimento do filhote para reconhecê-lo. Se

não, o filhote será abandonado e acabará morrendo. No mundo animal, isso funciona como um processo de seleção,

eliminando aqueles que estariam inevitavelmente marcados pela rejeição sofrida na infância. PAIVA, F.M. Assim acontece

com os ratos. OESP 05/02/06, p.13. 97

O Patinho Feio. Os mais famosos contos de Andersen, Todo livro, s/d. 98

SAGAN, C [1996] O mundo assombrado pelos demônios/A ciência vista como uma vela no escuro. São Paulo: Cia das

Letras. 99

Madre Teresa – Vencedora do Prêmio Nobel da Paz de 1979.

156

Sempre vale a pena questionar se o tratamento vigente ainda é o destinado à criança-

CRIANÇA, “enquanto um ser desvalorizado, absolutamente dependente dos pais que por lhe terem

dado a vida estariam automaticamente autorizados a tirá-la”100

e que teria no sacrifício de Abraão sua

versão histórica mais perfeita. O sacrifício de Abraão foi representado em cerca de 30 quadros, como o

de Caravaggio (1596). Em todos eles, “o rosto de Abraão não revela traços de sofrimento, nenhuma

hesitação, nenhuma dúvida, nenhuma questão, nenhum sinal mostrando que ele tem consciência do

trágico da situação. Ele é representado... como um dócil instrumento nas mãos de Deus, unicamente

preocupado em funcionar conforme o que se espera dele...

O sacrifício de Isaac, 1596 Princeton (Nova Kersey)

Coleção Barbara Piasecka Johnson. Fonte: http://www.cafeliterario.jor.br/colunas/coisasdavida/texto12.html

_____________________________ 100

AZEVEDO, M.A. e GUERRA, V.N.A. [1998/2010] Infância e Violência Fatal em Família./Primeiras Aproximações ao

Nível de Brasil. São Paulo: Iglu, p.33-36.

157

Em nenhum dos quadros lê-se nos olhos de Isaac, as questões do por que, que ele teria podido

levantar:

“Pai, por que queres me matar, por que minha vida não tem qualquer valor a teus olhos? Por

que não me olhas, por que não me explicas o que se passa? Como podes fazer-me isto? Eu te amo, eu

confiava em ti, por que não me falas? Que crime cometi? Por que mereço isto?... ”101

A história bíblica e os quadros assentam “no mito da criança sacrificial, enquanto mito da

obediência filial, levada a seu limite extremo: impedido de ver, respirar, falar, Isaac é a personificação

do ser transformado em coisa.102

A lição básica é a de que para combater o preconceito em relação à criança será preciso

combater sempre instituições e práticas nas quais ele pode alojar-se, tais como família e educação

familiar.

“O que os RELATOS MÍTICOS nos ensinam é que a MORTE DE CRIANÇAS E

ADOLESCENTES EM FAMÍLIA, como decorrência de ações ou omissões de pais ou responsáveis,

era uma ocorrência considerada não apenas NATURAL, mas até mesmo NECESSÁRIA, aos desígnios

dos pais.

_____________________________ 101

MILLER, Alice. [1990] La Souffrance muette de l’enfant. Paris : Editions Aubier, p. 143-151. 102

AZEVEDO, M.A. e GUERRA, V.N.A. [1998/2010] Infância e Violência Fatal em Família./Primeiras Aproximações ao

Nível de Brasil. São Paulo: Iglu, p.33-36. idem ibidem.

158

No modelo familiar da Antigüidade Clássica, a autoridade despótica define e caracteriza o

governo doméstico e exerce em relação aos filhos por meio da Pedagogia Despótica103

cuja regra de

ouro é a obediência incondicional dos filhos aos pais, até mesmo na morte. A Pedagogia Despótica,

por sua vez, assenta-se em três mitos complementares:

a. O da bondade dos pais – simulacros de divindades parentais onipotentes e imprevisíveis,

como os deuses dos Olimpo, irracionais por vezes, como o Deus de Abraão, mas sempre

dotados de AUTORIDADE ABSOLUTA.

b. O da maldade ou bondade infantil inatas, gerando temor da criança perigosa (mito da

criança fatal) ou louvor à criança inocente (mito da criança sacrificial).

c. O da criança–CRIANÇA, enquanto um ser instrumentalizável, porque dependente dos pais,

senhores absolutos de sua vida e morte, pela úncia razão de serem seus pais.”104

_______________________________ 103

No modelo grego de família , três relações fundamentais estavam imbricadas: entre senhor e escravo; entre marido e

mulher; e entre pais e filhos. “O déspota é o senhor absoluto de suas propriedades, móveis e imóveis, das pessoas que dele

dependem para sobreviver (escravos, mulher, filhos, parentes e clientes) e dos animais que emprega para manutenção de

suas propriedades. A principal característica do déspota encontra-se no fato de ser ele o autor único e exclusivo das regras

que definem a vida familiar, isto é, o espaço privado. Seu poder, escreve Aristóteles, é arbitrário, pois decorre

esclusivamente de sua vontade, de seu prazer e de suas necessidades...O déspota (despotês/pater famílias) só domina os

dependentes e não os livres.” [CHAUI, M. Público, privado, despotismo. In: NOVAES, A. [1992] (org.) Ética. São Paulo:

Cia das Letras/Secretaria Municiapal da Cultura]. 104

AZEVEDO, M.A. e GUERRA, V.N.A. [1998/2010] Infância e Violência Fatal em Família./Primeiras Aproximações ao

Nível de Brasil. São Paulo: Iglu, p.33-36., idem, ibidem.

159

C. 3- A longo prazo, porém, vai depender do combate a todos os demais preconceitos

Isso porque:

1. o preconceito em relação a criança acaba sendo alimentado por todos os demais

preconceitos em relação aos fracos da sociedade;

2. porque o estereótipo da criança-CRIANÇA pode acabar fazendo com que adultos sejam

tratados como tal, contribuindo isso não apenas para a manutenção deste estereótipo, mas

também para o fortalecimento dos demais preconceitos.

ADULTOS TRATADOS COMO CRIANÇAS

Todas as pessoas mantidas em um nível inferior, perpetuamente submetidas à supervisão

paternal de um adulto, podem acabar sendo tratadas como crianças. Por exemplo, muitas vezes, se

apresentou o escravo americano como um companheiro natural das crianças, compartilhando com

elas seus temores, alegrias, tais como crer em fantasmas e na multidão de outra superstições

semelhantes. As pequenas transgressões, como furtar e comer melões não maduros e os castigos

correspondentes eram considerados como travessuras infantis. Esta caricatura do escravo, tão

freqüente na literatura de época, pode estar muito longe da verdade, mas se os adultos que deteem

autoridade creem que os demais – jovens ou velhos – são capazes de expressar-se apenas da forma

simples e limitada e se se preocupam em assegurar que sejam tratados de acordo com essa limitação, é

possível que aqueles acabem sendo forçados a comportar-se dessa maneira.105

...

_____________________________ 105

Tucker, N [1977] Qué s un niño? Madrid, Ediciones Morata, p. 33-4.

160

A LINGUAGEM do PRECONCEITO é universal infelizmente. Os significados dos termos –

tanto estrangeiros quanto nacionais – evidenciam tratar-se sempre de uma assimilação perversa de

“sentidos, preconceituosos” que se reforçam mutuamente: o preconceito anti-criança acaba sendo mais

um preconceito dentro dos demais preconceitos.

O combate a todos os preconceitos vai exigir que se diga um grande NÃO à LINGUAGEM do

PRECONCEITO infelizmente mais disseminada do que se pensa quando se analisam os Quadros a

seguir.

Quadro 6 - A linguagem do preconceito a nível internacional

TERMOS EM INGLÊS TRADUÇÃO EM PORTUGUÊS

Addlebrain Confuso, Atrapalhado

Alien Forasteiro, Estrangeiro (E.T.)

Appleknocker Simplório, Rústico

Atheist Ateu

Babbler Tagarela

Bastard Bastardo (coloq.); Patife; Ilegítimo, Inferior

Beast

Besta, Fera; Animal Doméstico; Pessoa Cruel;

Bruto

Beggar Mendigo, Indigente

Belligerent Beligerante ; Agressivo; Belicoso

Bighead Teimoso, Cabeçudo

Bigot Fanático, Intolerante

161

Bighead Teimoso, Cabeçudo

Bigot

Fanático, Intolerante

Bluebottle Beberrão, Viciado, Sujo, Vulgar

Brat (Pej.) Pirralho,Fedelho

Buffoon Bufão

Bumpkin Pessoa Rústica e Grosseira, Caipirão, Matuto

Brainy Que tem Cérebro, Inteligente (em sentido

irônico)

Cabbage Louco, Estúpido

Catholic Católico

Chump (Coloq.) Cabeça-Dura, Tolo; Estúpido,

Cabeçudo

Clod Palerma, Idiota, Pessoa Estúpida; Cabeça-Dura

Clown Palhaço; (Fig.), Caipira; Rústico

Clodhopper Camponês; Rústico, Caipira

Cockney Dialeto do Oeste Londrino; Pessoa Que o Fala ,

Pessoa Pobre

Comedian Comediante

Communist Comunista

Count Conde

Cowminder Submisso (fig.)

Crack Excêntrico

Creep Esquisito,Sinistro,Misterioso

162

Crook Trapaceiro

Criminal Criminoso

Duke Duque

Evildoer Malfeitor

Fool Tolo, Néscio, Idiota, Bufão, Ingênuo

Frail Frágil, Delicado; Fraco (De Saúde e

Moralmente)

Frump Desmazelado, Desalinhado; Mal Vestido

Fuzz Policial, Detetive, Cadeeiro

Gangster Gângster, Bandido

Gorgeous Grandioso, Esplêndido, Deslumbrante (em

sentido irônico)

Grasser “Maconheiro”

Heathen Gentio, Pagão, Irreligioso

Heretic Herético

Hippy Hippie

Humorist Humorista

Idiot Idiota

Intellectual Intelectual

Insane Demente, Louco; Insensato

Jerry (Gíria Militar) Alemão

Jester Comediante; Pilheriador; Bufão

Jughead Estúpido, Bobo

Kink De veneta, Esquisito

163

Labourer Operário, Trabalhador (pejorativo)

Lady Senhora, Dama (em sentido irônico)

Landlubber Marinheiro de Águas Turvas

Lord Senhor, Amo

Lout Desajeitado, Grosseiro, Estúpido,

Desengonçado

Lovely Encantador; Atraente, Gracioso (em sentido

irônico)

Maniac Maníaco

Mobster Quadrilheiro

Mod

Jovem dos Anos 60, Revoltado Contra a

Sociedade Convencional; Extravagante

Contemporâneo e Atualizado no Vestir e

Pensar, ‘Moderninho’

Nazi Nazista

Nigger (Coloq. Pej.) Negro

Oaf Idiota, Imbecil; Criança Retardada,Tolo, Parvo,

Imbecil

Outlaw Proscrito, Fora Da Lei

Peasant Camponês, Lavrador, Caipira, Rústico

Pervert Pervertido; Apóstata, Renegado

Plain Sem Graça, Feioso

Prig Pedante; Puritano

Prophet Profeta (em sentido irônico)

Ravishing Encantador, Arrebatador (em sentido irônico)

164

Raacketeer Festeiro (em sentido irônico)

Rocker Roqueiro

Rowdy Desordeiro, Arruaceiro

Rozzer Policial, Tira

Rozzer Policial, Tira

Scatterbrained Desmiolado

Scoundrel Canalha, Patife, Salafrário

Sharpy Esperto; Inescrupuloso

Slut Mulher Suja e Desmazelada; Prostituta,Cadela,

Puta

Snob Esnobe, Pretensioso

Spade Macho, “Espada” (fig)

Square Pessoa Antiquada, Conservador; Retrógrado

Student Universitário (em sentido irônico)

Touched (gíria) Tantã

Turniphead ‘Cabeça De Nabo’

Uncouth Desajeitado; Incivilizado, Rude, Tosco,

Grosseiro, Bruto, Inculto

Vagabond Vadio, Vagabundo; Errante

Vegetable Com o cérebro totalmente destruído por drogas

e/ou álcool, inerte

Wit Espirituoso (em sentido irônico)

Wog Não branco (extremamente ofensivo)

165

Writer Escrivinhador

Yellow (coloq.) Covarde

Yid Judeu

Yokel Campônio, Caipira, Roceiro, Rústico,

Camponês

Yobbo Desordeiro, Rufião, Provocador

Yob Idem

Youth Jovem, Rapaz (em sentido irônico)

Fonte: HORNBY, A.S; GATENBY, E.V; WAKEFIELD, H [1963] The Advanced Learner’s.

Dictionary of Current English. London, Oxford University Press.

166

Quadro 7 - A linguagem nordestina do preconceito anti-criança

TERMOS SOBRE CRIANÇA SIGNIFICADOS NO NORDESTE

Biribano “Moleque de rua, vadio, sem ter o que fazer”.

Dicionareco das roças de cacau e arredores,

Euclides Neto.

Bruguelo Filho muito pequeno, pequerrucho, nenê, conforme

Jackson do Pandeiro: “A Tertulina namorou até

demais,/qualquer rapaz pra ela estava bom,/um

belo dia ela se mandou pro Rio/ e nesse clima frio

a coisa mudou de tom,/agora anda na Esplanada do

Castelo/ com três bruguelos, se lastimando da

sorte,/ai, Tertulina, quem mandou tu vir do

Nordeste?Ai, Tertulina .

Cabrão Na BA (médio São Francisco) é criança, taluda,

forte, robusta.

Cafuringa Coisa pequena, sem valor, insignificante, mucufa,

xeleléu. Nome dado às crianças entre dois e dez

anos de idade.

Camafonje Do RN a PE tem acepção de moleque travesso. Em

PE e em AL também significa ladrão, pessoa

desprezível, malandéu, marreteiro.

Colhudo Em todo o Nordeste é menino ou adolescente

metido a besta, que se mete em tudo, sebite. As

pronúncias variam de Estado para Estado: côlhudo,

colhudo ou culhudo.

Corno Além de chifrudo (acepção nacional), no Nordeste

significa menino levado, criança trelosa: “- Cadê

aquele corno? – Tá no terreiro, jogando pião. –

Chama esse corno aqui.” Teje preso, Chico

Anysio, citado no Dicionário Aurélio. A palavra

tem dez significados no país, sendo chifrudo,

cornudo, uma delas.

Cu-De-Mula Garoto traquinas, ruim, perverso, sabão de mula.

Daninho Travesso, malcomportado, brasinha, não-sei-que-

diga.

Mabaço/Mabaça Irmãos gêmeos, na BA. A palavra vem do

quimbundo ‘babaça’ (irmão gêmeo ou irmã

gêmea): “Achei e criei. É meu irimão dos outo.

Quero bem cumo Coisa, ali tamém, quase da

167

merma idade, onde vai um vai outo, parece

mabaço.” A enxada e a mulher que venceu o

próprio destino, Euclides Neto.

Molecoreba Molecada, meninada: “- Ela tá xingando pro vento

– gritava a molecoreba que viu o homem sair em

busca do delegado.” Veranico de janeiro,

Bernardo Elis, citado no Dicionário Aurélio.

Pichuleta Em PE é o pênis do menino pequeno, bilunga,

piupiu.

Picica No CE é meninote, fedelho, bujãozinho, porrete.

Pinta O pênis do menino pequeno. “Tire a calcinha e

mostre primeiro o que você tem aí depois eu

mostro minha pinta.”

Piroca . Diminutivo carinhoso e familiar para Pedro, na

BA. . Cacete , pau, pênis: “No senhor branco o

corpo quase que se tornou exclusivamente o

membrum virile. Mãos de mulher; pés de menino;

só o sexo arrogantemente viril. Em contraste com

os negros – tantos deles gigantes enormes, mas

pirocas de menino pequeno.” Casa-grande e

senzala, Gilberto Freyre. Termo também usado na

região Sudeste.

Pirrôto/Pirrototinho/Pirrututinho Pequeno, miúdo: “mas como ele é baixinho... Tão

pirrototinho, não é? ”

Porrête/Porretinho Menino pequeno: “não mexe nisso, seu porrête, vê

se fica quieto.”

Prego Na BA tem várias acepções: .Negro, preto,

arigofe, tição apagado. .Burro de pequeno porte.

Menino pequeno, barrigudinho, porrete. . Montador que não cai de cima do burro bravo. As

três últimas estão registradas no Dicionareco das

roças de cacau e arredores, de Euclides Neto.

Prego-Dourado No CE chamam assim a um menino muito louro,

galego.

Sabão-De-Mula O mesmo que cu-de-mula, menino travesso,

peralta

Sambudinhos/Sambudo Menino pequeno com a barriga enorme, inchada:

“Santo Deus! Os guris lázaros, embastidos de

168

perebas, coçando as sarnas eternas. Sambudos

com as pernas de taquari, como uma laranja

enfiada em dois palitos.” A bagaceira, José

Américo de Almeida. Taquari é um tipo de bambu.

Ou então, de acordo com Luiz Gonzaga: “(...)

Vivo com a minha nega no ranchinho que eu

fiz,/Não se queixa, não diz nada, e se acha bem

feliz./Com tudo isso ainda sobra um tempinho, /

Um agrado, um carinho, eu não quero nem dizer.../

Com tudo isso ainda sobra um tempinho/ E um

moleque sambudinho todo ano é pra nascer!” A

mulher do meu patrão, Nelson Valença.

Sura/Suru .Animal sem cauda: bicó. “Papagaio sem cauda

com pequenas barbatanas de papel de seda.”

Dicionário Aurélio. .Graciliano Ramos registra

como curto, pequeno: “As nossas roupas grosseiras

pareciam-me luxuosas comparadas à chita de sinhá

Leopoldina, à camisa de José Baía, sura, de

algodão cru.” Infância. Sura tem origem no MA e

suru na BA.

Uri No MA é uma variante de garoto, guri, porrete,

prego.

Viciado No Nordeste, é o menino pequeno que come terra.

Xié Trombadinha, cheirador de cola, segundo o

mangue beat. Originalmente, é um caranguejinho.

Ver citação de Chico Science em gabiru.

Fonte: O Dicionário do Nordeste de Fred Navarro. [2004] São Paulo: Estação Liberdade.

A LINGUAGEM do PRECONCEITO é infelizmente universal. Os significados dos termos –

tanto estrangeiros, quanto nacionais – evidenciam tratar-se sempre de uma assimilação perversa de

sentidos preconceituosos que se reforçam mutuamente: o preconceito - anti criança acaba sendo um

preconceito a mais, dentro dos demais preconceitos.

169

...

Mudar essa realidade talvez seja difícil como sugere a notícia a seguir.

Fonte: ÉPOCA, 17/04/2006, p.11

Dificil mas não impossível e pode ser conseguido exatamente por ações como a que vai

retratada logo mais. Ações que podem ser praticadas por pessoas comuns “em rebeldia ética contra

padrões... majoritariamente instituidos; é evidente que isto implica a defesa da diversidade como

primado do intercâmbio humano e, mais estritamente, da tolerância à divergência, como regra primeira

da convivência humana”.106

__________________________________ 106

DRUMMOND, J.A. Introdução -Henry David Thoreau, homem de várias épocas. In: Thoreau, H. [1984]

Desobedecendo/A desobediência Civil e outros Escritos. Rio de Janeiro: Roço, p.19.

170

GLOBOS NEGROS Había una gran fiesta en un pueblo. La gente había dejado sus trabajos y ocupaciones para reunirse

en la plaza principal. Los chicos eran quienes más gozaban con aquel festejo popular. Había venido

de lejos todo un circo, con payasos y equilibristas, con animales amaestrados y domadores que les

hacían hacer pruebas y cabriolas. También se habían acercado toda clase de vendedores, que ofrecían

golosinas, alimentos y juguetes.Entre ellos había un vendedor de globos. Los tenía de todos los

colores y formas. Había algunos que se distinguían por su tamaño. Otros imitaban a algún animal.

Grandes, chicos, vistosos o raros, todos los globos eran originales y ninguno se parecía al otro.Sin

embargo, eran pocas las personas que se acercaban a mirarlos y menos aún los que pedían comprar

alguno. Pero se trataba de un gran vendedor. Por eso, en un momento, tomó uno de sus mejores

globos y lo soltó. Como estaba lleno de aire muy liviano, el globo comenzó a elevarse y pronto

estuvo por encima de todo lo que había en la plaza. El cielo estaba clarito y el sol radiante de la

mañana iluminaba aquel globo que trepaba y trepaba, rumbo al cielo, empujado lentamente por el

viento. El primer chico que lo vio gritó: -“¡Mira mami, un globo!”.Inmediatamente varios más lo

vieron y lo señalaron. Para entonces, el vendedor ya había soltado un nuevo globo de otro color y

tamaño mucho más grande. Esto hizo que prácticamente todos dejaran de mirar lo que estaba

haciendo y se pusieran a contemplar aquel sencillo espectáculo de ver como un globo perseguía al

otro en su subida al cielo. Para completar la cosa, el vendedor soltó dos globos, pero atados juntos.

Con esto, consiguió que una barra de niños lo rodeara y pidiera a gritos que su padre o su madre le

comprara uno como aquellos que estaban subiendo. Al gastar gratuitamente algunos, consiguió

que la gente le valorara los que aún le quedaban.En poco tiempo, casi todos los niños del lugar se

paseaban con ellos y algunos imitaban al vendedor y dejaban que el suyo trepara en libertad por el

171

aire. Pero había allí cerca un chico negro, que con dos lagrimones en los ojos, miraba con tristeza.

Parecía como si una honda angustia se hubiera apoderado de él. El vendedor, que era un buen

hombre, se dio cuenta, lo llamó y le ofreció un globo. El pequeño movió la cabeza negativamente

y se rehusó a tomarlo.-“Te lo regalo”, le dijo el hombre con cariño y le insistió para que lo tomara.

Pero el niño negro, de pelo corto y ensortijado, con dos grandes ojos tristes, hizo nuevamente un

ademán negativo. Extrañado, el buen hombre le preguntó que era lo que lo entristecía. Y el chico le

contestó con otra pregunta:-“Señor, si usted suelta ese globo negro que tiene ahí ¿subirá tan alto

como los de otros colores?”. . . Entonces el vendedor entendió. Tomó un hermoso globo negro, lo

desató, se lo entregó al pequeño y le dijo:-“Hacé la prueba vos mismo. Soltalo y verás como sube

igual que todos los demás”. Con ansiedad y esperanza, el chico soltó su globo y su alegría fue

inmensa al ver que también el suyo trepaba...Se puso a bailar y a reírse de contento. Entonces, el

vendedor lo miró a los ojos, acarició su cabecita enrulada y le dijo con cariño:

-“Nunca te olvides que lo que hace subir a los globos hasta el cielo, no es la forma, el aspecto, el

precio ni el color; lo que los hace subir es lo que tienen adentro”.

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PARA REFLETIR

PROIBIDO PARA “COROAS”

“Vivemos todo tipo de preconceito. De cor, status social, sexo, religião e até um

discreto deboche contra os baixinhos. Agora, parece que se arma no horizonte uma

animosidade contra os mais velhos, que costumamos chamar carinhosamente de

“coroas”.

Isso se revala exatamente onde o mundo demonstra os maiores avanços científico-

tecnológicos, que é o campo da tecnologia da informação (TI), nos países

desenvolvidos.

Fomos surpreendidos com a informação de que jovens de 13 a 17 anos

demonstram os primeiros sinais de cansaço em relação ao uso do Facebook, notável

criação de Mark Zuckerberg, hoje com mais de 1 bilhão de usuários. A explicação é

muito simples: “Os ‘coroas’ estão dominando a tecnologia. Se eles querem, devemos

sair para outra”.

Arnaldo Niskier

Folha de S. Paulo / Opinião, 04/02/2014, p. A3

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Apresentação da Obra

Este livro resultou de uma longa reflexão crítica sobre o preconceito em relação à criança, numa

civilização e numa sociedade em que diferenças de geração, gênero, classe social, etnia, capacidade

física e mental, aparência, etc ainda costumam ser interpretadas como sinônimo de desigualdade e

pretexto de violência.

A reflexão empreendida não foi meramente livresca. Representou um revisitar de vários

cenários da minha trajetória pessoal, nos quais a crueldade do preconceito e da discriminação estiveram

presentes: o cenário da doença na infância, o do rendimento escolar sempre excepcional, o da carreira

profissional de quem nunca negociou princípios, o da militância em defesa de causas nem sempre

populares...

Essas vivências tornaram-me conhecida como “doentinha”, “CDF”, “HARD” as quais sempre

doeram menos do que o apelido recebido de minha madrinha: “cor de cuia”, numa alusão à cor

herdada da família paraibana de meu pai e, pejorativamente, sempre contrastada à “alvura” da família

paulista de minha mãe.

Por tudo isso, trata-se de trabalho destinado intencionalmente a incomodar e não a tranqüilizar

o(a) leitor(a), desvelando os estereótipos que ainda hoje sustentam a domesticação ancestral das

crianças, resistindo ao resgate de suas vozes e ao reconhecimento de que são pessoas que merecem

respeito igualitário.

Maria Amélia Azevedo

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Apresentação da Autora

►Pedagoga e Advogada pela USP

►Professora Livre Docente em Psicologia e Titular pelo Instituto de Psicologia/IPUSP

►Ex Coordenadora do Laboratório de Estudos da Criança (LACRI/IPUSP)

contatos:

e-mail: [email protected]

[email protected]

site: www.recriaprojetos.com.br

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