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Equador e a Constituição de 2008: um contraponto teórico face ao Estado Liberal de Direito. Por Francisco José Sobreira de Matos 1 PREÂMBULO DA CONSTITUIÇÃO EQUATORIANA DE 2008: NOSOTRAS Y NOSOTROS, el pueblo soberano del Ecuador RECONOCIENDO nuestras raíces milenarias, forjadas por mujeres y hombres de distintos pueblos, CELEBRANDO a la naturaleza, la Pacha Mama, de la que somos parte y que es vital para nuestra existencia, INVOCANDO el nombre de Dios y reconociendo nuestras diversas formas de religiosidad y espiritualidad, APELANDO a la sabiduría de todas las culturas que nos enriquecen como sociedad, COMO HEREDEROS de las luchas sociales de liberación frente a todas las formas de dominación y colonialismo, Y con un profundo compromiso con el presente y el futuro, Decidimos construir Una nueva forma de convivencia ciudadana, en diversidad y armonía com la naturaleza, para alcanzar el buen vivir, el sumak kawsay; Una sociedad que respeta, en todas sus dimensiones, la dignidad de las personas y las colectividades; Un país democrático, comprometido con la integración latinoamericana – sueño de Bolívar y Alfaro-, la paz y la solidaridad con todos los pueblos de la tierra; y, En ejercicio de nuestra soberanía, en Ciudad Alfaro, Montecristi, província 1 Mestrando em filosofia pela Universidade Federal de Pernambuco

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Equador e a Constituição de 2008: um contraponto teórico face ao Estado Liberal de Direito.

Por Francisco José Sobreira de Matos1 PREÂMBULO DA CONSTITUIÇÃO EQUATORIANA DE 2008: NOSOTRAS Y NOSOTROS, el pueblo soberano del Ecuador RECONOCIENDO nuestras raíces milenarias, forjadas por mujeres y hombres de distintos pueblos, CELEBRANDO a la naturaleza, la Pacha Mama, de la que somos parte y que es vital para nuestra existencia, INVOCANDO el nombre de Dios y reconociendo nuestras diversas formas de religiosidad y espiritualidad, APELANDO a la sabiduría de todas las culturas que nos enriquecen como sociedad, COMO HEREDEROS de las luchas sociales de liberación frente a todas las formas de dominación y colonialismo, Y con un profundo compromiso con el presente y el futuro, Decidimos construir Una nueva forma de convivencia ciudadana, en diversidad y armonía com la naturaleza, para alcanzar el buen vivir, el sumak kawsay; Una sociedad que respeta, en todas sus dimensiones, la dignidad de las personas y las colectividades; Un país democrático, comprometido con la integración latinoamericana – sueño de Bolívar y Alfaro-, la paz y la solidaridad con todos los pueblos de la tierra; y, En ejercicio de nuestra soberanía, en Ciudad Alfaro, Montecristi, província

1 Mestrando em filosofia pela Universidade Federal de Pernambuco

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de Manabí, nos damos la presente Constitucíon de la República del Equador (2008:p.15).

No último quarto do século XX e início do XXI, o Equador passou por períodos corriqueiros de instabilidade, com ascensão e queda de políticos dos mais diversos postos, interrupção de mandatos por conluios e/ou revoltas, implementação de ajustes econômicos; que massacraram o poder de compra da população, instituições que não suportavam a legitimidade das ações governamentais e revoltas populares. Estes eventos, que se tornaram apenas alguns dos exemplos do cotidiano instável desse país, têm suas raízes históricas nas formas construídas e efetivadas para dar sustentação ao desenvolvimento político, econômico e social equatoriano, o qual, importando ideologias econômicas de cartilhas neoliberais de órgãos como FMI, BID e OMC, colapsou sua economia, afetando, por conseguinte, o âmbito político e social dessa sociedade; estatuída, desde muito sobre a lógica constitucional do Estado de Liberal de Direito. Com diz HENRIQUEZ, V. H. (2002, p.20), podemos perceber pelo menos quatro aspectos centrais para a transformação do Equador em um Estado nessa constante volubilidade: 1 – sucessivas crises econômicas, provindas da adoção de medidas neoliberais. 2 – crise no sistema representativo, com ausência de partidos e projetos nacionais que de fato representem interesses mais gerais. 3 – Corrupção generalizada nas instituições, que transformaram o Equador num dos líderes mundiais em corrupção nas últimas décadas. E, 4 – um deterioramento massivo das condições da população equatoriana, que acarretou abalos cíclicos no vigor democrático, na saúde das instituições e na crença nos partidos.

Oriunda dessas transformações político-econômico-sociais ocorridas principalmente nas últimas três décadas, a 20ª Constituição equatoriana, aprovada por referendo popular ocorrido em 28/09/20082, tornou-se, desde então, um dos textos constitucionais mais avançados nas conquistas e desafios dos nossos tempos. Isso porque, a mesma, privilegia temas como economia solidária, plurinacionalidade, preocupação socioambiental e tantos outros assuntos primordiais nas discussões do agora; e que de sobremaneira divergem da lógica mais tradicional da feitura dos textos constitucionais, basimentandos sobre a égide dos mandamentos do Estado Liberal de Direito, e seus problemas conjunturais intrínsecos. A natureza polimorfa dessa Constituição, nascida de décadas de insatisfação e querelas políticas-econômicas entre Estado e sociedade civil, veio, então, para contemplar a diversidade dos povos-nações e do território desse país. Apresentando-se, como mostraremos, em um texto rico, múltiplo e diferente dos modelos mais tradicionais de Constituição; relativizando em pontos específicos e determinantes a lógica padrão da construção dos textos constitucionais, desde o surgir da ideia do Estado Liberal de Direito.

Grande parte das alterações mais fundamentais contidas no texto da Constituição

2 De acordo com o TSE equatoriano (Tribunal Supremo Eleitoral), a Constituição foi aprovada por 63,9% a 28%. Os votos em branco alcançaram 0,75% e os nulos, 7,23%. Com 444 artigos, a nova Constituição equatoriana institui reformas econômicas de inspiração socialista e habilita a reeleição imediata de Correa. O texto reforça o controle estatal sobre a economia; concede mais poderes ao presidente; garante saúde e educação gratuitas; proíbe a instalação de bases estrangeiras; e permite o voto dos militares (in Jornal Folha de São Paulo, de 20/10/2008, disponível em <http://www1.folha.uol.com.br/folha/mundo/ult94u458389.shtml>.

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Equatoriana de 2008 é fruto dos intensos momentos de mobilização e luta dos povos indígenas e suas reivindicações. Isso porque, o formalismo presente nas Constituições centradas na democracia representativa e no voto individual criou no seio da população desse país um desacordo entre os anseios mais importantes da população em geral, especialmente, das culturas indígenas; como posse coletiva das terras, país formado por povos-nações, respeito aos bens naturais, entre outros e as possibilidades práticas de sua efetivação como sujeito político; já que pelo modelo implementado durante todo o século XX, a saber, o Estado Liberal de Direito, a política possuía a alcunha do individualismo como basilar; centrando as decisões eleitorais sedimentadas nos interesses pessoais como mote fundamental das decisões coletivas.

Diante dessa contradição, os movimentos indígenas e seu senso coletivo de identidade, tornaram-se atores determinantes nos processos políticos, que desembocaram, através de revoltas, debates e conquistas legais, na promulgação de uma nova Constituição: a qual trás avanços significativos para as perguntas de um possível futuro das teorias constitucionais para os nossos tempos. Analisaremos, pois, em que medida e em quais pontos esse novo texto constitucional reverte ou altera a lógica tradicional do Estado Liberal de Direito.

1 – Dos avanços práticos e teóricos da Constituição equatoriana de 2008. 1.1 - Das bases teóricas para análise do objeto de estudo. Para entendermos os jogos de forças envolvidos no construir do texto Constitucional equatoriano de 2008, objeto de nossa análise, é preciso analisar de perto como se deram os processos de formação da Assembleia Constituinte; isto porque, a forma e extensão da soberania e independência do poder constituinte instaurado interferem de modo peremptório nos rumos e nas possibilidades de redação de qualquer Constituição (SCHIMIT, C. 1997). Assim sendo, um dos primeiros teóricos a versar sobre o “poder constituinte” e suas possibilidades foi o filósofo J. J. Rousseau, que deriva esse conceito da sua teoria da vontade geral; a qual se sustenta sobre uma soberania popular de caráter inalienável; sendo, pois, o povo o corpo político da sociedade; plasmando, pois, uma forma orgânica entre poder constituinte e poderes constituídos; ou seja, um sendo expressão do outro. Entretanto, com o passar dos anos e com o desenvolvimento progressivo de uma concepção de Estado assentada sobre garantias jurídicas e certos conceitos fundamentais quase que inalienáveis e, tantas vezes, a priori, a organicidade da vontade geral de Rousseau entre poder constituinte e poderes INSTITUIDO, no moderno Estado Liberal de Direito, foi sendo relativizada. O livro Teoria Pura do Direito (2002) de Hans Kelsen é um dos marcos definitivos nos estudos acerca das configurações dessa nova forma de Estado3; identificado na maioria dos países do globo, sob a alcunha de Estado 3 (...) Kelsen concebe a norma hipotética fundamental para embasar todo sistema normativo, ou seja, o

fundamento último das normas jurídicas seria outra norma, esta última de natureza metafísica. A norma hipotética fundamental é um pressuposto lógico de imposição das normas constitucionais. Era a tentativa de estabelecer uma Ciência do Direito livre da política e da moral, ao afirmar que a Ciência do Direito limitava-se ao estudo da norma. Kelsen formulou uma análise sistemática e piramidal das normas estruturadas sob a lógica deôntica do “dever-ser”. Em sua obra Teoria Pura do Direito, Kelsen (1939, p. 60) afirma que uma pluralidade de normas constitui uma unidade, um sistema, uma ordem, se a sua validade puder ser referida a uma norma única como último fundamento dessa validade. Essa norma fundamental constitui, como última fonte, a unidade da pluralidade de todas as normas que constituem uma norma. E se uma norma pertence a uma determinada ordem, é porque a sua validade pode ser referida à norma fundamental dessa ordem. Conforme a espécie de norma

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Democrático de Direito. José Horácio Meirelles Teixeira (1991, p. 47) diz que para manter-se fiel à sua posição de normativista4 puro, Kelsen não pode admitir, como fundamento da Constituição, algo de real, isto é, qualquer dado ou elemento sociológico, político ou filosófico, tais, por exemplo, como a vontade do povo, o Direito Natural, ou o Bem comum, etc. Ao contrário, o ponto de vista de Kelsen, de que o Direito é norma pura, “dever ser” puro, obriga-o a procurar um fundamento também normativo para a Constituição. Assim sendo, o alicerce das Constituições nascidas da teoria Liberal se nutrem de um caráter racional-abstrato (HEGEL:2002), buscando princípios e ordenações fundamentais, que garantam sempre uma lógica de progressão calculável, fazendo com as estratificações e divisões dos poderes desse Estado, e até mesmo o poder constituinte, sejam dispostos sob o primórdio ordenador de certas normas. Essa teoria comunga da divisão que o politólogo alemão, Carl Schmitt5, faz das formas políticas possíveis; a saber: conceito de Identidade e Representação. A forma política que se assenta sob o princípio de identidade depende da existência de um povo “capaz de atuação política em sua realidade imediata”, por conseguinte, pressupõe que o povo seja uma unidade política com uma magnitude real imediatamente existente. Já o princípio da representação “parte da ideia de que a unidade política do povo como tal nunca pode se achar presente em uma identidade real e, por isso, tem que estar representada pessoalmente por homens” 6.Destarte, depois dessa rápida contextualização das bases teóricas de onde nos assentamos, passaremos, então, para a análise mais direta de nosso objeto de Estudo primordial, a Constituição equatoriana de 2008.

1.2 – Preâmbulo

De início, deparamo-nos como uma das partes mais fundamentais e, tantas

fundamental, isto é, conforme a natureza do princípio de validade, podemos distinguir duas espécies de ordem. Artigo 05.pf p.40.

4 O termo normativismo pode ser compreendido como aquela concepção “que subordina a Política ao edifício normativo do direito” – Cf. Vieira 2004: p.12.

5 A argumentação de Schmitt contra o controle judicial da constitucionalidade gira em torno de dois pontos básicos. Em primeiro lugar, sustenta que toda decisão judicial ocorre post eventum, ou seja, sua missão pode ser sancionadora ou absolutória, reparadora ou repressiva, no entanto sempre de fatos passados, e ademais é incidental e acessória, a saber, aplicável ao caso concreto e específico que tenha sido submetido a um processo judicial, cuja conseqüência é a de possivelmente servir como precedente jurisprudencial. Em segundo lugar, Schmitt afirma que uma norma não pode ser defendida por outra norma, fazendo a distinção entre criação do direito, própria da atividade legislativa, e aplicação do direito, própria da jurisdição (...)toda sentença judicial implica uma subsunção concreta de um caso particular a uma norma legal, de maneira que atribuir a um Tribunal de Justiça a defesa da Constituição implicaria, em seu entender, a formação de um Estado Judicialista, em que a vida política ficaria submetida ao controle dos Tribunais ordinários. (3) Schmitt, em oposição a Teoria Pura de Kelsen, distingue o aspecto normativo do existencial da Constituição, em vez de vincular a validez da mesma com sua faticidade. Marcos Augusto Maliska http://www.justitia.com.br/artigos/5w45cd.pdf 6 O conceito de povo, na maioria dos países onde a democracia representativa é o parâmetro legislador, tende a se aproximar do conceito de massa. Já que, após o plasmar do conceito forte de individualidade e subjetividade dos filósofos da modernidade ocidental, houve uma aproximação de dois termos incongruentes; a saber, o individualismo político; que se torna hoje a base de grande parte de nossas democracias representativas. Tal posicionamento teórico dificulta a transposição das barreiras e interesses individuais, pondo em cheque o papel e a importância de certas práxis coletivas; retirando, pois, o conceito de povo da estrutura primordial da temática política, substituindo, em, muitos casos, por uma massa de indivíduos; cooptados a exercer seu direito de voto de forma individual e descolada da coletividade. Sobre o tema, ver o capítulo II – parte II.

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vezes, esquecida de uma Constituição, o preâmbulo. Essa espécie de “pré-texto”, antecipa diretrizes e fundamentos que ordenarão o escrito que se seguirá. No caso do Equador, a beleza poética e as palavras ali escritas inauguram, de sobressalto, o tom de novidade desse texto; trazendo para a Constituição os frutos das conquistas de décadas de lutas dos movimentos sociais e da população equatoriana como um todo7. Destacamos primeiramente8, a felicidade no tratamento de gênero9 da Língua espanhola; na medida em que as palavras “nosotros” e “nosostras” substituem com louvor a unicidade do “nós”; generalizante, de nossa língua portuguesa. Logo em seguida, a temática da plurinacionalidade10, tema fundamental11, no que confere os avanços dessa Constituição em relação às Constituições baseadas no modelo do Estado Democrático de Direito, aparece de forma sintomática louvando a diversidade de homens e mulheres de diferentes povos que compõe essa nação; trazendo para um texto constitucional moderno o conceito de um Estado múltiplo, diverso e heterogêneo em suas raízes.

Para finalizar os pontos considerados fundamentais do preâmbulo da Constituição de 2008, destacamos mais 2 pontos: 1 - O grande respeito à Natureza, tida como la Pacha Mama, de la que somos parte y que es vital para nuestra existência (Constituição:2008, p.15). E, 2 - o conceito de sumak kawsay, expressão em dialeto keshua, traduzido por Sumak, plenitude, e kawsay, viver. Não se trata de viver melhor ou viver cercado de conforto. Trata-se de viver em plenitude. Plenitude implica fazer da felicidade um projeto comunitário, coletivo. É saber construir relações de solidariedade, não de competição; de harmonia, não de hostilidade; e estabelecer com a natureza vínculos de parceria cuidadosa. Que como Frei Beto, ao analisar tal conceito, diz,

Para a sociedade capitalista, a natureza é objeto de propriedade e temos o direito de explorá-la e até destruí-la em função de nossas ambições. O capitalismo se norteia pelo paradigma riqueza-pobreza, enquanto o sumak kawsay rompe esse dualismo para introduzir a de sociabilidade e de sustentabilidade, bases fundamentais de um projeto civilizatório. Fora disso, caminharemos para a barbárie.Frei beto

7 Cf. Francisco Matos texto 1 nedal 2. 9 Uma das questões mais decisivas de nossa contemporaneidade é uma busca incessante pela equivalência

e respeito à igualdade de gêneros. Com o passar do tempo, uma reanálise dos textos e contextos que envolvem tal discussão se disseminam por entre estudos que buscam fincar e desmascarar certos preconceitos embutidos no cotidiano. Já que, “Desde os anos de 1970, a teoria feminista, influenciada pelo movimento feminista, tem alertado para os perigos da supergeneralização, sugerindo que os valores, as experiências, os objetivos e as interpretações dos grupos dominantes são apenas os valores, experiências, objetivos e interpretações desses grupos, não da humanidade como um todo. Foi a partir disso que surgiu uma área da epistemologia dedicada a compreender a forma como o gênero influencia aquelas concepções e práticas e como elas têm sistematicamente colocado em desvantagem as mulheres e outros grupos subordinados (RAMLIN, Cynthia. O que é Epistemologia feminista? 2007, Disponível em http://quecazzo.blogspot.com/2007/09/o-que-epistemologia-feminista.html, acesso em 02/01/2012).

10 Cf. Cf. Préambulo. In. Constituição do Equador de 2008. 11 A temática da plurinacionalidade aqui é considerada fundamental para analisar as novidades dessa

Constituição, porque esse conceito relativiza a unicidade e a aparente harmonia dos povos e população que formam determinado país, que adotam o modelo do Estado Liberal de Direito e sua aliança quase hegemônica com a democracia representativa; onde o povo se transforma geralmente numa espécie de massa de votantes, que comparece às urnas por interesses pessoais através de voto secreto e individual. Para esse ponto acerca da atomização da população recomendamos a leitura de Filosofia de Direito (2010) de Hegel, principalmente na parte referente ao Estado.

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http://amaivos.uol.com.br/amaivos09/noticia/noticia.asp?cod_Canal=53&cod_noticia=17035

Entre as principais mudanças introduzidas pelo texto está a mudança no padrão usado para avaliar o desenvolvimento do país, que deixou de ser o progresso econômico e passou a estar centrado no conceito do "bem viver". O texto constitucional equatoriano alimenta o desejo de se tornar uma Una sociedad que respeta, en todas sus dimensiones, la dignidad de las personas y las colectividades; (2008, p . 15)

Passemos agora, para o Título I – ELEMENTOS CONSTITUTIVOS DO ESTADO –, em que os princípios fundamentais são mostrados e rapidamente explanados. Nessa parte do texto se condensam diretrizes importantes, do que se entenderá sobre o que é inalienável nesse novo Estado nascente. Vemos, então, que El Ecuador es un Estado constitucional de derechos y justicia, social, democrático, soberano, independiente, unitario, intercultural, plurinacional y laico. Se organiza en forma de república y se gobierna de manera descentralizada (2008, art. 1, p.16). Tal artigo é salutar para entender como as crises e os movimentos sociais, das últimas três décadas do século XX e primeira década do século XXI, foram fundamentais na construção da nova normatividade exposta nesse texto constitucional. Isso porque, expõe um claro afastamento das especificidades do modelo Liberal de Direito para o Estado, ao unir as palavras justiça social e plurinacional às tradicionais significações daquele modelo; apresentando-se como uma decisão por uma nova forma de existência política (SCHIMITT, C. 1997). Logo mais abaixo, ainda no mesmo artigo I, aparece para demarcar ainda mais as conquistas dos movimentos populares a inserção no texto constitucional de formas diretas12 de participação política, quando este diz que La soberanía radica en el pueblo, cuya voluntad es el fundamento de laautoridad, y se ejerce a través de los órganos del poder público y de las formas de participación directa previstas en la Constitución. Mas em que medida esse distanciamento se dá pelo acréscimo de poucas palavras ao texto de uma Constituição?

Por conseguinte, diante dessa pergunta, e do contexto da maioria dos países latino-americanos que adotaram a democracia representativa e os ditames do Estado Liberal de Direito; em sua aproximação quase que indissociável com o modelo econômico neoliberal, percebemos que garantir justiça social, não é de forma alguma o papel predominante do Estado nesses países. Já que garantias econômicas e o desenvolvimento baseado no PIB (produto interno bruto) são os grandes motes para hierarquização do seu grau de avanço e ranqueamento global. Diante disso, apreendemos aqui, que um Estado que tem a preocupação com o bom viver (sumak kawsay ) e a justiça social se baseia em algo mais que os corriqueiros parâmetros das nossas modernas Constituições, inspiradas na visão liberal de direito .

Além disso, o tema da plurinacionalidade surge para se contrapor a ideia de homogeneização dos povos que formassem esse país. A representatividade e o caráter 12 A iniciativa popular de lei se exercerá para promover a criação, reforma ou mudança nas normais

jurídicas legislativas ou qualquer outro órgão com competência normativa. Deverá conta com o respaldo de um número não inferior a 0,25% das pessoas inscritas no registro eleitoral da jurisdição correspondente. (...) Quando se trate de um projeto de lei, a Presidência da Repúblcica poderá emendar o projeto, mas não vetá-lo totalmente. Para a apresentação de propostas de reforma constitucional se requerirá um respaldo de um número não inferior a 1% do das pessoas inscritas no registro eleitoral.

(...) O órgão eleitoral correspondente convocará a consulta popular por disposição da Presidente ou Presidenta da República, da máxima autoridade dos governos autônomos descentralizados ou da iniciativa cidadã (2008: Art º 103 – 107).

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abstrato da normatividade a priori do Estado Liberal Direito, como implementado no Equador das últimas décadas, tentava arrefecer as diferenças e especificidades dos povos-nações formadores. Tratando, pois, todos unicamente como indivíduos em seus mundos e costumes próprios; destacando-os de contextos multiregionais e/ou culturais, enfraquecendo seu senso de coletividade e sua possibilidade de lutar por direitos coletivos. Tratar, então, de plurinacionalidade no Título Elementos Constitutivos do Estado, é mostrar o grau de importância da vitória do movimento indígena e suas lutas contra o ostracismo e esquecimento, o qual os povos-nações sofreram durante décadas; por participar de um Estado baseado na abstração como modelo racional de seus conceitos fundamentais. Retornando ao seio de sua Pátria, o sentimento e o papel de coletividade de culturas e povos, obriga a Constituição deste, um rearranjo das disposições e criação de conceitos e mecanismos (como o de participação direta da população) para contemplar os rearranjos de forças que se manisfestaram.

Tal reformulação dos papeis desse Estado, sedimentado no bom viver e na plurinacionalidade, está expresso de forma resumida no art.3. do Capítulo 1, intitulado São deveres primordiais do Estado, ao dizer que é dever fundamental Planificar el desarrollo nacional, erradicar la pobreza, promover el desarrollo sustentable y la redistribución equitativa de los recursos y la riqueza, para acceder al buen vivir. Ressaltamos aqui, o thelos de todo ato estatal visando uma ascensão dos cidadãos ao caráter desse bom viver. Essa espécie de cuidado com o cidadão é uma relativização do distanciamento abstrato, da pura tomada de opinião individual em sufrágio na democracia representativa; lugar no qual, se transforma no único momento onde o cidadão do Estado “democrático” de Direito está de posse dos rumos políticos deste. Esse novo rumo busca garantir, através de uma série de fatores ambientais, coletivos, econômicos, entre outras condições mínimas para que a sua população goze de um viver humanamente digno.

Adentrando no capítulo segundo – Derechos del buen vivir –, que expressa o caráter fundamental dessa Constituição, o bom viver, percebemos o requinte e o trabalho minucioso na construção desse capítulo; dividido em oito seções (Agua y alimentación, Ambiente sano, Comunicación e Información, Cultura y ciência, Educación, Hábitat y vivenda, Salud, Trabajo y seguridad social) esse capítulo tratará das garantias mínimas para o thelos constitucional do sumak kawsay. Esse caráter holístico do bem viver humano encontra-se sintonizado com o que há de mais avançado em garantias constitucionais, de um viver digno, expressas em texto ocidental.

Nos dois primeiros tópicos, o respeito, cuidado e a necessidade fulcral da Natureza, concebida já no preâmbulo como, la Pacha Mama, torna-se condição vital para esse modelo de existência humano. Acreditamos que o respeito e a veneração da maioria dos povos indígenas pela sua terra, foi o principal responsável pelo caráter eco ambiental dessa Constituição, que concede todo um capítulo (sétimo) aos direitos da Natureza. O texto ali escrito avança por conceitos extremamente atuais como reciclagem, cuidado com os bens naturais, energias renováveis, sustentabilidade, conservação de biodiversidade e até mesmo conservação das heranças genéticas ancestrais. Ou seja, nesses dois primeiros tópicos se percebe que as discussões mais atuais acerca das condições humanas de existência, em seu contato orgânico e indissolúvel com planeta Terra, encontram-se premiadas no texto Constitucional equatoriano de 2008. Ou seja, o tratamento dos recursos naturais como fontes para proliferar ad eternum a vida humana – a natureza como fonte de energia a ser utilizada13 13 Cf. A questão da técnica (2006) do filósofo alemão Heidegger. O que Heidegger busca demonstrar nesse livro é que em tempos de técnica moderna torna-se muito mais importante a eficiência da técnica, traduzida no ato de fabricação, do que a própria finalidade do instrumento fabricado. Essa constatação o

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– passa por uma ressignificação conceitual; que prima pela simbiose entre la Pacha Mama e os seus filhos, os humanos. A instrumentalização14 da natureza, do locus humano é posta em cheque com esse conceito de natureza como Pacha Mama, já que a originariedade15 da relação com a natureza, não permite a este ser tratar tudo como um opaco, uma fonte de energia a ser consumida, nem como algo sem vida e imóvel, de caráter passivo e onde meus conhecimentos se debruçam, retiram e conhecem todas as suas particularidades. Transformando tudo num inerte sem vida, abortando a relação indissociável entre humanos-natureza.

Destarte, no capítulo sétimo do título II – Derechos de la Natureza –, em seus 4 artigos, percebemos claramente o afastamento da tradicional visão acerca do recursos naturais e Natureza como um todo. Nesse capítulo se expõe a obrigação de todos para com a manutenção, preservação e integralidade sistêmica da la Pacha Mama. No Art. 71 reza que: La naturaleza o Pacha Mama, donde se reproduce y realiza la vida, tiene derecho a que se respete integralmente su existencia y el mantenimiento y regeneración de sus ciclos vitales, estructura, funciones y procesos evolutivos. Assim, é dever do Estado garantir o locus, enquanto habitat, para seu povo; como medida inalienável para a condição do bom viver; com essa forma de tratamento da Natureza em um texto constitucional, vê-se claramente as disposições ecológicas e suas reverberações e diálogos adentrando a normatividade legal de um país, e expondo contradições de uma evolução humana centrada no desenvolvimento puramente econômico.

Passemos, agora, para o capítulo intitulado Derechos de las comunidades, pueblos y nacionalidades, em que as conquistas dos movimentos sociais, principalmente o movimento indígena serão plasmados de maneira sistemática no texto constitucional. Este capítulo é o lugar onde as discussões acerca do que se entende por plurinacionalidade e suas implicações aplicadas ao Estado se apresentam ao cidadão. Já no primeiro artigo desse capítulo diz que, Las comunidades, pueblos, y nacionalidades indígenas, el Pueblo afroecuatoriano, el pueblo montubio y las comunas forman parte del Estado ecuatoriano, único e indivisible (2008, art. 56, p. 41). Vemos, então, que o caráter de soberania do Estado está extremamente presente como em todos os outros textos constitucionais normais, mas o que diferencia a Constituição nesse é a pluralidade dos seus povos formadores e o reconhecimento das coletividades, grupos e povos-nações que sustentam e configuram as múltiplas facetas étnicas do Equador. Já não se trata apenas de indivíduos que formam um país, não são apenas cidadãos atomizados os únicos formadores da população, mas a partir do conceito de

pensador já antevê logo no início de seu Ensaio quando diz que ao questionar sobre a técnica não se responde à questão por nada que seja técnico, mas com a proposta de se buscar a essência da técnica mesma. 14 A metafísica reduziu o ser do ente à certeza da representação e à vontade de controle como vontade do

sujeito de reduzir tudo a si mesmo. É pensamento que, mesmo ao pôr o problema do ser, o esquece imediatamente e se limita a considerar a simples supremacia do ente. Desaparecida a diferença ontológica e reduzido o ente a um sistema universal de fundação regido pelo princípio de razão suficiente, já não fica nenhum ente realmente oculto. Tudo é conhecido ou, pelo menos, conhecido em sua mostração por intermédio dos métodos racionais (de fundar e explicar) da ciência e da técnica moderna. O fundamento de validade deste princípio é remetido ao homem que, enquanto ente capaz de conhecer, instituiria o mundo em que os entes aparecem a partir da redução do ser à objetividade e do mundo ao seu sujeito, sendo que este bem poderia ser um resultado que se consegue no laboratório do cientista como um produto de uma atividade humana. Ricardo Cocco http://www.controversia.unisinos.br/index.php?a=56&e=3&s=9

15 Cf. Ser e Tempo (2002) de Heidegger. Empregamos essa palavra com o significado proposto por Heidegger nesse livro, apresentando-se, pois, como algo anterior ao próprio nascer do homem, que quando este vem a ser só pode ser pensado através da relação indissociável com esse algo que lhe antecede e onde vem a ser.

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plurinacionalidade coletivos, culturas e nações passam a ser reconhecidos como núcleo e sustento do Estado; tendo, pois, este que garantir direitos coletivos a essas comunidades de povos e nações.

Desta maneira, o reconhecimento de direitos coletivos é um avanço incomensurável no distanciamento do caráter abstrato e instrumental dos textos constitucionais que vigoram na maioria dos países do globo. Reconhecer direitos coletivos é reformar um dos pilares epistemológicos de todo o paradigma16 vigente nas sociedades contemporâneas, a saber, a conquista da liberdade individual e suas implicações em todas as esferas contingenciais dentro de uma sociedade. um exemplo disso é uma reforma no que entendemos cotidianamente por propriedade privada, já que no título II capítulo 4 do art. 57 explicita que é um direito dessas coletividades Conservar la propiedad imprescriptible de sus tierras comunitarias, que serán inalienables, inembargables e indivisibles. Estas tierras estarán exentas del pago de tasas e impuestos. Ou seja, nesse texto constitucional apresenta-se o conceito de posse comunitária das terras e seus bens naturais como legítimo; grande contraponto a causa pétrea de várias Constituições, a propriedade privada como único paradigma.

Prosseguindo mais adiante, no tópico 17, ainda do art. 57 da Constituição, somos apresentados às formas de representação possíveis para essas coletividades ao afirmar e legitimar seu caráter autárquico nas formas de mediação entre seus desejos e o Estado, assegurando que Construir y mantener organizaciones que los representen, en el marco del respeto al pluralismo y a la diversidad cultural, política y organizativa. El Estado reconocerá y promoverá todas sus formas de expresión y organización (2008, p.43). Neste ponto, a representação individual é posta em cheque pelos ditames do conceito de Estado Plurinacional, já que reconhecer os ditames da autarquia coletiva torna-se o dever desse Estado e da forma de governo que esteja efetivado. Tal inovação, distoa do já tão falado atomismo da democracia representativa; o senso de coletividade, de comunidade, tradição e organicidade de uma cultura forte e enraizada em certo agrupamento de pessoas, distingue-os como um “eu coletivo”, emanando deste anseios também coletivos na busca do desenvolvimento progressivo dessa coletividade. É sintomático, pois, o extraordinário avanço da Constituição de 2008, no que tange a transformação dos povos-nação, não mais em uma massa de indivíduos que irão às urnas votar, mas legitima as formas próprias e autárquicas que esse grupo tem de eleger seus representantes locais; os quais serão mediadores na relação com as outras instâncias estatais e sociais.

Participação e organização do poder. Como já expomos, o texto constitucional de 2008 apresenta mecanismos de relativização e atualização das formas cotidianas de representatividade. Tal temática é basilar para o intento do nosso projeto, saber até que ponto os textos constitucionais nascidos nos países latino americanos na última década coadunam ou não com os ditames do Estado Liberal de Direito na construção da lex magna. No título IV – Participación y organización del poder – se apresentam os mecanismos de representação política possíveis para o Estado equatoriano. Já no primeiro capítulo deste título referido – Princípios de la Participación – diz que: La participación de la ciudadania en todos los asuntos de interés público es un derecho, que se ejercerá a través de los mecanismos de la democracia representativa, directa y comunitária (2008: art. 94, p.67). Duas 16 Pensamos o significado dessa palavra como o filósofo Thomas kuhn. Que a verdade de certa época é

um consenso conflituoso de ideias concorrentes, e que nada impede uma reformulação e subjugação de um paradigma vigente por outro. Cf.

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palavras nos chamam atenção nessa frase, são elas: direta e comunitária; na análise de outras Constituições tais formas de participação política são exíguas e, tantas vezes, nem aparecem como opções para tal. Analisar como essas dois conceitos se coadunam com os mecanismos de representação é sobre o que vamos nos debruçar. Como há pouco vimos, o reconhecimento da autogestão das coletividades e de povos-nação, além do reconhecimento do Estado como plurinacional traz para o poder constituinte obrigações intransponíveis em relação à inclusão das garantias dessas formas de organização e existência dentro do texto constitucional. No art. 98 diz que Los individuos y los colectivos podrán ejercer el derecho a la resistencia frente a acciones u omisiones del poder público o de las personas naturales o jurídicas no estatales que vulneren o puedan vulnerar sus derechos constitucionales, y demandar el reconocimiento de nuevos derechos. Tal artigo abre o precedente para a modificação constitucional através de mecanismos iniciativa popular, retornando, de certa forma, a um conceito mais orgânico de povo e Estado, como anteriormente pensado pelo conceito de vontade geral de Rousseau, e relativizando o conceito de normatividade a priori do Estado de Direito. Para tanto La iniciativa popular normativa se ejercerá para proponer la creación, reforma o derogatoria de normas jurídicas ante la Función Legislativa o cualquier otro órgano con competencia normativa. Deberá contar con el respaldo de un número no inferior al cero punto veinte y cinco por ciento de las personas inscritas en el registro electoral de la jurisdicción correspondiente (2008, Art.103.) e quando se tratar de uma mudança constitucional o número de outorgantes da causa deverá ser igual ou superior a 1%.

Por conseguinte, ainda na análise dos mecanismos de participação direta, o mais radical mecanismo é o referendo popular, tão difícil de ser instaurado em outros países, tem no texto constitucional equatoriano de 2008, suas deliberações claramente expostas no art. 104. Em suma, há três autoridades legítimas com poderes de solicitar ao poder eleitoral vigente o referendo popular, são eles: la Presidenta o Presidente de la República, de la máxima autoridad de los gobiernos autónomos descentralizados o de la iniciativa ciudadana17. Ainda se apresenta como parte importante do tópico a possibilidade de revogação de mandatos através da iniciativa popular desde que seja respaldada por un número no inferior al diez por ciento de personas inscritas en el registro electoral correspondiente. Para el caso de la Presidenta o Presidente de la República se requerirá el respaldo de un número no inferior al quince por ciento de inscritos en el registro electoral (2008, art 104).

Esse mecanismo de revogação de mandatos é imprescindível para reverter a lógica do Estado Liberal de Direito e seus mecanismos de representação, que deixam o cidadão refém de seu representante; porque o primeiro, estando ele, atomizado e votando segundo seus interesses puramente pessoais, geralmente sem sentimento de classe, comunidade ou coletividade, não possui forças suficientes para cobrar de maneira incisiva ao representante. Na hora do voto, passamos uma espécie indulto, que legitima todas as ações do nosso representante; o qual se não tiver um senso ético apurado usufruirá do seu mandato também segundo seus interesses também pessoais. Essa espécie de fisiologismo se assenta sobre a contradição nos termos de política centrada no individualismo; contradição já exposta por Marx, mas que ainda encontra-se pungente nos países que adotam o modelo do Estado Liberal de Direito como mote ordenador. No caso equatoriano, os anos de desalento com o fisiologismo partidário foi 17 La ciudadanía podrá solicitar la convocatoria a consulta popular sobre cualquier asunto. Cuando la consulta sea de carácter nacional, el petitório contará con el respaldo de un número no inferior al cinco por ciento de personas inscritas en el registro electoral; cuando sea de carácter local el respaldo será de un número no inferior al diez por ciento del correspondiente registro electoral.

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motivo para intensas revoltas e descrença18 da população com o modelo representativo partidário. Da divisão do Estado em 5 funções. Na nova Constituição equatoriana o pilar moderno da divisão em três poderes, proposta por Montesquieu, transforma-se numa divisão em cinco funções, a saber, função Legislativa, Executiva, Judiciário e Justiça indígena, e mais dois, que divergem da clássica divisão moderna, a função de Transparência e controle social e a função Eleitoral. Analisemos, de forma breve, suas especificidades. Função Legislativa. A função legislativa (2008: Art 118-128) exerce sua autoridade através da Assembleia Nacional, com sede em Quito, formada por representantes eleitos para um mandato de quatro anos. A formação dessa assembleia se dá da seguinte maneira: 15 assembleistas eleitos por sufrágio nacional, dois assembleistas por cada província; podendo ser mais que dois, a depender da quantidade de habitantes de cada uma, acrescentando mais um representante a cada duzentos mil habitantes que superem os 150 mil habitantes de cada província. Os seus poderes e deveres são bem semelhantes ao plasmado nos Estados contemporâneos; podendo por em votação a cassação de mandatos presidenciais (em casos específicos19), legislar, fiscalizar o uso do erário público, conceder anistia por delitos políticos, criar e/ou modificar tributos, regras e normas fiscais e constitucionais, etc. Função Executiva. A função executiva é composta pela Presidência e Vice presidência os Ministérios e todos os outros organismos e instituições necessários para cumprir suas atribuições primordiais de definição, planificação, execução e avaliação das políticas públicas do Estado (2008: Artº 141). O Presidente da República, máxima autoridade da função Executiva, ganha na Constituição de 2008 tais deveres e poderes importantes: Só pode ser reeleito uma única vez, deve avisar sempre a razão de sua ausência no País à Assembleia Nacional, deve garantir a aplicação da Constituição, prestar contas à Assembleia Nacional do patamar de aplicação e execução do plano de desenvolvimento estatal, tem o poder de conduzir, de forma independente, as políticas de cunho internacional, sancionar leis oriundas das votações da Assembléia Nacional, comandar as forças de segurança nacional, convocar consultas populares nos casos previstos na Constituição, etc. Além disso, um tema extremamente importante, no tangente ao avanço da Constituição Equatoriana ante as modernas constituição dos Estados centrados no modelo liberal de direito, é o mecanismo de “morte cruzada”, assim como a Assembléia Nacional pode por em votação a cassação do mandato do Presidente, nos casos previstos na lei, o Presidente ou presidenta, agora, ganha o poder de solicitar a

18 Cf. texto nedal 1 francisco matos... 19 1 - Por delitos contra a segurança do Estado (Grave crise política com comoção nacional e se o

Presidente ou presidenta estiver envolto em cargos e decisões que não são da alçada de sua função . 2 – Por crimes de peculato, enriquecimento ilícito, corrupção e suborno. 3 – Por delitos de genocídio, torturas, desaparecimento forçado de pessoas, sequestro ou homicídio (2008: Artº 129).

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dissolução da Assembléia Nacional, quando acreditar que esta está exercendo funções que não lhe competem constitucionalmente, ou se de forma reiterada ou injustificado se obstrui a execução do Plano Nacional de Desenvolvimentos, ou ainda, por grave crise política e comoção popular interna (2008: Artº 148). Quando o Presidente ou Presidenta solicitar a execução dessa ordem, num prazo máximo de sete dias úteis se convocam eleições tanto para Assembléia Nacional como para a Presidência da República; daí o conceito de “morte cruzada”, o qual vem para relativizar as possíveis pressões escusas dos parlamentos sobre a Presidência. Função Judicial e Justiça Indígena A força e potência dessa função emanam do povo e se exercem através dos órgãos judiciais, que gozam de autonomia financeira, administrativa e econômica. O acesso da população ao judiciário se dá de forma gratuita, os ditames e as decisões judiciais terão sempre um caráter público, salvo às exceções previstas na lei, e se divide em várias instâncias de hierarquia. Além disso, tem o poder de julgar casos que inflijam a lei dos Assembleistas, da presidência e de outras as outras funções estatais, ou seja, será a função que garantirá a execução, aplicação e discutirá a legalidade dos casos omissos (2008: Art º 167-169). A função judicial se divide da seguinte maneira em ordem crescente importância: Os tribunais de paz, os tribunais que estabelecem a lei, as Cortes Provinciais e a ultima instância, a Corte Nacional de Justiça. O grande avanço da Constituição de 2008 diz respeito a criação da Justiça Indígena, que garante que autoridades das comunidades, povos e nacionalidades indígenas possam exercer funções jurídicas, com base em suas tradições ancestrais. Tais autoridades aplicarão normas e procedimentos próprios para a solução de seus conflitos internos, mas, somente, aqueles que não forem de encontro à Constituição, ou aos direitos humanos reconhecidos internacionalmente. A lei garantirá, pois, um diálogo entre justiça ordinária e justiça indígena. Reconhecemos, pois, aqui mais um dos avanços na concessão de direitos especiais aos povos indígenas, os quais, como vimos foram os principais sujeitos políticos das manifestações equatorianas das últimas 3 décadas, que levaram a cabo seus descontentamentos culminando na promulgação dessa Constituição em 2008. Função de Transparência e Controle Social. A função de Transparência e Controle Social promoverá e impulsionará o controle das entidades e organismos do setor público, e das pessoas naturais ou jurídicas do setor privado que prestem serviços ou desempenhem atividades de interesse público, para que se realizem com responsabilidade, transparência e equidade; fomentará e incentivará a participação cidadã; protejerá o exercício e cumprimento dos direitos e combaterá a corrupção. Tal função é formada pelo Conselho de Participação Cidadã e Controle Social, a Defensoria do Povo, a Controladoria Geral do Estado e suas superintendências. Todas essas entidades terão personalidade jurídica e autonomia administrativa, financeira e organizativa (2008: Artº 204). Os representantes da função de Transparência e Controle social são eleitos para mandatos de 5 anos, e tem como objetivo; 1. Formular políticas públicas de transparência, controle, redução de gastos, promoção de participação do cidadão e prevenção e luta contra a corrupção. 2 – Coordenar o plano de ação das entidades da função, sem afetar a luta contra a corrupção. 3 – Articular a formação do plano nacional de luta contra a corrupção. 4 – Apresentar a Assembléia Nacional propostas de reformas

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legais no seu âmbito de competência. 5 – Prestar conta à Assembléia Nacional do desempenho de suas funções (2008: Artº 206). Função Eleitoral A Função Eleitoral garantirá o exercício dos direitos políticos, que se expressam através do sufrágio, assim como os referentes à organização política da cidadania. Tal função será formada pelo Conselho Nacional Eleitoral e o Tribunal Contencioso Eleitoral. Ambos órgãos terão sede em Quito, jurisdição nacional, autonomias administrativas, financeira, organizativa e terá personalidade jurídica própria. E são regidos por princípios de autonomia, independência, publicidade, transparência, equidade, interculturalidade, igualdade de gênero, celeridade e probidade (2008: Artº 217). O artigo 219 estabelece as funções da ANC:

Art. 219.- El Consejo Nacional Electoral tendrá, además de las funciones que determine la ley, las siguientes: 1. Organizar, dirigir, vigilar y garantizar, de manera transparente, los procesoselectorales, convocar a elecciones, realizar los cómputos electorales, proclamar los resultados, y posesionar a los ganadores de las elecciones. 2. Designar los integrantes de los organismos electorales desconcentrados. 3. Controlar la propaganda y el gasto electoral, conocer y resolver sobre las cuentas que presenten las organizaciones políticas y los candidatos. 4. Garantizar la transparencia y legalidad de los procesos electorales internos de las organizaciones políticas y las demás que señale la ley. 5. Presentar propuestas de iniciativa legislativa sobre el ámbito de competencia de la Función Electoral, con atención a lo sugerido por el Tribunal Contencioso Electoral. 6. Reglamentar la normativa legal sobre los asuntos de su competencia. 7. Determinar su organización y formular y ejecutar su presupuesto. 8. Mantener el registro permanente de las organizaciones políticas y de us directivas, y verificar los procesos de inscripción. 9. Vigilar que las organizaciones políticas cumplan con la ley, sus reglamentos y sus estatutos. 10. Ejecutar, administrar y controlar el financiamiento estatal de las campañas electorales y el fondo para las organizaciones políticas. 11. Conocer y resolver las impugnaciones y reclamos administrativos sobre las resoluciones de los organismos desconcentrados durante los procesos electorales, e imponer las sanciones que correspondan. 12. Organizar y elaborar el registro electoral del país y en el exterior em coordinación con el Registro Civil. 13. Organizar el funcionamiento de un instituto de investigación, capacitación y promoción político electoral.

A função eleitoral, portanto, é a instância que viabiliza os mecanismos de democracia direta como os referendos, a iniciativa popular de lei e de reforma Constitucional. Conclusão No desenvolvimento do nosso texto, buscamos evidenciar os avanços apresentados na Constituição equatoriana de 2008, no tangente a um novo paradigma teórico do que é considerado o bom viver desejável para esse país, que vai de encontro ao que encontramos nas Constituições baseadas na teoria do Estado Liberal de Direito. Para tanto, analisamos como as sucessivas crises econômicas, sociais e políticas foram determinantes para a quantidade de revoltas, protestos e cobranças dos movimentos sociais; os quais, cada vez mais organizados, e expressando os anseios da

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maior parte da população, interferiram diretamente nos rumos teóricos do novo texto constitucional de 2008. Já que, os paradigmas, até então seguidos, a saber, de um texto constitucional e uma sociedade arregimentada pela teoria do Estado Liberal de Direito e suas contradições internas já não possuíam a anuência da maioria da população do Equador. Isto porque, tal teoria pressupõe uma política baseada no individualismo eleitoral, formalismo exacerbado na interpretação do texto-lei; o que acarreta numa despersonalização dos problemas de gênero, de cunho econômico e do viés de justiça social, dos oximoros presentes na representativade democrática de direito; que deixam o eleitor, este atomizado politicamente, sem forças de cobrança sobre os rumos do mandato do seu candidato eleito. Ou seja, tudo isso, já não dava vazão aos desejos dessa sociedade. Eminentemente formado por uma multiplicidade de povos e culturas, principalmente de origem indígena, o poder constituinte equatoriano de 2008, viu-se, então, obrigado a oferecer soluções constitucionais que garantissem voz e direitos para esses povos formadores de sua identidade. O tema da plurinacionalidade surgiu justamente para dar vazão a essa problemática. Tal conceito vem para expressar a diversidade de povos-nação; fazendo com que este Estado reconheça atividades cidadãs coletivas e alterando formas postas nas modernas Constituições arregimentadas nas teorias liberais de direito. Alterando, pois, a homogeneização e atomização da população, marcas do formalismo social do Estado Liberal de Direito, que haviam causado imensas contradições ao longo do período pós-colonial equatoriano. Ou seja, uma nova forma de identidade faz-se emergir do conceito de plurinacionalidade, não mais a unicidade de um povo único, mas o reconhecimento a priori da diferença e multiplicidade como fundamentos desse Estado. Assim, tal conceito põe em cheque cânones das tradicionais teorias constitucionais, inaugurando um novo olhar sobre os povos-nação que formavam e forma esse país.

Assim sendo, no texto constitucional de 2008, são incorporados conceitos fundamentais, derivados do conceito primordial de plurinacionalidade, os quais produzem um contraponto à Teoria do Estado Liberal de Direito, a saber, posse coletiva de terras, justiça comunitária, justiça indígena, voto comunitário e distrital, autarquia política e judiciária para os povos-nação (desde que não sejam feridos princípios fundamentais da Constituição), etc. Entre esses temas, um que entra em choque direto com as tradicionais Constituições é o reconhecimento da posse coletiva de terras, uma espécie de paradoxo para as sociedades baseadas na propriedade exclusivamente individual; causa pétrea em diversos textos constitucionais arregimentados sob o viés do Estado Liberal de Direito.

Portanto, como mais uma das consequências da temática da plurinacionalidade, e do reconhecimento dos múltiplos povos-nação, principalmente os povos indígenas, como formadores do Estado, a Constituição de 2008 expõe um novo modelo de justiça e desenvolvimentos social, o Sumak Kawsay (Bom Viver). Diferindo das modernas Constituições, centradas no plano econômico neoliberal, a Constituição equatoriana expõe um conceito de desenvolvimento social mais abrangente, centrado em ditames que vão muito além do “bom viver” econômico. O conceito de Sumak Kawsay se distancia do desenvolvimento assentado apenas no progredir material, incorporando temas como justiça social, sociabilidade e sustentabilidade como thelos fundamentais do progredir social almejado. Esse conceito de “bom viver”, reflete a relação mais simbiótica dos povos tradicionais com a natureza, tratada como “la Pacha Mama”, fundamental para suas formas de existir e impassível de esquecimento ou de abstração despersonalizante. O conceito de natureza como fonte de energia, como algo ser explorado até o seu limite, dá lugar a uma relação indissociável entre humano e

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natureza. Portanto, as consequências desses dois conceitos analisados é um avanço exponencial dessa Constituição face às modernas discussões sobre meio ambiente, sócio-ecologia e sustentabilidade, incorporando mecanismos legais para o tratamento dessas questões.

Outro aspecto fundamental, que distancia tal texto constitucional de outros tradição liberal, é a divisão estatal arregimentada em cinco poderes ou funções e não nos costumeiros três. Além dos corriqueiros, Legislativo, Executivo e Judiciário, apresentam-se ainda as funções de poder Eleitoral e a função de Transparência e Controle Social. Como vimos, além das novidades nas divisões dos poderes do Estado, cada função expõe certas especificidades que os distanciam da lógica corriqueira do Estado Liberal de Direito. Os mecanismos de participação direta são amplificados por essa Constituição; a qual busca afastar-se do formalismo e da representatividade, do ser cidadão apenas na hora do voto. Dessa forma, busca-se romper a relação de dependência do representado em relação ao representante, traço fundamental para relativização do paradigma constitucional liberal; revertendo, assim, o sentido de sua lógica. Consequentemente, o acesso e a convocação à referendos populares é facilitado; e uma retomada do desejo de organicidade entre Estado e Povo é posto como mote dessa Constituição. Ou seja, as cinco funções se policiam mutuamente para garantir que as conquistas dos movimentos sociais e da população como um todo não evanesçam em meio à burocracia, formalismo e instrumentalização estatal em seus processos de implementação dos conceitos tidos como fundamentais. Assim, a Constituição de 2008, expressa em seus conceitos chave – plurinacionalidade, posse coletiva de terras, sumak kawsay ou bom viver, divisão estatal em cinco funções (poderes), justiça indígena, mecanismos de participação direta, entre outros – um distanciamento sintomático da teoria do Estado Liberal de Direito; apresentando-se, pois, com um dos objetos de estudo mais expressivos, no que tange as novas possibilidades das teorias constitucionais e dos pensamentos voltados à filosofia do direito em sua aplicação efetiva.

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CAPÍTULO UMA ANÁLISE DA NOVA CONSTITUIÇÃO BOLIVIANA (TÍTULO PROVISÓRIO) Cecília Gameiro e Vinicius Lobo 1 – Contexto histórico da constituinte

Neste primeiro momento do texto se tentará, de forma breve, recuperar alguns dos momentos decisivos do processo político boliviano nas últimas décadas, pois é a partir desses processos que em quatro de março de 2006 é aprovada pelo Congresso a Lei especial de Convocatória à Assembléia Nacional Constituinte. Na tentativa de analisar os principais elementos que caracterizam as tensões entre a população boliviana e as antigas instituições liberais que conformam a estrutura do Estado burguês de Direito, enfocar-se-á os seguintes momentos: o legado da revolução de 1952, com seus reflexos na vida política do país na segunda metade do século XX, pois é a partir da inflexão dessa revolução que resulta, a partir de 1980, a implantação de políticas neoliberais; os ciclos de rebeliões desencadeadas na virada do século, quando se presencia a emergência dos novos movimentos sociais, protagonistas das mudanças que acontecerão mais adiante; e, por último, justamente a tentativa por parte desses movimentos sociais de institucionalização de suas demanda, que se dá tanto através da eleição de Evo Morales, quanto pela instalação da Constituinte.

As contradições a partir da qual emergirá a revolução de 1952 têm sua origem na guerra do Chaco (1932 – 1935), na qual morreram mais de 50000 pessoas. Os bolivianos haviam sido arrastados para uma guerra cujos motivos e interesses eram em grande parte desconhecidos da população, o que contribuiu para o surgimento de uma consciência crítica da coletividade contra as oligarquias mineiras, que até então comandavam o país (VIEIRA, 2010, p. 78). As bandeiras de “terra aos índios e minas ao Estado” transformou-se “num projeto de poder mobilizador, que, com o tempo, conseguiu afastar o ideário liberal e darwinista da oligarquia mineira” (LINERA, 2006, p. 191). A revolução teve seu estopim em 1951 no golpe de Estado liderado pelo MNR (Movimento Nacionalista Revolucionário), uma conseqüência direta da anulação das eleições de 1951, vitoriosa por parte das representações do movimento. Após o golpe a revolução logo se transformou numa insurreição popular, com ampla participação dos operários, que em três dias de batalhas campais derrotaram militarmente o exército. Segundo Álvaro Linera, “esta ação política vitoriosa, marcou o comportamento posterior dos operários bolivianos sindicalizados em relação à preponderância da forma sindicato acima de qualquer outra proposta organizativa e sua recorrente aspiração ao poder político mediante ao qual se garantia a conquista de direitos trabalhistas e sociais” (LINERA, 2006, p. 200). Assim, em 16 de abril de 1952 é fundada a Central Operária Boliviana (COB)20, que reunia os sindicatos das fábricas e das minas. Suas principais

20 É importante observar aqui a existência de uma diferença significativa as aspirações do movimento

sindical desse período em relação aos movimentos populares do início do século XXI, pois estes últimos, além de exigirem o reconhecimento de suas demandas específicas, irão pôr em cheque a própria estrutura de legitimação do poder estatal. Como veremos com detalhe mais adiante, os movimentos contemporâneos propor-se-ão a reconfigurar os caminhos formais da autoridade dentro do moderno Estado de Direito.

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demandas eram: nacionalização das minas e da estrada de ferro e realização da reforma agrária (VIEIRA, 2010, p. 79). É, portanto, esta aquela que será a força política central no processo histórico boliviano até a última quinzena do século XX, na qual tem inicio a onda de políticas neoliberais à qual agora se volta.

Entre os anos 1980 e 1985 tem lugar uma inflexão na realidade política e econômica da Bolívia. Devido a uma alteração na dinâmica da produção econômica (passagem da centralidade das minas à agricultura), que não convêm detalhar aqui, há uma fragmentação do movimento operário sindical, que até então se concentrava nos grandes centros urbanos que haviam emergido em torno das minas e fábricas. A dispersão do operariado, ocasionado pela contingência produtiva, tem como conseqüência direta a despolitização dos trabalhadores, que, agora, sem sindicatos já não reclamavam ao Estado, mas a pequenos produtores dispersos (VIEIRA, 2010, p. 80). O enfraquecimento do COB torna-se assim inevitável dentro desse contexto, o que permitirá que as reformas neoliberais assumam seu curso, com destaque para a privatização e a transnacionalização dos recursos naturais básicos. Contudo, já começam a emergir novas formas de resistência a partir de redes territoriais locais já existentes, é quando os movimentos indígenas começam a assumir protagonismo político. Ante a debilidade do movimento sindical obreiro, novas maneiras de articulação cultural, social e política de resistência levarão ao avanço das lutas sociais. Segundo Vieira:

A partir de 2000, com o fracasso das políticas implantadas através de reformas liberais, presenciou-se o aparecimento de diversas formas de resistência às tentativas de privatização dos recursos hídricos, até então estatais, dando-se início ao ciclo de insurreições indígenas, que haverão de reverter o quadro político marcado até então pela perda de legitimidade dos partidos tradicionais. (VIEIRA, 2010, p. 81)

Nesse ponto podemos colocar a gênese do processo histórico mais específico que culmina com a promulgação da nova Constituição. Voltemo-nos agora com um pouco mais de detalhe a esse desenvolvimento histórico específico.

A Assembléia Nacional Constituinte (ANC), sétima na história desse país, foi convocada por Evo Morales logo que assumiu o governo, funcinou entre agosto de 2006 e dezembro de 2007. A aprovação da nova Constituição se encaminhou definitivamente em 2008. O texto constitucional aprovado pelo Movimento ao Socialismo (MAS) e seus aliados no fim de 2007 foi ratificado pelo referendo convocado para janeiro de 2009 (SCHAVELZON, 2008).

A luta dos povos originários da Bolívia pela ANC iniciada na década de noventa foi marcado por uma tragetória tortuosa. Neste período os indígenas do oriente empreenderam diversas marchas à capital La Paz exigindo o seu direito de reconhecimento como povos. Podemos destacar a "Marcha pela Dignidade e o Território" (1996), que cobrava a destinação de territórios e o reconhecimento pelo Estado dos direitos culturais e políticos dos povos indíginas das terras baixas, reivindicando também uma Assembléia Constituinte como condição indispensável para realização de suas propostas (VIEIRA, 2010, p. 88).

Entre 2004 e 2005 iniciou-se o conflito chamado gazolinazo ou dieselazo como resultado da alta taxação no preço da gasolina e do diesel pelo governo para cobrir o déficit fiscal. Os primeiros setores a reagir foram os de transporte e a COB. A crise deflagrada pela alta dos combustíveis matizada pela transição política em curso, no calor dos eventos e, a contenda entre setores sociais divididos levou ao pedido de

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renuncia do Presidente da República. É importante destacar que durante essa crise, houve a união das forças políticas de esquerda e direita, "que merece ser explicada no marco das forças sociais postas em jogo" neste processo político boliviano (PRADA, 2006, p. 120).

Outro conflito marcante foi a "guerra da água" iniciada na cidade de El Alto que levou à greve por tempo indeterminado da Junta de Vecinos de la Ciudad de El Alto, exigindo do governo a anulação do contrato com a transnacional Aguas del Illimani. Na análise deste mapa das forças sociais se esta medida extrema de paraliazação não tivesse ocorrido talvez a descrição da conjuntura política permanecesse solta e fraca (PRADA, 2006, p. 120).

O desencadeamento da crise da alta taxação da gasolina e do diesel, que elevou a tarifa do transporte associada a "guerra da água" desenhou a geografia do conflito que abraçou todo eixo central, ou seja, as cidades de La Paz, El Alto, Cochabamba e Santa Cruz, envolvento também as cidades do eixo sul: Sucre, Tarija, Potosi e Oruro. Apesar do conflito do gazolinazo ter se expandido pela maioria das cidades a crise das Aguas del Illimani teve um impacto maior no fortalecimento da luta pelas mudanças políticas na Bolívia (PRADA, 2006, p. 121).

Após a vitória da Junta de Vecinos de la Ciudad de El Alto no conflito da água, surgiram outras reinvidicações como a saída da empresa privada de distribuição de eletricidade Eletropaz e o pedido de nacionalização dos hidrocarboretos. Alguns movimentos enfraqueceram, principalmente depois da solução do problema das Aguas del Illimani. Houve divisão de distintos setores, em sua diversa composição, acrescida ainda de interesses contraditórios. Contudo a medida que não se consegue soluções para o conflito dos carburetos, a contenda cresce, apesar dos esforços do governo. Ocorre a invasão de prédios públios, bloqueio de areroporto e se realizam numerosas marchas. Soma-se a tudo isto uma greve do Comitê Cívico. Segundo Raul Prada, é possível concluir que tendo em conta os primeiros enlaces da conjuntura, "os conflitos sociais não prosperam totalmente se não logram sua conexão, sua articulação e sua simutaneidade, compatibilizando suas demandas". Para que o conflito não se desarticule completamente e possa se expandir precisa ter níveis de intensidade obtida pela experiência, pela convocação e pela coesão das organizações participantes (PRADA, 2006, p. 121-122).

Os epicentros desses conflitos, localizados no oriente e no ocidente da Bolívia, apesar de suas peculiaridades, ambos têm analogias e concomitâncias com respeito a alguns aspectos cruciais do conflito. O movimento populista desencadeado pela falta de solução satisfatória no conflito do gasolinazo, leva as classes dominantes do oriente unir-se aos setores populares, exigindo do governo a reversão da medida para impedir que a alta dos carburetos eleve a cesta básica. Contudo esse movimento esconde um interesse maior das organizações empresariais o qual é a autonomia departamental. Além desse motivo havia outros como o relacionado a conspiração oligárquica que se opunha ao governo de transição e a Assembléia Constituinte (PRADA, 2006, p. 122-123).

Finalmente, o desenlace da conjuntura, pressiona o governo, o parlamento e a corte eleitoral a desenvolver três eleições consecutivas ou simultâneas, no caso, para prefeitos, a do referendo e a dos constituintes. A conspiração que ocorrereu transitou da hostilidade a paz das negociações e dos acordos, desencadeou num enfraquecimento dos movimentos sociais e de suas organizações. Durante esse período torna-se visível a debilidade incorrigível do governo, dividido entre duas forças. Um governo que não tem posição definida nem agenda própria (PRADA, 2006, p. 126).

Em 4 de março de 2006 a aprovação por unanimidade no Congresso Nacional da

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lei Convoctória à Assembléia Nacional Constituinte, juntamente com a Lei Vinculante sobre as autonomias dos Departamentos, eixo fundamental no processo constituinte foi considerada como "triunfo democrático" (ROJAS, 2006). Outro importante eixo que tem influência decisiva neste processo, é o referendo autônomo, que no governo de Carlos Mesa não recebeu apoio do Parlamento, mas sob o regime de Evo Morales teve melhor sorte, promulgando em 06 de março a Lei 3365, convocando o referendo sobre autonomias. Esta aprovação conjunta aponta para os problemas do tortuoso caminho que a Assembléia Constituinte iria trilhar, colocando em dúvida seu carater Soberano e Originário. Um poder constituído, que é derivado, jamais poderia antecipar as decisões de um poder Constituinte. Desta forma, o processo ocorre de maneira viciosa e o carater soberano da ANC é claramente fraudado pela decisão da convocatória em antecipar a aprovação ou não da implantação das autonomias departamentais (VIEIRA, 2010, p. 89).

O caso da representação orgânica dos setores que lutaram e fomentaram a proposta da ANC foi mais um dos problemas enfrentados no decorrer deste processo. Os 60% dos bolivianos que se declaram indiginas, não foram favorecidos com esta maneira de representação, ficando os mesmos restritos unicamente à representação individual. Isto reflete a incongruência dos discursos com a prática de desrespeito à população originária. Diferente do que ocorreu na Venezuela onde houve o respeito a esta parcela da população, que representa a minoria neste país, mas que no caso da Bolívia corresponde a maioria da população e que elegeu Evo Morales. Outro problema que merece destaque é a determinação na norma regulamentadora da ANC referente ao percentual para aprovação da nova Constituição, o qual é de dois terços dos votos integrantes, impedindo com isto a participação plena da vontade popular, delegando à maioria coservadora, representada pelos partidos tradicionais, as principais decisões na Assembléia, desta forma, os setores comprometidos com as mudanças ficam impedidos de deliberarem a favor destas mudanças por não alcançar a maioria dos votos exigidos na tomada de decisões (VIEIRA, 2010, p. 89-90).

A organização do poder público, de acordo com a lei da convocatória da ANC, se remete ao sistema de eleição de constituintes que além disso retoma o sistema partidista baixo o mecanismo de: três constituintes por cada uma das 70 circunscrições uninominais, fazendo um total de 210 assembleístas ( dois eleitos por primeira maioria e um por segunda maioria) e cinco constituintes por cada uma das 45 circunscrições plurinacionais, (dois eleitos por primeira maioria um por segunda maioria, outro por terceira e um por quarta) (Disponível em: http.//www.rebelion.org/noticia.php?id=56971).

Os artigos desta lei que se refere à escolha dos constituintes, são de suma importância no processo, pois excluem diretamente as organizações sociais de sua participação na ANC e assegura a incorporação de um bloco de membros da Assembléia, que representam a minoria direita conservadora. A opção pelo sistema partidário, foi capaz de salvar o país da sua crise, mas também foi negado o acesso de indígenas, camponeses, operários e bairristas através de eleição direta de seus candidatos. Embora as organizações indígenas e camponesas diretamente ligada ao partido no poder tivessem proposto um sistema de eleição pelo círculo eleitoral e do partido, juntamente com a eleição direta pelos povos indígenas, o que garantiu uma participação real e significativa destes na ANC, o MAS, procurou fortalecer o seu próprio partido, concentrando-se na votação popular, mantendo controle de seus candidatos, ao mesmo tempo conciliar a direita novamente, negando assim o demanda popular e ignorando as demandas de sua própria base social (Disponível em: http.//www.rebelion.org/noticia.php?id=56971).

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Em suma, esta lei cheia de vícios transforma a Assembléia em refém do Congresso Nacional, que usurpa seu papel constitucional. Além disso, o governo chegou a concordar com a oposição na obrigatoriedade de chegar a uma votação qualificada de dois terços para legitimar seu projeto político, resultando na imposição de validação de uma ampla maioria de votos única e exclusivamente em áreas de minorias. Por outro lado, a elite de direita conseguiu ajudar o governo no seu projeto Constituinte, validado e submetido a um referendo, sem necessidade de uma cota mínima de votos. Além disso, dado o direito de veto ou endossa o voto da maioria, se não são de conveniência, incluindo o direito de veto sobre os resultados do referendo dirimidor de itens que não chegou a um consenso na Plenária da Assembléia (Disponível em: http.//www.rebelion.org/noticia.php?id=56971).

A ANC parecia sem rumo apesar das declarações públicas do presidente Evo Morales para preservar a unidade e a solidariedade do Estado boliviano, a verdade é que as atuais "corporações assembleísticas" ligadas a partidos políticos fortes, ONGs, associações empresariais, organizações camponesas, comitês cívicos, e assim por diante geraram um tríplice sentimento coletivo: expectativas, frustração e / ou desorientação da população boliviana. Assim, acumulam irracionalmente no debate público questões regionais, raciais e culturais (URIOSTE, 2007).

Depois de todos os desgastes, incronguências e acordos políticos, em 24 de novembro de 2007, a Assembléia Nacional Constituinte da Bolívia aprovou a nova Constituição do país. A votação, realizada na cidade de Sucre, foi boicotada pela oposição, mas apesar de aprovada. A nova Constituição recebe criticas principalmente das regiões mais ricas do país, onde movimentos de direita organizaram greves e paralisações em protesto à aprovação (CASTRO, 2007).

Em 2009, a Bolívia tem mais uma importante conquista, um novo referendo, para decidir acerca de duas questões: uma sobre sim ou não à nova Constituição aprovada em dezembro de 2007 e modificada por negociação no Congresso em outubro de 2008; e outra sobre o tamanho máximo da propriedade da terra: 5.000 ou 10 mil hectares. Com cerca de 80% dos votos, a população optou por um limite de 5 mil hectares. O “sim” prevaleceu, e o povo optou por 5.000 hectares quanto ao tamanho das propriedades, deixando os latifundiários com os dias contados e demonstrando a importância da participação popular nas questões governamentais. A Constituição Boliviana de 2007 representa mais um passo do país na direção da asseguração e ampliação da democracia e da soberania popular, e comprova que embora a Bolívia tenha sido um país marcado pela exploração no período ditatoria, a força do povo se sobressaiu ao Estado. A nova Constituição amplia os poderes do povo atingindo cada vez mais a soberania popular. Abaixo a tabela que demonstra a aprovação da nova Constituição pelo povo (DIAS, 2009):

Tabela de resultados do Referendo para a aprovação da Nova Constituição do Estado da Bolívia Nível territoria Sim Não Participação

computada Bolívia 61,43 % 43 % 90,26 % Potosí 80,07 % 19,93 % 87,51 % La Paz 78,12 % 21,88 % 92,32 % Oruro 73,68 % 26,32 % 91,90 % Cochabamba 64,91 % 35,09 % 92,23 % Chuquisaca 51,54 % 48,46 % 88,98 % Tarija 43,34 % 56,66 % 87,20 % Pando 40,96 % 59,04 % 82,77 % Santa Cruz 34,75 % 65,25 % 88,19 % Beni 32,67 % 67,33% 84,66 %

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(Disponível em:<http://www.pucrs.br/edipucrs/XSalaoIC/Ciencias_Sociais_Aplicadas/Direito/71460-FRANCELIPEDOTTDIAS.pdf>)

De acordo com os dados apresentados na tabela acima fica bem clara a desaprovação da direita do país formada pela elite boliviana, que durante o processo contitunte tentou dividir o país e derrubar o governo de Evo Morales. A movimentação golpista encabeçada pelos governadores da chamada "Meia-Lua Boliviana" (que corresponde aos departamentos de Pando, Beni, Santa Cruz, Chuquisaca e Tarija), pelo Comitê civil de Santa Cruz (principalmente a figura de seu presidente, Branko Marincovic) e pelo ex-embaixador dos Estados Unidos na Bolívia, Philip Goldberg.

A Bolívia é um exemplo de que a concepção hegemônica de democracia é insuficiente para garantir efetivos direitos ao povo, pois não há efetividade apenas, em um processo eleitoral que decidira os representantes que falarão pela sociedade. Mas a concepção contra-hegemônica por sua vez, traz a necessidade de participação, como aconteceu com o referendo na Bolívia, onde as pessoas são ouvidas sobre os seus próprios interesses e não simplesmente representadas por candidato (DIAS, 2009).

Partamos então, sem mais demora, à analise do tipo de concepção contra-hegemônica que se coloca dentro da nova constitucionalidade boliviana. 2 - Conteúdo da Constituição

Antes de entrar na análise dos principais pontos ou das principais novidades presentes na Constituição política do Estado da Bolívia promulgada em fevereiro de 2009, é importante fazer um breve comentário sobre o que caracteriza o modelo liberal de Estado de Direito frente ao qual a nova Constituição Boliviana representa uma contingencia. Vejamos então quais as principais diretrizes da proposta liberal para a organização do espaço político de uma comunidade, para que assim possamos compreender o que de fato representa dizer, tal qual consta no preâmbulo da nova constituição, que “dejamos en el pasado el Estado colonial, republicano y neoliberal” (BOLÍVIA, 2008, p. 2).

Segundo Carl Schmitt (SCHMITT, 1992, p. 137), as constituições estruturadas pelos princípios da doutrina liberal manifestam uma decisão política em prol do reconhecimento das liberdades burguesas, que são basicamente a liberdade pessoal, de propriedade, de contratação, de indústria e de comércio; nesta doutrina a liberdade individual se completa na liberdade de troca. A maioria das constituições liberais da atualidade se estrutura a partir do moderno mecanismo do “Estado de Direito”, o qual é um modelo institucional da doutrina política liberal que visa garantir à economia de mercado seu papel de subsidiaria da sociabilidade dentro de uma determinada comunidade. Seu sentido e sua finalidade é, antes de mais nada, a garantia da proteção das faculdades mercantis do indivíduo frente a possíveis intervenções abusivas do Estado. A característica essencial do Estado burguês de Direito é a sua subordinação à formalidade do direito, quando o Estado passa a se organizar no intuito de garantir legalmente a vigência da identidade politicamente reconhecida, que no caso em questão é a identidade burguesa ou o reconhecimento da liberdade de troca. A função do Estado moderno, enquanto “Estado de Direito”, é fazer respeitar as regras da identidade política reconhecida e “ele mesmo respeitar essas regras, submetendo-se irrestritamente a elas [...] é o que significa dizer que o Estado moderno encontra-se restrito à formalidade do direito” (VIEIRA, 2006, p. 43-44). A identidade política das constituições liberais, quando operacionalizadas pelo modelo institucional do Estado de Direito, torna-se imune a qualquer vontade política não condizente com a legalmente instituída, pois, um dos postulados deste modelo é que qualquer interferência no quadro dos direitos reconhecidos, como a propriedade, somente pode ocorrer com base na estrutura legal

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posta pela constituição. Para Schmitt, o Estado de Direito, que na modernidade é o mecanismo institucional que formalmente garante o reconhecimento dos princípios liberais, não se constitui, absolutamente, como orientação política ou forma de governo, mas como um conjunto de limites e controles da atuação política do Estado, visando “a garantia da liberdade burguesa e a relativização do poder do Estado [frente à sociedade civil orientada pela propriedade privada]” (SCHMITT, 1992, p. 201).

A partir do exposto no último parágrafo, podemos destacar dois elementos chaves do Estado burguês de Direito ao qual a nova Constituição Boliviana afirma fazer frente: primeiro, seu conteúdo, o reconhecimento de uma identidade burguesa como forma de existência dos indivíduos de uma determinada comunidade, expressa pela colocação da liberdade mercantil como liberdade fundamental; e, segundo, sua forma, a garantia de efetividade desta identidade política particular a partir da restrição legal da atividade tanto do Estado como de qualquer outro agente político pelo Direito. O Estado burguês de Direito é, portanto, a expressão legalmente incubada da identidade burguesa; é a manifestação desta última, efetivada a partir de conquistas político-históricas sobre identidades anteriores, simultânea à sua proteção, garantida pelo impulso abstrato (VIEIRA, 2006, p.28) presente na formalização do aparelho normativo. A lei ao invés de ser o resultado de uma autoridade torna-se, no Estado de Direito, a autoridade mesma, o que sem dúvida é bastante conveniente para aquelas vontades políticas que determinaram o sentido do texto legal. Logo a seguir iremos observar como, em alguns de seus principais pontos, a nova Constituição Boliviana propõe uma ruptura tanto com conteúdo quanto com a forma do moderno Estado burguês de Direito. Contudo, antes de analisar o conteúdo da constituição boliviana, crê-se que, para melhor destacar um possível diferencial político desta última, seria relevante mencionar brevemente, em algumas de outras constituições sul-americanas, na sua maioria ainda fortemente orientadas pelos princípios burgueses, a situação político-constitucional daquelas identidades que podem ser classificadas como não-burguesas, como, por exemplo, a dos povos indígenas.

Nas últimas décadas, Argentina, Brasil, Bolívia e Uruguai inseriram modificações nas suas constituições incluindo instrumentos jurídicos de reconhecimento à diversidade cultural, pressionados que foram pelos movimentos sociais indígenas que vêm crescendo no continente desde os anos 70 (BELTRÃO E OLIVEIRA, 2009, p.2). No entanto, como veremos adiante, tal reconhecimento está longe de colocar as sociabilidades indígenas em condição de igualdade com a sociabilidade burguesa; é que, em sua maioria, os instrumentos jurídicos de reconhecimento indígena não logram fazer um contraponto à autoridade jurídica que possui o imperativo burguês dentro do sistema constitucional. Entre algumas das normas que podem servir para ilustrar a operacionalização dos direitos indígenas nas últimas décadas, pode-se citar: na Constituição Argentina, o Artigo 75, Inciso 17, que garante posse e propriedade comunitária de terras tradicionalmente ocupadas e participação na gestão dos recursos naturais, ou o Inciso 19 do mesmo artigo, que defende a promulgaão de leis que protejam a identidade e a pluralidade cultural; na Constituição Brasileira, o Artigo 210, Parágrafo 2º, que garante educação em nível de ensino fundamental de caráter bilíngüe e intercultural aos indígenas, ou o Artigo 215, que reconhece aos povos indígenas a organização social, costumes, línguas e direitos originários sobre terras que tradicionalmente ocupam, ou o Artigo 231, Inciso 3º, que garantes direito à consulta aos povos indígenas para autorização de aproveitamento de recursos hídricos, energéticos e minerais situados em seus territórios; e na Constituição Paraguaia, os Artigos 38 e 63 que garantem personalidade jurídica coletiva aos povos indígenas (BELTRÃO E OLIVEIRA, 2009, p.4-5). Contudo, como já foi mencionado acima, essa cidadania dos

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povos indígenas é limitada ou desconsiderada quando entra em conflito com os dominantes mecanismos jurídicos do Estado burguês de Direito. Entre alguns destes mecanismos constitucionais que limitam a efetivação dos direitos indígenas reconhecidos na legislação acima apontada, podemos mencionar: na Constituição Argentina, o Artigo 75, que delega ao Congresso Nacional o reconhecimento dos direitos coletivos dos povos indígenas; na Constituição Brasileira, o Artigo 49, Inciso 16, que declara que o Congresso Nacional possui competência exclusiva para autorizar, em terras indígenas, a exploração e o aproveitamento de recursos hídricos e a pesquisa e lavra de riquezas minerais, ou Artigo 109, Inciso 11, o qual afirma que aos juízes federais compete processar e julgar disputas sobre direitos indígenas; e na Constituição Paraguaia, o Artigo 128, que afirma que em nenhum caso o interesse de particulares primará sobre o interesse geral (BELTRÃO E OLIVEIRA, 2009, p.5-6). O que podemos afirmar, a partir dos Artigos acima expostos, é que todas as três Constituições apresentam elementos jurídicos que restringem o reconhecimento das formas de vida indígenas, seja porque condicionam a decisão a determinadas instituições públicas que não têm a participação de representantes indígenas, seja porque não equiparam autoridade das culturas diferenciadas à da identidade “nacional” (BELTRÃO E OLIVEIRA, 2009, p.7). Os instrumentos legais outorgados em favor do reconhecimento da cidadania plural não são, dentro do sistema constitucional, fortes o suficiente para fazer frente à hegemonia cultural do “nacional”, a qual é, nos casos acima mencionados, formada por determinações que visam garantir a liberdade de mercado típica de uma identidade burguesa, tal qual a apresenta Schmitt. A orientação burguesa da Constituição tem poder de veto sobre as normas multiculturais tardiamente instituidas. A sociabilidade burguesa se traveste de cultura “geral” e, com sua prioridade jurídica, freia o possível reconhecimento de uma cidadania multicultural na Constituição dos países acima observados, mesmo que, como visto, haja uma ou outra inserção legal em prol da diversidade de práxis. Partamos então, finalmente, para o conteúdo da nova Constituição boliviana a fim de analisar se em seu texto é possível observar, ou não, uma ruptura com o privilégio da sociabilidade burguesa, tal qual se manifesta nas constituições acima, tanto a partir da inexistência de autoridades jurídicas não-burguesas, quanto pela carência de espaços reais de participação nas instâncias deliberativas.

Logo de cara, no preâmbulo, onde se expressa a decisão sobre a forma de existência da unidade política, é afirmado que se deixa no passado o Estado colonial, republicano e neoliberal, e se assume a meta de construir coletivamente um Estado Unitário Social de Direito Plurinacional e Comunitário (BOLIVIA, 2009, p. 2). Ainda sobre o preâmbulo, vale ressaltar que a palavra “plural” aparece quatro vezes neste texto que possui menos de uma página, o que, sem dúvida, é um anúncio daquele que será o princípio dirigente da estruturação do sistema constitucional.

Se agora nós focarmos no primeiro Título da Constituição Boliviana, em que se definem os princípios fundamentais do Estado, é possível observar a operacionalização dessa tendência que é anunciada no preâmbulo. Ao ler o artigo 1º, que versa sobre a definição do modelo de Estado boliviano, este é definido como um “Estado Social Unitário de Derecho Plurinacional Comunitário [...] Bolivia se funda en la pluralidad y el pluralismo” (BOLIVIA, 2009, p. 3), é visível uma clara contingência de conteúdo em relação às demais constituições liberais, na medida em que o Direito que é posto como o fundamento legal do Estado é um Direito dito plurinacional e comunitário, e não um direito liberal, como por exemplo esta definido no artigo 1º da Constituição brasileira de 1988, na qual a livre iniciativa é colocada como princípio fundamental da existência do Estado (BRASIL, 2011, p. 1). O enfoque na proteção das distintas

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sociabilidades, enquanto fim do Estado que se expressa nos princípios fundamentas de uma Constituição, em detrimento da restrição a uma sociabilidade orientada para atividade mercantil tal qual se manifesta na maioria das constituições liberais, é sem dúvida o grande diferencial que se destaca ao observar os princípios fundamentais da nova Constituição Boliviana. Tal fato fica ainda mais claro quando se observa o segundo inciso do artigo 8º, quando se declara que “el Estado asume y promueve como princípios ético-morales de la sociedad plural: ama qhilla, ama llulla, ama suwa (no seas flojo, no seas mentiroso ni seas ladrón), suma qamaña (vivir bien), ñandereko (vida armoniosa), teko kavi (vida buena), ivi maraei (tierra sin mal) y qhapaj ñan (camino o vida noble) (BOLIVIA, 2009, p. 4); ou, ainda no título sobre os princípios fundamentais do Estado, no segundo inciso do Artigo 11, no qual se coloca a deliberação comunitária como uma forma do sistema de governo democrático, na qual se atesta a validez de eleições, designações ou nomeações feitas em função dos procedimentos próprios da nações e povos indígenas e camponeses (BOLIVIA, 2009, p.5). Esse Artigo 11 se encontra no Capítulo terceiro, o qual é central para a análise que aqui propomos, pois versa sobre o sistema de governo na Bolívia; nele podemos observar se há ou não uma abertura à participação de representações étnicas e comunitárias nas instituições públicas de deliberação, algo que, como visto acima, é fundamental para garantir a efetividade do reconhecimento às práxis não-burguesas. Segundo o Artigo 11, a democracia se exerce na Bolívia das seguintes formas: primeiro, Direta e Participativa, por meio de referendum, da iniciativa legislativa cidadã, da revogação do mandato e da assembléia; segundo, Representativa, por meio de eleições de representantes por voto universal, direto e secreto, conforme a lei; terceiro, Comunitária, por meio da eleição, designação ou nominação de autoridades e representantes por normas e procedimentos próprios das nações e povos indígenas de origem camponesa (BOLIVIA, 2009, p.5). Colocar a participação e o Direito comunitário como um princípio fundamental do Estado é sem dúvida uma novidade da Constituição boliviana, o que, sem dúvida, é um fator que fortalece tais direitos contra o risco de serem “vetados” por outros mecanismos institucionais de caráter mais unilateral. Para ver a real presença dessa abertura cultural da Constituição boliviana é preciso continuar observando seus diferentes temas, logo, parta-se então agora para os Direitos Fundamentais postos por esta. Na Seção 1 do Capítulo terceiro dos Direitos Fundamentais, que versa sobre os Direitos Civis, o primeiro direito da lista é aquele que garante aos bolivianos e bolivianas a auto-identificação cultural; todos os demais direitos à liberdade vêm posteriormente (BOLIVIA, 2009, p.7). No que diz respeito aos Direitos Políticos, a grande novidade é o reconhecimento da representatividade comunitária como um dos direitos à participação, desde que se pratique a democracia comunitária, os processos eleitorais se exercerão segundo normas e procedimentos próprios, supervisionados pelo Órgão Eleitoral, sempre e quando o ato eleitoral não esteja sujeito ao voto igual, universal, direto, secreto, livre e obrigatório (BOLIVIA, 2009, p.9). Contudo, aquilo que parece ser mais relevante nos Direitos Fundamentais da Constituição boliviana, é a existência de um capítulo (quarto) que versa exclusivamente sobre as nações e povos indígenas de origem camponesa. Entre os 18 direitos que a Constituição garante a essas populações, aqueles mais relevantes são os que garantem: a que a identidade cultural de cada um dos membros desses povos, se assim o deseja, se inscreva junto à cidadania boliviana na sua cédula de identidade, passaporte ou outros documentos de identificação legal; a livre determinação e territorialidade; que suas instituições sejam parte da estrutura geral do Estado; a titulação coletiva de terras e territórios, a propriedade intelectual coletiva de seus saberes ciências e conhecimentos, assim como sua

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valorização, promoção e desenvolvimento; o exercício de seus sistemas econômicos, jurídicos e políticos de acordo com a sua cosmovisão; que sejam consultados mediante procedimentos apropriados, e em particular a través de suas instituições, cada vez que se prevejam medidas legislativas ou administrativas suscetíveis de afetá-los; se respeitará e se garantirá o direito a consulta prévia obrigatória, realizada pelo Estado, de boa fé e articulada, com respeito a exploração dos recursos naturais não renováveis no território em que habitam; a participação nos benefícios da exploração dos recursos naturais no território em que habitam; a participação nos órgãos e instituições do Estado (BOLIVIA, 2009, p.10). Em todas as partes do texto constitucional concernente aos Direitos Fundamentais dos cidadãos bolivianos é possível destacar a substituição de um conteúdo essencialmente liberal por um que ressalta a necessidade de garantir, a cada grupo social, a possibilidade de perpetuar sua própria concepção de sociabilidade e de intercâmbio com a natureza. A fim de observar a manifestação normativa deste fato com ainda mais precisão, nos voltaremos agora à parte da constituição boliviana que versa sobre as especificidades do poder público. Ao observar a segunda parte da Constituição boliviana, a qual define a estrutura e organização funcional do Estado, podemos afirmar que segue a mesma diretriz de fortalecer politicamente aqueles povos indígenas ou nações camponesas que vivem sob a égide de uma sociabilidade não mercantil, ou seja, há, dentro da definição do funcionamento dos órgãos Legislativo, Executivo e Judiciário, a inserção de normas que garantem não só a responsabilidade desses poderes para com a proteção da autonomia dessas populações, mas se determina também a necessária presença de seus representantes nos três poderes. Não há duvidas, como veremos nos exemplos em seguida enunciados, que o novo texto constitucional boliviano, no que concerne à normatização do poder público, segue propondo uma contingencia com respeito ao conteúdo burguês das demais constituições sul-americanas na medida em que protege a autonomia daqueles povos que se propõem a um intercâmbio não mercantil com a natureza. Podemos observar esta questão, por exemplo, no artigo 149 do capítulo primeiro do título sobre o órgão legislativo, que define a composição da Assembléia Legislativa e afirma que “en la elección de asamblístas se garantizará la participación proporcional de los pueblos y naciones indígenas originarias campesinas” (BOLIVIA, 2009, p.38); fica portanto, garantia a participação das populações indígenas dentro dos representantes legislativos do Estado. Tal distribuição étnica das representações do Estado também pode ser observada no terceiro titula desta segunda parte do texto constitucional, que versa sobre as disposições gerais do judiciário. Segundo o artigo 189:

La función judicial es única. La jurisdicción ordinária se ejerce por el Tribunal Supremo de Justicia, el Tribunal Agroambiental, los tribunales departamentales de justicia, los tribunales de sentencia y los jueces. La jurisdicción indígena originaria campesina se ejerce por sus propias autoridades. La jurisdicción ordinaria y la jurisdicción indígena originario campesina gozarán de igual jerarquía. (BOLIVIA, 2009, p.48)

Fica, portanto, instituída a autonomia jurídica das populações indígenas dentro de seus territórios, desde que respeitem as normas constitucionais. É o capítulo terceiro deste título sobre o órgão legislativo que especifica o fundamento dessa autonomia jurídica concedida às populações indígenas e camponesas, como, por exemplo, no artigo 200º: “La jurisdicción indígena originario campesina conocerá todo tipo de relaciones jurídicas, así como actos y hechos que vulneren bienes jurídicos realizados por

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cualquier persona dentro del ámbito territorial indígena originario campesino. La jurisdicción indígena originario campesina decidirá en forma definitiva, sus decisiones no podrán serán revisadas por la jurisdicción ordinaria, y ejecutará sus resoluciones en forma directa.” (BOLIVIA, 2009, p. 51). Pelos exemplos citados, acreditamos que foi possível ilustrar em que medida as determinações sobre o poder público na nova constituição boliviana pretende garantir a presença das nações indígenas e dos camponeses nas deliberações tanto legislativas quanto judiciárias, contudo, pouco se pôde notar aqui sobre a abertura para a participação direta dos cidadãos, sem a mediação da representação. Nos títulos específicos sobre cada poder do Estado (dentro desta segunda parte da nova constituição), nenhuma determinação direta é atrelada à participação, porém, há um título específico que versa única e exclusivamente sobre participação e controle social, o Título 5º. Contudo, o que se observa nos dois artigos que o compõem é nada mais que uma defesa da participação, sem qualquer definição dos mecanismos através dos quais se executará a mesma; a constituição põe a própria sociedade civil como responsável por definir as formas de participação: “La sociedad civil organizada establecerá sus propias normas y funcionamiento para cumplir con las funciones de participación en la toma de decisiones y de control social” (BOLIVIA, 2009, p. 59). Como foi dito logo acima, sem dúvida podemos observar que na nova constituição boliviana há uma contingência no sujeito político definidor do conteúdo da norma, no entanto, pouco pode ser observado no que diz respeito a uma mudança com respeito ao princípio da representatividade como fundamento da deliberação política. A fim de seguir com essa breve exegese do texto constitucional boliviano, passemos então às determinações constitucionais da função do Estado para com o sistema econômico, e vejamos se as análises até aqui feitas sobre forma e conteúdo da nova constituição se sustentam. A quarta parte da constituição boliviana é aquela que versa sobre a estrutura e organização econômica do Estado. No artigo 306 do capítulo primeiro (das disposições gerais) da parte correspondente está dito que: “El modelo económico boliviano es plural, y está orientado a mejorar la calidad de vida y el vivir bien de todos bolivianos y bolivianas; la economía plural está constituida de las siguientes formas de organización económica: la comunitaria, la estatal y la privada” (BOLIVIA, 2009, p. 76). Este primeiro artigo segue apontando naquela direção que até agora viemos observando em cada seção do texto constitucional analisada: uma relativização da matriz societária burguesa por meio do reconhecimento à pluralidade. Em diversos pontos desta seção do texto constitucional são impostas limitações ao principio de acumulação burguês, como no inciso primeiro do artigo 308º: “Toda actividad economica deberá contribuir al fortalecimiento de la soberania economica del país. No se permitirá acumulación privada de poder econômico em grado tal que ponga em peligro la soberania economica” (BOLIVIA, 2009, p. 77); ou no inciso segundo do artigo 311º: “El Estado reconocerá, respetará y protegerá la forma de organización económica privada y la iniciativa privada, siempre que cumplan una función social y contribuyan al desarrollo del país” (BOLIVIA, 2009, p. 77). Sobre o fortalecimento das formas não-burguesas de reprodução da subsistência, podemos citar o artigo 310, no qual se define que “El Estado reconocerá, respetará, protegerá y promoverá la organización económica comunitária. La forma de organización económica comunitária comprende los sistemas de producción y reproducción de la vida social, fudados en los principios y la visión propios de los pueblos y naciones indígena originario y campesinos” (BOLIVIA, 2009, p. 77). É esta a linha que segue toda esta quarta parte do texto constitucional boliviano: a definição da função do Estado como mediador da iniciativa privada e como protetor dos modelos comunitários e indígenas de produção; poderíamos expor cada um desses

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pontos do texto constitucional, mas para os fins deste texto, que é a análise da presença ou não, na constituição boliviana, de um deslocamento com relação à forma e o conteúdo do Estado burguês de Direito, o exame das diretrizes gerais acima já é suficiente. Com o conteúdo até aqui analisado, acreditamos que, em conjunto com o contexto histórico apresentado no início do texto, é possível ter uma imagem relativamente clara sobre o significado sócio-político que marca a nova Constituição boliviana, logo, partimos então para a conclusão do texto onde tentaremos dar uma resposta à seguinte questão capital que é o motivo de todo o desenvolvimento deste texto: a constituição avança no sentido de superação do padrão burguês constitucionalmente dominante? 3 – Considerações finais Aquilo que nós propomos a apontar diretamente aqui neste estrato final do texto já se encontra dito nas linhas acima: A nova Constituição boliviana sem dúvida representa uma contingencia para com modelo burguês de Estado de Direito que imperou nas nações desde o final do século XIX. Como foi observado, o enfoque do texto constitucional na proteção das distintas sociabilidades em detrimento do privilégio da norma burguesa de orientação de conduta é sem dúvida o seu grande destaque. Como fica ressaltado em cada um dos títulos da nova Constituição, é central o objetivo de garantir autonomia aos modelos singulares propostos por cada grupo cultural específico para a reprodução da sua subsistência; não há fundamentação mercantil para o intercâmbio da subsistência humana com a natureza, pelo contrário, o Estado assume em todas as suas funções a necessidade de garantir a vigência das formas étnico-comunitárias desse intercâmbio.

Fica muito claro que a nova Constituição boliviana trás um novo sujeito político como definidor do conteúdo da norma, contudo, pouco pode ser observado no que diz respeito a uma mudança com respeito ao princípio da representatividade como fundamento da deliberação política. A grande maioria dos poderes estatais é exercida mediante a figura de representações, sejam democraticamente eleitas, como é o caso do presidente ou dos parlamentares, ou segundo procedimentos particulares, como no caso dos representantes jurídicos das comunidades indígenas ou camponesas. Por mais que a constituição defina uma cota mínima de representantes originários camponeses ou indígenas para as vagas deliberativas, como entre o número de parlamentares, por exemplo, não há no texto constitucional boliviano nada inovador no que diz respeito à definição de procedimentos específicos de participação direta. Isso reforça nossa tese de que há na nova Constituição uma contingencia de sujeito político, ou seja, da identidade ou concepção de mundo que define o conteúdo daquilo que é reconhecido nas normas, contudo, a efetivação política de tais reconhecimentos, tal qual no Estado de Direito burguês, se dá através da autoridade da lei. Pode-se afirmar aqui que a nova Constituição boliviana representa um alargamento na capacidade de acolhimento do Estado de Direito, pois agora, após todo o processo histórico de mobilização política que se inicia desde os anos 90, há um novo espírito dentro de suas leis, um espírito que segue reconhecendo a legitimidade da propriedade privada, mas que almeja garantir a segurança daqueles indivíduos que se propõem a um diferente modelo de produção da sua subsistência.

Os efeitos reais deste novo preenchimento ideológico nas normas bolivianas são ainda muito imprevisíveis; é possível que com as novas “seguranças” postas pelo novo texto constitucional haja uma paulatina contingência na sociabilidade boliviana, tendo as instituições do Estado de Direito um peso cada vez menor dentro da sociedade, na qual cada vez mais irão ganhando espaço as lideranças comunitárias, já postas pela nova constituição numa posição institucional relevante tal qual em nenhum outro Estado sul-

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americano. Contudo, o que os recentes acontecimentos revelam, é que será mais difícil do que parece haver um arrefecimento na presença nociva do Estado dentro sociabilidade das comunidades indígenas ou camponesas: no dia 25 de setembro deste ano, o governo boliviano dispersou com uso de extrema violência umaa marcha indígena que se dirigia à capital La Paz. A marca, que já durava 40 dias, exigiu a interrupção da construção de uma estrada que atravessará o Parque Nacional Isidoro Sécure, uma grande reserva ecológica do centro do país. Segundo o movimento a estrada significará a destruição de florestas e a invasão na terra de produtores de folhas de coca. Denunciam ainda, o que vai diretamente de encontro com tudo que vimos sobre o texto constitucional boliviano, que mais de uma vez, o governo de Evo Morales não cumpriu com exigência legal de consultá-los sobre o projeto, desrespeitando assim uma série de princípios fundamentais e de organização do Estado da nova Constituição. Fica, portanto no ar, por mais que tenhamos observado aqui o caráter democrático do conteúdo das novas normas bolivianas, o impacto real que tal institucionalização terá dentro da sociedade boliviana. Referências bibliográficas ALCOREZA, Raúl Prada. Horizontes de la Asamblea Constituyente. Bolívia: Yachaywasi, 2006. CASTRO, Luiz Fernando Damaceno Moura e. Nova Constituição Boliviana. Disponível em: <http://www.pucminas.br/imagedb/conjuntura/CNO_ARQ_NOTIC20071205112142.pdf?PHPSESSID=268fdb5336b2dd4705a8d8924e61a5fe> Acesso em: 14 set 2011. DIAS, Franceli Pedott. Bolívia: uma análise dos mecanismos de democracia e participação cidadã. Disponível em: <http://www.pucrs.br/edipucrs/XSalaoIC/Ciencias_Sociais_Aplicadas/Direito/71460-FRANCELIPEDOTTDIAS.pdf> Acesso em: 14 set 2011. Political Database of the Americas: CONSTITUIÇÃO BOLIVIANA 2009: Disponível em: <http://pdba.georgetown.edu/Constitutions/Bolivia/bolivia09.html> Acesso em: 14 set 2011. Por un balance de la Asamblea Constituyente. Centro de Documentación e Información Bolívia - CEDIB, 2007 Disponível em: <http.//www.rebelion.org/noticia.php?id=56971> ROJAS, Rosa. Bolívia: aprueban convocar a Assemblea Constituyente. Bolívia: Lajornada, 2006 Disponível em: http//www.jornada.unam.mx/ Acesso em: 8 mar 2006. SCHAVELZON. Salvador. Antropología del Estado en Bolivia:Verdades Sagradas, Farsas Políticas y Definiciones de Identidad. Disponível em: <http://www.scielo.org.ar/pdf/cas/n28/n28a04.pdf> Acesso: 16 set 2011. SCHIMITT, Carl. Teoria de la Constituição. Madrid: Alianza, 1992. URIOSTE, Mauricio Ochoa. Autonomías para el imperialismo, las multinacionales y las oligarquías. Disponível em: <http://www.rebelion.org/noticia.php?id=61486> Acesso em: 02 out 2011. URIOSTE, Mauricio Ochoa. Balance de la Asamblea Constituyente. Disponível em: <http://www.rebelion.org/noticia.php?id=55506> Acesso em: 02 out 2011. VIEIRA, Luíz Vicente. Crise no Estado Liberal na América Latina: movimentos sociais e as transformações do político. Recife: Editora Universitária UFPE, 2010.

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Elite da Meia-lua Boliviana tenta o golpe. BOLÍVIA 15/09/2008 às 12:51 Disponível em: <http://www.midiaindependente.org/pt/blue/2008/09/428317.shtml> Acesso em: 12 out 2011.