contraponto nº98

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JORNAL LABORATÓRIO DO CURSO DE JORNALISMO Faculdade de Filosofia, Comunicação, Letras e Artes – PUC-SP ANO 15 N 0 98 Maio 2015

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Maio de 2015

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Page 1: Contraponto Nº98

JORNAL LABORATÓRIO DO CURSO DE JORNALISMO Faculdade de Filosofia, Comunicação, Letras e Artes – PUC-SP

ANO 15 N0 98 Maio 2015

Page 2: Contraponto Nº98

CONTRAPONTO2 Jornal Laboratório do Curso de Jornalismo - PUC-SP Maio 2015

PUCPontifícia Universidade católica

de sÃo PaUloPUc-sP

reitor

vice-reitor

Pró-reitora de Graduação

Pró-reitor comunitário

facUldade de filosofia,comUnicaçÃo, letras e artes

faficla

diretormárcio alves da fonseca

diretora adjuntaregiane miranda nakagawa

chefe do departamento de Jornalismovaldir mengardo

coordenador do Jornalismomilton Pelegrini

vice-coordenador do Jornalismofrancisco chagas camêlo

c o n t r a Ponto

conselho editorialHamilton octavio de souza, José arbex Jr.,

marcos cripa e Pollyana ferrari

comitê laboratorialluiz carlos ramos, rachel Balsalobre, salomon cytrynowicz, Wladyr nader

editorJosé arbex Jr.

ombudsmanHamilton octávio de souza

secretárias de redaçãomariana castro e maria eduarda Gulman

secretária de produçãoBia avila

editor de fotografialeonardo m. macedo

PUC

E D I T O R I A L

SUMÁRIOcapa: maurício Pavan, alberto murayama: Prêmio vladimir Herzog

jornalismo Onde está a notícia? pág. 3

debate Para professores, defesa da prática jornalística (...) pág. 4

comportamento Novelas criam sua própria versão da homossexualidade pág. 6

ditadura Aos poucos, desaparecem homenagens a torturadores pág. 7

fotojornalismo Tons de cinza revelam retrato em branco e preto pág. 8

direitoshumanos Latifúndio tenta impor retrocesso a 20 anos de combate (...) pág. 10

ensaiofotográfico Vale sagrado dos Incas pág. 12

juventude Redução da maioridade penal é um ataque a constituição pág. 14

jornalismo Mídia protege elite e miniminiza caso HSBC pág. 16

internacional O inimigo mora ao lado pág. 18

segundaguerramundial Para nunca esquecer pág. 20

resenha “O Inverno da Guerra” pág. 22

crônica Mofo Estrangeiro pág. 22

antena Câmara aprova lei de terceirização: projeto gera empregos (...) pág. 23

luta Manifesto em defesa da Educação Pública pág. 24

simetria design Gráfico – projeto/editoraçãoWladimir senise – fone: 2309.6321

contraPonto é o jornal-laboratório do curso de Jornalismo da PUc-sP.

rua monte alegre 984 – PerdizesceP 05.014-901 – são Paulo – sP

fone: 3670.8205

número 98 – maio de 2015

cill Press Gráfica e editorafone: 993.583.533

Fale com a gente

envie suas sugestões, críticas, comentários: [email protected]

Terceirização: um retrocesso dos direitos trabalhistas

Queda no número de empregos, dificuldades de negociação com patrão, corte de salários e benefícios, aumento do risco de acidentes e ampliação de casos de trabalho escravo. Essas são apenas algumas das consequências da aprovação do PL4330/04, o qual permite a terceirização de todas as tarefas de uma empresa, inclusive de sua atividade-fim. Atualmente, é a Súmula 331, do Tribunal Superior do Trabalho (TST) que vigora. Com ela, apenas atividades-meio de uma empresa podem ser terceirizadas, como as de segurança e de limpeza.

A polêmica em relação ao PL se deu principalmente a partir do dia 8 de abril, quando a Câmara aprovou texto-base do projeto que regulamentava a terceirização. Foram 324 votos a favor dele, dos quais 164 (quase 50%) vieram de parlamentares do bloco empresarial — evi-denciando o claro interesse dos empresários no projeto — além de 137 votos contra e 2 de abstenções. Desde então, manifestações contra sua legalização ocorreram por todo Brasil, organizadas por órgãos sindicais e pela CUT (Central Única dos Trabalhadores). A maior delas se deu no dia 15 de abril e atingiu pelo menos 21 estados brasileiros.

Em meio a tantas críticas, o presidente da Câmara dos Deputados, Eduardo Cunha (PMDB-RJ) adiou a votação duas vezes, até que na noite de 22 de abril ele finalmente foi aprovado e encaminhado para o Senado, fato considerado como “a maior derrota ao governo Dilma Rousseff”.

É de extrema importância não deixar que esse movimento morra, pois, mesmo não rece-bendo a devida atenção da grande mídia, ele está criando força. A principal crítica feita pelos opositores — representantes sindicais, acadêmicos, juristas e entidades internacionais ligadas à defesa dos direitos trabalhistas — se dá na precarização do trabalho, mas há muito além disso a ser tratado. Segundo levantamento da CUT e do Departamento Intersindical de Estatística e Estudos Socioeconômicos (Dieese), ao comparar trabalhadores que realizavam a mesma função em 2010, os terceirizados recebiam em média 27% a menos do que os contratados diretos, tinham uma jornada 7% maior e permaneciam menos tempo no mesmo trabalho (em média 2,6 anos, ante 5,8 anos para os trabalhadores diretos).

Além disso, 80% dos mortos em serviço entre 1995 e 2013 na Petrobras eram subcontrata-dos. Terceirizados que trabalham em um mesmo local têm patrões diferentes e são representados por sindicatos de setores distintos, o que afeta a pressão por benefícios, por exemplo. Entre 2010 e 2014, cerca de 90% dos trabalhadores resgatados nos dez maiores flagrantes de tra-balho escravo atual eram terceirizados, conforme dados do Ministério do Trabalho e Emprego – a mão-de-obra terceirizada torna-se uma fuga das responsabilidades trabalhistas.

A Lei da terceirização beneficia apenas os empresários, e não os trabalhadores. A aposta de Lula é que Dilma vetará o projeto. Entretanto, é nosso dever manter os olhos abertos para o caso e lutar para que ele, de fato, seja barrado, pois esse é o maior ataque aos direitos tra-balhistas do século XXI.

EXPEDIENTE

Page 3: Contraponto Nº98

�CONTRAPONTOJornal Laboratório do Curso de Jornalismo - PUC-SP Maio 2015

Por João Gabriel e laís martins

JornalismoCONTRAPONTO

Todos os anos a imprensa brasileira é protagonista de consideráveis episódios

e escandâlos jornalísticos, que apontam para uma crescente tendência de partidarização da mídia. Mais recentemente, essa partidarização pôde ser observada nos casos dos atentados às sedes do Partido dos Trabalhadores (PT) e da greve dos professores do Estado de São Paulo. Paulo Fiorillo (PT), vereador da cidade de São Paulo, relembra o histórico da mídia brasileira contra a esquerda. Ele conta que esta sempre atacou principalmente o Partido dos Trabalhadores, tentando vincular este com sequestros, mortes e vandalismo e, mesmo hoje, após 13 anos de governo petista, o embate continua. Para o vereador isso é um “movimento calculado”, uma tentativa de inviabilizar a esquerda por meio do PT: “bater no PT é uma tentativa de bater na esquerda como um todo”, ressaltou.

Mas isso tem um motivo. Sabemos hoje que a grande mídia brasileira é propriedade de cerca de cinco famílias, que controlam seu conteúdo e seu viés ideológico. Os escândalos de corrupção são muito mais destacados se re-lacionados ao PT, as manifestações de esquerda são constantemente associadas a vandalismo ou atos sem sentido e os atentados às sedes do PT no início do ano de 2015 foram, além de pouco destacados, conotados por alguns veículos como tentativas do partido de se vitimizar, coloca o vereador. Fiorillo, que também é professor da rede pública, nos dá um excelente exemplo de como isso funciona, “as greves, num primeiro momento, estavam no caderno de Economia, Mercado e não no de Política”, “parece que não estamos em greve”.

Teve início no começo no mês de março uma greve dos professores em São Paulo. A pa-ralisação afeta escolas da rede pública estadual. A greve só foi notadamente anunciada pelos grandes meios de comunicação no mês de abril e ainda assim teve sua importância diminuída. Entre as principais reinvindicações da greve estão a implantação da Meta 17 do Plano Nacional da Educação, que garante a equiparação do salário do professor ao salário dos demais profissionais com nível superior, o que configura um reajuste salarial de 75,33%; a fixação de um número máximo de alunos por sala de aula, a fim de evitar a superlotação das salas; e o problema da contratação de muitos professores temporários que, por consequência, têm menos direitos.

O governador do estado, Geraldo Alck-min, mostra-se pouco preocupado com a para-lisação que já dura mais de 40 dias. De acordo com o portal Pragmatismo Político, Alckmin disse que “a paralisação não chega a 3% da catego-ria” e que as escolas estão funcionando. Já a presidenta da Apeoesp, Maria Izabel Azevedo Noronha, contestou a declaração do governador e disse que a greve já se iniciou com um indíce de aderência de 50%, enquanto o governo afirmava que esse indíce era de cerca de 5%. “Greve da Apeoesp não começa nunca a menos de 10%, porque só a nossa militância é isso, a vanguarda do movimento é isso e quando tem uma greve deliberada, ela já tem 10%”, afirmou Bebel. A

será com certeza um grande instrumento de comunicação que nós vamos fortalecer”. Ela ressaltou a importância dos blogs como um contraponto à imprensa tradicional e citou blogueiros como Paulo Henrique Amorim e Azenha, dizendo ainda que sempre que possí-vel gosta de repercutir textos de autoria própria na blogosfera. Também o vereador reconhece nos meios alternativos, como o Facebook e blogs autônomos, o papel de contraponto em relação à grande mídia. Ele pede cuidado, porque “às vezes você encontra informações equivocadas” ou até blogueiros financiados pelo governo Alckmin para distribuir propa-ganda antipetista, mas não deixa de exaltar o caráter mais democrático destas mídias.

Um reflexo importante desta campa-nha contra a esquerda e do projeto neoliberal promovido pela grande imprensa é o discurso de ódio que surgiu no país, sobretudo após as eleições passadas. Paulo Fiorillo enxerga a mídia como uma estimuladora do ódio e da intolerân-cia, algo que ele coloca como temerário. Insiste ele que “precisamos tomar cuidado” com este clima, “nós devemos sempre combater o ódio e a intolerância”.

Esses dois casos trazem à tona uma dis-cussão que por muito tempo esteve adormecida. Pouco se discute sobre a questão da parcialidade da imprensa brasileira. A mídia deve ser imparcial ou deve assumir um lado? É melhor o modelo de imprensa como um quarto poder, como adotado nos Estados Unidos, ou é melhor o modelo fran-cês em que os jornais declaram publicamente sua preferência ideológica? Qualquer que seja a saída, uma coisa há de mudar: os meios de comunicação devem urgentemente passar por um processo de regulamentação e democratização.

Onde está a nOtícia?Jogo de ocultação de alguns fatos e sobre-exposição de outros

revela parcialidade dos grandes grupos midiáticos

presidenta acredita, ainda, que falte coerência ao governador, que reconheceu outras greves como legítimas e democráticas, mas desqualificou a greve dos professores, chegando a afirmar, in-clusive, que ela não existe. “O que é democracia para o governador?”, questionou Bebel.

Para o vereador Fiorillo, eleito em 2012, a mídia não pode ter lado e é um equívoco a atuação desta como o 4º poder. Segundo o site Manchetômetro, por exemplo, o Governo do Es-tado de São Paulo recebe quase seis vezes menos menções negativas que o Governo Federal. Para ele, a comunicação deveria informar para criar o debate sem assumir um lado. Para Bebel, a mídia deve pelo menos assumir de que lado está, pois não há sentido em afirmar-se a serviço do público e mostrar só um lado. Ambos concordam que é fundamental a democratização da comu-nicação, sem censura, mas propondo que mais gente participe da comunicação em geral. Mas por que o projeto encabeçado pelo próprio PT nunca passou no Congresso? O vereador diz que falta um acúmulo de forças, “o Congresso nem sempre tem uma maioria pró-esquerda”. A pre-sidenta da Apeoesp expressou ainda seu desejo de ver um encaminhamento de democratização dos meios de comunicação, “Nenhum jornal, nenhum órgão televisivo, nem um rádio, nada, é sem ser por concessão pública, portanto se é pública, o dinheiro é público e teria que ter os dois lados. O grande problema é que se ouve um lado e vira um editorial. Em vez de informar, por os dois lados e deixar a população julgar, não, quem julga a gente é a mídia”.

Para Bebel, a mídia alternativa tem sido de grande utilidade para o movimento nesse período. A presidenta acredita que a imprensa alternativa “cumpre o papel de desmistificar aquilo que não está sendo de fato dito e

Greve dos professores ocupa vão do MASP

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CONTRAPONTO� Jornal Laboratório do Curso de Jornalismo - PUC-SP Maio 2015

Por Giovanna fabbri e laís martins

Se quer algo bem feito, faça você mesmo. Estimulados por esse lema

e insatisfeitos com a falta de posicionamento do Departamento, os professores de jornalismo da PUC-SP, José Arbex Jr. e José Salvador Faro, tiveram a ideia de abrir um espaço de debate para o curso de Jornalismo, no qual alunos e professores pudessem juntos discutir a situação da profissão. Dessa vez, o texto “O suicídio do jornalismo”, da Profa. Sylvia Moretzsohn, serviu de base para fomentar certos aspectos a serem discutidos e pontuados.

No debate que ocorreu na quarta-feira, 29 de abril, os professores José Arbex Jr., José Salvador Faro e Aldo Quiroga juntos da aluna Lu Sudré não só mediaram a conversa, como, a partir de diferentes pontos de vista do texto da Profa. Sylvia Moretzsohn, levantaram inúmeros questionamentos, contradições e conclusões sobre o jornalismo.

Faro iniciou o debate apontando os quatro problemas descritos no texto sobre a profissão. O primeiro deles é como a urgência do fecha-mento resulta na perda das referências e fontes diversificadas dos jornalistas. É visto um maior comprometimento com a audiência que com os interesses de viés público. O prof. Aldo, em concordância com esse problema, revela que uma da razões para essa crise da profissão é justamente a falta de responsabilidade individual do profissional para com sua parte, que resulta, muitas das vezes, numa censura nas redações estimuladas pelos próprios jornalistas. “Muitas das vezes o profissional usa das corporações Google, ou Facebook, por exemplo, para cons-truir reportagens, encontrar fontes, etc. É de nossa inteira responsabilidade a apuração das matérias e o uso de fontes diversificadas para que haja credibilidade”.

O segundo problema apontado é a falta de capital investido nas grandes reportagens. Há, de fato, uma divergência nos interesses financeiros entre as editorias e os empresários. Sobre isso, Faro afirma ser um crime bloquear o acesso dos cidadãos às informações: “ter que fazer assinatura, como os grandes veículos mi-diáticos fazem, contradiz à lei do acesso livre à informação garantida pela constituição”.

O terceiro deles é sobre como a era digital se tornou um novo desafio para os jornalistas. Muitos não estão conseguindo acompanhar o dinamismo da tecnologia. Muitas vezes falta competência de profissionais. Segundo Faro, a tecnologia pode desestruturar a profissão, “certas informações circuladas muitas das vezes não têm caráter público e, portanto, não podem ser con-siderados de viés jornalístico. Essa defesa de uma democracia radical da profissão pode desestrutu-rar a própria profissão. Não adianta só pulverizar os grandes meios. É preciso que isso aconteça a partir de uma perspectiva jornalística”.

Ainda sobre esse assunto, Arbex ressalta que, para ele, “muito do jornalismo praticado por movimentos periféricos, por exemplo, são uma versão piorada da grande mídia, uma vez que

Para PrOfessOres, defesa da Prática jOrnalística Passa Pela crítica e reflexãO universitária

Avaliações distintas sobre a crise e o futuro da imprensa mobilizam o Departamento de Jornalismo

tomam desta como referência. A atividade jorna-lística tem seus processos específicos, assim como seus princípios e sua ética construídos ao longo de séculos”. Assim como concorda Faro, “muitos meios alternativos não tem certa linguagem ou estrutura que se aprende nas universidades. Há apenas uma reprodução dos grandes meios.”

Por último, a crise dos cursos de jornalis-mo decorrem dos desvios que as universidades estão vivendo. São duas as teclas apontadas: o curso voltado para a entrada ao mercado de trabalho; e o desenvolvimento do espírito empre-endedor. “Para mim não faz o menor sentido”, revela Faro, “o correto seria as universidades criarem mecanismos para ensinar aos alunos superar os desafios da profissão em si e não do mercado. A consequência desse ensino de natu-reza imediatista e mercadológica estimula ainda mais a crise que os jovens estão enfrentando hoje quanto ao letramento”, completa.

Segundo Arbex, uma das falhas dos departamentos de jornalismo das universidades é a falta de investimento e cultivo dos debates reflexivos. Para o professor, essa questão não é resultado das crises internas do jornalismo, mas sim de uma conjuntura muito maior, “não é o jornalismo que está sendo questionado como tal, mas sim nosso modo de vida. Os Estados do oriente médio estão se desintegrando. A China e o Japão estão batendo de frente. A Ucrânia se rebelando. Há 60 milhões de refugiados pelo mundo vítimas da segunda Grande Guerra. E,

incluído nisso tudo, 85 famílias detém mais di-nheiro que a metade da população em situação de miséria”, aponta, “o jornalismo reflete isso tudo, está desabando também. Ele nasceu da liberdade de expressão garantida pela democra-cia, e para preservar essa patrimônio, é preciso lutar pela democracia e, assim, pelo jornalismo. As universidades são o primeiro passo para isso. Entretanto, de fato isso não acontece se não hou-ver um letramento. E essa é uma consequência da barbárie em que estamos vivendo”.

Outra consequência dessa barbárie, de acordo com Aldo, é a falta de conhecimento de muitos estudantes de jornalismo sobre a própria profissão e suas incertezas quanto a atuação num futuro próximo. Em contraponto, Faro contesta, “os estudantes que procuram o jornalismo têm outras motivações – o dinheiro claramente não é – acredito que essa procura está ligada ao anseio pela voz. É um impulso original, de natureza re-formadora, talvez até um pouco utópica”.

Aplaudida pelos outros estudantes, a alu-na Lu Sudré, de fato, reflete a opinião de muitos que almejam encarar o jornalismo nos próximos anos “estamos aqui (na universidade) para pensar o que queremos e no que queremos somar. Só assim poderemos discutir outras coisas”.

Como era de se esperar, o debate que ocor-reu na terça-feira seguinte, dia 5 de maio, tomou rumos um pouco diferentes. Além do professor José Arbex Jr. e do professor José Salvador Faro, o debate contou também com a presença da profes-

DebateCONTRAPONTO

“O cOrretO seria as universidades criarem mecanismOs para ensinar aOs alunOs superar Os desafiOs da prOfissãO em si e nãO dO mercadO”

(JOsé salvadOr farO)

Os professores José Arbex Jr. e José Salvador Faro apresentaram análises nem sempre convergentes; há um concenso, no entanto,

de que está em jogo o legado humanista construído por séculos de práticas profissionais e éticas

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5CONTRAPONTOJornal Laboratório do Curso de Jornalismo - PUC-SP Maio 2015

(Da esq.-dir.) Profs. de jornalismo José Arbex Jr., José Salvador Faro e Aldo Quiroga

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Auditório cheio reflete demanda por um debate aprofundado

sora Pollyana Ferrari e foi mediado pela aluna do terceiro ano, Victoria Azevedo. Arbex começou sua fala dizendo que não concorda inteiramente com o texto da Prof. Sylvia Moretzsohn (“O suícidio do jornalismo”), mas também não concorda com o texto do professor Silvio Miele, que expôs em seu texto-comentário uma perspectiva oposta. Para Arbex, o texto de Miele “glauberiza” o momento que vivemos hoje, termo esse usado em alusão a Glauber Rocha que acreditava que “basta uma câmera na mão e uma ideia na cabeça”. Na visão de Arbex é um equívoco dizer que há uma crise no jornalismo, “Onde não há crise? Vivemos uma crise civilizacional”, pontuou o professor. Todas as noções que herdamos do iluminismo estão em crise e tudo aquilo que foi prometido que jamais se repetiria depois de Auschwitz ainda se repete. Sob essa perspectiva, o jornalismo, uma institui-ção tradicional das sociedades democráticas, não fica de fora. O professor atribui à universidade a obrigação de manter a tradição do jornalismo, que consagrou os procedimentos éticos da profissão. Arbex acredita que iniciativas como a Mídia Ninja não fazem jornalismo, pensamento que soou radical para muitos alunos presentes no debate. Já Faro discorda do colega, afirmando que “veicu-lação de informação relevante, não importa onde for, é jornalismo”. Seja no Mídia Ninja, no Estado de São Paulo ou no feed do Facebook. “Passar a régua”, expressão usada pelo professor, é ser reducionista. “Jornalismo não é intuitivo”, colocou Arbex, defendendo a importância da universidade.

Por outro lado, ele também não enxerga mais na mídia tradicional a prática do jornalismo. “O que nos resta para defender o jornalismo”, disse Arbex, “é sermos excelentes intelectuais, mas também ligados às ruas”.

A presença da professora Pollyana Fer-rari foi bastante enriquecedora, pois sua forte aproximação com a internet introduziu novos questionamentos ao debate. Defensora das novas mídias, a professora atribuiu o grande problema do jornalismo à perda de qualidade que este vêm sofrendo. Assim como Arbex, Pollyana concorda que a mídia tradicional já não faz mais jornalismo. Para ela, a solução está dentro das universidades. “Eu acredito em jornalismo”, disse a professora. Victoria fez um questionamento muito relevante que provavelmente ecoa na cabeça de todo estudante de jornalismo. Para os jornalistas em formação a crise preocupa prin-cipalmente em dois pilares – como se sustentar economicamente e como garantir a qualidade do conteúdo produzido.

Faro, que foi o grande idealizador desse encontro, iniciou sua participação expressando sua felicidade em ver o auditório cheio. Para ele, a crise que assola o jornalismo pode ser vista também no ensino. Faro afirmou, como já havia feito em outras instâncias, que não há espaço para empreendedorismo na univer-sidade, contrário ao professor Sakamoto, que originalmente propôs essa disciplina. Para ele, a racionalidade acadêmica não tem compromisso

com a praticidade. Muita prática e pouca teoria formam jornalistas vazios. A crise do jornalismo, para o professor, explica-se também por fatores exteriores ao exercício da profissão e o universo midiatizado e comunicacional afasta o indivíduo do jornalismo. É importante lembrarmos da principal característica que difere um comuni-cador de um jornalista. O comunicador não tem compromisso algum com a apuração e a verdade, como tem o jornalista. Para Faro, o jornalismo re-veste-se de um código de procedimentos éticos, inerente à tradição da profissão. “A tecnologia diminui as restrições da profissão e democratiza radicalmente o jornalismo”, coloca o professor. O cidadão, portanto, não é jornalista pois não partilha desse código ético.

Conforme o debate encaminhava-se para uma conclusão, os professores foram fazendo suas pontuações finais. Para Faro, o próprio jornalismo se viu seduzido pelas práti-cas tecnológicas. O caminho para a “redenção está na universidade, que deve retornar às suas origens – voltar a ser reflexiva e experimental. “Não é saudosismo”, disse Faro, “é necessi-dade de reafirmar os pontos de origem dessa profissão. As tecnologias democratizaram o jornalismo e tiraram da profissão o monopólio da informação, o que pode ser excelente para incentivar o jornalismo a tornar-se melhor a cada dia. Pode ser que o jornalismo clássico não tenha mais espaço na sociedade, no en-tanto, ele pode se recriar mas sem perder seu compromisso com a sociedade. Faro fala da importância de nos aproximarmos das lingua-gens digitais e de abandonarmos a ideia de que os instrumentos tradicionais são o que faz o jornalismo bom. Em realidade, o que define o jornalismo como sendo bom ou não, é sua parte mais rudimentar que nesta crise parece ter ficado em alguma gaveta esquecida. Para Arbex, não importa o tipo de jornalismo que você pratica, o importante é ser bom. “Temos sempre que fugir da mediocridade”, disse o professor.

A produção de jornalismo de qualidade caiu em desuso, sim, mas não morreu. Pollyana citou exemplos de veículos tradicionais da im-prensa norte-americana, como New York Times e Washington Post, que conseguiram fazer jornalismo de qualidade – isto é, aprofundado e com boa apuração – em meio a esse processo de midiatização. “O jornalismo não está pro-curando o suicídio, exceto quando vive na sua zona de conforto”, disse Arbex, em relação ao título do texto que foi o ponto de partida para esse debate.

Recorrente na fala de mais de um aluno foi a reclamação de que faltam espaços que permitam o aprofundamento teórico na grade horária. Após o primeiro ano, as aulas teóricas, de extrema importância, cedem espaço para aulas práticas, que embora exijam muito mais trabalhos e demandem muito mais tempo dos alunos, não exigem o mais importante: a reflexão. Como disse o próprio Faro, muita prática e pouca teoria forma jornalistas vazios. Alunos ressalta-ram o histórico humanista e a postura crítica tradicional à PUC, dizendo que a grade horária não valoriza o que a nossa universidade tem de melhor. No entanto, a intensa participação dos alunos evidenciou a importância de se ter este espaço de debate e questionamento dentro da própria PUC. Ao que tudo indica, a esperança de um jornalismo melhor está mesmo dentro da universidade.

“temOs que ser excelentes intelectuais,

mas também ligadOs às ruas”

(JOsé arbex Jr.)

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“falta aOs estudantes O cOnhecimentO sObre a própria prOfissãO”

(aldO quirOga)

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CONTRAPONTO� Jornal Laboratório do Curso de Jornalismo - PUC-SP Maio 2015

Por Beatriz nogueira e Bruna scavuzzi

Não é novidade pra ninguém que a nação do samba, do futebol e do

carnaval é 5ª mais populosa do mundo com mais de 200 milhões de habitantes. De acordo com o Instituto Brasileiro de Geografia Estatística (IBGE) são 67,6 milhões de domicílios, dos quais 63,3 milhões possuem televisão. Para as empresas que dependem desse meio de comunicação, 1 ponto de audiência equivale a 641.286 brasilei-ros. A maior emissora de televisão do país, Rede Globo, ultimamente alcança uma média de 30 pontos no seu maior pico. Em outras palavras, são mais de 19 milhões (19.238.580) assistindo TV durante o chamado “horário nobre”, que em épocas melhores já teve um índice bem maior – a nação do samba deveria também ser conhecida por ser a do vício televisivo.

O horário nobre das emissoras brasileiras é cedido, quase que integralmente, para a trans-missão de novelas que retratam o cotidiano dos brasileiros – ou pelo menos deveriam retratar. As personagens, em geral sempre caricatas demais para atender à realidade de fato, têm uma grande influência sobre os telespectadores, facilmente extraindo do público boas ou más reações. Há controvérsias, todavia, sobre as respostas que estão sendo extraídas perante a inclusão de te-máticas homossexuais nos roteiros da Globo.

Desde a novela Amor à vida, com o primei-ro beijo gay da emissora entre as personagens Niko e Félix (Thiago Fragoso e Mateus Solano), a polêmica se estende. As outras duas novelas que seguiram, Em Família e Império também não deixaram de dar mais atenção ao tema. No entanto, a polêmica chegou ao seu ápice com a nova história de Gilberto Braga.

A atual novela “das 21h”, Babilônia, desde o seu primeiro capítulo está sendo mais comentada do que assistida de fato. O principal motivo para essa contradição novelesca é a ou-sada história de amor entre duas idosas. Teresa e Estela, interpretadas respectivamente por Fer-nanda Montenegro e Nathalia Timberg. Juntas há mais de 30 anos, as duas buscam, como qualquer outro casal, a possibilidade de casamento dentro da esfera jurídica.

Para o público, a surpresa em torno não apenas do relacionamento homossexual, mas também do amor na terceira idade foi grande. Contudo, talvez a surpresa não tenha sido tão positiva quanto esperavam que fosse. Dados atu-ais do Ibope confirmam que Babilônia é a novela com menos audiência da TV Globo.

A batalha pelo espaço na sociedade não é restrita ao universo da comunicação. Os homossexuais, após muita luta, conquistaram o reconhecimento no âmbito jurídico da união estável e adoção por casais do mesmo sexo. Ainda assim, as conquistas são poucas perto do evidente retrocesso presente na sociedade.

A criminalização da homofobia, um dos temas mais recorrentes dos últimos anos, em que se viu a agressão contra os homossexuais estampar os diversos noticiários pelo país, ainda não teve nenhum resultado. No início desse ano foi arquivado pelo Congresso Nacional o projeto

nOvelas criam sua PróPria versãO da hOmOssexualidade

Personagens ainda refletem visões estereotipadas, mesmo quando tentam transmitir mensagens não preconceituosas

de lei que finalmente legitimaria como violência esse tipo de postura e, infelizmente, tudo indica que não haverá mudanças a respeito.

É por esse caminho do retrocesso que parte da sociedade brasileira tem caminhado. Um exemplo é da Bancada Evangélica, presente no Congresso brasileiro, que soltou um repúdio ao beijo gay entre as atrizes Fernanda Montenegro e Nathália Timberg, ambas de 85 anos, na novela Babilônia. A frente cristã afirma que a telenovela afronta os costumes e tradições dos cristãos e ataca a “família tradicional”.

Do que se trata, de fato, essa tal “família tradicional”? Isso vai de acordo com a visão de cada pessoa, porém, como já tem sido mostrado em nossa sociedade, existe aqueles que defen-

dem com unhas e dentes a família tradicional, como aquela em que há um ho-mem e uma mulher para gerarem um filho e não aceitam que pessoas do mesmo sexo possam cons-truir uma “família”. Mais uma vez o retrocesso.

Em março desse ano, o questionamento sobre a “família tradicional” foi além dos pilares cristãos. O casal de estilistas italianos Stefano Gabbana e Do-menico Dolce cedeu uma entrevista à revista italiana Panorama e, quando ques-tionados sobre a possibilida-de de serem pais, afirmaram que gostariam de sê-lo, mas

segundo Dolce, pelas circunstâncias, não pode-riam. Ele acredita que a vida tem um percurso natural e que isso não poderia ser modificado, consequentemente, criar uma família não seria possível. O fato causou repúdio de vários famosos contra a marca Dolce&Gabbana. Um deles foi Elton John, casado com David Furnish, que tem dois filhos na sua atual união. Ele se sentiu dire-tamente atingido pelas alegações dos estilistas, tendo em vista que para John o respeito e o amor é o que criam de fato os vínculos familiares.

Essa ideia de família é afirmada também pela entrevistada Renata, de 23 anos, cuja relação com Caroline, de mesma idade, dura há mais de quatro anos. “Família é família, sem definições. É um lar com respeito, amor, carinho, confiança. É ter alguém em quem se apoiar em momentos difíceis, alguém pra compartilhar os momentos de vitória, as conquistas. Ter alguém pra dividir as frustrações, pra dividir os risos, o café da manhã... É ter cumplicidade e conviver em harmonia.”

As duas, apesar de aprovarem o espaço que os homossexuais estão conquistando nas novelas, não se sentem otimistas. “O preconceito é algo difícil de mudar. Quando vemos esses temas nas novelas, as famílias são obrigadas a ‘engolir’”, disse Caroline. Sua parceira acres-centou que o fato da TV Globo retratar uma temática homossexual é relativo aos interesses privados da empresa. “A emissora precisa de algo que dê repercussão a ela, positivamente ou negativamente. Não há interesse em terminar com o preconceito.”

A influencia positiva que as produções novelescas podem causar sobre os brasileiros no que diz respeito a redução da homofobia é incontestável. Contudo, o casal entrevistado é co-erente ao apresentar desconfiança perante essa atitude dos meios de comunicação: as emissoras inevitavelmente transmitem temas de interesse hegemônico, que é o verdadeiro objetivo. Se por acaso algumas consequências forem boas, seria meramente um bônus, neste caso, um bônus que deveria existir há muito tempo.

ComportamentoCONTRAPONTO

Cenas de beijos gay em novelas da Globo: (abaixo) Jane de Castro e Rogéria, em beijo dado no palco do Baden Powell, e a cena

polêmica de Babilônia

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Por Júlia dolce e victoria azevedo

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O ano de 2014 ter-minou com a pu-

blicação de um documento de extrema importância para as organizações e militantes que lutam pelos direitos humanos no país: o relatório final da Comissão Nacional da Verdade (CNV). Entregue à Presidenta Dilma Rousseff em cerimônia oficial no Palácio do Planalto e disponibilizado para down-load no dia 10 de dezembro, o relatório, fruto de dois anos e sete meses de investigações realizadas pela CNV, apontou 377 pessoas como responsáveis por crimes de tortura e assas-sinato executados pelo Estado durante a ditadura civil-militar no Brasil.

O documento foi criti-cado por grande parte da direita política no país, por ser considerado parcial e não condizer com os princípios da Lei da Anistia, de 1979, que na época inocentou igualmente tanto agentes do estado quanto presos políticos, entre eles a própria Presidenta. A CNV, entretanto, foi um órgão cria-do para investigar e responder pelas violações de direitos humanos praticadas pelo próprio Estado, e portanto, entre os pontos tratados pelo relatório final está a revisão da Lei de Anistia para militares torturadores. Uma das recomendações que o re-latório faz ao governo é que os responsáveis por crimes contra a humanidade sejam convocados a responder na Justiça.

Apesar de parte significativa das Forças Armadas e dos políticos brasileiros ainda não reconhecer a legitimidade da CNV e de suas re-comendações – o que dificulta o julgamento dos criminosos do regime militar – algumas mudanças vêm sendo feitas, lentamente, no quadro de heran-ças simbólicas da ditadura. Também em dezembro de 2014, o prefeito Fernando Haddad inaugurou em frente ao Parque Ibirapuera, Zona Sul de São Paulo, o primeiro monumento em homenagem aos mortos e desaparecidos políticos do período. A obra, projetada pelo arquiteto Ricardo Ohtake, traz o nome de 436 vítimas da ditadura militar.

Para Adriano Diogo, ex-deputado do PT e presidente da Comissão da Verdade do Esta-do de São Paulo, o relatório produzido foi um grande avanço para a sociedade brasileira, no entanto, o governo brasileiro não soube lidar com esse produto final. “O que eu acho é que quando saiu o relatório, o governo brasileiro se assustou e mandou engavetar ele; o relatório foi encarcerado, foi fechado, ninguém pode mexer nele, tá tudo parado”, disse.

Paralelamente, colégios e ruas que homenageavam militares e torturadores vem sendo renomeados. No dia 1 de abril de 2015, aniversário de 51 anos do golpe militar, o esta-do do Maranhão rebatizou diversas escolas que homenageavam os ex-presidentes militares, por meio de eleição entre estudantes, professores e

Mudanças nos nomes de escolas, ruas e monumentos, começam a refletir as denúncias do relatório final da Comissão Nacional da Verdade

funcionários, após determinação do governador do estado, Flávio Dino (PCdoB). O processo de mudança teve base no Decreto nº 30.618, de 2 de janeiro de 2015, que veda a secretários do Estado e agentes que exercem cargos de chefia, a atribuição de nome de pessoas vivas à bens públicos no Estado do Maranhão. No decreto, a vedação é estendida também “a nomes de pes-soas, ainda que falecidas, que tenham constado no Relatório Final da Comissão da Verdade, de que trata a Lei Nº 12.528 de 18 de novembro de 2011, como responsáveis por crimes cometidos durante a ditadura militar”.

Assim, os cinco colégios que levavam o nome do ex-presidente Marechal Castelo Branco, nos munícipios de Caxias, Fortaleza dos Nogueiras, Governador Newton Bello, Imperatriz e na capital São Luís, passaram a homenagear professores e intelectuais brasileiros, como o compositor Vinícius de Moraes e o educador Paulo Freire.

Na cidade de São Paulo, uma lei sancio-nada em abril de 2013 por Fernando Haddad permite que moradores de ruas nomeadas em tributo à torturadores e apoiadores da ditadura, solicitem a mudança de nomenclatura através de um abaixo-assinado. A mudança artesanal de vias públicas em forma de protesto, no entanto, já vem sido feita há muito tempo por militantes pró direitos humanos. É o caso do Cordão da Mentira, encontro de coletivos culturais e movimentos po-líticos que denuncia através do “desfil&scracho” as violências executadas pelo Estado Brasileiro. Segundo Silvio Carneiro, membro do Cordão, “a violência é uma forma constante no processo ‘civilizatório’ nacional, tendo se intensificado no período da ditadura civil-militar, com novas técnicas de tortura e a institucionalização de estratégias de guerra e terror”.

O Cordão da Mentira considera que sofre-mos com heranças dessa estrutura de violência até hoje, e portanto, realiza desde 2012 protestos em formato de desfile de carnaval e escrachos, prin-cipalmente no dia Primeiro de Abril. “Decidimos ocupar as ruas com as memórias da dor e da luta

no dia Primeiro de Abril, todos os anos, marcando no trajeto a história por vezes esquecida, e associando tais estruturas ao presente democrático”.

Em seus desfiles, o Cor-dão da Mentira costuma pas-sar em locais historicamente importantes para o período da ditadura militar, como a Secretaria de Segurança Públi-ca do Estado, a sede do jornal da Folha de São Paulo (que apoiou o golpe e o regime), o Memorial da Resistência e a Rua Maria Antônia. São realizadas intervenções como a colagem de adesivos sobre os nomes de ruas e instituições. Silvo conta que no primeiro desfile do Cordão, o nome da “Escola de Música Tom Jobim” foi altera-

do para “Escola Livre de Música Pato N’Água” (sambista morto pela ditadura). “Não se trata de um carnaval qualquer, mas da criação de um espaço de intervenções que recolhem a memória esquecida da nossa luta”.

Adriano Diogo, por sua vez, explicou como é complicada a relação com os moradores dessas ruas, lembrando de quando ele partici-pou de uma atividade de conscientização para tentar mudar o nome da Rua Fleury. “Foi muito difícil conversar com eles, porque eles não enxer-gavam as vantagens de alterar o nome da rua. Perguntaram se haveria algum prejuízo que os afetasse com a mudança, ou se eles teriam algu-ma isenção de impostos por aceitar a mudança”. Ele insiste que além dessa conscientização dos moradores, é preciso revisar a abordagem de vários temas e a forma como eles são contados pela história, nos livros didáticos, por exemplo. “O Brasil sempre contou a história dos vence-dores, na qual o polo conservador sempre está ganhando. O nosso país teve 400 anos de escra-vidão, matou e mata até hoje indígenas e não existe registro disso, quase nenhum processo de revisão da maneira como esses temas são tratados na história”, disse.

Apesar do esforço de militantes, uma lei semelhante à decretada no Maranhão, que veda nomes de violadores de direitos humanos à logradouros, ainda não passa de um projeto no estado de São Paulo. Apresentado pelo Deputado Raul Marcelo (Psol), no dia 15 de abril deste ano, o PL, baseado no relatório final da CNV, abrange ruas, escolas, prédios, praças e também proíbe festejos em comemoração ao golpe de 64 den-tro de repartições públicas. O próprio autor do projeto, porém, reconhece as dificuldades que sofrerá para aprovar a proposta, devido a maioria conservadora na Assembleia Paulista.

Adriano Diogo ressalta ainda a importância de lidar com os crimes do passado, e enxerga que só a partir de um esclarecimento sobre eles, será possível investigar os crimes do presente.

DitaduraCONTRAPONTO

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CONTRAPONTO8 Jornal Laboratório do Curso de Jornalismo - PUC-SP Maio 2015

Por maria eduarda Gulman (*), mariana castro e nicole Gasparini

Documentário sobre Sebastião Salgado desconstrói as críticas acerca de sua forma de enxergar, com beleza, o pior da humanidade

tOns de cinza revelam retratO em brancO e PretO

Na sala de cinema, os minutos após o término da exibição de O Sal da Terra,

filme que retrata a vida e a obra de Sebastião Sal-gado, declaram como missão cumprida o objeti-vo de seus diretores: transmitir o sentimento por trás de cada experiência do fotógrafo. O público permanece sentado, em silêncio, em busca de absorver as histórias e realidades extremas que lhes foram apresentadas nas últimas duas horas. Dirigido por Wim Wenders e pelo filho do fotó-grafo, Juliano Ribeiro Salgado, o documentário, que concorreu ao Oscar em 2015, apresenta trechos da vida de Salgado, paralelamente ao contexto em que realizou cada série de imagens. As fotografias geram um confuso encantamento diante de uma beleza fascinante que, ao mesmo tempo, retrata o pior da humanidade.

A produção do filme mescla cenas colori-das de arquivos passados com cenas em preto e branco, buscando uma aproximação com o estilo do fotógrafo, que trabalha inteiramente com fotos preto e branco. Além disso, é composto por um incontável número de suas fotografias e, apesar de não ser uma produção didática, oferece ao espectador diversas informações sobre a vida de Salgado. O mineiro de 71 anos, formado em economia, já passou pela fotografia esportiva e até mesmo pelos nudes, antes de descobrir sua vocação como fotógrafo social. Seu primeiro livro, Outras Américas, retratou os pobres da América Latina e deu sequência a uma série de trabalhos de cunho humanista, como Fome no Sahel, a respeito da seca no Norte da África, Trabalhadores Rurais, que registrou o trabalho manual ao redor do mundo e Êxodos, sobre o desalojamento em massa de comunidades.

A partir de depoimentos e fotos, o fil-me conta os bastidores das fotografias mais marcantes do fotógrafo brasileiro que é, hoje, consagrado no mundo inteiro. A utilização de uma linguagem cinematográfica para tratar de um outro tipo de linguagem, a visual, é efetiva no sentido de compor o significado da obra, uma vez que expõe o contexto e os desafios em que foi construída. Trata-se de um retrato sobre o tra-balho de Sebastião Salgado jamais visto, uma vez que conta com suas explicações pessoais sobre o que o levou até o local e momento da foto, além de seus sentimentos a respeito. Seu filho, Juliano Salgado, revela ao Contraponto que, apesar de conhecer bem aquela história, descobriu novas coisas sobre seu pai através do olhar de outra pessoa (se referindo a Wim Wenders, seu co-di-retor). ”Muita coisa que passa no filme, passou pra mim também: o quanto ele sofreu e o quanto ele aprendeu, o quanto ele tem pra passar das experiências lindas que viveu.”, diz Juliano.

O papel do fotógrafo social – Após assistir o filme, é possível refletir sobre o que classifica um fotojornalista, uma vez que Sebas-tião Salgado pode ser considerado como tal. As imagens, utilizadas para ilustrar os meios de comunicação, devem refletir o evento que está sendo retratado, de forma honesta e objetiva,

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além de se combinarem a outros elementos da notícia que direcionem o receptor a respeito das circunstâncias do acontecido. Um fotojornalista é dinâmico e flagra o momento de um fato noticioso de forma rápida, sem se envolver pes-soalmente com os envolvidos. Foi deste viés da fotografia, entretanto, que surgiu a fotorrepor-tagem, abrindo caminho para o que conhecemos hoje como fotografia humanista. Nela, o foco não está no fato, mas no olhar do repórter sobre a condição que testemunha.

Nesse sentido, o longa possibilita a des-coberta do lado humanista de Salgado, uma vez que mostra seu profundo trabalho de campo, escondido por trás de cada foto. Ele passa vá-rias semanas no local em que está trabalhando,

conhecendo as pessoas e entendendo suas circunstâncias de vida. Além disso, são apenas protagonistas de suas fotografias os que se deixam fotografar, estabelecendo uma relação de confiança com aquelas pessoas, respeitando a dignidade delas e procurando conhecer a hu-manidade existente em cada uma.

Apesar disso, há quem diga que suas fotos carecem de uma explicação mais clara sobre a problemática tratada. Um exemplo de projeto que abrange de forma eficaz tanto a parte estética das fotos quanto seu objetivo social é o “SP Invisível”, que retrata moradores de rua e suas histórias de vida. Vinicius Lima, um dos idealizadores da página, acredita que seu trabalho é capaz de mudar o modo com que as

O Sal da Terra foi indicado ao Oscar 2015 de melhor documentário

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ao problema do desmatamento no Brasil. Além disso, colabora com numerosos organismos internacionais, entre eles a UNICEF e a ONG Médicos Sem Fronteiras. Ele também doa parte de suas regalias a organizações internacionais e investiu diretamente em projetos próprios, como o “Amazonas Images”, que deu origem ao Êxodos. Seu caráter humanista, notavelmente, ultrapassa suas fotos, permeando as atitudes de Salgado como indivíduo.

O olhar sensível que o fotógrafo imprime em seus registros revela não apenas uma estética visual, mas uma estética que retrata a dignidade que, apesar das circunstâncias, é da condição humana. A fotografia ajuda na construção de um novo olhar das pessoas a outras realidades, servindo de denúncia a elas. O estudante Vinicius Lima exemplifica isso na fala a respeito de seu projeto: “postamos a história de uma pessoa que mora nas ruas pra abrir o olho e a mente de quem está em casa, conscientizar, e aí ela ser a diferença na vida dos seres humanos que ela encontrar pelas calçadas”. Nesse sentido, a importância do fotojornalista se revela extrema na medida em que, mesmo que não mude a reali-dade diante de seus olhos, registrar um momento e uma história refletirá um impacto que só ele será capaz de causar no observador.

A polêmica ao redor do trabalho de Sebas-tião Salgado é o melhor exemplo de que ele, hoje em dia, ocupa um espaço quase que exclusivo em seu campo, se colocando na fronteira entre a arte e o fotojornalismo e despertando um novo tipo de sentimento aos que tem acesso a sua obra. A indignação e o incômodo com as situações regis-tradas não são, nem por um momento, deixadas de lado pela beleza que caracteriza sua fotografia. Independente dos meios e técnicas que utiliza, Sebastião Salgado deixa claro seu recado: sofridos, belos, complexos e, principalmente, humanos, os indivíduos são – como dito em uma das primeiras falas do filme – o sal da nossa Terra.

Juliano Salgado, um dos diretores e filho de Sebastião Salgado, na premiere de seu filme, em São Paulo

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pessoas enxergam o mundo e influenciá-los a tratar a realidade que veem nas ruas de uma nova forma. De acordo com ele, “incomoda pensar que existem pessoas vivendo em condições de-gradantes e a gente tá num sofá”. É despertando este incômodo que a fotografia passa do caráter artístico para cumpridora de uma função social importante, que denuncia a realidade de pessoas que – nomeando o projeto – parecem invisíveis para tantos.

É por isso que, apesar de tal crítica ao trabalho de Salgado, seu engajamento com a população marginalizada pelo sistema também cumpre este objetivo. Seu objeto de interesse é a sobrevivência humana em condições extremas, buscando resgatar a dignidade e beleza de suas almas e dando visibilidade a esta população. É possível dizer que falta uma explicação do con-texto que gerou tais realidades, mas a imagem é tão poderosa e expressiva que induz o observador a refletir sobre a situação degradante que lhe é apresentada.

Este impacto só é possível através da cui-dadosa composição estética do fotógrafo, uma vez que ele se utiliza da técnica para capturar o melhor enquadramento e iluminação da cena, transmitindo expressões e detalhes que tocam a qualquer um. São fotos orgânicas, não manipula-das, que registram nada mais do que a realidade. Apesar disso, apresentam uma beleza estontean-te, que estabelece um paradoxo entre o belo e o terrível. Ser capaz de obter uma imagem com esta dualidade é exatamente o que o distingue de tantos outros fotojornalistas, se destacando na criação de um novo tipo de representação.

Não é de se surpreender que um trabalho que se apropria de uma certa beleza frente a momentos que revelam o pior da humanidade cause polêmica. Muitos acusam Salgado de “glamorizar a pobreza”, visando, até mesmo, lucrar em cima dessa. Há um questionamento acerca de ele ser mais um artista fotográfico do que um fotógrafo humanista – o que declara se considerar. Na sociedade pós-moderna, a foto-grafia se tornou mais um produto da indústria cultural, sendo produzida com o objetivo de ven-der algo ou, no caso, vender a si mesma. A obra do fotógrafo brasileiro, entretanto, não deveria se encaixar neste novo tipo de arte, uma vez que apresenta uma intenção clara. A saída que ele encontrou para reagir à tudo que vivenciou com estas pessoas é promover uma reflexão sobre as extremas condições humanas, através de uma beleza hipnótica, que chama a atenção dos que já estão inertes à desgraça alheia.

Outra das muitas críticas que cercam o fotógrafo é sua ação como ser humano frente a tudo que presencia. Existe uma extensa discussão que questiona a interferência de fotógrafos no contexto que registram. Exemplo disso é o caso do fotógrafo Kevin Carter, que venceu o prêmio Pulitzer por sua famosa foto do menino e o abu-tre. A sensação que se tem com a foto é a de que o abutre está posicionado atrás da criança, praticamente esperando por sua morte. O garoto, muito magro e notavelmente fragilizado, não recebeu expressiva assistência de Kevin após o registro, apesar de histórias controversas a res-peito de sua ação seguinte. As inúmeras críticas em consequência disso levaram o fotógrafo à depressão, o que fez com que ele se suicidasse.

Apesar de chocantes e desestabilizadoras, algumas situações fogem do controle de uma terceira pessoa, que surge na cena como um observador - como é o caso do fotógrafo. É claro que o assistencialismo direto é uma forma justa

e necessária de contribuição, além de essencial para qualquer que seja a melhoria daquela reali-dade. No caso destes profissionais, entretanto, o trabalho é mais lento e indireto, mas não menos eficaz. Nada do que Salgado tivesse para ofere-cer durante sua estadia no Sahel seria suficiente para acabar com a fome que ele registrou e denunciou, verdadeira e brilhantemente, em suas imagens.

Outro exemplo é a produção de Êxodos, na qual Salgado se dirigiu à Ruanda, onde pre-senciou de frente o conflito social que vinha pro-vocando deslocamentos populacionais e milhares de mortes. Desta forma, ele pôde capturar regis-tros a uma distância pouco vista anteriormente e a ampla divulgação deste trabalho atingiu pesso-as que provavelmente não teriam acesso àquela terrível situação não fossem suas fotos.

A alma doente – Após vivenciar o que define ser o pior da humanidade, Sebastião Salgado chegou a um estado de exaustão e de descrença frente ao futuro do globo. Ruanda foi sua gota d’água e, apesar de finalizar seu trabalho por lá com a dedicação de sempre, ele relata ter voltado doente de alma. As tragédias que presenciou e registrou o tiraram de seu eixo, reação inerente a um ser humano que se expõe a tanto sofrimento.

Frente a isso, o projeto seguinte do fotógrafo visava sua cura e, para isso, ele saiu em busca de regiões que, apesar de todas as mudanças que o homem causou no planeta, continuavam intocadas – minimamente ou não habitadas –. Surge, então, seu mais recente trabalho, Gênesis, que buscou ser um contraste com o caos moderno.

Seu interesse pela natureza e o meio-am-biente se reflete, também, nos projetos pessoais que passou a desenvolver neste período. Criou, ao lado de sua mulher Lélia Wanick, o Instituto Terra, que propõe um planejamento inovador

Cadáveres em Nyarubuye,

Ruanda (1995), por

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CONTRAPONTO10 Jornal Laboratório do Curso de Jornalismo - PUC-SP Maio 2015

Por victor labaki agostinho e vinícius lima

latifúndiO tenta imPOr retrOcessO a 20 anOs de cOmbate aO trabalhO escravO

Desde 1995, mais de 47 mil trabalhadores foram libertados de condições desumanas

No dia 13 de Maio de 1888, a assinatura da Lei Áurea,

teoricamente, colocou fim no período escravista brasileiro e no domínio de uma pessoa sobre outra. Porém, mais de 100 anos após o decreto assinado pela Princesa Isabel, os vínculos em-pregatícios escravocratas que colocam trabalhadores em jornadas exaustivas de trabalhos forçados, restritos aos documentos e à mobilidade, ainda existem mesmo considerados ilegais e criminosos, segundo o Código Penal e a Organização Internacional do Trabalho.

Em 1995, há exatos 20 anos, o presidente Fernando Henrique Cardoso reconheceu a existência de trabalho escravo no Brasil. Desde então, já foram libertados mais de 47 mil trabalhadores nestas condições em todo país.

Até o ano de 2013, o trabalho escravo era flagrado principalmente na zona rural brasileira. Desde então, a violação passou a se dar em indús-trias têxtis e na construção civil.

Em São Paulo, maior metró-pole do Brasil, a situação não é di-ferente, ao invés de negros e índios, as vítimas da neoescravidão são os imigrantes, em sua maioria bolivianos e brasileiros do norte do país.

Segundo o deputado estadual Carlos Bezerra Júnior (PSDB), criador da nova lei pau-lista contra o trabalho escravo, “as expressões da escravidão também mudaram. Não adianta procurar por correntes, pelourinhos, bolas de ferro presas aos pés ou chibatadas”, e completa: “Quem quer que sejam esses os definidores da escravidão ainda hoje é quem lucra com isso”.

De acordo com o Artigo 149 do Código Penal, o crime do trabalho escravo não é somente caracterizado por desrespeito às leis trabalhistas. Ele é visto como um crime contra a dignidade humana. Quem infringir o artigo é passível de uma pena que varia de 2 a 8 anos de cadeia, mais multas.

É caracterizado como trabalho escravo: “Reduzir alguém a condição análoga à de escra-vo, quer submetendo-o a trabalhos forçados ou a jornada exaustiva, quer sujeitando-o a condições degradantes de trabalho, quer restringindo, por qualquer meio, sua locomoção em razão de dívi-da contraída com o empregador ou preposto”

De acordo com a “Lista suja” que ainda não foi divulgada completamente, cerca de 404 nomes de empresas e pessoas civis estão en-volvidas na exploração de seres humanos para o trabalho escravo. A lista foi uma iniciativa da ONG Repórter Brasil e contém nomes de pessoas jurídicas que atuam desde o setor da construção civil – como a OAS – até ao setor têxtil – como no caso da Zara Brasil.

O jornalista membro e fundador da ONG Réporter Brasil, Leonardo Sakamoto, explicou que a lista é um “instrumento imprescindível para o mercado financeiro.”

“Para o consumidor vale mais saber quem que vende com o trabalho e não quem produziu. Só que para o sistema econômico brasileiro é muito útil, porque os bancos consultam a lista antes de conceder crédito e fazer negócios. A lista garante um instrumento de transparência”, completa Sakamoto.

Além da Zara, denunciada pela própria Re-pórter Brasil em 2011, centenas de lojas na região do Bom Retiro, do Brás e da José Paulino explo-ram a mão de obra escrava. Segundo o deputado Carlos Bezerra, “por trabalhador escravizado, o empregador-explorador economiza R$ 2.300”. Em 2012, 2750 trabalhadores foram encontrados em condições análogas à escravidão, de acordo com a Divisão de Fiscalização para Erradicação do Trabalho Escravo, o Detrae. Três anos depois, os números tendem a aumentar. As denúncias de-correram de 255 ações de fiscalização realizadas pelo Ministério do Trabalho e Emprego.

Na praça Kantuta, na região do Pari, um refúgio cultural para a comunidade boliviana em São Paulo, centenas de imigrantes praticam o

seu negócio em suas barracas. Uns cozinham as comidas típicas, outros vendem roupas ao lado da tenda de doces e bebidas bolivianas. “Meu primeiro emprego aqui foi de costura. Todo boliviano que vem pra cá começa com costura informal no mercado negro”, diz Edwin Mallea, um homem de La Paz que passou 4 dos seus 35 anos no Brasil, enquanto anotava os pedidos dos clientes que passavam pela quitanda de comidas típicas onde trabalhava – ele completa: “é a única oportunidade de vida no mercado de São Paulo para um boliviano que vem sem documento”. Ao descrever sua dura trajetória ao chegar no maior país da América Latina, Edwin comenta que veio pelo Paraguai por um ônibus, “não sei se pagaram propina [ao exército] ou se não sabiam, mas é por onde a maioria vem”.

Na Bolívia, Edwin ganhava 200 dólares em seu emprego como motorista. Porém, “lá não tinha condição de economizar ou usar”, comenta Mallea, e completa: “aqui posso poupar e comprar coisas que não podia comprar na Bolívia”. Embora vivam em condições escravas, a maioria dos bo-livianos ajuda financeiramente a família. Mallea comenta “nunca voltei, acho que vou visitar daqui dois anos. Mas todos que vem pra cá mandam di-nheiro pra família na Bolívia”. Ele explica também

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Edwin Mallea: “Aqui posso poupar e comprar coisas que não podia comprar na Bolívia”

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dos documentos – o processo foi gradual. Primeiro foi a documentação, depois um currículo, depois um emprego”. Embora sinta muita saudade de sua família, Edwin não pensa em voltar para lá. Mesmo com o alto custo de vida em São Paulo, ele se sente livre na cidade: “Trabalhar registrado significar pagar contas e sair do ‘conforto’ do dono da oficina”. Quando questionado se ele voltaria para uma vida de trabalho exaustivo, Edwin res-pondeu, “temos que ralar muito só se for para os nossos sonhos, aí vale a pena. Mas se for para os outros, só entre 6 e 8 horas”.

Apesar da situação dos trabalhadores ter melhorado, o caráter conservador assumido nos últimos tempos pelo Congresso Nacional e a aprovação da PL. 4.330, conhecida como lei da terceirização, tendem a dificultar o combate ao trabalho escravo.

“O uso de empresas terceirizadas é um artifício para tentar fugir das responsabilidades trabalhistas. Entre 2010 e 2014, cerca de 90% dos trabalhadores resgatados nos dez maiores flagrantes de trabalho escravo contemporâneo eram terceirizados, conforme dados do Ministério do Trabalho e Emprego. Casos como esses já acon-tecem em setores como mineração, confecções e manutenção elétrica.”, explica Sakamoto.

Outro problema apontado pelo jornalista da Repórter Brasil é que existem forças que não se interessam pelo combate ao trabalho escravo. “O combate ao trabalho escravo está sob ataque feroz. Ruralistas, empresas ligadas a construção civil e empresas ligadas ao setor têxtil batem de frente e não querem o combate ao trabalho escravo funcionando.”

Para a senhora Rosa Espejo Tito, superar a condição de trabalho escravo e conseguir re-gularizar sua situação não foi algo fácil.

Imigrante boliviana, Rosa veio para o Bra-sil há 28 anos em busca de uma vida melhor, no entanto, ao chegar aqui viu que o sonho de viver com dignidade iria ser mais difícil de alcançar do que imaginava.

“Começava a trabalhar às 8 horas da manhã e só parava meia noite, uma hora da ma-nhã. Dormia em um quartinho separado, de 3x3

metros. Era só eu e meu marido. Só cabia uma cama e nada mais. A gente comia salsinha, feijão... Comíamos o que eles [patrões] nos davam.”

Mesmo assim, Rosa conseguia ganhar mais do que na sua terra natal. “Na Bolívia eu ganhava 250 pesos, era muito pouco para minha família. Aqui eu ganhava 500 reais.”

Rosa diz que trabalhou dois anos sem documentação e vivendo clandestinamente no Brasil. Depois desse período, foi quando ela disse: “Quero morar como gente! Aí foi quando tudo que eu juntei por dois anos gastei para pagar a multa da Policia Federal.”

Ao tentar dar entrada na documentação, Rosa se surpreendeu com uma multa e como ela mesma disse, foi a única vez que pensou em voltar para Bolívia.

“Quando eles [Policia Federal] me dis-seram que tinha uma multa, caiu uma bomba nas minhas costas. Virei para o meu marido e falei ‘E agora o que a gente vai fazer? Se não pagarmos essa multa em três anos nós vamos ser deportados!”

Rosa e seu marido ainda foram enganados por um homem que dizia ser advogado. “Ficamos ainda um ano com advogado falso, correndo atrás da papelada que não era a papelada certa. A gente quase desistiu. Nessa época eu pensei em voltar para Bolívia.”

Atualmente, Rosa Espejo saiu da costura e vende roupas aos sábados na Praça Kantuta. Ela mora em um apartamento comprado na região da Luz, centro da cidade. “Saí da costura e ainda trabalhei como ambulante na rua. Com a costura não dava para acompanhar a minha filha.”

A humilhação que sofre de outros ambu-lantes brasileiros também incomoda Rosa. “Aqui a gente passa muita humilhação de brasileiro. Trabalho na feirinha da madrugada também. Lá eu já escutei várias vezes ‘Bolívia, dá espaço para mim. Aqui é minha terra, se quiser trabalhar, volta pra Bolívia’.”

Manuela (nome fictício de uma entrevis-tada que não quis ter sua identidade revelada) é filha de imigrantes bolivianos. Atualmente ela está cursando nutrição em uma faculdade parti-cular no bairro de Santa Cecília.

Ela já trabalhou fazendo visitas domiciliares para uma UBS (Unidade Básica de Saúde) e pôde presenciar com os próprios olhos uma situação de aban-dono e abuso de poder sofrida por uma funcionária de uma indústria têxtil do Bom Retiro.

“Tinha uma gestante de oito meses em uma gravidez de risco que o patrão não a deixava ir ao médico fazer o pré natal. Ele obrigava ela a trabalhar das sete da manhã às dez horas da noite na máquina de costura.”

Ela conta que uma vez o patrão ligou dizendo que ela estava passando mal.

“Eu falei que ela precisava ir ao médico, chegando ao hospital o bebê teve óbito.”

Leonardo Sakamoto completa dizendo que o cenário do aniversário de 20 anos do combate ao trabalho escravo não é só para se comemorar.

“Vai ser uma vergonha completa ver o governo federal comemorar os 20 anos do combate ao trabalho escravo no Brasil com medo de tomar as ações neces-sárias para manter viva a própria política de combate ao trabalho escravo.”Rosa Tito vende roupas típicas na Praça Kantuta há 12 anos

que na Bolívia existem muitas coisas boas, apesar da falta de oportunidades, “na Bolívia tem um estudo muito forte, mas não tem muito emprego. O pessoal vem aqui atrás de oportunidades de trabalho e melhor qualidade de vida”.

Hoje, Edwin trabalha em uma empresa de telemarketing no Bom Retiro onde entra ao meio dia e sai às seis horas da tarde com um salário de, mais ou menos, mil reais. Porém, nem sempre foi assim: essa carga horária e esse salário são muito diferentes se comparados ao de seu primeiro emprego. “Eu tinha 15 horas diárias de trabalho e 9 horas para dormir, comer e fazer tudo”, comenta sobre a sua rotina dentro de um quarto de 12 metros quadrados, onde trabalhou por três anos na indústria têxtil. Nesta época, o maior salário do jovem boliviano foi de 500 reais, pois era um dos mais experientes, “no começo eu ganhava 200 reais”, diz ele.

As formas de escravidão mudaram. A rela-ção que antes era direta entre um empresário co-reano e um escravo boliviano, hoje é intermediada por um outro nativo da Bolívia que tem uma ofici-na. Edwin explica a situação de todo imigrante que chega, “Ele costura pra oficina de um boliviano que trabalha pra um empresário coreano. É uma cadeia, uma pirâmide”. No começo, a exploração era maior devido a falta de informação e orienta-ção. A maioria dos empresários esconde as poucas documentações de seus trabalhadores.

Segundo o deputado Carlos Bezerra, “seja no mercado das grandes grifes ou no da constru-ção, a exploração quase sempre inclui retenção de salário e de documentos e isolamento geográfi-co”. Além da falta de informação sobre os direitos, os exploradores utilizam de problemas na língua portuguesa para abusar dos bolivianos. “Antes o dono da oficina falava que iria denunciar e sería-mos deportados se fugíssemos”, diz Mallea.

Apesar dos altos números da escravidão contemporânea, Edwin é otimista, “está melho-rando, tem bolivianos que são motoristas, opera-dores de caixas”. Logo após anotar o pedido de um casal, Mallea comentou, “com o tempo foi melhorando, a gente foi se informando e reconhe-cendo nossos direitos e começamos a correr atrás

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CONTRAPONTO12 Jornal Laboratório do Curso de Jornalismo - PUC-SP Maio 2015

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ensaio fotográfico

Por Juliana venturi tahamtani

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Cusco é uma pequena cidade do Peru, localizada na região dos

andes onde fica o vale sagrado dos Incas. A cidade guarda construções coloniais de estilo barroco andino, erguidas sobre res-tos de uma maravilhosa arquitetura inca que constroem seu patrimônio histórico. Cusco também é conhecido pelo seu sítio arqueológico de Machu Picchu e por sua população com características singulares de um povo latino.

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1�CONTRAPONTOJornal Laboratório do Curso de Jornalismo - PUC-SP Maio 2015

Vale sagrado dos Incas

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Por rafael santos, nadine nascimento, mariana Presqueliare e letícia Peixoto PEC 171/93 é desarquivada e tramita no Congresso

reduçãO fere a cOnstituiçãO e Pune Os PObres

A proposta de emenda constitucional (PEC), que visa reduzir a maioridade

penal de 18 para 16 anos, voltou a ser discuti-da na Câmara dos Deputados. A Comissão de Constituição e Justiça (CCJ) aprovou no último dia 31 de março a tramitação do projeto de emenda constitucional, com 47 votos favoráveis à medida e 17 contra.

“Atualmente, um jovem na faixa etária dos 12 aos 18 anos que comete ato infracional se sujeita às medidas socioeducativas previstas no Estatuto da Criança e do Adolescente, o que inclui a medida internação em estabelecimento educacional”, explica a defensora pública Mara Renata da Mota Ferreira, Coordenadora do Núcleo de Infância e Juventude da Defensoria Pública do Estado de São Paulo. Caso a PEC 171/93 seja aprovada, adolescentes de 16 a 18 anos que cometerem delitos serão enviados para penitenciárias.

Uma comissão especial foi criada pelo presidente da Câmara dos Deputados, Eduardo Cunha (PMDB), na qual 40 sessões do plenário acontecerão até o parecer final acerca do projeto. Para que a PEC seja aprovada, são necessários 308 votos favoráveis (3/5 dos deputados) em cada votação. Após a aprovação na câmara, a PEC segue para o Senado e começará a valer mediante sua aprovação.

A PEC 171/93 é o projeto mais antigo a tramitar no congresso e foi arquivado inúmeras vezes. Entretanto, desde a consolidação cada vez maior de bancadas conservadoras dentre as instâncias representativas do governo, a pro-posta foi desarquivada e colocada como uma das principais pautas do presidente da Câmara dos Deputados.

Em agosto de 1993, o ex-deputado Bene-dito Domingos (PP) apresentou à Câmara daquele ano a PEC 171/1993, em que era proposta a redução da maioridade penal de 18 para 16 anos, com a finalidade de reduzir a criminalidade. No entanto, ele usou de trechos bíblicos para apresentar a sua proposta, o que fere uma das cláusulas pétreas da Carta Magna brasileira que garante um Estado laico.

Douglas Belchior, professor e ativista so-cial, justifica o desarquivamento do projeto afir-mando que “o perfil radicalmente conservador do congresso somado à conjuntura de fragilidade do governo e dos movimentos sociais propiciam ambiente ideal para o avanço da PEC”.

A culpabilização da juventude pelos altos níveis de criminalidade brasileiros é um dos fa-tores que explica 87% da população se dizer a favor do projeto que reduz a maioridade penal no país, segundo dados divulgados pelo Datafolha. A argumentação dos apoiadores do projeto con-siste em defender uma possível redução destes níveis e afastamento das crianças e adolescentes do crime por meio da punição de adolescentes a partir dos 16 anos.

“Com a redução da maioridade penal os jovens entrarão mais cedo no sistema penitenciário e terão contato direto com as organizações crimi-nosas que imperam dentro dos estabelecimentos

penais, sendo, a partir de então, cooptados por estas organizações para que, quando retornem ao convívio social, continuem a praticar delitos com maior gravidade”, rebate a defensora pública Mara Ferreira. “Conforme dados da UNICEF, Espanha e Alemanha, após terem reduzido a maioridade penal, voltaram atrás nesta decisão ao perceber que a medida em nada havia contribuído para a diminuição da criminalidade.”, completa.

Influência da mídia – Grande mídia cor-robora para o fim de um diálogo cada vez mais escasso em torno da diminuição da maioridade penal. O desserviço prestado pelas grandes emis-soras e empresas de comunicação em torno da PEC 171/93 atinge em cheio a população, cada vez mais intolerante em relação ao caso. A falta de uma veiculação transparente e cada vez mais despreocupada com os rumos da irresponsabili-

dade social alimenta a violência cada vez maior do Estado e da opinião pública.

Segundo a Unicef (Fundo das Nações Uni-das para a Infância) apenas 1% dos homicídios ocorridos no país foram cometidos por jovens entre 16 e 17 anos. Ainda que a Organização registre o baixo índice de envolvimento dos me-nores de idade, as informações veiculadas pela imprensa transformam crianças e jovens nos principais alvos de uma polícia e sistema judiciário despreparados.

Por meio de argumentos superficiais e do apelo emocional beirando o espetáculo, a imprensa passou a intensificar o destaque a ca-sos isolados de jovens que cometem crimes e a transformar inocentes em pequenos infratores, qualificando os menores como uma ameaça a sociedade. O caso do menino Eduardo de Jesus, de 10 anos, morto a tiros por um policial no

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“Páginas nas redes sociais favoráveis a redução da maioridade penal reúnem cerca de 4 mil seguidores”

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Protesto durante audiência pública na Comissão Especial que analisa a redução da maioridade penal

movimento #NoaLaBaja, há quatro anos, 70% dos uruguaios eram a favor de que a maioridade penal deixasse de ser 18 anos, passando para 16 anos. A campanha contra a redução fez reco-lhimento de assinaturas, se uniu a outros movi-mentos sociais, à central sindical, a organizações de defesa dos direitos humanos, além de contar com alguns partidos políticos, atores, cantores e sociólogos que se posicionaram e fizeram um vídeo contra a aprovação do projeto.

A campanha alcançou seu objetivo e assim, no plebiscito deste ano, apenas 47% dos uruguaios mostrou-se a favor da aprovação do projeto. Se a mudança fosse aprovada, adoles-centes entre 16 e 18 anos que cometessem ho-micídio, lesão corporal grave, sequestro, estupro, roubo, roubo com cárcere privado e extorsão seriam condenados como adultos.

Os 54 países que reduziram a maiorida-de penal, não alcançaram o objetivo principal que era a diminuição da violência. Hoje, 70% dos países têm 18 anos como idade penal mínima. Dessa forma, se a redução no Brasil for aprovada apenas irá abarrotar ainda mais

nossas lotadas penitenciárias (o país é o ter-ceiro em população carcerária) que compõem um sistema falido de combate ao crime, ainda tornará nossos adolescentes mais vulneráveis às facções criminosas.

Para Douglas, a aprovação da PEC da redução da idade penal significaria uma enorme derrota simbólica, um enorme retrocesso nas conquistas obtidas no processo de elaboração da constituição de 1988, que garante os direitos da criança e do adolescentes e reafirmados ainda pelo Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA), aprovado em 1990.

A defensora pública Mara acrescenta ainda que a prisão não protege e não garante direitos, e que a proteção das crianças e adoles-centes deve ser unicamente por meio da garan-tia de seus direitos. Para ela, “a diminuição da criminalidade depende de políticas preventivas. O fornecimento de educação de qualidade para todos em tempo integral é uma medida necessá-ria, que não pode ser considerada como medida de longo prazo.”

Complexo do Alemão, evidenciou como as crian-ças que nascem e vivem na periferia são vítimas diárias não só da truculência do Estado, como também do falso julgamento da população.

Após sua morte, fotos falsas de uma crian-ça portando uma arma começaram a circular pelas redes sociais e programas televisivos, em uma ten-tativa de justificar a execução do menino, acusado de se envolver com o tráfico presente na região em que morava. Não é a primeira vez que as vítimas da violência nas periferias das cidades brasileiras são culpabilizadas pela própria morte.

O foco do debate deveria estar na causa geradora da criminalidade infantil, a precariedade de educação e lazer para crianças e adolescentes que assim como Eduardo, são deixados a margem por uma sociedade omissa e pela imprensa que faz vistas grossas para a real situação.

Uruguai – Enquanto 87% dos brasileiros é a favor da redução da maioridade penal, no Uruguai a população se mobilizou para conter o projeto de emenda constitucional e votou, em 27 de abril, contra a redução. Antes do início do

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Por Gustavo tello, João abel e Pedro Prata

Swissleaks abre espaço para debate sobre a independência das investigações jornalísticas no Brasil – ou a falta dela

mídia PrOtege elite e miniminiza casO hsbc

Conseguir um furo jornalístico não é uma tarefa fácil. Muitas vezes ele é

resultado de um trabalho de meses em busca de uma informação exclusiva. Fernando Rodrigues, jornalista do portal UOL e ex-colunista da Folha de S. Paulo, por exemplo, faz parte do seleto grupo de profissionais da imprensa que têm acesso ao maior vazamento de dados bancários da história, o Swissleaks, que envolve cerca de oito mil correntistas brasileiros do banco HSBC na Suíça.

Os dados do Swissleaks foram vazados por Hervé Falciani, um ex-funcionário do banco, e chegaram à mídia primeiramente através do jornal francês Le Monde. Desde então, eles são analisados pelo Consórcio Internacional de Jor-nalistas Investigativos (ICIJ), organização da qual Fernando Rodrigues faz parte. O órgão começou a divulgar informações, segundo as quais o HSBC teria ajudado clientes a esconder bilhões de dó-lares no país europeu entre 2006 e 2007.

No entanto, a divulgação do caso não tem sido feita “às claras”. No Brasil, apenas Rodrigues – em parceria com o jornalista Chico Otávio, do O Globo – possuem os documentos vazados. “Reportagens exclusivas são realizadas, em ge-ral, por um ou por poucos repórteres. Eu sou no momento o integrante brasileiro mais antigo do ICIJ, membro da entidade desde os anos 1990. Já ajudei a apurar várias reportagens junto à en-tidade”, argumentou Fernando, em declaração por e-mail, ao Contraponto.

Profissionais de comunicação, em especial de mídias independentes, têm reivindicado a divulgação completa da lista e uma maior disse-minação dos dados dentro da imprensa. Rodrigo Vianna, jornalista da Record e dono do blog O Escrevinhador, acredita que o vazamento deveria ser feito de forma explícita. “Devido à concor-rência, ele [Rodrigues] quer que o furo seja dele. Isso, em uma matéria normal, é correto. Agora, nesse caso, é diferente. Quem conseguiu os no-mes não foi ele, foi um ex-funcionário do HSBC que deu para o Le Monde”, declara. Segundo Rodrigo, jornalistas de veículos alternativos brasi-leiros encaminharam uma carta a Marina Walker Guevara, diretora do ICIJ, solicitando o acesso aos dados, mas ela recusou a entrega, que ficou restrita somente a Rodrigues.

“O grupo Folha está de rabo preso com quem?” – Na Argentina, o jornal La Nación divulgou abertamente a lista que re-cebeu do ICIJ, e formou-se uma polêmica ao ser revelado que o El Clarín, outro periódico argentino de grande porte e que também é filiado ao órgão de jornalismo investigativo, era citado. Isso ocorreu em fevereiro, mesmo mês em que Fernando Rodrigues começou a divulgar os nomes de brasileiros envolvidos. Contudo, ele o fez de maneira vagarosa e gradativa, levantando suspeitas de que figuras do empresariado brasileiro pudessem estar envolvidas, e que a lentidão na divulgação dos dados seria uma maneira de proteger tais pessoas ou entidades.

JornalismoCONTRAPONTO

Rodrigues, por meio de seu blog no UOL, se defende alegando que é preciso analisar caso a caso, e que só aqueles em que prevaleça a relevância jornalística e o interesse público se-rão divulgados. Vianna discorda de Fernando: “Quem diz se há interesse público ou não? Quem lhe deu esse mandato? Parece-me que isso é uma manobra, e que por trás desse discurso encobre-se uma situação constrangedora em que a família Saad [do grupo Bandeirantes], a Frias [do grupo Folha/UOL], a Marinho [das Organizações Globo] estivessem envolvidas. Isso mostra que tipo de imprensa temos no Brasil: uma imprensa fami-liar que se protege e protege a elite econômica do país. Afinal de contas, a Folha está de rabo preso com o leitor ou com os empresários que escondem dinheiro na Suíça?”.

No dia 14 de março, Fernando Rodrigues, juntamente com Chico Otávio, divulgou que os grupos familiares citados na fala de Vianna possuíam contas no banco. Além deles, outros comunicadores como o apresentador Carlos Massa, do SBT, e Fernando Vieira de Mello, diretor falecido da rádio Jovem Pan, também apareceram na lista.

Este caso abre ainda discussão para o de-bate sobre a falta de independência da mídia. Os meios de comunicação são fortemente influen-ciados por seus patrocinadores, por exemplo, na escolha das pautas. Um jornal pode optar por não publicar reportagens de escândalos que envolvam seus maiores anunciantes. “A popu-lação não está a par [desse caso]. Saiu no UOL, no Globo e na Folha, mas de maneira discreta, nunca como manchete de capa. É uma forma de divulgar o mínimo de informações para não mo-tivar questionamentos por parte da sociedade”, comenta Rodrigo.

Esfera pública x esfera privada – A mí-dia, ao longo dos últimos meses, tem dado mais enfoque no desvio de verbas da Petrobras do que no escândalo do HSBC, mostrando que, além de tudo, existe uma disputa ideológica permeando as ações da grande imprensa. Rodrigo Vianna acredita que “há uma lógica por trás disso, de minimizar o escândalo no privado e maximizar no público”.

Outra situação, que ajuda a visualizar essa questão, ocorreu em 2014. A Folha de São Paulo publicou uma matéria reportando que mais de 500 professores da Universidade de São Paulo (USP) ganhavam acima do teto estabelecido, por volta de R$20.000. Apesar de esse número representar apenas 8,7% do total de docentes, a Folha publicou, junto com a denúncia, uma lista expondo o salário de todos os professores da universidade. Isso aponta para uma contradição da mídia: porque no “caso HSBC”, optou-se por manter o sigilo das informações dos empresários envolvidos, mas no problema da USP esse mesmo direito não foi respeitado?

E as manobras midiáticas de encobrimento do escândalo suíço parecem fazer efeito sobre a população. A frase “Sonegação não é corrup-ção”, por exemplo, foi vista em cartazes durante a manifestação contra o governo no último dia 12 de abril e causou polêmica por representar a visão da elite que condena os políticos, cuja imagem é atrelada à corrupção, mas defende a iniciativa privada, que realiza sonegação de impostos em larga escala e como prática corriqueira. Esse pensamento é uma das justificativas do neolibe-ralismo para as privatizações e a não-intervenção do Estado na economia. Não por coincidência, o cartaz estava ao lado de outros que defendiam a terceirização.

Escândalo envolve cifras bilionárias, evasão de divisas e prática de corrupção; apesar disso, nomes dos envolvidos são preservados por

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Medidas judiciais – “Não existe ne-nhuma vedação legal ao fato de que brasileiros tenham contas no exterior”. A declaração de Rodrigo Priolli de Oliveira Filho, professor dos cursos de Direito e Jornalismo da PUC/SP, é também o argumento utilizado pelos principais nomes envolvidos no caso para escapar das acu-sações. Segundo ele, desde que os dados sejam devidamente declarados no Imposto de Renda, não há nenhuma irregularidade.

Além da própria burocracia e lentidão na divulgação dos envolvidos, o professor ainda afirma que o Swissleaks pode se esten-der em processos judiciais. “Vamos imaginar que eu sou advogado e estou dos dois lados: se eu respondo pelas pessoas expostas, pos-so tentar processar por danos morais; e se eu fosse um defensor de uma grande mídia que publicou, estaria tranquilo, porque foi publicado algo que todos sabem, sem acusar ninguém”, afirma.

A era dos LeaksÉ crescente, nos últimos anos, o número de escândalos causados por

vazamento de informações e o termo leaks (em inglês, vazamento) nunca esteve tão em alta. O Contraponto relembra aqui alguns dos casos mais recentes.

l Wikileaks – No caso mais famoso de vazamento de informações, os Estados Unidos tiveram um número exorbitante de seus documentos diplo-máticos compartilhados por ex-funcionários de seu sistema de inteligência. Mais de 700 mil arquivos foram distribuídos para o site WikiLeaks, que os disponibiliza em sua página, tornando públicas informações trocadas entre o corpo diplomático estadunidense e governos de diversos países. Há análises políticas e econômicas e informações sobre ações terroristas, interesses norte-

americanos, áreas onde pretendem aumentar sua influência, onde e porque intervir militarmente, e uma série de outras observações.

l Luxleaks – Em novembro de 2014, estourou um escândalo na Europa envolvendo Luxemburgo e gigantes multinacionais. Documentos vazados da PricewaterhouseCoopers (PwC), uma das maiores empresas de auditoria e consultoria financeira do mundo, expuseram acordos e estratégias secretos firmados de modo a minimizar a fatura de impostos pago pelas empresas sobre seus lucros. Tais negociações baseavam-se em brechas nas legislações internacionais, eram legais e tinham o aval do Estado de Luxemburgo. Esse escândalo revelou uma prática comum, de relações clandestinas entre governos e empresas gigantes do cenário global, que procuram não pagar o que deveriam em impostos. Nomes como Pepsi, IKEA e FedEx estão envolvidos.

l Offshore leaks – O ICIJ iniciou uma série de investigações a partir do vazamento de 2,5 milhões de documentos, que revelam o funcionamento e as características dos chamados “paraísos fiscais”, territórios onde é possível manter contas bancárias ou criar companhias que tenham privilégios tributários e, muitas vezes, sigilo bancário. A investigação teve por objetivo mostrar de que forma o uso dos “paraísos” se expandiu no mundo ao longo dos anos, e como isso tem um papel de peso em crimes como evasão de divisas e sonegação de impostos. Além disso, caracterizou os paraísos fiscais como parte das causas de algumas crises econômicas atuais e peça fundamental em esquemas de lavagem de dinheiro e corrupção.

l Chinaleaks – A China não saiu ilesa a essa onda de escândalos. O ICIJ, em parceria com os maiores jornais da Europa, publicou uma série de denúncias sobre a fortuna que a elite política chinesa mantinha em paraísos fiscais. Dentro de seu território, o Partido Comunista censurou fortemente qualquer notícia que tivesse relação ao caso, e pressionou os meios que o estivessem fazendo. Em resposta, jornais como o francês Le Monde e o britânico The Guardian intensificaram suas publicações. O periódico alemão Süddeutsche Zeitung foi além e criou uma versão em PDF de suas notícias para distribuir ao povo chinês, já que a internet estava sendo monitorada.

Para se ter uma dimensão de como os vazamentos têm se tornado comuns, a Folha de S. Paulo, por exemplo, criou o Folhaleaks, um canal pelo qual o leitor envia informações de interesse público ou documentos inéditos que possam motivar uma investigação jornalística. A publicação garante o anonimato.

Com relação à investigação pública do caso, foi instaurada em 24 de março uma Comissão Parlamentar de Inquérito (CPI) enca-beçada pelos senadores Paulo Rocha, do PT-PA, e Randolfe Rodrigues, do PSOL-AP. Entretanto, poucos foram os avanços na apuração dos fatos até o momento. Recentemente, Rodrigo Janot, procurador-geral da República, foi a Paris buscar contato com Hervé Falciani, delator do escândalo, e autoridades francesas. “Tem que ser investiga-do mesmo”, atesta Priolli.

Rodrigo Vianna também considera que a CPI é um caminho para solucionar o impasse. “Eles [os parlamentares] estão tentando obter a lista na íntegra. O Fernando [Rodrigues] foi chamado e falou que não vai entregar. Deu a desculpa de sigilo da fonte. Mas ele não está fazendo sigilo da fonte, e sim da informação. Ele está impedindo a população brasileira de ver como a elite econômica opera. Está protegendo os seus patrões”, diz o jornalista.

A averiguação dos eventos, todavia, não parece uma pauta importante para alguns políticos. Todos os quadros do Partido da Social Democracia Brasileira (PSDB), principal opositor do governo, por exemplo, votaram contra a instalação da Comissão.

O Brasil é o quarto país em número de envolvidos no Swissleaks, atrás apenas de Suíça, França e Reino Unido. No entanto, a repercussão do caso ainda é ínfima diante das proporções financeiras e ideológicas que cercam a questão. Mais do que isso, o escândalo do HSBC faz ascen-der questões sobre a própria forma de fazer jor-nalismo: é necessário respeitar a exclusividade de apuração da notícia ou expor o “furo” completo, para que a população faça seu próprio julgamen-to? Escolhendo o primeiro caminho, Fernando Rodrigues preferiu se aliar às obsoletas práticas da grande mídia brasileira, manipuladora e seletiva, deixando o Swissleaks longe dos holofotes e de um desfecho rápido e transparente.

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CONTRAPONTO18 Jornal Laboratório do Curso de Jornalismo - PUC-SP Maio 2015

Por Gabriel soares e leonardo sanchez

O inimigO mOra aO ladOAeronave que se chocou contra os alpes franceses expõe falhas no

sistema e despreparo para lidar com a depressão de seus profissionais

No dia 24 de março, um Airbus A320 com 150 pessoas a bordo caiu nos

Alpes franceses. O vôo 4U9525 tinha como des-tino a cidade de Düsseldorf, na Alemanha, após ter decolado de Barcelona, na Espanha. Operado pela Germanwings, empresa aérea subsidiada da gigante alemã Lufthansa, o Airbus teve seus destroços espalhados pelos Alpes, paisagem que até então era marcada essencialmente por sua beleza, matando os 150 indivíduos que estavam no vôo, entre passageiros e tripulantes.

Apesar do medo que se alastrou pelo mundo como consequência da onda de violência promovida não somente pelo extremismo do Estado Islâmico, mas também por grupos como o Boko Haram, a possibilidade de atentado ter-rorista foi descartada pouco tempo depois da queda do A320. Um porta-voz do Ministério do Interior da França teria dito à época que todas as hipóteses para a tragédia seriam exploradas, embora a terrorista não fosse “prioritária”, já que a aeronave percorreu uma “trajetória normal” até o momento de sua queda.

Uma explicação pouco esperada, embora a mais coesa para as condições nas quais a queda ocorreu, foi manifestada pelas autoridades dois dias após o desastre. Andreas Lubitz, copiloto do vôo 4U9525, teria derrubado o avião proposital-mente. Especula-se muito sobre as razões que levaram o alemão a um ato de tamanha frieza. Com sua morte, porém, torna-se impossível saber, ao certo, o que moveu Lubitz. Os motivos leva-dos em conta pela Promotoria, por especialistas dos ramos aéreo e psicológico e pela população em geral se concentram na “tendência suicida” diagnosticada em Andreas, que tinha depressão. Outro fator agravante seria a descoberta de um problema de visão, que comprometeria a carreira do copiloto. Lubitz, portanto, sofria de um quadro psicológico instável e segundo sua ex-namorada planejava algo grande, de que seria lembrado.

Instável – Em 2009, o ex-piloto interrom-peu sua formação por vários meses e, ao retomar os estudos, informou à Lufthansa que havia su-perado um caso de depressão profunda. Dessa forma, Lubitz foi aprovado em testes psicológicos que lhe apontaram como apto a voar.

A Promotoria de Düsseldorf, porém, informou que Andreas, de 28 anos, tinha um atestado médico de dispensa de trabalho por doença que havia ocultado da companhia, assim como outros documentos que demonstravam que ele estava sob tratamento. Os médicos escreveram que “Lubitz precisa(va) continuar o acompanhamento psicológico, apesar de ter sido declarado apto para voar”. A autorização de voo que recebeu foi dada por um perito independente em 2009.

Casos como o do copiloto da Germanwin-gs levantam questões a respeito de como as empresas tratam casos de depressão no ambiente profissional. Veio à tona, também, a importância de monitorar e realizar um acompanhamento periódico de seus funcionários. Para Fernanda

Aparecida, psicóloga pós-graduada em Gestão de Pessoas, a depressão no trabalho é grave e não é tratada com a seriedade que deveria: “Se-gundo a OMS (Organização Mundial da Saúde), a depressão ocupa o 2º lugar entre as doenças que causam incapacidade no trabalho e a pro-jeção é que até 2020 esteja no topo da lista. [O afastamento] é a melhor opção, principalmente quando a profissão coloca em risco a segurança de terceiros.”

Maria W., ex-namorada de Lubitz, era comissária de bordo da mesma companhia e mantinha um relacionamento com o ex-piloto desde 2014. Ao jornal alemão Bild, ela revelou que o copiloto vivia sob constante estresse: “Nós sempre conversamos muito sobre o trabalho e, em seguida, ele se tornou uma pessoa diferente. Ele ficou preocupado com as condições sob as quais trabalhávamos: muito pouco dinheiro, medo de perder o contrato, muita pressão.”

Esse ambiente ao qual Lubitz estava sub-metido pode explicar seu comportamento e tam-bém a tragédia. Fernanda aponta como uma das principais razões para a depressão o ambiente em que a pessoa está inserida: “As principais causas da depressão são fatores genéticos, biológicos e ambientais. Um ambiente hostil, por exemplo, pode gerar problemas sérios à saúde. A pessoa

apresenta humor alterado e não sente prazer pelas atividades usuais. Há queda de rendimento e produtividade.”

A ex-namorada de Lubitz revelou ainda que o copiloto tinha planos para que fosse lem-brado: “Quando soube do acidente, eu lembrei de uma frase que ele disse. ‘Um dia eu farei algo que vai mudar o sistema e então todos saberão meu nome e se lembrarão dele’”. Ela ainda aponta uma possível causa, de insatisfação profissional, para as atitudes do antigo parceiro: “Ele fez isso porque percebeu que, devido a seus problemas de saúde, seu grande sonho de trabalhar na Lufthansa, de ter o cargo de piloto em voos de longa distância, era praticamente impossível.”

Maria W. ainda falou como o copiloto era introvertido e não revelava seus problemas: “Ele era capaz de esconder dos outros o que realmente estava acontecendo, não falava muito sobre a doença, só que estava fazendo um tratamento psiquiátrico”. Por conta disso, Fernanda Aparecida ressalta a importância de profissionais capacitados que identifiquem esses tipos de problemas de saúde. “Indivíduos com sintomas a mais de 15 dias devem ser auxiliados. Inclusive é muito importante termos profissionais capazes de identificar tais sintomas e, se for o caso, afastá-los para tratamento.”

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“um dia eu farei algO que vai mudar O sistema e entãO

tOdOs saberãO meu nOme e se lembrarãO dele.”

(andreas lubitz, cOpilOtO respOnsável pela queda dO aviãO da

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Helicóptero sobrevoa o local da queda do Airbus A320, nos Alpes franceses

Copiloto Andreas Lubitz, responsável pela queda do avião da Germanwings

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19CONTRAPONTOJornal Laboratório do Curso de Jornalismo - PUC-SP Maio 2015

“a depressãO é a quarta dOença de maiOr custO de tratamentO nO mundO. as empresas devem investir na

prevençãO.”

(fernanda aparecida, psicólOga pós-graduada em gestãO de pessOas)

O caso do copiloto está sendo investigado pela Promotoria de Düsseldorf, que já descobriu que dias antes da tragédia ele chegou a fazer buscas na internet sobre “maneiras de se suicidar”, assim como sobre “as portas da cabine de comando e suas medidas de segurança”. Ainda foi descober-to que o piloto foi submetido a um “tratamento psicoterápico por muitos anos por ter tendências suicidas”. Logo, a questão a ser levantada é se a Lufthansa acompanhou o caso de Lubitz após esse diagnóstico. A empresa não fornecerá detalhes até que as investigações sejam concluídas.

Fernanda, a psicóloga ouvida pelo Con-traponto, aponta soluções para empresas manterem seus funcionários sempre aptos: “A depressão é a quarta doença de maior custo de tratamento no mundo. As empresas devem investir na prevenção dela promovendo infor-mações, ambiente saudável e ter profissionais capacitados a diagnosticar tais sintomas, direcio-nando o empregado ao tratamento, como não parece ter ocorrido no caso da Germanwings. Desta forma evitará afastamentos e incapacidade profissional.”

Falhas no sistema – O histórico médico de Lubitz poderia muito bem explicar um suicí-dio. Ter matado outras 149 pessoas, porém, é um ato que permanece sem justificativa certeira.

Esta incógnita, junto com as brechas no sistema aéreo europeu expostas pelo ocorrido, chamam atenção no caso do 4U9525 da Germanwings.

A Alemanha é um dos países normalmen-te associados a um padrão rigoroso de ordem e organização. Esta nação saiu das sombras do regime nazista que abrigou até a década de 1940 e superou sua bipartição entre as porções oriental (socialista) e ocidental (capitalista), que lhe foi imposta até 1990, rumo a um desen-volvimento acelerado e invejável. Ideologias à parte, a Alemanha representa hoje um símbolo de forte economia e riqueza intelectual, artística e tecnológica. Este padrão foi possibilitado pelo planejamento e o rigor já enraizados na cultura alemã, algo essencial para sua nova ascensão enquanto potência mundial.

É exatamente por esta seriedade que a tragédia envolvendo a Germanwings chocou muitas pessoas. A Lufthansa, empresa que a controla, é reconhecida internacionalmente por refletir tais valores da sociedade alemã. Seu sistema de recrutamento e treinamento são bastante respeitados, o que tornou a Luf-thansa uma das principais companhias aéreas do globo. Como seria possível, então, a série de falhas que permitiu que um único indivíduo, um copiloto, derrubasse um Airbus com outras 149 pessoas a bordo?

A Promotoria francesa afirmou que no dia em que a aeronave caiu, Andreas Lubitz tinha um atestado médico para não ir trabalhar, que foi descartado pelo copiloto. Ele, inclusive, estava em tratamento contra seus problemas psiquiátricos na época. Após o “suicídio”, o jornal alemão Bild publicou um levantamento que atestava que a maioria dos pilotos aéreos que sofrem de depressão ocultam o problema. Desta maneira, centenas de profissionais como Lubitz continuam com sua rotina normal de trabalho, mesmo que não estejam aptos para exercê-la.

Os erros da Lufthansa, porém, não se limitam à relação entre empresa e empregado. A segurança nos aeroportos e dentro das aero-naves também foi colocada em dúvida após a queda, algo que extrapola os limites da compa-nhia aérea e atinge não somente a Alemanha como um todo, mas também os países que possuem estrutura e funcionamento similares. (e sua maioria, aqueles da Europa ocidental e os Estados Unidos, cujos sistemas de segurança se assimilam, devido à sua inclinação a alvos de atentados terroristas).

Após os ataques ao World Trade Center, que ocorreram em Nova York, em 21 de setem-bro de 2001, diversos novos procedimentos fo-ram adotados por companhias aéreas ao redor do mundo com intuito de inibir atos de terrorismo. As condições que permitiram a queda do A320, inclusive, são consequência disto. Para impedir que seqüestradores entrem na cabine de coman-do das aeronaves, a porta passou a ser trancada por dentro. Se o piloto ou copiloto precisar ir ao banheiro, tem que usar um interfone para que o funcionário que permaneceu na cabine abra a porta para ele. Caso a pessoa que permaneceu no controle passe mal, existe a possibilidade de abrir a porta pelo lado de fora, por meio de uma senha, que leva cerca de 30 segundos para funcionar. Mesmo assim, quem está na cabine consegue bloquear a tranca de maneira que nem a senha consiga abri-la, para os casos nos quais um criminoso consegue os dígitos secretos com o funcionário que se ausentou. O sistema pode ser imune às ameaças externas, mas não previu a possibilidade da violência partir de um de seus próprios funcionários.

Ao descartar a possibilidade de terro-rismo, a Promotoria francesa levantou outras dúvidas em relação ao caso de Lubitz. De acordo com o dicionário online Michaelis, ter-rorismo pode ser definido como um “sistema governamental que impõe, por meio de terror, os processos administrativos sem respeito aos direitos e às regalias dos cidadãos” ou “ato de violência contra um indivíduo ou uma co-munidade”. Dessa forma, o que faz com que Andreas Lubitz, um jovem de 28 anos, alemão, copiloto de uma grande empresa e que levou à morte 149 pessoas, deixe de ser um terrorista? A falta de motivos para promover o assassinato de tantas pessoas certamente entra em conflito com a dissociação feita entre a queda e um ato de cunho terrorista.

É difícil encontrar um mecanismo à prova de falhas no caso da segurança aérea. Mesmo assim, é preciso prever todas as possibilidades em situações nas quais inúmeras vidas estão em jogo, como é o caso. Ao focar seus esforços na possibilidade de atentados caracterizados como “terroristas”, a Lufthansa e inúmeras outras empresas e países ao redor do mundo se esque-ceram de um detalhe: o inimigo pode muito bem morar ao lado.

Equipes de emergência da França trabalham

no local onde a

aeronave caiu

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CONTRAPONTO20 Jornal Laboratório do Curso de Jornalismo - PUC-SP Maio 2015

Por Bruna mondeck, Giovanna fabbri, lara castelo, Patrícia lo turco

e Paula diniz

Para nunca esquecerApós 70 anos, empresas que enriqueceram com a tragédia

continuam sem responder aos crimes cometidos; grupos radicais reproduzem práticas neonazistas

Setenta anos após o fim da trágica Se-gunda Guerra Mundial (1939-1945),

o mundo ainda é cercado por resquícios de uma experiência catastrófica, desumana, motivada não apenas por partidos políticos extremistas, mas como também, por interesses do capital privado.

Muitos foram os grupos e partidos polí-ticos que se beneficiaram dos feitos da guerra para ampliar e expandir seus interesses. Com os empresários não foi diferente. Inúmeras indús-trias – em especial a armamentícia – usufruíram dos horrores e injustiças para o próprio enrique-cimento. Além de prosperar com a guerra, o capital privado contribuiu para o financiamento do holocausto, racismo, perseguição, além de mortes civis. Percebe-se que nesse “jogo” no qual envolve a vida não há nenhuma ideologia a ser seguida, apenas aquela relacionada aos anseios do capital.

Segundo o professor de história da PUC-SP Lauro Ávila, a guerra é sempre um bom negócio para toda a indústria. “Quando se produz uma arma, por exemplo, mobiliza vários segmentos da indústria, como a siderúrgica, a química, a petroquímica, o setor de transporte, a quantidade de operário nas fábricas etc.”, explica. Nessa época, completa, “muitas empre-sas ao redor do mundo tinham negócio com a Alemanha, inclusive as norte-americanas. A Ford e a International Business Machines (IBM) são os principais exemplos”.

Conforme Lauro, foram dois os motivos para certas empresas bancarem a ascensão do nazismo na Alemanha, “a primeira é o assenso do movimento operário. Uma parte da burguesia alemã que precisava de estabilidade social para garantir o seu lucro, viu no nacional-socialismo não só um grupo barulhento, com fantasia, sím-bolos, mas também com capacidade de aglutinar os operariados”, continua, “isso, atrelado ao dis-curso anticomunista, gerou ainda mais simpatia de empresários, que acabaram financiando o partido nazista”.

Empresas – Henry Ford, lendário anti-

semita, presidente da empresa Ford, era o mais famoso defensor estrangeiro de Hitler. O norte-americano produzia veículos tanto para os nazis-tas, quanto para os aliados. Thomas J. Watson foi outro que considerou o nazismo irresistível. Presidente da IBM na época, foi ele quem cons-truiu, junto a Hitler, uma aliança tecnológica e comercial que agilizou o assassinato de seis mi-lhões de judeus, além de muitos outros europeus.

Essa empresa era a responsável pela construção de máquinas personalizadas - conhecidas como as máquinas de Hollerith - capazes de controlar, classificar e identificar a partir de números indi-viduais qualquer objeto ou indivíduo. Em outras palavras, essa máquina produzia um código de barras para os seres humanos.

Além dessas, empresas como a Kodak, Siemens, BMW e Hugo Boss admitiram o uso de trabalhadores escravos advindos dos campos de concentração. Esta última ainda fechou contrato com o partido nazista para fornecer os uniformes da Juventude Hitlerista e da SS. O uso da mão de obra escrava judaica também se mostrou uma prática das empresas Volkswagen e Porsche. Em 1934, o então presidente Ferdinand Porsche se reuniu com Hitler para discutir a criação de um “carro do povo”, também conhecido como Fusca. A Bayer (antes IG Farben) - hoje popular pela famosa “Aspirina” - foi responsável pela fabricação do gás Zyklon B usado nas câmaras de gás. Esta foi a empresa que obteve os maiores lucros na época.

Empresas estadounidenses também lu-craram com a guerra. Em 1941, a filial alemã da Coca-Cola encontrou dificuldades em conseguir o xarope para produzir a bebida. Em função de não poder adquirir o produto dos E.U.A devido as sanções da guerra, a empresa, a partir do uso de trabalho escravo, desenvolveu a Fanta laranja. Outra norte-americana foi a General Electric, que recebeu uma multa por parte do governo americano por suas nefastas atividades durante a guerra. Em colaboração com uma empresa alemã, a G.E. de forma intencionada subiu o preço do carbeto de tungstênio, um material de o que acarretou um aumento dos custos dos E.U.A nos conflitos.

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Consequências – Mais que significar a vitória dos Aliados (Estados Unidos, União So-viética e Reino Unido) sobre o Eixo (Alemanha, Japão e Itália), a segunda Grande Guerra resultou na morte de 80 milhões de homens, mulheres, soldados e crianças, além de uma colapse mental e psicológica de muitos que vivenciaram esse momento de destruição em massa.

A Organização das Nações Unidas (ONU), fundada em 1945 com o intuito de promover o diálogo entre países e evitar o ocorrência de futuras guerras mundiais, adotou em 1948 a Declaração Universal dos Direitos Humanos com o viés de delinear os direitos básicos dos seres humanos. Ideologias racistas e desumanas foram então docu-mentadas como práticas criminosas. Essas práticas, antes consideradas como forma de salvação da nação por Hitler e Mussolini, mesmo consideradas inaceitáveis no século XXI, ainda estão presentes em muitos grupos militantes atuais.

A ideia de superioridade, justificada pelas diferenças naturais genéticas humana, é ainda muito comum nas ruas desse século tão reconhe-cido por seus avanços democráticos, inovações tecnológicas e crescimentos econômicos. O lado humano de cada homem está sendo a cada dia ainda mais ignorado em função da ambição financeira e da necessidade de uma ascensão so-cial. A comparação e a competição, estimuladas pelo nosso sistema econômico capitalista vigente, fomentam ainda mais práticas discriminatórias criminosas e são identificadas em diversos grupos extremistas atuais. Este retrocesso chama aten-ção de quem ainda pretende lutar por direitos humanos.

Segundo Lauro, as práticas neonazistas de extrema direita nunca deixaram de existir no pós-guerra. Um dos grandes problemas deste

Segunda Guerra MundialCONTRAPONTO

Judeus, ciganos, socialistas e comunistas foram forçados a trabalhar para a empresa IG Farben (Bayer)

“quantO maiOr a crise maiOr a aceitaçãO de explicações

fáceis e que geralmente, estãO erradas”

Page 21: Contraponto Nº98

21CONTRAPONTOJornal Laboratório do Curso de Jornalismo - PUC-SP Maio 2015

período foi a não desnazificação concreta da Ale-manha. Durante os julgamentos de Nuremberg, por exemplo, foram decretadas 12 condenações à morte, três prisões perpétuas e 17 condenações até 20 anos de cadeia, números que claramente não condiziam com a realidade dos agressores. De acordo com o professor, se calculava que três milhões de pessoas precisariam ser desnazificadas, isto é, responsabilizadas juridicamente por com-pactuarem com os crimes de guerra cometidos. Muitas empresas, por exemplo, que usufruíram do trabalho escravo de eslavos e judeus, não sofreram as consequências legais de seus atos.

Outro ponto relevante é que a extrema direita alemã atualmente tem como alvo princi-pal, não os judeus, mas sim os imigrantes. Essa prática xenofóbica pode ser observada em toda a Europa, devido ao momento de crise vivido pelo continente. “Quanto maior a crise maior a aceita-ção de explicações fáceis e que geralmente, estão

erradas”, afirma Lauro. Também segundo ele, a falta de imigrantes resultaria em dois milhões de empregos não preenchidos e dois milhões de desempregos, uma vez que muitos dos cargos ocupados pelos imigrantes não seriam ocupados pelos próprios europeus.

Problemática – Houve de fato duas grandes guerras? Ou então, o que aconteceu foi uma grande guerra assinalada por um intervalo de tempo? De acordo com o historiador britânico Eric Hobsbawm, não houveram duas guerras estritamente separadas, mas sim uma grande guerra de 31 anos, desde a declaração de guerra austríaca à Sérvia, dia 28 de Julho de 1914, até a rendição incondicional do Japão, dia 14 de Agosto de 1945, quatro dias após a primeira explosão nuclear.

Para o historiador, mesmo quando os con-flitos não aconteciam diretamente, como na fase

entre guerras (1918-1939), o clima de guerra per-sistia já que muitas das consequências da primeira guerra levaram à eclosão da segunda, como, por exemplo, o fato de, em meados da década de 20, a economia mundial ter mergulhado numa crise que agravou ainda mais as tensões entre países, assim como a formação de um vácuo econômico na Alemanha que possibilitou o crescimento de uma camada social de extrema direita nacionalista e revanchista. “Daí em diante, uma nova guerra mundial era não apenas previsível, mas rotineira-mente prevista.” Portanto, segundo Hobsbawm, o século XX viveu e pensou constantemente em termos de guerra mundial. “A humanidade so-brevive. Contudo, o grande edifício da civilização do século XX desmoronou nas chamas da guerra mundial, quando suas colunas ruíram”, aponta o historiador. É nesse clima que a humanidade revive e continua lutando por uma sociedade democráti-ca, igualitária e, principalmente, humana.

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Máquina de Hollerith, da IBM para o partido nazista

Grupo neonazista StormfrontPráticas discriminatórias baseadas em condutas nazistas ainda perduram nessa era marcada pela

intensa discussão dos direitos básicos humanos. Criado em 1990 em plataforma digital pelo ex-líder do Ku klux klan, Don Black, o grupo neonazista Stormfront defende inexoravelmente a supremacia branca. Hoje esse grupo funciona como um site de bate-papo com alcance mundial capaz de receber doações de diversas pessoas. As bandeiras levantadas são “segregação racial” e “antissemitismo”. O grupo culpa os negros e judeus por todos os males, além de acreditarem em sua inferioridade devido a questão da hereditariedade. Essa é a maior organização pró-brancos ou “anti-negros” do mundo. Mesmo que a atualidade represente um grande avanço na luta por igualdade, houve um aumento considerável de membros dessas sociedades nos últimos anos, principalmente após a eleição do presidente negro Barack Obama.

Fanta Laranja, criação da Coca-Cola para a

Alemanha nazista

Símbolo do grupo neonazista Stormfront

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CONTRAPONTO22 Jornal Laboratório do Curso de Jornalismo - PUC-SP Maio 2015

O texto do Joel é maciamente per-furante, como uma punhalada

que só dói quando esfria”. Poucas palavras definem tão bem O Inverno da Guerra quanto estas do escritor Manuel Bandeira. A obra contempla vários relatos de Joel Silveira, correspondente brasileiro durante a Segunda Guerra Mundial, e foi publicada em 2005, dois anos antes de sua morte.

Sergipano da cidade de Lagarto, Joel nasceu em 1918 e, quando jovem, logo se aliou à militância de esquerda e ao antigetu-lismo durante o governo de Vargas. Escreveu para várias publicações: Última Hora, O Es-tado de S. Paulo, Diário de Notícias, Correio da Manhã e Manchete. Contudo, foi Assis Chateaubriand, dono dos Diários Associados, que enviou Joel para os campos de batalha da FEB (Força Expedicionária Brasileira) na Itália, nos últimos meses de 1944. “Você vá, mas não me morra!”, brincava Assis com o repórter.

Joel voltou vivo da guerra, mas a ex-periência relatada – em encantadoras 171 páginas – não foi das mais fáceis. O cor-respondente passou por apertos, conviveu com as lúgubres trincheiras, os canhões nazistas e o rigoroso inverno apenino. O livro, composto de diversos capítulos curtos, conta a trajetória de Joel desde o desembarque em Nápoles, passando posteriormente por cidades como Roma, Pistoia e Bolonha, ao longo do avanço brasileiro, que bravamente enfrentou o exército alemão. Aos que imaginam a participação do Brasil na Segunda Guerra como simples e modesta, O Inverno da

Em São Paulo, algum dia de abril, a “terra da garoa” estava de volta. Chovia fino havia mais

de uma hora; caía tanto água quanto monotonia sobre meu teto. Eu, parada em frente ao computador com a televisão ligada para “fazer companhia”, mal teria percebido, não fosse a vontade da capital paulistana em manter sua antiga reputação, uma goteira rodeada de mofo no canto da parede.

Na minha parede, imaculadamente branca, a mancha preta era uma afronta. “Como eu pude deixar passar?” Lembro de ter feito essa pergunta a mim mes-ma repetidas vezes até decidir: “Pois não passarão!”

Munida de uma esponja, subi em uma escada e comecei a limpeza, afogando aqueles microrganis-mos invasores em água sanitária. Tão branca quanto a parede costumava ser, eu me sujava com o preto do mofo, tamanha era a raiva e a força com que esfrega-va — eram os resquícios do assassinato daquela cultura parasita que respigavam em mim.

Após destruída aquela invasão e garantida a minha segurança, pude voltar aos meus afazeres. Tudo – e todos – estavam em seu merecido lugar: livros na estante, pratos na pia, quadros na parede e parasitas para fora.

Durante a semana, no entanto, o incômodo voltou a surgir; uma companhia forçada e insistente além da costumeira TV. Engraçado, aquele aparelho ligado a todo instante parecia fazer uma trilha sonora apoteótica para guerra que eu travava com o meu companheiro inóspito.

“O mar Mediterrâneo avermelhou-se”, dizia a repórter.Eu, quase vencida pelo cansaço, afugentava aquela mancha

preta outra vez.“Foram 800 mortes, incluindo crianças, em busca de um lu-

gar”, completou a correspondente bra-sileira na Itália, ob-viamente, não com essas palavras, mas foi dessa forma que eu compreendi.

Cerca de 800 imigrantes africanos morreram em um naufrágio ao tentar a travessia entre a África e a Itália. Foi num domingo de abril, dia 19. Aqui em casa provavelmente o mofo persistia na

parede com goteira — eu lutava pra matar, enquanto outros lutavam para viver. Senti-me parte de um sistema sujo, racista e elitista criado dentro de minha própria casa, e o pior: por mim mesma.

Senti que julgava, apenas por não estar em seu país, aquele haitiano que vende capinha de celular na estação Belém do metrô; senti que xingava o chinês que abriu uma loja na periferia da Zona Leste, pois ele certamente estaria ocupando o lugar de um brasileiro; senti que ignorava os bolivianos escravizados em fábricas têxteis no centro, em prol das minhas roupas boas e baratas; senti que rotulava todo nordestino de “incompetente” e até senti que explorava mexicanos ilegais nos Estados Unidos. Senti vergonha.

Olhei para a parede a minha frente e, na mais banal das situações, percebi que eu fora conivente com o que há de pior no mundo. Em con-trapartida, já não havia mais “mofo”, não havia mais “defeito”. Na minha parede havia sinais de luta – luta de seres vivos pela sobrevivência.

Guerra mostra que os conflitos, na verdade, foram complexos e deixaram profundas marcas em quem os vivenciou.

Ponto alto do progresso brasileiro na guerra, a tomada do Monte Castelo – posição nazista estraté-gica – após quase três meses de batalha, é também o clímax da obra de Joel. Cronologicamente detalhada, a vitória brasileira é narrada com riqueza de cenários e composições. Um verdadeiro documento histórico de 21 de fevereiro de 1945, dia capital no declínio alemão em território toscano.

Ao contrário do contemporâneo jornalismo americano embedded (expressão em inglês para “na cama”), que é acobertado e manipulado pelas tropas do país, Joel ia para o front, acompanhava todas as batalhas e em muitos momentos viu a morte de perto. Além disso, enfrentou problemas mesmo antes de ir para a Europa. Ele conta que o DIP (Departamento de Imprensa e Propaganda), órgão de censura de Getúlio Vargas, fez pressão para que Joel e outros repórteres não fossem à Itália, visto que muitos eram opositores do governo.

Para nossa sorte, ele embarcou rumo à guerra e trouxe na bagagem narrativas brilhantes sobre esse

importante fato histórico, que completa 70 anos em 2015. Não é à toa que Joel Silveira ganhou de Assis Chateaubriand o apelido de “víbora”, por seu estilo feroz e impactante. O Inverno da Guerra faz parte da coleção “Jornalismo de Guerra”, da editora Objetiva, e é leitura fundamental para profissionais da imprensa.

“O invernO da guerra”

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Por João abel

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I Inverno da Guerra Autor: Joel SilveirA

editorA: obJetivA, 2005, 171 páginAS

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2�CONTRAPONTOJornal Laboratório do Curso de Jornalismo - PUC-SP Maio 2015

Por Gabriel collet

■ Câmara aprova lei da terceirização: projeto gera empregos ou precariza relações de trabalho?

A aprovação do PL 4330 que regulamenta a terceirização do Tra-balho no Brasil representou uma derrota do governo. A medida que é condenada por muitos trabalhadores, irá trazer algumas mudanças trabalhistas como principalmente o salário do traba-lhador. A terceirização permite às empresas terceirizarem até suas atividades-fim, aquelas que estão no centro da atuação das companhias. Segundo sindicalistas ligados à Central Única dos Trabalhadores (CUT), sua aprovação promoveria a precarização das relações de trabalho no país, como redução dos salários e a segurança no trabalho. No momento a PL 4330 segue para o Senado, onde deve continuar gerando polêmica e divisões.

■ Greve de Professores no Paraná é mal vista pelo Governo

O Tribunal de Justiça do Paraná (TJ-PR) determinou na segunda-feira (27) que os professores das escolas e das universidades estaduais que estavam realizando greves por melhorias nas condições trabalhistas voltem imediatamente ao trabalho. As duas categorias retomaram suas respectivas greves, interrompidas em março, por causa da votação do projeto que altera as regras do Paranaprevidência. As decisões são do Foro Central da Comarca da Região Metropolitana de Curitiba, assinadas pelo desembargador Luiz Mateus de Lima. Há previsão de multas diárias de R$ 40 mil e R$ 10 mil para professores estaduais e de universidades, respectivamente. O fato demonstra a ineficaz medida tomada pelo governo uma vez que ignora os protes-tos dos professores e se baseia na aplicação de multa como ameaça aos mesmos. Fatos como esse evidenciam a falta de democracia no país e na educação.

■ Dois Terremotos no Nepal deixam população sem rumo

Além dos dois grandes terremotos que atingiram o Nepal só nesses dois meses, maio e abril matando ao menos 41 pessoas e ferindo 1.066, a reconstrução das áreas afetadas está mais do que dificulta-da nos planos do país. No momento, a maior preocupação é a busca por desaparecidos e mortos nos inciden-tes. Vários prédios e estruturas que esta-vam danificadas pelo terremoto de 25 de abril – que matou 8 mil pessoas no país colocou o local em estado de choque. Os tremores foram sen-tidos também em Bangladesh e foram seguidos por uma série de tremores secundários intensos. As ajudas pelos outros países com os familiares dos mortos está sendo feita por redes sociais como o Facebook em campanhas de doação.

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■ Morte de Atleta comove país

A Nadadora brasileira medalhista do Pan, Sarah Corrêa foi atingida por um carro em um ponto de ônibus . A Polícia Civil ouviu o motorista que atropelou e matou a nadadora de 22 anos na Estrada dos Bandeirantes, em Jacarepaguá, próximo à casa dela. A ex-atleta teve morte cerebral confirmada na tarde de hoje. Além dela, Paulo Soares, 58, também atingido pelo carro, morreu no local.

Em nota, a Polícia Civil afirmou que instaurou inquérito para apurar o atropelamento. Imagens de câmeras de segurança da vizinhança já foram solicitadas. “O motorista foi ouvido e disse que depois do acidente foi ao hospital e, em seguida, compareceu à delegacia”. Os investigadores solicitaram o boletim de atendimento médico do atropelador. Ainda segundo a polícia, testemunhas já estão sendo ouvidas.

A ex-nadadora participou dos Jogos Pan-Americanos de Guadalajara, no México, em 2011. Na competição, ela ganhou medalha de prata no revezamento 4x200m livre. No entanto, apesar do sucesso nas águas, Sarah decidiu brilhar nas passarelas e holofotes e, em outu-bro do ano passado, anunciou sua saída do esporte para seguir a carreira de modelo.

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CONTRAPONTO2� Jornal Laboratório do Curso de Jornalismo - PUC-SP Maio 2015

o fim do Programa Reuni e a ausência de novas diretrizes para a consolidação e expansão das Instituições Federais de Ensino Superior (IFES). Concomitantemente, houve a criação ou am-pliação de programas de incentivo ao ensino privado, tais como o Programa Universidade para Todos (Prouni), o Programa Nacional de Acesso ao Ensino Técnico e Emprego (Prona-tec) e a alteração e flexibilização das regras do Fundo do Financiamento Estudantil (Fies). Para efeito de comparação no orçamento de 2015, somente para empréstimos do Fies, estão previstos R$ 15 bilhões e o orçamento de custeio básico de todas as universidades federais do país, em 2014, foi muito inferior, de R$ 2,4 bilhões.

Em 2015, as dificuldades na aprovação do orçamento no Congresso Nacional e a po-lítica de ajuste das contas públicas do governo federal produziram uma redução na liberação de recursos para as IFES, o que prejudicou o desen-volvimento adequado das atividades básicas de ensino, pesquisa e extensão.

As universidades públicas, entre elas as federais, são as principais responsáveis pela produção de conhecimento no Brasil. Desempe-nham um papel chave no debate de ideias, na discussão pública e na formação democrática dos jovens estudantes. Ocupam, por isso, um lugar de destaque no desenvolvimento do país e na vida da população.

manifestO em defesa da educaçãO Pública

O Fórum em defesa da Educação Pú-blica, realizado pela Universidade

Federal de São Paulo (UNIFESP), contou com a presença de especialistas para um amplo debate sobre o tema. Juntos, eles visam consolidar o projeto de educação superior pública, garan-tindo sua qualidade e acessibilidade. Assinado por intelectuais, entidades, reitores e parlamen-tares, o manifesto formulado apela para que, com o ajuste fiscal, não haja corte de gastos na educação. Enviado para Ministérios e governos Estaduais e Municipais, espera-se que a mensa-gem seja ouvida: educação não é, nem pode vir a ser, mercadoria.

Segue abaixo o documento:

Com a Constituição Federal de 1988, foram determinados alguns princí-

pios fundamentais para a educação nacional, tais como a gratuidade do ensino público em estabelecimentos oficiais, para todos os níveis; a perspectiva de obrigatoriedade para o Ensino Médio e o atendimento às crianças de 0 a 6 anos na educação infantil. Do ponto de vista do financiamento, foi estabelecida uma política de fundos para a educação básica – inicialmente, com o Fundef, e, atualmente, com o Fundeb –, tendo sido vinculados constitucionalmente recur-sos para a viabilização de tal política. Do ponto de vista do atendimento, a educação básica avançou nos últimos anos, ainda que não tenha alcançado a universalização e nem superado as desigualdades regionais. Um dado digno de nota é que 83% do total das matrículas para este nível de ensino ocorreram na rede pública (dados de 2013). Do ponto de vista da qualidade, ainda há muito a avançar, por isso, continuamos alinhados à luta histórica por mais recursos, defendendo o cumprimento imediato dos 10% do PIB para a educação pública.

Em relação ao ensino superior público, houve, na última década, um movimento de expansão, iniciado, em 2003, e estendido, em 2007, com o Programa de Apoio a Planos de Reestruturação e Expansão das Universidades Federais (Reuni). No entanto, cinco anos de-pois, em 2012, o atendimento público em nível superior continuou tímido: dos 7,2 milhões de alunos matriculados em cursos de graduação, 73,4% estavam em instituições privadas; 15,2% em federais, 8,8% em estaduais e 2,6% em municipais.

Os desafios da democratização do acesso à educação superior de qualidade ainda estão longe de serem alcançados. Uma das metas do atual Plano Nacional de Educação é a de elevar a taxa de matrícula para 33% da população de 18 a 24 anos e assegurada a qualidade da oferta e expansão para, pelo menos, 40% das novas matrículas, no segmento público. Para além da expansão quantitativa, é fundamental a defesa da qualidade do ensino superior, assim como a garantia de recursos adicionais de custeio propor-cionais à expansão já alcançada, ampliando ações afirmativas e de assistência estudantil.

Infelizmente, entre 2013 e 2014, houve um ponto de inflexão nas políticas do governo federal para a educação superior pública, com

Por mariana castro

Nesse contexto, ganha importância estra-tégica a definição de uma política de Estado que permita o fortalecimento da educação como um todo, e em particular a consolidação e a expansão das IFES no país, estabelecendo metas e prazos e, fundamentalmente, com compromisso por parte do governo federal de garantir os recursos hu-manos e financeiros necessários ao cumprimento dessa política. Nos colocamos a disposição para atingir o objetivo de transformar o Brasil em “Pátria educadora”.

Precisamos, portanto, que o governo federal:

n Libere urgentemente e sem cortes o orça-

mento do MEC de 2015.n Acelere a aplicação dos 10% do PIB na

educação pública.n Defina uma política de Estado sobre con-

solidação e expansão com qualidade do ensino público superior.

n Aumente as verbas para a pesquisa cien-tífica, tecnológica e em humanidades.

n Encaminhe, e lute pela aprovação junto ao Congresso Nacional, uma proposta de criação de novas vagas para professores e técnicos administrativos em educação.

n Garanta auxílios e assistência estudantil com ampliação das verbas do PNAES e de outras políticas de assistência.”

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Lançado pela UNIFESP, o documento une forças na luta para que a universidade cumpra seu papel na sociedade

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