entrevistas de história oral: releituras · análise de uma entrevista: uma releitura o exercício...
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Entrevistas de História Oral: releituras
MARIA EDNÉIA MARTINS SALANDIM1
Resumo: Neste artigo temos como objetivo discutir experiências na realização e
tratamento de entrevistas, realizadas com base na metodologia da História Oral.
Realizamos um total de 39 entrevistas que envolveram professores, estudantes e/ou
outros profissionais que atuaram em diferentes níveis e modalidade de ensino. Nossas
pesquisas integram um projeto de amplo espectro do Grupo História Oral e Educação
Matemática (GHOEM) de mapeamento formação de professores de Matemática no
Brasil. Olhamos para a educação em meios rurais (ensino primário) – durante a
Iniciação Científica-, para uma especificidade técnica, a agrícola (secundário) – durante
o Mestrado - e no doutorado, para o movimento de criação de cursos de Matemática no
interior paulista nos anos 1960 (ensino superior). Como ponto comum – além da
periodização –, o olhar para a interface centro/periferia (a zona rural era periférica em
relação à zona urbana), também as escolas agrícolas viviam sob a égide dessa mesma
interface campo/cidade e cursos de Matemática instalados no interior paulista são
periféricos em relação aos grandes centros urbanos ou de produção e desenvolvimento
da Matemática e da formação de professores.
Palavras-chave: Educação Matemática. Formação de professores.
Introdução
Nossas experiências com a realização e tratamento de entrevistas, realizadas com
base na metodologia da História Oral, iniciaram-se no ano de 2002, quando realizamos
1 UNESP-Campus Bauru/SP, doutora em Educação Matemática. Apoio: PROPG/UNESP.
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pesquisa de iniciação científica (MARTINS, 2003) sobre o tema “formação e atuação de
professores em escolas rurais”. Realizamos, para esta pesquisa, 17 entrevistas sendo 11
delas com professores, 5 com alunos e 1 com inspetor escolar que tinham atuado ou
estudado em escolas rurais. Estes nossos entrevistados tiveram contato com escolas
rurais em uma região geográfica com raio em torno de 200 km da cidade de Bauru-SP e
nas cercanias da década de 1960. As entrevistas foram gravadas em fitas cassetes e
transcritas usando o próprio gravador para reprodução do áudio. Para a pesquisa de
mestrado (MARTINS-SALANDIM, 2007) sobre o tema “formação e atuação de
professores de Matemática em escolas agrícolas” realizamos sete entrevistas, uma delas
envolvendo uma dupla de professores – o professor de Matemática com o qual fizemos
contato convidou um professor de Geografia para participar da entrevista – com
professores que atuaram com a disciplina Matemática em escolas agrícolas. Nossos
entrevistados atuaram nas cinco mais antigas escolas desta modalidade no Estado de
São Paulo, também nas cercanias da década de 1960. Estas entrevistas foram gravadas
com gravador digital e transferidas para o computador – e com este arquivo realizamos
a transcrição usando o transcribe. Para nossa terceira pesquisa, a de doutorado
(MARTINS-SALANDIM, 2012), realizamos 15 entrevistas, sendo 5 delas em duplas –
envolvendo 20 professores que se formaram e/ou atuaram como professores nos anos
iniciais de cursos de Matemática instalados no interior do Estado de São Paulo nos anos
1960 (1 deles na modalidade apenas Bacharelado na UNICAMP – Universidade
Estadual de Campinas). Para estas entrevistas usamos tanto gravador digital quanto
celular para realizar as gravações que foram salvas no computador e as transcrições
realizadas valendo-nos do transcribe. A duração destas entrevistas variou de 40 minutos
a 2h30 e para todas elas contamos com um roteiro com questões e/ou temas que
consideramos importantes para nos auxiliar na compreensão de nossa questão de
pesquisa.
Todas estas 39 entrevistas foram textualizadas (editadas após a transcrição) e
para tanto adotamos diferentes critérios para sua configuração: eliminação e/ou redução
nos vícios de linguagem (mantivemos quando estes elementos nos auxiliavam a manter
o tom do entrevistado), organização temática e/ou cronológica, eliminação das
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perguntas do entrevistador (quando estas não estabeleciam cortes muito abruptos na
entrevistas ou quando não mudavam muito a direção da narrativa) – estes diferentes
critérios aparecem dentro de uma mesma pesquisa.
Nossos depoentes assinaram cartas de cessão de direito sobre a gravação e/ou
textualização das entrevistas, após terem recebido estes materiais para revisão. A
maioria dos depoentes fez pequenas revisões, sendo que em alguns casos
excluíram/incluíram trechos na textualização e complementaram dados/informações
conforme nossas solicitações.
Nossos exercícios analíticos
Nestas diferentes pesquisas, adotamos diferentes perspectivas analíticas,
acompanhando nosso amadurecimento como pesquisadora e discussões/incitações de
nosso grupo de pesquisa GHOEM – Grupo História Oral e Educação Matemática
(relatórios de pesquisas desenvolvidas por pesquisadores vinculados a este grupo podem
ser vistos em www.ghoem.org), que tem, dentre seus projetos amplos de pesquisa, fazer
um mapeamento histórico da formação de professores de Matemática no Brasil.
Na pesquisa “Resgate histórico da formação e atuação de professores da escola
rural: um estudo no oeste paulista” (MARTINS, 2003), para estruturarmos nossas
análises e configurarmos nosso texto analítico, realizamos leituras das textualizações
com apontamentos de tendências por convergências ou divergências (processo iniciado
quando das gravações, transcrições e textualizações) - não para comparar as narrativas,
mas para apreender o cenário multifacetado por elas constituído. As tendências
levantadas nos ajudaram a sistematizar (e facilitaram) nossas percepções. Essas
tendências foram denominadas (i) a zona rural: um primeiro registro de nossa paisagem;
(ii) organização das escolas rurais; (iii) tipos de escolas rurais; (iv) zona rural como
“terra de passagem”; (v) participação da família e da comunidade; (vi) caracterização do
professor e do aluno da escola rural; (vii) currículo, inspeção e avaliação; (viii) sistema
de ensino e (ix) ensino de Matemática. A maioria das tendências, de algum modo,
reflete nossos temas/questões do roteiro que nos auxiliaram na condução da entrevista,
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mas a tendência iv, mais claramente, emerge a partir das narrativas. É a partir do modo
como os professores e alunos vão falando de suas aspirações profissionais e de suas
dificuldades na zona rural que vamos percebendo-a como uma terra de passagem, numa
ideia de possibilidade mudança para algo pensado como melhor – como a ascensão
profissional/social/econômica.
Na pesquisa de mestrado “Escolas Técnicas Agrícolas e Educação Matemática:
história, práticas e marginalidade” (MARTINS-SALANDIM, 2007), inicialmente
estruturamos nossas análises também a partir de algumas tendências, que englobavam
os temas presentes em nosso roteiro de entrevista: “início, permanência,
desligamento...”, “formação e atuação do professor de Matemática”, “semelhanças e
diferenças: o sistema de ensino agrícola” e “o ensino de matemática”. No entanto,
durante o exame de qualificação, os debates com a banca nos indicaram a possibilidade
de pensar a marginalização como um eixo condutor em nossas análises – o que,
certamente, não tínhamos em mente quando elaboramos nosso roteiro e gravamos as
entrevistas. Seguindo esta direção, estruturamos um capítulo “Ensino agrícola: indícios
de marginalização”, contemplando subtemas como “Marginalidade: uma visão ‘extra-
muros’ escolares (o rural brasileiro: uma cultura marginal, a marginalidade do ensino
técnico, direcionando o foco: o ensino agrícola) e “De dentro para fora: outros registros”
(espaços de atuação; início, permanência, desligamento). Estas tendências englobaram
temas presentes em nosso roteiro, mas com um olhar a partir do conceito de
marginalidade, que surgiu com as narrativas – neste sentido, uma releitura do roteiro.
O histórico de nossa pesquisa de doutorado “A Interiorização dos Cursos de
Matemática no Estado de São Paulo: um exame da década de 1960” revela tanto nosso
empenho em elaborar uma análise em dois momentos (considerando as singularidades e
as convergências) quanto nossas intenções relativas ao modo de conduzir a análise a
partir de oito potenciais tendências – "As Cidades Antigas", "A Produção Científica",
"Carências, Urgências e Demandas", "Periferias e Centros", "O Liso e o Estriado",
"Igualdade de Oportunidades e Igualdade de Condições" e "O Processo formador" – as
quais foram apresentadas e discutidas durante nosso exame de qualificação. Desse
encontro, surgiu a possibilidade de estruturar essa segunda instância da análise – a de
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convergências – em apenas duas tendências que permitiram uma exposição em modo
narrativo mais contínuo, posto ter sido reduzida a quantidade de fragmentos que
configurariam a análise: "O Processo Formador" e "Concepções de Formação de
professores de Matemática". Já nossa opção pela análise que denominamos “por
singularidades”, dentre várias influências, deve-se a uma atividade que realizamos em
encontro do grupo de pesquisa GHOEM, quando nos foi solicitado, pelos professores
Maria Laura Magalhães Gomes (UFMG) e Antonio Vicente Marafioti Garnica
(UNESP-Bauru) – que fizéssemos uma análise de narrativas por eles disponibilizadas,
no intuito de discutirmos as singularidades que cada um percebia nas narrativas. A
partir destas influências, nesta fase da análise focamos separadamente cada uma das
narrativas que constituímos a partir das entrevistas, buscando detectar tanto suas
peculiaridades quanto as informações que cada uma delas nos dava sobre o tema que
nos propusemos compreender. Essa fase do trabalho com as narrativas constitui-se um
trabalho de natureza mais memorialística, dado dirigir-se mais diretamente às
subjetividades dos depoentes e às particularidades de seus depoimentos: percebemos e
evidenciamos que algumas narrativas foram estruturadas a partir do desenvolvimento
profissional e/ou da carreira do entrevistado; outras em relação ao desenvolvimento do
próprio curso e do modo como este curso vai adquirindo importância para a comunidade
local ou dos matemáticos; outras pautam-se no desenvolvimento estrutural das
instituições e dos cursos; outras ainda em relação ao modo como o depoente se percebia
como estudante daquele curso e como professor, recém formado, já em atuação no curso
ou no ensino secundário; outras têm como eixo as circunstâncias pessoais, o modo
como os entrevistados vão sendo envolvidos em diferentes situações tidas como
determinantes sobre sua trajetória profissional; outras por aspectos mais ligados à sua
condição social. Este modo de estrutura a análise, configurou-se muito mais como uma
sistematização de uma etapa de análise que, informal ou implicitamente, já havíamos
feito em outros trabalhos (tanto eu mesma quanto outros pesquisadores do GHOEM).
No entanto, ao decidirmos sistematizar, registrar e apresentar detalhadamente esta etapa
da análise, percebemos as dificuldades – que se diluíam quando a desenvolvíamos
informalmente – para efetivá-la. Ao mesmo tempo em que buscávamos registrar o que,
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segundo nosso ponto de vista, caracterizava cada um dos depoentes e depoimentos em
suas particularidades e peculiaridades, nos víamos desenvolvendo um resumo de cada
uma das textualizações. A maior dificuldade que enfrentamos, nesta etapa, portanto, foi
o ímpeto de sintetizar textualizações ao invés de analisá-las, de fato, em suas
singularidades. Isso mostra que um processo relativamente usual, desenvolvido de
forma pouco ou nada sistematizada, implica esforços extra e bastante consideráveis no
design e no andamento da pesquisa que toma para si a função de implementá-lo de
modo formal e sistemático.
Análise de uma entrevista: uma releitura
O exercício analítico aqui proposto foi realizado após outros exercícios
analíticos já realizados em outras pesquisas. A intenção é olhar para a narrativa,
explorando experiências ali narradas, sobre a forma como são narradas e menos, para as
informações ali contidas. A ideia não é tecer críticas ao modo como esta e outras
narrativas foram mobilizadas para as análises em outras instâncias/pesquisas, uma vez
que foi com elas – e do modo como as utilizamos/disparamos nossas análises - que
aprendemos mais sobre a questão da marginalização do rural e urbano, foi a partir
daquelas análises que começamos a pensar nas questões de centro e periferia,
marginalidade e exclusão, igualdade de oportunidades em condições desiguais, a zona
rural e a escola ali instalada como um meio para início da carreira no magistério, a
instalação de cursos superiores pelo interior paulista como parte de um movimento de
expansão mais amplo; obtivemos importantes informações como a questão de classes
multisseriadas, dificuldades de acesso/transporte para os professores chegarem às
escolas rurais e para os estudantes chegarem às escolas.... Não foi pouco o que
aprendemos com estas 39 narrativas, com suas informações e temas disparadores e com/
a partir das análises já realizadas e cujo teor geral já esboçamos anteriormente neste
texto.
No entanto, nosso esforço agora é olhar para uma narrativa em especial, centrar
mais nosso olhar para as experiências ali narradas e no modo como a narrativa é
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estruturada e como o narrador narra algumas de suas experiências – sem a intenção de
compará-la com outras narrativas e, sem ter agora, um tema de pesquisa específico
sobre o qual se quer tecer compreensões. A intenção é olhar mais ao como temos acesso
a certas experiências do professor Rodolpho Pereira Lima com/em escolas rurais – e foi
com esta intenção que pedimos a este professor que nos concedesse uma entrevista, e
isto não pode ser alterado.
Propostas de releituras/análises de narrativas constituídas/disponibilizadas em
outros relatórios de pesquisas já foram efetivados por outros pesquisadores, não estamos
aqui reinventando a roda. Teixeira et al (2012) propõem a 11 pesquisadores que
analisem três narrativas, de um conjunto de treze, constituídas para uma pesquisa
específica, a partir do que julgarem adequado. Oliveira (2013) em sua tese de
doutorado, desenvolve um sistema denominado Hemera, no qual disponibiliza 146
textualizações já realizadas por membros do GHOEM ou não, em 16 diferentes
pesquisas. Tal sistema possibilita cadastro de alguns temas e a recuperação do
parágrafo, no qual aparece o tema, das textualizações completas e mesmo das pesquisas
para a quais foram constituídas. Portelli (2010; 1996) faz reflexões sobre entrevistas que
já realizou, trazendo à tona relações entre o entrevistador e o entrevistado, usos de
pronomes nós ou eu indicando como o narrador vai se percebendo em relação ao que
narra, elementos negligenciados e/ou escolhidos pelo entrevistado para desenvolver em
sua narrativa de acordo como percebe sua relação com o entrevistado e muitos outros
aspectos.
Aqui, nossas análises estão influenciadas por estas propostas já efetivadas:
buscamos fazer uma releitura de uma entrevista por nós realizadas – a primeira que
fizemos -, com a intenção de destacar como percebemos sua estruturação pelo narrador
e influenciado pelo entrevistador; como algumas experiências são narradas (claro que
aquelas que agora se mostram, mas muitas outras podem ser percebidas por outros
leitores). Claro que muitos outros temas disparadores ainda poderiam sem destacados
desta narrativa e que não foram, quando das análises aqui já apresentadas: escola
Normal Livre, escola masculina/feminina, escolas de primeiro estágio (difícil acesso)
etc.
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“É a chance que o velho tem de falar do passado, porque eu não tenho presente, eu
tenho passado”: releitura da entrevista com o professor Rodolpho Pereira Lima
O professor Rodolpho Pereira Lima, aqui por mim chamado de professor
Rodolpho, nos concedeu esta entrevista em sua casa, na cidade de Bauru/SP. No dia e
hora marcados fui até sua residência, bastante apreensiva por ser aquela a primeira
entrevista que eu realizaria. O professor me recebeu já com algumas fotos, recortes de
jornais e outras tantas cópias do que considerou relevante após nosso contato por
telefone.
Para aquela entrevista eu desejava que o professor falasse sua formação e suas
experiências como professor em escolas rurais. Para tanto, tinha comigo (impresso e na
memória) as questões/temas que gostaria que ele abordasse: “Qual seu nome, local e
data de nascimento? Qual sua formação? Onde se formou? Como você a avalia? E em
matemática, como foi sua formação? Havia alguma preparação especial para quem ia
para escola rural? Como, onde e quando começou a carreira de professor? Período em
que atuou em escola rural? Localidade? Séries nas quais lecionou? O que se plantava
na região? Como era a população (sitiantes, fazendeiros, ...)? Como era a escola
rural? (infra-estrutura - salas, pátio, quantidade de alunos, outros profissionais, séries,
classes agrupadas, tempo de aula, período, acesso/transporte para professores e
alunos, tinha outras escolas na região) . Como, quando e porque surgiu a escola?
Como era a educação em geral? Tinha apoio do Governo ou outras entidades
(material, salário)? O ensino na zona rural era similar ao da zona urbana? Como eram
preparadas as aulas? Alunos tinham material? Quais eram as maiores dificuldades de
aprendizagem para os alunos? E em matemática? Havia relações do conteúdo
matemático com o cotidiano do aluno? As aulas eram sempre na sala de aula? Como
eram feitas as avaliações? Eram separadas por disciplina? Havia muita reprova?
Havia motivos aparentes? E quanto a evasão e freqüência? Tinha relação com a safra?
Como era a relação professor-aluno, aluno-professor, aluno-aluno, aluno-matemática?
Compare, se possível, o que se ensinava em Matemática com o que se ensina hoje.
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Melhorou, piorou? Como hoje a maioria da população é muito mais urbana e com os
avanços tecnológicos, existem conseqüências da formação que foi dada aos alunos na
zona rural para a atualidade? Qual era expectativa dos alunos em relação a continuar
na zona rural? E dos seus pais?”
O professor Rodolpho nasceu em Jaú/SP, no ano de 1931. Sua formação no que
hoje denominamos escola básica ocorreu nas cidades de Pederneiras-SP, Campo
Grande-MS e Bauru-SP – uma vez que acompanhou as mudanças por conta do trabalho
do pai que era engenheiro eletricista. Em Bauru formou-se professor pela Escola
Normal Livre e ingressou como professor primário, por concurso do Estado (regido pela
Constituição Federal de 1946), em 1955, na escola Masculina do Bairro Ribeirão
Grande, zona rural do município de Alto Alegre, Estado de São Paulo. Esta era uma
escola de primeiro estágio, ou seja, de difícil acesso. Ele se deslocava de Bauru à
Penápolis de trem e de lá, mais 42 quilômetros, até à escola - trajeto que fazia com a
jardineira, a qual enfrentava problemas em dias chuvosos e era, utilizada também pelos
moradores para transportar animais vivos para serem comercializados, como porcos,
aves etc. Isso era para o professor um drama.
Sobre o fluxo de sua narrativa, seu fio/eixo condutor, precisei olhar mais
atentamente para a transcrição, uma vez que na textualização, à época, optei por uma
edição com agrupamentos de temas. Pela transcrição é possível perceber que o professor
Rodolpho narrou suas experiências com breves comentários da entrevistadora... Iniciei
dizendo “Então Seu Rodolpho vamos começar a entrevista, gostaria que o senhor
falasse para a gente, o nome do senhor, a data em que o senhor nasceu, comentasse um
pouco sobre a formação do senhor, a formação do senhor em matemática também e
contasse um pouco da história do senhor, da história do senhor nas escolas rurais. ” A
partir daí ele foi constituindo sua narrativa, trazendo à cena como foi sua formação
inicial e sua atuação como professor primário em escolas rurais, como eu havia lhe
pedido, sobre sua atuação como professor de modo mais geral, sobre sua trajetória
profissional: escolas nas quais atuou, sobre sua formação complementar e em nível
superior, articulando relações com questões da atualidade. Ele opta por fazer uma
narrativa de sua formação básica até o Normal, seu início como professor e seu retorno
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para a cidade de Bauru, quando faz um curso de Administração Escolar – específico
para quem já era do quadro de professores/diretores de escolas púbicas do Estado de
São Paulo e posteriormente, cursou Pedagogia, na Faculdade de Filosofia, Ciências e
Letras do Sagrado Coração, na qual atuou, logo depois de formado, como professor.
É ao fazer comparações com episódios, fenômenos da atualidade que o professor
Rodolpho vai trazendo elementos para sua narrativa: sobre preconceitos em relação à
mulher, de modo particular, sobre a mulher professora, sobre as distâncias geográficas e
as dificuldades em percorrê-las por falta/precariedade de transportes e de pavimentação
asfáltica, sobre os trajes do professor e da professora, a fiscalização sobre o professor,
sobre o desenvolvimento de seu trabalho e sobre o funcionamento da escola, sobre o
acúmulo de funções, sobre dificuldades de ensinar quando não lhe era possível mostrar,
ilustrar o que pretendia ensinar, além conduzir a narrativa estabelecendo comparações
entre sua geração e a atual, o tempo de década de 1950 e o atual...
A narrativa do professor ocorre com pouquíssimas interferências da
entrevistadora, e ele varia o modo de narrar conforme o que está narrando. É muito
interessante notar que ele narra estabelecendo paralelos com situações e fenômenos do
presente, com várias reflexões sobre dificuldades de se ensinar sem poder apelar para
imagens ou algo que pudesse auxiliá-lo em suas aulas como sobre a existência do mar,
das ondas etc. Em alguns pontos, quando trata especificamente das aulas nas escolas
rurais faz muitas referências às professoras e às dificuldades por elas enfrentadas,
mesmo que ele mesmo as tenha enfrentado também. Quando, no entanto, vai tratar de
suas aulas e da presença do inspetor, o faz no estilo encenação. Ele descreve a sala, os
personagens, da voz a eles e assim narra encenando alguns episódios.
Ao abordar suas experiências nas escolas rurais, inicialmente o professor
Rodolpho traz à tona não a escola propriamente dita – como seus alunos, professores,
estrutura, grade curricular -, mas seu entorno, dificuldades para se chegar até ela e de
nela permanecer. Ainda que eu tivesse uma expectativa, que posteriormente aprendi
com tantas pessoas e também com Larrosa (2005), que nem sempre o narrador narra
sobre experiências que imaginamos ou desejamos que ele tenha. Os detalhes de sua
atuação em escolas rurais são dados após pedido da entrevistadora.
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Nessa imersão que proponho na narrativa, destacarei alguns temas que penso
serem mais bem compreendidos quando empreendo este tipo de análise. Destacarei
neste texto, os temas salário do professor, as visitas do inspetor escolar e as encenações
que o professor Rodolpho traz para sua narrativa.
O tema salário é inserido e tratado na narrativa do professor Rodolpho em
diferentes momentos e perspectivas. Suas experiências com o magistério primário em
zona rural são tematizas a partir de sua escolha pela profissão, em função do salário do
professor, na década de 1950, ser atrativo em relação a outras profissões/funções com as
quais ele tinha mais proximidade como, por exemplo, com o salário de funcionários da
estrada de Ferro Noroeste do Brasil – para a qual havia trabalhado e na qual seu pai
trabalhava. O salário foi fundamental, a ponto do professor Rodolpho suportar as
adaptações de viver em zona rural e as dificuldades de acesso à escola e de nela lecionar
mesmo com falta de recursos. A escolha da profissão, na narrativa, está atrelada à
atração salarial e, quando narra, mobiliza muito mais suas lembranças individuais. A
mesma questão do salário, surge depois, quando quer tratar da desvalorização da
carreira docente pela desvalorização do salário – é quando, usando metáforas mais
comumente usadas por um coletivo comum – e assim, mobilizando uma memória
coletiva-, comparando a desvalorização da carreira docente com a valorização da
carreira de um juiz de direito pelo viés do salário, que à época dos anos 1950 eram
equivalentes.
Suas percepções sobre as visitas do inspetor são chamadas à cena na narrativa
para compor diferentes cenários, tanto quando trata - a partir de uma fotografia - dos
trajes dos professores e sobre a limpeza da escola quanto quando trata da inspeção do
inspetor relativos à abordagem ou não dos conteúdos/temas previstos em seu Semanário
ou Diário e em relação aos exames orais aos que os alunos eram submetidos. Assim,
passa a narrar sobre os trajes obrigatórios para os professores – terno e gravata (mesmo
em uma escola rural e em estações muito quentes) e - para as professoras a proibição do
uso de calças compridas (ou mesmo blusa sem mangas ou com decotes – deveria, nestes
casos, usar jalecos) – se as usasse e um inspetor chegasse a professora era repreendida,
punida. Aqui o inspetor está associado ao vigiar, punir. Por outro lado, era ao inspetor
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escolar que o professor comunicava a necessidade de faltar às aulas (inclusive, as três
faltas abonadas a que tinha direito mensalmente). Era também, na reunião mensal com o
inspetor – que ocorria na cidade, na sede da delegacia de ensino – que o professor
recebia orientações e o seu salário na forma de cheque. O inspetor, nestas situações, era
uma referência de apoio, de base. Sobre a inspeção relativos às atividades de ensino o
professor Rodolpho retorna em diferentes momentos e, de modo geral, inclui a
encenação na narrativa. Esta mudança de estratégia no modo de narrada, marca, a meu
ver, que eram estas as situações mais tensas em relação às tais vistas do inspetor.
Narrando sobre os termos de visitas destes inspetores, que eram registrados no livro de
visitas que toda escola deveria ter e o professor lê um breve trecho, contido na cópia que
me será entregue – aqui ele mobiliza a encenação do como estas visitas ocorriam: “foi
examinado em linguagem escrita, ditado de vinte palavras tendo aprovação de cinco
alunos [e aqui ele mostrava também dizendo que] examinei e visei os livros de
matrículas e chamadas, o diário e o semanário de lições, foram também examinados os
cadernos de linguagem e escrita”. Destaca também, que o inspetor verificava se o
professor corrigia os cadernos com as tarefas de casa dos alunos. Ainda que aqui o
inspetor fosse aquele que verificava, não é marcante, nestas partes da narrativa, a
questão da punição. Por outro lado, este momento da visita parece ser mais tenso, uma
vez que a ação do inspetor não é apenas sobre o professor, mas também sobre os alunos.
O professor estava - nestas situações narradas - como um expectador, enquanto quem
agia era o inspetor. O inspetor está mais associado aqui à imagem daquele que vigia o
professor não diretamente (como ocorria no caso da verificação dos trajes), mas pelos
resultados de seu trabalho.
O que o professor Rodolpho traz para a narrativa de elementos sobre o ensino
em escolas rurais, e em matemática, mais especificamente, é a necessidade de decorar a
tabuada. Nestas partes da narrativa o professor Rodolpho assume também uma postura
mais de encenação do que ocorria nas aulas: [cantando] “Uma vez um, um; uma vez
dois, dois”. E destaca que os alunos cantavam a tabuada. Encena também como
abordava um aluno: “você aí: uma vez um, um; uma vez dois, dois; uma vez três, três;
dois vezes dois, quatro”, mas que os alunos tinham dificuldades para decorar a tabuada.
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Ele mesmo não tinha predisposição para a Matemática, sofreu com ela - relembra o
episódio que narrou no começo da entrevista de quando era criança teve dificuldades
para resolver uma questão de Matemática na lousa e que a professora teceu comentários
sobre ele não saber Matemática mesmo sendo filho de engenheiro. Retomando como
desenvolvia as atividades/conteúdos de matemática, destaca que em cada série iam
decorando algumas das tabuadas, sendo que no 4º ano deveria ter decorado desde a do 1
até a do 10. E para narrar que os alunos eram avaliados mensalmente, na modalidade
oral, novamente encena: “tabuada oral, chama o aluno, chamava, você aí. Joãozinho,
quanto é, quanto é nove vezes dois, se ele estava no terceiro ano, por exemplo, quanto é
nove vezes dois, tinha que falar dezoito”. Após aprenderem a tabuada em sequência,
deveriam saber salteada. Novamente uma encenação: Uma vez um, depois nove vezes
dois, nove vezes um, nove; nove vezes dois, dezoito... Depois você falava, agora é
salteado, quanto que é nove vezes três ...então, muitas vezes, acho que ele ficava
mentalmente nove vez um, um; nove vez dois, dezoito; até nove vez três... E depois
você falava e três vezes nove? E três vezes nove? Cinco vezes nove? Seis vezes oito?
Cinco vezes três”? Caso o aluno não soubesse a resposta, era castigado. Já sobre os
conteúdos estarem relacionados com a vida dos alunos o professor Rodolpho encena o
como escrevia na lousa: “sitiante fulano de tal [por exemplo] tem tantas cabeça de gado.
Ele vendeu tantas, quantas cabeças sobraram”? Nas aulas de alfabetização, trabalhava-
se com cópia da cartilha (se os alunos tivessem) ou escrevia-se o texto na lousa para
copiarem). Encenando: “vamos fazer cópia, a cópia dessa lição aqui [você mandava o
que orientava no livro, você tinha que dizer] essa liçãozinha aqui você vai copiar, isso
aqui, trazer copiada. Vai copiar. Para outros você, por exemplo, punha na lousa, agora
vocês vão copiar tarefa para trazer amanhã, então punha lá, conforme a idade, por
exemplo Matemática: doze dividido por três, ponha na chave, então eles copiavam tudo
aquilo. Se era um terceiro ano você punha lá duzentos e trinta dividido por 5”. Trata
mais detalhadamente como o inspetor verificava o Semanário no qual constava o
preparo e depois no outro dia a execução e depois a correção da atividade. Encenando:
“olha aqui, o que vocês estão vendo? Vocês estão vendo que aqui tem uma casa [então
deve ser a residência do aluno], olha aqui, aqui não tem um rio? Então vocês vejam, ele
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tem que atravessar essa ponte aqui, olha aqui os bois, no pasto, conforme a gravura...
Vocês vão descrever isso aqui, ..., mas veja bem é uma descrição de uma gravura, o que
é gravura? Esta figura aqui nesse quadro que vocês estão vendo... Agora vocês vejam,
ontem nós fizemos o estudo sobre essa gravura, então hoje vocês vão descrever o que
vocês estão vendo na gravura”. Narra ainda que trabalhava com as narrações – com ou
sem gravuras - e tudo era muito explicado para os alunos e ainda assim faziam muita
confusão. Encenação: “como é a sua casa, você conta como é a sua casa, se ela é de
barro ou não é de barro, se ela é feita de pedras, de tijolos. A quantos quilômetros fica
sua casa aqui da escola e assim por diante. O que o seu pai faz lá, ele trabalha, ele é
sitiante... Então vocês vão contar uma história”.
Em relação a estes episódios que são narrados na forma de encenação, eles nos
dão indícios de como eram suas estratégias para lidar com classes multisseriadas e sua
preocupação de preparar os alunos para as provas orais e deixar, o quão claro possível,
como deveriam realizar as tarefas. O recurso da gravura parece tornar suas explicações
mais claras, um recurso que por várias vezes o professor Rodolpho narrou como
importante para auxiliar nas aulas – os quais, entretanto, nem sempre tinha a sua
disposição em escolas rurais. A narrativa também dá indícios dos esforços do professor
Rodolpho para trazer, nas atividades, elementos do mundo rural – com inclusão termos
como sitiantes, gado e situações de venda de gado em questões de Matemática e, pedido
de que os alunos escrevessem redações sobre suas casas, profissões dos pais, distância
da escola e suas casas. A encenação auxilia o narrador e o leitor a perceberem mais
claramente não apenas a existência das diferentes estratégias em sala de aula, mas de
que modo ele conseguia mobilizá-las em sala de aula: apontando elementos na gravura,
chamado o aluno para responder a tabuada, para qual turma era aquela atividade. A
encenação marca um clima de tensão criado quando das “chamadas orais” das tabuadas
e como a estratégia de cantarem as tabuadas sequencialmente dificultava quando o
aluno era submetido a questões de tabuada salteada – o aluno, observa o professor
Rodolpho – tentava lembrar a sequência da tabuada para poder responder. Já os
enunciados com termos do mundo rural traduzem um momento menos tenso nas aulas,
o mesmo ocorrendo quando das explicações sobre gravuras. Não é possível responder
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por que o professor Rodolpho se vale da encenação em sua narrativa (e para tratar
destes episódios), mas, a mim, é muito importante pensar no que este modo de narrar
me faz pensar quando leio/ouço sua narrativa.
Algumas considerações
A intenção com este exercício analítico foi apresentar uma releitura analítica de
uma entrevista por mim realizada, para uma pesquisa específica. A ideia foi destacar
três elementos que julguei relevantes, para os fins deste texto, e desenvolvê-los a partir
de minhas percepções ao estudar – o mais atentamente possível – a estrutura desta
narrativa. Com os temas salário e visita do inspetor de ensino penso que podemos
pensar como um mesmo tema vai sendo mobilizado na narrativa em diferentes
momentos e com diferentes finalidades, o que dá a eles, diferentes nuances para
interpretação. São lembranças singulares, do ser professor do professor Rodolpho. É
como se pudéssemos auscultar “por dentro” estes episódios, é um movimento diferente
que precisamos fazer – como se fôssemos nós mesmos os atores naquelas cenas, como
se estivéssemos atrás da porta daquela sala de aula, como se o professor Rodolpho nem
soubesse que eu estava ali enquanto encenava episódios de suas aulas na Escola
Masculina do Bairro do Ribeirão Grande, interior do Estado de São Paulo, nos idos anos
1950.
Referências
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