entrevista sobre preguiça

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CON TI NEN TE ESPECIAL CONTINENTE MARçO 2012 | 34 CONTINENTE MARçO 2012 | 35 Entrevista OLGÁRIA MATOS “PREGUIÇA E ÓCIO CONTRADIZEM A LÓGICA DO ACÚMULO” Muito se fala sobre a preguiça, mas, como ocorre a vários verbetes, no uso cotidiano, nunca sabemos se estamos nos referindo ao mesmo conceito, partilhando a mesma ideia. Preguiça é não fazer nada, não produzir? Rende ou não rende frutos? Coincide com ócio? É benéfica ou é “pecado”? Em 2011, no evento Mutações, organizado por Adauto Novaes, a professora de Filosofia da Universidade de São Paulo, Olgária Matos, apresentou uma reflexão sobre o campo conceitual em que se inscreve a preguiça hoje. Olgária, que também assina o prefácio do livro O direito à preguiça, de Paul Lafargue, conversou com a revista Continente sobre a experiência e o uso desacelerado do tempo, e sua aparente incompatibilidade com a sociedade contemporânea. CONTINENTE Na perspectiva filosófica, como diferenciaríamos preguiça de ócio? OLGÁRIA MATOS A preguiça – a priguizia latina –, em seu sentido primordial, diz respeito ao tempo lento, contrário à pressa ou a urgências, como se o presente vivido coincidisse consigo mesmo, um tempo em que qualquer alteração significaria uma perda desse estado de plenitude já realizada. É um tempo também dos retardamentos e da não ação, mais próximo da contemplação, que é a forma suprema da atenção. O ócio, a scholé, era uma temporalidade dedicada “àquelas coisas que merecem que se dedique o tempo”. Por uma miraculosa evolução, veio a significar “escola”, o tempo voltado para a formação do espírito, para os “cuidados de si” com vistas à virtude e à felicidade, à busca da harmonia consigo mesmo e da concórdia na cidade. A preguiça como condenável só veio a ser comparada ao seu simétrico oposto, a atividade desmedida, com o advento da “ética protestante e do espírito do capitalismo” que, em sua fase atual, se realizou com a universalização da ética do novo-rico, para a qual “tempo é dinheiro”, entendido como valor supremo. O novo-rico é aquele que conhece o preço de todas as coisas, mas desconhece o seu valor. Preguiça e ócio, bem como seus corolários, que são todos os saberes não vinculados a resultados materiais – as “humanidades” –, são proscritos. Preguiça e ócio contradizem a lógica do acúmulo, acréscimo e reposição do capital e do mercado consumidor, ligados à aceleração e ao não pensamento. CONTINENTE Em que aspectos a experiência do tédio se aproxima ou se afasta das duas citadas anteriormente? OLGÁRIA MATOS O tédio – o ennui baudelairiano – é a experiência de um tempo que se arrasta, herdeiro da acídia medieval (a “tristeza do coração” ou o “coração pesado” e “maus pensamentos”), quando o anacoreta solitário, nos desertos de Alexandria, nos quais buscava a ascese até Deus, calcinava ao sol e o dia lhe parecia insuportavelmente longo. O tédio é o desgosto de existir, que traz consigo o sentimento da perda do sentido das coisas e do passado, dos valores estimados que fazem do presente um tempo de planura, prosaico e sem maravilhamento. Mas o tédio baudelairiano é, simultaneamente, um contato com a interioridade de um sujeito e a consciência de um mundo esvaziado de sentido, porém, que exige do spleenático criação contínua. Não por acaso, Baudelaire escreve um livro cujo título é Spleen et idéal. Pelo spleen (palavra inglesa que significa tédio), o sujeito fica prisioneiro do passado, experimentando um luto do impossível, pelo qual ele sonha o futuro, vivendo esse conflito de que nasce a criação. CONTINENTE Em que sentido nós podemos entender o preguiçoso como um artesão do vazio? OLGÁRIA MATOS O preguiçoso vive um tempo pleno de bem-estar e de conforto moral, enfrentando o vazio sem tédio, quer dizer, sem angústia, porque é um tecelão do tempo, exerce a autodeterminação, não espera que de acontecimentos externos, da indústria do entretenimento ao mundo do trabalho pelo trabalho, da ação pela ação, advenha o bem- estar. Um ceticismo mitigado — uma certa afasia, apatia e ataraxia — faz com que o mundo do preguiçoso seja um mundo antiviolência, descente do poder do ser humano de mudar totalmente o curso do mundo por sua simples vontade, mais afeito à “força das coisas”, a tudo que escapa ao poder do homem. CONTINENTE Quais as principais dificuldades para o homem contemporâneo alcançar certa indiferença à duração? OLGÁRIA MATOS A cultura contemporânea – a pop, se se pode dizer – é anti-intelectual, violenta e brutalista, além de ser cultura das novidades, associada ao fetiche das inovações, fazendo apologia ao curto prazo e o desejo de “economizar o tempo”. Mas quanto mais tecnologia se produz para isso, menos tempo se tem. De onde a antinomia de que o tempo não passa e, simultaneamente, a vida é por demais breve. Baudelaire caracterizava a modernidade como o “desaparecimento no mundo dos vestígios do pecado original”, com o que indicava a imersão total do homem na matéria, incapaz de transcendência, que se desconhece a si mesmo, que se procura no exterior, dispersando-se no mundo das coisas sem sentido para os fins do autoconhecimento, do autoaperfeiçoamento, para o reconhecimento de suas possíveis fontes de prazer e satisfação. CONTINENTE Poderíamos dizer que vivemos num tempo de pouca sabedoria dos usos do tempo? OLGÁRIA MATOS O tempo na sociedade de massa, do mercado e do espetáculo se caracteriza pela ilimitação e pela valorização do excesso: obesidade mórbida, anorexia, bulimia, esportes radicais etc. A temporalidade que subjaz a essa sociedade é patológica, porque incapaz de criar ou reconhecer valores, pois esses dependem da noção e da experiência do limite, do reconhecimento do permitido e do interdito, face ao qual haveria as transgressões. Na cultura da desinibição, desaparece a ideia de tabu, nada é realmente proibido e, no entanto, nada é realmente possível. Por isso a ação pela ação – o ativismo contemporâneo é uma das figuras da inação, porque movimento para nada, simples mobilização infinita. Todos os laços que necessitam do longo-prazo – relações de amor, amizade, entre pais e filhos, no trabalho etc. – tendem a desaparecer na mudança incessante e sem “objetivo final”. Essa temporalidade sem “sabedoria” é em tudo diversa da percepção humanista da brevidade da vida e, por isso, da necessidade de bem-viver, a que se dedicavam o pensamento e a ação. Metafísica da impermanência, da lei do efêmero, da vanidade de tudo e da grandeza do instante caracterizava a percepção do tempo como busca da sabedoria nos seus usos, porque viver não é senão uma certa maneira de usar o tempo. O “homem contemporâneo” é o resultado ou o agente de uma cultura da incuriosidade, incapaz de sublimação. CONTINENTE Hoje, algumas empresas estabelecem espaço e tempo para o ócio e o descanso na rotina do empregado. Por outro lado, o tempo do lazer parece ter sido contaminado por uma lógica produtiva, pois tentamos estabelecer um “superaproveitamento” do tempo livre. Como você avalia esse diálogo entre preguiça e trabalho na contemporaneidade? OLGÁRIA MATOS Com o fim da “longa duração”, as formas tradicionais do trabalho, fundadas no desenvolvimento de uma profissão, na valorização do mérito, da constância, da perseverança, foram substituídas pelo trabalho temporário, e o ócio converteu-se em otimização do tempo de trabalho, de um trabalho sem experiência, como Walter Benjamin o compreendeu na expressão “experiência da pobreza e pobreza da experiência”. É como o jogador que recomeça sempre do zero a jogada. Seu gesto é vazio, carente de recordação, repetitivo e sem sentido algum. CONTINENTE A preguiça facilita ou dificulta os processos de dominação? Por quê? OLGÁRIA MATOS A questão assim colocada é de difícil resposta porque põe, latente, a ideia de que o homem é um ser inteiramente social. Seria preciso lembrar que, além da vida pública, existe a dimensão da vida privada e da intimidade. A preguiça é tão constitutiva do homem como a exuberância. Lembre-se de que durante o Terror, na Revolução Francesa, o simples fato de não afetar entusiasmo pela revolução e seus métodos fazia do tímido, por exemplo, um “inimigo da República” e um suspeito punível pela guilhotina. O que se pode pensar é que a preguiça está mais ao lado da “resistência passiva”, do “pacifismo”, da não violência e da reflexão não apressada. Ela seria um “parar para pensar”, face a que o ativismo significaria “parar de pensar” para agir prontamente. Ambos são importantes para a vida social e para a vida do espírito, para o jogo entre a solidão da subjetividade e o rumor da praça pública. GIANNI PAULA DE MELO LILI MARTINS/FOLHAPRESS

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Entrevista sobre preguiça

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co n t i n e n t e ma r ço 2 0 1 2 | 3 5

continente

especial

co n t i n e n t e ma r ço 2 0 1 2 | 3 4 co n t i n e n t e ma r ço 2 0 1 2 | 3 5

Entrevista

olgária matos“preguiça e óciocontradizem alógica doacúmulo” Muito se fala sobre a preguiça, mas, como ocorre a vários verbetes, no uso cotidiano, nunca sabemos se estamos nos referindo ao mesmo conceito, partilhando a mesma ideia. Preguiça é não fazer nada, não produzir? Rende ou não rende frutos? Coincide com ócio? É benéfica ou é “pecado”? Em 2011, no evento Mutações, organizado por Adauto Novaes, a professora de Filosofia da Universidade de São Paulo, Olgária Matos, apresentou uma reflexão sobre o campo conceitual em que se inscreve a preguiça hoje. Olgária, que também assina o prefácio do livro O direito à preguiça, de Paul Lafargue, conversou com a revista Continente sobre a experiência e o uso desacelerado do tempo, e sua aparente incompatibilidade com a sociedade contemporânea.

continente Na perspectiva filosófica, como diferenciaríamos preguiça de ócio? oLGÁRiA MAtoS A preguiça – a priguizia latina –, em seu sentido primordial, diz respeito ao tempo lento, contrário à pressa ou a urgências, como se o presente vivido coincidisse consigo mesmo, um tempo em que qualquer alteração significaria uma perda desse estado de plenitude já realizada. É um tempo também dos retardamentos e da não ação, mais próximo da contemplação, que é a forma suprema da atenção. O ócio, a scholé, era uma temporalidade dedicada “àquelas coisas que merecem que se dedique o tempo”. Por uma miraculosa evolução, veio a significar “escola”, o tempo voltado para a formação do espírito, para os “cuidados de si” com vistas à virtude e à felicidade, à busca da harmonia consigo mesmo e da concórdia na cidade. A preguiça como condenável só veio a ser comparada ao seu simétrico oposto, a atividade desmedida, com o advento

da “ética protestante e do espírito do capitalismo” que, em sua fase atual, se realizou com a universalização da ética do novo-rico, para a qual “tempo é dinheiro”, entendido como valor supremo. O novo-rico é aquele que conhece o preço de todas as coisas, mas desconhece o seu valor. Preguiça e ócio, bem como seus corolários, que são todos os saberes não vinculados a resultados materiais – as “humanidades” –, são proscritos. Preguiça e ócio contradizem a lógica do acúmulo, acréscimo e reposição do capital e do mercado consumidor, ligados à aceleração e ao não pensamento.

continente Em que aspectos a experiência do tédio se aproxima ou se afasta das duas citadas anteriormente? oLGÁRiA MAtoS O tédio – o ennui baudelairiano – é a experiência de um tempo que se arrasta, herdeiro da acídia medieval (a “tristeza do coração” ou o “coração pesado” e “maus pensamentos”), quando o anacoreta solitário, nos desertos de Alexandria, nos quais buscava a ascese até Deus,

calcinava ao sol e o dia lhe parecia insuportavelmente longo. O tédio é o desgosto de existir, que traz consigo o sentimento da perda do sentido das coisas e do passado, dos valores estimados que fazem do presente um tempo de planura, prosaico e sem maravilhamento. Mas o tédio baudelairiano é, simultaneamente, um contato com a interioridade de um sujeito e a consciência de um mundo esvaziado de sentido, porém, que exige do spleenático criação contínua. Não por acaso, Baudelaire escreve um livro cujo título é Spleen et idéal. Pelo spleen (palavra inglesa que significa tédio), o sujeito fica prisioneiro do passado, experimentando um luto do impossível, pelo qual ele sonha o futuro, vivendo esse conflito de que nasce a criação. continente Em que sentido nós podemos entender o preguiçoso como um artesão do vazio? oLGÁRiA MAtoS O preguiçoso vive um tempo pleno de bem-estar e de conforto moral, enfrentando o vazio sem tédio, quer dizer, sem angústia,

porque é um tecelão do tempo, exerce a autodeterminação, não espera que de acontecimentos externos, da indústria do entretenimento ao mundo do trabalho pelo trabalho, da ação pela ação, advenha o bem-estar. Um ceticismo mitigado — uma certa afasia, apatia e ataraxia — faz com que o mundo do preguiçoso seja um mundo antiviolência, descente do poder do ser humano de mudar totalmente o curso do mundo por sua simples vontade, mais afeito à “força das coisas”, a tudo que escapa ao poder do homem.

continente Quais as principais dificuldades para o homem contemporâneo alcançar certa indiferença à duração? oLGÁRiA MAtoS A cultura contemporânea – a pop, se se pode dizer – é anti-intelectual, violenta e brutalista, além de ser cultura das novidades, associada ao fetiche das inovações, fazendo apologia ao curto prazo e o desejo de “economizar o tempo”. Mas quanto mais tecnologia se produz para isso, menos tempo se tem. De onde a antinomia de que o

tempo não passa e, simultaneamente, a vida é por demais breve. Baudelaire caracterizava a modernidade como o “desaparecimento no mundo dos vestígios do pecado original”, com o que indicava a imersão total do homem na matéria, incapaz de transcendência, que se desconhece a si mesmo, que se procura no exterior, dispersando-se no mundo das coisas sem sentido para os fins do autoconhecimento, do autoaperfeiçoamento, para o reconhecimento de suas possíveis fontes de prazer e satisfação.

continente Poderíamos dizer que vivemos num tempo de pouca sabedoria dos usos do tempo? oLGÁRiA MAtoS O tempo na sociedade de massa, do mercado e do espetáculo se caracteriza pela ilimitação e pela valorização do excesso: obesidade mórbida, anorexia, bulimia, esportes radicais etc. A temporalidade que subjaz a essa sociedade é patológica, porque incapaz de criar ou reconhecer valores, pois esses dependem da noção e da experiência do limite, do reconhecimento do permitido e do interdito, face ao qual haveria as transgressões. Na cultura da desinibição, desaparece a ideia de tabu, nada é realmente proibido e, no entanto, nada é realmente possível. Por isso a ação pela ação – o ativismo contemporâneo é uma das figuras da inação, porque movimento para nada, simples mobilização infinita. Todos os laços que necessitam do longo-prazo – relações de amor, amizade, entre pais e filhos, no trabalho etc. – tendem a desaparecer na mudança incessante e sem “objetivo final”. Essa temporalidade sem “sabedoria” é em tudo diversa da percepção humanista da brevidade da vida e, por isso, da necessidade de bem-viver, a que se dedicavam o pensamento e a ação. Metafísica da impermanência, da lei do efêmero, da vanidade de tudo e da grandeza do instante caracterizava a percepção do tempo como busca da sabedoria nos seus usos, porque viver não é senão uma certa maneira de usar o tempo. O “homem contemporâneo” é o resultado ou o agente de

uma cultura da incuriosidade, incapaz de sublimação.

continente Hoje, algumas empresas estabelecem espaço e tempo para o ócio e o descanso na rotina do empregado. Por outro lado, o tempo do lazer parece ter sido contaminado por uma lógica produtiva, pois tentamos estabelecer um “superaproveitamento” do tempo livre. Como você avalia esse diálogo entre preguiça e trabalho na contemporaneidade? oLGÁRiA MAtoS Com o fim da “longa duração”, as formas tradicionais do trabalho, fundadas no desenvolvimento de uma profissão, na valorização do mérito, da constância, da perseverança, foram substituídas pelo trabalho temporário, e o ócio converteu-se em otimização do tempo de trabalho, de um trabalho sem experiência, como Walter Benjamin o compreendeu na expressão “experiência da pobreza e pobreza da experiência”. É como o jogador que recomeça sempre do zero a jogada. Seu gesto é vazio, carente de recordação, repetitivo e sem sentido algum.

continente A preguiça facilita ou dificulta os processos de dominação? Por quê? oLGÁRiA MAtoS A questão assim colocada é de difícil resposta porque põe, latente, a ideia de que o homem é um ser inteiramente social. Seria preciso lembrar que, além da vida pública, existe a dimensão da vida privada e da intimidade. A preguiça é tão constitutiva do homem como a exuberância. Lembre-se de que durante o Terror, na Revolução Francesa, o simples fato de não afetar entusiasmo pela revolução e seus métodos fazia do tímido, por exemplo, um “inimigo da República” e um suspeito punível pela guilhotina. O que se pode pensar é que a preguiça está mais ao lado da “resistência passiva”, do “pacifismo”, da não violência e da reflexão não apressada. Ela seria um “parar para pensar”, face a que o ativismo significaria “parar de pensar” para agir prontamente. Ambos são importantes para a vida social e para a vida do espírito, para o jogo entre a solidão da subjetividade e o rumor da praça pública. gianni paula de melo

lili martins/folhapress