entrevista pascal guillemin a aikido magazine em dezembro de 2006

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Q …na troca, a Fluidez Quando eu lhe digo aikido, o que vem imediatamente à sua mente? Entrevista Pascal Guillemin Para Pascal Guillemin, 5° dan, a prática do aikido deve ser uma aventura humana centrada no compartilha- mento com desapego. Seu credo seria transformar o ataque em troca, trazer flu- idez para a técnica, tanto no dojo como na vida. Liberdade, liberdade de ação, não oposição, troca, fluidez. Um sistema de educação notável. E quando o senhor pensa no seu primeiro contato com o aikido... Eu tinha 15 anos e, como para a maior parte dos jovens que iniciam, para mim era como se fosse no Cercle Tissier em Vincennes ; fiquei impres- sionado pela atmosfera, a calma e a serenidade. Eu vinha de um meio um pouco mais tumul- tuoso, e isso me surpreendeu e sobretudo me instigou bastante. Logo na primeira aula, fiquei maravilhado pela sutileza da disciplina, tendo em conta que nós podíamos imobilizar ou fazer alguém cair de forma muito simples dominando a mecânica do corpo, o que não é dado de an- temão. Mas, sobretudo, logo nas primeiras aulas eu tive muito prazer; foi realmente uma revela- ção para mim, a ponto de dois meses depois eu decidir ser um dia um profissional, sem mesmo saber se isso realmente existia. Logo procurei sa- ber se isso era possível, se havia uma formação em particular. Cheguei até o aikido por acaso; eu era um esportista, fazia futebol, tênis, e até prestei um concurso de seleção para o PSG. Fui selecionado e demitido no mesmo dia — incom- patibilidade de humor. Hoje, com o meu passado de aikido, eu teria gerenciado aquela situação de outro modo. De fato, eu não me enquadrava nas disciplinas coletivas. Um amigo que havia começado karatê me trouxe uma revista espe- cializada na qual havia um artigo com uma ent- revista com Christian Tissier. Ele abordava muitas questões nesse artigo e falava ainda de Yama- guchi sensei. Não estou certo de ter compreen- dido tudo na época, mas fui sensível ao fato de aquele texto abordar algo em particular, novo e interessante para mim. O Cercle Tissier era situa- do a menos de 15 minutos da nossa casa; fui ver e fiquei maravilhado de imediato. Uma confluên- cia de fatores ou ainda um puro acaso, se isso existisse de fato, mas eu tinha necessidade nesse momento de me curvar, de me dirigir rumo a alguma coisa eficaz para o adolescente que eu era. No futebol ou no tênis, tudo remete à com- petição, à vitória, à derrota, e eu me encontrava de repente num universo sem agressividade, onde a harmonia era o valor de referência. No aikido, onde é que se encontra a vitória, no seu ponto de vista? Se a vitória acontecer, eu a considero real- mente como algo de pessoal, seguro e com relação direta consigo. Em nenhum momento procuro estar em competição para ser melhor do que um ou outro. 8 Para mim, o desafio de todos os instantes seria o de procurar o bônus de melhorar a mim mesmo com o tempo, de apagar todas as tensões físicas e as veleidades. O aikido me permite ter um re- cuo e me ajuda a tornar fluida a vida do dia a dia. Esse aikido que o senhor viu em Vincennes correspondia àquele que o senhor imaginava? Se ele porventura fosse diferente, eu não estou certo de que teria continuado nesse rumo. Eu não imaginava alguma coisa em particular indo assistir ao aikido, eu apenas imaginava o que eu tinha visto e que de fato existia. Eu diria que o lado incisivo na fluidez da nossa prática me con- vinha perfeitamente. Certas formas de aikido, certos ensinamentos, não me convêm, mesmo que seja bom que existam para aqueles a quem possam convir. O senhor pratica bastante. O treino é muito importante? É verdade que, imediatamente, eu comecei a treinar de 3 a 6 horas por dia, durante vários anos, seguindo Christian Tissier por toda parte, tanto na França como no exterior, com a von- tade de nunca abandonar. Muito rápido, entendi que mesmo nos momentos mais difíceis, eu não

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Conteúdo autorizado por Pascal Guillemin Sensei e Sylvette Douche Diretora Administrativa da FFAAA Créditos: Texto e Fotos: Aikido Magazine – Dezembro de 2006 Tradução para o Português: Cristina Vaz Duarte Revisão do Português: EDF (Design Gráfico e Web Desgner) Revisão Geral: Elena de Carvalho Stellfeld.

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Page 1: Entrevista Pascal Guillemin a Aikido Magazine em Dezembro de 2006

Q

…na troca, a Fluidez Quando eu lhe digo aikido, o que vem imediatamente à sua mente?

Entrevista Pascal Guillemin

Para Pascal Guillemin, 5° dan, a prática do aikido deve ser uma aventura humana centrada no compartilha-mento com desapego. Seu credo seria transformar o ataque em troca, trazer fl u-idez para a técnica, tanto no dojo como na vida.

Liberdade, liberdade de ação, não oposição, troca, fl uidez. Um sistema de educação notável.

E quando o senhor pensa no seu primeiro contato com o aikido...

Eu tinha 15 anos e, como para a maior parte dos jovens que iniciam, para mim era como se fosse no Cercle Tissier em Vincennes ; fi quei impres-sionado pela atmosfera, a calma e a serenidade. Eu vinha de um meio um pouco mais tumul-tuoso, e isso me surpreendeu e sobretudo me instigou bastante. Logo na primeira aula, fi quei maravilhado pela sutileza da disciplina, tendo em conta que nós podíamos imobilizar ou fazer alguém cair de forma muito simples dominando a mecânica do corpo, o que não é dado de an-temão. Mas, sobretudo, logo nas primeiras aulas eu tive muito prazer; foi realmente uma revela-ção para mim, a ponto de dois meses depois eu decidir ser um dia um profi ssional, sem mesmo saber se isso realmente existia. Logo procurei sa-ber se isso era possível, se havia uma formação em particular. Cheguei até o aikido por acaso; eu era um esportista, fazia futebol, tênis, e até prestei um concurso de seleção para o PSG. Fui selecionado e demitido no mesmo dia — incom-patibilidade de humor. Hoje, com o meu passado de aikido, eu teria gerenciado aquela situação de

outro modo. De fato, eu não me enquadrava nas disciplinas coletivas. Um amigo que havia começado karatê me trouxe uma revista espe-cializada na qual havia um artigo com uma ent-revista com Christian Tissier. Ele abordava muitas questões nesse artigo e falava ainda de Yama-guchi sensei. Não estou certo de ter compreen-dido tudo na época, mas fui sensível ao fato de aquele texto abordar algo em particular, novo e interessante para mim. O Cercle Tissier era situa-do a menos de 15 minutos da nossa casa; fui ver e fi quei maravilhado de imediato. Uma confl uên-cia de fatores ou ainda um puro acaso, se isso existisse de fato, mas eu tinha necessidade nesse momento de me curvar, de me dirigir rumo a alguma coisa efi caz para o adolescente que eu era. No futebol ou no tênis, tudo remete à com-petição, à vitória, à derrota, e eu me encontrava de repente num universo sem agressividade, onde a harmonia era o valor de referência.

No aikido, onde é que se encontra a vitória, no seu ponto de vista?

Se a vitória acontecer, eu a considero real-mente como algo de pessoal, seguro e com relação direta consigo. Em nenhum momento procuro estar em competição para ser melhor do que um ou outro.

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Para mim, o desafi o de todos os instantes seria o de procurar o bônus de melhorar a mim mesmo com o tempo, de apagar todas as tensões físicas e as veleidades. O aikido me permite ter um re-cuo e me ajuda a tornar fl uida a vida do dia a dia.

Esse aikido que o senhor viu em Vincennes correspondia àquele que o senhor imaginava? Se ele porventura fosse diferente, eu não estou certo de que teria continuado nesse rumo. Eu não imaginava alguma coisa em particular indo assistir ao aikido, eu apenas imaginava o que eu tinha visto e que de fato existia. Eu diria que o lado incisivo na fl uidez da nossa prática me con-vinha perfeitamente. Certas formas de aikido, certos ensinamentos, não me convêm, mesmo que seja bom que existam para aqueles a quem possam convir.

O senhor pratica bastante. O treino é muito importante? É verdade que, imediatamente, eu comecei a treinar de 3 a 6 horas por dia, durante vários anos, seguindo Christian Tissier por toda parte, tanto na França como no exterior, com a von-tade de nunca abandonar. Muito rápido, entendi que mesmo nos momentos mais difíceis, eu não

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A fl uidez

na aplicação

das técnicas

lhe garante

uma quali-

dade na

prática do

Aikido.

cantes procurem um pouco a mesma coisa.

O aikido ainda é uma arte marcial, mas a técnica não serve unicamente para imo-bilizar; trata-se, sobretudo, de uma ferramenta excelente para outra busca, para de-

podia esmorecer — não com relação a meu en-torno, mas com relação a mim mesmo. Eu queria provar para mim mesmo certas coisas, tanto físi-ca quanto mentalmente. Mental e físico são in-dispensáveis no aikido. Desenvolver qualidades mentais é primordial para progredir. Além disso, tendo me tornado um profi ssional, eu não podia aceitar interromper logo no primeiro machuca-do, na primeira contusão ou fadiga. É verdade que hoje estou num treino do tipo esportivo de alto nível, com um acompanhamento médico, uma alimentação adaptada. Nunca vacilei no tatame, apesar de alguns probleminhas advindos de uma prática intensa, de até 6 horas por dia. Talvez não fosse o que eu aconselhasse aos meus alunos, mas aplico em mim essa regra.

O aikidô poderia ser uma forma de se dopar?

Entendo perfeitamente a sua colocação. Se for um modo de se dopar, ele é perfeito na medida em que faz avançar, progredir de maneira sadia. A dis-ciplina é salutar, a mensagem é sadia, e também é fundamental o entorno que tem uma importância. A fl uidez na aplicação das técnicas garante uma prática de qualidade do aikido na realização pes-soal de cada um. Eu imagino que os seus prati-

senvolver algo mais, como o bem-estar, o relaxamento das ten-sões musculares, ner-vosas ou psicológicas. Na prática do aikido, a comunicação, a troca com o parceiro deve se prolongar na vida quo-tidiana. Em função da qualidade dessa troca, podemos até chegar a dizer se o parceiro passou um bom dia ou não.

O senhor tem a impressão de estar no âmago do seu projeto de aikido?

Quando eu iniciei o aikidô, ao cabo de dois me-ses eu queria ser profi ssional; deixei de estudar «por covardia». Tive imediatamente a impressão de mergulhar num esporte-estudo aikido. Minha primeira aula, ministrei na idade de 19 anos, «com a condição de que essas horas não atrapalhassem meus treinos», me dissera Christian Tissier. Eu verdadeiramente comecei a lecionar mais tarde, é claro, mas hoje acho que me aproximei daquilo que eu almejava fazer com o aikido. Hoje,existem muitos aspectos ainda a serem aperfeiçoados, a serem colocados em destaque. Por ter lecio-nado, por exemplo, em meio hospitalar ou car-cerário, eu percebo que existe ainda à minha frente um campo enorme a ser cultivado, onde o aikido pode se expressar plenamente. Eu nunca chegarei a estar satisfeito, mas avanço pouco a pouco todos os dias em direção à meta fi xada.

Como o senhor defi ne o uke ideal, o que o senhor exige dele?

Primeiramente, ter uma boa relação com tori. A noção de contato é primordial para mim. Eu penso, a esse respeito, acerca de um es-tágio com Endo sensei. É preciso fazer de tal modo que a técnica não pareça uma coreo-grafi a; não perder o vínculo, a intenção entre uke e tori. Eu gosto da presença de uke como a concebe Endo sensei. É importante preservar a noção marcial de fundo do aikido. Fala-se de ataque, e mesmo se o desdobramento não é aquele das outras artes marciais, uke e tori não podem negligenciar esse aspecto da nossa prática. É um elemento da riqueza do aikido.

Quais foram seus encontros funda-mentais?Eu diria que um encontro essencial foi com Christian Tissier.

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Com ele, eu realmente aprendi o rigor. Sua ex-igência de perfeição me convém perfeitamente. Sua presença é sempre um enriquecimento para mim; suas qualidades humanas, tanto sobre o tatame como na vida, lhe conferem essa facilidade de se apagar dela os problemas e as asperezas. Eu me lembro que no início, há mais de vinte anos mais ou menos, eu estava em seiza; trab-alhávamos em três com dois parceiros, e ele me disse: «O que você vier a aprender aqui, você poderá levar para a vida do dia a dia», Ele me disse isso assim, como quem não quer dizer nada. Eu tinha 16 anos, e fui entender depois que ele não estava falando em resolver uma situação pelo confronto, mas que se referia à troca de res-peito, de reconhecimento, de compartilhamento.Christian Tissier me transmitiu os princípios que eu tento pôr em prática na vida, tanto no dojo como no interior de uma central peni-tenciária: não fi car embotado, negociar prob-lemas; se não passar em omote, passar em ura.

Quais foram os ensinamen-tos transmitidos por senseis como Endo ou, ainda, como Yasuno?

Entre o dinamismo de Yasuno sensei e o relaxa-mento de Endo Sensei temos quase toda a gama do aikido. Eu diria que o relaxamento físico e mental em Endo sensei, bem além da técnica, nos mostra o caminho, mas também o trabalho a ser abraçado para alcançar esse nível de perícia. Com Endo sensei, nós percebemos que a técnica é um álibi, uma ferramenta para ir na direção de outros domínios não tão evidentes, à primeira vista, para certas pessoas que podem pensar que o aikido se resume a uma técnica para que-brar os braços ou imobilizar um agressor. Endo sensei nos mostra que o relaxamento no aikido é também um meio formidável para gerenciar mentalmente o stress. Residem nesse fato alguns de seus benefícios, que deveriam, a meu ver, ser mais amplamente divulgados.

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Eu preciso desse aspecto da disciplina. Se fosse apenas uma coreografi a, eu teria feito dança. O conteúdo marcial do aikido permite desenvolver qualidades intrínsecas. O aikido é antes de mais nada uma arte marcial, caso contrário perderia seu sentido e coerência, além da efi cácia que oferece para o gerenciamento do stress. Desvin-cular dele a sua essência marcial seria caminhar em outra direção, que fosse aquela de uma outra atividade, cujo nome fosse outro. Mas o principal é o sistema de educação que se origina nele.

Em que momento a sua prática evoluiu em direção ao ken? Muito cedo, de fato, desde meu primeiro ano de práti-ca, eu cursava as aulas de Christian Tissier pela manhã das 7h às 8h, antes de ir para a escola.O lado samurai do sabre era muito fascinante para um jovem praticante, como eu era naquela época. O ken é uma disciplina por ela mesma, muito próxima da prática com mãos vazias, mas traz uma dimensão mar-cial complementar que requer adrenalina e que não se conhece no aikido. Poder fazer no ken um corte rapi-damente, e parar a alguns milímetros do seu parceiro, está no nível do domínio e da beleza do gesto, muito exigente e muito completo. As sensações são muito particulares.Com Christian Tissier, eu trabalho o kenjutsu e o aikiken.O aikiken desenvolve qualidades específi cas, ligadas às distâncias da prática e aos tempos de reação mais curtos. O trabalho de posturas no kenjutsu está pro-vavelmente mais exigente, mas as posições dos pés, as atitudes e os movimentos do ken são muito próximos daqueles do aikido, o que explica provavelmente que tenha mais sucesso junto aos aikidokas. Eu pratico in-diferentemente os dois por sua complementariedade. Hoje, não posso mais dissociá-los.A prática do ken me traz a compreensão do aikidô. Enviar um shomen de mãos vazias pode apresentar um certo perigo; quando se tem um ken nas mãos é outra coisa, estamos numa outra dimensão, que requer uma maior concentração. Com o ken, por exemplo, não se pode colocar o braço para bloquear um ataque; é preciso desenvolver outras soluções e outras qualidades físicas e mentais.Hoje eu ensino cada vez mais ken, da escola Kashima de Inaba sensei, que Christian Tissier me transmite. O estudo aprofundado dos katas abre perspectivas ao infi nito.

O aikido, a arte marcial, é arte de combate ou não?

Esse gerenciamento do stress, eu imagino que se aplique perfeita-mente no âmbito de um universo carcerário, fechado, sem liber-dade. Como o senhor chegou até o ensino em ambiente carcerário?

Primeiro, ninguém está livre de passar um certo tempo na cadeia. É importante dizer isso. Ape-sar de isso não ser desejável, pode ocorrer a qualquer pessoa. Ser privado de liberdade é terrível, é preciso ter estado nesse tipo de lugar par se dar conta realmente. Há muito tempo que penso que o aikido pode desempenhar um papel importante para essas populações em difi cul-dade. Já com 20 anos eu pensava nisso. Eu era jovem demais para ir até lá, teria sido um erro ter feito isso prematuramente. Alguns anos mais tar-de, na maturidade, mais tecnicamente preparado também, eu senti que o momento havia chegado. Eu lido com praticantes muito receptivos. É pos-sível compreender muito rapidamente que a efi cácia da técnica passa em segundo lugar, que existem outros modos de ser tremendamente mais efi cazes. Para eles, existe no tatame, na prática, uma liberdade que eles não têm mais em vida.A prática com armas e do kenjutsu ou de aikiken desen-volvem qualidades específi cas.É preciso dominar dia a dia o stress do encarceramento em um universo onde reina a lei do mais forte. Deixar seu cor-po se expressar livremente, no estado de criação: nesse ponto reside o que é primordial. É esse o âmbito para o qual o aikido pode trazer uma fer-ramenta para controlar e até mesmo dominar esse stress. Em 1999, a pedido da admin-istração penitenciária, nós fo-mos em cinco pessoas, dentre as quais Patrick Bénézi, que havia sido o contato na praça. Fomos fazer uma demonstra-ção seguida de um debate na

Práticar com

armas, Ken-

Jutsu ou Aiki-

ken desenvolve

qualidades específi cas.

Centrale de Poissy . Eles foram fi sgados, adminis-tração e presos inclusos. Foi a conta para serem, a partir de então, público-alvo de estágios. Eu estava disponível e fui para lá com Bruno Gonzales. Nós ainda estivemos, no início, sediados numa peque-na sala de box, num ambiente um pouco peculiar, mas deu tudo certo para eles e para nós durante quatro dias seguidos. Depois disso a administração da penitenciária nos pediu que substituíssemos um preso que dava aulas, e eu aceitei o desafi o. Eu tenho outras propostas para outros estabeleci-mentos que poderiam interessar para outras pes-soas. Mas, atenção; não se pode enganar na sua fala. Existem falas que não podemos ter, do tipo: «É bom, a gente relaxa, liberem o que está dentro de você, etc.» A gente precisa se concentrar ao máxi-mo para evitar cometer certos erros, mas sem que isso represente um impedimento. O universo car-cerário tem suas regras próprias, o contato físico tem aí um sentido bem peculiar. O basquete, por exemplo, é banido desse meio, para evitar contatos acirrados que pudessem rapidamente degenerar. Então ensinar o aikido, disciplina particularmente tátil, requer uma adaptação. No que se refere a mim, eu tentei concentrar todos os meus esforços na noção de troca.É uma aventura humana incrível baseada no sen-tido da palavra «compartilhar». Há um ano agora que eu ensino até mesmo as armas, o que era in-imaginável há pouco tempo. Falar de trabalho com armas tem um sentido muito preciso numa prisão e, no entanto, de mãos em punho, fazemos entrar bokken e tanto e tudo corre muito bem. Algo de espetacular ocorre nesse grupo que agora se au-togerencia, numa confi ança recíproca. Eu nunca tenho o sentimento de dar uma aula a detentos, mas simplesmente dar aula a aikidokas, com um percurso peculiar, é verdade, mas que não impede a harmonia de comparecer.

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Eu imagino que o que esses alunos especi-ais lhe oferecem em retorno deva ser algo considerável. Isso pode parecer estranho, mas eu encontro uma quali-dade humana nesse meio que não encontro necessaria-mente em outros lugares, em contextos ditos... normais.Eu me dou conta de a que ponto o humano é complexo. Eu não ensino para nada, eu procuro entender. Muitas questões fi cam ainda sem respostas. Como podemos cometer atos extremamente graves contra alguns e ao mesmo tempo ter as melhores intenções com relação a outros ? Não é simples. Ninguém está ao abrigo do pior que possa haver... nem do melhor. No tatame, não sinto nenhuma pressão ad-vinda do meio circundante. Dou uma aula de aikido como em toda parte no mundo. Poderíamos pensar que um certo hábito se instalou, e no entanto, em cada aula, sempre o mesmo calor humano, a mesma escuta, o mesmo respeito, nenhuma lassidão toma conta.Dos dois lados, é muito rico de ensinamentos, as ide-ias pré-concebidas caem, os complexos também. Logo na primeira aula, tentei mostrar como ai hammi katate dori que o que podia se passar por um ataque é primeiro uma troca. Nesse sentido, posso afi r-mar que tenho um retorno de qualidade excepcional.

Essas técnicas de gestão do stress podem ser aplicadas em outros lugares? Claro, em meio hospitalar por exemplo, onde eu também

Entrevista Pascal Guillemin

ministro aulas para o pessoal de serviço con-frontado ao estresse das urgências hospitalares, sem mesmo ir tão longe na técnica, apenas per-manecendo no plano dos princípios de funciona-mento do aikido. É muito bem recebido e com-preendido, a mensagem é muito efi caz. Não se trata no entanto de se chegar a fazer campeões de aikido em vinte sessões, mas de se fazer en-tender que não adianta nada fi car preso aos seus confl itos, que é necessário buscar soluções para alcançar o objetivo fi xado. Eu aplico nesse âmbito os princípios universais de aikido, também para a preparação física e mental de esportes de alto nível.

Quais são suas ambições hoje? Primeiro, continuar a praticar ainda e sempre, ensinar e transmitir a riqueza do aikido. Além disso, com um amigo fi sioterapeuta e neurolo-gista, eu desenvolvi um conceito inovador para o preparo da mente, do físico e da fi siologia na

▼...Quando dou aulas, quero me colo-car no nível dos meus alunos. O que me importa é dar o melhor de mim mes-mo, sobre o tatame e também fora do dojô...▲

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qual o aikido tem um lugar preponderante.Nós trabalhamos sobre a neurofi siologia estando à escuta do corpo. Praticando exercícios corpo-rais adaptados, temos efeitos imediatos sobre o psiquismo do atleta. Trabalhando de outro modo sobre o psiquismo com, sobretudo, o método de relaxamento progressivo de Jacobson, chega-mos a efeitos positivos insuspeitáveis sobre o corpo. Para se chegar a isso, eu me apoio sem-pre que possível sobre minha prática de aikido e conto com a minha experiência esportiva para personalizar e tornar efi caz cada intervenção, em função de cada indivíduo.Muito mais do que ser treinador, nós estamos na esfera da perícia. Eu emprego também um pouco de meu tempo em um projeto com a P.P.J. (Proteção Judicial da Ju-ventude), por intermédio de um amigo karateka, Alain Trouvé, cofundador de uma O.N.G., Atletas do Mundo, da qual o presidente é Jean Galfi one. Trata-se de reabilitar os jovens que passam por difi culdades, que são carentes e que estão per-dendo suas referências, pela prática das artes marciais.

Como é que você se defi ne? Eu sou antes de mais nada um aikidoka, de-pois um professor. Se eu não pudesse mais me submeter aos treinos, acho que interromperia minhas atividades de professor. Para mim, é mui-to importante ser uke, praticar os dois papéis.Eu tenho 33 anos, eu sou 5° dan desde há pouco e, mesmo que pareça ainda cedo, eu não quero apenas brincar de ser professor. Tenho realmente necessidade de sentir que eu também sou aluno para manter o meu equilíbrio, sendo ainda ver-dade que eu tenho muito a aprender.Quando eu dou aulas, quero me colocar na posição de meus alunos. O que me importa é dar o melhor de mim mesmo, sobre o tatame e também fora do dojo... ●