entrevista lygia pape 2

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    Eliane Prolik, gentilmente cedido para ser utilizado como capa destaedio: No pare sobre os olhos Pape, interveno em placas desinalizao de trnsito, 50 x 50 cm, 2003

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    Tudo o HomemDevora

    Entrevista por

    LYGIA PAPE:

    divino

    SOBRAL

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    A obra de Lygia Pape (Nova Friburgo-RJ, 1929

    Rio de Janeiro-RJ, 2004) atravessou toda a se-gunda metade do sculo XX e constituiu-se comoreferencial na formao da arte contemporneabrasileira.

    Iniciada nos anos de 1950, seguiu caminhosinesperados pesquisando diferentes possibilidadesde constituio para o trabalho artstico, agregan-do procedimentos, materiais, linguagens e sentidosos mais diversos. Apaixonada por filosofia e espe-

    cialmente pelo filsofo grego Herclito, a artistadialogou com as transformaes que os temposforam lhe apresentando, e atenta s descobertasdesenvolveu gravura, escultura, objeto, livro doartista, fotografia, instalao, cinema de artista epropostas coletivas, encadeando todos estes traba-lhos numa teia em que cada filamento encontraseconectado ao outro.

    O advento de sua trajetria d-se com o Gru-

    po Frente (195355), que interessado na gram-tica geomtrica e no racionalismo construtivodesembocou na formalizao do Grupo Concreto(1956). Lygia Pape acompanhou Hlio Oiticica,Lygia Clark, Amlcar de Castro e Ferreira Gullarna ruptura com o Concretismo e na fundao doNeoconcretismo (1957-63), que sob a influnciada fenomenologia inseriu na gramtica geom-trica elementos relacionados expressividade, subjetividade e ao contexto perceptivo do corpo. A partir do Neoconcretismo, a produo brasi-leira ganhou a orientao vertical da pesquisa emcampos experimentais, um impulso que alavancouuma multiplicidade de propostas e que Lygia Pape,com lucidez, soube acompanhar. Na inquieta traje-tria da artista sucedem-se experincias que deslo-cam nosso conhecimento do plano e do espao, dalinha e da cor, da luz e dos materiais do mundo.

    Um breve retrospecto de importantes obras deLygia Pape pertinente para que o leitor possa di-mensionar a envergadura de sua produo.

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    Os Tecelares (1955) exibidos na exposio do

    Grupo Frente so xilogravuras de natureza cons-trutiva em que a linha atua como protagonista.O Bal Neoconcreto (1958 59) consiste na mo-vimentao de mdulos geomtricos no palco; emcerto sentido, essa obra de Lygia Pape antecipaa proposta de Robert Morris dos mdulos mini-malistas (Coluna 1961). As investigaes sobreas possibilidades plsticas e conceituais do livrogeraram obras como Livro da Criao (1960)

    e Livro do Tempo (1961), sendo esse compostopor 365 partes diferentes, cada uma realizada apartir de um quadrado de madeira. A Caixa deBaratas (1967), como o prprio nome explicita,guarda asquerosos insetos num comentrio sobrea decadncia e foi exibida na emblemtica mostraque reuniu a vanguarda politizada do perodo ps-golpe Nova Objetividade Brasileira (1967). Di-visor (1968) um enorme tecido que suspenso

    pela participao coletiva de dezenas de pessoas;foi exibido em uma favela, e muito depois, em1996, em New York .

    Desde 1962 a artista trabalhou com cinema,atuando como diretora, roteirista e designer gr-fico. Nos anos 70, levou essas experincias em pa-ralelo com pesquisas de apropriaes e instalaes. As Tteias (a primeira data de 1978) so constru-es de linhas que estruturamse no espao comosutis coletoras de luz. Objeto de Seduo (1976)so trabalhos de apropriaes que comentam adevorao sexual e os esteretipos dos comporta-mentos femininos/feministas na cultura machista.Ovos de vento (1979) uma instalao em que aluz ganha corporeidade difana na matria leve etransparente.

    Durante os anos 80, suas investigaes e des-cobertas sobre a cor e a luz ganham visibilidade naexposio individual O Olho do Guar (1984).Segundo a artista essas descobertas vo maisalm do meramente sensorial: prevem um espao

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    e um tempo interno o mais profundo do ser a

    sua potica. (in: O Olho do Guar. Catlogo deexposio homnima; Arco Arte Contempornea;So Paulo; 1984). As obras neoconcretas de Lygiaganham novamente visibilidade com uma mostraindividual (1988) na Galeria Thomas Cohn, no Riode Janeiro.

    Durante os anos 90, a artista tem sua obra re-conhecida com elevada visibilidade. Continua aproduzir trabalhos instigantes, irnicos e humora-

    dos como os Amazoninos (1990), que so objetospendentes das paredes transitando entre a bi e atridimensionalidade, e como as instalaes Luardo Serto (1995), realizada com pipocas e luz ne-gra, e No Pise na Grana (1996), executada comesta frase num canteiro de chicrias plantado nagaleria. Na Bienal do Redescobrimento exibiu aobra Manto Tupinamb (2000) numa reflexosobre os processos histricos e atuais de devora-

    o cultural. A ltima exibio de Lygia Pape emum grande evento ocorreu em 2003, na IV Bienaldo Mercosul, onde apresentou uma instalao comluzes e alimentos.

    Lygia Pape esteve em Goinia em 1993, quandoveio fazer uma palestra durante o evento Dilogoscom o Tempo no ento Instituto de Artes da UFG(Atualmente Faculdade de Artes Visuais). Nessaocasio, concedeu-me essa entrevista, que foi pu-blicada originalmente em 1995 no jornal-catlogoda exposio Ato All, realizada tambm no IA, e naqual Lygia exps trabalhos sobre papel. Em 1996,participou da exposio Circuito Nacional de Art-

    Door em Goinia com uma obra em texto-imagemque dizia: Fome de Tudo. Republicar essa en-trevista um modo de homenagear Lygia Pape nomomento de seu falecimento, bem como, de difun-dir o seu lcido pensamento sobre sua obra, sobrea experincia neoconcreta e sobre os caminhos daarte contempornea.

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    D.S. Lygia, voc uma artista plstica que possui

    formao filosfica. Quando se debate a dissocia-o arte-esttica na atualidade, como voc percebeesta questo?L.P. Eu nem chego a cogitar isto. Acho que vocest encarando esttica de uma forma acadmica,no sentido da universidade. Esta dissociao podeser feita com o esteticismo ligado ao belo. O queuso da filosofia o pensamento, a possibilidade decriar e trabalhar conceitos. Isso a filosofia respon-de e apia. A esttica no sentido do belo grego nointeressa mais. Mas a esttica como forma de pen-sar presente hoje, mais que nunca, porque atu-almente as obras trabalham muito com a idia deconceito. A filosofia ajuda a pensar a obra comoelemento expressivo, e no apenas como relaoformal.

    D.S. E quanto existncia intrnseca obra dearte dos campos visuais e verbais, como decorren-tes um do outro?L.P. Toda a obra passiva de se escrever sobre ela;assim, toda obra uma representao que funda acrtica. Mas h uma outra coisa, que um trabalhoonde o elemento verbal est de tal maneira acopla-do ao visual, at vir formar uma totalidade; a ver-bal e visual se confundem. Uma obra sempre temum significado, aparente ou no. Aparente no literrio nem ilustrao de uma idia. Mesmo ouso da palavra dado como elemento visual.

    D.S. O desenvolvimento das questes envolvidasno processo de desestetizao, morte da arte eantiarte, necessita da incorporao de um campoverbal para sua expresso?L.P. Depende do trabalho. A obra de Jac Leirner,realizada pela apropriao de materiais de avies,pode se representar muito bem sem que se saiba L Y G

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    muito de onde vem a matria, pois a relao vi-

    sual bem resolvida. Entretanto, ela fez questode contar que a cada viagem afanava um objeto dedentro do avio. Jac Leirner diz isto porque acre-dita que o fato vem acrescentar informaes ao seutrabalho. Neste caso, acredito que funciona comouma duplicidade.

    D.S. Uma obra pode existir independentemente deuma veia temtica, existir pelo puro exerccio dalinguagem, ou deve dialogar com temas que a so-ciedade est trabalhando?L.P. Penso que no deve ter tema, porque umaobra temtica, de repente, passa a ser uma ilus-trao desse tema, se torna um trabalho menor.O artista trabalha dentro de uma potica. Semprefico desconfiada com o cinema que discute issoou aquilo. Tem uma coisa que fazer um discur-

    so ilustrativo, e tem outra que trabalhar estasquestes fundamentais com muita fora. Se elano tiver essa profundidade e intensidade ela no uma obra de arte, uma tentativa frustrada dechegar a algum lugar.

    D.S. Como voc observa as relaes da arte com acultura de massas?

    L.P. A sociedade de consumo de massa tende aalienar o homem. Neste sistema a imagem usa-da para induzir ao consumo conspcuo e gerar umasrie de expectativas. Cria-se um clima ertico queleva simplesmente a consumir coisas. Nesse mo-mento que se comea a falar na morte da arte,que a arte no seria mais necessria ao homem.Mas eu creio que o homem continua a se expres-sar e que essa morte da arte no existe. A arte setransforma, surge uma nova expresso do homema partir de novas tecnologias. Tudo o homem devo-ra. Existe um lado da cultura de massas que ten-

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    ta devorar o homem como elemento de consumo,

    como objetivao e coisificao. Mas ao mesmotempo o homem tenta se expressar; ento a arte uma forma vital para o homem. Claro que ela novai ser igual s outras formas artsticas; surgemoutras e novas formas. Neste sentido, eu acreditoque a arte no morre. A morte da cultura umsegmento que conclui seu ciclo de trabalho e, porexemplo, declara que a pintura est morta. Eu nosou radical. Encontra-se uma sada. As coisas se

    modificam, mas permanecem presentes.D.S. Dentro de uma certa contextualizao his-trica, voc pertence gerao que passando peloprojeto construtivo, pautou-se na procura de valo-res propriamente plsticos, objetivos e concretos,e depois deslocou-se para um concreto tornadosemntico (Para usarmos uma expresso de Wal-demar Cordeiro). A pragmtica brasileira do ne-oconcretismo, especialmente do trio Clark-Oitici-ca-Pape, rompe com esta disciplina e capta para aarte um certo aspecto de antiarte, onde os valoresplsticos tendem a ser dissolvidos na plasticidadedas estruturas perceptivas e situacionais: a arteps-moderna de Mrio Pedrosa. Como se proces-sou esse deslocamento?L.P. Na realidade, ns estvamos fazendo ruptu-ras o tempo todo. A Lgia (Clark) j tinha umaexperincia bem maior que eu e o Hlio. Quan-do comeamos a fazer uma obra concreta, cons-trutiva, estvamos negando uma arte figurativamuito esclerosada. Ento, naquele momento, erauma ruptura. Mais adiante, quando sentimos quea entrada de cabea no racional e no matemticotambm havia se esclerosado, fizemos uma outraruptura. A surge o movimento neoconcreto, quevai introduzir os elementos de subjetividade, in-veno e quebra de categorias. O elemento de li-berdade dentro da arte. Quando a ruptura acaba,

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    ns continuamos um processo de ruptura indivi-

    dual. No trabalhamos mais em grupo e um nomais respondia pelo outro, mas, continuamos. uma questo de temperamento: h certos artistasque trabalham uma mesma questo a vida toda, serenovando dentro dela; outros trabalham de modomais sincopado, rompem com uma coisa e partempara outra. Os dois temperamentos so vlidos.No nosso caso, trabalhamos no em busca de umnovo, essa coisa to falada hoje, mas pela consta-

    tao das coisas saturadas, das coisas que j estodefinhando. Nessa medida, procuramos revitalizaressa linguagem, rompemos com certas coisas e nosvoltamos para outras. O Mrio fala, de uma formamuito bonita, que o exerccio experimental daliberdade, este exerccio que possibilita inven-tar novas linguagens.

    D.S. Estes conceitos refletem-se em obras situa-es como Roda dos prazeres, Divisor, Obje-tos de Seduo e at mesmo nos recentes Ama-zoninos. Me parece que a experincia fenomeno-lgica, a percepo coletiva e direta como realiza-o ambiental o eixo estrutural e a estratgiade insero no real, fundamentais na sua obra. possvel colocar isto?L.P. Acho que sim. Mas ao mesmo tempo eu andomuito, sempre olhando as coisas e me interessopor muitas delas. Assim, me alimento visualmente.Isto, claro, reflete no meu trabalho. J trabalheimuito com o lado arquitetnico, no no sentido daconstruo, mas da descoberta de novos espaossignificativos; me interessei pela arquitetura ind-gena; pela favela, pelo uso da cor nos subrbios,etc. Estou sempre fazendo uma pesquisa que vaise agregando ao meu trabalho. Algumas obras tmcomo caracterstica a ausncia de unidade, no um trabalho de autor. A Roda dos Prazeres eucriei, mas nada impede que qualquer pessoa expe-

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    rimente a obra. Espaos Imantados so suges-

    tes que dou ao espectador, para ele tambm des-cobrir e criar seus espaos.

    D.S. Sua obra nos requer para sua observao umadisponibilidade para o jogo, alm das ambigida-des significativas e do envolvimento sensorial. um jogo proposto pelo despistamento, onde vocprocura no se caracterizar como artista; mas aestrutura se mantm neste processo bastante mu-tvel, relacionado idia do devir. Como voc criaeste jogo?L.P. Eu gosto de ambigidade. No gosto da artefechada em si mesma. Detesto verdades absolu-tas. No que seja uma pessoa ambgua, sou mui-to clara naquilo que quero dizer; mas, ao mesmotempo, tenho horror em ser catalogada, ficar den-tro de determinado rtulo. No faz parte da mi-

    nha natureza. Tanto que o pr-socrtico que maisamo Herclito, o fluir perene, o rio que nuncabanha a mesma margem, ou a imagem do foco emconstante mutao. Me identifico muito com oHerclito, por causa desse fluir. O Hlio Oiticicauma vez me disse uma coisa interessante sobreisso que voc colocou muito bem, que tem um fiocondutor como se eu tecesse uma rede que vai le-vando todas essas experincias. Acho importantena arte esse espao de abertura para o outro. Amedida em que crio uma ambigidade, estou per-mitindo a voc tambm participar do trabalho sua maneira e no de uma nica que eu determi-naria. Abomino um ser fechado, duro, absoluto,imvel e imutvel.

    D.S. Como voc recebe a negao, por parte de

    Ferreira Gullar, dos procedimentos inventivos doneoconcretismo, e qual a relevncia das obras deOiticica e Clark para a atualidade?

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    L.P. Eu fico profundamente triste com o que o

    Gullar diz, porque ele deveria ter dito isto quandoeles estavam vivos. Na poca, havia um grande en-tusiasmo e o Gullar tambm participava desse en-tusiasmo. At admito que se refaam as opinies,mas porque negar uma coisa que no havia sidonegada at agora? Abandonar o prprio trabalho um direito. Essa anlise do Hlio e da Lygia estchegando um pouco tardia, principalmente porqueGullar foi amigo pessoal dos dois e escreveu mui-

    ta coisa entusiasmada sobre eles. A obra de Lygiaest mais oculta, talvez porque no tenha um pro- jeto como o H.O. A obra do Hlio est em progres-so, ela pode te alimentar. A obra se mantm vivano sentido de ser alimentadora e nisso creio queseu trabalho responde muito bem, assim como o deLygia. O Hlio participou intensamente de exposi-es, lanou livros, etc., e depois de sua morte j sefizeram muitas exposies. A obra de Lygia tam-

    bm profundamente importante, muito significati-va. Est na hora de se pensar uma grande expo-sio sobre ela. Foram dois artistas fundamentaisna arte brasileira.