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20/11/13 ISTOÉ Independente - versão para impressão www.istoe.com.br/assuntos/entrevista/detalhePrint.htm?idEntrevista=102755&txPrint=completo 1/6 Zygmunt Bauman "Vivemos tempos líquidos. Nada é para durar" Sociólogo polonês cria tese para justificar atual paranoia contra a violência e a instabilidade dos relacionamentos amorosos Adriana Prado A Semana > Entrevista | ISTOÉ Online | 24.Set.10 - 21:50 O sociólogo polonês radicado na Inglaterra Zygmunt Bauman é um dos intelectuais mais respeitados e produtivos da atualidade. Aos 84 anos, escreveu mais de 50 livros. Dois dos mais recentes, “Vida a crédito” e “Capitalismo Parasitário” chegam ao Brasil pela Zahar. As quase duas dezenas de títulos já publicados no País pela editora venderam mais de 200 mil cópias. Um resultado e tanto para um teórico. Pode-se explicar o apelo de sua obra pela relativa simplicidade com que esmiúça aspectos diversos da “modernidade líquida”, seu conceito fundamental. É assim que ele se refere ao momento da História em que vivemos. Os tempos são “líquidos” porque tudo muda tão rapidamente. Nada é feito para durar, para ser “sólido”. Disso resultariam, entre outras questões, a obsessão pelo corpo ideal, o culto às celebridades, o endividamento geral, a paranóia com segurança e até a instabilidade dos relacionamentos amorosos. É um mundo de incertezas. E cada um por si. “Nossos ancestrais eram esperançosos: quando falavam de ‘progresso’, se referiam à perspectiva de cada dia ser melhor do que o anterior. Nós estamos assustados: ‘progresso’, para nós, significa uma constante ameaça de ser chutado para fora de um carro em aceleração”, afirma. Em entrevista à ISTOÉ, por e-mail, o professor emérito das universidades de Leeds, no Reino Unido, e de Varsóvia, na Polônia, falou também sobre temas que começou a estudar recentemente, mas são muito caros aos brasileiros: ISTOÉ - Independente Imprimir

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Entrevista Bauman

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    Zygmunt Bauman

    "Vivemos tempos lquidos. Nada paradurar"

    Socilogo polons cria tese para justificar atual paranoia

    contra a violncia e a instabilidade dos relacionamentos

    amorosos

    Adriana Prado

    A Semana > Entrevista | ISTO Online | 24.Set.10 - 21:50

    O socilogo polons radicado na Inglaterra Zygmunt Bauman um dos intelectuais mais

    respeitados e produtivos da atualidade. Aos 84 anos, escreveu mais de 50 livros. Dois dos maisrecentes, Vida a crdito e Capitalismo Parasitrio chegam ao Brasil pela Zahar. As quaseduas dezenas de ttulos j publicados no Pas pela editora venderam mais de 200 mil cpias. Um

    resultado e tanto para um terico. Pode-se explicar o apelo de sua obra pela relativasimplicidade com que esmia aspectos diversos da modernidade lquida, seu conceito

    fundamental. assim que ele se refere ao momento da Histria em que vivemos. Os tempos solquidos porque tudo muda to rapidamente. Nada feito para durar, para ser slido. Disso

    resultariam, entre outras questes, a obsesso pelo corpo ideal, o culto s celebridades, oendividamento geral, a parania com segurana e at a instabilidade dos relacionamentos

    amorosos. um mundo de incertezas. E cada um por si. Nossos ancestrais eram esperanosos:quando falavam de progresso, se referiam perspectiva de cada dia ser melhor do que oanterior. Ns estamos assustados: progresso, para ns, significa uma constante ameaa de ser

    chutado para fora de um carro em acelerao, afirma. Em entrevista ISTO, por e-mail, o

    professor emrito das universidades de Leeds, no Reino Unido, e de Varsvia, na Polnia, falou

    tambm sobre temas que comeou a estudar recentemente, mas so muito caros aos brasileiros:

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    trfico de drogas, favelas e violncia policial.

    O que caracteriza a modernidade lquida?

    Zygmunt Bauman

    Lquidos mudam de forma muito rapidamente, sob a menor presso. Na verdade, so incapazes de

    manter a mesma forma por muito tempo. No atual estgio lquido da modernidade, os lquidos so

    deliberadamente impedidos de se solidificarem. A temperatura elevada ou seja, o impulso de

    transgredir, de substituir, de acelerar a circulao de mercadorias rentveis no d ao fluxo uma

    oportunidade de abrandar, nem o tempo necessrio para condensar e solidificar-se em formas

    estveis, com uma maior expectativa de vida.

    As pessoas esto conscientes dessa situao?

    Acredito que todos estamos cientes disso, num grau ou outro. Pelo menos s vezes,

    quando uma catstrofe, natural ou provocada pelo homem, torna impossvel ignorar as falhas.

    Portanto, no uma questo de abrir os olhos. O verdadeiro problema : quem capaz de fazer o

    que deve ser feito para evitar o desastre que j podemos prever? O problema no a nossa falta de

    conhecimento, mas a falta de um agente capaz de fazer o que o conhecimento nos diz ser necessrio

    fazer, e urgentemente. Por exemplo: estamos todos conscientes das conseqncias apocalpticas do

    aquecimento do planeta. E todos estamos conscientes de que os recursos planetrios sero incapazes

    de sustentar a nossa filosofia e prtica de crescimento econmico infinito e de crescimento infinito

    do consumo. Sabemos que esses recursos esto rapidamente se aproximando de seu esgotamento.

    Estamos conscientes mas e da? H poucos (ou nenhum) sinais de que, de prpria vontade,

    estamos caminhando para mudar as formas de vida que esto na origem de todos esses problemas.

    A atual crise financeira tem potencial para mudar a forma como vivemos?

    Pode ter ou no. Primeiramente, a crise est longe de terminar. Ainda veremos

    suas conseqncias de longo prazo (um grande desemprego, entre outras). Em segundo lugar, as

    reaes crise no foram at agora animadoras. A resposta quase unnime dos governos foi de

    recapitalizar os bancos, para voltar ao normal. Mas foi precisamente esse normal o responsvel

    pela atual crise. Essa reao significa armazenar problemas para o futuro. Mas a crise pode nos

    obrigar a mudar a maneira como vivemos. A recapitalizao dos bancos e instituies de crdito

    resultou em dvidas pblicas altssimas, que preciso ser pagas pelos nossos filhos e netos e isso

    pode empobrecer as prximas geraes. As dvidas exorbitantes podem levar a uma considervel

    redistribuio da riqueza. So os pases ricos agora os mais endividados. De qualquer forma, no so

    as crises que mudam o mundo, e sim nossa reao a elas.

    Ao se conectarem ao mundo pela internet, as pessoas estariam sedesconectando da sua prpria realidade?

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    Os contatos online tm uma vantagem sobre os offline: so mais fceis e menos

    arriscados o que muita gente acha atraente. Eles tornam mais fcil se conectar e se desconectar.

    Casos as coisas fiquem quentes demais para o conforto, voc pode simplesmente desligar, sem

    necessidade de explicaes complexas, sem inventar desculpas, sem censuras ou culpa. Atrs do seu

    laptop ou iPhone, com fones no ouvido, voc pode se cortar fora dos desconfortos do mundo offline.

    Mas no h almoos grtis, como diz um provrbio ingls: se voc ganha algo, perde alguma coisa.

    Entre as coisas perdidas esto as habilidades necessrias para estabelecer relaes de confiana, as

    para o que der vier, na sade ou na tristeza, com outras pessoas. Relaes cujos encantos voc nunca

    conhecer a menos que pratique. O problema que, quanto mais voc busca fugir dos inconvenientes

    da vida offline, maior ser a tendncia a se desconectar.

    E o que o senhor chama de amor lquido?

    Amor lquido um amor at segundo aviso, o amor a partir do padro dos bens

    de consumo: mantenha-os enquanto eles te trouxerem satisfao e os substitua por outros que

    prometem ainda mais satisfao. O amor com um espectro de eliminao imediata e, assim, tambm

    de ansiedade permanente, pairando acima dele. Na sua forma lquida, o amor tenta substituir a

    qualidade por quantidade mas isso nunca pode ser feito, como seus praticantes mais cedo ou mais

    tarde acabam percebendo. bom lembrar que o amor no um objeto encontrado, mas um produto

    de um longo e muitas vezes difcil esforo e de boa vontade.

    Nesse contexto, ainda faz sentido sonhar com um relacionamento estvel eduradouro?

    Ambos os tipos de relacionamento tm suas prprias vantagens e riscos. Em um

    mundo lquido, em rpida mutao, compromissos para a vida podem se revelar como sendo

    promessas que no podem ser cumpridas deixando de serem algo valioso para virarem

    dificuldades. O legado do passado, afinal, a restrio mais grave que a vida pode impor liberdade

    de escolha. Mas, por outro lado, como se pode lutar contra as adversidades do destino sozinho, sem a

    ajuda de amigos fiis e dedicados, sem um companheiro de vida, pronto para compartilhar os altos e

    baixo? Nenhuma das duas variedades de relao infalvel. Mas a vida tambm no o . Alm disso,

    o valor de um relacionamento medido no s pelo que ele oferece a voc, mas tambm pelo que

    oferece aos seus parceiros. O melhor relacionamento imaginvel aquele em que ambos os parceiros

    praticam essa verdade.

    O que explicaria o crescimento do consumo de antidepressivos?

    Voc colocou o dedo em um dos muitos sintomas da nossa crescente intolerncia

    ao sofrimento na verdade, uma intolerncia a cada desconforto ou mesmo ligeira inconvenincia.

    Em uma vida regulada por mercados consumidores, as pessoas passaram a acreditar que, para cada

    problema, h uma soluo. E que esta soluo pode ser comprada na loja. Que a tarefa do doente no

    tanto usar sua habilidade para superar a dificuldade, mas para encontrar a loja certa que venda o

    produto certo que ir superar a dificuldade em seu lugar. No foi provado que essa nova atitude

    diminui nossas dores. Mas foi provado, alm de qualquer dvida razovel, que a nossa induzida

    intolerncia dor uma fonte inesgotvel de lucros comerciais. Por essa razo, podemos esperar que

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    essa nossa intolerncia se agrave ainda mais, em vez de ser atenuada.

    E a obsesso pelo corpo perfeito?

    No o ideal de perfeio que lubrifica as engrenagens da indstria de cosmticos,

    mas o desejo de melhorar. E isso significa seguir a moda atual. Todos os aspectos da aparncia

    corporal so, atualmente, objetos da moda, no apenas o cabelo ou a cor dos lbios, mas os tamanhos

    dos quadris ou dos seios. A perfeio significaria um fim a outras melhorias. Na cirurgia plstica,

    so oferecidos aos clientes cartes de fidelidade, garantindo um desconto nas sucessivas cirurgias

    que eles certamente iro realizar. Assim como a indstria de celebridades, a indstria cosmtica no

    tem limites e a demanda por seus servios pode, a princpio, se expandir infinitamente.

    O que est por trs desse culto s celebridades?

    No s uma questo de candidatos a celebridades e seu desejo por notoriedade.

    O que tambm uma questo que o grande pblico precisa de celebridades, de pessoas que

    estejam no centro das atenes. Pessoas que, na ausncia de autoridades confiveis, lderes, guias,

    professores, se oferecem como exemplos. Diante do enfraquecimento das comunidades, essas

    pessoas fornecem assuntos-chave em torno dos quais as quase-comunidades, mesmo que apenas

    por um breve momento, se condensam para desmoronar logo depois e se recondensar em torno de

    outras celebridades momentneas. por isso que a indstria de celebridades est garantida contra

    todas as depresses econmicas.

    Como fica o futuro nesse contexto de constantes mudanas?

    Nossos ancestrais eram esperanosos: quando falavam de "progresso", se referiam

    perspectiva de cada dia ser melhor do que o anterior. Ns estamos assustados: progresso, para

    ns, significa uma constante ameaa de ser chutado para fora de um carro em acelerao. De no

    descer ou embarcar a tempo. De no estar atualizado com a nova moda. De no abandonar

    rapidamente o suficiente habilidades e hbitos ultrapassados e de falhar ao desenvolver as novas

    habilidades e hbitos que os substituem. Alm disso, ocupamos um mundo pautado pelo agora, que

    promete satisfaes imediatas e ridiculariza todos os atrasos e esforos a longo prazo. Em um mundo

    composto de agoras, de momentos e episdios breves, no h espao para a preocupao com

    futuro. Como diz um outro provrbio ingls: Vamos cruzar essa ponte quando chegarmos a ela.

    Mas quem pode dizer quando (e se) chegar e em que ponte?

    H cinco anos, a polcia de Londres matou o brasileiro Jean Charles de Menezes,alegando t-lo confundido com um terrorista. Por que o mundo est to

    paranico com segurana?

    Essa obsesso e a nossa gesto dos assuntos globais, responsvel por refor-la,

    constituem a ameaa mais terrvel nossa segurana. O fantstico crescimento das indstrias de

    segurana, juntamente com a crescente suspeita de perigo que ela evoca, so motivos para antever

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    uma piora das coisas. Se no por qualquer outro motivo, ento porque, na lgica das armas de fogo,

    uma vez carregadas, em algum elas devero ser descarregadas.

    No Brasil, a violncia uma questo especialmente preocupante. Como o sr.enxerga isso?

    Para comear, as favelas servem como uma lixeira para um nmero enorme de

    pessoas tornadas desnecessrias em partes do Pas onde suas fontes tradicionais de sustento foram

    destrudas para quem o Estado no tinha nada a oferecer nem um plano de futuro. Mesmo que no

    declararem isso abertamente, as agncias estatais devem estar felizes pelo fato de o povo nas favelas

    tomar os problemas em suas prprias mos. Por exemplo, ao construir seus barracos rapidamente e

    de qualquer forma, usando materiais instveis, encontrados ou roubados, na ausncia de habitaes

    planejadas e construdas pelas autoridades estaduais ou municipais para acomod-los.

    Essa ausncia do Estado abriu espao para os traficantes. O combate squadrilhas s vezes usado com justificativa para excessos da polcia. Por que

    tanta violncia?

    As relaes entre a polcia e as empresas de trfico de drogas so, na apropriada

    expresso de Bernardo Sorj (socilogo brasileiro, professor da Universidade Federal do Rio), nem de

    guerra nem de paz. Esse amor e dio entre as duas principais agncias de terror aumenta o estigma

    da favela como o local da violncia genocida. Ao mesmo tempo, porm, tambm contribui para a

    funcionalidade das favelas na manuteno do atual sistema de poder no Brasil. A polcia brasileira

    tem um longo histrico de tratamento brutal aos pobres, anterior proliferao relativamente recente

    das favelas. A brutalidade da polcia mesmo para ser espetacular. Como no particularmente bem

    sucedida no combate criminalidade e corrupo, a polcia, para convencer a populao de seu

    potencial coercitivo, deve assust-la e coagi-la a ser passivamente obediente.

    O sr. v uma soluo?

    Algo est sendo feito, mesmo que, at agora, no seja suficiente para cortar um n

    firmemente amarrado por dcadas, seno sculos. Um exemplo o Viva Rio (ONG que atua contra a

    violncia). Pequenos passos, talvez, sopros no fortes o suficiente para romper a armadura do

    ressentimento mtuo e indiferena moral de anos entre morro e asfalto no Rio. Mas a escolha ,

    afinal, entre erguer paredes de pedra e ao ou o desmantelamento de cercas espirituais.

    O que o sr. diria ao jovens?

    Eu desejo que os jovens percebam razoavelmente cedo que h tanto significado na

    vida quando eles conseguem adicionar isso a ela atravs de esforo e dedicao. Que a rdua tarefa

    de compor uma vida no pode ser reduzida a adicionar episdios agradveis. A vida maior que a

    soma de seus momentos.

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