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JANEI RO/FE VEREIRO DE 2014 I REVISTA DA ESPM 11

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Page 1: ENTREVISTA - josepastore.com.br · ENTREVISTA 1 JOSÉ PASTORE Alexandre - No fim de outubro, o se nhor escreveu um artigo para O Estado de S.Paulo em que pergunta, retorica mente,

JANEIRO/FEVEREIRO DE 2014 I REVISTA DA ESPM 11

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ENTREVISTA 1 JOSÉ PASTORE

Alexandre - No fim de outubro, o se­nhor escreveu um artigo para O Estado de S.Paulo em que pergunta, retorica­mente, se "O Brasil é o único certo''. O

texto cn·tica a oposição arraigada de sin­dicatos brasileiros quanto à meritocracia e à busca de ganhos de produtividade. No seu entendei; esse apego ao que cha­ma de "remuneração desvinculada de desempenho" é um fenômeno brasileiro?

Pastore - É um fenômeno internacio­

nal. Existe uma tendência mundial

de os sindicatos quererem manter a remuneração homogênea ou isonô­mica, desvinculada de produtividade.

Alexandre - É o que temos visto em Nova York e em outras grandes cidades americanas, onde os prefessores resis­tem à ideia de se estabelecerem rankings de melhores escolas e premiar os prc!fzs­sionais com resultados acima da média.

Pastore - Sim, mas, ao mesmo tempo

em que há resistência dos sindicatos, há avanços nas negociações. Nos Es­

tados Unidos, muitas cidades já estão

contratando professores com base no desempenho. É o caso também da

Coreia do Sul.

Alexandre - Em que sentido o senhor jaz essa provocação: se o Brasil sen"a o único país certo?

lada ao desempenho. Não só dos pro­fessores, mas em outras áreas. Será

que o Brasil é o único certo? Porque outros países, apesar da resistência,

estão conseguindo avançar e fazer contratações ligadas ao desempenho.

Alexandre - Talvez a resistência à me­ritocracia seja mais presente em nossa sociedade.

Pastore - Na nossa sociedade, ela é

vitoriosa. Nos países avançados, não. Ela é debatida, mas já se veem avan­ços no sentido de superá-la.

Alexandre - A resistência à merito­cracia não é nova no Brasil, mas tem se tornado até violenta. Que valores o senhor entende estarem por trás da postura de prcifessores do Rio de Janeiro que _ficaram em greve por três meses e invadiram a Câmara Municipal duas vezes, justamente porque não querem ser avaliados e submetidos a esse siste­ma meritocrático?

Pastore - Temos uma cultura baseada na crença de que as únicas proteções

que funcionam são aquelas garan­tidas pelo governo. Isso tem raízes históricas. Durante o período colo­

nial, tudo era garantido pelo Estado. Arrastamos essa herança cultural até hoje. Se analisarmos a Constituição

Federal do Brasil, verificaremos que

Pastore - O Brasil insiste em detonar a palavra "direito" aparece 76 vezes, todos os planos de remuneração atre- enquanto a palavra "dever" é citada

Se analisarmos a Constituição Federal do Brasil, verificaremos que a palavra "direito" aparece 76 vezes, enquanto a palavra "dever" é citada apenas quatro vezes

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apenas quatro vezes. A palavra "pro­dutividade" aparece duas vezes e a palavra "eficiência", uma. Então, veja

que na nossa Carta Magna já há essa concepção de que a lei é para garantir

mais direitos do que deveres.

Alexandre - A nossa Constituição dificulta a introdução da meritocracia na sociedade?

Pastore - Há, dentro da nossa Consti­

tuição, muitas fontes de agravamento da desigualdade e do protecionismo.

Por exemplo: como você pode ex­plicar racionalmente o fato de estu­

dantes da classe média alta e da elite passarem pelas melhores escolas

médias, que custam muito dinhei­ro, e, na hora em que entram numa universidade pública, como a USP,

reivindicam, batem o pé e conseguem gratuidade? Isso é garantido pela lei.

Uma lei de má qualidade, no meu entender, porque ela exacerba a de­

sigualdade. O Brasil não tem falta de leis, tem falta de leis de boa qualidade.

Alexandre - Quando vivemos, em ju­nho, as grandes manifestações popula­res de rua, a presidente Dilma Rousseff levantou, por poucos dias, a bandeira da convocação de uma assembleia cons­tituinte. A ideia de se mexer na nossa Constituição lhe parece boa?

Pastore - Muita coisa poderia ser me­

lhorada sem mexer na Constituição. Agora, se houver disposição para pro­

duzir uma Constituição mais moder­na e ajustada ao mundo globalizado

e competitivo, eu nada tenho contra. Mas não sinto que o ambiente seja este. Se houver a mudança, é capaz de

termos mais protecionismo, porque

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os nossos constituintes vão visar o voto, e não o país.

Alexandre - Alguns dos valores dos sindicalistas que o senhor criticou são compartilhados por uma parcela impor­tante dos estudantes, a qual tem se mos­trado ainda menos disposta a negociar. Em São Paulo, alunos da USP arromba­ram a porta da reiton"a, na base da mar­retada, porque o Conselho Universitário não mudou a forma de escolha do reitor.

Pastore - A juventude é parte dessa

cultura do garantismo legal. Tudo tem de ser garantido, sem nenhuma contrapartida de responsabilidade e deveres. A ideia do equilíbrio entre

direitos e deveres, que há na cultura anglo-saxónica, é praticamente des­conhecida entre nós. No campo do trabalho, isso é bem mais claro. N assa tradição trabalhista é a de estabelecer

todos os direitos por lei, e não por negociação. Na nossa legislação, só

há dois direitos negociáveis: salário e participação em lucros e resultados. Todo o resto é fixado por lei, como se fosse uma tarifação. Isso é diferente em países avançados, onde uma parte

pequena é garantida por lei e o restan­te, tradicionalmente, é negociado.

Alexandre - Já se falou muito sobre reforma trabalhista no Brasil, mas ela sumiu do debate político.

Pastore - Não vejo evolução nesse campo. O Brasil está vivendo uma cri­se institucional no que tange aos va­lores que sustentam as instituições, a Justiça do Trabalho, a legislação do trabalho, a área educacional etc.

Nós temos uma invasão crescente do garantismo legal, que se choca

A ideia do equilíbrio entre direitos e deveres, que há na cultura anglo-saxônica, é praticamente desconhecida entre nós. No campo do trabalho, isso é bem mais claro

contra a ideia de conquista negociada,

baseada no desempenho e no aperfei­çoamento. O Brasil tem chances de ir

bem na economia, mas tem ido mal

do ponto de vista institucional.

Alexandre - Só que muitos problemas institucionais acabam vazando, por assim dizer, para a economia.

Pastore - Sem dúvida. O Brasil não está isolado no mundo, onde parcei­ros e concorrentes estabelecem uma competição selvagem, baseada em

inovações, pesquisas e conquistas. Estamos ficando isolados dessas ca­deias globais de valor. Isso acontece porque não temos uma estimulação da criatividade, do desempenho.

Alexandre - Isso resulta na estagna­ção da produtividade da indústn·a.

Pastore - A produtividade só cresceu, na indústria brasileira, na década de

1970. Dos anos de 1980 para cá, ela evoluiu de forma desprezível. Ultima­mente, está parada. Parece até um ele­trocardiograma de morto, enquanto a produtividade de outros países está disparando, em especial a da China e a da Alemanha - um dos países que pagam os salários mais altos no mun­do. Lá, a produtividade é tão alta, que é barato pagar salários mais elevados.

No Brasil, é caro pagar m~smo os salá­rios mais baixos. Na área de serviços,

embora a baixa produtividade não

seja tão grave quanto na indústria,

está aquém do padrão internacional. Nossos serviços são precários e caros.

Alexandre - O que está por trás dessa estagnação tão prolongada da produti­vidade no Brasil?

Pastore - Em primeiro lugar, é a falta de investimento em pesquisa e ino­vação. A indústria fica defasada. Em

segundo lugar, é a baixa qualificação média dos trabalhadores. Por último,

ainda há muita empresa que trabalha com administração retrógrada.

Alexandre - O Jato de a qualificação média do trabalhador brasileiro ser bai­xa tem relação com a entrada de muita gente no mercado formal de trabalho?

Pastore - O tema é bem complexo. Uma linha de raciocínio diz que nos últimos dez anos o Brasil estimulou o crescimento baseado no consumo,

por meio de linhas de crédito, redu­ção do IPI e desoneração da folha de

pagamentos. O estímulo ao consumo gerou muitas oportunidades de tra­balho no setor de serviços, mas, como

na maioria dos casos são serviços de baixa qualidade, as pessoas que entraram no mercado de trabalho também têm baixa qualificação. En­tão, na média geral, isso compromete a produtividade total do país. Essa é uma posição teórica defendida por muitos economistas de respeito.

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ENTREVISTA 1 JOSÉ PASTORE

Alexandre - Isso, por si só, não seria negativo. As pessoas podem até não ser qualificadas, mas é melhor vé-las incor­poradas à força de trabalho, não?

Pastore - Melhor dentro do trabalho do que fora. Agora, no trabalho, elas adicionam pouco. Em re lação aos nossos concorrentes internacionais, elas nos deixam para trás. A corrida é em relação a um ponto móvel. Por exemplo: enquanto aumentamos em 1% a nossa produtividade, o coreano registra um ganho de 5% por lá. O alemão também, o japonês idem. Não podemos dizer que está melhor porque eles [os trabalhadores pouco qualificados) estão trabalhando. Mas em função daquilo que o país precisa, como parte da economia global, isso significa pouco, bem pouco.

Alexandre - O senhor começou a res­ponder à pergunta sobre a estagnação da produtividade falando de inovação. Na realidade, os índices de inovação que tenho visto estão caindo, e não au­mentando, com a provável exceção do setor agropecuário, no qual a inovação é importante por conta da Empresa Brasileira de Pesquisa Agropecuária (Embrapa). No último ranking interna­cional de inovação, o Brasil perdeu po­sições e aparece apenas no 56° lugar. ..

Pastore - O caso da agropecuária foi bem lembrado, porque mostra que, quando você investe em ideias,

como a Embrapa, a economia brilha, o país se desenvolve e desponta como líder mundial. Se você mantém tudo na base da proteção, tudo garantido por lei ou pelo Estado, os agentes econômicos são pouco estimulados a inovar. O Brasil sofre desse mal, se­cularmente. Aqui, existe um excesso de proteção. Para usar a palavra mais certa, de protecionismo.

Alexandre - Olhando por uma pers­pectiva histórica mais ampla, o senhor acredita que estamos vivendo um mo­mento turbulento numa rota de evolu­ção da nossa democracia que um dia nos levará a ser uma sociedade mais meritocrática e inovadora? Ou serà que estamos limitados, por uma questão his­tórica e cultural, em nossa capacidade de avançar por essa via?

Pastore - Eu não tenho bola de cris­tal, mas penso que o Brasil chegou a um ponto desafiador. O modelo de proteção pelo Estado não dá mais conta de manter a eficiência da eco­nomia. Não há condições de se cons­truir uma economia mais eficiente com esse protecionismo estatal que inibe a inovação, a criatividade, o desempenho, a produtividade e o avanço. Nos últimos 20 ou 30 anos, o mundo disparou. A produtividade da Coreia do Sul, por exemplo, é quase tão alta quanto a da Alemanha. O mundo em desenvolvimento foi con­vergindo para altos níveis de produ-

O Brasil está vivendo uma crise institucional no que tange aos valores que sustentam as instituições, a Justiça do Trabalho, a legislação do trabalho, a área educacional

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tividade. Nós ficamos estagnados. Se nós não mudarmos os estímulos, para instigar mais criatividade e produtivi­dade, o Brasil não terá muita chance.

Alexandre - Qual é o peso de fatores históricos na relação dos brasileiros com o trabalho?

Pastore - Não há dúvida de que o que acontece hoje tem raízes no passado. O

peso da história é grande. Fomos um país por muito tempo colonizado por um povo extremamente autoritário, que instigava pouco a criatividade. A empresa moderna dá aos empregados as linhas gerais do trabalho. Quem tem de encontrar as soluções são eles. Historicamente, nunca tivemos essa cultura de autonomia. Na escravidão, o senhor definia a tarefa especifica que o escravo tinha de cumprir. Essa raiz histórica vai longe.

Alexandre - Fica a sensação de que uma parcela da nossa cultura nacional é parte oculta do que chamamos de custo Brasil, em termos de competitividade.

Pastore - Concordo.

Alexandre - De onde mais vêm essas crenças e esses valores que Jazem o Bra­sil ser o país que é hoje?

Pastore - Aqui vou me valer do Sér­gio Buarque de Holanda. Temos uma cultura que começou com o espírito da apropriação. Ele teve um aspecto predatório muito grande para o cres­cimento do país no período do Brasil Colônia. Teve também reflexos na for­mação da personalidade do brasileiro.

Alexandre - Aproveito sua capacida-

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de de análise: é possível mudar valores

tão arraigados de um povo?

Pastore - Estamos vendo muitos países mudando valores. Em relação

à educação, ao trabalho, à ética pes­soal. É o caso da China, da Coreia do Sul, de Israel e de alguns países da América Latina, como o Chile. São

países que estão avançando. Não te­nho bola de cristal, mas sei que uma mudança desse tipo só pode dar cer­

to se acontecer de baixo para cima. Ou seja, se for induzida da economia

para a sociologia, da infraestrutura material para a superestrutura de valores. Precisamos sofrer mais para entender melhor a necessidade de

concorrer e competir. Na hora em que o país passar por um choque grande, talvez comece a mudar.

Alexandre - O senhor mencionou a

China, que passa por transformações

prefundas. Este exemplo, porém, leva a

uma discussão relevante: como lideran­

ças políticas identificadas com valores

meritocráticos e com o aumento da

produtividade, da inovação e da cria­

tividade poderiam promover reformas

igualmente profundas num ambiente

democrático, onde não cabe a ideia da

coerção de cima para baixo?

Pastore - No caso da China, que tem um regime autoritário, os governan­tes perceberam que só podem sobre­viver se a economia se desenvolver. Enquanto isso, no Brasil, o gover­nante sabe que a economia só pode crescer e se desenvolver enquanto lhe garantir votos. Para garantir o voto, o governo tem de satisfazer os valores do eleitorado - que são os valores da proteção e do estatismo.

Se você mantém tudo garantido por lei ou pelo Estado, os agentes econômicos são pouco estimulados a inovar. O Brasil sofre desse mal secularmente. Aqui, existe um excesso de proteção

Alexandre - Por essa análise, não há

saída. Se os valores do eleitorado são

de manutenção desse status quo e a

exigência do processo democrático é

atender a esses anseios, não vamos nos

mover, vamos?

Pastore - Esta é uma pergunta angus­tiante que faço para mim mesmo.

Alexandre - O Brasil é um dos poucos

países, entre as grandes economias, que

têm uma justiça do Trabalho indepen­

dente. De algum modo, isso é parte do

problema?

Pastore - É parte sim, mas o Brasil

não é o único. Outros países tam­bém têm Justiça do Trabalho, mas a maneira como a nossa opera é bem

peculiar.

Alexandre - Por quê?

Pastore - Porque a nossa Justiça do Trabalho tem poder normativo. Quer dizer, ao dar uma sentença, o juiz tem

a competência de expandi-la para toda uma categoria ou toda uma re­gião. Isso não existe em outras Justi­ças do Trabalho, até onde eu entendo.

Alexandre - A partir de esforços pon­

tuais, como programas de treinamento

de aprendizes do Senai/Senac, e de

casos conhecidos de empresas cha­

mando para si a responsabilidade por

melhorar a educação da sua força de

trabalho, como o senhor avalia o papel

da iniciativa pn'vada como indutora de

mudanças?

Pastore - Temos todos os tipos de empresário. Temos os empresários avançados, querendo melhorar o

capital humano do país. Isso é impor­tante não só para as empresas, mas também para o desenvolvimento da nação. Você vê muito empresário que

investe dinheiro próprio em pesquisa e desenvolvimento. Vê empreende­

dores que se arriscam bastante, mas ao lado deles está uma grande quanti­dade de empresários que continuam

querendo o protecionismo governa­mental. Aqui, você pode incluir até al­gumas multinacionais, que vêm aqui buscar a proteção do governo.

Alexandre - O que o Brasil tem a

ganhar enfrentando o desafio de uma

transformação cultural pró-meritocra­

cia, pró-livre iniciativa, pró-produtivi­

dade?

Pastore - O país ganharia mais liber­dade, mais competência, melhores condições para concorrer no mercado mundial, empregos melhores, educa­

ção de boa qualidade, saúde e segu­rança como não existem hoje.

Alexandre - E qual será a consequên­

cia de manter o rumo atual?

Pastore - Estagnação.

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