entrevista a marcola e o efeito bumerangue da violência

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ENTREVISTA A MARCOLA E O EFEITO BUMERANGUE DA VIOLÊNCIA Rocio Castro Kaustener * RESUMO: Este trabalho, inspirado no texto, amplamente difundido pela internet, do cineasta Arnaldo Jabor , simulando entrevista ao líder do Primeiro Comando da Capital (PCC) Marcola, tem como objetivo trazer uma reflexão sobre a violência na sociedade brasileira em particular, mas também na sociedade globalizada em geral. A reflexão é feita à luz das teorias que falam da construção das identidades como negação das diferenças que ameaçam a normalidade fictícia sobre a qual têm se assentado, ao longo da história, os diferentes sistemas de dominação - patriarcado, colonialismo e capitalismo. PALAVRAS-CHAVE: violência, identidades coletivas, patriarcado, colonialismo e capitalismo ABSTRACT: This work is inspired on Arnaldo Jabor’s text, widely heralded in the media . In it , Jabor simulates an interview with Marcola, leader of the criminal group known as The First Command of the Capital (PCC). The aim of this work is to discuss violence in Brazilian society as well as in contemporary society in general. In doing so, we try to use the theories that deals with the construction of identities, in such way that negates the differences which seem to threat the ficticious normality built, along the history, by the systems of domination such as patriarchalism, capitalism and colonialism. KEYWORDS: violence, colective identities, patriarcalism, colonialism and capitalism 1. INTRODUÇÃO Não há mais proletários, ou infelizes ou explorados. Há uma terceira coisa crescendo aí fora, cultivado na lama, se educando no absoluto analfabetismo, se diplomando nas cadeias, como um monstro Alien escondido nas brechas da cidade (Entrevista a Marcola, JABOR, 2006). Este trabalho, inspirado no texto do cineasta Arnaldo Jabor (2006) que simula, num exercício de alteridade, entrevista ao líder do Primeiro Comando da Capital (PCC) Marcola, e analisado à luz do estudo que Cabaço e Chaves (2004) fazem sobre * Doutora em Antropologia Social pela Universidade Complutense de Madri (UCM).

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ENTREVISTA A MARCOLA E O EFEITO BUMERANGUE DA VIOLÊNCIA

Rocio Castro Kaustener∗ RESUMO: Este trabalho, inspirado no texto, amplamente difundido pela internet, do cineasta Arnaldo Jabor , simulando entrevista ao líder do Primeiro Comando da Capital (PCC) Marcola, tem como objetivo trazer uma reflexão sobre a violência na sociedade brasileira em particular, mas também na sociedade globalizada em geral. A reflexão é feita à luz das teorias que falam da construção das identidades como negação das diferenças que ameaçam a normalidade fictícia sobre a qual têm se assentado, ao longo da história, os diferentes sistemas de dominação - patriarcado, colonialismo e capitalismo. PALAVRAS-CHAVE : violência, identidades coletivas, patriarcado, colonialismo e capitalismo ABSTRACT: This work is inspired on Arnaldo Jabor’s text, widely heralded in the media . In it , Jabor simulates an interview with Marcola, leader of the criminal group known as The First Command of the Capital (PCC). The aim of this work is to discuss violence in Brazilian society as well as in contemporary society in general. In doing so, we try to use the theories that deals with the construction of identities, in such way that negates the differences which seem to threat the ficticious normality built, along the history, by the systems of domination such as patriarchalism, capitalism and colonialism. KEYWORDS: violence, colective identities, patriarcalism, colonialism and capitalism

1. INTRODUÇÃO

Não há mais proletários, ou infelizes ou explorados. Há uma terceira coisa crescendo aí fora, cultivado na lama, se educando no absoluto analfabetismo, se diplomando nas cadeias, como um monstro Alien escondido nas brechas da cidade (Entrevista a Marcola, JABOR, 2006).

Este trabalho, inspirado no texto do cineasta Arnaldo Jabor (2006) que simula,

num exercício de alteridade, entrevista ao líder do Primeiro Comando da Capital

(PCC) Marcola, e analisado à luz do estudo que Cabaço e Chaves (2004) fazem sobre

∗ Doutora em Antropologia Social pela Universidade Complutense de Madri (UCM).

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o colonialismo, a violência e a identidade cultural em Frantz Fanon, apresenta uma

reflexão sobre a violência na sociedade brasileira em particular, mas também na

sociedade globalizada em geral, a partir das teorias que falam da construção das

identidades como negação das diferenças que ameaçam a normalidade fictícia sobre a

que têm se assentado, ao longo da historia, os diferentes sistemas de

dominação(patriarcado, colonialismo e capitalismo) que conformam o imperialismo

da globalização.

As diversas ondas de violência que o crime organizado executou na cidade de

São Paulo durante o inverno de 2006 aparecem aos olhos da maioria, como assim é

colocado pela mídia, como um fenômeno novo surgido do nada e motivado por um

instinto selvagem vulgarmente considerado como inerente à população das favelas. De

costas a historia de todo um complexo processo de exclusão que se remonta à época

da escravidão e que gerou a massa de favelados assentados junto a modernas e

luxuosas edificações nas cidades brasileiras, a elite brasileira, formada também por

nos, intelectuais de esquerda, tem se confinado nas áreas nobres das cidades que

oferecem segurança e acesso a todo tipo de consumo - desde hospitais e escolas

privadas para nossos filhos até shoppings centers e grandes supermercados – sem

imaginar - não queríamos imaginar - que o sangue do presunto diário desovado numa

vala (JABOR, 2006) na favela iria um dia atingir nosso cinema de shopping, nosso

supermercado e nosso condomínio fechado.

A realidade é que Brasil, segundo dados do Ministério de Justiça de 2003, ocupa

o terceiro lugar no mundo em homicídios vitimizando jovens, sendo que estados como

Rio de Janeiro e Pernambuco, e cidades como Recife, Vitória, São Paulo, Rio de

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Janeiro, Cuaibá e Macapá, superam o primeiro lugar da Colômbia, com destaque para

Recife, com uma taxa mais do que duas vezes maior. Segundo dados do IBGE, nas

décadas de 1980 e 1990, 598.567 brasileiros foram assassinados, na sua maioria

jovens entre 15 e 24 anos. Nos últimos cinco anos, apresença da violência juvenil

cresceu nada menos que 1.300% nos 50 maiores jornais do país (DE OLIVEIRA C.,

2005). Segundo estudo da ONG Viva Rio, entre 1987 e 2000 morreram mais

adolescentes por ferimento à bala no rio de Janeiro do que em países de guerra civil

declarada – só entre 1994 e 1998 morreram 12 mil (KEIL, 2005). Dados do BID de

1999 mostram que as regiões que possuem maiores taxas de crescimento da

criminalidade são as que apresentam as menores taxas de desenvolvimento

econômico, o que supõe uma perca do 10.5% do PIB em razão da falta de segurança.

Segundo levantamento do Ministério de Justiça de 1995 a 1997 houve um aumento de

presos por ano da ordem de 11.500, um total de 46 mil presos a mais, ascendendo a

um total de 194.074, Com esse ritmo seria necessário construir 14 presídios por ano

para abrigar os novos condenados (GOMES, 2005).

Contudo, a elite continua apostando pela “normalidade” trazida pelo progresso,

um progresso baseado cada vez mais na aparência e nos bens materiais que reduz as

condições de cidadania - da que tanto nos intelectuais gostamos de falar - à potência

consumidora. Nossos favelados no podem ir a escolas privadas, menos ainda a

universidades públicas, mas também querem ser cidadãos, querem consumir. Esse

desejo está internalizado numa nova geração que sabe que é cada vez mais difícil,

inclusive para os instruídos e diplomados, se inserir no mercado de trabalho. Assim é

como, atendendo a suas demandas, surge o etos do guerreiro (ZALUAR, 2004) do

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tráfico de drogas - as multinacionais do pó (JABOR, 2006), que afeta preferentemente

aos jovens homens. Considerando este fato, concordamos com Oliveira quando diz

que

A violência juvenil é um pedido de socorro, e se este não é escutado ou, até mesmo evoca represálias em resposta, há mais chances do agravamento da situação, ampliada pelos ressentimentos mútuos e desejos de vingança que se perpetuam, sem cessar, na paisagem brasileira (OLIVEIRA C., 2005: 23).

O objetivo das reflexões que trazem este trabalho é alertar sobre a gravedade de

convivir com uma cultura que termina se habituando à violência, aceitando-la como

normal e, seguindo os conselhos que Jabor coloca na voz de Marcola, enfatizar sobre a

necessidade de nos, intelectuais, desistir de defender a “normalidade”, pois não há

mais normalidade alguma. Vocês precisam fazer uma autocrítica da própria

incompetência. (JABOR, 2006).

Como metodologia para nossa análise estabelecemos uma relação entre as

diversas teorias da filosofia, psicologia, sociologia e antropologia que têm estudado a

formação da identidade em sua dialética com a diferença e a violência como efeito

bumerangue dos sistemas de dominação baseados na construção de identidades

coletivas – de gênero, etnia e classe - na base de anulação das diferenças individuais.

Basicamente este trabalho é um exercício de alteridade tal e como nos aconselha a

metodologia de antropólogos como Clifford Geertz e Roberto da Matta, tentando

cruzar os caminhos da empatia e a humildade. É preciso sentir a marginalidade, a

solidão e a saudade, admitir que o homem não se enxerga sozinho, que precisa de

outro como seu espelho e seu guia (DA MATTA, 1987: 173).

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2. IDENTIDADE, DIFERENÇA, ALTERIDADE E VIOLÊNCIA

Vocês têm mania de humanismo. Nós somos cruéis, sem piedade. Vocês nos transformam em superstars do crime. Nós fazemos vocês de palhaços ...A morte para vocês é um drama cristão numa cama, no ataque do coração... A morte para nós é o presunto diário, desovado numa vala (Entrevista a marcola, JABOR, 2006)

Desde que nascemos somos capturados por imagens que dizem de nós e olhares que nos fazem marca...transitamos no mundo sempre à procura de responder àquilo que se espera de nós (LANIUS,2005: 143).

A identidade é resultado de um processo discursivo com o outro em

constante transformação de tal forma que Hall (1992) nós diz que não podemos falar

de identidade mas de identificação. O processo de identificação se inicia nos primeiros

anos de vida no seio da família quando a criança sai da fase egocêntrica na qual ela é o

centro do mundo e começa a diferenciar seu eu separadamente do de seus

progenitores. É a fase do espelho de Lacan, na qual, segundo interpretação de

Woodword (2000:64), o sentimento de identidade surge da internalização das visões

exteriores que ela tem de si própria. Assim é como se forma a subjetividade, da

objetivação do mundo exterior que, pela sua vez, constitui o outro, o outro que não sou

eu, que é diferente a mim, o diferente. Nesse processo de subjetivação pela

objetivação se inicia todo um ciclo dialético com a diferença no qual, como fala

Rolnik (1999:160) o outro nos arranca permanentemente de nós mesmos e cada vez

que encarnamos uma diferença nos tornamos outros. De tal forma que nossa natureza

é essencialmente produção de diferença e a diferença é gênese de devir-outro.

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O outro, diferente, representa para o eu o desconhecido, o caos e, num mundo

exterior, que apresenta a realidade como estável, imóvel, predecível e controlada por

normas para a integração e a ordem social tal e como foi formulada pelo pensamento

positivista ainda predominante na atualidade, o caos é uma ameaça porque

desestabiliza, desequilibra. Assim é como Rolnik (1999) explica como é formada a

visão negativa do diferente, porque representa o caos que desequilibra e nos aterroriza,

e a identidade sofre o impacto do embate com o outro, como o diferente caótico que

quer nos desequilibrar. Então o eu passa a desenvolver mecanismos de defesa que lhe

proteja do caos desequilibrador que para ele representa o outro, o diferente, fechando-

se em seu próprio eu, transformando-se de sujeito produtor de diferenças por natureza,

em sujeito marginalizador dessas diferenças.

Nossa consciência torna-se totalitária e, segundo Rolnik (1999:168), essa

consciência está na base de nossa moral moderna que se nega a compreender que o

caos é só fatal exatamente quando nos recusamos a admiti-lo em sua positividade,

obstruindo qualquer movimento de criação. Mas, da mesma forma que a física

quântica demonstrou que o mundo está movido pelo caos permanente, a realidade

social não é estável nem imutável, é um processo de constante mudança motivada pela

interação social, que é sempre uma interação com a diferença. Se nossa moral e nossa

consciência totalitária não permitem a criação porque obstruem qualquer movimento

na sua direção, ela vai criar destruição - quantas guerras tem se declarado em nome da

única verdade religiosa, em nome da ordem democrática, quanta violência tem se

gerado em nome da ordem e o progresso?

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Impossibilitados pelo terror de construir nossa identidade no caos positivo e

criativo do ser – porque o ser sempre está se criando e re-criando na dialética com a

interação social, a mesma dialética pela qual o outro nos faz a nós – tentamos construí-

la na base aparentemente sólida e estável do material, do ter. Assim também viramos

de sujeitos criativos da diferença a sujeitos produtivos e consumidores do consumo

standarizado num mundo em que os ricos, cada vez menos e mais ricos, vivem com

medo da concorrência e os pobres, cada vez mais e mais pobres, vivem a violência de

estar compelidos ao consumo sem recursos para consumir. Como nos fala Kurz

(1998), não é mais um tempo de esperança, mas um tempo de medo. Os trabalhadores

vivem com o terror de ser demitidos, os professores com o terror de ser ameaçados

pelos estudantes, os pais com a incerteza de dar um futuro para seus filhos e os filhos

com a repulsa do horror no qual têm crescido e o desejo ardente do “ser no ter” que

tem mamado desde crianças.

A diferença nos aterroriza, e o sujeito da moral é envolvido por este terror às

mudanças e ao caos que representa o diferente. O sujeito “normal” vive num constante

terror que o nível de destruição e a violência atual estão evidenciando na forma de

carros blindados e cercas elétricas. É o mesmo terror de nos enfrentar com o caos de

nossa própria identidade, reafirmada na base fictícia da estabilidade material num

mundo cada vez mais inestável, que nos leva ao desencontro inclusive com nossos

pares, ao desentendimento com nossos filhos e finalmente em muitos casos, ao

terapeuta. Como diz Clifford Geertz (1998), vivemos vidas padronizadas de desespero

que tentamos resolver através de expertos estrategistas, e estrategistas expertos, que

com “fórmulas mágicas” pretendem dar sentido a nossas vidas, principalmente para

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administrar melhor nosso medo, medo ao caos que enxergarmos como negativo – o

produtor principal do estresse que a maioria de nos sofre.

A análise que nos oferece Rolnik da construção da identidade na base da

anulação da diferença – fato definido por Geertz (2001:117) como a tragédia

antropológica motivada pela lastimável confusão que assalta os homens quando eles

não compreendem a fala uns dos outros e julgam mais fácil transformá-los em

monstros conhecidos do que reconhecê-los como diferentes - no é nova na história do

conhecimento e está na base da construção de uma cultura de dominação através da

violência. Assim, na dialética hegeliana o senhor reconstrói o escravo como objeto; na

Tª da legitimação de Weber (1972), existem dominantes porque existem dominados;

para Sartre (1975), no seu Retrato do colonizador, a impossível desumanização do

oprimido transforma-se em alienação do opressor; levando a raciocínio a nível

psicológico, Simone de Beauvoir (1987) diz que nos afirmamos como sujeito

constituindo ao outro como objeto; para Fanon (1983), o homem é humano na medida

que se impõe a outro homem para ser reconhecido por ele; no Manifesto Antropófago

de Oswald de Andrade (1972), a identidade brasileira foi feita de tudo quanto o

colonizador “devorou”; o elo perdido de Oliveira (1987), quando se refere á carência

para o negro de una identidade de classe em um sistema de classes, se deve à falta de

identificação do um frente ao outro. Como observa Hall (1999:63), a identidade

nacional foi construída sobre a base de culturas separadas que só foram unificadas

por um longo processo de conquista violenta, isto é, pela supressão forçada da

diferença cultural.

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Assim, as identidades coletivas – de gênero, etnia e classe - culturalmente tem

sempre se construído na base de normas e valores impostos pela força, pela violência

exercida pelos diferentes sistemas de dominação que apresentam as diferenças como

ameaçadoras da ordem por eles estabelecidos. Esse fato tem sido uma constante na

história da humanidade, como analisaremos através dos três grandes sistemas de

dominação – patriarcado, colonialismo e capitalismo – que têm estabelecido as

diferenças socioculturais em torno as três grandes categorias de desigualdade: gênero,

etnia e classe. A reflexão sobre o desenvolvimento histórico destes sistemas de

dominação nos leva à observação de que a dominação está relacionada com a negação

do direito à diferença biológica, cultural ou religiosa e à negação ao direito da

igualdade social sob a criação de diferenças sociais que estimam as condições dos uns

(homens, brancos e ricos) em base ao detrimento, inferiorização e subjugação dos

outros (mulheres, minorias étnicas ou não- brancos e pobres). Partimos do fato de que,

mesmo que os sistemas democráticos tenham evolucionado muito, as relações

hierárquicas continuam sendo consideradas como formas naturais e necessárias de

organização social. Este pensamento é muito mais facilmente “racionalizado” quando

existem diferencias biológicas, como as de sexo e raça, na medida em que se utilizam

para justificar a naturalização das diferenças sociais (STOLKE,1990).

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3.4. A GLOBALIZAÇÃO IMPERIALISTA CRIA AO OUTRO, O E XCLUÍDO, COMO VIOLENTO

Vocês intelectuais não falavam em luta de classes, em “seja marginal, seja herói”? Pois é: chegamos, somos nós! Ha, ha... Vocês nunca esperavam esses guerreiros do pó, né? (Entrevista a Marcola ,JABOR, 2006).

Campo privilegiado para semear condutas compulsivas como o consumo e a

violência do eto do guerreiro na procura desenfreada por uma identidade, a juventude

é o lugar onde se materializam os conflitos de uma sociedade (DA ROSA, 2005, p.

123) que cada vez faz mais apologia da violência através da mídia:

Uma criança nos Estados Unidos está exposta a uma média de 41 mortes ou atos de violência para cada hora de desenho animado. Chegando ao sétimo ano do primeiro grau terá visto oito mil assassinatos e cem mil atos de violência. Assim, a mídia produz a reproduz a cultura de consumo, da violência e do sexo, a fim de assegurar para as corporações o mercado de que necessitam (ROUANET, 2000:67).

Esta nova geração, que cresce com a crise de desemprego conseqüente dos

processos de globalização, forma parte do contingente dos excluídos: já não servem

nem como mão de obra a ser explorada. Sempre vistos pela oligarquia como a massa

preguiçosa incapaz de produzir (OLIVEIRA, 1987), passam a ser identificados como

marginais e, potencialmente, protagonistas da delinqüência e violência urbanas. A

história da construção das identidades coletivas tem lhe conduzido aos momentos nos

quais a nova geração, o futuro do planeta, sofre toda esta realidade globalizada que

reforça a identidade do outro, o excluído, como violento, sob o etos do guerreiro:

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A recusa em aceitar que novas formas de associação entre criminosos tivessem mudado o cenário não só da criminalidade, mas também da economia e da política no país (...) deixou livre o caminho para oprogressivo desmantelamento nos bairros pobres daquilo que havia de rica vida associativa, tão importante no direcionamento de suas demandas coletivas e da sua sociabilidade positiva, civilizada. Deixou espalhar-se entre alguns jovens pobres um etos guerreiro que os tornou insensíveis ao sofrimento alheio (...) e permitiu abalar a civilidade dos moradores do Rio de Janeiro, que fora construída ao longo de décadas, principalmente pelos seus artistas populares, os sambistas (ZALUAR, 2004: 8)

Este jovem excluído da modernidade que procura sua identidade no etos do

guerreiro concentra-se nas grandes metrópoles que, só nos últimos 50 anos na

América Latina e no Caribe, têm se expandido horizontalmente ocupando territórios

que são mais de 10 vezes dos que foram ocupados nos 400 anos anteriores a seu

desenvolvimento (ROJAS, 2000). Considerando que América Latina abriga as

maiores metrópoles do mundo, a região se coloca também na vanguarda de suas

grandes contradições. São Paulo é vivo exemplo disso: setores da cidade similares a

Boston convivem com bairros de favelas do nível de Haiti. As grandes metrópoles

brasileiras, ao assimilar com grande capacidade de adaptação, flexibilidade e

criatividade os condicionantes da modernidade sem ter aniquilado seu passado

histórico colonial-escravocrata, reproduzem, em escala menor, o fenômeno da

distribuição da riqueza que caracterizou ao Brasil com o nome de Belindia (CASTRO,

2004). Constituem-se em palco predileto e campo fértil para a reprodução da exclusão

social.

Alba Zaluar (2004) tem observado que, apesar da escolaridade dos jovens da

periferia das grandes cidades ter aumentado significativamente em relação a períodos

anteriores, sua integração na sociedade é muito mais difícil. Segundo pesquisa de

Menezes e Carrera-Fernandez (2001), sobretudo a partir da década de 1990 se

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fortalece a exclusão social ao reduzir-se também as oportunidades ocupacionais dos

jovens, não só nos setores tradicionais da economia, mas também nos tecnicamente

mais modernos, ao mesmo tempo que aumenta a exploração do trabalho realizado por

jovens, por tratar-se de uma mão de obra ainda pouco qualificada em relação ao

níveis exigidos pelo mercado de trabalho (MENEZES eCARRERA-FERNANDEZ,

2001: 80).

A exclusão gera violência, porque o excluído não se sente como cidadão na

sociedade. Não só não têm direitos, mas também está sobrando, está incomodando, já

não serve nem como escravo. É convertido em lixo, essa é a maior agressão que se

pode cometer contra o ser humano. Indiretamente, a sociedade está desejando a sua

eliminação, mentalmente sempre está executando um assassinato. Assim a violência

chega ao seu clímax produzindo, como efeito bumerangue, os assassinatos, entre

outros muitos, do crime organizado que aterroriza o Brasil inteiro.

5. IDENTIDADE E VIOLÊNCIA COMO EFEITOS BUMERANGUE D O CAOS COMO NEGATIVO

Nós só aparecíamos nos desabamentos no morro ou nas músicas românticas sobre a “beleza dos morros ao amanhecer”, essas coisas... Agora, estamos ricos com a multinacional do pó. E vocês estão morrendo de medo (Entrevista a Marcola ,JABOR, 2006).

Foi Sartre, em seu “Retrato do colonizado” (1975), o primeiro em descrever o

efeito bumerangue da violência que estava surgindo durante o processo de

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descolonização dos territórios africanos pelos europeus na décado dos 50 do século

pasado. Assim, refletia que

Basta que (...) os recém-nascidos (dos países do Terceiro Mundo) tenham que temer a vida um pouco mais que a morte, e a torrente da violência rompe todas a barreiras (...) é o momento do bumerangue, o terceiro tempo de violência; volta-se contra nós, atinge-nos e, como de costume, não compreendemos que é nossa (SARTRE, apud CABAÇOS e CHAVES, 2004:68).

Podemos dizer que o efeito bumerangue se globaliza ao tempo que se

globalizão as populações com as migrações, se espalham condutas de consumo e se

explicitam os conflitos interculturais – religiosos, étnicos e nacionalistas - que afetam

primordialmente e uma vez mais às “minorias étnicas” do Terceiro Mundo, em

sociedades em que a superioridade do homem sobre a mulher continua sendo

socialmente aceita.

Na globalização, o poder se faz muito perigoso, devido à dificuldade para ser

combatido, pois está em todos lados, mas não é visível. É o poder disciplinar de

Foucault (1992), que aparentemente não usa a força física, mas a escravidão das

mentes através do consumismo e da exclusão, sendo que hoje, apesar do crescimento

econômico mundial e do progresso tecnológico, a fome mata mais que as guerras -

como presenciamos no caso dramático da África. Na realidade, poderíamos falar que o

poder de nossos dias se serve da fome para continuar fazendo a guerra, declarada,

enquanto uma guerra não declarada ha surgido, já de forma organizada em São Paulo,

com as multinacionais do pó do crime organizado querendo se inserir como

consumidores.

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É uma guerra não declarada de fome de ser alguém, ter identidade. É a fome das

marcas, do consumo, porque as novas gerações já interiorizaram a identidade da

mordenidade: ser e ter. Mencionamos os conflitos não explícitos entre o amo e o

escravo de Hegel, o branco e o negro de Fanon, o homem e a mulher, de Beauvoir. E

agora, é o conflito explícito em forma de guerra não declarada do crime organizado no

Brasil, que poderia ser interpretado como resposta ao poder disciplinar cujo

instrumento de dominação tem sido sempre, usando a visão metafórica de Foucault

(1992), uma guerra entre raças (ou tribos, como nas antigas hordas primitivas) –a

super-raça branca e a sub-raça não branca- que o social-darwinismo a legitimou com

argumentos biológicos e o marxismo a traduziu em termos de classe. Só falta lembrar

a Foucault que a guerra historicamente tem sido instrumento de supremacia masculina

e que os líderes da super-raça sempre tem sido homens.

No mundo atual continua, pois, predominando os valores masculinos, a cultura

da globalização continua sendo regida em “Nome do Pai”, sob uma nova aparência: do

grande patriarca progenitor da espécie e chefe de sua tribo, evoluiu ao executivo da

cultura ocidental – homem branco e proprietário, com formação altamente

especializada nas melhores universidades da Europa e Estados Unidos, que traspassa

os estados como se foram tribos, avalado pelo sucesso econômico que lhe garante a

sua eficácia competitiva para alimentar a fantasia da normalidade sob a ordem e

progresso conforme prega a bandeira brasileira. Mas, esquecendo que a identidade se

forma na relação com o outro, ao excluir ao outro está se excluíndo a sim mesmo.

Assim o olhar do vitimado desestabiliza o mundo dos satisfeitos e aponta para a

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busca necessária de alternativas (RUIZ, 2003: 260). As identidades precisam ser

reajustadas e reconstruidas.

6. ALTERNATIVAS: IDENTIDADE CONTRUÍDA NO SENSO DE ALTERIDADE E A TOLERÂNCIA À DIVERSIDADE COMO EFEITO S BUMERANGUE DO CAOS POSITIVO

Nós somos o início tardio de vossa consciência social... Viu? Sou culto... Leio Dante na prisão... (Entrevista a Marcola, JABOR, 2006)

Apelando ao inconsciente coletivo de Jung, qualquer europeu deve poder

responder pelos crimes cometidos pela barbárie nazista, como pela barbárie colonial, e

a barbárie do crime organizado. A alteridade nos coloca frente à responsabilidade

coletiva. Por isso a necessidade de uma educação voltada para o desenvolvimento do

senso de alteridade, ja que a violência pode ser interpretada como um grito de

identidade, de dizer - estamos aqui!, não nos ignorem porque somos diferentes.

Para compreender quando começa o processo de senso de alteridade precisamos

lembrar que nossa identidade se inicia na alteridade no seio da família. Entendemos

que as relações de parentesco, mesmo que para a maioria da população permanecem

importantes, especialmente no interior da família nuclear, já não são os veículos de

laços sociais intensamente organizados através do espaço e o tempo. Como observa

Giddens (1991) cada vez mais são as organizações desencaixadas que ligam práticas

locais com relações sociais globalizadas as que organizam nossa vida cotidiana. Com

tudo, continua nos pesando o passado comum, os valores transmitidos de geração em

geração, a história construída coletivamente. A família, qualquer que seja, continua

sendo o primeiro âmbito social onde se desenvolve a identidade do eu, o qual, desde

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que nasce vê espelhada nela as regras e contradições da sociedade. Em função desta

interação sente suas potencialidades como possíveis realidades ou possíveis

frustrações. Assim, concordamos com Szymanski (1990:23) quando diz que

a descoberta de que os anos iniciais de vida são cruciais para o desenvolvimento emocional posterior focalizou a família como o lócus potencialmente produtor de pessoas saudáveis, emocionalmente estáveis, felizes e equilibradas, ou como o núcleo gerador de inseguranças, desequilíbrios e toda sorte de desvios de comportamento.

Mas, como analisa Heller (1998), a maioria das famílias burguesas não

fomentam o espirito de coletividade entre as crianças. E se paramos a pensar, é porque

não há tempo – a sensação de urgência estudada pelos teóricos da contemporaneidade

como Giddens e Foucault, entre outros. Nosso tempo está dominado pela produção

para o consumo de uma forma compulsiva, e os valores de compartilha e vida

comunitária que, de certa forma, umas vezes bem e outras mal, fornecia a família,

ficam esquecidos, esquecendo também que é a família que educa à nova geração, é a

base de operações de toda nossa vida cotidiana, o lugar de partida e o ponto de

retorno (HELLER, 1998: 36). Por isso nossa análise começou pela família e termina

por ela, porque as mudanças começam dentro dela.

Esta análise pretende contribuir para a reflexão autocrítica, desde que nós

intelectuais, com medo ao caos criativo que se alimenta das diferenças, sustentamos a

normalidade fictícia através de nossas práticas normalizantes tanto na família como

nas instituições reproduzendo dentro delas o mundo hierárquico exterior, e

alimentando os sistemas de dominação que sustentam a exclusão como conseqüência e

a violência como resposta, ao mesmo tempo em que construímos teorias sobre a

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necessidade de mudar essa realidade. Alimentamos também, pois, a esquizofrenia

entre o discurso e a prática, fenômeno que incorporamos como inerente a nossa

identidade de intelectuais.

Ressaltamos a importância de policiar estas atitudes e condutas na medida que,

ao estarem tão inseridas em nosso cotidiano, invisivelmente perpetuam praticas de

poder-dominação sobre nossos diferentes: nossos técnicos, estudantes, funcionários e

empregados domésticos, porque, tal e como observa Nunes (1999, p. 121),

Os sinais portadores de diferencição intrínsecos à vivência cultural dos membros da elite, como a atitude corporal confiante, a desenvoltura no falar, o olhar direto, a capacidade de pedir um serviço e mesmo de mandar, exercida desde a infância na relação com os empregados domésticos, são captados pelas pessoas, e negá-los seria falsear a realidade

Precisamos nós, intelectuais, tomar consciência de que não estamos acima das

teorias que construímos. Também nós, analistas críticos da dominação, somos

escravos de nossa superioridade/inferioridade e desenvolvemos condutas neuróticas

através das quais, para reafirmar nossa identidade, negamos ao outro. Precisamos de

compreender que essa violência que se volta contra nós é também nossa.

Recebido em maio de 2009

Aprovado em julho de 2009

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ANEXO Entrevista a Marcola (simulacro). Arnaldo Jabor. Jornal O Globo, segundo caderno, maio de 2006 ‘Você é do PCC?” — Mais que isso, eu sou um sinal de novos tempos. Eu era pobre e invisível... vocês nunca me olharam durante décadas... E antigamente era mole resolver o problema da miséria... O diagnóstico era óbvio: migração rural, desnível de renda, poucas favelas, ralas periferias... A solução é que nunca vinha... Que fizeram? Nada. O governo federal alguma vez alocou uma verba para nós? Nós só aparecíamos nos desabamentos no morro ou nas músicas românticas sobre a “beleza dos morros ao amanhecer”, essas coisas... Agora, estamos ricos com a multinacional do pó. E vocês estão morrendo de medo... Nós somos o início tardio de vossa consciência social... Viu? Sou culto... Leio Dante na prisão... — Mas... a solução seria... Solução? Não há mais solução, cara... A própria idéia de “solução” já é um erro. Já olhou o tamanho das 560 favelas do Rio? Já andou de helicóptero por cima da periferia de São Paulo? Solução como? Só viria com muitos bilhões de dólares gastos organizadamente, com um governante de alto nível, uma imensa vontade política, crescimento econômico, revolução na educação, urbanização geral; e tudo teria de ser sob a batuta quase que de uma “tirania esclarecida”, que pulasse por cima da paralisia burocrática secular, que passasse por cima do Legislativo cúmplice (Ou você acha que os 287 sanguessugas vão agir? Se bobear, vão roubar até o PCC...) e do Judiciário, que impede punições. Teria de haver uma reforma radical do processo penal do país, teria de haver comunicação e inteligência entre polícias municipais, estaduais e federais (nós fazemos até conference calls entre presídios...) E tudo isso custaria bilhões de dólares e implicaria numa mudança psicossocial profunda na estrutura política do país. Ou seja: é impossível. Não há solução. — Você não têm medo de morrer? Vocês é que têm medo de morrer, eu não. Aliás, aqui na cadeia vocês não podem entrar e me matar... mas eu posso mandar matar vocês lá fora... Nós somos homens-bomba. Na favela tem cem mil homens-bomba... Estamos no centro do Insolúvel, mesmo... Vocês no bem e eu no mal e, no meio, a fronteira da morte, a única fronteira. Já somos uma outra espécie, já somos outros bichos, diferentes de vocês. A morte para vocês é um drama cristão numa cama, no ataque do coração... A morte para nós é o presunto diário, desovado numa vala... Vocês intelectuais não falavam em luta de classes, em “seja marginal, seja herói”? Pois é: chegamos, somos nós! Ha, ha... Vocês nunca esperavam esses guerreiros do pó, né? Eu sou inteligente. Eu leio, li 3.000 livros e leio Dante... mas meus soldados todos são estranhas anomalias do desenvolvimento torto desse país. Não há mais proletários, ou infelizes ou explorados. Há uma terceira coisa crescendo aí fora, cultivado na lama, se educando no absoluto analfabetismo, se diplomando nas cadeias, como um monstro Alien escondido nas brechas da cidade. Já surgiu uma nova linguagem. Vocês não ouvem as gravações feitas “com autorização da Justiça”? Pois é. É outra língua. Estamos diante de uma espécie de pós-miséria. Isso. A pós-miséria gera uma nova cultura assassina, ajudada pela tecnologia, satélites, celulares, internet, armas modernas. É a merda com chips, com megabytes. Meus comandados são uma mutação da espécie social, são fungos de um grande erro sujo. — O que mudou nas periferias? Grana. A gente hoje tem. Você acha que quem tem US$40 milhões como o Beira-Mar não manda? Com 40 milhões a prisão é um hotel, um escritório... Qual a polícia que vai queimar essa mina de ouro, tá ligado? Nós somos uma empresa moderna, rica. Se funcionário vacila, é despedido e jogado no “microondas”... ha, ha... Vocês são o Estado quebrado, dominado por incompetentes. Nós temos métodos ágeis de gestão. Vocês são lentos e burocráticos. Nós lutamos em terreno próprio. Vocês, em terra estranha. Nós não tememos a morte. Vocês morrem de medo. Nós somos bem armados. Vocês vão de três-oitão. Nós estamos no ataque. Vocês, na defesa. Vocês têm mania de humanismo. Nós somos cruéis, sem piedade. Vocês nos transformam em superstars do crime. Nós fazemos vocês de palhaços. Nós somos ajudados pela população das favelas, por medo ou por

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amor. Vocês são odiados. Vocês são regionais, provincianos. Nossas armas e produto vêm de fora, somos globais. Nós não esquecemos de vocês, são nossos fregueses. Vocês nos esquecem assim que passa o surto de violência. — Mas o que devemos fazer? Vou dar um toque, mesmo contra mim. Peguem os barões do pó! Tem deputado, senador, tem generais, tem até ex-presidentes do Paraguai nas paradas de cocaína e armas. Mas quem vai fazer isso? O Exército? Com que grana? Não tem dinheiro nem para o rancho dos recrutas... O país está quebrado, sustentando um Estado morto a juros de 20% ao ano, e o Lula ainda aumenta os gastos públicos, empregando 40 mil picaretas. O Exército vai lutar contra o PCC e o CV? Estou lendo o Klausewitz, “Sobre a guerra”. Não há perspectiva de êxito... Nós somos formigas devoradoras, escondidas nas brechas... A gente já tem até foguete antitanques... Se bobear, vão rolar uns Stingers aí... Pra acabar com a gente, só jogando bomba atômica nas favelas... Aliás, a gente acaba arranjando também “umazinha”, daquelas bombas sujas mesmo... Já pensou? Ipanema radioativa? --- Mas... não haveria solução? Vocês só podem chegar a algum sucesso se desistirem de defender a “normalidade”. Não há mais normalidade alguma. Vocês precisam fazer uma autocrítica da própria incompetência. Mas vou ser franco... na boa... na moral... Estamos todos no centro do Insolúvel. Só que nós vivemos dele e vocês... não têm saída. Só a merda. E nós já trabalhamos dentro dela. Olha aqui, mano, não há solução. Sabem por quê? Porque vocês não entendem nem a extensão do problema. Como escreveu o divino Dante: “Lasciate ogna speranza voi che entrate!” Percam as esperanças. Estamos todos no inferno.